PLEBÉIAS BATALHAS: Teoria crítica e ação política dos...

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TIAGO COELHO FERNANDES PLEBÉIAS BATALHAS: Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala ESS/UFRJ 2009

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TIAGO COELHO FERNANDES

PLEBÉIAS BATALHAS: Teoria crítica e ação política dos povos

originários de Abya Yala

ESS/UFRJ

2009

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ii

PLEBÉIAS BATALHAS:

Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala

Tiago Coelho Fernandes

Escola de Serviço Social

Mestrado

Orientador: Prof. Doutor

Marildo Menegat

Rio de Janeiro

2009

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PLEBÉIAS BATALHAS:

Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala

Tiago Coelho Fernandes

Dissertação submetida ao corpo docente da Escola de Serviço Social, Universidade

Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção

do grau de Mestre.

Aprovada por:

Prof. Marildo Menegat - Orientador

(Doutor em Filosofia - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Prof. Carlos Walter Porto-Gonçalves

(Doutor em Geografia - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

Prof. José Maria Gomez

(Doutor em Ciências Políticas e Sociais - Université Catholique de Louvain.)

Rio de Janeiro

2009

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Fernandes, Tiago Coelho.

Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos

originários de Abya Yala / Tiago Coelho Fernandes. – Rio de Janeiro,

2009.

181 f.

Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Universidade

Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Escola de Serviço Social, 2009.

Orientador: Marildo Menegat

1. Movimentos indígenas. 2. América latina. 3. Colonialidade. 4.

Resistência. I. Menegat, Marildo (Orient.). II. Universidade Federal

do Rio de Janeiro. Escola de Serviço Social. III. Plebéias batalhas:

Teoria crítica e ação política dos povos originários de Abya Yala.

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AGRADECIMENTOS & DEDICATÓRIA

Esta pesquisa foi feita em um caminhar, que espero apenas inicial, pelos

labirintos de Abya Yala-Nuestra América. Os personagens reais que a compuseram e

inspiraram são tantos, de tão distintas situações, que enumerá-los aqui ocuparia

demasiado espaço, em boa parte inútil, já que a maioria sequer tomaria conhecimento da

menção. Ademais omissões seriam inevitáveis, já que além dos esquecimentos que

fatalmente nos traem nessas horas, de muitos encontros fundamentais para as idéias que

formaram esse texto me faltou registrar o nome do interlocutor.

Portanto, fujo da formalidade de listar incontáveis nomes aqui e peço que se

considere devidamente “agradecido” (ou agradecida) quem chegar a ler esta versão,

lembrando que das montanhas de Chiapas aos territórios mapuche estão muitos

hermanos a quem gostaria de agradecer por participarem mesmo que inconscientemente

desta experiência. Estão aí também, na travessia desses territórios e nos tempos que por

aí se entrecruzam, aqueles a quem dedico esse esforço que me foi possível.

Minha exceção vai para a única pessoa que esteve presente em cada passo dessa

caminhada. Companheira, revisora, hermana, crítica, musa inspiradora, co-piloto... um

pouco Dulcinea del Toboso com sua formosura inigualável, um pouco Sancho Pança

com sua lealdade inabalável (e seus questionamentos impertinentes). Andreza, muito

obrigado.

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RESUMO

FERNANDES, Tiago Coelho. Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos

originários de Abya Yala. Orientador: Marildo Menegat. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS,

2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social).

A emergência política dos povos originários põe em questão não apenas as

interpretações tradicionalmente produzidas sobre esse sujeito, como as próprias

premissas que sustentam os Estados-nação latino-americanos, denunciando o caráter

colonial da utopia criolla da modernidade e da integração à “civilização ocidental”, no

momento mesmo em que esta buscava reafirmar-se enquanto paradigma através do

discurso neoliberal. A partir desse quadro, o objetivo deste trabalho é analisar a

emergência política dos povos originários de Abya Yala, buscando aprofundar a

compreensão, desde uma abordagem multidisciplinar, do significado político e teórico

dos movimentos sociais indígenas contemporâneos.

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ABSTRACT

FERNANDES, Tiago Coelho. Plebéias batalhas: Teoria crítica e ação política dos povos

originários de Abya Yala. Orientador: Marildo Menegat. Rio de Janeiro: UFRJ/ESS,

2009. Dissertação (Mestrado em Serviço Social).

The political insurgency of american indigenous people not only questions

tradicional interpretations about this subject, but also the foundations of latin american

nation-state. It denounces the colonial permanence in the criollo project of modernity

and integration to „occidental civilization‟ in the exact moment of its self determination

as a universal paradigma through neoliberal discourse.

The purpose of this work is to analyse this political presence, looking for a

deeper comprehension, from a multidisciplinary approach, of political and theoretical

meanings of contemporary indigenous social movements.

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ADVERTÊNCIA

Nomear este continente foi e continua a ser um problema teórico sem solução

definitiva, apesar de tratado por diversos ensaístas. A herança colonial, a diversidade

étnica e cultural, desafiam a construção da identidade desde os nossos primeiros passos.

E como veremos, continuam pendentes. Conseqüentemente, uma reflexão que tencione

desenvolver um aprofundamento crítico de nossa condição histórica deve revisar

também nome e sobrenome que homenageiam e vinculam ao colonizador.

Por entender que nomear foi uma forma de garantir a dominação, mas também

que a linguagem representa um campo de disputa, assimilamos nestas reflexões as

contradições que envolvem os nomes possíveis para este continente.

O termo América Latina me parece o mais infeliz para definir esta parte do

mundo, pois o eixo das leituras que alimentaram esta pesquisa aponta justamente para

sua “deslatinização”, enquanto o nome que resta não passa de uma homenagem

acidental a um indivíduo que pouco se relaciona com sua formação... Porém, é quase

impossível abolir ambos termos, sob risco de tornar-se ininteligível e puramente

excêntrico, além de desconsiderar as apropriações por que já passou, expressando uma

indentidade que se contrapõe à potência imperialista do norte. Ainda assim, América

latina e suas derivações aparecem pontualmente, e dou preferência às denominações

testadas em distintos contextos na perspectiva de afirmar essa identidade desde

formulações próprias, como Nuestra América de José Martí, a Pátria Grande referida

por Artigas, Indoamérica (que também é afro-mestiça), além, é claro, de Abya Yala,

adotada por movimentos indígenas de diversos países.

O sujeito analisado também tem sua nomeação revista. A palavra “índio” tende a

expressar o sentido pejorativo e só aparece em citações ou quando atribuída ao universo

branco-mestiço. Nas minhas elaborações, adotarei as expressões povos originários,

povos ou nacionalidades indígenas, consolidados pela maioria dos movimentos de que

tenho notícia. Vale lembrar que o termo “indígena” tem hoje um sentido mais geral,

sinônimo de “nativo”, conforme empregado pela ONU e outros fóruns internacionais.

Devo advertir ainda quanto às citações textuais que, sendo boa parte da

bibliografia e documentação consultadas disponíveis apenas em castelhano, foram

mantidas nesta versão conforme o original.

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ÍNDICE DE SIGLAS

AIDESEP Asociação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana

ALCA Área de Livre Comércio das Américas

APPO Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca

CAOI Coordenadora Andina de Organizações Indígenas

CAP Cooperativa Agrária de Produção

CCP Confederação Camponesa do Peru

CCRI Comitê Clandestino Revolucionário Indígena [EZLN-Méx]

CIDOB Central Indígena del Oriente Boliviano

CISA Conselho Indígena da América do Sul

CMPI Conselho Mundial de Povos Indígenas

CNA Confederação Nacional Agrária [Per]

CNTE Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação

COICA Coordenadora de Organizações Indígenas da Conca Amazônica

CONAP Confederação das Nacionalidades Amazônicas do Peru

CONAICE Confederação de Nacionalidades Indígenas da Costa Equatoriana

CONAIE Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador

CONACAMI Confederación Nacional de Comunidades del Perú Afectadas por la

Minería.

CONFENIAE Confederación de las Nacionalidades Indígenas de la Amazonia

Ecuatoriana

CPESC Coordenadora de Povos Étnicos de Santa Cruz

CSUTCB Confederação Sindical Única de Trabalhadores Camponeses de Bolívia

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x

CTM Central de Trabalhadores Mexicanos

ECUARUNARI

Ecuador Runacunapac Riccharimui (Do quechua: Despertar dos

Indígenas do Equador) - Confederação dos Povos de Nacionalidade

Kichua do Equador

EGP Exército Guerrilheiro dos Pobres [Gua]

EGTK Exército Guerrilheiro Tupac Katari

EPS Exército Popular Sandinista

EZLN Exército Zapatista de Libertação Nacional

FEINE Federação Evangélica Indígena do Equador

FEJUVE Federação de Juntas Vicinais

FIPI Frente Independente dos Povos Índios [Méx]

ICCI Instituto Científico de Culturas Indígenas

IIRSA Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana

FSLN Frente Sandinista de Libertação Nacional

MAS-IPSIP Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania dos

Povos

MIP Movimento Indígena Pachakuti [Bol]

MUPP-NP Movimiento de Unidad Plurinacional Pachakutik-Nuevo País

POUM Partido Obrero de Unificación Marxista

PRI Partido Revolucionário Institucional

SAIS Sociedades Agrícolas de Interesse Social [Per]

SINAMOS Sistema Nacional de Mobilização Social

THOA Taller [Oficina] de História Oral Andina

TLC Tratado de Livre Comércio

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TLCAN Tratado de Livre Comércio da América do Norte

UCEZ União de Comuneros Emiliano Zapata

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xii

SUMÁRIO

P.

PARTE 0 – O CAMINHO SE FAZ AO CAMINHAR 15

PARTE 1 – POVOS ORIGINÁRIOS EM MOVIMENTO.

I. Em que se relata a larga travessia de Alonso Quijano pelas longínquas

terras de Abya Yala, onde conheceu povos dos quais jamais tivera

notícia, achando fantástica a maneira como construíam sua luta,

reconstruindo diariamente sua memória.

26

I.1) Sobre a caminhada pela Selva Lacandona, que guardava muitas

histórias de um México profundo.

31

I.2) Em que se conhece um pouco da trajetória, da teoria e da prática

de um exército que transformaria as armas num meio para garantir as

palavras e que abdicaria da conquista do poder como estratégia.

33

II. Em que Dom Quixote passa por paisagens que o fizeram lembrar que era

o Cavaleiro de Triste Figura e encontra povos que primeiro vivenciaram a

experiência da autonomia e outros que deram um nome a esse continente

que insistem em chamar América.

44

III. No qual se relata a passagem a uma outra região onde, por caminhos

distintos, os povos originários também recusaram a morte pelo

esquecimento e construíam o amanhã a partir do seu ontem, desafiando as

constituições dos moinhos de vento institucionais que por duzentos anos

mediaram as relações de dominação e resistência nessas sociedades.

51

IV. Em que se relata ao Cavaleiro de Triste Figura o novo despertar dos

povos originários em território equatoriano.

52

V. “As linhas do muro brincavam com o sol; as pedras não tinham ângulos

nem linhas retas; cada qual era como uma besta que se agitava à luz;

transmitiam o desejo de celebrar, de correr por alguma pampa, lançando

gritos de júbilo”.

61

VI. Em que o engenhoso fidalgo conhece a rebeldia da plebe aimará que

povoa o altiplano boliviano e seus arredores.

68

VI.1) Matriz andina e matriz amazônica 71

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VII. Que serve para organizar as idéias, num esforço de síntese do que foi

visto, ouvido e sentido na travessia quixotesca por Abya Yala.

76

PARTE 2 – “DESENVOLVIMENTO É UMA VIAGEM COM MAIS

NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES” OU

UMA APOLOGIA DOS BÁRBAROS

I. Considerações iniciais. 79

II. O processo histórico da colonialidade e os ciclos de resistência indígena-

plebéia.

87

II.1) As rebeliões anticoloniais e a formação dos Estados “nacionais”. 88

II.2) A força dos da plebe andina (origens dos “métodos plebeus” no

Tawantisuyu).

90

II.3) A matriz do nacional-popular no México. 94

II.4) Do assalto ao céu ao saque de terras. 98

II.5) O ciclo de crise das repúblicas liberais 102

II.6) Tempestades nos Andes 102

II.7) Uma revolução indígena no México? Zapata e a Comuna de

Morelos.

105

II.8) Revolução, modernismo e indigenismo. 109

II.9) Um novo Pachakuti? 112

PARTE 3 – ENSAIO SOBRE A FORMA-COMUNA

I. Apresentação 121

II. A forma comuna na história 126

II.1) Uma matriz para pensar a comunidade-comuna. 126

II.2) A revolução fundamental na Rússia. 129

II.3) A revolução espanhola e a difusão da comuna. 131

II.4) Um esboço de síntese teórica da comuna no contexto europeu. 132

III. Abya Yala: da comunidade à comuna? 134

III.1) A comunidade originária em Abya Yala 135

III.2) A chave andina para a síntese teórica da experiência da comuna

em Abya Yala

138

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III.3) Os movimentos societais contemporâneos e o ressurgimento da

comuna: da resistência à revolução?

143

III.4) Bases para uma democracia comunitária no altiplano andino 144

III.5) EZLN e os caminhos da autonomia 146

III.6) A comuna de Oaxaca 149

IV. Sete teses para uma práxis comunitária 150

PARTE 4 – OLHAR O PASSADO PARA CAMINHAR PELO PRESENTE

E O FUTURO

153

I. As principais reivindicações 154

II. Movimentos como forças criadoras 155

III. Dilemas e ameaças para os movimentos indígenas 156

III.1) O discurso da reação 157

III.2) Desencontros e encontros 158

III.3) O desafio do progressismo 164

REFERÊNCIAS 167

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Parte 0 – O caminho se faz ao caminhar

Dedicar-se aos estudos desta região que se convencionou chamar América latina

continua sendo um exercício permanente de enveredar por temas e problemas que

ecoam em diferentes momentos históricos, ainda que sob novos matizes, repensando

permanentemente sujeitos e processos que assumem por aqui dinâmicas alheias a

modelos pré-estabelecidos. Não raro as questões iniciais se entrelaçam num fio de

novelo que leva a refletir sobre nossa condição, tornando recorrentes as metáforas de

espelhos e labirintos.

Um desses campos temáticos se relaciona com as sociedades anteriores à

conquista européia e os povos que delas descendem. Por muito tempo tido como

resquício pitoresco e folclórico do passado, fadado à sobrevivência apenas em museus e

datas comemorativas ou “utopia arcaica” (LLOSA, 1996) a ilustrar projetos estéticos e

políticos, o “índio” irrompeu em fins do século XX recusando de maneira contundente a

condição de objeto (de estudos e de políticas públicas), recriando a partir de termos

próprios seus marcos identitários e impondo seu papel protagônico nos espaços políticos

e teóricos em vários países e fóruns internacionais.

“Até recentemente estes indigenatos eram vistos pelos estudiosos como

meros campesinatos que ainda opunham resistência a uma assimilação

que parecia inexorável. Acreditava-se que com uma boa reforma agrária,

alguma assistência educacional e também com a ajuda das práticas

insidiosas do indigenismo eles deixariam da mania de serem índios para

se fazerem bons cidadãos peruanos, bolivianos, guatemaltecos e

mexicanos.” (RIBEIRO, 1986, p. 130)

Assim, o novo despertar dos povos originários, põe em questão não apenas as

leituras tradicionalmente produzidas sobre esse sujeito, como as próprias premissas que

sustentam os Estados-nação latino-americanos, denunciando com sua práxis o caráter

colonial da utopia criolla da modernidade e da integração à “civilização ocidental”, no

momento mesmo em que esta buscava reafirmar-se enquanto paradigma através do

discurso neoliberal. Portanto, essa irrupção questiona também os termos da

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“globalização” celebrada no início dos anos 90 como forma última do pós-guerra “fria”

(e de muitos outros “pós” que então se buscavam afirmar). Recorramos então à

conhecida metáfora: “Los indígenas se han transformado en estos años en una suerte de

espejo de la sociedad latinoamericana, donde esta se ve deformada.” (BENGOA, 2000,

p. 12).

Vista retrospectivamente desde terras americanas, a década passada pode ser lida

como a da emergência indígena, cujos primeiros desdobramentos apenas começam a ser

vistos. “É como se, a um sinal só inteligível para eles mesmos, todos começassem a

reclamar e a se auto-afirmar com a maior veemência.” (RIBEIRO, 1986, p. 125). No

contexto de crepúsculo da classe operária e de derrotas históricas das esquerdas, o

surgimento de um sujeito capaz de sintetizar demandas gerais e retomar o debate sobre

os projetos de nação merece uma investigação aprofundada.

Compreender esse fenômeno, analisando suas conseqüências, é o que motiva

este trabalho. Seria pretensioso demais acreditar no sucesso completo da empreitada,

pois além dos limites inevitáveis de uma dissertação de mestrado, por um pesquisador

que apenas começa a se aventurar nas trilhas do ofício, estão as barreiras bibliográficas,

culturais, editoriais, informativas, burocráticas, acadêmicas e de toda espécie que

separam o Brasil daquela que se entende por Nuestra América. Ainda assim, espero que

seja possível um balanço positivo dessas aproximações iniciais, tanto pelo exercício de

propor questões e análises pertinentes, como pela possibilidade de tentar traduzir para o

ambiente brasileiro alguns debates que, apesar da importância que tem atualmente em

territórios vizinhos, têm sido tratados por aqui não mais que esporádica e

tangencialmente.

Sem que esta fosse uma deliberação inicial, creio ter me aproximado da proposta

de mapeamento cognitivo, elaborada por Jameson para o desafio de representar o

mundo contemporâneo em sua extrema complexidade, “... de tal modo que nós

possamos começar novamente a entender nosso posicionamento como sujeitos

individuais e coletivos e recuperar nossa capacidade de agir e lutar, que está, hoje,

neutralizada pela nossa confusão espacial e social”. (JAMESON, 2004, p. 79)

A partir da dimensão política de alguns movimentos indígenas, desenvolveu-se

nos últimos anos um debate teórico-político que ganha vulto no continente. As

possibilidades da resistência às diretrizes da dominação são invariavelmente marcadas

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pelo desenrolar dos conflitos e as perspectivas de acomodação ou construção de

alternativas, das quais os povos indígenas se tornaram sujeitos políticos protagônicos.

Em um país como o Equador, de espaços acadêmicos restritos, o volume de

publicações sobre os indígenas tornou-se onipresente a ponto de a temática indígena ser

acusada de obscurecer outros temas importantes. “La explicación está, por supuesto, en

el vínculo indisoluble que liga la „cuestión indígena‟ al „problema nacional‟.”

