Piero, i.a.s. - Ratio Studiorum, Educação e Ciência Nos Séculos Xvi e Xvii

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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO RATIO STUDIORUM, EDUCAÇÃO E CIÊNCIA NOS SÉCULOS XVI E XVII: matemática nos colégios e na vida IRIA APARECIDA STORER DI PIERO PIRACICABA, SP 2008

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  • UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA FACULDADE DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    RATIO STUDIORUM, EDUCAO E CINCIA NOS SCULOS XVI E XVII:

    matemtica nos colgios e na vida

    IRIA APARECIDA STORER DI PIERO

    PIRACICABA, SP 2008

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    RATIO STUDIORUM, EDUCAO E CINCIA NOS SCULOS XVI E XVII:

    matemtica nos colgios e na vida

    IRIA APARECIDA STORER DI PIERO

    ORIENTADOR: PROF. DR. JOS MARIA DE PAIVA

    Dissertao apresentada Banca Examinadora do Programa de Ps-Graduao em Educao da UNIMEP como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Educao.

    PIRACICABA, SP 2008

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    BANCA EXAMINADORA

    ______________________________________________

    PROF. DR. JOS MARIA DE PAIVA (orientador)

    ______________________________________________

    PROF(a) DR(a) CRISTINA BROGLIA F. DE LACERDA (UNIMEP)

    ______________________________________________

    PROF. DR. RAIMUNDO DONATO DO P. RIBEIRO (UNIMEP)

    ____________________________________________

    PROF(a). DR(a). MARISA BITTAR (UFSCAR)

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    Dedico esta dissertao s pessoas mais importantes da minha vida - minha famlia

    Meus filhos Roberta e Adriano (com Danielle) e meus pais Roselis e Juliano

    Sem me esquecer da Sil, do Meme, do Juca, do Mgue e da Laine (por ordem de chegada)

    E s duas flores mais novas Bibi e Duda

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    Agradeo a todas as pessoas que me auxiliaram direta e indiretamente.

    Especialmente a duas pessoas maravilhosas que me acolheram em sua casa, prontos a um mimo, um jantar, um passeio, um abrao durante a pesquisa que

    resolvi realizar e a quem eu amo demais, meu filho Adriano e minha norinha querida Danielle.

    A minha lindinha Roberta, que sempre me ajudou e amparou estimulando e me fazendo rir demais. Ai que saudade de minha filha italianinha.

    Tambm um especial agradecimento ao Prof. Dr. Jos Maria de Paiva, meu orientador, que acolheu essa professora de matemtica que tentava trilhar novos

    rumos (nunca dantes navegados). Muito obrigada pela pacincia e auxlio.

    s minhas amigas de percurso profissional e acadmico em especial a Leda Zinsly que muito me incentivou e apoiou.

    s amigas da Secretaria do PPGE que sempre me orientaram, acolheram e indicaram os melhores caminhos.

    s minhas muito queridas amigas da Biblioteca da UNIMEP com as quais sempre pude contar no meu trilhar.

    Aos professores que compuseram minha banca de defesa Profa. Dra. Cristina, Profa. Dra. Marisa e Prof. Dr. Raimundo, um especial obrigada pela pacincia e

    disposio para lerem e participarem da construo desse trabalho.

    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de nvel superior CAPES Brasil. Dessa forma, gostaria de efetuar um

    agradecimento especial ao Programa da CAPES pela confiana e suporte financeiro, pois sem esse auxlio me seria quase invivel a concluso do Mestrado.

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    "No decurso do tempo, a humanidade teve de agentar, das mos da cincia, duas grandes ofensas a seu ingnuo amor-prprio. A primeira foi quando percebeu que a

    Terra no era o centro do universo, mas apenas um pontinho num sistema de magnitude dificilmente compreensvel... A segunda quando a pesquisa biolgica roubou-lhe o

    privilgio de ter sido criado especialmente, e relegou o homem a descendente do mundo animal (FREUD)

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    RESUMO

    O presente estudo teve como objetivo desvendar as possveis conexes entre o desenvolvimento da cincia e a educao preconizada pela Companhia de Jesus nos sculos XVI e XVII atravs de reviso de literatura e leitura de documentos da Companhia, em especial o Ratio Studiorum. O exerccio da atividade cientfica nesse recorte temporal foi, durante muito tempo, tratado como algo que no condizia com a vida religiosa, nos sendo difcil imaginar um padre ou um mestre jesuta realizando experincias, produzindo livros cientficos, lecionando disciplinas como astronomia, fsica, matemtica, geometria, etc. Entendemos que essa forma de pensar seria olhar essa temtica de forma anacrnica, emitindo juzos de valor a partir de uma tica contempornea. Para a finalidade desse estudo, no nos esquivamos de pensar que no h incompatibilidade entre ser jesuta, ser educador e ser cientista. Porm, tambm no pensamos que os jesutas se dedicaram ao estudo cientfico prioritariamente. Descobrimos que os conhecimentos construdos, especialmente dentro de instituies religiosas como a Companhia de Jesus e, consequentemente, o plano de estudos adotado em seus colgios - o Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesus nunca foi anti-cientfico, alcanando inmeras naes e culturas, servindo de embasamento e disseminao tanto de prticas educativas, como de novos caminhos cientficos (prticos e tericos), espao para o dilogo entre a matemtica e as outras disciplinas do currculo. Destacamos entre os jesutas cientistas e matemticos: Clavius, Grienberger, Kricher e Ricci, considerados fundadores de novas metodologias cientficas, bem como introdutores do aprendizado cientfico no ambiente escolar, com destaque para a Aula da Esfera do Colgio de Santo Anto e o desenvolvimento de um currculo de matemticas para os colgios jesutas. Demonstramos por meio dos autores, que se apresentaram nessa dissertao, que os jesutas frente s novas realidades eram flexveis e abertos s inovaes, destacando que eles estavam, inclusive, perigosamente prximos das mais inovadoras tendncias cientificas e filosficas.

    Palavras-Chave: Educao Jesutica; Cincia; Matemtica; Ratio Studiorum.

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    ABSTRACT

    This study has the objective of unraveling the possible connections between the development of science and the Society of Jesus driven education on XVI and XVII century. The scientific activity on this time frame was, during a long period, treated as something dissociated of religious life, which makes difficult for us to imagine a priest or a Jesuit master conducting experiments, writing scientific assays, teaching disciplines such as astronomy, physics, mathematics, geometry etc., in a poque where theology was the Queen of Sciences, and where philosophy was the most important discipline taught on the Jesuit colleges. But, its understood that this was thinking on this theme in an anachronistic manner, judging values from a contemporary point of view. For this study, we didnt ignore the idea of an incompatibility between being a Jesuit, an educator and a scientist. Also, we didnt put up the idea of Jesuits having scientific study as top priority. We believe, however, that a great majority of scientific knowledge were accumulated over the centuries allowing what is known as Scientific Revolution. And that this knowledge was built specially within religious institutions, since there were no more qualified institutions on the period. The Jesuit Colleges and therefore the education plans adopted by them the Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesus, which had reached the four corners of the globe and were the basis and responsibles for the dissemination of new practical and theoretical scientific knowledge. The Jesuit Colleges were places where the mathematics tried to dialogue with others you discipline of the resume. Its clergy, among which are Clavius, Grienberger, Kricher, Ricci among others, are considered the founders of new scientific methodologies, as well as the introducers of the scientific learning on the school environment, with particular focus to the Teaching of Sphere on Saint Anthony the Great College and the introduction of a scientific curricula (mathematics) on the Orders colleges. Therefore, we intend to clarify how the diffusion and production of scientific knowledge (specially the mathematic) and technical (related with the need of transatlantic navigation) on the Jesuits colleges of XVI and XVII century, hoping to demonstrate through the authors that are shown in this study that the Jesuits when faced with novel realities were flexible and open to innovation, dangerously close to the newest trends of science and philosophy.

    Key-words: Jesuitical Education; Science; Mathematics, Ratio Studiorum.

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    SUMRIO

    INTRODUO ..................................................................................................... 11

    CAPTULO I. A TELA DA TRAMA - Educao, Escolas e Cincia: Sculos XVI e XVII ...................................................................................... 18

    1.1. Das cincias e da tcnica no sculo XVI............................................... 25

    CAPTULO II. A URDIDURA DA TRAMA - A Configurao de uma Metodologia Educacional Jesutica ...................................... 35

    2.1. A parte IV das Constituies.................................................................. 50

    2.2. Aspecos histricos e gerais do Ratio Studiorum................................. 55

    CAPTULO III. O PONTO SEGREDO - Educao Jesutica e a Cincia nos Colgios ............................................................................. 67

    3.1. As Matemticas no Ratio Studiorum ..................................................... 97

    3.2. As regras para os Provinciais e Professores de matemtica.............. 103

    CONSIDERAES FINAIS ................................................................................. 106

    REFERNCIAS.................................................................................................... 111

    ANEXOS .............................................................................................................. 119

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    LISTA DE ILUSTRAES 1. Azulejos na sala da Aula da Sphaera no colgio de Santo Anto, Lisboa ............. 18 2. LIBRO DE ALGEBRA EN ARITHMETICA Y GEOMETRIA....................................................... 29

    3. SIDEREUS NUNCIUS MAGNA Galileu Galillei................................................... 31

    4. Santo Incio e Paulo III na aprovao da Companhia de Jesus ............................ 35

    5. Ratio studiorum ...................................................................................................... 55

    6. Museu Kircheriano no Collegio Romano ................................................................ 67

    7. Imagem de Clavius (15381612) ........................................................................... 69 8. Figura de Kircher.................................................................................................... 75

    9. Correspondncia de Kischer .................................................................................. 76

    10. Relgio magntico................................................................................................ 77

    11. Lagarto encasulado em mbar............................................................................. 77

    12. Lanterna mgica................................................................................................... 78

    13. Capa da Ars Magnsia......................................................................................... 78

    14. Reconstruo de Kircher da legendria esfera de Arquimedes ........................... 79

    15. Tarantela .............................................................................................................. 80

    16. Mundus Subterraneus .......................................................................................... 81

    17. Portada de Ars magna lucis et umbrae ................................................................ 82

    18. Aula da Esfera...................................................................................................... 84

    19. Salacisis, de Crepusculis liber unus, nc recs & natus et editus.......................................... 88

    20. COSMOGRAPHIA FRANCISCI MAVROLYCI MESSANENSIS SICVLI ............................ 88

    21. Proposio 40: A superfcie da esfera est para a superfcie total do cone equiltero circunscrito assim como 4 est para 9 ...................................................... 89

    22. Proposio 9: A superfcie da pirmide regular circunscrita a um cone recto igual [em rea] ao tringulo cuja base o permetro da base da pirmide FHLD e a altura o lado BG do cone ........................................................................................ 90

    23. Proposio 20. As superfcies cnicas inscritas na esfera fenecem na esfera. ... 90

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    24. Proposio 14: Cilindros (AR e CI 1) colocados sobre bases iguais (MQ e GH) esto entre si assim como as respectivas alturas. O mesmo acontece para os cones.......................................................................................................................... 91

