PLAQUETE Boi Ronceiro -...

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BOI rONCEIrO UMA FÁBULA DE HORROR

RICARDO INHAN

AssociaçãoCentro Cultural

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APRESENTAÇÃO

O SILO E O FOSSO

Welington Andrade

“E seu velho camarada já não brinca, mas trabalha”.Morro Velho, Milton Nascimento.

Boi ronceiro, de Ricardo Inhan, é daqueles textos dramatúrgicos cujo poder de síntese está diretamente relacionado à latente eloquência que se insinua em suas páginas. Apresentada não sem ironia como “uma fábula de horror”, a peça aposta na economia de meios e na estrutura narrativa simples, embora ambos os procedimentos contradigam a riqueza de imagens exploradas pelo dramaturgo. Em virtude da morte de seu pai, um homem volta à cidade do interior onde nasceu acompanhado de sua mulher, que está grávida. Ali, ambos são assombrados pelas marcas de um passado a um só tempo familiar e imemorial que parece impregnar todo o ambiente, encarnado em especial por um indivíduo estranho que os visita no meio da noite. A rigor, poucas coisas são ditas com clareza e ênfase no texto, mas em sua urdidura dramatúrgica é possível vislumbrar um discurso subliminar, proferido em baixo ostinato, cuja grande expressividade é mimetizar, por meio da faculdade da imaginação, ainda tão cara à arte e à literatura, as práticas sociais brasileiras mais opacas e difusas. E, por isso mesmo, não menos violentas. A narrativa configura-se como uma espécie de Odisseia rural, articulando o plano de um nostos (a história de alguém que regressa) à esfera de uma nekya (o ritual de invocação dos mortos), ambos, por sua vez, entrelaçados

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a dois níveis de fabulação: um nível romanesco, que oferece um quadro doméstico burguês, e outro realista, no qual reside a potencialidade política do texto. Tal como ocorre na epopeia homérica, a evocação do passado corresponde à própria dramatização da ação, fornecendo o passado a chave para o entendimento do presente. Assim, a peça desinteressa-se do que simplesmente aconteceu outrora, elegendo como sua principal linha de força o que tais acontecimentos vividos no registro do lá-então significam para esse casal mergulhado no aqui-agora. A concentração temporal do texto é outra de suas qualidades: toda a ação – de envergadura histórica – condensa-se num lapso de tempo de uma noite somente. Soma-se a isso o fato de que, por meio do manejo de uma linguagem simples, o dramaturgo consegue atingir efeitos estéticos cheios de nuances de sentido e matizes simbólicos.

A moldura é a da pintura de costumes de certa elite dirigente do País, com seus dilemas morais e existenciais ligados às ideias de tradição, família e propriedade, mas o que se põe em tela é uma história “fantástica”, palavra que priva do mesmo étimo presente em “fantasia” e “fantasmagoria”, por exemplo – étimo este que diz respeito à ideia de devaneio. Nas mãos de um dramaturgo menos hábil tal material, cindido entre o fantástico e o fantasmagórico, poderia desregular em um exercício de fantasia popular/popularesca dos mais delirantes. Assim, é com desconfiança que devemos ler as rubricas iniciais do texto, que afirmam que “os sons, a estética, os diálogos e as caricaturas” podem ou devem soar “como um grande slasher (filme de horror B) dos anos 1970/1980”, concluindo que os efeitos a serem alcançados equivalem aos de “um típico terror de cabana”. Ironicamente, são as rubricas que deliram ou devaneiam, já que o que se verá a partir do que elas anunciam é a conversão dos clichês e estereótipos fantásticos

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esperados no delineamento de um poderoso arquétipo de tipo fantasmagórico, dos mais insuspeitos.

Menos cinematográfica e mais literária é a filiação do texto, relacionada à ficção gótica que vicejou na Europa a partir do século XVIII, cujo marco zero é o romance de Horace Walpole O castelo de Otranto, publicado na Inglaterra em 1764. Transcorrida em residências arruinadas (em sua maioria, castelos e mansões aristocráticas), de cuja arquitetura constam alçapões, portas falsas, janelas sinistras e passagens secretas que conduzem a lugares penumbrosos e mórbidos, a prosa gótica gira em torno de personagens estranhos que convivem com espectros e entidades sobrenaturais em ambientes nos quais o excesso de mistério corresponde quase sempre à carência da luz do dia. Segundo Robert D. Hume defende em Gothic versus romantic: a revaluation of the gothic novel, instilando o terror (cuja mola é o suspense) ou o horror (organizado em torno da sensação de medo), a ficção gótica constitui “uma forma de tratamento do problema psicológico do mal”. Aqui é que a peça de Ricardo Inham parece propor um ponto de viragem em relação à tradição, já que ela parece estar mais preocupada em investigar a origem sociológica do mal, por meio da exploração de algumas camadas de sentido.

Boi ronceiro é a teatralização de um causo folclórico tipicamente brasileiro, com sua paisagem rural, seus personagens levemente esboçados, seu senso de mistério. Mas é também um conto sociológico, cuja criticidade muito se assemelha, por outras vias, a bem da verdade, à de O poço, de Mário de Andrade, que integra os Contos novos publicados em 1947. E ainda uma paródia das tramas de terror do cinema norte-americano. Embora não se furte igualmente a homenagear o velho melodrama circense de inspiração sobrenatural. Valendo-

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se de todos esses elementos, de cujo hibridismo extrai seu atraente equilíbrio, a peça de Ricardo Inhan não se acanha de tratar de uma situação excepcional, de natureza sinistra. Habilmente inserida em um contexto maior, de sistemática violência. Que submete animais e homens ao mesmo jugo: os bois pachorrentos ao regime da pancada e os seres fantasmagóricos ao da intimidação física e moral. Sentirmo-nos ora como animais na pastagem, ora como o próprio pasto – eis o terror nosso de cada dia.

Welington Andrade é doutor em Literatura Brasileira pela USP, na área de dramaturgia; crítico de teatro e editor da revista Cult.

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Boi Ronceiro - uma fábula de horror Em três atos e um rascunho, por Ricardo Inhan

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Nota: Espaços em branco, indicam silêncios e medos, tempo que se passa sem que nada aconteça. Os sons e a estética podem (devem) soar como um grande slasher (filme de horror B) dos anos 1970/1980.

- Um típico terror de cabana -

O horror nosso de cada diaEm nome do pai, do filho e do.

A Trindade: Um Homem. Uma Mulher. O Estranho.

Para meus pais.

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RASCUNHO

A mulher aguarda a plateia se acomodar. Repete:

Mulher Ele é um pasto. Eu sou um pasto?