(PERALTA; CAZAR, 2003, p.10)

No México, por sua vez, o zapatismo ganhou a proporção de considerável

fenômeno midiático, com evidente reflexo na qualidade e abordagem de publicações e

pesquisas acadêmicas sobre a “questão indígena” após o levante de 1994. Conforme

indica Guilherme Gitahy de Figueiredo em sua dissertação de 2003, logo nos primeiros

meses o tema dera origem a dezenas de livros, artigos e compilações de documentos

como dificilmente fora visto antes. (FIGUEIREDO, 2003, p. 27)

Por outro lado, com exceção do zapatismo, que influenciou alguns círculos de

intelectuais e militantes, instigando algumas pesquisas acadêmicas, no Brasil os

movimentos indígenas aparecem ainda como uma referência longínqua e genérica, já

que inevitável quando se analisa os conflitos que marcaram o continente na última

década. Nesse sentido é importante que a academia brasileira rompa com as tendências

ao auto-referenciamento e ao recurso exclusivo às matrizes européias de pensamento,

abrindo-se à reflexão a partir da realidade do continente e tomando parte nos debates

que marcam a geração contemporânea de intelectuais e pesquisadores nos demais países

americanos. Espero com este trabalho dar um passo inicial nesse sentido, atento a uma

tendência esporádica, mas recorrente em nossa tradição intelectual.1 Vale mencionar

que esse esforço de retomada se dá num momento propício pelo crescente interesse,

acumulado nos últimos anos, pelos temas de Nossa América.

A partir desse quadro, o objetivo deste trabalho é analisar a emergência política

dos povos originários, buscando compreender o significado político e teórico dos

movimentos sociais indígenas contemporâneos. Algumas questões que orientaram a

investigação e foram sendo desenvolvidas no caminho, são refletidas na distribuição e

1 Refiro-me à projeção continental de uma série de intelectuais, de Manoel Bomfim no início do século

XX, às experiência de Teoria da Dependência nos anos 60 e 70, passando pelo pensamento de Darcy

Ribeiro, Celso Furtado, apenas para mencionar alguns dos que adotaram a Nossa América como

campo de reflexão.

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estruturação do texto. Qual o ponto de partida desses movimentos, seus conceitos, suas

perspectivas? Porque o camponês se torna indígena? O que marca a virada da noção de

índio como um estigma para a identidade de povos originários como um marco

positivo? Como essas idéias se embatem com a noção liberal de Estado-nação e afetam

a conformação histórica das sociedades americanas? É possível vislumbrar uma práxis

contra-hegemónica a partir do núcleo organizativo comunitário?

Na perspectiva que assumo, essas temáticas estão permeadas pelo debate da

inserção de Abya Yala na modernidade capitalista e as formas de dominação e

resistência gestadas sobre ou desde os povos do continente. Nesse campo, há um amplo

debate a ser empreendido, reexaminando desde uma perspectiva crítica e das classes

subalternas, os fundamentos dos Estados latino-americanos e da idéia de nação,

fundados no paradigma europeu; assim como a noção liberal e individualista de direito

ou a pretensão universalista, embora igualmente individualista, de direitos humanos.

Inserido no contexto de resistência das classes subalternas ao atual padrão de

acumulação capitalista, o renascer contemporâneo dos povos originários traz uma série

de elementos distintivos, tanto de processos anteriores, como de outros movimentos

sociais contemporâneos. No primeiro caso, podemos mencionar o referido

protagonismo teórico e político dos próprios povos indígenas, superando mesmo os

mais radicais enfoques indigenistas2 e potencializando uma crítica prática3 da sociedade

contemporânea, que certamente enriquece as alternativas a serem construídas.

Comparando a outros movimentos sociais, sobressaem outros elementos além da

etnicidade, que imprimem aos movimentos indígenas uma dinâmica distinta à dos

chamados novos movimentos sociais, das décadas de 1960 e 70.4 O primeiro é que em

diferentes países, de maneiras diversas, esses movimentos se colocaram diretamente no

debate sobre a questão do poder. Com origens e conceitos distintos, pautados pelos

conflitos locais e pelas particularidades de cada Estado, os lancandones, choles,

tzetltales e tojolobales zapatistas; os quéchuas e aimarás do altiplano, de Cochabamba

2 O indigenismo se caracteriza por uma corrente de pensamento ou um conjunto de políticas favorável

aos indígenas, mas sem a sua participação direta. Segundo Henri Favre, esse movimento ideológico

atravessa a história do continente e recorre o conjunto da sociedade. (FAVRE, 2007) Nesse sentido, o

termo é amplo o bastante para incluir desde um Frei Bartolomé de las Casas, considerado seu

fundador, às diretrizes de um determinado governo, sendo o México pós-revolucionário sua expressão

mais conhecida. 3 Ver as Teses sobre Feuerbach (MARX, 1998, p. 99)

4 Entre os quais estão os movimentos negro, feminista, ecologista, de homossexuais.

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ou de El Alto; os quéchuas, chachi e shuar reunidos na CONAIE enfrentaram e estão

buscando construir as respostas quanto às alternativas possíveis diante dos poderes

constituídos. Assim, o próprio tema da identidade étnica extrapola os termos dos

multiculturalismos pós-modernos, assumindo uma dimensão conflituosa que as leituras

fragmentárias dificilmente dão conta. Outro fator distintivo é que, por sua conformação

histórica e por outros elementos que precisam ser mais bem investigados – podemos

inicialmente apontar o papel da intelectualidade indígena – algumas expressões dos

movimentos atuais articulam um discurso nacional que desafia os conceitos tradicionais

de nação e suas expressões no contexto latino-americano. Além disso, cabe destacar a

temporalidade e a territorialidade recriadas desde o âmbito comunitário, atravessando

esses embates como eixos articuladores da resistência popular-indígena.

O olhar de conjunto se justifica, não apenas pelo lugar de onde fala o

pesquisador, limitado no contato direto com os sujeitos estudados, mas a partir da

observação, de dinâmicas comuns entre movimentos indígenas, tanto em escala regional

(Andes, Mesoamérica, Amazônia...), como no âmbito continental, sustentada em

autores como José Bengoa, Anibal Quijano, Rodrigo Montoya, Miguel Bartolomé,

Héctor Diaz-Polanco, Rodolfo Stavenhagen, Xavier Albó, apenas para mencionar

algumas referências constantes deste trabalho. Com essa abordagem, tampouco

pretendo ofuscar especificidades étnico-culturais, tão caras ao discurso autolegitimador

dos movimentos sociais, já que a afirmação da diferença é inegavelmente uma de suas

motivações básicas. Mas abstenho-me de certas tarefas para as quais os pesquisadores e

intelectuais conterrâneos certamente tratam com mais elementos.5

A redação final se estruturou em quatro partes, que a princípio não seguem uma

ordem lógica e diferem também no formato. No entanto, espera-se que ao final esteja

claro o sentido complementar das reflexões desenvolvidas.

Na primeira parte será apresentado um panorama dos movimentos sociais

indígenas no continente. Observando a trajetória das últimas décadas, pretende-se lançar

luz sobre as dimensões teórica e política da emergência dos povos originários na

América contemporânea. Nesse sentido, se prescindirá dos estudos de caso específicos,

5 Para evitar uma enumeração que seria inevitavelmente parcial, remeto às coletâneas organizadas por

Dávalos (2005); Montoya Rojas (2008); Escárzaga e Gutiérrez (2006). Um levantamento nos números

do Observatório social da América latina, editado pelo Clacso também fornece um panorama de

análises sobre cada país.

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com os quais buscarei dialogar através da bibliografia sobre as regiões referidas. Serão

focadas as condições de formação dos movimentos contemporâneas, bem como suas

organizações, discursos, conceitos e bandeiras que articulam. Esses conceitos serão

apresentados não apenas como parte das características de um objeto de estudo, mas

compõem o quadro teórico com o qual buscarei dialogar para a análise desses

movimentos.

Optou-se nessa parte por um estilo narrativo fora dos cânones acadêmicos. O

objetivo do recurso narrativo, sustentado em metáfora quixotesca, pretende ir além de

uma proposta estética alternativa.6 Inicialmente, busca-se colocar em primeiro plano o

discurso dos movimentos e a leitura acumulada pelos próprios em relação à sua

experiência. Ademais, há a intenção inicial de situar-me na discussão do universo

teórico coerente para a interpretação da realidade latino-americana e a dialogar com

alguns autores que foram fundamentais na busca de ferramentas para esse esforço

analítico.

O peruano Aníbal Quijano tem orientado seus estudos para as questões da

colonialidade do poder subjacente às relações sociais de uma região que “foi tanto o

espaço original como o tempo inaugural do período histórico e do mundo que ainda

habitamos.” (QUIJANO, 2005, p. 9) Suas reflexões aprofundam a crítica ao dualismo

estrutural, assimilando os aspectos culturais da dominação (sem abrir mão de outros

aspectos, notadamente os políticos) e desenvolvendo um debate caro ao pensamento

social latino-americano, identifica a imbricação de estruturas que marca as tensões

constitutivas das formações sociais americanas, tanto em suas composições internas

quanto nos mecanismos de inserção ao sistema capitalista.7 A metáfora quixotesca tem

aí um ponto forte de suas múltiplas leituras possíveis. “Esta é, para nós, latino-

americanos de hoje, a maior lição epistêmica e teórica que podemos aprender de Dom

Quixote: a heterogeneidade histórico-estrutural, a co-presença de tempos históricos e de

fragmentos estruturais de formas de existência social, de vária procedência histórica e

6 Escuso será insistir que as citações e referências bibliográficas, mesmo que atribuídas a determinados

personagens, são adotadas rigorosamente. 7 A influência de José Carlos Mariátegui em Quijano é direta e pode-se dizer sem nenhum demérito

que parte de sua obra busca desenvolver as interpretações do fundador do marxismo indoamericano.

Por outro lado, com sua trajetória inicial associada aos debates em torno da Teoria da Dependência,

pode-se notar nas formulações sobre a colonialidade do poder a busca de um aprofundamento de

conceitos como o colonialismo interno adotado por Pablo Casanova ou de sociedades abigarradas

conforme expressa Zavaleta Marcado. (Ver TEVES, 2002)

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geocultural, são o principal modo de existência e de movimento de toda sociedade, de

toda história.” (ibidem, p. 14)

Essa particularidade deve, portanto, ser assimilada às análises da condição

americana, superando o eurocentrismo que distorce a compreensão dessa realidade, bem

como opera a cavalaria na visão quixotesca. Nesse quadro, se expressa a colonialidade

do poder, que torna este continente cenário de encontros e desencontros entre

experiência, conhecimento e memória histórica.

Desse descompasso derivam alguns fantasmas que rondam o enigma de Nossa

América: a identidade, a modernidade, a democracia, a unidade e o desenvolvimento.8

Pois o avanço da modernidade se perpetuou com a “repressão material e subjetiva” dos

descendentes dos diversos povos e culturas que ocupavam a região antes da chegada da

conquista européia, e desde então foram sistematicamente submetidos “à condição de

camponeses iletrados, explorados e culturalmente colonizados e dependentes, isto é, até

o desaparecimento de todo padrão livre e autônomo de objetivação de idéias, de

imagens, de símbolos. Em outros termos, de símbolos, de alfabeto, de escritura, de artes

visuais, sonoras e audiovisuais.” (ibidem, p. 16) Tal processo pôde ser aprofundado com

as derrotas da revolução haitiana (iniciada em 1803) e da rebelião de Tupac Amaru e

demais lutas populares anticoloniais, cujas respectivas ondas repressivas abriram

caminho para o advento de regimes pós-independência fundados na colonialidade do

poder, que atua através do ocultamento sociológico dos “povos sem história”: índios,

negros, mulheres, mestiços ou qualquer não-europeu.

No entanto, Aníbal Quijano observa que todo o esforço de negar, ou mesmo

suprimir a permanência de identidades não-européias não era suficiente para dar conta

da imensa maioria da população do continente. Consequentemente, a identidade latino-

americana tornou-se um terreno de conflitos ainda pendentes, como têm demonstrado os

movimentos indígenas ou os afro-descendentes que, no limiar do século XXI puseram

em questão o padrão de colonialidade do poder que orienta a racionalidade dominante e

as relações sociais e legitima o projeto de Estado-nação que perdura por 200 anos.

8 Vale lembrar que ainda nos primeiros passos de vida independente, Simon Bolívar registraria em seu

pensamento contraditório a complexidade em definir uma identidade que capaz de dar conta do

projeto nacional em Abya Yala: “Por outra parte, não somos índios nem europeus, mas uma espécie

intermediária entre os legítimos proprietários do continente e os usurpadores espanhóis: em suma,

sendo americanos por nascimento e nossos direitos os da Europa, temos de disputar estes aos do país e

mantermo-nos nele contra a invasão dos invasores – encontramo-nos, assim, na situação mais

extraordinária e complicada.” (BOLÍVAR, 1983, p. 79-80)

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“É bom, pois, é necessário que Dom Quixote cavalgue de novo para

desfazer agravos, que nos ajude a desfazer o agravo de partida de toda a

nossa história: a armadilha epistêmica do eurocentrismo que há

quinhentos anos deixa na sombra o grande agravo da colonialidade do

poder e nos faz ver somente gigantes, enquanto os dominadores podem

ter o controle e o uso exclusivos de nossos moinhos de vento.” (idem)

O equatoriano Bolívar Echeverria interpreta a condição indígena a partir do ato

de re-identificação que conduz o romance de Cervantes. Partindo da leitura de

Unamuno sobre a necessidade de “reencantamento do mundo”, observa na loucura que

leva Alonso Quijano a travestir-se de Dom Quixote uma estratégia de sobrevivência

diante da vitória do pragmatismo mercantil que se vislumbrava, atitude que contrasta

com a de sua sobrinha Antonia.

No es para huir o escapar de la realidad, sino al contrario para 'liberarla

del encantamiento' que la vuelve irreconocible y detestable, que Alonso

Quijano se convierte en Don Quijote; no es para anularla sino para

rehacerla y revivirla, para 'desfacer el entuerto' que se le hace a toda hora

cuando se la reduce a la realidad mortecina del entorno de Antonia

Quijana. (ECHEVERRÍA, 2006, p. 2-3)

Echeverría recupera o barroco como chave interpretativa de uma atitude que

considera homóloga à de Alonso Quijano/Dom Quixote por parte dos povos indígenas

sobreviventes ao genocídio da conquista, já desde o século XVII. A arte barroca se

destaca pelo seu peculiar ornamentalismo, que expressa uma profunda teatralidade, que

se desvincula de finalidades alheias e se torna um fim em si própria. Segundo Adorno,

destacar o aspecto decorativo do barroco é insuficiente, pois sua função decorativa

torna-se absoluta, intransitiva. Bolívar Echeverría segue as observações de Adorno,

destacando a teatralidade onde o alemão escreve decoração. E o que faz com que essa

teatralidade barroca seja absoluta? A resposta estaria em Dom Quixote e sua “estratégia

melancólica de transcender a vida”. (ibidem, p. 7) Para o Cavaleiro de Triste Figura, a

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“consistência imaginária do mundo transfigurado poeticamente” (idem) passou a ser

muito mais fundamental do que o mundo real do império espanhol, mundo movido pela

necessidade do ouro e baseado na força das armas.

Para o filósofo equatoriano, o ethos barroco se gestou e se desenvolveu no

espaço americano mais do que como uma “cópia criativa” da arte européia, mas como

um elemento constitutivo da cultura própria das classes baixas das cidades mestiças nos

séculos XVII e XVIII. O barroco aparece como uma estratégia de sobrevivência ao

extermínio do século da conquista,

Una vez que las grandes civilizaciones indígenas de América habían sido

borradas de la historia, y ante la probabilidad que dejó el siglo XVI de

que la empresa de la Conquista, desatendida ya casi por completo por la

corona española, terminara desbarrancándose en una época de barbarie,

de ausencia de civilización, esta población de indios integrados como

siervos o como marginales en la vida citadina virreinal llevó a cabo una

proeza civilizatoria de primer orden. (ibidem, p. 8)

É por aí que Echeverría vê o encontro entre Alonso Quijano e os índios, em

ambos, a resposta ao desencantamento de um mundo que se torna “irreconhecível e

detestável” origina essa melancólica estratégia de sobrevivência, loucura para alguns,

que caracteriza a “posta em cena absoluta” do barroco. Vale lembrar ainda que a tensão

vivida pelo personagem de Cervantes e pelos habitantes originários do continente é

contemporânea, ocorre em um mundo que ambos os intelectuais aqui utilizados insistem

em caracterizar como formado no âmbito da constituição da modernidade capitalista e,

portanto, dela indissociável.

No entanto, diferentemente da ação transitória de Alonso Quijano que, pelos

olhos de Dom Quixote transfigura a miséria do mundo para suportá-lo, “la estancia de

los indios citadinos de América en ese otro mundo soñado, tan extraño para ellos, el de

los europeos, que los salva también de su miseria, es una estancia que no termina.”

(ibidem, p.12) Ao contrário, permanecem e se fundem nessa situação, tornando-a aos

poucos em seu mundo real. Nessa representação estaria a origem das formas culturais e

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expressões artísticas que marcam a América Latina até os dias atuais. De nossa sempre

crítica identidade e suas permanentes contradições, poderíamos dizer.

Essa leitura permite analisar os indígenas em sua condição subalternizada para

além da situação de vítimas, mas como sujeitos que atuaram e atuam de maneira

contraditória na disputa pela constituição das formações sociais latino-americanas.

Apesar de seguirem trilhas distintas, os “Quixotes” de Aníbal Quijano e Bolívar

Echeverria podem ser lidos de maneira complementar para auxiliar a compreender a

permanência ao longo de nossa história e emergência recente dos povos indígenas, bem

como algumas questões que os derivam de sua condição.

Assimilo também as provocações de Carpentier que no prólogo a El reino de

este mundo apresenta o “real maravilhoso” para além de uma escola literária, refletindo

os desafios de apreender a realidade latino-americana. O escritor cubano contrasta as

expressões vivas do maravilhoso, observadas nas ruas de cidades haitianas, com a

superficialidade do fantástico “obtenido con trucos de prestidigitación” a que se reduziu

a literatura de uma Europa dominada pela racionalidade científica burguesa.

(CARPENTIER, 2005, p. 9-16).

Creio ser válido estender-me na apresentação desses autores não apenas pelo

diálogo que conduziu à proposta de elaboração da primeira parte, mas porque esses e

outros conceitos derivados de suas análises serão aproveitados em outros momentos

desta dissertação.

Algumas dessas considerações teóricas são aprofundadas na segunda parte,

ainda que não se mantenha a forma “cervantiana” de narrativa. Da análise conjuntural

dos movimentos indígenas passaremos à interpretação de Abya Yala, na pista já

indicada acima, quanto à natureza de sua inserção no projeto da modernidade. Com o

exercício do olhar sobre a longa duração, busca-se analisar criticamente a condição dos

povos originários a partir de sua inserção na modernidade capitalista.