    25. Livro XI, Proposies 29 e 30 Se os paraleleppedos FEAGKIMC e FEBHLOMI tiverem a mesma base EFIM e a mesma altitude, estando, em consequncia, entre os planos paralelos EFIM e GAOL, sero iguais........................................................ 91

    26. Livro VI, Proposio 3 Se a recta BF cortar pelo meio o ngulo B de qualquer tringulo ABC, sero ossegmentos da base AF e FC na mesma proporo que os lados aderentes AB e CB. E se os segmentos AF e FC da base forem na mesma proporo que os ditos lados, cortar a recta BF o ngulo B pelo meio. ................... 92

    27. Livro V (Comentrio de Tacquet), Lema 2 Se duas quantidades A e B tiverem uma medida comum C, ser A tantas vezes somada quantas C cabe em B igual a B tantas vezes somada quantas C cabe em A........................................................... 92

    28. Livro III, Esclio de Tacquet Proposio 17 Outro modo mais expedito de tirar, de um ponto dado O, uma tangente a qualquer crculo se colhe da Prop. 31. que o seguinte: Tire-se do ponto dado ao centro do crculo a recta OA e descreva sobre ela um semicrculo o qual corte a circunferncia em B. Digo que a recta BO a tangente que se pede............................................................................ 93

    29. Detalhe do frontispcio ilustrativo da obra Uranophilus Caelestis Peregrinus de Valentin Stansel ........................................................................................................ 94

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    Homem Vitruviano. Da Vinci (1490)

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    INTRODUO Para a Salvao das Almas, e [...] para o melhor servio a Deus

    (Constituies)

    Essa dissertao buscou historiar uma educao que se configurou pelo documento Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesus, mtodo de ensino da Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada por Incio de Loyola, e as possveis conexes entre a educao proposta pelo referido documento e a cincia que emergia no sculo XVI.

    Para quem estuda a histria da educao pode ser at curioso tomar conscincia de que o ensino no estava nos projetos iniciais da Companhia. Inclusive, Incio de Loyola manifestava inicialmente reservas a esse respeito. Mas, poucos anos aps a fundao da Ordem jesutica, a educao j era um dos seus principais ministrios e havia se transformado misso apostlica (OMALLEY, 1993; GIARD, 1995).

    Esse direcionamento no deve ser estranhado, estamos diante de uma ordem religiosa um tanto sui generis para o que se conhece das ordens religiosas daquela poca, como os dominicanos, beneditinos, etc. Desde o comeo, os seguidores de Incio rejeitaram certos princpios orientadores da vida religiosa que eram comuns no sculo XVI. Como ilustrao dessa assertiva vamos mencionar apenas dois pontos: a abolio da recitao em coro do Ofcio Divino1, ao contrrio do que faziam outras ordens monsticas e conventuais. E, tambm a substituio de mosteiros por casas ou residncias, ou seja, a substituio de uma vida contemplativa (monstica), por uma vida ativa, o homem agindo na busca de sua salvao e a de seus irmos (OMALLEY, 1993, MARTINS, 1997)).

    Para confirmar esse incio no direcionado educao, podemos mencionar que segundo o Formula Instituti de 1539, estabelecia-se como misso da Companhia, o Ministrio da palavra (nominatim) por meio do ensino da doutrina

    1 O Ofcio Divino ou Liturgia da Horas um conjunto de oraes, salmos, antfonas, hinos, leituras bblicas e

    outras que a Igreja Catlica recomenda serem efetivadas (rezadas, cantadas) em determinadas horas dos dias. Os sacerdotes, religiosos e religiosas tm obrigao de rezar o Santo Oficio, porm Incio pensava que a assistncia ao coro os impediria da atividade apostlica permanente, exigida pelo carisma de evangelizadores livres e instveis. Dessa forma aspectos cultuais e levticos do ministrio sacerdotal: coro, missas solenes, outros ofcios cantados, que constituam ocupao essencial de Monges, Cnegos Regrantes e membros de Ordens Conventuais, nunca se enquadraram nos meios de evangelizao, utilizados pela Companhia de Jesus.

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    crist s crianas e ignorantes (pueri et rudes), os Exerccios espirituais, as Obras de Caridade, mas nada falava sobre as escolas ou educao para formao de alunos que no fossem se dedicar vida clerical.

    O que nos leva pensar que a educao no estava entre as atividades ministeriais ou nos projetos apostlicos iniciais dos Jesutas. Eles se identificavam muito mais com os Apstolos que com mestres. E, para suas vidas se identificavam com os Evangelhos de Mateus e de Lucas2. Fazendo uma ponte, podemos mencionar, por exemplo, que como os doze Apstolos, os Jesutas so enviados; para pregar o Evangelho, isto , comprometidos nos diversos ministrios da Palavra de Deus; para curar os enfermos, alivi-los dos males corporais e espirituais; sem buscar qualquer recompensa econmica (OMALLEY, 1993) [grifos nossos].

    Tambm podemos, sob uma tica contempornea, aceitar de modo acrtico algumas teses, como a de que os jesutas exerceram o papel de adversrios, detratores e censores do ensino cientfico. No caso em estudo, acreditamos que ao pensarmos dessa forma estaramos incorrendo no equvoco de ignorar que a necessidade de ordenamento e transmisso dos conhecimentos que afloraram nos sculos XVI e XVII (quer cincia, quer tcnica), iria ser respondida pela escola. E, a maior rede educativa desse perodo foi a jesutica.

    Ou seja, a cincia perpassou as prticas as educativas desenvolvidas pela Companhia de Jesus. Verificamos que a mesma ensinou, catalogou, pesquisou e desenvolveu teses cientficas, que no podem ser esquecidas. Se incorrssemos nesse equvoco tornar-se-ia muito mais difcil a compreenso da histria da cincia que se desenvolveu ao longo das centrias mencionadas, e posteriores.

    Nesse sentido, esperamos que nossa pesquisa contribua para elucidar melhor a temtica desenvolvimento da cincia e educao jesutica, que ainda hoje suscita debates contraditrios entre pesquisadores e estudiosos.

    O recorte temporal sculos XVI e XVII foi necessrio porque apesar da Companhia de Jesus e o Ratio surgirem no sculo XVI, os reflexos da educao jesutica na difuso de conhecimentos cientficos far-se-o mais visveis no sculo XVII devido a configurao definitiva do documento em 1599.

    Iniciamos no sculo XVI para contar da fundao da Companhia, de seus colgios, de sua vocao educativa, da cincia que surgia, e avanamos para o

    2 Cf. OMalley, nos Captulos 10 e 9 dos referidos evangelistas respectivamente.

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    sculo seguinte, apresentando as disciplinas nos colgios e universidades jesuticas do sculo XVII, a fim de ilustrar de que forma a cincia era ensinada nos Colgios Jesutas.

    Entre correntes opostas que tratam do tema jesutas e cincia, uma acredita que a educao jesutica foi muito conservadora para estimular e/ou favorecer o desenvolvimento cientfico. Outra, muito presente no mundo acadmico atual, principalmente na Europa e Estados Unidos, vem realizando pesquisas documentais aprofundadas, traduzindo inmeras fontes primrias (formada principalmente por um grupo de estudiosos que se denominam Jesuits in Science), procurando demonstrar que a educao jesutica poderia ser considerada at inovadora, principalmente para a sociedade que se apresentava no sculo XVI.

    Nossa compreenso desse tema se alinha segunda corrente, pois ao iniciar esse projeto de pesquisa verificamos que nos Colgios Jesutas desenvolveram-se currculos que privilegiaram a matemtica, as cincias naturais, a fsica, a geometria espacial, o estudo dos ngulos, o estudo do movimento dos astros, bem como se produziram inmeras obras sobre medicina, astronomia, qumica, zoologia, botnica, geografia, etc.

    Pensamos que a primeira corrente pode estar a historiar a educao jesutica em funo de critrios e preocupaes que nos so contemporneos, ou seja, com os olhos de hoje, pois nossos estudos evidenciaram que o Ratio Atque Institutio Studiorum Societatis Jesus propunha para seus colgios, alm de uma estruturao didtico-metodolgica, funcionando como espinha dorsal da educao jesuta, uma atuao prtica que deixava bastante espao de manobra para cada professor ou cada colgio promover, da melhor forma, o desenvolvimento e a divulgao de conhecimentos (cientficos ou no).

    Mesmo quando em alguns documentos da Companhia de Jesus, como as Constituies e o Ratio Studiorum surgem passagens que incitam aos jesutas que no se afastem da filosofia Aristotlica, ou da Teologia dos Padres, encontramos nessas mesmas passagens referncias que explicitam que essa fidelidade deveria ser mantida quando possvel, ou seja, havia flexibilidade para o pensar autnomo e para o dilogo entre f e cincia, destacando que essa flexibilidade coerente com a slida formao intelectual dos membros da ordem, bem como com os constantes contatos dos mesmos com idias inovadoras e novas culturas.

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    Como pensamos a cincia como uma construo humana de conhecimentos para dar respostas s questes que lhe so postas pela realidade do seu tempo, nossa hiptese de pesquisa sugere que a metodologia educacional jesutica caminhou e desenvolveu-se ao lado das necessidades de uma sociedade que passava por inmeras transformaes, especialmente na esfera cientfica, e por isso mesmo esteve aberta s necessidades de modificao na produo desse conhecimento, que no confundimos com a cincia na sua acepo moderna.

    A cincia, nos sculos estudados, foi mais uma juno do saber dos homens da tcnica (engenheiros, artfices) com o saber dos homens da cincia (filsofos). Somente a posteriori que se configurou um corpo estruturado de saberes denominados de cincia.

    Para elucidar a metodologia de estudo adotada para a construo dessa dissertao, reportamos que a histria da educao jesutica descortinada nesse trabalho foi analisada sob uma tica que se embasa principalmente no religioso, no s porque as principais leituras realizadas advieram de religiosos ou telogos mas, principalmente, porque a principal tarefa da Companhia, descrita em todos os documentos da Ordem, era a defesa e propagao da f crist e a iluminao das almas, ou seja, precisamos elucidar que sua misso primeva no era cientfica, ou mesmo educacional, era religiosa.

    A escolha dos autores foi o resultado de uma tentativa de se contemplar aspectos histricos, sociais, culturais, religiosos, polticos, intelectuais, etc., que elucidassem como, e se realmente se processou, a produo e disseminao de um conhecimento tcnico/cientfico no interior dos colgios e por meio da educao propugnada pelos jesutas, pois pensamos como Paiva (2006, p.31), quando o mesmo relata que

    As artes (profisses e ofcios) foram desenvolvidas segundo as necessidades vividas, e no como componentes da escola. preciso tomar conhecimento desse desenvolvimento, englobando Nutica, Astronomia, Geografia, Cartografia, Histria, Matemtica, Fsica, Cincias de modo geral, e procurar entender como foram assimiladas pela instituio escolar, feitas j prtica social. Elas no nasceram escolares, mas sociais.

