Piva Fala de Estranhos Sinais de Saturno
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Último dos três volumes de suas obras
reunidas, Estranhos sinais de Saturno, de
Roberto Piva, guarda dois mimos para os
leitores: poemas inéditos e um CD com o
autor lendo seus próprios versos. Foi para
falar do livro e de outros tantos assuntos
que Piva nos recebeu em seu apartamento,
no dia 26 de fevereiro de 2008.
Estranhossinaisde Saturno
RobertoPiva
obras reunidasvolume 3
entrevista com
Globo Livros: Por que você pensou esse título para
seu novo livro, Estranhos sinais de Saturno?
Roberto Piva: Que é uma síntese de cosmos com
melancolia, e Saturno é sempre um espanto, não é?
É sempre uma surpresa.
GL: Num poema, você fala que você não é um poeta
da cidade, mas na cidade. Mas podemos pensar: você
também não é um poeta da natureza, ou na natureza.
A poesia vem de onde, então, Piva?
RP: Daquela vertente cósmica, onde que nós pe-
gamos toda a inspiração e transformamos na maté-
ria prima da poesia.
GL: Estranhos sinais de Saturno está repleto de refe-
rências ao império romano. O que o império romano
representa hoje para a gente, para as nossas práticas?
Por que ele está no seu horizonte?
RP: O império romano está em uma relação in-
tegral com o sagrado. As orgias eram dedicadas a
Baco, a Dionísio, a Cibele, à deusa-mãe, à Flora.
Você vê que o próprio poeta Marcial dedica o livro
dele aos adeptos da deusa Flora. Então, eu tenho
muita influência da poesia dos poetas romanos,
Virgílio, Horácio, Catulo, Marcial.
GL: Marcial foi muito importante para você, no sen-
tido de Marcial ser cortante? A poesia de Marcial é
absolutamente cortante.
RP: Principalmente quando ele fala de garotos.
Ele era financiado por um gladiador, que mandava
comida para ele. E ele pedia sempre para o gladia-
dor: “Por favor, não esqueça do vinho Falerno, você
está me matando de sede”. Da outra vez ele pediu:
“Por favor, traga o vinho Falerno e deixe o garoto
também porque é uma beleza esse garoto que você
manda.” O gladiador parece que parou de mandar
depois que ele cantou o garoto do gladiador. E um
gladiador era uma barra pesada; seria como cantar
um garoto de uma mulher de um boxeur nos tem-
pos atuais.
GL: A cidade em que vivemos é uma experiência
muito terrível, muito dura, mas, todas as sexualidades
libertárias estão ligadas ao ambiente da cidade.
RP: É curioso isso porque pagão vem de “pagana”
que é acampamento de camponeses. E foi onde o
cristianismo teve mais dificuldade de combater os
deuses e as orgias pagãs. Isso eu acho que é uma
idéia falsa porque as pessoas de origem rural são
muito livres. A periferia de São Paulo nos anos 50
e 60 eram esses garotos e garotas com rostos bem
rurais, com sardas e com aquela pele dourada dos
subúrbios. Eram muito livres.
GL: Desse ponto de vista, o campo é muito mais livre
que a cidade.
RP: Muito mais. Você vê que a iniciação dos garo-
tos rurais se dá com os animais.
GL: Não só em Estranhos sinais de Saturno, mas
em Ciclones também e mesmo antes, a sua poesia está
cheia de gaviões. Há gaviões por todos os lados e agora,
inclusive, você colocou no final de seu livro uma frase
importante de Oswald: “Eruditamos tudo. Esquece-
mos o gavião de penacho”. Fale um pouco disso. Por
que o gavião? Qual o significado dele para você?
RP: É um de meus animais xamânicos, um de
meus totens. Aquilo que o Murilo Mendes dizia so-
bre o tamanduá, toda vez que ele encontrava com o
Breton, o Breton perguntava sobre o grande “tama-
noar”. E também o Camus perguntava, descendo
no aeroporto do Rio de Janeiro, a primeira coisa
que ele quis ver foi ir para o zoológico com Murilo
Mendes para ver o bicho-preguiça. E o Oswald de
Andrade, se eu não me engano, cita duas ou três
vezes, ou três ou quatro vezes o gavião de penacho.