A ampliação do raio de análise se fundamenta na memória ainda presente e

constantemente disputada e recriada, especialmente pelos povos originários, quanto ao

significado dessa jornada de quinhentos anos, suas lutas e os sujeitos que interagiram

nas formações sociais daí engendradas.

São três as questões centrais que servem de fio condutor dessa parte do estudo.

O lugar da América no desenvolvimento do capitalismo ou, nos termos que venho me

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pronunciando, o desenvolvimento capitalista visto desde Abya Yala; a condição

indígena nesse processo de desenvolvimento; as formas de ação e expropriação do

capitalismo e os mecanismos tradicionais e contemporâneos de intervenção imperialista,

sempre observados pela dinâmica dominação/resistência.

A terceira parte busca tratar, em tom um tanto quanto ensaístico da referida

questão da memória que motiva a resistência e re-existência indígena. A comunidade,

núcleo organizativo real ou imaginário dos atuais movimentos indígenas, serve de ponte

para uma reflexão sobre a dinâmica da resistência dos grupos subalternizados.

Observando-se a “forma-comuna” ao longo da história, nota-se que tradições muitas

vezes submersas em modos de vida aparentemente desenraizados (o ethos barroco?) são

reativadas e recriadas em processos de conflitividade.

Na parte conclusiva, buscarei sintetizar os temas apresentados ao longo do texto,

desenvolvendo alguns elementos de balanço, traçando um panorama dos desafios e

possibilidades acumulados na situação atual. Cerca de vinte anos após o início do ciclo

de lutas contemporâneas dos povos originários de Abya Yala, é possível iniciar uma

avaliação crítica dessas experiências.

Comecemos então a jornada, que espero ser ao menos agradável e algo

elucidativa a leitores reais, potenciais e imaginários.

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Parte 1 – Povos originários em movimento.

I. Em que se relata a larga travessia de Alonso Quijano pelas longínquas

terras de Abya Yala, onde conheceu povos dos quais jamais tivera

notícia, achando fantástica a maneira como construíam sua luta,

reconstruindo diariamente sua memória.

Alonso Quijano recém acordava de um sono de quase quatrocentos anos, quando

viu uma multidão de tonalidade plebéia descer de todos os lados à praça onde se

encontrava. Não conseguia identificar se era um carnaval ou um motim, logo percebeu

que apesar de parecer um pouco de ambos, diferia de tudo que tinha lembrança. A urbe

exclamava assustada que eram índios habitantes da Selva Lacandona e que sua

passagem pela cidade costumava ser dispersa, para a venda de artesanatos ou para o

assentamento nas zonas periféricas, mas aquilo fugia aos padrões. Entretanto, o

sobressalto dos citadinos, sobreposto pelo movimento que se acumulava na praça

central e adjacências daquela cidadezinha que lhe parecia familiar, aumentou o

atordoamento daquele homem que achava já ter visto de tudo.

E qual não foi seu espanto ao observar a maré humana, entre gritos e cantos cuja

língua lhe soava totalmente estranha, enlaçar e derrubar a estátua imponente que

ocupava a praça central e parecia controlar toda a cidade com os olhos. Em poucos

minutos não sobraram mais que uma miríade de cacos do nobre portador de antigas

insígnias reais.

O fidalgo natural de La Mancha pouco entendia, mas tentava reter o máximo de

detalhes. Foi quando se sentou ao seu lado um ancião que viera com aquela gente de

pele morena. Sua roupa parecia estranha, mas encantadora pelo colorido; o sotaque

atrasava a comunicação. A verdade é que também se interessara por aquela figura

estranha que a tudo observava pasmado, mas que certamente não era nem morador da

cidade nem um mero turista. Logo se apresentaram e o velho Antônio, percebendo a

angústia do visitante, começou a explicar o que se passava.

Advertiu a Quijano ser dia doze de outubro, que o calendário dos poderosos

celebrava como “Dia da Raça” ou da “Hispanidade”, pois nesta data um indivíduo a

serviço da coroa espanhola chegou a estas terras que depois chamaram América e,

acreditando ter descoberto um mundo novo, declarou a posse sobre ele e seus habitantes

em nome de seus senhores na Europa. Crendo-se plenamente legitimados por esses atos

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e abençoados por seu Deus, vieram outros, sempre buscando extrair o máximo de

riquezas e dizendo atuar em nome de algum rei de terras longínquas. A estátua

derrubada era de Diego de Mazariegos, conquistador daquela região e fundador da

cidade que hoje é San Cristóbal de Las Casas, Chiapas, México, onde ora se

encontravam. Pois aquele não era qualquer doze de outubro, mas o do ano de 1992, ou

seja, naquele dia completavam-se 500 anos daquele ato que os senhores de então e de

hoje chamaram descobrimento e comemoram com toda pompa.

Antes que o interlocutor imaginasse que os eventos que testemunhava eram parte

das festividades do “dia da raça”, o ancião explicou que os que estavam ali eram o outro

lado da história, que nunca era contado nem ouvido por pouco que se subisse nas

escalas de poder que estruturam essa sociedade. Que estavam ali pra mostrar que tinham

uma outra experiência daquela história a ser contada com suas próprias vozes, sempre

ignoradas. Que não aceitavam simplesmente ser convidados para a festa, para que se

exaltassem o lado folclórico de índios abstratos incorporados ao ideário nacional,

enquanto na realidade contemporânea lhes era reservado o desprezo. Que derrubavam

aquela estátua, não só por que ela homenageava um personagem infame para os homens

e mulheres de milho, mas porque o tal Diego foi um dos fundadores do mau governo

que até hoje serve à classe que controla a apropriação de riquezas.

“Desde nuestra perspectiva, la invasión iniciada en 1492 y el régimen de

explotación y opresión que se instauró, no han concluido: siguen vigentes

no sólo en relación con los pueblos indígenas sino también con el

conjunto de las sociedades nacionales, pero también está vigente la

resistencia y la lucha de nuestros pueblos por conquistar la libertad.”

(CIFUENTES, 1993, p. 141)

O seu calendário marcava portanto uma data diferente do calendário dos

poderosos naquele mesmo dia, sem festas, mas com protestos e chamados à reflexão

sobre o que alguns preferiam chamar “encontro de mundos”, ainda que para os povos

originários prevaleça o desencontro e, portanto, a necessidade de estabelecer desde

então o dia da resistência.

“Que nuestra lucha no es un mero reflejo coyuntural por la recordación

de los 500 años de opresión, que los invasores, en contubernio con los

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gobiernos „democráticos‟ de nuestros países quieren convertir en hechos

de celebración y júbilo. No obstante, los pueblos, nacionalidades y

naciones indias estamos dando una respuesta combativa y comprometida

para rechazar esta „celebración‟, basada en nuestra identidad, la que debe

conducirnos a una liberación definitiva.” (CIFUENTES, 1993, p. 138)

Quijano começava a entender um pouco do que se passava e admirava-se das

razões que moviam aquele povo. Quis saber por que disseram ser eles de milho, ao que

explicou o velho Antônio que era de milho aquela gente de pele morena porque

descendia dos que habitavam esta terra muito antes de Diego e dos seus. E relatou que

em tempos imemoriais, quando só existiam o céu e o mar em calmaria, Tepeu e

Gucumatz se reuniram e criaram a terra, os vales e as montanhas, com seus guardiões,

os animais quadrúpedes e as aves. Mas depois de darem vida às mais diversas fauna e

flora, sentiram falta de um ser que tivesse o dom da palavra para invocar e adorar a seus

criadores. Na primeira tentativa, utilizaram a terra como matéria-prima para fazer o

homem. Mas logo viram que não funcionaria, pois desmanchava, não se movimentava,

não tinha força, caía, não podia se molhar, não mexia a cabeça, tinha a vista tapada, não

podia caminhar e nem se multiplicar. Então, depois de muitas consultas, outras

tentativas para ver como podiam aperfeiçoá-lo e inúmeros conflitos entre os deuses,

foram criados e formados os primeiros homens que eram pais e mães.

“A continuación entraron en pláticas acerca de la creación y la formación

de nuestra primera madre y padre. De maíz amarillo y de maíz blanco se

hizo su carne; de masa de maíz se hicieron los brazos y la pierna del

hombre. Únicamente masa de maíz entró en la carne de nuestros padres,

los cuatro hombres que fueron creados.” (GARZA, 1992, p. 62)

E explicou que aqueles que chegaram de fora a tudo nomeavam, sem perguntar

se já tinha algum nome, pois essa era uma maneira de reafirmar a conquista.9 E aos

habitantes que já tinham aqui suas sociedades estruturadas, simplesmente denominaram

“índios”, porque os primeiros que chegaram com a expedição de um tal Colombo

pensaram estar nas Índias, seu objetivo inicial. Não se deram conta nem de quão longe

9 O “furor nominativo” de Colombo, descrito por Todorov (1999, p. 33), seria portanto mais que uma

característica pitoresca de um personagem nesta história.

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estavam dessa rota, nem da diversidade de povos e culturas que coloriam estes

territórios.

Logo, nenhum Mazariegos, Colombo ou Cabral era descobridor de coisa

nenhuma, pois o máximo que fizeram foi cobrir de panos e escravizar os antepassados

dos que ali se manifestavam contra aquele doze de outubro e tudo que ele representava,

porque não viam nada que celebrar, mas entendiam ao contrário que já era hora de

contar sua história, contraposta à história de seus opressores, pois só assim teriam força

e compreensão para resistir às opressões atuais.

Dessa maneira, aquelas ações eram motivadas pela disputa da memória e das

leituras possíveis da larga trajetória de um território e suas gentes que há cinco séculos

foram abruptamente integrados, na condição periférica e subordinada, à modernidade

capitalista, no processo de sua própria gestação.

***

Das muitas datas de protestos, conferências e insurreições, esse 12 de outubro

pode ser tomado como um marco inicial de um novo ciclo de lutas indígenas. Naquela

jornada convergiram organizações e movimentos de todo o continente, alguns ainda em

estruturação, outros já com alguma projeção política, anunciando a consolidação de uma

nova consciência da condição indígena, que se alojaria no centro do debate político

latino-americano nessa virada de século: “Ahora estamos plenamente conscientes de

que nuestra liberación definitiva solo puede expresarse como pleno ejercicio de nuestra

autodeterminación (...). Sin autogobierno indio y sin control de nuestros territorios no

puede existir autonomía.” (CIFUENTES, 1993, p. 138)

Dois anos antes, o Primeiro Encontro Continental de Povos Índios, no Equador,

lançara a “Campanha Continental 500 Anos de Resistência Indígena e Popular” em

resposta às comemorações oficialistas que já se começavam a organizar e refletia o

acúmulo de propostas de diversos movimentos até então, bem como a dimensão

continental da luta indígena. Na já citada Declaração de Quito, aparecem noções que

seriam eixos dos conflitos de toda a década seguinte.

A afirmação enquanto povos e nacionalidades com direito à autodeterminação é

colocada como prioritária, o que traz para o primeiro plano a disputa em torno da

territorialidade afirmada como unitária e incontestável por parte dos Estados atualmente

constituídos e as reordenações implicadas nas demandas dos povos originários. A luta

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pela reforma agrária é atualizada de seus termos tradicionais e inserida nessa concepção

territorial mais ampla, com a reivindicação dos espaços comunais e a defesa dos

recursos naturais ante a exploração pelas transnacionais. O documento rechaça políticas

parciais, identificadas com o integracionismo, etnodesenvolvimento, que podemos

identificar genericamente como indigenismo, bem como destaca a luta pela educação

bilíngüe intercultural como parte da luta pela descolonização. (CIFUENTES, 1993, p.

138-143)

Quanto aos caminhos para conquistar essas demandas, aponta a necessidade da

luta por direitos em um projeto político próprio “que nos posibilite una lucha organizada

y contribuya a la transformación de la sociedad dominante y la construcción de un

poder alternativo” (idem, 143), pois os marcos jurídicos nacionais atuais, frutos de

processos coloniais e neocolonialistas, não suportam os direitos socioeconômicos,

culturais e políticos reivindicados. Coloca-se então a necessidade de uma nova ordem

social que acolha o exercício do direito consuetudinário, assim como o reconhecimento

enquanto sujeitos coletivos de direitos. Vale ainda destacar uma inserção nos marcos da

classe em que a situação dos povos indígenas não reivindica o exclusivismo e se

identifica com a de outros setores populares, alinhando suas lutas às de camponeses,

operários, setores marginalizados, intelectuais comprometidos com a construção de uma

sociedade pluralista e democrática.

***

Seguiram então homens e mulheres de milho para as montanhas chiapanecas

com seu visitante, onde conviveram por uns anos. Logo foi possível notar que os

eventos de outubro de 1992 apenas prenunciavam algo maior. Primeiro, porque

puderam acompanhar pelo rádio as notícias de protestos que ocorriam em todo o

continente com termos semelhantes aos de San Cristóbal de Las Casas. Segundo,

porque depois de alguns meses dialogando com aqueles homens, mulheres, crianças,

idosos que lhe pareciam ao mesmo tempo tão excêntricos e tão familiares explicaram

que de fato aquela era uma luta que apenas começava, ou melhor, recomeçava, ou talvez

sempre tenha existido e aqueles povos se organizavam para continuá-la. Seguindo então

a intuição do velho Antônio e reconhecendo em Alonso Quijano alguém que, apesar de

causar grande estranheza gerava empatia imediata, os maias da região foram revelando

ao estrangeiro as origens, objetivos e estratégias de sua luta.

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I. 1) Sobre a caminhada pela Selva Lacandona, que guardava muitas histórias de um

México profundo.

Aos poucos, foram se acumulando relatos das origens recentes dos movimentos

indígenas no sul do México, suas bandeiras e as idéias que os orientavam. Um dos seus

primeiros desafios foi romper com a tradição corporativista e autoritária do Estado

herdeiro da revolução de 1910. O esgotamento do projeto revolucionário deixou um

legado contraditório. O Partido Revolucionário Institucional (PRI), fundado em 1929,

consolidou um regime corporativista e autoritário, que dominava todas as instâncias do

aparato estatal e sustentava fortes estruturas clientelares para os movimentos sindical e

camponês, reprimindo quaisquer expressões de dissenso. Entretanto, a herança das

décadas revolucionárias mantinha algumas expressões como a garantia constitucional da

reforma agrária, um sólido sistema universitário autônomo, uma política externa que se

manteve independente no contexto da “Guerra Fria”.

Em 1975 foi realizado o Primeiro Congresso de Povos Indígenas, inicialmente

subordinado aos aparatos oficialistas. Organizado pela Confederação Nacional

Campesina, o Instituto Nacional Indigenista e a Secretaria de Reforma Agrária, o

encontro teve assistência do presidente da República e pretendia produzir um espaço de

repercussão das demandas para os canais controlados pelo governo dentro de um

modelo corporativo. Entretanto, a possibilidade de intercâmbio gerou também embriões

de organizações que insistiriam na afirmação de sua autonomia frente a esse modelo.

Um ano antes realizara-se em Chiapas o Primeiro Congresso Indígena “Frei Bartolomé

de las Casas”, articulado por setores ligados à teologia da libertação.

Ao longo das décadas de 1970 e 1980, diversas experiências aportaram ao

processo de construção de uma perspectiva etnopolítica autônoma,10

que marcaria a

partir de então os métodos, propostas e formas organizativas de boa parte dos

movimentos camponeses. Nesse período surgem diversos movimentos que avançam na

superação da dinâmica reivindicativa, orientada pelo e para o Estado e afirmam o

princípio da autonomia. Há casos de alcance regional, articulados em torno de um grupo

étnico; outros de caráter multiétnico e iniciam-se algumas experiências que conseguem

10

O antropólogo Miguel Alberto Bartolomé define o termo como “afirmaciones protagónicas de la

etnicidad, estructuradas en forma de organizaciones no tradicionales orientadas hacia la defensa de los

intereses de los grupos étnicos.” (Bartolomé, op. cit.)

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estruturar-se nacionalmente. Este é o caso da FIPI, fundada em 1987 a partir dos

tojolabais de Chiapas. Entre os que desde o início assumem um caráter interétnico estão

a Comissão Organizadora da Luta dos Povos Indígenas criada em 1989 em San

Cristobal de las Casas, reunindo representantes dos estados de Chiapas, Oaxaca,

Eucatán, Quintana Roo, Tabasco; a Assembléia de Autoridades Zapotecas e

Chinantecas da Serra; a Coordenadora Regional Chinanteca, Mazateca e Cuicateca

(Integrante da FIPI). Exemplos dos primeiros casos são o Movimento Indígena do

Estado do México, representante de otomíes e mazahuas; o Conselho de Povos Nahuas

do Alto Balsas fundado em 1990 no estado de Guerrero; a UCEZ, que desde 1979

organiza os purhépechas de Michoacan; o Movimento de Unificação e Luta Triqui, em

Oaxaca; o Conselho de Povos de Nacajuca, reunindo chontales de Tabasco. Destacam-

se ainda as organizações conformadas por professores indígenas atuantes na educação

bilíngüe que, variando entre o caráter predominantemente étnico ou sindical de suas

demandas, conquistaram representatividade social e reconhecimento institucional.

(BARTOLOMÉ, 1996, p. 4, 12; BARABAS, 1994, p. 164-165)

A partir desses processos, consolida-se uma presença política negada até então,

pondo em juízo as perspectivas analíticas majoritárias, que consideravam o étnico uma

derivação acessória da questão agrária: “Os índios do México começavam a produzir

um discurso alternativo a respeito de sua posição no Estado nacional, enfatizando seus

direitos históricos, territoriais e de autodeterminação.” (BARABAS, 165)

Um esboço do quadro das lutas indígenas contemporâneas estava mais ou menos

pintado pelas diferentes vozes que Alonso Quijano conhecera em sua caminhada por

aquele universo que lhe era totalmente novo. Chegou então, sempre acompanhado do

Velho Antônio, a um ponto remoto das montanhas do sudeste mexicano, sendo recebido

em um vilarejo onde alguns estavam encapuzados, ainda que todos se vestissem,

falassem e em tudo o mais se portassem como os demais da região. O forasteiro logo

pensou já ter visto aquela situação, mas não teve tempo de recordar, pois se

apresentaram entre os encapuzados umas moças chamadas Ramona, Esther, Rosalinda,

Fidelia e alguns rapazes, identificados como Brus Li, Tacho, Marcos, David, Zebedeo e

outras figuras amáveis que se foram achegando.

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I.2) Em que se conhece um pouco da trajetória, da teoria e da prática de um exército

que transformaria as armas num meio para garantir as palavras e que abdicaria da

conquista do poder como estratégia.

