PINCELADAS EM TEMPO DE DITADURA: a arte de Willy … · grandes pintores do Estado e até mesmo do...

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PINCELADAS EM TEMPO DE DITADURA: a arte de Willy Zumblick e o regime militar brasileiro, 1974-1976. Murilo de Sousa Rosa. 1 Dois anos após a histórica enchente ocorrida em 1974 na cidade de Tubarão, em Santa Catarina, o vitimado município recebeu a visita do presidente do Brasil da época, o militar Ernesto Geisel. Ao se despedir, Geisel recebeu do prefeito Irmoto Feuerschutte e sua esposa uma tela do artista plástico conterrâneo Willy Zumblick como gesto de agradecimento por sua atenção dada ao município. A opção do prefeito em ofertar uma obra do renomado artista, no entanto, instiga uma reflexão. Sendo a tela de Zumblick entendida pelo político local como um presente que agradaria a autoridade militar no país, tal episódio conduz a uma problemática: como a arte de Willy Zumblick se relaciona com o governo de Geisel? A pesquisa desenvolvida para responder essa questão procura compreender o olhar, o posicionamento do artista em relação ao regime político governado pelo militar. Interessado no contexto este artigo tem por objetivo analisar a relação entre a pintura do artista plástico Willy Zumblick e a ditadura militar em meados da década de 1970. Para o desenvolvimento deste texto é feita uma releitura de artigos de jornais de Tubarão da época, de livros que abordam tais eventos e a análise de algumas obras do pintor de acordo com a proposta de leitura de imagens desenvolvida por Martine Joly. Palavras-chave: Tubarão, enchente, Willy Zumblick, arte, Ernesto Geisel. A visita do presidente Ernesto Geisel a Tubarão, no sul de Santa Catarina, foi um evento significativo para sua população e o prefeito em exercício na época, Irmoto Feuerschutte. O ano era 1976, e a recepção calorosa, como narra Irmoto em seu livro, Uma direção para a vida, foi uma forma dos moradores homenagearem o militar por ter auxiliado o município em sua recuperação após a destruição provocada pela força das águas na enchente de 1974. Feuerschutte lembra que Ao chegar o cortejo à [rua] Coronel Colaço, e pelo grande público presente, havia inclusive cordões de isolamento, o Presidente Geisel deixa o carro, quebrando o protocolo, e caminha, sendo ovacionado pelo povo e agraciado com chuva de papel picado jogado do alto dos prédios, isto até o outro lado das pontes, quando retorna ao automóvel que o conduz a Capivari. 2 As boas-vindas podem ser entendidas como uma resposta à forma como o presidente Geisel deu atenção à situação do lugar após o catastrófico evento. São nos relatos 1 Mestrando do curso de História do Tempo Presente da UDESC, orientando da professora Drª. Mara Rúbia Sant’Anna-Müller. 2 FEUERSCHUTE, Irmoto José. Uma direção para a vida: memórias da enchente de Tubarão – 1974. Tubarão: Reuter Ed., 2004, p. 101.

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PINCELADAS EM TEMPO DE DITADURA: a arte de

Willy Zumblick e o regime militar brasileiro, 1974-1976.

Murilo de Sousa Rosa.1

Dois anos após a histórica enchente ocorrida em 1974 na cidade de Tubarão, em Santa Catarina, o

vitimado município recebeu a visita do presidente do Brasil da época, o militar Ernesto Geisel. Ao se

despedir, Geisel recebeu do prefeito Irmoto Feuerschutte e sua esposa uma tela do artista plástico

conterrâneo Willy Zumblick como gesto de agradecimento por sua atenção dada ao município. A opção

do prefeito em ofertar uma obra do renomado artista, no entanto, instiga uma reflexão. Sendo a tela de

Zumblick entendida pelo político local como um presente que agradaria a autoridade militar no país, tal

episódio conduz a uma problemática: como a arte de Willy Zumblick se relaciona com o governo de

Geisel? A pesquisa desenvolvida para responder essa questão procura compreender o olhar, o

posicionamento do artista em relação ao regime político governado pelo militar. Interessado no contexto

este artigo tem por objetivo analisar a relação entre a pintura do artista plástico Willy Zumblick e a

ditadura militar em meados da década de 1970. Para o desenvolvimento deste texto é feita uma releitura

de artigos de jornais de Tubarão da época, de livros que abordam tais eventos e a análise de algumas

obras do pintor de acordo com a proposta de leitura de imagens desenvolvida por Martine Joly.