O Homem chega logo em seguida, camisa ensanguentada, rosto ensanguentado, encara a plateia, que ainda se acomoda, respira fundo. Repete:Homem É como torcer o pescoço de uma galinha. A plateia se acomoda. Luzes se apagam. Terceiro sinal. Os dois saem. Escuridão. O Estranho entra, encara a plateia, com as mãos sujas de sangue. Estranho Antes eu me deitava lá. Embaixo daquela árvore e me servia de água pra eles. Como um ronceiro. O boi vinha, ele fingia que ia segurar. O boi vinha e se servia de mim. Era como se eu fosse o próprio boi no pasto. Ele é o pasto. Escuridão. Um bebê chora. Um rádio toca uma canção sertaneja raiz. Desliga. Sons de passos na madeira, no taco e a porta se abre. Ruídos de um berrante longe. Mistura-se com o barulho de uma motosserra. Silêncio. O ruído retorna. Pássaros não cantam. Grilos. O casal entra na casa. Trovões.

Em off: INSPIRADO EM EVENTOS REAIS Imagens de arquivo revelam Minas Gerais e seu coronelismo latente. Famílias abastadas ao redor de mesas gigantescas, períodos de escravidão, trabalhadores em fazendas de café, Calundus, Folia de Reis, gados e silos. (A sala de um casebre abandonado no meio do nada, em uma comunidade rural. Uma poltrona com um buraco no encosto.

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Um relógio que não funciona, uma pequena mesa de madeira e uma janela que dá para um pasto imenso, compõem o cenário. Ele, o Homem, está seguro de si. A Mulher, com um machucado no rosto, não) (Grilos e cigarras ao redor da casa, na cabeça das figuras e da plateia)

ATO UM

- rural - Homem Num lugar como esse. Se você mora, vive num lugar como esse. Assim. Ou você se joga da ponte ou sobrevive e muda o mundo. Mulher Você não conseguiu mudar o mundo. Homem É só isso que ele deixou. Mulher E nem pensa em se matar. Homem Tá ouvindo? Mulher Nada. Homem É isso.

Mulher E por que eu me pareço com um pasto? Homem Ainda está com isso na cabeça? Mulher Essa vastidão toda. Homem Cê se acostuma. É uma coisa que acontece por aqui. Lugares como esse servem pra isso. Olhar demais pra mesma

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paisagem, pro mesmo mato, com o passar do tempo cê vai acabar fazendo parte disso tudo. Vai ver.

Mulher Cê não tinha me falado que era tão longe da cidade. Homem Crescer aqui me fez ficar com os joelhos fortes. Com os pés no chão. Mulher Escola? Mulheres? Bebida? Homem Na cidade. Mulher E se ele nascesse num lugar como esse? Homem Não foi bom pra mim, não será bom pra ele. Mulher Não é o que os catálogos dizem. Os livros. Aliás todo mundo defende um lugar como esse. Ar puro. Pássaros. Mato. Bichos. Homem Cê acredita nisso? Tá cansada. Mulher Cê não tem sotaque. Nunca teve sotaque. Não se sente bem aqui. Eu sei. Homem Eu consigo sentir o cheiro dele. Mulher Eu só sinto cheiro de mato molhado. Ou merda.

Homem Tua voz tá trêmula. Ainda tá nervosa por conta do que aconteceu na cidade? Mulher Fingir que atropelou uma pessoa, quando na verdade era uma lombada. Seu celular tá com área?

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Mulher Eu não sou um pasto.

Homem Ar puro? Grande merda! Com esse cheiro. Mulher Cê devia ter falado mais com seu pai. Ligado mais. Vindo mais aqui. Deixou tudo para última hora, sempre deixa. Homem Isso aqui, lá fora, tudo lá fora. A cidade, antes, era dele. Agora não. Mulher Seu celular tá com sinal? Homem Foi aqui. Nesse mesmo lugar. A primeira pedra. Meu avô talhou a primeira cerca. É tudo dele. Mulher Seu? É tão importante? Homem O quê? Mulher O lugar onde se instala a primeira cerca? Homem Pra mostrar quem é o dono. O seu território. O pedaço de terra, talha na madeira da cerca. Terra de. Entende? Mulher O dono anterior não colocou cerca. Homem Do que cê tá falando? Mulher De quem esteve aqui antes. Homem E alguém esteve aqui antes? Mulher Em todo o lugar. Não é terra de ninguém. Homem O sobrenome de quem. Cê viu qual era o sobrenome que ‘tava talhado na placa? Na placa na entrada da estrada de terra?

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Mulher Acho que combino mais com um descampado. Homem Qual a diferença? De um descampado para um pasto?

(grilos)

Homem Tá vendo o rombo que ele deixou na poltrona? (ele senta na poltrona do pai)

Mulher Não senta aí. Homem Tá vendo o que ele fez comigo? Me fazer voltar aqui. Me fazer sentar aqui onde ele passou os últimos dias da vida dele. Eu posso ver o que ele ‘tava fazendo. Sentado, olhando pro teto. A espingarda na mão.

Homem Rezando? Mulher Você não é religioso. Nunca foi. Eu desconfio. Eu sempre desconfiei daquela imagem de santo na sua carteira. Homem Voltar aqui. Isso aqui não é o meu lugar. Eu pisei na merda. Mulher Agora senti o cheiro. Homem Isso que cê tá sentindo é o silo. Mulher Enjoativo. Homem Tem que ver de manhã. Tá na época deles começarem a estocagem. O açúcar no ar, a fermentação. O pai sabia quando o produto ‘tava bom pros bois e pras vacas por conta do cheiro, da cor. Uma vez. Eu era pequeno. Resolvi dar a silo preto, mofado pros bois só pra ver o que ia acontecer.

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Mulher Na verdade um lugar como esse seria bom pra mim. Pra ele, pra nós. Homem Não é bom. Silagem mofada nunca é bom. Mulher Tô sentindo falta das sirenes, sabia? Essa hora é a minha hora favorita lá em casa. Tomo um banho, deixo a TV ligada, vou até a varanda, fechos os olhos e ouço a sirene. Eu não tô muito confortável aqui. Se a gente olha pela janela não vê nada, só escuridão. Total. Não te dá medo. Sem saber quem ‘tá lá fora. Se tem alguma coisa por perto. Mulher Não te dá medo? Homem Não tem nada lá fora. Mulher E como é que cê pode ter tanta certeza? (grilos)

Homem Um deles apareceu morto, logo depois que eu dei o silo mofado. Isso nunca tinha acontecido. Levei uma surra. Mulher Deixa eu ver uma coisa? (ela se aproxima da poltrona, ele se levanta) Mulher Se a gente colocar um outro estofado, alguma coisa florida, acho que dá pra gente levar. Homem Sempre soube que era mórbida. Mulher Só tô enjoada com o cheiro e um pouco preocupada com o que vai ser disso aqui. Cê vai mesmo vender? Homem Não deve valer quase nada. Mulher Ele queria que cê vendesse?