    Realizamos uma reviso e uma compilao de literatura, ao mesmo tempo em que investigamos dois documentos as Constituies da Companhia de Jesus e o Ratio Studiorum (ambos j traduzidos). Sendo, as consideraes aqui apresentadas, reflexes sobre as informaes j apuradas por outros pesquisadores.

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    Ao tratarmos do tema cincia nessa dissertao, vamos nos valer de relatos sugerindo que a mesma derivada de necessidades de uma sociedade que se expande nos burgos e para alm da Europa. Necessidades que vo surgindo muito antes do recorte temporal proposto por essa pesquisa. Assim, em alguns momentos podemos falar de engenhos e engenheiros do sculo XV, ou falar dos estudos de astronomia, matemtica, engenharia que se processaram antes do sculo XVI, visto que o que se quer demonstrar que as tcnicas, cincias ou tecnologias 3 que se desenvolveram (ou foram criadas) desde a Idade Mdia 4, transformaram o que conheceremos por cincia, hoje. No h como separar, nesse trabalho, o que seja tcnica, cincia e conhecimento cientfico, pois no haveria essa diviso no sculo XVI conforme o explicitado por Braga, Guerra e Reis (2003, v.1).

    O que a literatura consultada sobre histria da cincia sugere que no sculo XVI e XVII desenvolveram-se muitas tcnicas de construo de mquinas, mecanismos e estruturas arquitetnicas e plsticas, e esse desenvolvimento oportunizou tambm o desabrochar do que se denominou de Revoluo Cientfica. Nesse perodo no temos, ainda, a cincia como corpo estruturado de conhecimento, ou fragmentada em reas do saber, como se faz contemporaneamente, portanto esse enfoque de cincia no faz parte dessa pesquisa.

    Sob nosso ponto de vista, vamos falar de tecnologias principalmente as relacionadas s navegaes, bem como do desenvolvimento da matemtica, da geografia, da cartografia, de novas propostas de interpretar e explicar o mundo natural como as de intelectuais como Coprnico, Galileu e Clavius, Grinberg, Kircher (matemticos, astrnomos, professores jesutas, engenheiros, etc.).

    O que trataremos por cincia no ser seu aspecto filosfico, ou a construo de um mtodo cientfico, mas sua representao concreta na vida das pessoas daquele tempo para ilustrar como se dava o processo de criao e transmisso desses conhecimentos. Justificando esse ponto de vista, buscamos apoio em Charmot (apud INFANTES, 2004, p.589), que assegura que para tentar compreender uma histria da educao como a proposta pelos jesutas, devemos

    3 Nesse caso o sentido de tecnologia no o moderno. A tecnologia aqui significa trabalho do artficie, arte

    manual. 4 Qualificao ou terminologia adotada por alguns autores pesquisados, e que adotamos a ttulo de ilustrao de

    um perodo.

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    buscar [...] uma ligao entre o pensamento dos jesutas e as necessidades da vida.

    Entendemos que o Ratio Studiorum foi uma resposta s necessidades de unificao de uma metodologia educativa. A Companhia de Jesus ao se expandir pelo mundo entrou em contato com uma diversidade de culturas, lnguas e modos de ser e, para Incio essa diversidade poderia levar ao fracasso a misso (educativa) da Ordem. Segundo Incio de Loyola, sem uma boa estrutura a educao no produziria os frutos desejados. Lendo relatos das cartas trocadas entre Incio e Nadal5 verificamos essa inquietao, mesmo aps a publicao das Constituies da Companhia.

    Era seu desejo configurar uma metodologia unificante para os seus colgios. Assim, o Ratio Studiorum tornou-se o modus operandi da Companhia na rea educativa, sendo tanto modelo de formao intelectual, como instrumento de formao integral do homem para uma vida crist, conforme desejava Incio (DEL REY, 2007).

    Estruturalmente essa dissertao est dividida em trs captulos, pois acreditamos que a criao de cenrios ou caminhos prvios embasam e orientam o desenvolvimento de uma pesquisa. So eles que possibilitaram a compreenso do tema e do objeto de estudo, bem como o amadurecimento para reflexes que no estariam desarticuladas de contextos previamente explicitados.

    De acordo com essa perspectiva, vamos traar no primeiro captulo um breve panorama da educao, da sociedade no sculo XVI e do entendemos por cincia nesse perodo para explicitar o contexto onde surgem e se desenvolvem as escolas e prticas educativas da Companhia de Jesus, e como se dava a evoluo tcnica, ou o desenvolvimento do conhecimento cientfico.

    Como o ttulo da dissertao enuncia, o documento analisado nesse trabalho o Ratio Studiorum. Para seu melhor entendimento relatamos seu desenvolvimento histrico e, transcrevemos e analisamos, de forma breve e sintetizada, alguns captulos e pargrafos desse documento que pudessem elucidar de que forma se configuraram os mtodos de ensino-aprendizagem, as disciplinas que eram ministradas nos colgios e universidades, como era a hierarquia, como deveriam se

    5 Nadal foi um dos Reitores do Colgio de Messina e um dos configuradores das primeiras verses do Ratio

    Studiorum

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    portar os professores, etc., para tentar elucidar se haveria flexibilidade (curricular, metodolgica) para que ocorresse o contato entre a f e a cincia.

    Iniciamos esse captulo explicando como pensavam os inacianos poca da constituio da Companhia, prosseguimos estudando as Constituies na sua Parte IV, pois esse documento, anterior ao Ratio, serviu de base para o desenvolvimento do modelo educativo dessa ordem religiosa. Para tratar especificamente do cerne desse trabalho, traremos ao ltimo captulo, pesquisadores (clssicos e contemporneos) que debatem a temtica cincia, tcnica e educao nos colgios da Companhia de Jesus, buscando esclarecer de que forma a cincia convivia com o currculo no Ratio Studiorum. Tambm de que forma esse documento, em suas vrias fases de constituio, abordou o tema cincia em sua configurao curricular, mtodos de ensino, atuao dos docentes e discentes.

    Esse captulo pretende esclarecer como, e se ocorreu, a difuso e a produo de conhecimento cientfico (especialmente o matemtico) e tcnico (ligados s necessidades das navegaes transatlnticas) nos colgios jesuticos do sculo XVI e XVII.

    Esperamos demonstrar por meio dos autores que se apresentaram nessa dissertao que os jesutas frente s novas realidades, eram flexveis e abertos s inovaes, Dinis (2005, p.27), refere, inclusive, que eles estavam perigosamente prximos das mais inovadoras tendncias cientificas e filosficas6. E, ao contrrio do que muitos estudiosos possam suscitar, o saber cientfico nunca esteve apartado da educao jesutica.

    6 Traduo nossa

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    CAPTULO I A TELA DA TRAMA

    Educao, Escola e Cincia: sculos XVI e XVII S verdadeira a cincia que abraamos para agir. (Santo Agostinho)

    Nesse captulo trataremos de alguns aspectos que podem auxiliar na compreenso do perodo histrico que oportunizou o desenvolvimento de uma nova forma de educao escolar, que gestada na Europa, se espalhou pelo mundo levada pelas mos e prticas de uma ordem religiosa a Companhia de Jesus.

    1. Azulejos na sala da Aula da Sphaera no colgio de Santo Anto, Lisboa. Fonte: Instituto Cames

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    Temos o intuito de demonstrar que, para a anlise de nosso objeto de estudo as conexes entre o Ratio Studiorum e a cincia, necessita-se antes explicitar em que contexto, em que tela, desabrocharam novas tcnicas e cincias, e qual seria a educao/escola7 que surgia.

    Nossas leituras possuem um enfoque que poderamos chamar de religioso, pois, segundo Wernet (in PORTA, 2004), a educao e a sociedade que se explicitavam no sculo XVI eram totalmente voltadas para a formao de uma civilizao moldada nos padres cristos. Alm do mais, estamos a historiar a educao de uma Ordem Religiosa.

    Nesse sentido nos congraamos com os ensinamentos de Paiva (2006, p.24), ao nos relatar que no sculo XVI

    A sociedade era entendida como um corpo social, assim querido por Deus, em que a diversidade de membros significava diversidade de competncias ou funes, conjuntamente comprometidas com o bem comum.

    A sociedade ocidental via-se como parte do universo moldado por Deus, ou seja, entendia o mundo sob uma tica religiosa (crist), ao mesmo tempo em que exposta ao inusitado as descobertas de novos continentes, a necessidade de novas tcnicas construo, novas cartas martimas, mapas, conceitos matemticos, astronomia, geografia, medies do tempo, comrcio transatlntico, expanso das cidades, etc.

    Nesse contexto, entendemos que a educao no se esgotou no escolar ou no aprender letras. Ela deve ter se voltado para o atendimento das necessidades de novos horizontes que se descortinavam - mercantis, culturais, sociais, religiosos, etc.

    No recorte que se fez para esse estudo (sculos XVI a XVII), o sculo XVI vai fornecer fontes que apontam a necessidade de uma mudana na escola em seus objetivos, mtodos, prtica didtica, currculo, enfim na educao. Pensamos que a sociedade que desabrochava estava necessitando de novas formas de instruo (GOMES, 1995).

    7 Entendemos que escola tem sentido diverso de educao. A utilizao dessas duas palavras uma forma de

    lembrar ao leitor que em muitas partes desse estudo fala-se de educao, mas tambm do surgimento da escola (estrutura fsica e metodolgica) enquanto meio de transmisso de conhecimentos.

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    Vemos em Delumeau (1984, p.72,73), que a expanso da sociedade ocidental anterior ao perodo que estudamos. O mesmo ressalta que Ocidente progredira de modo relativamente contnuo desde o sculo XI.

    [...] A populao tinha aumentado; novas terras tinham sido ganhas para a agricultura; as cidades e aldeias tinham se multiplicado e desenvolvido; muitos camponeses tinham escapado servido.

    Nesse cenrio de desabrochar urbano, expanso do comrcio e agricultura, podemos esperar mudanas em algumas estruturas da sociedade e imaginar que a educao/escola dever se adaptar a novas mentalidades, onde coexistem, inclusive, novas formas de expresso crist, como a protestante.