Palavras-chave: Tubarão, enchente, Willy Zumblick, arte, Ernesto Geisel.

A visita do presidente Ernesto Geisel a Tubarão, no sul de Santa Catarina, foi

um evento significativo para sua população e o prefeito em exercício na época, Irmoto

Feuerschutte. O ano era 1976, e a recepção calorosa, como narra Irmoto em seu livro,

Uma direção para a vida, foi uma forma dos moradores homenagearem o militar por ter

auxiliado o município em sua recuperação após a destruição provocada pela força das

águas na enchente de 1974. Feuerschutte lembra que

Ao chegar o cortejo à [rua] Coronel Colaço, e pelo grande público presente,

havia inclusive cordões de isolamento, o Presidente Geisel deixa o carro,

quebrando o protocolo, e caminha, sendo ovacionado pelo povo e agraciado

com chuva de papel picado jogado do alto dos prédios, isto até o outro lado

das pontes, quando retorna ao automóvel que o conduz a Capivari.2

As boas-vindas podem ser entendidas como uma resposta à forma como o presidente

Geisel deu atenção à situação do lugar após o catastrófico evento. São nos relatos 1 Mestrando do curso de História do Tempo Presente da UDESC, orientando da professora Drª. Mara

Rúbia Sant’Anna-Müller.

2 FEUERSCHUTE, Irmoto José. Uma direção para a vida: memórias da enchente de Tubarão – 1974.

Tubarão: Reuter Ed., 2004, p. 101.

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contidos no livro do ex-prefeito que se encontram alguns dos motivos para a popular

manifestação de gratidão: os auxílios prestados pelo 3ª Cia do exército aos tubaronenses

e a permanência da mesma na cidade; a disposição de helicópteros da Aeronáutica e da

Marinha no resgate as vítimas; a visita urgente do Secretário Geral do Ministério do

Interior após a enxurrada, com o intuito de dar início à recuperação da cidade, segundo

as ordens de Geisel; as duas audiências do prefeito Irmoto com o presidente; e as verbas

para compra de maquinário e a construção de casas.3

A despedida dos políticos locais a autoridade federal ficou marcada por outro

gesto simbólico: um quadro do pintor tubaronense Willy Zumblick foi entregue a

tripulação por Ilona, esposa do prefeito Irmoto, acompanhado de um cartão dedicado à

esposa do presidente. O ex-prefeito justifica então o gesto: “Procurávamos ser gratos a

quem por nós tanto fez”.4

Sobre a tela, no entanto, faltam mais detalhes. Não há no livro de Irmoto

Feuerschutte qualquer outra referência sobre o quadro. Outras publicações que tratam

das consequências das fortes chuvas e os esforços em recuperar a cidade sequer citam o

gesto, e não há qualquer menção nos jornais locais da época, guardados no Arquivo

Público de Tubarão, que trate do episódio e identifique a peça.

Porém, a opção por uma das telas de Willy Zumblick entregue a Geisel como

uma lembrança tubaronense leva a algumas reflexões: por que justo uma pintura de

Zumblick? E quais as possíveis relações que se pode estabelecer entre a arte de Willy

Zumblick e o governo Geisel? Algumas hipóteses aqui levantadas procurarão responder

estas questões.