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Homem Meu pai já foi dono desse pasto todo, desses bois todos lá fora, dos pés de café, de toda a plantação que a gente ‘tava admirando pela janela do carro. Do pasto e da cidade toda. Só sobrou isso aqui. E essa merda de poltrona. E você ainda quer dar uma customizada. (Ela se aproxima da janela) Homem Vai começar a ver coisa onde não tem.

Mulher Eu já te conheci falido. Homem Vai começar a ver coisa. Mulher Como era ter tanto dinheiro e de repente. Homem Já me conheceu com o meu mundo destruído. Mulher Esse pedaço de terra. Devia ficar com ele. Se não vale nada, pelo menos pode plantar alguma coisa ao redor da casa, a gente pode passar os finais de semana. De repente. Esses grilos também te incomodam? Homem Esse lugar. A gente mal vinha pra cá quando era criança. Ficava na casa lá de cima. Várias portas, escadaria, várias janelas. Dava pra ver até a matriz. Mulher E quem vivia aqui?

Homem Mesmo na cidade eu ainda ouço os grilos, é uma forma de me manter saudável e conseguir dormir naquele apartamento no centro. Relaxa. Daqui a pouco cê se acostuma.

Mulher Quando a gente parou na cidade, no mercado, quem era? Homem Cê tá falando do quê?

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Mulher Ele tem algum problema?

Homem Eles não conseguiram achar a bala. Eles mal tocaram nessa poltrona. Se eu encontrar a bala na espuma, no estofado, eu juro que eu esfrego na cara daqueles merdas. Mulher Ele sabia seu nome e cê mal se lembrou dele. Homem Ele tem problema. O pai dele trabalhava pro meu pai. Acho. Eu era moleque. Mulher E o que ele tem?

Homem Por que o interesse no mongo? Mulher Só não entendo pra que falar desse jeito. Ele sabia seu nome, sabia muito de você, deus os pêsames, falou do seu pai, do enterro. Ele foi ao enterro e você não. Homem Cê queria que eu tivesse vindo ao enterro? Com você no estado em que estava? Mulher Cê disse que depois ia procurar por ele. Eu ouvi. Homem Cê não conhece a peça. Ele fica rondando todo mundo. Ele não é normal. Nunca foi. O pai dele trabalhava pro meu pai. Simples. Tá cansada?

Mulher Engraçado. Se você fica muito tempo encarando o mesmo lugar, começa a ver coisa. Olha. Fixa o olhar. Tá tudo escuro. Mas cê consegue ver o que eu tô vendo? Uma mancha, uma sombra, lá no fim do pasto, na cerca.

Mulher Se mexeu?

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(Ele se aproxima da janela. Sai logo em seguida. Não aguenta. Ela permanece) (grilos)

Homem De repente a gente pode vender o maquinário. O trator, os porcos. Uma grana a gente levanta. Pelo menos até eu arranjar um novo emprego. Mulher Os pés também, os sapatos nesse chão de madeira. Não parece com o taco lá de casa. Caminha um pouco e prest’enção nos seus passos. Mais forte, sei lá. Quanto mais cê caminha aqui dentro, mais parece que tem mais gente aqui. Que a gente não tá sozinho. Ouve? (Os dois começam a caminhar pela casa, param, refletem) (grilos) (O som de um canto de Folia de Reis ecoa de longe, como num choro) Mulher Eles tão perto? Eu queria ver? Eu nunca vi. Homem Coisa do vento. Tão bem longe. A gente passou por eles, não se lembra? Mulher Cê tinha/tem medo? Homem Eu tinha medo da máscara. Do canto. Deles todos. A folia toda. Era só eles chegarem na nossa porta, na noite de natal, pra eu me esconder em algum canto. O meu pai, ele me arrastou um dia pela casa, pelo quintal, o terreno lá de cima, até que eu ficasse de frente pra um dos Bastiões. (Ela faz que não entende) Homem O cara com as máscaras. Eu de frente pra um deles, desmaiei.

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(grilos) (O som da Folia – agora – está longe) (Ela encara ele. Ele encara a poltrona) Homem Cê acha que eu devia ter vindo no enterro? Olha, eu. Eu não sei bem o que tá acontecendo comigo, pode ser o clima, o ar. O cheiro doce que vem lá de fora, a merda toda que o meu pai fez. Dar um tiro no peito, com uma espingarda passada de geração para geração, acostumada a servir para matar cavalo manco, boi ronceiro, urubu na plantação de milho, servir para matar um homem de sessenta e tantos anos. Um velho, acabado e sozinho. Pra quê? Um velho, acabado e sozinho, não seria melhor esperar o tempo passar, ficar encarando o tempo passar da janela. Plantar e colher. Tudo bem que um homem que passou a vida toda mandando nos outros, fazendo com o que os outros plantassem e colhessem, limpassem suas botas, drenassem o solo, preparassem a sua comida, o seu banho, no final da vida, no final da... Eu não consigo acreditar que ele fez isso sozinho. Colocar a espingarda no chão, sentar na poltrona, vestir a melhor roupa, a que sobrou dos tempos das vacas gordas, ajeitar o cano da espingarda no peito esquerdo e. Pra um homem que sempre teve tudo do bom e do melhor, que sempre teve a casa, que não era essa, cheia de gente. Comendo qualquer mulher. Servindo da melhor comida, a melhor bebida. Mandando nos outros. De repente. Devia estar doente. Só pode ser. Doença. Sim. Deve ser o sol na cabeça. Excesso de sol na cabeça, na pele não. O sol na pele era dos outros. Na dele não. (Mugidos ao longe) (Ele caminha pela sala e encara a parede acima da porta) Homem E onde é que ela tá? Mulher Ela quem? Homem A espingarda? Mulher Levaram?

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Homem A polícia? Mulher Normal? Homem Vai virar peça de museu na cidade.

(Ele caminha até ela. Ela só tem olhos para a janela) (O vento faz a telha do teto ranger) (Ele coloca a mão na barriga dela e sai logo em seguida)

Mulher Cê deve estar com febre. Homem Não. Mulher O que é, então? Tem alguma coisa errada com você. Homem Cê acha que eu dou conta de fazer o que esse homem fez?

Mulher O que tinha daquela lado de lá de cerca? Homem Cê vai passar a noite toda olhando o que tá acontecendo lá fora? Não tem nada acontecendo aqui, muito menos lá fora. É noite, cigarras e grilos, só. Mais nada. Daqui a pouco deve começar a ventar, como todos os santos dias de um final de mundo como esse. (Ele tira o celular do bolso, procura sinal)

Homem Merda de lugar que nem sinal tem.