Era fim de tarde e sentaram-se então à beira de uma fogueira, onde os anfitriões

começaram a contar uma história subterrânea que se desenvolvia naquela região. O tal

Marcos era o mais falador, e sempre fumando e renovando o seu cachimbo, conduziu o

relato enquanto os demais preferiam observar, sem deixar de corrigir algumas

informações.

“Ven. Sentémonos un rato y déjame contarte. Estamos en tierras

rebeldes. Aquí viven y luchan ésos que se llaman „zapatistas‟. Y muy

otros son estos zapatistas... y a más de uno desesperan.

Son indígenas rebeldes. Rompen así con el esquema tradicional que,

primero de Europa y después de todos aquellos que visten el color del

dinero, les fue impuesto para mirar y ser mirados.”11

(EZLN, jul. 2003,

parte 1)

E começou a contar de uma iniciativa aparentemente isolada das mencionadas

até agora, mas que convergiria com esse contexto e teria um desenvolvimento pouco

provável.

O ponto de inflexão a nível mundial das lutas sociais do século XX,

representado por 1968, teve no México em de seus expoentes mais significativos. Com

o avanço da mobilização popular, o pêndulo entre repressão e cooptação que marcava o

Estado mexicano tendeu para a primeira faceta, culminando no massacre de Tlatelolco.

Às vésperas das olimpíadas, o exército abriu fogo contra uma manifestação na Praça das

Três Culturas, com um saldo de mortes até hoje desconhecido12

. Como resultado da

11

Salvo indicação contrária, as citações de comunicados do EZLN utilizadas são assinados pelo

subcomandante Marcos, em nome do CCRI. A série completa dessa documentação está disponível em

http://palabra.ezln.org.mx, de maneira que apenas complementarei essas informações com a data do

documento nas referências ao longo do texto. 12

Os dados oficiais reconhecem cerca de duas dezenas, fontes independentes relatam entre 44 e 300

vítimas. (GITAHY, 2003, p. 106; DOYLE, 2006)

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“guerra suja” nos anos seguintes,13

parte da militância revolucionária urbana deslocou-

se para o trabalho de base em distintos pontos do interior do país. Muitos dos líderes de

68 se integraram nas lutas camponesas e indígenas dos anos posteriores contribuindo

para a construção de uma cultura revolucionária fundada na organização assembleística

pela base, voltada primordialmente para a luta contra a exploração e pela democracia.

(CASANOVA, 1996) Entre esses, um grupo radicado nas selvas chiapanecas consegue

desdobrar seu trabalho político no que se tornaria o Exército Zapatista de Libertação

Nacional. No entanto, seu desenvolvimento não seria linear como pode parecer à

primeira vista. Os próprios sujeitos que impulsionaram esse processo reconhecem as

tensões presentes desde a trajetória inicial, em que um núcleo impulsionador de origem

urbana se vê desafiado a repensar seus métodos e conceitos, assimilando o – e sendo

assimilados pelo – universo cultural das comunidades indígenas, rompendo com a

tendência a priorizar a intervenção externa como fator de consciência. “Es decir, lo que

en 1984 era una guerrilla revolucionaria de corte clásico (levantamiento armado de las

masas, toma del poder, instauración del socialismo desde arriba, muchas estatuas y

nombres de héroes y mártires por doquier, purgas, etcétera, en fin, un mundo perfecto),

para 1986 ya era un grupo armado, abrumadoramente indígena, escuchando con

atención y balbuceando apenas sus primeras palabras con un nuevo maestro: los pueblos

indios”. (EZLN, jul. 2003, parte 2)

Um desafio teórico-político, no qual os dois pólos envolvidos (núcleo

organizativo e comunidades) constroem uma resposta positiva na fusão em uma

experiência que reinventa as anteriores, fundamentando-se nas demandas e recursos

acumulados pelos povos originários. A gestação dessa resposta não ocorreu sem suas

dissidências; mas apesar de o recurso às armas ser rechaçado por alguns grupos que

estiveram nas discussões iniciais, a manutenção da clandestinidade até o momento do

levante e a capacidade de convocação massiva demonstrada recorrentemente indicam o

nível de coesão interna alcançado pela organização. “Llegó un momento, no podría

precisar bien cuando mero, en que ya no estaba el EZLN por un lado y las comunidades

por el otro, sino que todos éramos, simplemente zapatistas.” (idem)

Assim, muitos dos que derrubaram Mazariegos em 1992 haviam já se integrado

à organização político-militar que dois anos depois se alçaria em armas. Nessa trajetória

13

Diferente da maioria dos países americanos, o México não viu o regime de dominação derivar para a

ditadura na segunda metade do século XX. No entanto, os movimentos insurgentes, armados ou não,

sofreram uma severa perseguição, por meio de uma série de medidas extralegais, que ficou conhecida

como “guerra suja”.

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singular, formou-se um movimento de novo tipo, que marcaria a retomada das lutas

sociais mexicanas na virada de séculos e, superando o âmbito de influência local e a

abordagem restrita à questão étnica, tornou-se uma referência para a reflexão e ação

crítica, inicialmente de resistência ao neoliberalismo, para numa etapa posterior afirmar

uma perspectiva anticapitalista.

Pode-se então observar a convergência de fatores distintos e complexos que

desaguariam na insurgência zapatista. Como dinâmicas internas, a emergência da

etnopolítica, a ação pastoral da teologia da libertação e de parte da esquerda

revolucionária14 herdeira de 1968. Entre os fatores externos que instigaram o levante,

pode-se apontar o avanço das contra-reformas neoliberais e a caducidade do regime de

dominação política estabelecido pelo PRI, do qual o EZLN logo se tornaria sujeito.

“El impacto en las comunidades ya zapatistas fue, por decir lo menos,

brutal. Para nosotros (note usted que ya no distingo entre las

comunidades y el EZLN) la tierra no es una mercancía, sino que tiene

connotaciones culturales, religiosas e históricas que no viene al caso

explicar aquí. Así que, pronto, nuestras filas regulares crecieron en

forma geométrica.

Y no sólo, también creció la miseria y, con ella, la muerte, sobre todo

de infantes menores de 5 años. Debido a mi cargo, me tocaba entonces

checar por radio los ya cientos de poblados y no había día en que

alguien no reportara la muerte de un niño, de una niña, de una madre.

Como si fuera una guerra. Después entendimos que, en efecto, era una

guerra. El modelo neoliberal que Carlos Salinas de Gortari comandó

con cinismo y desenfado, era para nosotros una auténtica guerra de

exterminio, un etnocidio, puesto que eran pueblos indios enteros los que

14

Este é um elemento que tende a ser menosprezado, já que o debate sobre os movimentos sociais

contemporâneos é fortemente influenciado pela ênfase na ruptura entre “nova” e “velha esquerda”. A

primeira seria diferenciada pelo horizontalismo e o principio da autonomia, em contraste com a

tradição autoritária e a estratégia que prioriza a tomada do poder estatal, geralmente associada ao

marxismo. (Ver HOLLOWAY, 2003) No caso do subcomandante Marcos, tal recurso é

compreensível como resposta às acusações permanentes de instrumentalização da causa indígena por

agentes externos. No entanto, insistir nesse recorte acarreta em apreciações históricas precipitadas,

sem levar em conta as diversas experiências que, ao longo do século XX propuseram alternativas

radicais de crítica ao poder estatal e formas organizativas variadas. Na parte 3, discuto alguns aspectos

que se refletem nesse debate.

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estaban siendo liquidados. Por eso nosotros sabemos de qué hablamos

cuando hablamos de la "bomba neoliberal".

Imagino (habrá estudiosos serios por ahí que contarán con datos y

análisis precisos) que esto ocurría en todas las comunidades indígenas

de México, Pero la diferencia estaba en que nosotros estábamos

armados y entrenados para una guerra. Dice Mario Benedetti, en un

poema, que uno no siempre hace lo que quiere, que uno no siempre

puede, pero tiene el derecho a no hacer lo que no quiere. Y en nuestro

caso, no queríamos morir.. . o más bien, no queríamos morir así.

Ya antes, en alguna ocasión, he hablado de la importancia que tiene

para nosotros la memoria. Y en consecuencia, la muerte por olvido era

(y es) para nosotros la peor de las muertes. Yo sé que sonará

apocalíptico, y que más de uno buscará algún dejo martiriológico en lo

que digo, pero, para ponerlo en términos llanos, nos encontramos

entonces frente a una elección, pero no entre vida o muerte, sino entre

un tipo de muerte y otro. La decisión, colectiva y consultada con cada

uno de los, entonces, decenas de miles de zapatistas, es ya historia y

originó ese destello que fue la madrugada del primero de enero de

1994.” (idem, grifos meus)

O processo de contra-reforma agrária, com a tentativa desestruturação da

garantia constitucional ao sistema de propriedade comunal (ejidos), expressa na

derrubada do artigo 27, associada ao encerramento das perspectivas sociais e políticas

que o chamado neoliberalismo trazia, davam o quadro geral para o estopim da rebelião

em 1994. Fazendo jus à trajetória de “traição” à modernidade capitalista, o levante

zapatista iniciou-se nas primeiras horas do ano em que o México de cima celebrava a

entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, apresentado

como o passaporte definitivo para aquela modernidade tantas vezes prometida.

Embora seja geralmente conhecido, é inevitável mencionar o contexto

desfavorável em que irrompe a guerrilha. A pulverização dos regimes burocráticos do

leste europeu, a consolidação do padrão de pensamento único contido no triunfalismo

neoliberal, os primeiros ensaios de reordenamento global do imperialismo no golfo

pérsico, a desmobilização das forças político-militares revolucionárias na América

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Central e as transições pactuadas no Cone Sul foram alguns dos elementos que

compuseram o pano de fundo para a impugnação de qualquer perspectiva histórica, ou

seja, o desarmamento das utopias e a adequação às regras estabelecidas. Esse cenário

acaba por dar destaque ao momento improvável da irrupção zapatista, que se põe em

cena e constrói seu discurso a contrapelo da história que tantos mercadores de idéias

trabalhavam para escrever. Por tudo isso, sua repercussão foi imediata e transcendental,

colocando em outro patamar a temática indígena e influenciando uma geração formada

nesse contexto de crise generalizada, caracterizada pelo esgotamento das experiências

revolucionárias do século XX, respondido pela fugaz e ilusória afirmação triunfal e

fatalista do capitalismo, que logo se demonstrou incapaz de disfarçar os sinais de

aprofundamento de sua própria crise.

Expressando como o calendário dos debaixo caminha à revelia, ou mesmo em

sentido antagônico, ao dos poderosos, o EZLN conseguiu projetar politicamente a

questão étnica, elaborada com bastante complexidade nos termos de seu cruzamento

com a perspectiva da constituição histórica das classes sociais no México. A “questão

indígena” deixa de ser tratada como um problema de políticas estatais para minorias,

para ser entendida como um fator indissociável do itinerário das formações sociais do

continente.

“Somos produto de 500 anos de luta: primeiro contra a escravidão, na

guerra de independência contra a Espanha encabeçada pelos insurgentes;

depois para não sermos absorvidos pelo expansionismo norte-americano;

em seguida, para promulgar a nossa Constituição e expulsar o Império

francês do nosso solo. A ditadura Porfirista nos negou a justa aplicação

das leis da Reforma e o povo se rebelou criando seus próprios líderes; foi

assim que surgiram Villa e Zapata, homens pobres como nós, aos quais

também se negou um mínimo de instrução, para que, como nós, fossem

utilizados como bucha de canhão e deixassem o poderoso saquear as

riquezas de nossa pátria, sem se importar com o fato de estarmos

morrendo de fome e doenças curáveis, de não termos nada,

absolutamente nada, sem um teto digno, sem terra, sem trabalho, sem

saúde, sem alimentação, sem educação, sem ter direito a eleger livre e

democraticamente nossas autoridades, sem independência dos

estrangeiros, sem paz e sem justiça para nós e para os nossos filhos.

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Porém, nós hoje dizemos: BASTA! Somos os herdeiros dos que

realmente forjaram a nossa nacionalidade, somos milhões de

despossuídos e convocamos todos os nossos irmãos a aderir a este

chamado como o único caminho para não morrermos de fome ante a

ambição insaciável de uma ditadura de mais de setenta anos, encabeçada

por uma camarilha de traidores que representam os grupos mais

conservadores e que estão dispostos a vender a pátria. São os mesmos

que se opuseram a Hidalgo e Morelos, os que traíram Vicente Guerrero,

são os mesmos que venderam mais da metade do nosso solo ao invasor

estrangeiro, são os mesmos que trouxeram um príncipe estrangeiro para

nos governar, são os mesmos que sustentaram a ditadura porfirista, que

não se opuseram à expropriação do petróleo, são os mesmos que

massacraram os trabalhadores das ferrovias em 1958 e os estudantes em

1968, são os mesmos que hoje nos tiram tudo, absolutamente tudo.” (in:

LÖWY, 1999, p. 514)

***

O estrangeiro tudo acompanhou de dentro da selva naqueles dias que

condensaram boa parte da história mexicana: a divisão entre os que iriam pelas armas e

os que buscariam outros caminhos; a tensão dos preparativos para o levante; a formação

dos municípios autônomos rebeldes; a tomada, por milhares de combatentes zapatistas,

dos municípios de San Cristóbal de Las Casas (onde o trajeto foi quase o mesmo

daquela manifestação de 1992, com a diferença de estarem armados), Ocosingo,

Margaritas, Altamirano, Chanal, Oxchuc, Huixtán e mais alguns povoados; a publicação

das leis revolucionárias que passaram a vigorar em territórios rebeldes, abrangendo

temas como distribuição da terra, condição das mulheres, reforma urbana, trabalho,

justiça e atividades econômicas; a contra-ofensiva do exército federal; o julgamento de

Absalón Castellanos;15

as manifestações nacionais e internacionais contra a repressão; o

15

Absalón Castellanos Dominguez, general do exército mexicano e ex-governador do estado de

Chiapas. Raptado nos primeiros dias do levante, foi considerado culpado, entre outras acusações, de

fechar todos os caminhos legais e pacíficos para as demandas indígenas no seu governo, com

repressão, seqüestros, assassinatos, despojo de camponeses de suas terras. Condenado à prisão

perpétua com trabalhos manuais às comunidades chiapanecas, teve na mesma sentença sua pena

comutada à liberdade física com o castigo de viver com “a pena e a vergonha de ter recebido o perdão

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retorno das tropas rebeldes às montanhas; a contagem de seus mortos; o início das

negociações; o debate desatado na imprensa, que ia desde a conveniência da estratégia

insurrecional até a opção sexual de Marcos; a esperança e a polêmica em tornos dos

acordos de San Andrés.16

Foi depois de uma dessas jornadas que Alonso Quijano encontrou Don Durito de

La Lacandona, cuja altivez o atraiu enormemente e que, apesar dos traços físicos muito

peculiares, não teve dúvida de estar se vendo refletido naquela pequena figura. Tratava-

se de um escaravelho de óculos e cachimbo montado em uma pequena tartaruga,

portando um raminho com posição de uma espada, uma tampinha de frasco de remédio

como escudo e vestindo um pedaço de casca espetado com agulhas como elmo. (EZLN,

15/04/1995) Durito, apresentando-se enfaticamente como autêntico cavaleiro andante,

disse que faltava ao visitante conhecer outra teoria que vinha sendo elaborada abaixo e à

esquerda, pelos povos originários zapatistas em suas lutas cotidianas. Teoria que era

outra em relação às teorias dos claustros acadêmicos, cujas distintas roupagens que as

revestiam não eram na maioria das vezes mais que embalagens para torná-las melhor

apresentáveis no mercado de idéias. Quijano imaginou que era um comportamento

semelhante ao dos acadêmicos de outras épocas que pouco se importavam com a análise

da realidade concreta, dedicando-se então a servir aos reis com a avidez que hoje

atendem às demandas do mercado.

Durito iniciou afirmando a justeza da luta, ainda que em um contexto adverso,

de utopias desarmadas e desarmamento das utopias. Defendeu a luta armada como um

recurso final para que a voz dos pobres chiapanecos fosse ouvida. Explicou que sua luta

era por trabalho, terra, teto, alimentação, saúde, educação, independência, liberdade,

democracia, justiça e paz. (in: LÖWY, 1999, p. 516) Mas que essas demandas históricas

nunca eram ouvidas e que o encerramento dos canais democráticos do Estado mexicano

deixara as armas como única opção. Por isso, insistiu que empunhavam as armas para

dar lugar às palavras, lembrando um velho sábio, que Durito citou literalmente:

e a bondade daqueles a quem por tanto tempo humilhou, seqüestrou, roubou e assassinou.”

(20/01/1994) 16

Os Acordos de San Andrés sobre Direitos e Cultura Indígenas foram firmados entre o governo

mexicano e o EZLN no primeiro semestre de 1996, após uma série de mesas de diálogos. Seus

objetivos fundamentais estavam relacionados ao reconhecimento de direitos dos povos indígenas,

estabelecendo um novo marco jurídico para sua relação com o Estado e a sociedade em geral. Logo

após a conclusão dos acordos, o governo de Ernesto Zedillo recuou de suas posições, desconhecendo-

os. Em abril de 2001, o congresso mexicano aprovou uma lei enviada pelo presidente Vincente Fox,

que foi considerada pelos movimentos sociais e organizações de direitos humanos uma contra-reforma

em termos de direitos indígenas.

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“É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, que

o poder material tem de ser derrubado pelo poder material, mas a teoria

converte-se em força material quando penetra nas massas. A teoria é

capaz de se apossar das massas ao demonstrar-se 'ad hominem', e

demonstra-se 'ad hominem' logo que se torna radical. Ser radical é agarrar

as coisas pela raiz. Mas, para o homem a raiz é o próprio homem”.

(Marx, 2005, 151)

Construindo esse sentido de radicalidade, o EZLN adotou como eixos de sua

prática termos poucos comuns ao vocabulário político em que se destacam: a defesa

intransigente da autonomia dos povos originários em relação ao Estado mexicano; a

forma organizativa baseada nas comunidades, expressa na noção de que as funções de

direção não representam postos privilegiados e estão sempre subordinados ao princípio

do “mandar obedecendo”; a síntese dessas demandas na noção de dignidade,

entendida como uma luta que não se restringe aos povos indígenas de Chiapas e que só

se concretizará para esses quando forem uma realidade para todos.

Com isso, a estratégia zapatista foi revisada na própria dinâmica das lutas em

que se movia. Da declaração inicial, onde se manifestava a intenção de marchar sobre a

capital em termos ainda semelhantes à esquerda revolucionária “tradicional”, o EZLN

foi se afirmando com um chamado à rebeldia em tempos de conformismo. Durito

explicou que sua intenção não era assumir o papel de vanguarda a apontar o caminho

justo da revolução.

“El EZLN no tiene ni el deseo ni la capacidad de aglutinar en torno a su

proyecto y su camino a los mexicanos todos. Pero tiene la capacidad y el

deseo de sumar su fuerza a la fuerza nacional que anime a nuestro país

por el camino de justicia, democracia y libertad que nosotros queremos.