A proximidade entre Irmoto Feuerschutte e Willy Zumblick é o ponto de partida

para que se possa compreender o gesto de reconhecimento do prefeito de Tubarão. Ao

assumir o poder executivo do município no ano de 1973, Irmoto nomeou Zumblick

como presidente da Comissão Municipal de Turismo. Já no cargo, Willy organizou

neste mesmo ano um evento chamado Festival Hoje, promovendo apresentações

musicais e uma exposição coletiva de artes plásticas com a participação de renomados

3 FEUERSCHUTE, Irmoto José, op. Cit., p. 2004.

4 Ibidem, p. 102.

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pintores do Estado.5 No mês de fevereiro do ano seguinte, pouco antes da ocorrência das

chuvas que motivaram a busca por auxílio ao município, alguns jornais da época,

pertencentes ao Arquivo Municipal, destacaram com entusiasmo o sucesso da realização

de um grandioso carnaval de rua organizado pelo secretário Willy. Após os estragos e as

perdas provocadas pelas águas de março de 74, o nome de Willy passa a constar na lista

dos que auxiliariam o prefeito na recuperação da cidade, indicando assim a confiança

que o executivo tinha no artista da terra.6 Além disso, o nome de Willy Zumblick já era

reconhecido há muitos anos pela mídia catarinense e outras mais pelo país como um dos

grandes pintores do Estado e até mesmo do Brasil, o que por si só poderia instigar

Irmoto a ofertar ao presidente um de seus quadros, levando em conta que se tratava

também de uma obra de autoria de um dos homens de sua confiança.

Outro fator relevante que auxilia na compreensão da oferta da obra do artista ao

militar é a forma como Willy tratou o drama dos flagelados em sua arte. Na biografia,

Zumblick para sempre: catálogo de obras, é possível conferir a reprodução de duas

pinturas que tratam do drama tubaronense: Retirantes da enchente e Dilúvio em

Tubarão7, as duas produzidas em 1974. No entanto, as circunstâncias que envolvem a

produção dos quadros tornam-se mais claros se for feita a análise através da leitura das

imagens, como sugere Martine Joly.8

A primeira tela representa a situação sofrida pelos conterrâneos do pintor. A

imagem, uma pintura a óleo com 1,40m x 1,20m que pertence atualmente ao acervo do

Museu Willy Zumblick, apresenta sete pessoas, homens e mulheres, adultos e crianças,

carregando, sob forte chuva e com água pelos tornozelos, os poucos pertences que

conseguiram pegar, vagando em busca de um lugar para que possam se abrigar das

5 FESTIVAL: Hoje em Tubarão. Nosso Jornal, Tubarão, 29 de set. 1973. nº. 494, p8, e Tri em

cima. Festival Hoje. Nosso Jornal, Tubarão, 17 de Nov. 1973. nº. 501, p8.

6 MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente. Tubarão: Ed. Unisul,

2005, p. 140.

7 BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Zumblick para sempre – catálogo de obras

– Florianópolis: Secco, 2010, p. 75.

8 Martine Joly defende que a análise de imagens deve estar a serviço de um projeto, de acordo com os

objetivos, e deve ser feita através de uma leitura identificando e reconhecendo signos e significantes, e

compreendendo os significados. Conferir as representações, os motivos da mensagem visual, as intenções

do autor, as mensagens implícitas, os elementos ausentes e o contexto do seu aparecimento e destino.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 1994, p. 44-76.

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águas. Os personagens do primeiro plano têm os olhos arregalados, evidenciando o

quanto estão assustados com o cenário ao redor deles. São evidentes as semelhanças

entre esta tela e as diversas obras realizadas por Cândido Portinari que tematizam os

retirantes nordestinos. A influência deste sobre o primeiro parece muito clara, pois há

alguns elementos em comum nos trabalhos dos artistas: trouxas apoiadas sobre a

cabeça, crianças no colo das mulheres, homens caminhando com o auxílio de cajados.

O que diferencia a tela de Zumblick das de Portinari são os ambientes. No quadro do

primeiro há um cenário chuvoso e alagado, nos de Cândido são comuns às cenas áridas.

Retirantes da enchente, 1974, óleo sobre tela, 1,40m x 1,20m.

Acervo Museu Willy Zumblick, Tubarão, Santa Catarina.