Mulher Pra onde ficava a colônia da fazenda?

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Homem Do lado de lá da cerca. Mulher E como era? Homem Uma casa empilhada uma ao lado da outra, todas iguais. Mulher Quantas famílias eram? Homem Cinco, seis. Nove. Quinze. Não sei. Mulher E pra onde eles foram? Onde é que eles estão agora?

Homem Cê sabe que eu saí daqui tem mais de vinte anos. Mulher Vir pra cá não te faz pensar nesse tipo de coisa? Homem Eles foram pagos. Foram embora. Fim. Mulher Ele vivia aqui?

(Já não se escuta a Folia de Reis) (Já não se escuta nada)

Mulher Ele bateu no vidro do carro, enquanto cê ‘tava no caixa eletrônico. Homem Ele quem? Mulher Antes dele me acordar, eu tava sonhando. Acho. Aquele tipo de sonho que quanto mais você grita, mais a sua voz não sai. No sonho, tinha um bebê chorando no meio da plantação. Eu tentava de todas as formas entrar no meio do cafezal, mas

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meus pés estavam enrolados nas raízes de um deles. Ele bateu no vidro. Ele só disse um “oi, ocê tá com ele” e apontou pra você. Me abaixei para pegar a bolsa, pra abrir a porta e. Homem Eu devia ter vindo ao enterro. É o que eu vou fazer amanhã de manhã. É o que a gente deve fazer amanhã de manhã. Acordar, dar um jeito na casa, antes de decidir qualquer coisa e ir até onde ele tá enterrado. (Ela se desvencilha da janela e se senta na poltrona)

Mulher Tinha uma casa no meio do nada, uma montanha e uma plantação de café gigantesca. Eu corro pelos corredores da plantação e eu te vejo de longe, é dia. Você não acena, fica parado no extremo oposto de onde eu tô. Eu tento te chamar, mas a voz não sai, eu sinto uma sede tremenda. Eu ouço o choro do bebê, um choro demorado e sem parar, eu de alguma forma, percebo que aquele bebê uma hora vai perder o fôlego e corro pelo cafezal tentando seguir o som. Tentando de alguma forma achar o bebê. Cê some. Eu não te vejo mais. Eu me vejo sozinha, encaro o bebê no meio de tudo. Tento chegar até ele. Os meus pés enroscam na raiz e eu caio. Tudo escorrendo no meio das minhas pernas. O cafezal todo vermelho. (Corujas no teto, maus presságios) Homem Eu achei que cê nem sonhava mais. Mulher Eu tenho certeza que esse foi meu único sonho em meses. Homem Cê tá insegura. Com medo. Sair de casa, ir pra um lugar novo, respirar esse ar, ficar sem TVv, sem sinal. Cê tá nervosa. Só precisa dormir.

Homem Quer dormir? Podemos ajeitar o colchão lá nos fundos.

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Mulher Eu pensei no caminho todo até chegar aqui. Eu acho melhor a gente voltar pra casa amanhã de manhã. Cê liga pros seus parentes. Não tem um monte espalhado por aqui? Eles resolvem tudo, se você quiser a sua parte nesse negócio, eles te depositam. Não é mais fácil? Homem Cê tá com medo do quê? Do escuro?

(Um estrondo, o vidro da janela se quebra)

Mulher Eu disse que tinha alguém próximo da cerca. Homem Cê disse que podia ser uma mancha, uma sombra. Mulher Eu não vi direito. Cê também não viu. Homem Num lugar como esse, essa casa velha, são coisas que acontecem. Mulher Se a gente tivesse parado num hotel barato de beira de estrada. Homem Esse lugar é meu. A casa do meu pai. A terra era dele e agora é minha. Não faz sentido ficar em outro lugar na cidade, senão aqui. (Batidas na porta)

Mulher O tempo aqui é diferente. Eu não vou me acostumar. Cê sabe que horas são? Desde que a gente passou pela cerca eu sinto que a gente parou no tempo. (Batidas na porta)

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Homem Parentes? Todos querem um pedaço, mesmo que seja nada. A gente tem que vasculhar os quartos, antes que eles peguem o que tem de melhor. (Batidas na porta)

Mulher O que seria de você se tivesse ficado aqui? Fincado os pés? Homem Nunca gostei de lugar que se guarda muita coisa. Que se acumula muita coisa. Mulher Cê tá falando de heranças? Memórias? Esse tipo de coisa? (Batidas na porta)

Mulher Eu não consigo pensar no seu pai ou em você pequeno correndo pelo mato. Matando galinhas. Você já matou alguma galinha? Homem Alguém sempre fazia. Eu gostava de ver. A gente nunca. Mas as máscaras, se vejo uma, se eu encontro um deles por aí. (grilos)

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ATO DOIS - Silo - (Parado próximo da porta, o Estranho – curvado - segura um pacote)

Estranho Eu – Eu – Eu – acho que eu não devia ter vindo. Aqui – aqui. Homem Eu não te reconheci. Me desculpa. Eu não tô muito bem. Estranho Enjoado? Homem Como? Estranho O cheiro do silo? Homem Deve ser. Mas tem a ver com meu pai. A casa. Estranho Ela – ela – ela. Quem? Casados? (O Estranho entra e se acomoda num canto, pega a pedra no chão, a mesma que quebrou a janela, guarda no bolso) (Corujas no teto) Estranho Criançada. No pasto. Final do ano. Eles quebram, quebram, quebram tudo por aqui. Que nem a gente. (O estranho encara o homem) Estranho Que nem. Homem Eu disse que te procurava depois. Estranho Cê – disse?

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Mulher A gente mora junto. Na cidade. Sabe? Estranho Não. Mulher Cê mora aqui perto, ou na cidade mesmo? Estranho Perto.

Estranho Eu – Eu – Acho que eu não devia ter vindo – Aqui. Agora. Eu posso voltar amanhã.

Mulher Trouxe alguma coisa? Estranho Eu – Eu – achei que cês deviam estar com fome. Eu trouxe, minha mãe quem fez. Mulher A gente agradece. Homem Então, cê ainda vive aqui? Estranho Enterrado. Como todo mundo. Todo – o – mundo. Homem É muito tarde. Estranho Eu sei. Eu – Eu – já que tô aqui, acho melhor a gente conversar. Tem muito tempo que não converso com alguém. Cê sabe? Cês devem saber. A gente vai ficando velho, num lugar como esse não tem muita novidade e quando aparece a gente não pode perder a oportunidade. A – oportunidade. Sem falar que a gente fica velho, e os mais velhos cada vez mais velhos, os pastos cada vez mais abertos, as casas vão sumindo, todo mundo vai embora e fica. Eu – fico. Fico feliz que cê tenha voltado. Todo mundo – os velhos.