Nosotros pensamos que el cambio revolucionario en México no será

producto de la acción en un sólo sentido. Es decir, no será, en sentido

estricto, una revolución armada o una revolución pacífica. Será,

primordialmente, una revolución que resulte de la lucha en variados

frentes sociales, con muchos métodos, bajo diferentes formas sociales,

con grados diversos de compromiso y participación. Y su resultado será,

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no el de un partido, organización o alianza de organizaciones triunfante

con su propuesta social específica, sino una suerte de espacio

democrático de resolución de la confrontación entre diversas propuestas

políticas. Este espacio democrático de resolución tendrá tres premisas

fundamentales que son inseparables, ya, históricamente: la democracia

para decidir la propuesta social dominante, la libertad para suscribir una

u otra propuesta y la justicia a la que todas las propuestas deberán

ceñirse. El cambio revolucionario en México no seguirá un calendario

estricto, podrá ser un huracán que estalla después de tiempo de

acumulación, o una serie de batallas sociales que, paulatinamente, vayan

derrotando las fuerzas que se le contraponen. El cambio revolucionario

en México no será bajo una dirección única con una sola agrupación

homogénea y un caudillo que la guíe, sino una pluralidad con dominantes

que cambian pero giran sobre un punto común: el tríptico de democracia,

libertad y justicia sobre el que será el nuevo México o no será.” (EZLN,

20 jan. 1994)

Essa concepção permitiu que os zapatistas testassem com enorme flexibilidade

suas táticas, reconsiderando, realizando consultas internas e externas, comunicando

mudanças inesperadas e buscando novos métodos que ampliassem os canais de diálogo

com a “sociedade civil”,17

mas sempre se esforçando por manter a coerência com certos

princípios e objetivos fundamentais. Isso permitiu que o ato inicial da insurreição

transcendesse o alcance regional, para a sua apropriação por diversos setores como uma

inspiração de uma práxis inovadora de resistência contra o capitalismo. Da necessidade

de chamar atenção sobre as demandas particulares dos povos originários chiapanecos,

por suas características e pelo momento peculiar em que se apresenta, o EZLN foi se

assumindo e sendo assumido como espelho – com perdão pelo clichê... –, a ponto de

reconhecer que sua luta é por um mundo onde caibam muitos mundos. Durito lembrou

que, num momento em que o elogio da diversidade tornou-se um fim em si, subproduto

da fragmentação do ser social operada pelos discursos pós-modernistas, os movimentos

indígenas passam a atuar numa perspectiva anti-sistêmica que articula dialeticamente o

particular e o global, em que a defesa de identidades sociais, étnicas e culturais

17

O termo é de uso corrente nos comunicados zapatistas.

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específicas não impedem aos múltiplos sujeitos reconhecerem os aspectos mais gerais

da opressão e exploração impostas pela condição contemporânea do capitalismo.

Tornam-se uma “maioria que se disfarça de minoria intolerada”, como verbalizou o

subcomandante Marcos ao responder com sensibilidade àquele tipo de provocação

estúpida repetida pela mídia.

“A todo esto de que si Marcos es homosexual: Marcos es gay en San

Francisco, negro en Sudáfrica, asiático en Europa, chicano en San Isidro,

anarquista en España, palestino en Israel, indígena en las calles de San

Cristóbal, (...) judío en Alemania, (...) feminista en los partidos políticos,

comunista en la post guerra fría, preso en Cintalapa, pacifista en Bosnia,

mapuche en los Andes, maestro en la CNTE, artista sin galería ni

portafolios, ama de casa un sábado por la noche en cualquier colonia de

cualquier ciudad de cualquier México, guerrillero en el México de fin del

siglo XX, huelguista en la CTM, reportero de nota de relleno en

interiores, machista en el movimiento feminista, mujer sola en el metro a

las 10 p.m., jubilado en plantón en el Zócalo, campesino sin tierra, editor

marginal, obrero desempleado, médico sin plaza, estudiante inconforme,

disidente en el neoliberalismo, escritor sin libros ni lectores, y, es seguro,

zapatista en el sureste mexicano. En fin, Marcos es un ser humano,

cualquiera, en este mundo. Marcos es todas las minorías intoleradas,

oprimidas, resistiendo, explotando, diciendo "¡Ya basta!". Todas las

minorías a la hora de hablar y mayorías a la hora de callar y aguantar.

Todos los intolerados buscando una palabra, su palabra, lo que devuelva

la mayoría a los eternos fragmentados, nosotros. Todo lo que incomoda

al poder y a las buenas conciencias, eso es Marcos.” (EZLN, 28 mai.

1994)

Tantos relatos de esperança e dignidade despertaram em Alonso Quijano

memórias soterradas de quando lutava contra malandrinos e gigantes, andando pelas

terras mais longínquas a desfazer agravos com o auxílio de seu fiel escudeiro, Sancho

Pança, movido pelo infinito amor à sua Dulcinea del Toboso, incompreendido e tido por

louco. Teve vergonha de quando teve vergonha de ser Dom Quixote e entendeu que era

este quem lhe daria a perspectiva para entender aqueles povos e suas lutas. E depois de

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conviver por alguns anos entre povos maias, tojolobales, choles, tzotziles, tzeltzales,

lacandones, decidiu retomar a vida andante que deixara adormecida. Ainda que seu

Rocinante não estivesse mais por perto, os comuneros do último Município Autônomo

Rebelde Zapatista por onde passou lhe deram de bom grado um cavalo para seguir

viagem.

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II. Em que Dom Quixote passa por paisagens que o fizeram lembrar que era o

Cavaleiro de Triste Figura e encontra povos que primeiro vivenciaram a

experiência da autonomia e outros que deram um nome a esse continente que

insistem em chamar América.

Logo que saiu de Chiapas, Dom Quixote de La Mancha viu a paisagem mudar

sobre um território que não era tão distinto. Da dignidade que saturava o ar dos

Caracoles zapatistas, logo percebeu que atravessara uma fronteira de dor e revolta

abafadas pela miséria cotidiana. No primeiro vilarejo em que chegou, foi perguntar que

lugar era aquele a uma senhora que, sentada em frente ao casebre, parecia esperar a

morte com seus filhos.

Ali, o Cavaleiro de Triste Figura ouviu a história da execução de todos os

homens daquela vila, considerada base social da guerrilha na década de 80. Estava num

país cujo nome, Quauhtlemallan, significa em náhuatl lugar de muitas árvores. Os

homens e mulheres dali também descendem daqueles primeiros, os povos maias-quiché

feitos do milho, cuja sociedade se estendia por aquela terra antes da chegada dos

europeus. Seus mitos e tradições são do mesmo universo cultural encontrado em

Chiapas. Mas a experiência que aquela senhora guardava trazia a dor de um genocídio

contemporâneo, que não ficara na memória do encontro com o conquistador estrangeiro,

mas tornou-se o mecanismo dos senhores locais para perpetuar sua dominação e

esconjurar as expressões de emancipação dessa população que, sendo 60% dos

guatemaltecos, esteve desde a época colonial relegada a uma condição de domínio

estruturado sobre um racismo excludente em termos políticos, socialmente segregador e

justificador da superexploração.

A década de transformações democráticas e avanço das lutas sociais iniciada em

1944 estabeleceu, já no ano seguinte, do reconhecimento constitucional da

especificidade dos grupos indígenas, servindo de base para uma série de políticas que

visavam atender essas particularidades e combater um regime de exploração colonialista

mantido pela república. A junta revolucionária aboliu o sistema de tributo em serviços

compulsórios nas obras públicas e em fazendas; no governo de Jacobo Arbenz, a partir

de 1952, avançou a reforma agrária. (CIFUENTES, 1993, p. 13) Ainda que visasse um

processo de modernização capitalista e as medidas em favor dos povos originários não

partissem dos próprios, mas do pensamento antropológico mais tradicional, a

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“revolução burguesa” guatemalteca apontava para um nível de democratização cujas

possibilidades foram violentamente bloqueadas.

Desde então, o aparato estatal foi mantido sob tutela militar, em um regime

político de características contra-insurgentes e sustentado pela violência e por uma

ideologia anticomunista,18

além do apoio estadunidense. Bloqueadas as mínimas

possibilidades democráticas, formam-se no início da década de 1960 os primeiros

grupos guerrilheiros. Não obstante a repressão sistemática e crescente, esses grupos

passaram por processos reorganizativos que possibilitaram uma rápida expansão a partir

de 1980, aglutinando comunidades, povoados e regiões inteiras, a ponto de expandir sua

capacidade operativa por quase todo o país e estabelecer um controle territorial sobre

determinadas zonas. Além do quadro histórico de miséria da maioria da população e da

situação política que não abria margens de concertação no espaço institucional, uma

análise consistente da realidade guatemalteca foi fundamental para a consolidação da

base popular-indígena da guerrilha.19

A estratégia contra-insurgente então convergiu

para a política terra arrasada. (MARÌN, 2001, p. 28-33)

“En respuesta a esta toma de posición, las fuerzas militares

contrainsurgentes diezmaron poblaciones completas, masacraron

pueblos, aldeas y comunidades calificándose el hecho como genocidio

contra el Pueblo Maya, el pueblo indígena mayoritario del país. El

genocidio es calificado como la máxima expresión del racismo, ya que

las víctimas fueron asesinadas con tanta saña e inclemencia que

demuestra un odio profundo en el acto. El saldo de dicha política de

exterminio en la década de los años 80 es de cincuenta mil viudas, ciento

18

Segundo Edelberto Torres Rivas, as características definidoras de todos os governos surgidos após a

deposição de Arbenz, em julho de 1954, foram “sua função contra-revolucionária e a utilização, como

método, da violência política”. (RIVAS, 2003, p. 162) 19

No Manifesto de 1979, a principal organização revolucionária da Guatemala considerava que era

impossível solucionar a condição histórica de opressão dos povos indígenas dentro do sistema

capitalista e defendia que o socialismo deveria garantir a integração à “comunidade nacional e cultura

sem perder sua identidade”. Nessa perspectiva, “Não poderá haver triunfo na Guatemala se este não

implicar o desaparecimento da opressão étnico-cultural, a incorporação dos povos indígenas à

plenitude dos direitos econômicos, políticos e sociais, e a constituição de um contexto de convivência

nacional sem desigualdades, comum e conjunto com a população mestiça.” (EGP in: LÖWY, 1999, p.

364-365. Grifo meu) Cabe chamar atenção à influência exercida pela insurgência guatemalteca na

experiência zapatista, diretamente pela migração forçada de milhares de indígenas para a região de

Chiapas – que já vimos compor o mesmo complexo etno-cultural – e indiretamente, pelo aprendizado

que a leitura daquela experiência possa ter proporcionado. Em 1984, quando se forma o EZLN a

guerra civil passava por um de seus momentos mais sangrentos com o governo de Ríos Montt e

quando ocorre o levante zapatista, a guerrilha e o governo guatemaltecos desenvolviam as

negociações que levariam aos acordos de paz dois anos depois.

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cincuenta mil huérfanos, doscientas mil personas desaparecidas y más de

trescientas comunidades arrasadas. El impacto hasta la fecha es de

pobreza y pobreza extrema en las comunidades que forman parte de

territorios típicamente reconocidos como escenarios de guerra.” (SALOJ,

2007, p. 88)

No caminho que seguiu, nosso personagem admirou-se que em território tão

exíguo a paisagem e os povos eram tão diversos. Espantou-se também com o acúmulo

de relatos de execuções, torturas, expulsões da terra. Eram tantas e tão semelhantes as

histórias, que a única certeza de não serem repetidas vinha dos diferentes rostos de

sofrimento dos familiares que contavam, dos nomes das vítimas e dos lugares que

identificavam os massacres.

Partiu da Guatemala, já saindo da esfera de influência maia e sempre coletando

as histórias que encontrava pelo caminho. Chegou a um pequeno mundo frágil e

violentamente doce. Seguindo indicações, chegou à ilha de Solentiname, no lago

Nicarágua onde, sob a luz delirante do meio dia percebeu estar em um tempo-espaço

particular. Ali foi conversar com um poeta na altura de seus cinqüenta anos, cuja casa se

destacava pelo colorido do muro, com frases e ilustrações bem expressivas. Atendia

pelo nome de Roque Dalton e contou de uma revolução que derrotou em 1979 a dinastia

que comandava o país desde a década de 30 sustentada pelos Estados Unidos. Para

impor o seu regime oligárquico, o ditador matou a traição um general que comandara

um exército de camponeses na resistência ao invasor estrangeiro.20 A partir da década

de 60, a luta contra a ditadura recuperou o nome daquele general que fizera das matas

seu quartel e, após a tomada do poder, iniciaram um processo de mudanças estruturais

que incluía a reforma agrária e um programa de alfabetização massiva, sob permanente

acosso financiado pelos senhores da guerra que vivem ao norte do continente, até a

derrota da revolução no início dos anos 1990.

Roque Dalton, um veterano combatente sandinista, não deixou de notar como a

luta de classes parecia se repetir, com os mesmos personagens retornando à cena para

expressar ao longo da história os anseios e o sentido de sua classe social. Ou, de

maneira mais geral, para sintetizar determinados sentimentos de rebeldia e de combate à

20 Violando um salvo-conduto para que Augusto César Sandino participasse dos diálogos para um

acordo de paz na capital, Anastasio Somoza, chefe da Guarda Nacional ordena a execução do líder

rebelde em fevereiro de 1934.

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opressão. Assim apareciam Augusto César Sandino na Nicarágua, Emiliano Zapata no

México, Farabundo Martí em El Salvador entre outros que Quixote ainda ouviria falar

em suas andanças. Então, não era um desenrolar cíclico da história que levava às

reedições do embate entre Sandino e o imperialismo com seus sócios locais, mas a

memória dos explorados contemporâneos. Por isso ele fazia questão de sempre restaurar

o painel sandinista que ilustrava o muro de sua casa, diante dos esforços sistemáticos de

apagar as lembranças desse período tanto pelos inimigos de sempre, como por alguns

antigos dirigentes que se juntaram ao coro dos vencedores após a desestruturação do

processo revolucionário.

O viajante contou de onde vinha e algumas das histórias que lhe pareceram

semelhantes às de seu anfitrião centro-americano e este passou a relatar-lhe do que se

passara com os povos indígenas daquele país durante os anos de revolução. Valia

conhecer aquele processo, pois prenunciou o desencontro entre a razão da esquerda

revolucionária e as demandas indígenas, tensão ainda hoje em geral não equacionada. A

desconfiança mútua entre o governo da FSLN e a população da costa atlântica,21

com a

conseqüente falta de cooperação e diálogo na construção do processo revolucionário,

possibilitou que aquela se tornasse uma zona estratégica de operações dos “contra”, com

investimento pesado da propaganda financiada pelos Estados Unidos. A resposta inicial

do regime foi assumir o conflito como parte do cenário de guerra, enviando tropas com

o objetivo de garantir a integridade territorial ante a estratégia contra-revolucionária.

“Fue obviamente una experiencia traumática para ambas partes. Para los

costeños, el EPS asumió la fisonomía de un ejército de ocupación; para

los combatientes sandinistas, se trataba de sectores populares - pobres,

históricamente sometidos a la explotación de las compañías extranjeras -

que desconfiaban y se oponían a una revolución que trataba de mejorar

sus condiciones de vida.” (VILAS, 1988, p. 53)

Entretanto, o contato, ainda que numa conjuntura bélica, possibilitou um melhor

conhecimento das particularidades da região costeira e seus habitantes. Os

revolucionários foram capazes de diferenciar entre a ação manipuladora da intervenção

estrangeira e as legítimas demandas locais: acesso à terra e recursos naturais,

21

Formada pelos povos indígenas miskitos, sumo-mayangnas y ramas e por grupos étnicos (creoles,

garífonas y mestizos) constituídos a partir de particularidades históricas da região.

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reconhecimento de modalidades de autogoverno local, educação bilíngüe e

reconhecimento oficial de seus idiomas, participação nas instâncias políticas e

econômicas do regime revolucionário etc. Conseqüentemente, desenvolve-se o diálogo

que detona um longo processo de reconhecimento das demandas dos povos da costa.

Em 1983 o governo sandinista decreta ampla anistia à população local que se integrara à

“contra”, consolidando o cessar-fogo com os grupos indígenas dois anos depois.

Progressivamente se foram criando condições para o atendimento das demandas

específicas e para a construção de um projeto de autonomia que, incorporado à

Constituição de 1987, seria pioneiro em todo o continente. A implantação do regime

autonômico na Costa Atlântica é um processo ainda incompleto e sujeito a

aperfeiçoamentos e tensões, enquanto o balanço de suas conquistas e defeitos está em

aberto. “El logro mayor sería, quizás, el despertar de los diferentes grupos étnicos. Un

despertar a la realidad de lo importante que es emprender la lucha por rescatar nuestros

valores. Esto se ha demostrado en diferentes fases y modalidades. La lucha por

organizarnos en los diversos grupos, ha sido producto de ello, a pesar de que ha habido

dificultades y a veces hay una tendencia a la polarización. Pero siempre se tiene la idea

de encontrarnos con nuestra identidad”.22

Afinal, o debate sobre as autonomias tornou-

se um campo de intensas disputas políticas em diversos países latino-americanos. A

experiência nicaragüense indica os limites e os possíveis canais para o diálogo entre o

pensamento de esquerda revolucionária e as organizações indígenas que, como já foi

visto, desenvolveram na macro-região da meso-america a autonomia como sua demanda

fundamental. No entanto, apesar dos avanços institucionais desde a década de 1980 e as

reformas constitucionais, é um processo ainda sujeito aos embates políticos e às

barreiras impostas pela noção de Estado-nação. “Porque también parte del problema es

que, a veces, la gente del resto del país tiende a entender que cuando en la Costa

Atlántica decimos autonomía, estamos hablando de separación, de la formación de otro

Estado; que estamos lesionando la nación nicaragüense. Y ese no es nuestro punto de

vista; lo que queremos es participar plenamente en la vida nacional”.23

Seguindo viagem, o Cavaleiro de Triste Figura recebeu diversas indicações para

chegar a um território chamado Kuna Yala, onde esteve por uns dias. Ali, ouviu outras

tantas histórias do povo kuna, que também tinha na autonomia o sentido de organização

22

Comentário de Faran Dometz, membro do conselho Regional Autônomo do Atlântico Sul e presidente

da Junta Provincial da Igreja Moraviana da Nicarágua (apud DÍAZ-POLANCO, 1997). 23

Idem.