Inclusive nesse manifesto importantíssimo que é o
“Poesia Pau-Brasil”. Então era o animal-totem dele,
assim como o jabuti era o do Mário de Andrade.
GL: Quais os poderes do gavião?
RP: O gavião é a visão penetrante, é a perseguição
extra-sensorial, toda visão de rapina em relação ao
herbívoro.
GL: Há uma hierarquia xamânica? O gavião ocupa
uma posição nessa hierarquia?
RP: Não. Existem pessoas que têm a aranha como
animal xamânico, inseto xamânico, tem andorinha,
tem peixes. Mas isso não tem uma hierarquia, as-
sim como no candomblé não existe um orixá que
se sobrepõe ao outro, todos se equivalem dentro de
uma perspectiva maior que é a totalidade dos ar-
quétipos humanos.
GL: Você poderia comentar o poema a seguir, que está
em Estranhos sinais de Saturno e chama-se “Emoção
em pedaços”?
Bomba atarefada
Bomba desastre
anjo de vôo de abutre
garoto-bomba mini-Tarzã
bomba solar do barão Julius Evola
bomba na bunda de Hitler
sonhos secos em Tóquio
agonia de uma princesa deplorável
Chama a atenção nesse poema o barão Julius Evola...
RP: Era um erudito e que escreveu um livro sobre a
alquimia, sobre a sabedoria hermética. Eu gosto do
livro dele chamado Revolta contra o mundo moder-
no, que é uma recuperação das vertentes arcaicas
da cultura.
GL: Você leu Strindberg?
RP: Eu li há muitos anos o Inferno. Mas muitos
anos mesmo, em 1961, uma coisa assim.
GL: No seu trabalho, parece que cada vez mais você
articula muitas coisas: alquimia, xamanismo e poesia
visionária como, por exemplo, a de Dino Campana.
Como essas coisas se articulam?
RP: Acho que foi o Walter Benjamin que disse que
a poesia é uma historiografia inconsciente. Está
tudo interligado, os arquétipos que são as imagens
primordiais da humanidade. Então, eles estão todos
interligados e fazem parte de uma sabedoria cósmi-
ca, uma sabedoria xamânica. O xamã foi o primeiro
poeta, o primeiro legislador, o primeiro organizador
de tribos, de grupos humanos etc.
GL: Quando você chegou ao xamanismo? Há quan-
tos anos?
RP: Nossa, eu tinha doze anos, mas eu não sabia
que aquilo chamava xamanismo, para mim ele es-
tava fazendo bruxaria. Era um empregado na fazen-
da do meu pai, descendente de índio e de negro,
que me iniciou no xamanismo e na piromancia. Ele
acendia fogueira, toda noite a gente ia perto da casa
dele. E ele perguntava à gente o que a gente via que
o fogo formava. Então, tinham coisas espantosas,
formava figuras espantosas, era uma fazenda num
lugar muito estranho, nul lugar muito alto.
GL: Há exercícios fundamentais para se ingressar no
xamanismo, para se tornar um xamã? Eles podem ser
falados?
RP: Podem, tem todo tipo. Há xamanismo e xama-
nismo. Xamanismo é uma religião de poesia, não de
teologia. Tem vários, há um grupo famoso, eles são
do grupo Pagéia, se auto-denominam Xamãs Urba-
nos, que é um grupo de iunguianos que estudam e
praticam o xamanismo.
GL: Você já esteve perto deles?
RP: Eu freqüentei muito lá, eu fui o criador da idéia
da Pagéia, que é o instituto de pesquisas xamânicas.
GL: O que falta fazer, Piva? O que que falta experi-
mentar? Nada?
RP: Agora acho que é a morte, né? (risos) (can-
tando) “A morte é a única diferença, eu tenho trin-
ta cidades dentro de mim, trinta cidades, trinta
montanhas, a morte é a única diferença, eu tenho
trinta cidades dentro de mim, trinta cidades, trinta
montanhas.”
GL: O que é isso?
RP: Isso é Os tigres da noite, do José Vicente, que
morreu recentemente. Ele fez uma ópera-rock e é
uma das músicas da ópera-rock.