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Homem Eu não voltei. Mulher Cês eram amigos? Quando pequenos? Estranho Quando – peque – nos. Mulher Ele não disse. Estranho E o que ele te disse? Ele – disse?

Homem Eu não vim velar meu pai. Eu só vim resolver as tralhas, as traças. Cê sabe. Estranho Não. Mas a gente merece – esse lugar – merece. Homem Está falando da morte do pai?

Estranho Tudo o que acontece – aqui – aqui, sabe? Sabe que tá tudo morrendo aqui, não é? Não se planta nada nesse terreno. Mulher Vocês querem comer?

(A mulher coloca a comida da mãe do Estranho sobre a mesa) (Moscas, aleluias, perambulam tontas na comida) (Ela espanta as moscas e as aleluias que perambulam na comida)

Homem Eu acho que eu quero dormir. Estranho Aí era um altar.

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Mulher Na mesa? Estranho Onde o pai ficava. Um tempo. Um tempo grande. Mulher Seu pai? (Ela encara o Estranho, sem respostas) Homem Sua mãe sabe que tá por aqui? (grilos)

Mulher Talvez seja melhor mesmo cê voltar amanhã de manhã. Estranho Cês viram alguma coisa na cerca hoje? Mulher Como assim? Eu acho que... Homem Ela se impressiona fácil. Melhor não brincar com certas coisas. Estranho Eu perdi o meu cavalo – eu perdi. Só isso. Brincar? Homem Achei que fosse começar a contar uma de suas lendas. Estranho Então, se lembra. Lembra – de mim? De que len-da? Homem Não reconhecer depois de tanto tempo. Não quer dizer que eu não me lembre. Estranho A gente era pequeno – quando. Pequenos. Mulher Achei que cês não eram amigos. Homem Nós. Não.

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(Ele caminha pela sala, o chão range) (O Estranho continua no mesmo lugar)

Estranho Como cê se sente? Sente – aqui. Num lugar como esse. Aqui? Homem Cê sabe. Estranho Ela. Ela, como ela se.

Mulher Desde que coloquei os pés aqui parece que tô dormindo. Num outro estágio de sono. Só esse cheiro que. Estranho Tem a ver com a tranquilidade. Ele te falou sobre o – silo. O – silo? Mulher O cheiro, né? Doce. Tem a ver com fermentação. Estranho Era a nossa época. Tempo bom. Bom – tempo. O cheiro, o vento, dando de comer e beber pros gados. Ele mandava. Ele – era – difícil. Duro. (Ela ameaça um riso, controla)

Homem Não é um bom momento. Estamos todos cansados.

Estranho Cansado? Eu sei o que é – cansaço. Todos por aqui – A gente sabe. É que nem eles falavam da gente. Se meu pai reclamava de cansaço, estava, ‘tava... Morto. No final da vida, a pele dele, tinha que ver. A pele dele. Cês vão ficar com os móveis? A poltrona? A – espingarda? A. A pele dele, saía toda.

Homem A gente ainda não sabe. Tem os parentes. Cê encontra com eles por aí?

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Estranho Às vezes. Eu sou o cabeça de vento. O – mongo. Eu não falo com muita gente. Muita gente não fala comigo. Eles – não.

Mulher Eu te entendo. Eu também não tenho jeito para o social.

(O Estranho tenta aproximar-se dela. Ela não deixa. Ele para) (grilos)

Estranho Que é isso no seu rosto? No – seu.

Mulher Foi um acidente. Nada. Estranho De carro? Caiu? Cê brigou com alguém. Soco – foi? Foi. Mulher Alta velocidade. Estranho Cês da cidade grande. O que aquelas luzes fazem com vocês? Muita – luz. Dá nisso. Cês não enxergam direito. Não querem. Mulher Acho que é por isso que existem lugares como esse. Estranho Lugares como esse? Como – esse? Não. Mulher O que cê disse. tranquilidade, alto da montanha. Cheiro de mato. Grilos. Estranho Eles entram em você se cê deixar.

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Homem Melhor você tomar o seu rumo. Estranho Rumo? Ele também faz isso com você.

(O Estranho a encara) Estranho Eu – aposto. Aposto que. Mulher Ele não é fácil.

Estranho Que bom que eu não sou o único que acha isso. Isso – dele. (O Estranho se aproxima dele, lhe dá um tremendo abraço, não o solta) (Ele tenta se desvencilhar do abraço, sem sucesso) (Ele está sufocado)

Estranho Hoje cê perderia de mim numa briga. Fracote! (O Estranho o solta) (Ele sem fôlego, cai sob a poltrona)

Homem Se quer ficar, que fique. Mas se comporte.

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Estranho Manda que nem o pai. Que nem o velho. Só falta.

Mulher Quer uma água? A gente tem cerveja quente no carro. Estranho Cerveja? Eu – não. Pode ser. Pode. Eu. Nunca. Homem E os seus remédios? Mulher Cê o conhece bem. Homem Ele toma remédios. Cê toma, não toma? Estranho Eu sô – livre aqui. Agora. Que nem o meu cavalo. Que nem esse pasto todo. Que – nem. Mulher Ele diz que eu me pareço com um pasto. Eu não entendo. Homem Não dê corda pra ele.

(Ela sai da casa, de cena) (Os dois se encaram)

(O estranho ri e faz um gesto como se punhetasse) (O homem respira fundo e sorri) (A Folia de Reis, longe)

Homem Sua mãe deve tá preocupada, não? Estranho Eu sou adulto. Sabia? Adulto – faz tempo. Como você. Cê é adulto. Lembro, assim, pequeno. Mas é adulto. Fraco demais.

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Homem Fiquei sabendo que cê fica perambulando no meio do mato. Das plantações. Entrando na casa dos outros. Na plantação dos outros. Vai acabar. (Alarme do carro. Duas vezes. Para) Homem Acho melhor você ir embora. Terminamos amanhã. Vamos te visitar na sua casa. Melhor, não? Estranho É cedo ainda. Não sabia que tinha envelhecido como todos eles. Todos – estão velhos – para esse horário.

(Ela entra)

Mulher Estão bem quentes. Fervendo. Horrível. (Ela abre a cerveja para eles) (Se servem) Mulher Então, seu pai trabalhou para o pai dele. Cê morou por aqui? Estranho Tinha uma colônia de casas. Ali. Bem ali. Atrás da cerca. Tudo destruído. Tudo acabado. Quando o pai dele, cê sabe. Ele – deve. Ele deve. Ele deve ter . Ele deve ter – te falado. Homem Conversamos sobre tudo.

Estranho E como se conheceram? Eu – Eu – sei que tô atrapalhando. Ele disse quando cê ‘tava lá fora. Mas – Mas. Faz muito tempo que não aparece ninguém.