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da comunidade. Em fevereiro de 1925 eclodiu Revolução Tule, como resultado dos

abusos da Polícia Nacional; dos conflitos com companhias bananeiras e extratoras de

borracha atuantes em território kuna; programa “civilizador” do governo panamenho,

que incluía a imposição do ensino regular e a proibição de roupas, rituais e costumes

tradicionais.24

Os principais chefes de 45 aldeias e tribos decretaram a independência

em relação à República do Panamá num ato que, apesar de não conseguir se perpetuar,

logrou em um mês um acordo de paz com o governo, no qual este se comprometia a

conceder um trato digno e respeitar os costumes indígenas, além de não impor-lhes o

estabelecimento de escolas. (ARAÚZ e GELOS, 1996, p. 148-153)

Além disso, Quixote descobriu o nome com que os kuna batizaram este

continente, que começava então a ser adotado em diversos lugares para substituir o que

era utilizado por uma equivocada toponímia colonial. “Todos utilizan el nombre de

América para nuestro continente, pero nosotros tenemos depositado el verdadero

nombre que es Abya Yala, que significa Tierra en permanente Juventud.”

(MOLLINEDO, 2008) Assim lhe explicou Constantino Lima, um velho dirigente

katarista que, andando em território kuna por aqueles dias, conheceu Dom Quixote e

convidou-o a ir até a Bolívia, onde encontraria muitos outros Kataris.

Área de rebeldia permanente dos povos originários, onde a resistência ao

colonizador manteve-se irredutível por séculos; zona de confluência de interesses

geopolíticos desde a etapa inicial de expansão capitalista, pivô de conflitos intra-

colonialistas, o istmo banhado pelo mar dos caraíbas foi precursor de temas

fundamentais na luta política dos povos originárias de Abya Yala. Assim foi com o

reconhecimento dos kuna em 1925, a constituição guatemalteca de 1945 e as

experiências guerrilheiras da década de 1980. Mas a dinâmica de genocídios, as

estruturas de dominação oligárquico-imperialistas, bem como o permanente movimento

de colonização do mundo pela forma mercadoria,25

mantiveram esses povos sob acosso,

indicando que a “questão indígena” não se soluciona, no sistema capitalista, se tomada

como um problema isolado.

24

Apesar da controversa participação estadunidense no episódio, em que se chega a atribuir a um agente

desse país a redação do manifesto de independência, um representante do próprio governo panamenho

reconheceu os excessos que instigaram à rebelião kuna. Segundo o secretário de governo e justiça

Carlos López, ao invés de respeitar o seu modo de vida como garantia da participação na vida

institucional do país, “Desgraciadamente no se hizo eso: se dispuso arrancarles de golpe lo que era

obra de siglos, y ahora se cosechan los frutos de ese error”. (Araúz e Gelos, 1996, p. 153) 25

Cujas formas mais recentes trataremos na Parte 2.

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Consultados por Quixote sobre uma rota adequada para seguir viagem, os kunas

desaconselharam a travessia do istmo por terra e sugeriram que se queria ver e

parlamentar com outras gentes descendentes dos habitantes originários do continente

poderia ir por mar direto a um país chamado Equador e aí subir a serra rumo à sua

capital, onde certamente encontraria muitas novidades de como se estavam organizando

e o que queriam esses povos.

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III. No qual se relata a passagem a uma outra região onde, por caminhos distintos,

os povos originários também recusaram a morte pelo esquecimento e

construíam o amanhã a partir do seu ontem, desafiando as constituições dos

moinhos de vento institucionais que por duzentos anos mediaram as relações de

dominação e resistência nessas sociedades.

Ao entrar em Quito com o substituto de seu velho Rocinante, o viajante

acreditou estar revivendo os acontecimentos de Chiapas que iniciam esta história. Pois

via as marchas, a multidão, a confusão de cores, sons, danças, bandeiras e protestos em

uma cidade de arquitetura colonial. Mas, chegando em 21 de janeiro de 2000, viu o

mundo dar a volta em questão de horas na capital equatoriana. A multidão colorida ali

derrubava um presidente e ocupava naquele momento os palácios do governo, ao

mesmo tempo em que tomava as ruas e praças. A luta indígena no Equador dava um

novo salto qualitativo em sua capacidade de intervenção nos conflitos sócio-políticos do

país. Quixote viu aqueles rostos e vozes, que mesmo quando desconhecidos já sabia

identificar, praguejarem contra o mau governo, corrupto, usurpador e desintegrador da

economia nacional.26

A capacidade do movimento indígena de articular o amplo

descontentamento popular mobilizou até mesmo os cinzentos homens uniformizados de

verde-oliva. O viajante assistiu ao anúncio, da sacada do Congresso, de uma “Junta de

Salvação Nacional”, formada com o apoio de parte da média oficialidade, como

indicava a participação de um coronel que formava o triunvirato com o ex-presidente da

Suprema Corte e o presidente da CONAIE. No entanto, esse ensaio de governo

provisório não durou mais que algumas horas, com a pressão do generalato para que se

dissolvesse e fosse efetivada a sucessão constitucional, assumindo o poder o substituto

legal do governante destituído.

Ao fim dessa jornada catártica, sentou-se o cavaleiro em uma calçada próxima

ao centro dos eventos e deteve-se em observar as movimentações, enquanto aguardava

alguém que lhe parecesse disponível para um diálogo. Não tardou para que uma moça

que há pouco estivera energicamente marcando o compasso da marcha se aproximasse e

estabelecesse o contato inicial. Apresentou-se Elena Gualinga e perguntou quem era

26

O estopim para o levante convocado pela CONAIE, que derrubou o presidente Jamil Mahuad, foi a

série de medidas econômicas que incluía a dolarização da economia.

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aquele estrangeiro desengonçado, de olhar tão curioso. Dom Quixote fez suas habituais

honrarias e falou do trajeto que percorrera para chegar até ali, do que se admirou sua

interlocutora, que o convidou à sede da CONAIE, uma casa de dois andares na esquina

das ruas Los Granados e 6 de dezembro, onde poderiam ficar à vontade para que o

visitante se entrevistasse com representantes das diferentes experiências, culturas e

propostas que vinham compondo o movimento indígena equatoriano. Circulavam por

ali representantes de 13 nacionalidades e 14 povos; mulheres, jovens e camponeses de

todos os cantos do país indo e vindo freneticamente, no compasso de espera quanto a

quais seriam os seus próximos passos.

IV. Em que se relata ao Cavaleiro de Triste Figura o novo despertar dos povos

originários em território equatoriano

Essa região delimita o início do grande complexo etno-cultural que compõe os

movimentos indígenas de Equador, Peru e Bolívia, cada qual com suas expressões

particulares, a partir das relações com Estado e sociedade. Em Quito, Quixote teria o

primeiro contato com o Tawantisuyo, país dos incas, cujos descendentes se difundem

pelos Andes. Destes, predomina no Equador e Peru a nacionalidade quéchua, enquanto

a Bolívia se caracteriza pela presença majoritária do povo aimará. Além destes, foram e

têm sido fundamentais no processo organizativo dos movimentos indígenas – tanto no

que se refere às mobilização quanto ao aporte de conceitos – os diversos povos

amazônicos e de terras baixas, que se relacionam com o universo cultural andino desde

outras matrizes.

O movimento indígena contemporâneo no Equador gestou-se a partir desses dois

pólos, tendo como pilares a Federação Shuar na Amazônia e a Ecuarunari na serra.

(ALBÓ, 1991, p. 305) O país vivia um processo de importantes transformações para as

quais foram fundamentais as lutas indígena-camponesas que levaram aos dois ciclos de

reforma agrária, em 1964 e 1973. Essas reformas suprimem as formas arcaicas de

produção; mas têm resultados contraditórios especialmente pelo seu caráter

desenvolvimentista, que buscava atender os interesses dos setores concentrados na

costa, vinculados ao mercado mundial e executava projetos de colonização na

Amazônia, com um sentido “civilizador”, sob o impacto do início da produção

petroleira. “Asimismo hemos respondido con la mayor afirmación de nuestra cultura e

identidad con relación a nuestras lenguas, costumbres, creencias y tradiciones como

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formas propias de conciencia y resistencia frente a la dominación.” (MACAS,1991, p.

22)

No início da década de 1970 começam a se estruturar as organizações que

consolidariam a nacionalização do movimento.

...“en la comuna TEPEYAC de la provincia de Chimborazo, realizamos

en junio de 1972, un congreso al cual asistieron más de 200 delegados

representantes de organizaciones indígenas campesinas, cooperativas,

cabildos, etc., de las provincias de: Imbabura, Pichincha, Cotopaxi,

Bolívar, Chimborazo y Cañar, en el cual se constituyó el

ECUARUNARI.

“En este Congreso se manifiestan dos posiciones respecto a la

conformación de la base social del ECUARUNARI. La primera,

planteaba la necesidad de aglutinar a sectores indios y no indios. La

segunda, apoyada por la Iglesia, sostenía la tesis de que la Organización

debía ser sólo de indios. Por otro lado, a nivel de dirigentes empieza a

surgir un grupo que cuestiona la injerencia directa de la Iglesia.

En las discusiones, la segunda posición va tomando fuerza, y el

ECUARUNARI se va definiendo como una organización INDIGENA,

cuyo principal objetivo será el de propiciar dentro de la población

indígena la toma de conciencia, en orden a lograr una recuperación

social, económica y política. En este Congreso también adquiere

importancia las discrepancias entre otros dos sectores: uno, que se opone

a dar un carácter "clerical" a la Organización y, otro, identificado

plenamente con la Iglesia, posición que sale triunfadora.”

(ECUARUNARI, s/d)

Nota-se a influência da Teologia da Libertação nesse processo inicial de

articulação, de modo semelhante ao que ocorrera em Chiapas no mesmo período. Da

mesma forma, colocam-se já nos primeiros passos algumas polêmicas internas que

acompanhariam – e ajudaram a conformar – as concepções do movimento indígena no

Equador e em outros países, relativas à sua auto-afirmação e à relação com setores

políticos e sociais não-indígenas. Polêmicas que dizem respeito à própria construção da

identidade indígena, o que contradiz as concepções que naturalizam essa afirmação.

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Constituída em 1980, a CONFENIAE aportou desde a região amazônica com o

auto-reconhecimento dos povos originários enquanto nacionalidades, reivindicação

posteriormente assimilada no próprio nome da CONAIE que, fundada em 1986,

conseguiu unificar nacionalmente as organizações mais importantes, com a integração

às confederações já mencionadas da CONAICE, representante dos povos da costa. Sua

estruturação, entretanto, se dá ao inverso da ordem aqui apresentada, pois a rede de

organizações (chamadas de segundo e terceiro grau), que se articulam desde o âmbito

comunitário até atingir o nível nacional. Sendo a comunidade o núcleo organizativo

fundamental, quando reunidas entre cinco e vinte formam os jatum cabildo que se

articulam nas federações provinciais antes do nível das confederações. Essa estrutura

garante a contundência dos levantes generalizados de povos e nacionalidades indígenas,

ou o seu fracasso, quando a convocatória das direções distancia-se dos anseios e da

linguagem das comunas.

Um ponto de inflexão do movimento ocorreu nas massivas jornadas de junho de

1990, iniciadas com a ocupação do templo de Santo Domingo no final de maio. “Como

todos los levantamientos llevados a cabo por nuestro pueblo, este último fue un

levantamiento contra la injusticia, por el derecho a una vida digna y a la

autodeterminación de diez nacionalidades indígenas que luchamos por defender

nuestros legítimos derechos históricos.” (MACAS, op. cit., p. 17)

O levante, inesperado para os demais setores da sociedade equatoriana,

demonstrou o acúmulo de forças que a CONAIE lograra desde sua formação, dando aos

povos originários a possibilidade de postular-se como agente do debate político. “Por la

fuerza de nuestra protesta, tanto la sociedad civil como el Estado se vieron obligados a

reconocer a los indios y a nuestro movimiento como fuerza política importante del

movimiento popular de este país”. (ibidem, p.18)

Como seria recorrente nesse trajeto, as causas daquela rebelião seriam

encontradas muito além das tensões conjunturais. “En realidad, las causas habría que

buscarlas en la acumulación de explotación y opresión que hemos sido objeto los indios

por cerca de 500 años, puesto que hasta estos días los indios seguimos siendo los más

pobres y humillados de esta sociedad. De esta manera, un antecedente fundamental

constituyen para nosotros 500 años de resistencia al colonialismo y neocolonialismo.”

(ibidem, p.18-19) Além dessa misteriosa força subterrânea que invariavelmente surge

como motor das resistências indígenas, o levante de 1990 tinha como eixos

mobilizadores a defesa e recuperação da terra e territorialidade, que aparecia como um

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tema fundamental: “Creemos que no habrá solución al problema indígena si no se

resuelve el problema de la tierra: lo esencial para nosotros es la recuperación de la

tierra”. (ibidem, p.24); a unidade a partir da revitalização da identidade étnica; os limites

ideológicos do sistema político, incapaz de atender demandas. Algumas reivindicações

anunciadas então marcariam as lutas políticas e os debates sobre a reforma do Estado

equatoriano nos anos seguintes: reforma do primeiro artigo da constituição, para

reconhecimento de Estado plurinacional; reordenamento constitucional e criação de leis

e instrumentos jurídicos que permitam o direito ao autogoverno, baseado no princípio

da autodeterminação; controle e execução direta do programa de educação bilíngüe e

reconhecimento da medicina tradicional comunitária; recursos estatais para

financiamento de programas autogestionários e desenvolvimento de obras de infra-

estrutura e serviços básicos.

Passado e presente se articulam na construção da memória e dos elementos de

legitimação da luta: “Si hacemos una ligera revisión sobre el contexto socio-político en

que se desenvuelven nuestros pueblos, vemos que a 500 años de la invasión europea y

150 años de régimen republicano, se siguen desconociendo los derechos de los pueblos

indios; la conquista no ha concluido, sigue hasta nuestros días.” (ibidem, p. 19) Porém, a

partir dos anos 90 emerge um novo ciclo de desafio a esse contexto, com a transição das

demandas indígenas e dos povos originários enquanto sujeitos, a um novo patamar.

“Para los indios el levantamiento ha planteado varios retos que demandan mucha

responsabilidad. Estamos conscientes que somos una fuerza social y política con

enorme peso. Nos hemos ganado un lugar en la sociedad y buscamos una real

participación democrática y somos portadores de las aspiraciones de los pobres de esta

patria. Hemos hecho un llamado a la justicia.” (ibidem, p. 30)

O III Congresso CONAIE, realizado nessa época, já indicava a orientação que

tomaria sua luta, afirmando a necessidade de conquistar direitos históricos, baseada nas

formas próprias de organização, sem intermediários, mas sem descuidar da aliança com

demais setores populares. Desde então, dois presidentes da República foram mandados

para casa com sua ação decisiva e o movimento indígena equatoriano, que construiu

uma presença influente – ainda que conflituosa – nos embates de projetos do país,

buscando articular o atendimento de suas demandas particulares às alianças com outros

movimentos. Nesse processo, o movimento elaborou e foi desenvolvendo um conceito

central para reivindicar uma nova posição para os povos indígenas. Partindo da auto-

identificação enquanto nacionalidades, foi construída a demanda do Estado

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plurinacional, contrapondo-se à forma liberal clássica do Estado-nação. Esse conceito

tornou-se central nos debates programáticos dos movimentos andino-amazônicos, sendo

constantemente desenvolvido no discurso de seus representantes. Como expressou em

algum momento Nina Pacari, dirigente da CONAIE que chegou a ministra de Relações

Exteriores,

“Desde inicios de los años noventa venimos planteando la construcción

de un Estado plurinacional porque creemos en un poder horizontal,

compartido y distinto a la ausencia de identidad que tenía la lucha de

clases tal como se la entendía en los años sesenta. La lucha tiene que ver

con la estructura del Estado y el ejercicio del poder.” (STEINSLEGER,

2001)

Transcendendo o formalismo procedimental que determina os debates sobre a

democracia parlamentar, a proposta do Estado plurinacional – cujo conteúdo efetivo é

ainda tema de discussão – é construída no âmbito da descolonização, pressupondo

transformações radicais nas relações sociais e na organização política das formações

sociais em que se pretende concretizá-la. Essa concepção, apesar de alguns avanços no

reconhecimento institucional, é ainda objeto de intensas disputas, principalmente pelas

reações que detectam no plurinacionalismo uma ameaça à soberania do Estado-nação,

chegando mesmo ao paroxismo de estabelecer analogias entre os movimentos latino-

americanos e o integrismo islâmico ou o risco de um separatismo basco ou balcânico.27

Porém, no âmbito interno do movimento ainda se discute quanto aos limites dos

avanços institucionais, à construção do seu conteúdo real e aos métodos que tornem

viável o plurinacionalismo.

“La Democracia Plurinacional Comunitaria y Participativa implican un

reordenamiento y transformación de la naturaleza del actual Estado,

de las estructuras jurídicas, políticas, administrativas y económicas que

permitan la participación plena de las Nacionalidades y Pueblos, así

como de los otros sectores sociales en la toma de las grandes decisiones.

27

Vale contestar que, com o acirramento do conflito e o acesso de setores do movimento indígena ou de

projetos “progressistas” a fatias do poder político, foram as oligarquias regionais de Santa Cruz

(Bolívia); Guayaquil (Equador) e Zulia (Venezuela) que assumiram a vanguarda da reação pró-

imperialista e impulsionaram projetos abertamente secessionistas.