    Devemos novamente ressaltar que a sociedade europia no sculo XVI ainda permanece estrutural e essencialmente crist, ou seja, a Igreja ainda permanece como principal estrutura da organizao social, podendo, inclusive, ser [...] explicitamente concebida como fundadora da nova ordem social (SCAGLIONE, 1986, p.51). 8

    Corroborando com esse pensamento, e para ilustrarmos melhor aquilo que acreditamos haver acontecido nesse perodo, buscamos a fala do pesquisador Ferreira Jr. (2007, p.9), que prope a seguinte sntese acerca da sociedade e da cultura que se estrutura no sculo XVI,

    O sculo 169 significou um ponto de inflexo na longa transio que se operou entre a Idade Mdia e a sociedade urbano-industrial assentada nas relaes capitalistas de produo. Nessa centria, a ao econmica protagonizada pela burguesia mercantil engendrou uma srie de acontecimentos que desestruturou o mundo medieval, particularmente com base em trs significativos episdios que condicionaram historicamente os sculos seguintes: a criao do mercado mundial de troca de mercadorias resultante das grandes navegaes, o processo de formao dos Estados nacionais e a reforma protestante. Assim, a imbricao que ocorreu entre o comrcio em escala planetria, o primado das lnguas vernculas sobre o latim e a ciso no seio da cristandade mergulhou a Igreja Catlica, autoridade supranacional da sociedade medieval, numa profunda crise espiritual.10

    Para demonstrar o embricamento entre desenvolvimento cientfico, religiosidade e necessidades de educao de uma sociedade que mudava sob

    8 Cf. Traduo de Janine Figueirinhas Catarino [Catedrtica da Universidade de Lisboa]. Disponvel em: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/coljes.htm. Acessado em: 10 set. 2007.

    9 Sculo 16 - Grafia original da citao referenciada.

    10 Ao escolhermos nossos referenciais (autores, historiadores, educadores, cientistas, historiadores da educao)

    buscamos a diversidade de opinies, pois mesmo sob enfoques tericos diferentes, os autores aqui estudados elucidam a temtica abordada.

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    alguns aspectos mas continuava unida pela f, buscamos Delumeau (1984, p.194), porque o mesmo sugere que a vida do esprito (cultura, religiosidade, mentalidades), se beneficiou do avano tecnolgico, veja-se a citao a seguir,

    Esses avanos da tcnica elevaram o nvel da civilizao ocidental, dando-lhes meios de renovao espiritual e de alargamento de horizontes. Deram-lhe tambm maior conforto material e maior alegria de viver.

    Nesse contexto, acreditamos que a tcnica e a cincia que se desenvolviam no estavam apartadas. Deveriam estar integradas s mltiplas dimenses da realidade daquela poca, principalmente, porque ambas se pensadas como produtos humanos, possuem o mesmo estatuto cultural. A arte, a economia e a religio, por exemplo, devem ter infludo na consolidao de idias que gestaram o que entendemos por cincia (na atualidade).

    E, se para alguns pesquisadores da histria da cincia faz sentido mapear cincia e tcnica como tradies distintas, pensamos que pode ser um equvoco separ-las. No apenas porque ambas so construes do homem, mas porque a partir delas (no somente uma delas), que o homem vai compreender o mundo e a si mesmo. O homem precisava de novas formas de medir o tempo, novas maneiras de processar suas transaes mercantis, novas formas matemticas para explicar e agir no mundo fsico, novas tcnicas de navegao, assim criava novas formas de representaes que davam conta de explicitar e teorizar essas novidades.

    Supomos que o desenvolvimento de novas tcnicas atendeu a demandas prticas, como localizar uma caravela no oceano, lutar contra correntes martimas e ventos contrrios, projetar e construir novas catedrais, e que os chamados fundadores da cincia moderna como Coprnico, Kepler, Galileu, Descartes, Newton, etc., no pensavam que estavam a fazer cincia como a entendemos hoje, ou consideraram que suas idias inovadoras se opusessem ao cristianismo, ou viso religiosa que impregnava os sculos estudados (DINIS, 2006).

    Nesse cenrio podemos pensar uma escola no mais voltada para a formao de padres ou para instruo dos nobres, nem como um sistema fechado de saberes. Ela vai ser chamada a auxiliar na difuso dos novos saberes que se emergem prticos (a arte da navegao, o registro documental e contratual, as novas formas de financiamento e de produo do comrcio internacional, a nova

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    contabilidade, etc.) vo necessitar ser estruturados em forma de conhecimento para que possam ser transmitidos.

    Como o intuito desse trabalho no foi dar conta de todos os processos e mtodos educativos desse perodo, vamos tratar da educao que vai se processar nos colgios jesutas. Educao que permitiu o avano do terico sobre a prtica que influenciou o desabrochar da cincia. A expanso do saber ler e escrever e, consequentemente, da escola se fez principalmente para atender s necessidades de figuras partcipes da vida social dos burgos (engenheiros, artfices, mercadores, banqueiros). Conforme nos adverte Delumeau (1984, p.154), a partir do Renascimento, a tcnica no s atraiu a ateno dos poderes pblicos, como passou a fazer parte integrante da cultura, o que pode sugerir que a mesma deveria se disseminar no somente de forma oral, mas por meios que a formalizassem, como as escolas.

    Essa necessidade de mudar o conhecimento que vinha do pelo saber fazer - prtico e transmitido oralmente, e de se criar um saber estruturado (escrito), nos faz pensar na necessidade de criao de mais escolas para instruo da sociedade. Identificando essa necessidade, contamos com a transcrio de Matos (1969, p.13),11

    [...] como quer que esta arte ante geralmente em homens de todo ponto fora de letras, de fraca imaginao e piquena memria, acontece s vezes carem em erros notveis e de grande importncia [...] j aconteeo de fazerem a conta s vessas [...] pelo que mal me pareceo que no somente seria descanso aos mareantes, mas muita certeza na arte se, deixando as regras prolixas e confusas que ora tiveram, podesse fazer regimento fcil.12

    A partir da leitura desse excerto do sculo XVI podemos pensar na emergncia de uma nova forma escolar que buscou a formao de mais letrados para a sociedade. A crescente urbanizao pressupunha novas relaes que valorizavam a escriturao como forma de registro, bem como a normalizao tanto das novas tcnicas como das relaes sociais e econmicas (BIOTO, 2006).

    Para elucidar essa construo de pensamento buscou-se suporte em Paiva (2004, p. 5). O autor refere que a educao vai ser a resposta da Igreja a uma

    11 Esse texto deve ilustrar a necessidade de educao/escolas para aperfeioar e desenvolver os conhecimentos da

    arte da navegao. 12

    Cf. grafia original de Manuel Lindo, Regimento Nutico (1595), in MATOS, Lus. Um livro de marinharia indito, 1969, p.13.

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    sociedade que se transforma, mas que mantm sua vocao crist. O colgio foi certamente outro caminho, no um caminho paralelo mas expresso instrumental da pregao e conservao da f. [...] O que estava alterado e a isto os estudos vinham a atender era a realidade social em que a f se exercitava.

    Pode-se inferir que o desenvolvimento da educao no perodo que a maioria dos autores pesquisados denomina de renascentista se estruturou frente s necessidades de uma sociedade que mudava seu modo de ser. A tradio oral estava dando lugar escrita, (veja-se a expanso do livro impresso) e para mediar esse processo deveriam expandir-se escolas que ensinassem as tcnicas de ler e escrever.

    Nunes (1980), inclusive, verifica que a educao escolar emergente vai se ocupar da preparao de homens que pudessem atuar na sociedade (nos burgos) que demandava funcionrios pblicos, comerciantes, banqueiros, artesos, engenheiros, cartgrafos, construtores, etc. Ou seja, a educao tomou uma direo mais prtica, levando em conta uma formao que preparasse o homem para tratar dos assuntos da cidade, voltada para a realizao e administrao de negcios pblicos e particulares, uma educao que pressupunha a passagem do conhecimento prtico (de tradio oral), para o registrado em papel.

    Isso tambm nos permite supor aumento da demanda por escolas de ler e escrever.

    Segundo Paiva (2004, p.2), as letras que transmitem as experincias e vivncias humanas, no Renascimento, passaram a ser, alm de religiosas, tambm a expresso de um novo mundo, o mercantil, que vai sintetizar um novo modo de ser que precisava de letramento. Delumeau (1984, p.255), relata que 63% dos artesos moradores dos burgos j sabiam assinar bem no sculo XVI.

    Ainda interessante lembrar que no sculo XVI, apesar do trabalho didtico preservar algumas caractersticas da educao medieval, como a contratao de preceptores para a educao dos nobres e as escolas religiosas para formao do clero, alterava-se a educao em um dos aspectos que pode ser denominado de caracterstico de uma nova poca - o magistrio comea a ir em direo ao laicismo, ou seja, abria-se para a formao do homem no somente no aspecto religioso.

    Antes, o ensino era feito em escolas que funcionavam nos conventos, mosteiros e nas igrejas das vilas. Nestas escolas o ensino era voltado vida

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    religiosa e se aprendia a ler, escrever, noes de clculos e canto religioso, ou seja, a educao era atribuio exclusiva do clero. Assim, o sculo XVI constitui-se em um marco para a educao. A abertura de escolas para a atuao de mestres no clrigos, o surgimento de salas de aula e da seriao, ou seja, a formao de turmas de estudo conforme a idade, tambm coisa de que no se tem notcia antes do sculo XVI (NUNES, 1980, p.27).

    Passando a falar de cincia e escola no sculo XVI, destacamos como manifestaes desse embricamento, a introduo de inovaes matemticas nos currculos (sinais grficos, formas, clculos, etc.), que vo possibilitar o desenvolvimento das formas contabilsticas dos cmbios, dos contratos mercantis, dos seguros, que facilitaro as trocas comerciais e a confiabilidade nos contratos e, o surgimento da escola para o ensino de jovens (ensino secundrio), que se expande pela Europa, primeiramente nos centros abertos por protestantes, especialmente na Alemanha. E pelos catlicos na maior parte da Europa continental, pelas mos da Companhia de Jesus (MANSO, 2005). Acreditamos que os protestantes, na figura de Lutero, contriburam sobremaneira para o surgimento de uma nova escola, pois ao conclamar a ajuda dos Magistrados - chefes polticos - para a abertura e manuteno de escolas em suas Provncias, Lutero faz emergir a responsabilidade dos Poderes Pblicos para com a instruo do povo, ou seja, a transferncia de uma responsabilidade antes vinculada Igreja para o poder civil (ZULUAGA, 1972).

    Esse incio da secularizao do ensino pode ter aberto as portas, em certa medida, para a difuso do conhecimento cientfico, hiptese com a qual Woortmann (1997, p.11) no concorda se o conhecimento cientfico for pensado como cincia de hoje. Para o autor no havia como verificar experimentalmente as hipteses e provar suas verdades contra um ambiente geral ainda centrado numa explicao aristotlico/tomista do mundo.

    Apesar do contedo humanista religioso dos currculos escolares do sculo XVI, podemos observar que a cincia tambm a se explicitava sob a denominao de matemticas. Essa disciplina deveria dar conta de geometria, fsica, movimentos celestes, etc. A escola que se delineava iria propiciar a difuso de novas formas que romperam com os sentidos e usos medievais do espao e do tempo. Assumindo uma posio mpar na instaurao de novas prticas cotidianas,

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    de novas distribuies de conhecimentos, sem esquecer que seria timo instrumento de difuso da f crist (VEIGA-NETO, 2002, p.1).

    A Companhia de Jesus, ao criar seus Colgios, respondeu s necessidades prprias de uma educao para a f e, ao mesmo tempo, atendeu s demandas sociais (externas). Alm disso, inovou tambm na manuteno dessas escolas. Conseguiram contar com protetores e benfeitores nos locais em que se instalaram, que proveram os meios para a manuteno do colgio e para a educao dos jovens membros da Companhia em troca da educao de seus filhos (O`MALLEY, 2004).