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Mulher Por mim tudo bem. Estamos cansados. Quem não está? Homem Ela ‘tava com medo daqui. Mulher De estarmos sozinhos aqui. Bom saber que você está por perto. (O Estranho faz um gesto de agradecimento) (grilos)

Estranho É uma coisa que se acostuma. O lugar vai entrando em você. Quando cê menos espera, nem percebe, já está tomada por ele. Cê se torna o mato, o cafezal, os bichos, os insetos, os bois.“Toda a plantação dentro do cê”. Seu pai dizia isso. Ele – dizia? Ele. É. Homem Ele falava muita merda. (Ela encara o Estranho, o mede) Mulher Cê falou com eles antes do... Estranho Antes dele estourar o peito?

Homem Eu sabia que no fundo era um covarde. Mulher Eu fiquei curiosa pela casa, tudo mofado. Ele não tinha mais amigos? Ninguém? Mesmo? Homem Eu já te disse. Todos foram embora, um por um. Estranho Eu passei por aqui, tem duas semanas. Homem Falou com ele?

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Estranho Ele – ele – ele ficava encarando a janela, olhando pro lado de fora. Um – fantasma – fantasma. Parado aqui na janela. Se acenava de longe pra ele, ele apagava a luz. Tava doido da cabeça. Da – cabeça. Homem Não duvido. Mulher A gente devia ter vindo pra cá mais vezes. A gente devia ter tentado falar com ele. Eu devia ter feito você voltar pra cá. A falar com o seu pai. Não entendo. Estranho Se você tivesse ficado que nem eu. Que nem seu pai. Que nem todo mundo aqui. Cê também. Cê – sabe. A gente acaba que nem seu pai. Que nem o meu – pai. O pai dele mandava no meu.

Mulher Ele deve ter se arrependido do jeito que tratava os empregados.

Mulher Eu não. Estranho Esse lugar. Botou a cerca e pronto. Pronto. Mandava e desmandava. Mas não desmamou, nunca. Um bezerro. Pra sempre - Um. Homem Deve ter tido muito tempo para pensar. Ele bebia. Quem bebe demais. Estranho Eu bebo. E nem por isso. Eu ‘tou bebendo agora. Cês também. A gente – a gente – eu e ele - nós dois, a gente roubava bebida escondida do pai dele e depois vomitava no lugar onde os bois bebiam água.

Mulher Eram amigos, então?

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Homem Tem tempo isso. Muito tempo. Eu esqueço das coisas muito fácil. Estranho Saía por aí como dois idiotas. Dois caipiras punhetando no mato. (Ela encara ele) (Ela compreende e ri) (O Estranho faz um gesto simulando uma punheta)

Mulher Não abaixe a cabeça. Tá vermelho. Eram crianças. Esse cheiro. Não sei como vocês aguentam. Estranho Acostuma. Cê – vai – se acostumar. (O homem puxa o Estranho até a porta) Homem Sua mãe deve tá preocupada. Estranho Eu sou um homem, cavalo de pata forte. Potro aqui é você. (Ela não se segura e ri) (Ele a encara, ela se controla) (mugidos) (Ele desvencilha-se do Estranho, que agora para de frente à porta)

Mulher Ser criança num lugar como esse deve fazer diferença. Homem Cê não sabe. Nunca viveu assim. Num lugar como esse.

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(O estranho aponta para ela) Estranho Sua infância foi ruim? Ruim – muito?

Homem Normal. Estranho Ele fala por você. Responde – por – sabe? Ele era assim comigo – também – assim. Mulher Eu era muito sozinha. Normal. Como todas as... Homem Então pra convencer ela a ficar comigo foi fácil.

Estranho Cê deixa ele falar assim com você – sobre – você? Eles são assim. Tem que segurar as rédeas, cavalos. São. Homem É muito tarde já. A gente tem que acordar muito cedo. Estranho Eu – Eu – não devia ter vindo aqui. Essa hora.

Mulher Por mim, tudo bem. Eu era sozinha. Ele apareceu. Ele está certo. Por mais que eu tenha medo, esse lugar, um lugar como esse ia me fazer muito bem. Pelo menos não teria que acordar de manhã, ir para um trabalho de merda, conversar com pessoas tremendo a mão, gaguejando, pessoas de merda. Ter que enfrentar metrôs e trens lotados, ter que aguentar os vizinhos do condomínio, falando, falando e falando. Merda. Esse cheiro. Eu posso aguentar. Quantas vezes por ano. Quatro? Até estocar a comida para todo o gado? Eu aguento. Pelo menos aqui eu não conheço ninguém e nem tenho que conhecer ninguém mais. Não tem a preocupação de conhecer gente nova, pouca novidade aparece e se aparece, eu escolho fazer parte ou não.

Homem O mundo lá fora é bem mais interessante, vai por mim. Mulher E se aparece eu escolho fazer parte ou não.

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Estranho Quem colocou a cerca – o primeiro? Mulher Como sabe? A minha dúvida também. Ele não tem esse tipo de dúvida. (Ela sorri, se aquieta) Mulher Eu pareço uma idiota às vezes. Homem Às vezes? Dando corda pra outro. Mulher Ele não tem esse tipo de dúvida. Pra ele o avô colocou e pronto. Homem As coisas são como são. Não temos nada agora. Que diferença isso faz? Mulher Mas cê pode se perguntar certas coisas. Estranho Ele – o tipo. O tipo de gente. Que nem. Que nem ele. Eles. Não tem dúvida. Nenhuma.

Homem Cê fala engraçado. Respira que cê consegue não pausar no meio das... Estranho Cê não devia... Não. Aqui não. Eu assim...

(Corujas no teto)

Estranho Silo, três ou quatro vezes por ano. Ano – três ou quatro. A gente, eu e ele, esse daí. A gente, brincava nos montes de silos. O silo que se amontoava no pasto, antes de estocar, antes de dar para o gado todo. Eu – ele... A gente... A gente brincava de saltar dos montes de silo, era alto. Tinha que ver. Alto. Tinha... A gente ficava no topo, eu era empregado, então se