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“La nueva democracia será ante todo, anticolonialista, antiimperialista y

antisegregacionista, es decir diferente al falso sistema democrático

representativo imperante en la actualidad. (…)

“Para garantizar el pleno ejercicio de los derechos de las

Nacionalidades es necesario consolidar y reafirmar la unidad del

Estado Plurinacional, para enraizar la democracia, la paz y la libertad se

constituirá el nuevo Estado Plurinacional como expresión soberana,

independiente y democrática de las Nacionalidades, Pueblos y otros

sectores sociales.” (CONAIE, 2001 – grifos meus)

O ciclo de lutas impulsionadas pela CONAIE marcou com enorme vitalidade por

toda a década de 90, com a conquista progressiva de novos patamares de intervenção na

cena pública. Em 1995, articulou o Movimiento de Unidad Plurinacional Pachakutik-

Nuevo País (MUPP-NP) como braço político, com a decisão de participar nos espaços

institucionais. Dois anos depois, outro momento emblemático foi a destituição de

Abdala Bucaram, que abriu espaço para um processo constituinte no qual foram

acolhidos diversos temas da agenda construída pelo movimento indígena. A

Constituição de 1998 reconheceu os direitos coletivos dos povos indígenas e das

comunidades afrodescendentes, bem como os regimes especiais de administração

territorial. Entretanto, não confirmou o caráter plurinacional do Estado, indicando a

aceitação do tratamento da questão enquanto um problema de “minorias”, mas não

como a reivindicação, por parte de forças políticas independentes, de um reordenamento

desse Estado e de seu monopólio sobre o território. Segundo Nina Pakari,

“Los pueblos indígenas entienden la autonomía desde el punto de vista de

la reorganización territorial. Pero yo dudo que en este caso el Estado

pueda ceder, porque ya en la Asamblea Constituyente de 1998, a la hora

de la discusión tampoco la aceptaron y las autonomías se aceptaron

únicamente como jurisdicciones territoriales indígenas, mas no con plena

autonomía, que era lo que planteábamos.” (STEINSLEGER, 2001)

Nesse processo, o movimento indígena equatoriano destacou-se por sua

capacidade de firmar-se como protagonista no debate nacional, articulando demandas

particulares com lutas mais gerais das classes subalternas, o que tem sido o seu principal

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desafio. Isso porque tal opção acarreta o ônus de assumir a exposição e as

responsabilidades de colocar-se como um agente político que disputa um projeto de

país, ou de hegemonia, para colocar em outros termos. Da mesma forma, surgem os

questionamentos internos pelo risco de o “politicismo” ofuscar a atenção às questões

mais imediatas das comunidades através da burocratização, do privilégio às negociações

e aos projetos financiados por instituições internacionais e o consequente

distanciamento entre organismos de direção e base. Assim, a CONAIE representa uma

experiência notável de unidade de movimentos tão diversos, capaz de sobreviver às

inevitáveis facções internas e à passagem por conjunturas desfavoráveis.28

Os desafios

desse acionar político aprofundaram-se com o levante de 2000. “De 1986 [...] hasta el

21 enero de 2000, día en que una movilización indígena destituye al presidente Jamil

Mahuad, la Conaie pasó de una visión étnica-nacional a una visión política-nacional del

problema indígena”. (idem)

Trata-se de uma experiência que passou a acumular-se, para além dos combates

mais imediatos do movimento social, também no exercício do governo em diferentes

níveis (do município ao Congresso nacional, antes da breve e traumática passagem pelo

Executivo), o que foi importante para que o movimento assumisse certas

responsabilidades que lhe foram colocadas, mas também aprofundou e deu maior

repercussão a certas contradições. Não obstante, foi essa trajetória, orientada pela

demanda do plurinacionalismo, que possibilitou ao movimento qualificar seus

questionamentos ao Estado “nacional” equatoriano, não apenas em termos étnico, mas

no sentido de ampliação dos espaços de democracia. Experiências locais como Guamote

e Cotacahi são contrapostas ao autoritarismo oligárquico implantado em Guayaquil: “En

estilo y contenido, son formas distintas y que son miradas como un modelo para el país.

Y este proceso es llevado a cabo por alcaldes indígenas”. (idem) Formas inovadoras de

exercer a democracia, que se pretende complementar e não oposta às formas

conhecidas. Inovadoras no âmbito do reconhecimento jurídico, já que derivam de

práticas consuetudinárias das comunidades.29

A partir desse acúmulo, os povos originários, nacionalidades indígenas do

Equador, projetam-se como sujeito protagônico na formação de um bloco histórico que

28

Não por acaso, parte da estratégia de desarticulação da CONAIE pelo governo de Lucio Gutierrez

centrou-se na sua divisão, através da cooptação de algumas lideranças. Desde então, além da

dificuldade de recuperar seu papel protagônico na cena política devido ao desgaste do apoio ao

governo o movimento indígena viu surgirem alguns esforços de organização paralela, como a

Federação Evangélica Indígena do Equador (FEINE). 29

Como se analisará na parte 3.

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pautou por cerca uma década a resistência aos programas “neoliberais” e os debates pela

ampliação dos espaços de democratização de toda a sociedade, sem abrir mão de suas

particularidades enquanto povos. Tal processo, notado por diferentes intelectuais,30

teve

seu auge no início dos anos 2000. A partir de então, foi colocada para CONAIE a

disjuntiva de sua relação com o poder, entre esse impulso renovador e a co-

responsabilidade em determinados espaços do quadro institucional vigente.

“El movimiento indígena ecuatoriano ha sido claro: no hemos

abandonado la lucha extrainstitucional. Pero cuando asumimos la lucha

institucional vía elecciones, o sea con reglas establecidas, vemos que es

difícil trascender respecto a los nuevos estilos de actuar políticamente. El

lado ético del asunto es fundamental. Que el estilo de legislar no consista

en una formulación de elite y de cuatro entendidos, sino que sea parte de

un proceso.” (STEINSLEGER, 2001)

Mas os combates da CONAIE não se limitaram ao plano político. Como no caso

mexicano ou no boliviano, cultura, política se imbricam sobre o pano de fundo

histórico-estrutural na configuração dos conflitos sociais e de seus sujeitos. Daí

compreende-se que, com o amadurecimento de uma intelectualidade formada em

espaços organizativos próprios e o diálogo com algumas correntes teóricas,31

tenha-se

afirmado a necessidade de assumir um espaço próprio nos debates teóricos, pondo em

questão as interpretações correntes sobre processos e fenômenos, não apenas

relacionados ao universo dos povos originários, mas da própria condição

contemporânea.

“Hace un momento expresaba que actualmente existen dos luchas

paralelas y de carácter fundamental. La primera hacía referencia a los

30

Ver supra como Nina Pakari coloca a questão. Hidalgo Flor (2005, p. 344) refere-se a um “salto da

fase particular à fase político-universal”, enquanto Pablo Dávalos (2003, p. 43) sintetiza “...la

transformación del movimento indígena de un actor social constreñido y limitado a demandas

particulares y en las cuales su enfrentamiento com el Estado se hacía en función de reclamar una

integración a los mecanismos de participación y representación política, económica y social, una

integración que se basaba en el respeto a su identidad cultural, hacia la constitución de un sujeto

político en el cual sus demandas son nacionales y su agenda compete y compromete a toda la

sociedad.” 31

Um exemplo interessante desse tipo de experiência é a Universidad Intercultural de las

Nacionalidades y Pueblos Indígenas "Amawtay Wasi", organizada pela CONAIE a partir do ICCI.

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desafíos que tenemos las comunidades y pueblos indígenas frente a los

embates de la globalización. Ahora bien, la segunda hace referencia a la

disputa que existe en el terreno del conocimiento, en la formación de los

saberes: ¿es posible el reconocimiento de otro pensamiento?; si existen

otras racionalidades, ¿qué lugar asignar a la racionalidad dominante? ¿Es

posible reconocer otras formas de construcción del pensamiento? Si son

posibles otras formas de construcción del pensamiento, entonces ¿cómo

validarlas? Se trata, por tanto, no solamente del pensamiento, sino de la

construcción de los saberes.” (MACAS, 2005, p. 39-40)

Parte desse esforço se reflete na afirmação de alguns conceitos que, emergindo

da práxis acumulada pelo movimento, passaram a incidir no vocabulário político e nas

reflexões acadêmicas. No caso equatoriano, bem como na Bolívia, estão principalmente

as discussões em torno da noção de plurinacionalismo. Porém, o emprego de conceitos

como interculturalismo colocam o problema da identidade para além de

multiculturalismos e pós-modernismos, que têm no reconhecimento da diferença um

programa em si.32

Como já foi mencionado, trata-se de questionar os fundamentos das

relações culturais e de poder e propor alternativas a esse estado de coisas, no que

contribui a assimilação e reelaboração de outros conceitos como território e

territorialidade ou colonialismo interno.

Quixote ficou muito impressionado com todos os logros e a maturidade do

indigenato equatoriano, mas não pôde ficar para ver as encruzilhadas que se

aproximavam para a CONAIE e suas organizações filiadas. Ouvira tanto de coisas tão

fantásticas que se passavam nos países vizinhos, que sua alma de cavaleiro andante,

infinitamente interessado na experiência humana, o impeliram a ver e ouvir como

pensavam e agiam os povos originários de outras regiões.

32

Esse enquadramento da questão a coloca em termos incompatíveis com os que alude Silvia Rivera ao

referir-se à “retórica do pluri-multi” (CUSICANQUI, 2003, p. 13), conforme é desenvolvido pelas

academias norte-americana e européia e assimilada por ONGs e elites intelectuais latino-americanas,

pelo que é importante evitar generalizações apriorísticas.

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V. “As linhas do muro brincavam com o sol; as pedras não tinham ângulos nem

linhas retas; cada qual era como uma besta que se agitava à luz; transmitiam o

desejo de celebrar, de correr por alguma pampa, lançando gritos de júbilo”.33

Depois de tudo que ouvira sobre o esplendor da capital do Tawantisuyu, o

cavaleiro não teve dúvida em rumar direto para lá, onde notou de longe o contraste das

construções do centro com a pobreza na periferia da cidade. Após sentar-se em um

mercado popular nos arredores de Qosqo (ou Cuzco na versão castelanizada), achou

curioso que não chamasse grande atenção dos transeuntes e já pensava que de fato

poderia passar despercebido numa cidade com tantas alegorias dos tempos heróicos dos

incas, contrapostas aos monumentos da conquista européia. Documentos de cultura, que

eram também documentos de barbárie expressando a cada esquina testemunhos de

embates passados. (BENJAMIN, 2005, p. 70) Foi quando se aproximou um garoto de

cerca de quatorze anos, admirado com aquele personagem de barba desgrenhada, roupas

extravagantes e fala empolada. Seu nome era Ernesto Huayna Arguedas e nos primeiros

momentos da prosa, Quixote ficou sabendo que falava um quéchua mesclado com

castelhano, que perdera os pais na guerra interna e desde então vendia doces ou o que

podia na rua para comprar material escolar e sustentar sua irmãzinha. Esse contato

revelou um país de tradições impressionantes, porém marcado pela tragédia recente do

conflito interno.

O pequeno Arguedas conduziu Dom Quixote pela cidade. Era noite e o

forasteiro surpreendeu-se com a estação ferroviária e a larga avenida por que

caminharam, bem diferente da Cuzco monumental mil vezes descrita no caminho e mais

parecida às periferias das cidades por onde passara. Chegaram então a umas ruas

estreitas, onde recuaram e se revelaram às suas vistas belos balcões, portais e saguões

com entalhes muito bem trabalhados, mas semelhantes a algumas no caminho.

Esquadrinhava as ruas buscando os famosos muros incaicos, quando o garoto exclamou

que olhasse em frente, onde estava a construção que fora o palácio do Inca Roca.

Por uns segundos paralisado, o estrangeiro analisou atentamente. O muro

formava esquina, avançando de uma rua larga para outra mais estreita e sem iluminação,

que tinha fedor de urina e dava em uma ladeira. Depois, foi analisando pedra por pedra.

33

José Maria Arguedas, Los rios profundos.

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Recuava uns passos, contemplava e voltava a se aproximar. Tocava-as com as mãos;

seguia a linha ondulante como a de um rio, que juntava os blocos que, apesar de

enormes e compactos, pareciam vivos e flamejantes na palma das mãos. Ninguém

passava pela rua por um longo tempo, a não ser um bêbado que fez uma breve parada na

esquina antes de seguir, sem perturbar Dom Quixote, que seguiu naquela espécie de

transe, vendo e sentindo no muro tudo que passara nos últimos anos.

Perguntou a Huayna se ainda vivia alguém naquele palácio, ao que este

respondeu que sim, desde a conquista, ou não vira os balcões? O cavaleiro já havia se

esquecido da construção colonial, suspendida sobre a muralha, como um segundo piso.

E quem morava ali? Uma família aristocrática e avarenta, por certo, como são todos os

senhores de Cuzco. E o Inca permite? Mas esses estão todos mortos. Mas não o muro. E

se são avaros os moradores, o muro poderia devorá-los... Comentou então que as pedras

falavam, ao que o jovem respondeu que na verdade o que ocorria é que elas se

trasladavam à mente, desde ali inquietando o observador atento, e que pareciam mover-

se por serem desiguais, ao que foi replicado que pareciam caminhar, revolverem-se, não

obstante estarem quietas. Maria Angola começou a reverberar na torre da igreja central

e o garoto sugeriu que seguissem para a Praça de Armas, mas Quixote quis antes fazer

um juramento de que aquelas pedras o acompanhariam onde ele fosse.

Seguiram então em direção à Catedral, cuja entrada se dá pela Igreja do Triunfo,

pois contam que ali os invasores, após serem quase arrasados pela resistência de Manco

Inca, contaram com aparições da Virgem da Descenção e de Santiago, que, sendo Mata-

mouros na Europa, tornou-se aqui Mata-índios e garantiu a vitória sobre os quéchuas e

sua civilização. Com o trabalho compulsório dos vencidos e as pedras retiradas da

fortaleza de Sacsayhuaman nos arredores de Cuzco, os conquistadores ergueram a

catedral, que parece maior de quanto mais longe se vê, como monumento à sua vitória e

à religião que vieram impor. Quixote entendeu porque aquela igreja fazia sofrer e

perguntou se a praça era espanhola, ao que seu pequeno guia respondeu que é obra de

Pachakutek, o Inca renovador da terra, e por isso era certamente distinta de todas as

praças conhecidas pelo viajante.

Dali, Ernesto se despediu e Quixote sentou-se em um café próximo à praça de

armas, onde encontrou um velhinho bem simpático, de barba e cabelo brancos como

algodão, vestindo calça, camisa pólo, sandálias e um típico chapéu camponês que às

vezes lhe cobria os olhos. Apresentou-se e descobriu que era Hugo Blanco, figura

legendária das lutas sociais peruanas que na década de 1960 liderou o processo de

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tomada de terras a partir da auto-organização camponesa, posteriormente nacionalizada

pela reforma agrária do governo Velasco Alvarado, ainda que sua ação centralizadora

desvirtuasse parte do ímpeto inicial.

Atualmente, esse velho combatente se dedica a articular, organizar, impulsionar,

reativar e recuperar a memória da Luta Indígena,34

trabalhando assim para estabelecer o

elo entre passado e presente da resistência popular no Peru, bem como entre as tradições

de organização dos povos originários e a tradição revolucionária marxista. Tal diálogo

tem ali um interessante precedente no amauta Mariátegui, mas as condições atuais se

configuraram adversas para a irrupção do discurso étnico em sua dimensão política que

veio adquirindo em outros países. Sobre as peculiaridades do movimento indígena

peruano que, comparado aos países vizinhos, chama atenção pela ausência, estiveram

conversando aqueles dois personagens bem únicos.

Em grande medida, o Peru contemporâneo traz as sequelas da guerra interna na

qual as organizações guerrilheiras chegaram a consolidar considerável implantação em

algumas regiões do sul andino e preparar ações em grandes centros urbanos. A principal

organização a impulsionar a luta armada, Sendero Luminoso, se articulou a partir de um

grupo de professores e estudantes universitários de Ayacucho, região isolada e de pouca

tradição organizativa do campesinato. O grupo guerrilheiro, que retirou o seu nome de

uma citação de José Carlos Mariátegui, surge de uma dissidência do Partido Comunista

de linha chinesa e adota uma ideologia que, derivada de uma leitura muito particular do

maoísmo pontuado por referências a Mariátegui,35

era estruturada em princípios

dogmáticos e autoritários, fundamentando métodos violentamente sectários que

justificavam o combate contra tudo o que não se encaixasse no seu ideal de projeto

“revolucionário”, o que incluía sindicalistas, militantes de partidos de esquerda e

“revisionistas” de todo tipo, pequenos comerciantes e proprietários rurais, autoridades

locais e comunidades camponesas suspeitas de colaboração com a repressão. Por outro

lado, com o pretexto do combate ao terrorismo, o Estado peruano adotou uma estratégia

contra-insurgente de repressão e controle social, em que alvos civis e militares pouco se

diferenciam.

Como saldo, o Peru contabilizou cerca de 70.000 mortos entre o início das

operações militares do Sendero em 1981 e a captura de Abimael Guzmán em setembro

34

Este é o nome do periódico dirigido atualmente por Hugo Blanco. 35

Em algum momento, o Sendero chegou a considerar-se “farol da revolução mundial” e seu principal

dirigente, Abimael Guzmán – o Presidente Gonzalo – a quarta espada do comunismo internacional,

sucedendo Marx, Lênin e o chinês Mao Tsé-Tung.

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de 1992, sendo 75% das vítimas quéchuas de comunidades camponesas dos

departamentos do centro-sul andino. Para completar, o contexto de guerra interna abriu

caminho para a ditadura civil-militar comandada por Alberto Fujimori que introduziu o

país no fundamentalismo do mercado, inaugurando algo que podemos chamar de

neoliberalismo de guerra.36

“El fujimorismo impuso una profunda modernización neoliberal que

cambió completamente el rostro de la sociedad y el Estado peruano. En

una sociedad que a inicios de la década de 1990 se hallaba devastada

debido a la expansión de la violencia política, la galopante crisis

económica y el debilitamiento estatal, la modernización neoliberal

prácticamente no halló resistencias.” (TEVES, 2007, p. 107)

Portanto, além da decomposição do tecido social, com uma sociedade sufocada

pelo peso de um regime autoritário e pelo trauma de tamanho massacre, a emergência

da temática indígena foi ofuscada pela situação de alvos majoritários no fogo cerrado

dos anos 80 e 90. Observadas as particularidades, é possível estabelecer certa analogia

com a experiência guatemalteca, onde a enorme presença das tradições pré-colombianas

não ganhou a dimensão que seria esperada diante da emergência continental dos povos

originários, no que tiveram papel determinante os massacres das décadas precedentes.

Analisar as causas mais profundas dessa guerra nos levaria demasiado longe,

mas é importante mencionar dois fatores que influenciaram na complexa configuração

étnica do Peru contemporâneo, a reforma agrária e a rápida urbanização concentrada em

Lima, ambos derivados dos contraditórios processos de modernização que marcam a

paisagem do século XX neste continente.

A reforma agrária implementada pelo governo militar de Juan Velasco Alvarado

no fim dos anos 60 liquidou com o sistema tradicional das haciendas, reconheceu

oficialmente os idiomas indígenas, mudou o estatuto legal das comunidades. No

36

O antropólogo peruano Ramón Pajuelo Teves (2007, p. 104-105) analisa o componente étnico na

eleição de Fujimori, um engenheiro desconhecido, que derrotou a plataforma liberal-criolla do

escritor Mario Vargas Llosa. Vitorioso com um discurso populista que apelava a setores mestiços

(cholos) pobres, logo após a posse aplicou um choque econômico que incluía o aumento de até 800%

em produtos de primeira necessidade. Em 5 de abril de 1992, Fujimori fechou o congresso e interveio

no judiciário, mantendo-se no poder até setembro de 2000, quando se viu obrigado a renunciar em

meio a denúncias de fraude eleitoral e escândalos de corrupção. Em abril de 2009 o ex-presidente foi

condenado pela justiça peruana por execuções e violações dos direitos humanos no período da guerra

interna.