    Alm da administrao eficiente, pensamos que a instituio escolar jesutica se consolidou ao redor do mundo porque construiu instrumentos que padronizaram suas prticas, seu currculo, sua administrao, dando estabilidade e continuidade educativa.

    Antes, porm, de tratarmos da histria da educao jesutica do sculo XVI e XVII, sob a tica do desenvolvimento histrico de seu documento ordenador o Ratio Studiorum, traando os possveis pontos de contato deste com a cincia, nada mais justo que tentar explicar o que se entende por cincia/tcnica nesse perodo.

    1.1. Das cincias e da tcnica no sculo XVI No est na natureza das coisas que um s homem faa repentinamente uma descoberta tremenda.

    A cincia avana passo a passo e todos dependem do trabalho dos seus predecessores. (RUTHERFORD, 1918)

    Em todas as civilizaes e, em todos os tempos, houve homens que pensaram sobre o mundo e as causas de seus fenmenos, porm a concepo de cincia como episteme grega, saber racional que buscava compreender a complexa estrutura do real, quem vai melhor contribuir para a constituio da cincia moderna. Mas isso no nos auxilia na determinao de um perodo histrico para o desabrochar da cincia moderna, coisa que ainda hoje no consenso (KNELLER, 1978; COND, 2002).

    A cincia considerada moderna, parece partir do mesmo pressuposto da episteme grega - haveria uma ordem no universo que poderia ser apreendida pelo homem. Contudo, se para o filsofo grego a apreenso da realidade seria mediada pela contemplao dessa realidade, para o cintista moderno alm de contemplao

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    vai haver teorizao, modelagem explicativa, experimentao e, mais que tudo, ao e transformao da natureza.

    Que si souvenat encore quau dbut du XVII sicle la philosophie structurait le systme des savoirs et avait rendre compte rationnellement du monde naturel dans sa totalit, de lordonancement des astres dans les cieux au mouvement des projectiles main nue ou par quelque autre artifice, de la classification des tres vivants au fonctionnemente de lesprit humain, do la ncessit pour toute philosophie dinclure une logique, une mthode, une psychologie rationnelle et une philosophia naturalis, cte dune mtaphysique, dune thique et dune politique (GIARD, 1995, p. XXXVI).

    Tambm Koyr (1961) creditava ao carter abstrato da cincia grega, o modelo para a construo de um saber especulativo distanciado da tcnica, que para ele seria o saber prtico, aquele aplicado vida mundana. Pensadores como ele nos afirmam que no perodo conhecido como Renascimento13, cincia e tcnica eram prticas totalmente distanciadas, vinham de tradies distintas e os seus praticantes, que possuam formaes e posies sociais diferentes, no tinham a mesma viso de mundo. O homem da tcnica provinha da tradio do saber fazer prtico e o da cincia provinha do pensar filosfico, abstrato e distanciado do trabalho manual (KOYR apud OLIVEIRA, 1997).

    Saraiva (2000, v.1), tambm se posiciona no mesmo direcionamento quando relata que no sculo XVI haveria um divrcio entre a especulao cientfica e a tcnica, e que os avanos tcnicos no resultavam em avano cientfico, porque a tecnologia que se desenvolvia era o resultado de aperfeioamentos ou experincias acumuladas pelas famlias de artfices. Para o autor no haveria inovaes, mas adaptaes de velhos processos de fabrico, e isso no poderia ser chamado de avano cientfico, tal como o concebemos hoje. A nica exceo que o autor faz quanto possibilidade da tcnica ter suscitado o desabrochar cientfico diz respeito s navegaes transatlnticas, apontadas pelo autor como bero de novas necessidades que, destarte, precisavam ser teorizadas e pensadas antes de serem constitudas e construdas.

    Contrrios a esse pensamento, acreditamos que a cincia moderna foi construda - tanto pela tradio do homem letrado, portador de uma cincia terica desvinculada do mundo do trabalho, quanto pela tradio do arteso e do artista. No

    13 Usamos o termo Renascimento porque os autores estudados o mencionam como recorte temporal, mas sem o

    compromisso histrico de sua configurao, que entendermos ser muito abrangente para esse estudo.

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    Renascimento os construtores de mquinas e prdios, chamados de engenheiros, tambm eram conhecidos como homens sem letras. Em uma poca em que os estudos universitrios estavam mais ligados filosofia e teologia, esses artfices tambm j estavam desenvolvendo um saber terico que se explicitava por meio da criao de projetos em papel (teoria antes da prtica). Seus atelis se transformaram em espaos de cruzamento de saberes prticos e tericos, onde os registros em papel iniciam um processo irreversvel para o desabrochar de novos passos rumo a um novo conhecimento cientfico ou cincia (BRAGA, GUERRA e REIS, 2004, v.2, p.36).

    Nessa mesma linha, Oliveira (1997), nos diz que a cincia uma juno de saberes do homem da tcnica que faz do mundo material sua volta o seu livro de aprender, e do fazer experimental a sua arte e profisso.

    Garin (1988) relata, nesse sentido, que na sociedade feudal a erudio e o conhecimento eram privilgios de poucos e a vida cotidiana encontrava-se muito distante da cincia que conhecemos no sculo XXI. No mesmo espao conviviam a cincia e a magia sendo praticamente indissociveis, envoltas em mistrio, e muitas vezes associadas s noes de diablico e pecaminoso.14

    O autor sugere que somente no perodo do Renascimento, a cincia e a erudio, a tecnologia e a arte comeam a diferenciar-se. A erudio e as artes liberais comearam a se transformar em profisso, ocasionando o desenvolvimento de uma cincia, que apesar do distanciamento, emergia de necessidades da vida cotidiana comum.

    E, muito embora concordemos com a necessidade de desenvolvimento intelectual e terico para o surgimento da cincia como a concebemos hoje, no pensamos como Koyr (1961) ou Saraiva (2001).

    Acreditamos que a tcnica ou prtica teve grande importncia para a configurao do que se denomina conhecimento cientfico. Nem podemos falar em cincia como conhecimento estruturado no perodo que estamos analisando (BRAGA, GUERRA e REIS, 2003, v.1).

    Pensamos que a tcnica/tecnologia (engenharia, minerao, a relojoaria, artilharia, farmacutica) desenvolvida nos sculos estudados, vai chamar a ateno

    14 Ver Consideraes sobre a magia, In GARIN, E. Idade Mdia e Renascimento, Lisboa, Estampa, 1988.

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    de toda a sociedade e a se incluem os intelectuais (catlicos ou protestantes)15. E, essas inovaes, como bem menciona Soares (2001), vo estimular o desabrochar da cincia.

    Entendemos que a construo do conhecimento cientfico foi o resultado de um processo histrico lento e gradativo de articulao e cruzamento de tradies, concepes e prticas diversas de saber, surgidas ou retomadas nos sculos XVI e XVII.

    A indistino que estamos postulando entre cincia e tcnica na constituio do conhecimento cientfico no sculo XVI, decorre de no encontrarmos no perodo estudado um termo equivalente ao que se entende hoje por cincia. Alm do mais, a discusso sobre a relao entre a cincia e a tcnica para o nascimento da cincia moderna no nova e ainda est longe de ter chegado a um consenso.

    Braga, Guerra e Reis (2004) sugerem que a histria da cincia constitui-se em um processo integrado entre as mltiplas dimenses da realidade do perodo denominado renascentista (tcnica, arte, economia, religio). Essas dimenses influenciaram consolidao de idias que geraram a cincia moderna. Cincia essa que foi experimentar e observar metodicamente a natureza, e teorizar matematicamente os novos conhecimentos.

    Mas, no podemos nos esquecer do desenvolvimento do comrcio. Se a mercancia serviu para o surgimento de uma nova forma de ser na Europa do sculo XVI, tambm deve ter impulsionado o desenvolvimento da cincia moderna.

    Conforme Paiva (2004b, p.4), o mercantil promoveu uma transformao pensamento, pois quem trata quer lucro, tem que planejar, calcular, inventar solues. E, nesse contexto, a matemtica e o clculo que vo impor novas regras, apartando o sujeito do objeto, individualizando as pessoas, secularizando os argumentos

    Nesse mesmo sentido, apostamos que a difuso da mercancia resgatou um velho hbito: camponeses e habitantes das vilas europias voltaram a usar o dinheiro para comercializar produtos e servios. A utilizao do dinheiro gerou a necessidade da aprendizagem do clculo matemtico. Durante a Idade Mdia a matemtica que havia permanecido como patrimnio de poucos intelectuais, passa a ser necessria para atuao cotidiana, demandando escolas de clculo, ou seja,

    15 Em muitas obras vemos a noo de catlicos associados Inquisio e a opositores do desenvolvimento

    cientfico e protestantes como incentivadores do mesmo.

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    inicia-se a demanda por uma educao mais utilitarista, os filhos dos comerciantes comearam a freqentar escolas de clculo que se multiplicaram a partir do sculo XV e se expandiram pelo sculo XVI. E, uma nova linguagem tomou conta do imaginrio coletivo, tornando inevitvel que os meios acadmicos e intelectuais procurassem utilizar a linguagem matemtica na busca da verdade, ou para solucionar problemas, inclusive os de cunho filosfico (BRAGA, GUERRA e REIS, 2004, v.2, p.18-19).

    DAmbrsio (2000), tambm refere que as novas profisses urbanas, ligadas ao comrcio, praticavam uma aritmtica que tinha a ver com operaes mercantis, bem como uma lgebra associada a problemas prticos de heranas e de comrcio, distinta da aritmtica que investigava as propriedades dos nmeros naturais. Ou seja, a cincia matemtica era prtica, destacando a experincia dos portugueses na aventura transatlntica e as experincias dos rabes nas matemticas.

    2. LIBRO DE ALGEBRA EN ARITHMETICA Y GEOMETRIA. Pedro Nunes (1567). Cathedratico jubilado da Cathedra de Mathematicas da Universidade de Coimbra. Fonte: Biblioteca Nacional de

    Portugal/ www.purl.pt/40/1/obras.p.nunes

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    Para ilustrar, contamos com Paiva (2004b, p.5)

    O mercantil, por ser o que , obrigou ao conhecimento das coisas como so, no se satisfazendo com o que delas diziam. Imps o exame rigoroso, a observao, a descrio pormenorizada das rotas terrestres e martimas, dos astros, dos povos. A observao resultado do primeiro tipo de experincia, no como proposio epistemolgica mas como atitude metodolgica. A observao se faz com intuito de dominao: conhecer o comportamento do outro, para saber proceder bem. Por isto, a observao deve ser meticulosamente organizada.