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o pai dele me pegava trepando no silo, eu ‘tava morto, era cinto na certa. Então... Eu e ele, a gente brincava de saltar no silo. O silo novo, o cheiro era bem pior. A gente se acostuma. Todos. Você também. Eu – ele... Um, dois, três. A gente saltava de uma altura. E caía nos montes macios. Uma vez o pai dele viu o que a gente fazia. Eu apanhei. Mas no outro dia, a gente – eu – ele... A gente ‘tava lá, de novo. Firme e forte. Um, dois, três. Pulei. Mulher É disso que falo quando digo que aqui pode ser bom pra ele. Estranho Ele já - Ele já. (O Estranho aponta para o homem) Mulher Eu tô falando do filho que a gente... Estranho Ele vai ser – pai? Homem Eu estou aqui. Estranho Ele vai ser pai? Não – pode. Homem Por que o espanto? Estranho Seu pai. O meu. Você. Não. (grilos) Estranho Se cê deixar eles entram no seu ouvido. Os grilos. E acabam fazendo da sua cabeça a sua casa. Foi assim que aconteceu comigo. Assim. Ele. A gente. Subia no silo e. Subia no silo, no monte de silo e saltava. Pulava sem medo nenhum. Um dia. Um. Ele tirou um dos montes onde eu ia, onde eu ia cair, onde a minha queda ia, onde eu ia cair, daí eu bati com a cabeça. Ele – não – eu – bati... A cabeça forte no terreno. No chão duro. Pro pai dele não ver, ele jogou um dos montes em cima de mim. Eu. O enterrado no silo. Eu – fiquei – lá. Enterrado no silo. Sem ar. Sem ar, não sentia cheiro, mais, não. Nada – nada – nada – fiquei lá. Sem ar.

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Mulher Isso é verdade? Sem ar. Homem Exagero. Brincadeira de criança. Quem inventou os saltos? Não fui eu. Estranho Ele não será bom. Vai ser que nem o pai dele. Que – nem. (Ele se aproxima dela, ela se afasta dele) (Ela se aproxima da janela) (grilos) (Ela tapa o ouvido para eles não entrarem) (O Homem vai em direção à porta, abre a porta) Estranho Cês deviam ficar até amanhã no final do dia. Antes de estocarem o silo na fazenda vizinha. A gente pode ir até lá. Nós – três. Saltar no silo mofado. Dar pra ele comer. (O Estranho o encara) (O Estranho a encara) Estranho Eu te mostro como é. (O Homem puxa o Estranho pelo braço) Homem Aqui não é o seu lugar. (O Homem faz com que o Estranho saia) (O Estranho faz um gesto simulando uma punheta) (Ela acena para ele) (Ele sai da casa, de cena)

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ATO TrÊS

- raiz - (Ele examina a poltrona do pai)

Mulher Num lugar como esse. Se cê vive, mora, passa um tempo num lugar como esse, ou cê enlouquece ou sobrevive e... Homem Nenhum de nós mudou nada. Nem meu pai. Nem ele. Muito menos eu. (Ele começa a mexer profundamente no estofado da poltrona) Mulher Cê fez isso com ele? (Ela abre outra cerveja) Homem Eu não sou o dono da brincadeira. (Ela bebe) (Ela segura sua barriga) Homem Cê bebeu demais. (Ele tira a bebida das mãos dela) (Ele bebe num gole só) (Ele retoma seu trabalho na poltrona) Mulher Seu pai ligou um dia antes de morrer. Eu não te avisei. A ligação ‘tava chiando, não dava para ouvir muito bem. Homem E por que não avisou? Mulher Foi naquele dia, um dia depois. Quando você... (Ele se aproxima dela, ela esconde o rosto)

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Homem Cê sabe que às vezes eu sou como ele. Mulher Saltos no silo. Silo mofado para os bois. Deixar ele sem ar. Sem – ar. Homem Isso foi há muito tempo. A gente já se recuperou. Eu e ele. Num precisa se impressionar tanto. Com uma besteira. Um deslize da infância. Eu era um moleque. Cê num sabe como as crianças são num lugar como esse. Quando não se tem muito o que fazer. Mulher E se ele nascesse num lugar como esse? Se ele nascesse aqui? Homem Se meu pai enlouqueceu de tanto ficar olhando pela janela. Se esse cara, depois de tanto tempo, fica perambulando no meio do mato em busca de um cavalo que a gente nem sabe se existe. Se o pai dele, pediu pra ser enterrado no quintal da casa, imagina. Lugares como esse?

(Ele começa a rasgar o estofado da poltrona do pai)

Mulher Quem vivia nessa casa era ele. Homem Muito tempo. Eu não costumo me lembrar de certas coisas. Um borrão. Mulher Faça um esforço. Homem A gente era criança, a minha família morava no topo. Eles ficavam por aqui. Não tem certeza se na colônia ou aqui, a única coisa que eu sei é que era aqui pra baixo. Meu pai num gostava que eu ficasse com eles, com os filhos dos caras que plantavam pra ele. (Ele começa a tirar a espuma da poltrona)

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Mulher Cê tá com medo? Homem Eu tenho medo o tempo todo. Mulher Eu tenho medo o tempo – todo. Homem A gente vai embora amanhã de manhã. Mulher E quanto a visitar o túmulo?

Mulher Cê tem medo de terminar que nem seu pai. De ser o seu pai pra ele? Homem Ele ainda não nasceu. Mulher E se você voltar àquela fase? Você já – é. Homem Meu pai morreu. Como disse “o outro”, ele estourou o peito. A poltrona. A vida dele toda nesse lugar. Quando cê nasce já destinado a mandar nos outros, a ter todos os outros nas suas mãos, a ser dono da terra, quando cê perde tudo, vira boi ronceiro.

(Lá fora, o som da Folia de Reis, retorna, agora mais próximo)

Homem Eu aprendi com ele a ser boi ronceiro. Mulher Ficar isolada num apartamento pequeno no centro da capital, não tem diferença quanto ficar aqui, isolada no meio do nada. Homem Um pasto, o que foi que eu disse?

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Mulher Eu contei. O que eu falei pra ele? Falei que foi um acidente. Uma batida. Alguma coisa assim. E ele chegou aqui, quase sem ar. Ele não junta direito as palavras, ele não sabe muito bem qual palavra vem depois da outra. Ele. Ele. Ele. Mas ele me contou o que ele sente estando aqui. Te vendo de novo. O que esse lugar fez com ele. O que seu pai fez com ele, com os pais dele, o que cê fez com ele. E eu disse que foi um acidente. Eu. Quem esteve aqui antes de seu avô? Cê nunca se perguntou? Não quer.

Homem Eu nasci e já estava tudo no lugar certo. Mulher O que cê quer dizer com lugar certo? Homem Já ‘tava tudo no seu devido lugar. Mulher E qual era o seu lugar? Homem De ser o filho dele, de respeitar o espaço de cada um. Mulher Mas cê pulou fora daqui assim que as coisas começassem a desandar. Homem A bebida, cê sabe. Eu já ‘tava cansado de levar porrada. De ser surrado por qualquer besteira. Mulher Surrar. É uma coisa que acontece com gente assim. Homem Sair por aí sem rumo, pegar o carro escondido. Pichar as cercas, o curral. Comer a filha dos empregados. Mulher Comer?

Homem Eu era jovem. Mulher Cê era jovem, era uma criança. Tem a ver com o clima. Homem Com esse tempo todo livre. Sem ter muito o que fazer.