GL: Você está se preparando então para a morte?
RP: E para a vida também. A morte é uma festa,
não é?, eu quero participar dela.
GL: Há outra vida depois?
RP: Não sei. Como diria Garcia Lorca, “sou apenas
um pulso ferido que sonda as coisas do outro lado”.
GL: Você gostaria?
RP: As pessoas que fazem a experiência de quase
morte não gostariam de voltar, não. A Frida Kahlo,
por exemplo, falou: “Vou e não volto mais”. Deixou
GL: Há proibições no xamanismo?
RP: Não sei quais, depende do xamanismo. Eu
nunca vi proibição alguma, de espécie alguma.
GL: Por que o xamanismo vem mais do componente
indígena?
RP: É uma mistura, vem dos cultos de Mitra da
Roma antiga, vem dos indígenas, vem dos peles ver-
melhas americanos, de uma parte do candomblé...
Mircea Eliade vê manifestações idênticas nos mais
distantes lugares do planeta, onde ele assiala ima-
gens do insconsciente coletivo.
GL: O xamanismo te faz acessar a poesia, mas tam-
bém te faz viver melhor?
RP: Não sei, xamanismo para mim é uma forma de
crescimento espiritual.
GL: Se pudesse resumir o seu trabalho, com um nor-
te, um sentido, como resumiria tudo o que você fez ao
longo de mais de quarenta anos de criação?
RP: Eu resumiria usando uma expressão do Henri
Michaux: “Eu escrevo para minha saúde”. (risos)
GL: Para você se sentir bem?
RP: Para me sentir bem.
um cartão postal: “Vou e não espero voltar nunca
mais.” Não é o meu caso porque eu tive muitas ale-
grias, não é?
GL: Você tem escrito alguma coisa?
RP: Eu quero ler uma coisa que eu escrevi, a últi-
ma coisa, que já é do outro livro novo. É um livro
que vai chamar Poemas Mitraicos e a conexão Exu.
“Gato de vidro”:
o adolescente cantor de rock
pé de sapo
desmunheca desde cedo
com seu sex appeal de menino pelicano
sua voz de torneira
pompa de flor noturna
descendo as escadas
com sua minissaia psicodélica
exibindo lindas coxas de cetim marmóreo
faz milagres de cura
ensaboando-se no ventre
com esperma de marinheiro
fazendo-se flagelar
por uma menina deusa
sem tricotar a alma alheia
sem nariz de platina
com canivete suíço enterrado na coxa
sempre doido
sempre tesudo
GL: Parece haver uma política em que a sucessão das
palavras produza uma explosão na cabeça do leitor.
Um exemplo: um poema seu cuja primeira frase pa-
rece uma loucura. O poema começa assim: “caralho
pop Shiva”. Essa sucessão de palavras é uma bomba.
É isso?
RP: Shivaístas são adoradores do caralho. Têm
uma influência do induísmo, jogam leite nos falos,
assim como Exu é o falo.
GL: Para ler sua poesia é preciso parar e estudar. Não
é uma poesia fácil, ao contrário, ela é extremamen-
te elaborada, há muitas citações eruditas no meio do
texto “popular”. Uma mistura completa de registros,
os mais chãos e os mais sublimes. O leitor tem que
estudar muito, ele tem que parar em cada poema,
prestar atenção detalhadamente. Mas parece que em
você é uma tempestade cerebral.
RP: É um grande brain storm.
GL: Mas há unidades...
RP: Unidades, e há ligações profundas entre os
textos.
GL: Última pergunta: você espera alguma coisa dos
seus leitores?
RP: Ah, sim. Eu tenho muitas satisfações. Num
dos cursos que eu dei em Santo André, numa des-
sas regiões do ABC, as pessoas vinham chorando,
liam minha poesia chorando e vinham beijar a mi-
nha mão como se eu fosse um novo sacerdote de
Mitra introduzindo aquela religião dos soldados ro-
manos que construíam templos de Mitra por toda
a fronteira do império.
Entrevista gravada no dia 26 de fevereiro de 2008.
ISBN 978-85-250-4401-314×21 cm
R$25,00