    Podemos destacar que os mtodos matemticos desenvolvidos por intelectuais como Gerolamo Cardano (1501-1576) e Franois Vite (1540-1603), com sua Ars analytique de 1591 que deram origem a uma nova cincia, que j desabrochava atravs de trabalhos de pesquisadores como Coprnico (1473-1543) - que afirmava o movimento da Terra em torno do Sol em seu Tratado das Revolues dos Corpos Celestes. Galileu Galilei (1564-1641), observava o movimento dos astros e desenvolvia clculos matemticos que confirmavam a teoria de Coprnico, alm de descobrir as leis da queda dos corpos. Kepler (1571-1630) exps em 1609 as trs leis do movimento dos planetas. Michel Servet (1509-1553) foi o primeiro a conceber a idia da circulao do sangue. Em 1543, o matemtico italiano, Tartaglia, resolve equaes do 3 grau. Vite, antes mesmo de Descartes e Fermat, postula o princpio da aplicao da lgebra geometria. A descoberta da plvora, a inveno das armas de fogo, das agulhas de marear (bssola), alteram o cenrio das guerras e conquistas e da navegao martima (GARIN, 1996). 16

    importante explicitar, porm, alguns contrastes sobre o pensar cientfico nesse recorte temporal. Segundo Ronan (1983, p. 11), o fazer cincia seria algo causado pelo desejo de usar a descoberta para criar uma figura do universo, [...] coerente com a finalidade de descobrir em tudo (toda ao humana como fazer cincia), como se dava o trabalho de Deus. Ou seja, a cincia, a teorizao do mundo, a experimentao, era para descobrir/demonstrar onde estava a mo de Deus.

    Mas, conforme Paiva (2004b), j meados do sculo XVI, inaugurava-se um processo de dissociao entre conhecimento e religiosidade, onde o que se vai buscar um conhecimento que no mais um desejo de entender a essncia de

    16 Ver La rivoluzione copernicana e il mito solare e Alle origini della polemica anticopernicana, In GARIN,

    E. Rinascite e Rivoluzioni: Movimenti culturali dal XIV al XVIII secolo, Roma-Bari: 1992, p. 255/ 281 e 283/295, respectivamente.

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    Deus expressa na natureza. Bernardino Telsio (1509-1588), ao escrever De rerum natura iuxta propria principia, j explicitava o desejo de conhecer o funcionamento das coisas, per se.

    Para falar da cincia moderna, ainda vamos mencionar a obra de Galileu que se inicia a partir de anlises e demonstrao de conhecimentos prticos, o que vem de encontro ao que postulamos que a tcnica foi fundamental para o desenvolvimento do pensamento cientfico/filosfico. Ainda mais que as novas teorias no emergiram de forma simples, mas por vises que buscaram ajustar vises antagnicas sobre o funcionamento do mundo. O pensamento de Galileu evoluiu, e inspirado na metodologia de trabalho dos engenheiros, iniciou um inovador processo para a construo do conhecimento - a experimentao.17

    3. Sidereus Nuncius Magna / Galileu Galillei (Venice 1610) Fonte: Cultural Heritage Language Technologie Science Linda Hall Library

    http://www.chlt.org/sandbox/lhl/GalileoSkel1610/page.5.a.php?

    17 Em seu livro Discurso e demonstraes matemticas sobre as duas novas cincias, Galileu analisa e demonstra a importncia do Arsenal de Veneza, que produzia navios, armas e mquinas. Em um cenrio onde o trabalho tcnico era estimulado e, onde o que no nascia desse conhecimento prtido poderia ser questionado no surpreende ser esse um de seus primeiros trabalhos.

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    Nesse sentido, contamos com os entendimentos de Braga, Guerra e Reis, (2004, v.2), que apontam que Galileu deu uma nova compreenso ao conhecimento que parte do princpio epistemolgico da experincia18.

    Essa novidade em termos de conhecimento propugnava o caminho da observao, experimentao, simbolizao. E, conforme Paiva (2004, p.6) contrapondo ao que vigia antes, o mundo humano se seculariza. O Homem se quer liberto da viso teolgica antes dominante e, embora crendo em Deus, dele se distingue, afirmando-se capaz e autnomo (Humanismo).

    Mesmo antes do sculo XVI, as necessidades da sociedade, da vida urbana que se expandia, possibilitaram o avano da tcnica e da cincia. As pessoas precisavam de maneiras mais eficazes de se medir o tempo, no mais baseadas em perodos desiguais do dia e da noite, para melhorar os ritmos de trabalho que se impunham pelo desenvolvimento do comrcio. Como tambm precisavam ser solucionados diversos problemas de nutica e engenharia decorrentes da expanso das viagens transatlnticas.

    Braga, Guerra e Reis (2004, v.2, p.23), ainda mencionam que na Escola de Sagres eram desenvolvidos novos conhecimentos cientficos e tcnicos em diversas reas promovendo a pesquisa cientfica terica, ou seja, a produo do saber terico (cartgrafos e astrnomos) associado ao saber prtico trazido pelos pilotos que navegavam pelo Atlntico. 19

    Desse contexto, no se exclui o artista/artfice renascentista. Persona muito importante para a cincia moderna e para a concepo cientfica do universo. Vejamos Leonardo da Vinci que repartiu a sua vida entre a escultura, a pintura, a engenharia hidrulica e militar, a astronomia, a matemtica, as cincias mecnicas,

    18 PAIVA, Jos Maria de. A emergncia da modernidade no sculo XVI. O problema da experincia na

    constituio da cincia, p.6. 19

    Cf. site oficial da Marinha Portuguesa, no havia uma escola prpria, onde se ministrassem os conhecimentos adequados e mesmo a mtica "Escola de Sagres". Ter sido mais uma idia e uma poltica, do que uma realidade fsica, tal como hoje a entendemos. facto que no perodo mais activo dos descobrimentos henriquinos (a partir de 1434 e at morte de D. Henrique em 1460), muitos homens do mar circulavam por Lagos, sendo notrio que cartgrafos e astrnomos apoiaram o projecto do Infante; mas a formao do pessoal embarcado permaneceu como uma transmisso de conhecimentos fechada e, sobretudo, efectuada no mar. Em 1559, sob os auspcios de Pedro Nunes foi criada a "AULA DO COSMGRAFO MOR". As suas lies obedeciam a um programa que constava de um "Regimento" prprio, mas a verdade que a formao tradicional nunca viria a ser abandonada e os pilotos apresentavam-se a exame mais com o seu curriculum de viagens do que com a matemtica e astronomia ensinadas pelo cosmgrafo. O sonho de Pedro Nunes - formar pilotos com profundados conhecimentos cientficos - s viria a realizar-se no sculo XVIII com a concretizao do conceito de um Oficial de Marinha formado e treinado numa escola especfica, versado em matemtica, fsica, astronomia, geografia e, naturalmente, navegao.

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    as cincias biolgicas. Tambm um homem sem letras, que teorizava e experimentava, no sentido cientfico atual, sobre hidrulica; o movimento pelo estudo de trajetrias de tiros de canho; estudo de mquinas voadoras baseadas no princpio da resistncia do ar, mquinas submarinas, etc. Como um cientista moderno, Leonardo primeiro se propunha a estudar e depois praticar a cincia que teorizava. Entre os fundamentos da cincia moderna que ele nos deixa, temos a necessidade de submeter constantemente a teoria experincia, e a necessidade de exprimir matematicamente as relaes entre os fatos. Ao longo do sculo XVI, esses pressupostos se converteram, na passagem para o sculo seguinte, em corpo organizado de doutrinas e em mtodo geral de conhecimento que vai ser adotado por uma categoria de intelectuais desconhecida na Idade Mdia - a dos cientistas. Esses vo se encontrar em espaos destinados ao debate, produo e difuso de novos conhecimentos, as Academias Cientficas, que sero comuns a partir do sculo XVII (SARAIVA, 2001; BRAGA, GUERRA e REIS, 2004, v.2).

    Como no sculo XVI, a linguagem matemtica foi a mais utilizada para tentar explicar, demonstrar, teorizar, pressupomos que a mesma foi a base para a constituio do que hoje consideramos conhecimento cientfico moderno. A instituio da cincia como um corpo coletivo de saberes organizados, porm separados, algo recente (BERNAL, 1973).

    Sintetizando outras importantes contribuies para a criao de uma nova concepo do mundo atravs do desenvolvimento cientfico/prtico, podemos relacionar: os mtodos desenvolvidos na observao dos astros que permitiram a determinao da latitude; o desenvolvimento de processos para escoar gua das minas; inveno dos caracteres mveis metlicos; desenvolvimento de novos tipos de tecido e tcnicas de produo mais rpida (introduo da roda de pedal); o aperfeioamento da produo do vidro; a criao dos relgios portteis (SARAIVA, 2000, v.1).

    Aps essa breve descrio acerca do que pensamos ser o desenvolvimento cientfico no perodo estudado, no podemos deixar de mencionar, guisa de fechamento do captulo, que os colgios jesuticos, desde seu incio, podem ser identificados como espaos para produo e difuso de conhecimentos cientficos. Espaos onde o dilogo entre f e cincia comea a ser praticado, destacando como primeiro ponto de referncia para esse debate o Colgio Romano, onde se ensinava e se discutia filosofia, cincia e teologia. Nesse espao, segundo Dinis (2006, p.24),

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    j se discutiam as implicaes teolgicas do sistema heliocntrico. E, foi nesse espao que Clavius pensou, escreveu e lecionou uma matemtica que ir ser discutida no terceiro captulo. Para Incio essa instituio poderia recuperar a presena catlica nas letras e nas cincias, alm de formar apstolos decididos a difundir a f de Roma.

    Nossa viso (de hoje sculo XXI), muitas vezes pode nos levar a fazer uma anlise anacrnica do passado e nos levar a pensar sem refletir que o cristianismo, em geral, e a Companhia de Jesus, em particular, no contriburam para o surgimento da cincia moderna.

    Pesquisadores que possuem essa viso relatam que os jesutas defendiam uma tradio filosfico-teolgica herdada da Idade Mdia e lutavam contra questes cientficas que contrariassem essa tradio (como exemplo podemos mencionar a censura de livros proposta em documentos da Companhia).

    Braga, Guerra e Reis (2003, v.1, p.68), porm, explicam que os pensadores da poca, incluindo-se nesse caso os jesutas, no ficaram exclusivamente presos autoridade de Aristteles, construram um conhecimento prprio que correspondia viso do mundo naquele contexto.

    Manso (2005, p. 163), explica essa possibilidade de coexistncia entre cincia e f quando nos fala que a Companhia de Jesus fruto de seu tempo e, portanto, participa da construo da modernidade europia, ao mesmo tempo em que se mantm paradoxalmente catlica. Como tambm nos fala Echeverra (1998, p. 57), ao relatar que a Companhia de Jesus um projeto de inspirao inconfundiblemente moderna; um proyecto sumamente ambicioso que pretende efectivamente aggiornare la vida de la comunidad universal, ponerla em hamonia com los tiempos. Isso se vai verificar sobremaneira nas formas de se ensinar e de se adaptar a metodologia jesutica educativa aos novos continentes aonde a Companhia vai se instalando.