Retirantes da enchente é também um registro do testemunho e da comoção do

artista. Sendo Zumblick um dos envolvidos no auxílio às vítimas, e acompanho de perto

as dificuldades dos mesmos, seu quadro apresenta um conteúdo que se aproxima de

outras falas. Em seu livro, História de Tubarão: das origens ao século XX, Amadio

Vittoretti relata que

Um grande número de famílias da cidade se evadiu porque não tinha um

ponto de apoio na cidade. Parentes e amigos doutras localidades lhes deram

guarida. Alguns haviam perdido a esperança de repor o que havia perdido.

Comentava-se: ‘Agora todo mundo é peregrino’. Os retirantes saíram em

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qualquer veículo, alguns somente com a roupa do corpo em direção aos

municípios vizinhos. Em sequência, grupos se deslocavam a pé.9

Em algumas páginas anteriores, antecipando esta narrativa de Amadio, uma reprodução

de Retirantes da enchente, junta com algumas fotos, ilustravam o cenário de desolação

em Tubarão.10

Quanto ao apego do pintor por esta obra, uma pequena nota de jornal

esclarece que

Willy Alfredo Zumblick declarou que o quadro tem para ele um valor

inestimável e que por isso mesmo não esta à venda. Um outro quadro, que

retrata o salvamento feito pelos helicópteros, está sendo pintado por

Zumblick. Seu ateliê, com dezenas de quadros, foi atingido pelas águas.

Algumas telas ainda são recuperáveis e outras, que ficaram inutilizadas,

Zumblick acabou de destruir por completo.11

Dilúvio em Tubarão, 1974, óleo sobre tela, 1,40m x 1,20m.

9 VITTORETTI, Amadio. História de Tubarão: das origens ao século XX. Tubarão: Prefeitura

Municipal de Tubarão, 1992, p. 238.

10 Idem, p. 234.

11 Zumblick retrata o drama da enchente. Jornal de santa Catarina, 26.04.1974, s/p. Recorte de jornal

anexado em um encadernação de capa dura intitulada Jornais sobre a enchente de 74, pertencente ao

acervo do Arquivo Público Municipal de tubarão.

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Acervo Museu Willy Zumblick, Tubarão, Santa Catarina.

Dilúvio em Tubarão é a segunda tela de Willy que aborda a enchente de sua terra

natal, e assim como o primeiro quadro, este trata da agonia de seus conterrâneos, mas

faz referência também aos momentos de ajuda e esperança promovidos pela presença

dos helicópteros das forças armadas. A pintura apresenta a elevação das águas atingindo

os telhados de três ou quatro casas, e sobre elas estão mulheres e homens. No primeiro

plano seus rostos apresentam o pavor devido à ameaça das ondulações e um ambiente

tomado pela penumbra esverdeada. Com a presença da nave muitos erguem os braços

para chamar a atenção da tripulação, outros acenam com roupas brancas nas mãos para

reforçar o pedido de socorro, enquanto que outros tentam salvar os que estão na água

abraçados aos troncos de árvores. Este quadro de Zumblick também se aproxima de

outras narrativas, que abordam desespero e gratidão juntos, como é caso da matéria do

jornal O Estado, que tem o título Março de 1974, Florianópolis-Tubarão, a maior ponte

aérea de Santa Catarina. Nossos agradecimentos a esses incansáveis homens voadores,

e faz a abertura do texto com um parágrafo onde diz que “Naquela manhã, o ronco dos

helicópteros soou como sinfonia aos ouvidos daquelas 6.000 pessoas que esperavam o

auxílio ou a morte encima dos telhados”.12

César do Canto Machado registra em seu

livro, Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente, uma fala muito semelhante,

escrevendo que

Chegara, enfim, o momento do resgate tão ansiosamente aguardado. Depois

de quase dois dias de angustiante incerteza, o sorriso volta a frequentar o

rosto dos flagelados, os quais efusivamente festejam a presença da inesperada

aeronave. Mudam de imediato, para melhor, as expressões antes tão

desoladas. Reativa-lhes o ânimo o fato de estar um helicóptero de volta a

cidade. A boa-nova apaga o derrotismo; desanuvia o panorama apreensivo

que assombra as fisionomias.13

Além dos registros nas obras, Willy, como presidente da Comissão Municipal de

Turismo de Tubarão, procurou fazer um agradecimento geral através de um ato público,

12

O Estado, 23.03.1975, s/p. Recorte de jornal anexado a encadernação pertencente ao Arquivo Público

de Tubarão.