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Mulher Essa era a casa dele. Dos pais dele.

Homem Cê ganhou. Tá certo. Era a casa dele, que mal a gente fez? Meu pai não tinha mais grana, estava atolado até o pescoço, o nosso mundo já ‘tava acabado. O que ele fez? Dispensou todo o mundo. O que todo o mundo faz. O que sobrou foi esse pedaço de terra. O que ele fez? Ficou aqui. Mulher E eles? Os pais dele? Homem O lugar é de quem cerca.

(grilos) (Ela tapa os ouvidos até o som ir embora) (Ele afunda sua mão no estofado, na espuma da poltrona e encontra a bala da espingarda)

Homem Eu vou esfregar na cara deles! (O que restou da janela se espatifa com uma pedra) (Ela se assusta e se aproxima da janela) Mulher Ele está lá fora.

Mulher Aqui não é o meu lugar. Não – é? (Ele se aproxima da mesa, encara a bala da espingarda e a

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coloca sobre o móvel) (Ele encara a comida, prova) (Ele tosse, quase vomita) (Batidas na porta) (O Estranho entra na casa, em cena, segurando a espingarda do pai) (Ele vomita e mal consegue parar em pé) (Ela continua a encarar a janela, a encarar o pasto lá fora)

Homem Eu falei que era melhor a gente continuar a conversa amanhã. Estranho Desculpa – Eu – Eu – não devia ter voltado. Assim. Homem É silo mofado. Estranho O gosto é sempre o mesmo – o mesmo. Mulher Dar silo mofado para os bois. Estranho Se os bois comem. Ficam ser ar no cérebro. (Ele ainda está no chão) (Ela se aproxima do Estranho) (O canto da Folia longe) (O Estranho coloca a mão na barriga dela) Homem Onde cê encontrou a espingarda? Estranho Eles vieram, procuraram pela casa toda, mas cê sabe.

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Eu. Eu. Eu. Eu devia ficar com alguma coisa. A espingarda não era dele, assim como a casa. Mulher Cês viveram aqui por quanto tempo? Estranho Toda a vida do meu pai, da minha mãe. Ela. Ela. Ela. Vive na cidade agora. Mulher Cê pode ficar com ela se você quiser. A – espingarda. Homem Não é você quem decide os rumos daqui. A casa, o lugar. Aqui, nada é seu. Estranho Não – aqui – não mais. Não é você quem. Quem. Manda. Quem. Mais. Não é. Mulher Cê não reparou que ele já está com ela. A espingarda não era do seu pai, a casa também não.

(O Estranho senta na poltrona e seus rombos, com a espingarda em punho)

Homem Se eu fosse você eu levantava daí. Mulher A poltrona também é dele. Dele. Não do – pai. Homem Eu vou contar até três. Estranho Ficar sem ar no cérebro. Minha mãe disse que ficar sem ar no cérebro faz com que você fique meio mongo. Meio doido. Seu pai – seu pai – seu pai. Não podia brincar nos montes, no cafezal, no milharal, nem deitar no cocho, no lugar onde o gado bebia água. Deitar e fingir de morto – Não. Mulher Deitar e fingir de morto – Não.

(grilos)

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(A Folia de Reis se aproxima, lá fora)

Homem Fecha a porta. Sai da janela. Mulher Deixe tudo aberto. Estranho Ele ainda tem medo, é? Quando pequeno ele fugia dos Bastiões, não chegava perto. O pai dele. O pai dele. Comparava ele comigo. Eu num tinha medo, até colocava a máscara pra assustar ele na plantação. Ele se mijava, todo. Todo. Mulher Eu sempre falo demais. Ele diz. Eu sempre questiono demais, ele diz. Eu não sou um pasto. Não me pareço com um pasto. Um des- des – campado. (Ela aponta o dedo para ele)

Mulher Se eu me deitar no cocho. Se eu me deitar no lugar onde eles comem o silo. Onde eles bebem água. Os bois. Eles vão se servir de mim. De – mim. Os bois. Não – mais. (A Folia de Reis se aproxima lá fora) Mulher Quem sabe eu me mudo pra cá de vez. De – vez. Homem Eu num consigo. Eu num vou conseguir. Mulher Aqui não é o seu lugar. Você não será um bom pai. Um – bom – pai. (A mulher se deita) (Batidas na porta) (A Folia espera na porta) Estranho Boi Ronceiro. Boi Ronceiro. Boi. Boi. Boi. Mulher Eu não sou um pasto.

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(Um tiro de espingarda) (Grilos e mais grilos ao redor da casa, da cena) (Luz cai) MG/SP, dezembro de 2015/agosto de 2016

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Prefeitura de São Paulo João DoriaSecretaria de Cultura André Sturm

Centro Cultural São Paulo | Direção Geral Cadão Volpato Coordenação de Curadoria Cadão Volpato Supervisão de Ação Cultural Adriane Bertini e equipe Supervisão de Acervo Eduardo Navarro Niero Filho e equipe Supervisão de Bibliotecas Juliana Lazarim e equipe Supervisão de Informação Juliene Codognotto e equipe Supervisão de Produção Luciana Mantovani e equipe Coordenação Administrativa Everton Alves de Souza e equipe Coordenação de Projetos Kelly Santiago e Walter Tadeu Hardt de Siqueira

Boi Ronceiro - uma fábula de horror | Estreou no Centro Cultural São Paulo em 9/6/2017 e realizou temporada até 2/7/2017 | Dramaturgia Ricardo Inhan Direção Mariana Vaz Diretora colaboradora (trabalho de ator) Juliana Jardim Elenco Luciana Lyra, Paulo de Pontes e Pedro Stempniewski Cenografia Laura Andreato e Mariana Vaz Figurino Laura Andreato Desenho de luz Melissa Guimarães Trilha sonora Alessandra Leão Coprodução musical Missionário José Cenotécnico Edson Luna Fotos Cacá Bernardes (Bruta Flor Filmes) Vídeo Bruta Flor Filmes Design gráfico (capa) vinte design Produção Ariane Cuminale

CCSP | Curadoria de Teatro Kil Abreu e Lucas Cavalcante de Almeida (estagiário) Edição Danilo Satou Revisão Paulo Vinicio de Brito Projeto Gráfico Solange de Azevedo Impressão Laboratório gráfico do CCSP

Texto vencedor do Edital da III Mostra de dramaturgia em pequenos formatos cênicos do Centro Cultural São Paulo

distribuição gratuita no CCSPtiragem 2000 exemplaresSão Paulo, 2017

Prefixo editorial: 99954Número ISBN: 978-85-99954-08-9Título: Boi Ronceiro - uma fábula de horrorTipo de suporte: papel

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