    Esses temas esto abordados de forma mais aprofundada nos prximos captulos.

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    CAPTULO II A URDIDURA DA TRAMA

    A Configurao de uma Metodologia Educacional Jesutica O jesuta entendeu que havia dois caminhos concomitantes para trazer o ndio f crist: o colgio e

    o brao secular. O colgio passaria as letras, a cultura. Com isto, integraria numa s comunidade todos os habitantes da Colnia, resultando em paz e sossego da terra. (PAIVA, 2003)

    A Companhia de Jesus foi criada em 1534 por igo Lopes de Loyola, conhecido como Incio, juntamente com seis jovens companheiros, com o objetivo de seguirem at Jerusalm.20 Costa (2007, p.101), sugere que essa seria uma espcie de cruzada moderna, mas sem armas.

    4. Santo Incio e Paulo III na aprovao da Companhia de Jesus. Annimo. Sacristia do Ges, Roma. Fonte: Martins (2001)

    20 Cf. site oficial do Colgio Santo Incio no Rio de Janeiro, quando Incio de Loyola falava de si, designava-se,

    muitas vezes, como Peregrino. Sua Autobiografia tem como ttulo Dirio do Peregrino. Com isso no queria dizer que gostasse de fazer peregrinaes, ou que fosse algum que vivesse dia e noite a cu aberto. Durante o tempo de convalescena, quando recebe a revelao Divina s tinha um objetivo para a sua vida: tornar-se peregrino: peregrino de Jerusalm. Peregrino num sentido especial: no apenas ir a Jerusalm: ele queria ficar l; queria viver onde Jesus tinha vivido. Ali queria ele seguir Jesus, caminhar com ele. Estava to compenetrado disso que no podia imaginar poder seguir a Jesus, seno onde ele prprio tinha vivido: na Terra Santa.

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    Segundo a Formula Instituti (1539-1540-1550), o perfil da pessoa que pretendia ingressar como religioso na Companhia, seria definido como

    Todo aquele que pretender combater por Deus sob a bandeira da Cruz, na nossa Companhia, que desejamos se assinale com o nome de Jesus, e servir somente ao Senhor e sua Esposa, a Igreja, sob a direo do Romano Pontfice,Vigrio de Cristo na terra, depois dos votos solenes de perptua castidade, pobreza e obedincia, persuada-se que membro da Companhia, instituda principalmente para a defesa e propagao da F e o aperfeioamento das almas... Foi tambm instituda para pacificar os desavindos, piedosamente ajudar e servir os que se encontram presos nas cadeias, os enfermos nos hospitais, e exercitar as outras obras de caridade...E procure ter diante dos olhos, enquanto viver, principalmente a Deus e depois a Regra deste Instituto, que um caminho seguro para ir at Ele. E este fim, que lhe foi proposto por Deus, procure alcan-lo com todas as foras. 21

    Ao interpretarem estas palavras, muitos quiseram perscrutar se o termo sugeriria um carter militar Ordem. Contudo, autores como O`Malley (1973), mencionam que militare Deo, alistar-se sob a bandeira da Cruz, constitua a frmula para designar a vida religiosa na Idade Mdia, conforme se comprova pelas palavras de So Bento, no prlogo da Regra aos Novios: Vai guerrear por Cristo Rei verdadeiro.

    Criada oficialmente em 1540 pela bula papal Regimini Militantis Eclesiae, do Papa Paulo III, a Companhia tinha como objetivo central, segundo seu fundador, a defesa e a propagao da f e progresso das almas na vida e doutrina crist, porm alm dessa inteno inicial veremos que mais que um instrumento catlico de propagao da f, a Ordem fundada por Incio obteve grande sucesso como instrumento de propagao cultural (MENDES, 2006).

    Incio de Loyola formulou as Constituies da Ordem durante um longo caminhar e, em 21 de Julho de 1550, Jlio III confirma de novo a Companhia de Jesus com a bula Exposcit debitum que aprova a Formula Instituti de Incio, conforme a traduo anterior.

    Para entendermos a mentalidade que oportunizou o desenvolvimento dos colgios jesutas e de sua metodologia educativa, devemos nos aproximar de alguns aspectos que julgamos relevantes para tal, como a expanso das cidades e a conseqente expanso do grupamento social dos comerciantes, artesos livres e funcionrios pblicos que deve ter estimulado ou criado uma demanda por escolas

    21 Cf. Traduo da Bula de Confirmao do Instituto por Jlio III (1551)

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    nos sculos XVI e XVII. Porque nesse contexto, acreditamos que os colgios foram a resposta necessidade de instrumentalizar a produo e divulgao dos conhecimentos adequados a um novo contexto social, cultural e cientfico que se descortinava.

    Assim, nessa pesquisa nos impossvel separar a instituio escola, a educao e a misso dos jesutas do contexto scio/cultural em que as mesmas se explicitam, assim, concordamos com Paiva (2003), quando afirma que a escola e a mentalidade jesutica operaram e direcionaram a educao para as necessidades da sociedade do sculo XVI. O que queremos destacar com essas duas explicaes que se os colgios foram instrumentos de converso pessoal ou de aperfeioamento espiritual, tambm foram poderosos instrumentos de divulgao cientfica.

    Nesse cenrio, a Companhia de Jesus se expandiu pela Europa e colnias europias e levou a cabo por meio de seus colgios um projeto religioso que se explicitou primordialmente pela educao. A obra iniciada por Incio22 teve reflexos to profundos na educao e na instituio escolar, que at hoje suas prticas e mtodos permeiam nossos sistemas escolares.

    Nesse contexto, tambm podemos falar que a educao inaciana foi pensada para ir ao encontro da necessidade catlica de salvar as almas dos jovens, principalmente dos perigos protestantes, porque como refere Bertrn-Quera (apud MONTEIRO, 2007, p.2),

    Sin tener en cuenta este magisterio divino, continuado y fundamental en la vida de Ignacio, no es posible comprender la ntima y profunda conviccin testica de todas sus actividades y obras, singularmente la fundacin de la Compaa de Jess y dentro de ella la de los colegios o formacin de la juventud.

    Como para os jesutas, bem como para a maioria da sociedade europia a Igreja ainda era o corpo mstico de Cristo, no qual cada homem encontraria seu lugar como membro, caberia a cada membro do corpo social estar em condies ideais para se colocar a servio da Igreja Catlica, de modo a manter sua unidade, ou seja, os colgios jesuticos que se disseminaram pela Europa foram, muitas

    22 Incio (1491-1556), ficou rfo de me muito cedo e de pai aos 16 anos. Para sua educao foi enviado a casa

    do Contador Mayor do reis catlicos de Espanha e depois casa do Duque de Njera. Inicia carreira militar que termina no castelo de Pamplona, onde ferido. Em recuperao e repouso sente forte chamado divino e decide dedicar-se vida religiosa. Estudou teologia en Alcal e Salamanca e mais tarde concluiu seu estudos em Paris, onde preparou seus companheiros e com eles fundou a Companhia de Jesus.

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    vezes, considerados como uma importante forma de se deter a marcha da reforma protestante (BIOTO, 2006, p. 103).

    Nesse sentido, os autores consultados sugerem que a Igreja Catlica se apercebeu que para atender s necessidades educativas da sociedade deveria, ao modo dos protestantes, abrir centros de ensino tambm voltados aos jovens (secundrios) (NUNES, 1980, p.108; ZULUAGA, 1972).

    Pode-se pensar que a Reforma Protestante foi a pice de rsistence que estimulou a ordem jesutica para tratar do ensino como ferramenta de defesa da f catlica, mas veremos ao estudar a histria da fundao da Companhia de Jesus, que a escola jesutica, antes de mais nada, objetivou a propagao da f catlica, e nesse rastro esteve tambm a preparao de homens cultos que pudessem agir em uma sociedade que se transformava, mas que desejava manter-se crist.

    Segundo Paiva (2003, p.36), a [...] Reforma catlica, de que os jesutas so a feliz sntese, mais do que reformulaes institucionais e disciplinares, significou a assimilao, no campo espiritual de um entendimento do que ocorria na sociedade, entendimento esse fulcrado no mercantil.

    Pela experincia de Incio, que se educa na fase adulta, apresenta-se como melhor pedagogia a ser desenvolvida inicialmente em seus colgios o modus parisiensis, tradio educativa da universidade de Paris. O modus parisiensis no era propriamente um cdigo. Era mais uma prtica que cuidava da vida acadmica do estudante e de seu processo de instruo. Por exemplo, as turmas eram agrupadas conforme os nveis de conhecimento dos alunos, havia o cuidado de apresentar as matrias de forma gradual e progressiva, os livros eram escritos com intuitos pedaggicos, havia graduao no estudo das matrias e fixao de prazos e provas no trmino de cada curso, disciplina rgida, estmulo s disputas tericas, estudo das artes liberais com inspirao crist, etc. (CODINA MIR, 1968).

    Essas caractersticas do modus parisiensis agradavam a Incio que no concebia ideais sem mtodos. Mas, o fundador da Ordem tambm foi influenciado pela devotio moderna23, corrente espiritual que animava a Europa no sculo XVI e que serviu de direcionamento para a atividade jesutica que se voltava para fora do

    23 Cf. CSAR (2004), a devotio moderna foi fruto da prtica espiritual dos irmos da vida comum, inspirada na

    vida de Santo Agostinho. Os Exerccios Espirituais de Santo Incio (sculo XVI) muito se aproximam dessa obra. O carter da devotio moderna repousava o esprito da Igreja primitiva para se chegar de uma maneira mais rpida e segura fonte nica da verdadeira santidade, Jesus Cristo, levando-se uma vida de extrema pobreza.

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    claustro. Os jesutas entendiam que sua ao seria exercida em seus prprios ministrios destacando-se o aperfeioamento das almas na vida e na doutrina crists que pode ser traduzido pela formao (educao) de homens competentes em grande nmero (PISNITICHENKO, 2004, p.25).

    Pensamos que a educao que se propugnava nesse contexto buscava a formao total do indivduo religiosa, moral, social, cultural, espiritual, etc. E, para tal, os jesutas deveriam eles mesmos possuir uma formao intelectual slida em filosofia, teologia e cincia, no apenas para melhor desempenharem sua misso apostlica, mas tambm porque para lecionarem nos colgios que comearam a ser fundados deveriam estar aptos para debaterem os temas que emergiam (principalmente com o crescimento do comrcio e dos descobrimentos) (DINIS, 2006).

    Acreditamos que essa formao slida permitiu aos mesmos estarem abertos s descobertas cientficas, tanto na catalogao quanto na produo desse conhecimento. O conhecer a obra de Deus, que aqui pode ser entendido como fazer cincia, era visto como forma de estimular a [...] disposio de trabalhar com Deus em sua contnua criao (KOLVENBACH, 1987, p. 16).