13 MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente. Tubarão: Ed. Unisul,

2005, p. 103.

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e procurou “[...] organizar uma passeata nas ruas de Florianópolis, em agradecimento ao

socorro prestado por catarinenses e brasileiros aos irmãos do Sul do Estado”.14

A breve análise das duas pinturas de Zumblick acima realizada se torna

pertinente para que se possa compreender o posicionamento do artista em relação a um

dos fatores que perpassa boa parte das suas obras: a preservação da memória. Willy é

referenciado em suas biografias, em diversas passagens, como artista memorialista, e o

primeiro indício desta preocupação em registrar seu testemunho com relação à enchente

está no período em que pintor produz os quadros, pois, um mês após as fortes chuvas

dos dias 24 e 25 de março de 1974, que provocaram a destruição de boa parte de

tubarão, uma reprodução da tela Retirantes da enchente ilustrava a pequena matéria do

Jornal de Santa Catarina sobre a atividade do artista. Mesmo com seu ateliê atingido

pelas águas e envolvido com o socorro e o atendimento as vítimas, Willy Zumblick

reservou parte de seu tempo para continuar produzindo logo após a inundação, e na

condição de testemunha, pinta como se estivesse com pressa, como se quisesse relatar o

que viu e ouviu, e que não permitisse que o esquecimento pudesse “apagar” os detalhes

das coisas recém-vividas.

Outro interesse de Willy com relação à memória, envolvendo o episódio da

enchente, está ligado à função de lembrar os demais. A produção de suas telas logo após

o ocorrido faz lembrar à preocupação contida em outras narrativas escritas

posteriormente, como aborda Amadio Vettoretti, pois ao tratar das enchentes ocorridas

há décadas anteriores, diz que “A população não tinha conhecimento de haver ocorrido

uma inundação maior que aquela que estava ocorrendo. Por falta de memória, por não

haver registros de ocorrência semelhantes, alguns foram tragados impiedosamente.”15

E

mais adiante, Vettoretti, recorrendo a importância de lembrar e aprender com os eventos

passados, sugere “[...] que a população se dispa da falsa idéia de que as enchentes não se

repetem, de vez que a história nos prova ao contrário.”16

Assim como Vettoretti, que

chama a atenção dos tubaronenses para que fiquem alerta a possíveis eventos futuros, o

pintor demonstra a mesma preocupação, pois deixa claro na matéria do Jornal de Santa

14

Zumblick retrata o drama da enchente. Jornal de Santa Catarina, 26.04.1974, s/p. Recorte de jornal,

encadernação do Arquivo Público de Tubarão.

15 VITTORETTI, Amadio, op. Cit., p. 230.

16 Idem, p. 248.

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Catariana, já citado acima, que a tela é inestimável e não estava a venda, mas Willy,

depois de muitos anos, doa a peça ao Museu Willy Zumblick, inaugurado no ano 2000,

para apreciação dos visitantes e admiradores, e que permanece como um lembrete aos

observadores que, onde hoje é o Museu, no centro de Tubarão, um dia já foi tomado

pelas águas de 74.

Quanto aos interessados pela preservação da memória referente às vítimas e os

colaboradores para a recuperação da cidade, Willy parecia ser uma exceção. Mais uma

vez tomo emprestada a fala do conterrâneo de Zumblick, Amadio Vittoretti, pois para o

autor, ao tratar da ajuda vinda de várias partes do Brasil e do mundo, argumenta que “O

povo tubaronense lembra e fala imediatamente da catastrófica inundação e suas

consequências, no entanto poucos são os que tem na memória este monumental

exemplo de solidariedade humana.”17

Não há neste artigo a pretensão de questionar ou

aprovar o argumento de Amadio, no entanto, Willy Alfredo Zumblick parece pertencer

a este reduzido número de pessoas que se preocupavam com a preservação das

memórias sobre a enchente. O artista, autor das telas que representavam cenas da evento

ocorrido, e que pensava em organizar já em abril de 1974 uma passeata em

Florianópolis para agradecer aos que colaboravam com a recuperação de sua terra natal,

queria fazer ainda mais.