    A Companhia de Jesus pode, ento, ser entendida como um corpo de irmos, marcada pela busca da santificao e da cincia. Esses irmos que buscavam a reforma da vida crist, deveriam ter competncia para atuar junto aos colgios, assim no bastava mais a simples devoo: era necessrio cincia. Essa cincia pode ser entendida como educao/cultura, que Incio valorizava como algo louvvel a Deus, tanto que buscou sua prpria instruo e tambm a preconizou a seus seguidores (PAIVA, 2003, p.267, 279).

    La conviccin de san Ignacio de que el tiempo dedicado al estudio forma ya parte del apostolado no se limita solamente al tiempo de la formacin primera, sino que hoy se extiende a todo lo que constituye la formacin continua y permanente (KOLVENBACH, 1987, p.27).

    Clio Juvenal da Costa (2007), ao falar sobre a racionalidade jesutica, nos mostra que o pensamento desses missionrios ficou plasmado na forma de uma filosofia aplicada e no especulativa em dois documentos que so considerados como clssicos do pensamento ocidental - as Constituies e o Ratio Studiorum.

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    [...] a defesa ortodoxa da metafsica crist no se fez por meio de compndios theoreticus, mas na forma de cdigos estruturados em artigos positivos que, quando aplicados, viabilizariam a expresso material da concepo crist de mundo. Alm disso, a racionalidade jesutica tambm se constituiu com base no Catecismo, no Brevirio e no Missal resultantes do Conclio de Trento (1545-1563) e nas obras de So Toms de Aquino, particularmente a Suma Teolgica (FERREIRA Jr, 2007, p.22).

    Encontramos, nesse mesmo vis, que a dimenso mstica da Aco jesutica vai estar presente no s no livro dos Exerccios Espirituais, no Dirio Espiritual e nas Constituies da Companhia de Jesus, mas tambm nas diversas ordenaes de estudos anteriores ao texto oficial e definitivo do Ratio Studiorum e que a vocao docente dos inacianos surge para que nas prensas das lettras se lhes imprimam os bons costumes, e estudando as humanas aprendam a ser cristos (MONTEIRO, 2007, p.2).

    O ideal pedaggico dos jesutas reflete o pensamento inaciano, cuja religiosidade coloca Deus como figura central das todas as suas propostas, mormente as educativas. O que se quer destacar que a educao jesutica, da mesma forma como se estrutura e se explicita a vocao educativa da Companhia de Jesus, vai se organizar de tal maneira que se pode imaginar culminar no Ratio Studiorum.

    Destacamos, ainda, trs aspectos acerca do que pensamos poder sintetizar o que seja a mentalidade jesutica: a) uma formao que privilegia a construo intelectual calcada na escolstica, aliada a uma obedincia inquestionvel aos cnones emanados da S Apostlica; b) o carter secular da ao missionria da Companhia de Jesus, que postula uma educao e uma misso aberta a todos os homens, que fugia dos retiros e da vida monstica; e c) o que Costa (2007), denomina como controle dessas prticas e aes, que seriam as formas de se avaliar os sucessos e fracassos obtidos na misso evangelizadora dos jesutas espalhados pelo mundo. As aes, as prticas, as estratgias e tticas que foram se tornando gerais e passaram a guiar os passos dos missionrios jesuticos (FERREIRA JR, 2007, p.22).

    Outro aspecto da racionalidade jesutica que vamos frisar e que chama a ateno de pesquisadores dessa temtica, diz respeito empreitada educativa estar como que a reboque da empresa comercial e, como sugere Costa (2005, p.3), respirou, por assim dizer, da racionalidade mercantil.

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    Estamos a chamar a ateno para um dos aspectos que transformaram o pensamento no sculo XVI e impregnou a forma de ver o mundo, distinguindo f de razo, Igreja de Estado, privado de pblico, que Paiva (2004) denomina de pensamento mercantil.

    Para ilustrarmos essa idia, temos a prpria denominao da Ordem: Companhia de Jesus, que como anteriormente mencionado no se deve ao passado de combatente de seu idealizador, mas segundo Costa (2005), seria uma aluso s empresas privadas criadas para a explorao comrcio e colonizao (Companhias das ndias Ocidentais, do Levante, Plymouth, etc.).24

    A difuso de novas idias no sculo XVI elucida e salienta o esprito da poca que era o mercantil. Nesse sentido a Companhia de Jesus tambm deveria pensar e agir mercantilmente. 25

    O mercantil, para Paiva (p.35), qualifica a sociedade moderna, moldando a ao humana nos seus mais diversos tipos, e as relaes sociais sero pautadas sobre compra e venda. [...] At em termos de espiritualidade, usou-se com frequncia da expresso, traduzindo ela o entendimento que de seu ofcio tinha o pregador e tinha o seu ouvinte. E, para destacar a assimilao dessa mentalidade pelos jesutas, referimos a uma carta de Nbrega aos moradores de So Vicente (1557), e uma de Antnio Blasquez (1564), onde se destacam terminologias mercantis, que esto grifadas.

    Quem vos detm que no dais fruto digno de se apresentar na mesa do Rei Celestial? Estas so as fazendas principais que haveis de fazer no Brasil; este o trato que deveis de ter com os cidados da cidade de Jerusalm celestial, [...] o trato bendito no de acar corruptvel mas de graa, mais saborosa que favo de mel. [...] Quo poucos mercadores da vida eterna se acham? Se os mercadores de pedras preciosas topassem contigo, venderiam tudo por te mercar e em te tratar; trato sem perigo, porque o piloto, que governa, no pode errar [...] trato de tanto ganho, no qual no se ganha um por cento, e sobretudo vida eterna em contrapeso [...] trato que neste mundo enriquece de graa, e no outro de glria [...] trato sem desassossego, antes quanto mais se trata, quanto mais de quietao se ganha [...] trato onde nunca se perdeu ningum, e todos possuem suas riquezas em paz [...] trato sem perigos, mas antes ele livra de perigos! trato onde onzenar merecer, e no pecar [...] trato,finalmente , com o qual se afermosenta a cidade de Deus celestial de almas que louvam a seu Senhor, e a terra dos desterrados filhos de Ado, recebe por retorno mercadorias espirituais de graa, de virtudes, de consolaes (NBREGA, 1980, p. 167)

    24 O termo Companhia tambm servia no contexto do sculo XVI, para designar, de forma genrica, uma

    associao piedosa que proliferava na Itlia, como a Companhia do Amor Divino. 25

    Cf. Paiva (s.d., p.34), em apontamentos sobre os vinte e cinco anos da publicao de sua obra Colonizao e Catequese. [material no impresso]

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    [...] as mercancias e tratos destes romeiros no eram para adquirir ouro ou fazenda, seno para alcanar a graa de Deus e comprar o reino dos cus (CARTAS AVULSAS, 1980, p. 449)

    Acreditamos que a pedagogia da Companhia de Jesus se expressou por meio de um projeto concreto, que pareceu-nos considerar como seu objetivo principal a formao do homem livre, adaptvel e perfectvel, que acreditamos foram as caractersticas da vida da sociedade do sculo XVI. Assim, Incio deve ter sido estimulado tanto pelas necessidades da Igreja quanto da sociedade a configurar aquilo que praticamente no existia no seu tempo colgios/escolas, enquanto espaos que assegurassem as condies apropriadas tanto para a formao de futuros mestres quanto de alunos externos.26

    Aos moldes dos inmeros colgios existentes na Espanha e Frana do tempo de Incio, alguns colgios jesutas nos primeiros anos de fundao eram simples pensionatos para aqueles que queriam seguir a vida clerical. Crescendo o nmero de candidatos aflorou o problema de subsistncia desses colgios. Esse problema, como mencionado anteriormente, vai ser sanado pela abertura dos mesmos aos alunos externos e pela doao de benfeitores (STELLA MATUTINA, 1974; LABRADOR, 1993).

    Nesse momento cumpre recordar que apesar do voto de pobreza, os inacianos estavam mergulhados numa sociedade que se via mercantil, dessa forma os mesmos souberam tambm tratar de negcios e administrar as doaes de seus benfeitores, bem como as utilizaram para manuteno tanto de seus futuros padres, quanto para a disseminao da f crist, principalmente no Novo Mundo.

    Sob essa perspectiva, pode-se pensar o religioso, o moral, o mercantil, o disciplinar e o acadmico se integrando para configurar a educao atravs de uma totalidade. Ou seja, alm de imersos na religiosidade que plasmava a sociedade ocidental do sculo XVI, os jesutas tambm estavam imersos (vivenciaram) e adotaram a racionalidade mercantil que desabrochava.

    O que se busca explicar nesse momento que o pensamento mercantil no deveria estar dissociado da atividade de propagao da f. A forma de ser da sociedade seiscentista se explicitava tambm no mercantil e nesse sentido, verificamos, conforme nos ilustra a citao a seguir, que os jesutas no estavam

    26 Inicialmente os colgios jesuticos eram destinados a formao de mestres padres que iriam formar outros

    padres.

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    apartados da mesma, como acreditamos que tambm no estiveram apartados das novidades cientficas do mesmo perodo.

    Uma expressiva parcela dos inacianos tornou-se especializada na administrao dos bens terrenos. A Ordem contava em seus quadros com especialistas em todas as reas ligadas a esse fim, como os padres administradores. Em muitos casos, esses padres com funes especficas no que diz respeito administrao e a manuteno dos bens terrenos eram oriundos de famlias tradicionais no ramo comercial e utilizavam-se dessas prticas e competncias em benefcio da Ordem (MASSIMI, 2002, p.67)

    Observe-se que essa especializao de funes tambm se revela no Ratio quando o mesmo refere especializao de funes dos professores, prefeitos, entre outros atores da academia jesutica.

    Isso pode nos revelar um indcio importante, segundo o qual entendemos que em diferentes espaos do viver da sociedade na poca estudada j desabrochava e se explicitava uma nova mentalidade que pode ter servido de base, a posteriori, para o que se denominou Revoluo Cientfica e racionalizao do saber.

    Falando novamente que os Colgios em seus primrdios no eram centros de ensino, mas locais que davam alojamento e alimentao a estudantes destinados a seguir carreira religiosa, conforme a Carta Apostlica de 1540 (verificamos que a mesma carta alude a externos somente quando menciona a catequese), porque as misses a que se propuseram os jesutas tinham muito mais a ver com uma mobilidade e atividade missionria que s atividades ligadas a inatividade docente, gostaramos de destacar que sua misso educadora se descortina, apesar de certa inquietao de seu fundador, como um sinal de Deus. Veja-se Bioto (2006, p.106), que ao falar da misso educativa da Companhia refere que a mesma no foi direcionada

    [...] para encontrar um campo de ao para seus membros, nem para assegurar rendas regulares. Ao assumir esta identidade, que a marcou positivamente, eclipsou seus outros ministrios. Os jesutas demonstravam, nos primeiros relatrios, uma certa inquietao para com o rumo que a Companhia vinha tomando. Mas, uma vez iniciado este ministrio, no vacilaram mais, entrevendo na empreitada um sinal vindo de Deus (BIOTO, 2006, p. 106).

    Assim, mesmo que para Incio a educao e as escolas servissem inicialmente pa