Assim como Zumblick, Irmoto Feuerschutte também manifestou seu desejo em

ver construído um monumento que simbolizasse a gratidão tubaronense aos que

socorreram sua cidade. Willy Zumblick, na função de presidente da Comissão

Municipal de Turismo, segundo a pequena nota de um periódico da época, toma a

iniciativa de liderar

[...] um movimento para a construção de um monumento aos ‘mortos e

benfeitores da enchente’, pois ‘nada nos impede de testemunharmos

publicamente o nosso reconhecimento, e a melhor maneira que concebemos

seria a construção de um monumento muito simples, sem requintes, própria

de uma cidade convalescente’.18

17

VITTORETTI, Amadio, op. Cit., 239.

18 “A cidade quer construir um monumento aos mortos”. Recorte de jornal anexado a uma

encadernação Recortes de jornal da enchente de 74, pertencente ao Arquivo Público de Tubarão.

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A proposta da construção de um monumento que fizesse referência ao evento recém-

ocorrido, com o intuito de lembrar os vivos dos conterrâneos que sucumbiram e

homenagear os que socorreram o lugar, no entanto, formou opiniões divergentes. O

texto segue dizendo que “[...] alguns populares acham a idéia válida, mas desnecessária,

para o caso de ser posta em prática imediatamente. Já outros acham a idéia, além de

válida, absolutamente necessária, ‘pois as vítimas da enchente devem ser lembradas’”.

O projeto não foi levado adiante, e somente em 1983 foi construída, ao lado da catedral

da cidade, a “[...] Torre da Gratidão. Porém, pouca gente sabe o que representa. [...] Na

sua base, existe uma alegoria executada por Willy Zumblick, com três placas de bronze.

Na placa central, lemos: ‘RECONSTRUIR É VIVER’”.19

A torre, de 3,00m x 12,00m,

com o Cristo esculpido em alto relevo, feito de concreto, bronze e mosaico de cerâmica,

representa “[...] as vítimas da grande enchente que assolou a região de Tubarão no ano

de 1974 e a gratidão do povo tubaronense a todos que, solidários, contribuíram para

amenizar o flagelo.”20

Mas para o ex-prefeito, Irmoto Feuerschutte, em uma entrevista a

Agência AL, os créditos da recuperação de Tubarão pertencem ao governador Colombo

Salles e ao presidente Ernesto Geisel, e não se conforma “‘[...] até hoje de eles não

terem um marco erguido na cidade em sua homenagem’”.21

O interesse pela construção de uma memória pública, logo após a enchente,

provocou dúvidas e repercussão. Um evento ocorrido em uma comunidade pode

provocar, argumenta Alessandro Portelli22

, uma multiplicidade de memórias

fragmentadas, tanto subjetivas quanto oficiais, e estas, muitas vezes, podem entrar em

choque, pois o uso público da memória pode acabar desrespeitando a vontade de não

lembrar e manter o silêncio, como deseja alguns envolvidos. Quanto à relevância dada

Segundo uns dos funcionários dos funcionários da instituição, as encadernações eram montadas pela

Secretaria da educação. Infelizmente não foi mantido o nome do jornal.

19 VITTORETTI, Amadio, op. Cit., p. 239.

20 BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Op. Cit., p. 404.

21 Disponível em <http://agenciaal.alesc.sc.gov.br/index.php/noticia_single/irmoto-feuerschutte-o-

medico-esportista-que-virou-prefeito-de-tubaraeo> . Acesso em 19/07/2014.

22 PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): mito, política,

luto e senso comum. In: FERREIRA, M. de M., AMADO, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história

oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998. p.103-130.

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por Irmoto Feuerschutte à colaboração de Ernesto Geisel para recuperação da cidade,

esta se torna para o político, segundo Enzo Travesso, uma questão política e ética, ou

seja, um deve de memória, mas a visibilidade de certas memórias depende da força de

seus portadores.23

Esses interesses em comum com Willy, ou seja, pela preservação da memória e a

gratidão pela ajuda recebida, talvez sejam os motivos que justifiquem a oferta da pintura

de Zumblick ao presidente Geisel, entregue no momento da despedida do militar no ano

de 1976. Além da proximidade, por trabarelhem juntos no poder executivo municipal,

prefeito e presidente da Comissão Municipal de Turismo compartilhavam não só o

interesse em preservar as lembranças do evento que ocorrera em Tubarão, através de um

monumento que o simbolizasse, como ambos desejavam tornar público, e perene, os

agradecimentos por aqueles que contribuíram para a recuperação de Tubarão. Irmoto

Feuerschutte, muito provavelmente gostaria também que o presidente Geisel, a quem

era tão grato pelo auxílio e pela visita oficial, não esquecesse o reconhecimento da

população tubaronense. Nada mais significativo então do que presenteá-lo com uma

obra do renomado artista catarinense, reconhecido que entre os tubaronenses talvez

tenha sido um dos que mais se esforçou em tornar público sua gratulação pelo socorro

oferecido pelo governo militar. Trinta anos após a ocorrência das chuvas que tornaram

submersa a maior parte da cidade, Irmoto lançou um livro, Uma direção para a vida, no

qual relata diversos momentos provocados pela enchente, e não se esqueceu de unir, em

uma mesma frase, o grato artista e o presidente.

CONCLUSÃO.

Na hora da despedida, o prefeito agradecido presenteia o presidente do país, um

militar da ditadura, por todo auxílio prestado a sua cidade atingida pela enchente. A

minha dúvida era: por quais motivos Irmoto Feuerschutte e sua esposa ofertaram ao

general Ernesto Geisel justo uma obra de Willy Zumblick como uma forma de

agradecê-lo?

23

TRAVERSO, Enzo. Historia e memoria. Notas sobre un debate. In: FRANCO, Marina; LEVIN,

Florência. Historia reciente: perspectivas y desafios para un campo enconstrucción. Buenos Aires:

Paidós, 2007, p.67-96.

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Após a releitura de alguns livros, artigos de jornais e obras de Willy que tratam

da enchente, pude perceber que, além da proximidade profissional entre o prefeito de

Tubarão e o artista/presidente da Comissão Municipal de Turismo, ambos possuíam

algumas idéias em comum quanto ao episódio da enchente de 1974 e os eventos que se

desenvolveram a partir de então, o que pode muito bem justificar a opção de Irmoto em

entregar uma tela de Zumblick a Geisel.

Alguns fatores tornam-se relevantes para entender a escolha. Vale lembrar que

o renomado artista catarinense Willy Zumblick, também reconhecido nacionalmente,

era tubaronense, o que tornaria a oferta peculiar. Além disso, junto com Irmoto, Willy

fez parte da equipe dos que prestaram auxílio às vítimas.

Por fim, Willy e Irmoto defendiam a importância de tornar monumental a

memória sobre a enchente de Tubarão. Zumblick falava em lembrar-se das vítimas e

agradecer as numerosas ajudas vindas de muitos lugares, e sem dúvida incluir o próprio

general Ernesto Geisel nas homenagens. Feuerschutte desejou um marco na cidade

dedicado ao militar, o que não ocorreu. No entanto, a gratidão, tanto a popular quanto a

do prefeito, foi simbolizada pela oferta da tela do artista, e Irmoto deu assim início ao

seu “dever de memória”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

BEZ, Volnei Martins; ROCHA, Valmiré; ROCHA, Carlos. Zumblick para sempre –

catálogo de obras – Florianópolis: Secco, 2010.

FEUERSCHUTE, Irmoto José. Uma direção para a vida: memórias da enchente de

Tubarão – 1974. Tubarão: Reuter Ed., 2004.

JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 1994.

MACHADO, César do Canto. Tubarão 1974: fatos e relatos da grande enchente.

Tubarão: Ed. Unisul, 2005.

PORTELLI, A. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944):

mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, M. de M., AMADO, Janaína

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(orgs.). Usos & abusos da história oral. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998.

p.103-130.

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