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entanto, apesar da fraseologia revolucionária que recorria à mitologia incaica e à CNA

para manter uma base social mobilizada,37

o programa do militarismo progressista se

mantinha atado à concepção liberal de que tornar os índios cidadãos significava

desindianizá-los; suas formas de organização da base através do SINAMOS eram

verticalizadas, de métodos corporativos; o modelo produtivo e fundiário, baseado nas

grandes empresas cooperativas agrárias CAP e SAIS, não levava em conta as tradições

comunitárias e logo seria por elas desestruturado e absorvido.

Outro fenômeno a moldar a sociedade peruana foi a vertiginosa urbanização

direcionada para a costa e concentrada na capital. Entre 1940 e 1979 o país saltou de

27% a 65% de população urbana, enquanto Lima setuplicou sua população no período

indicado e na década seguinte viu sua população passar de 4,5 a 7 milhões de

habitantes, cerca de um terço da população do país. (ALBÓ, 1991, p. 321) As principais

zonas de expulsão foram, na maior parte do período, as áreas andinas que concentram a

maior parte das comunidades tradicionais. Sua principal consequencia foi a

“serranização” de Lima, expressa na disposição geográfica dos novos bairros nos

arredores da capital; nos centros e clubes provinciais, com suas festas e redes de

reciprocidade; em manifestações culturais como a música “chicha”; na auto-organização

para a conquista de moradia, trabalho e serviços básicos, ante a inoperância estatal.

“Desde el Estado, se ignoró el proceso de construcción silenciosa y 'desde abajo' de una

peruanidad diferente, por parte de cientos de miles de migrantes indígenas que desde la

década de 1940 abandonaron sus comunidades rurales y engrosaron la población de las

ciudades”. (TEVES, 2007, p. 99) Esse processo assume contornos especialmente

conflituosos em uma sociedade na qual a construção histórica do racismo se funda

ademais na contraposição geográfica entre a costa aristocrática e a serra indígena,

diferentemente das capitais andinas Quito e La Paz.

Nesse quadro, a questão étnica assumiu um ritmo próprio nesse país de fortes

tradições indígenas. Segundo Albó (1991, p. 325), o “campesinismo” predominou nas

organizações andinas até década de 1990, de maneira que tiveram repercussão limitada

iniciativas como o Primeiro Congresso de Nacionalidades e Minorias Nacionais em

1979, realizado em Cuzco com o apoio de grupos de esquerda, em que se nota

37

A Confederação Nacional Agrária foi fundada em 1974 com apoio estatal, a fim de disputar espaços

políticos com a Confederação Camponesa do Peru, criada em 1946 com o suporte de militantes

comunistas. Apesar de sua origem oficialista, a CNA não deixou de ter alguns momentos de

radicalização de suas demandas.

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influência do katarismo boliviano.38

Outras experiências, como o CISA estabelecido na

mesma cidade no ano seguinte, articulam um incipiente indianismo radicalizado, que no

entanto mantém-se isolado em relação às bases sociais mais amplas dos movimentos

sociais camponeses mais importantes, notadamente CNA e CCP. (TEVES, op. cit., p.

102)

Em contraponto a essa realidade na serra, organizações indígenas como o

Congresso Amuesha e o Conselho Aguaruna-Huambisa começam articular já na década

de 1960. De maneira que na década de 1980 o movimento já está consolidado a ponto

de conformar organizações de terceiro grau, como AIDESEP e CONAP. Fundada em

1984, a COICA passou a reunir organizações do Equador, Colômbia, Venezuela,

Colômbia, Brasil, Bolívia, Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Peru, tendo aí sua

primeira sede. No entanto, essas importantes experiências que se mantém presentes nas

lutas atuais, mantiveram-se no âmbito regional e, tanto por contradições internas como

pelos fatores mais gerais já observados,39

não passaram pelos processos de unificação e

intervenção no debate nacional observados em Equador e Bolívia.

Meu objetivo aqui não é analisar o caso peruano a partir da ausência do

movimento indígena, mas compreender como se configura a dinâmica recente dos

conflitos etnopolíticos. Pois se a demanda indígena não assumiu até agora a visibilidade

que tem nos países vizinhos, a herança quéchua é uma força inegável e não deixa de se

expressar nos espaços de organização popular e camponesa, ainda que por outros canais

em que não aparece como eixo articulador. Apesar de a temática indígena não alcançar

a dimensão observada em outros casos, chama atenção como um fator que atravessa as

diversas lutas políticas que vêm se sucedendo no Peru durante processo de

redemocratização, conflitos agravados pela reiterada incapacidade estatal em lidar com

as demandas populares. Ao longo da década de 2000, emergem fenômenos eleitorais

como a eleição do cholo Toledo com apelos à mitologia andina e o “etnocacerismo” da

família Humala;40

a crise em torno à aplicação de mecanismos de justiça comunitária

Ilave;41

as articulações regionais contra o centralismo; lutas setoriais como a rebelião de

38

Sobre katarismo, ver capítulo seguinte. 39

Apesar de sua limitada expansão pelos departamentos amazônicos, o Sendero Luminoso logrou

implantação em determinados territórios, levando as consequencias da guerra com especial

intensidade à população ashánika da qual se estima em seis mil o número de vítimas fatais, às quais se

somam outros milhares de refugiados. (TEVES, op. cit., p. 103) 40

Ver TORRES, 2006. 41

A violenta execução em abril de 2004 do alcaide do município aimará na fronteira com a Bolívia foi

tema de ampla controvérsia. De um lado, os que condenavam o ato de “barbárie”, à margem da lei; do

outro, os que buscaram compreender os mecanismos de justiça comunitária que justificaram o ato

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2002 contra a privatização do setor elétrico em Arequipa e a radicalização das lutas

magisteriais, com epicentro no sul do país (Cuzco, Puno, Arequipa), que teve seu ápice

na greve geral de 2007; o movimento cocalero; os movimentos de defesa dos recursos

naturais e territórios comunitários, em que se destacam a luta contra as mineradoras

articulada pela CONACAMI e os levantes de 2008 e 2009 dos povos amazônicos contra

os decretos do governo federal.

contra uma série de acusações de corrupção, baseado no princípio do Ama killa, ama llulla, ama shua

(Do quéchua: Não ser preguiçoso, não mentir, não roubar.)

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VI. Em que o engenhoso fidalgo conhece a rebeldia da plebe aimará que povoa o

altiplano boliviano e seus arredores.

Após a passagem por Cuzco, Quixote seguiu para a região do Titikaka, berço

dos primeiros incas e chegou até o sítio da civilização pré-incaica Tiahuanaco, onde lhe

foi revelado um pouco mais do universo andino que tanto lhe fascinava. O engenhoso

fidalgo de La Mancha reagiu com ceticismo às notícias de fabulosas jornadas de luta

que ocorriam em terras aimarás, mas o ambiente de um estado de rebelião que se vivia

há alguns anos era tão intenso que ao cavaleiro só restou seguir caminho para conhecer

o que se passava na terra do tal Tupac Katari, de quem tanto ouviria falar.

Subiu então até El Alto à custa de seu pobre cavalo doado pelos maias de

Chiapas, que a essa altura já fizera um percurso muito mais longo que o velho

Rocinante. Chegando à cidade, antes de ficar pasmado com a vista de La Paz, deteve-se

na movimentação frenética daquela cidade aimará de ocupação recente e autônoma,

expressão de um país em movimento. As marcas da migração recente não se expressam

apenas no traçado das ruas e na divisão dos bairros, delirantes a uma racionalidade

estatal-cartesiana, mas em todo o senso geográfico e histórico de uma população que

traduz para o meio urbano seus vínculos comunitários de origem.

Nosso personagem deteve-se num grupo de jovens que se vestiam com roupas

largas que cobriam todo o corpo, cada um deles carregando uma caixa de madeira e

usando passa-montanhas que o fizeram pensar tratar-se de zapatistas. Com esse mote foi

interpelá-los a que soube tratar-se de um grupo de engraxates, mas que não eram apenas

engraxates, pois como logo aquele estrangeiro veria, na Bolívia quase sempre a rebeldia

se guarda sob a aparência de mansidão. Alguns rapazes, sempre muito ativos, foram

dando um lustre nas vestimentas de Quixote, enquanto outros insistiam que ele ficasse

com uma cópia do jornal que eles editavam, o Formigão Armado. Contaram-lhe que se

organizavam para sobreviver no trabalho de rua, onde tinham uma extensa rede de

contatos que permitia em minutos saber toda a movimentação da região metropolitana

de El Alto-La Paz. Que se vestiam daquele jeito por causa do frio seco e cortante do

altiplano, mas também pela força estética e pelo sentido de auto-preservação. E que

além do trabalho nas ruas, tinham algumas oficinas onde se reuniam para desenvolver

trabalhos comunitários e confraternizar, sendo que alguns ali presentes participavam um

grupo de artistas que compunham rap em língua aimará.

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O encontro se deu em algum momento entre fevereiro e outubro de 2003, pelo

que a animação daqueles jovens não conseguia esconder sua tensão. Após sentirem

confiança naquele estrangeiro, os engraxates o convidaram para sua oficina, que ficava

a algumas quadras do centro de El Alto. Na longa conversa, o cavaleiro impressionou-se

com a sabedoria daqueles jovens em relação às tradições da resistência indígena no

Qollasuyu, uma sabedoria que posteriormente veria bastante difundida por toda a

região.

A tradição de resistência do povo aimará, que atravessou o período colonial tem

uma presença aparentemente cíclica na história boliviana. Dessa forma, os movimentos

populares e indígenas do final do século XX apresentam-se renovados por tradições que

passam pela revolta de libertação nacional de Tupac Katari, que em 1781 esteve

próximo de expulsar os espanhóis estabelecendo o cerco a La Paz; a participação das

tropas indígenas comandadas por Zárate Wilka na Guerra Federal de 1889; pela

revolução popular de 1952, que desestruturou o exército e culminou com reforma

agrária e, finalmente, pela rearticulação do discurso indígena no katarismo dos anos 70,

que se tornaria um prelúdio para o ciclo insurgente contemporâneo.

Pachakutik, palavra ouvida também em Quito, contém entre seus possíveis

significados a noção de uma renovação cíclica e cataclísmica do espaço e do tempo, um

conceito que se assemelha em alguns aspectos ao sentido original da palavra revolução.

Talvez por isso, conscientemente ou não, o conceito quéchua fosse apropriado para

designar a nova concepção de transformação social que vem se gestando nos Andes. O

ciclo da plebe insurgente, iniciado em abril de 2000 com a “Guerra da Água” contra a

privatização deste recurso em Cochabamba, emerge de uma crise profunda na natureza

da dominação estatal e se desenrola nos anos seguintes com a diversificação das formas

de luta e ampliação da capacidade de intervenção dos movimentos sociais nos conflitos

sócio-políticos do país. Assim, sucedem-se as marchas, eleições de deputados

indígenas, bloqueios de caminhos a paralisar o país ou determinadas regiões, greves de

fome, combates massivos de rua etc. Um amplo repertório de ações que pautaram

situações como os levantes de fevereiro de 2003 contra a alta de impostos e de

setembro/outubro do mesmo ano conhecido como “Guerra do Gás” ou as mobilizações

de 2005 contra a privatização dos serviços de água em El Alto e pela nacionalização dos

hidrocarbonetos. Um desenlace desse processo, que em nada representa uma leitura

linear dos episódios anteriores, é a eleição de Evo Morales para presidente em

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dezembro de 2005, que reconfigura a composição das forças políticas bolivianas e

coloca outra ordem de desafios para os movimentos sociais.

Em El Alto os que receberam o viajante insistiram que, mais que pelas

organizações e suas lideranças, a melhor maneira de conhecer a complexidade do

movimento indígena daquele país seria ouvindo as diferentes vozes, observando a ação

dos diversos setores em cada momento e tentar a partir daí compor um quadro de sua

situação. Foi então que apenas começou a entender a ampla malha de movimentos

sociais, nem todos de caráter especificamente étnico, se revezando entre momentos em

que conseguem unificar suas bandeiras e desenvolver táticas conjuntas de luta e outros

em que mantêm séria rivalidade. Na verdade, mais que movimentos sociais

propriamente ditos, trata-se de uma sociedade em movimento, nos interstícios dos meios

de interação social reconhecidos, que desborda inclusive os próprios espaços formais de

organização popular.

Essa dinâmica possibilitou que os multifacéticos sujeitos sociais na Bolívia,

apesar de não estabelecerem instâncias consistentes de unificação estratégica e não

obstante os episódios de agravamento das pugnas internas, contribuíssem a um

panorama de auto-afirmação das identidades no sentido de luta contra a histórica

exclusão social dessas maiorias e de reconstrução das relações sociais sobre bases

antagônicas ao racismo neocolonial que seguiu vigente durante todo o período

republicano. Da miríade de experiências e organizações que convergiram nesse

processo, pode-se destacar cinco vertentes principais do movimento indígena dispersas

pelo território boliviano (TEVES, op. cit., p. 61):

1) O movimento indígena urbano de El Alto, cidade formada pela recente migração

camponesa, onde a FEJUVE articula as associações bairriais, cumprindo um papel

decisivo nos levantes de 2003 e 2005.

2) Organizações quéchua-aymara de Cochabamba, Potosí, Chuquisaca;

3) O movimento indígena de terras baixas;

4) O movimento cocalero, representado pelas Federaciones de Productores de hoja

de coca de los Yungas y el Chapare.

5) O movimento comunitário aimará do altiplano, que teve sua principal expressão

organizativa na CSUTCB.42

42

Esta organização sofreu uma cisão em 2001, com um setor que se manteve sob a liderança de Quispe

e outro alinhado ao MAS.

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VI.1 – Matriz andina e matriz amazônica

O fidalgo de La Mancha chegou então ao hotel onde lhe indicaram ser o lugar

adequado para acompanhar as movimentações políticas da cidade. Ficava numa ladeira,

descendo da Praça Murillo, onde estão as sedes do governo e do congresso. Logo que

entrou, se aproximou de uma reunião e achou graça quando ouviu o orador, que

explicava todo o trabalho de base que desenvolviam, todo esforço de articulação política

e das diferentes lutas concluindo por definir sua realidade como a de índios querendo

ressurgir como índios quixotes. (La Razón, 24/07/2008) Chamava-se Felipe Quispe,

tinha um ar sisudo e muito mais arredio que os demais com quem falara Quixote. Após

o fim da reunião, o principal dirigente da CSUTCB falou um pouco da trajetória e das

idéias que estão na raíz das mobilizações dos povos originários do altiplano boliviano.

Sua história se relaciona diretamente com o katarismo, corrente que surge no

contexto de crise do “Estado de 52”.43

A revolução que liquidou as bases do regime

oligárquico precedente construiu sua estabilidade sobre o sistema de mecanismos

clientelares, conhecido como pacto militar-camponês, para os quais a hegemonia do

Movimento Nacionalista Revolucionário direcionou o impulso inicial da reforma

agrária. A nova corrente teórico-política surgida na década de 1970, que logra

considerável assimilação pelas bases sindicais a partir da CSUTCB, representou a

autonomização do campesinato indígena das comunidades em relação ao modelo

sindical oficialista. Além de seus aspectos políticos, esse processo reflete a dinâmica da

construção de um discurso nacionalista indígena, em que a reconstrução de uma

consciência étnica aparece como o principal eixo de coesão dos grupos subalternos,

sintetizando a memória larga das lutas anticoloniais e da ordem ética pré-hispânica

com a memória curta do poder revolucionário dos sindicatos e das milícias camponesas

a partir de 1952. (CUSICANQUI, 2003, p. 179)

Quispe foi fundador da agrupação guerrilheira EGTK e esteve preso no início

dos anos 1990. Nesse processo de organização dos chamados ayllus rojos, assumiu o

título de Mallku (Condor), que é como se denominam as autoridades comunitárias

máximas. A eleição como secretário executivo da CSUTCB em 1998 o alçou ao

primeiro plano do movimento de massas boliviano, ao mesmo tempo em que recuperou

43

René Zavaleta emprega essa expressão, adotada também por Silvia Rivera para referir-se à forma

específica de assimilação das massas populares na destruição da velha ordem e na organização do

Estado pós-revolucionário.

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a influência aimará radical na central, depois de alguns anos de desagregação do

katarismo.

Dos distintos setores que se alternaram na direção da insurgência plebéia-

indígena, o campesinato comunitário aimará foi um pólo determinante, não apenas de

momentos-chave do enfrentamento, como na difusão de conceitos importantes para a

composição das demandas do movimento popular-indígena. Quando, nas jornadas de

2000, uma multidão de mais de 500 mil homens, mulheres, idosos e crianças

estabeleceu um cerco pacífico a La Paz, bloqueando toda movimentação de acesso à

capital, não foram poucos os que recordaram as palavras atribuídas a Tupac Katari há

mais de duzentos anos, antes de ser executado: “Voltarei e serei milhões”.

Bueno, desde hace dos años que trabajo en directa relación con la

comunidades del altiplano. Es un proceso largo en el que tratamos de

desideologizar a nuestros hermanos, de sacar la ideología extranjera del

cerebro indio. Luego, lógicamente, viene un trabajo de reindianización,

de retomar los rasgos de nuestra cultura ancestral. (GÓMEZ e

GIORDANO, 2002, grifo meu)

Nota-se aí um esforço consciente de construção da identidade indígena, do qual

seu discurso passou a representar a perspectiva de ruptura mais radical. Inspirado no

indianismo de Fausto Reinaga, não considera a Bolívia unitária, reivindica o poder

indígena e a autodeterminação do Qollasuyu, assumindo a wiphala como substituta da

bandeira republicana.

Nosotros los indígenas tenemos nuestro propio territorio. Este territorio

no es de los occidentales, de los colonizadores, es nuestro. Tenemos

nuestra propia historia, nuestra propia filosofía, nuestras leyes, religión,

idioma, hábitos y costumbres. Desde esa perspectiva, nosotros los

aymaras nos consideramos una nación y de ahí la idea de

autodeterminarnos. (Idem)

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Essa proposta política transcende a luta pela ocupação de espaços no aparato

estatal,44

apontando na perspectiva do autogoverno baseado em “nuestro propio sistema

de los ayllus y comunidades, con un sistema igualitario donde no hayan ni los pobres ni

los ricos donde todos los indígenas vivamos en iguales condiciones de vida.”

(GONZÁLES; ROTUNDO e CAMPANA, 2005)

A forma contundente com que se coloca essa interpelação tangencia em alguns

momentos uma reação negativa ao não-indígena (como as referências depreciativas ao

blancóide ou q’ara),45

mas não pode ser simplistamente confundido com um “racismo

às avessas”.

No somos puritanos, no hablamos simplemente del indígena, sino de todo

el pueblo. También nos preocupamos de nuestros hermanos que no son

indígenas, que también sufren porque no hay trabajo. Inclusive pensamos

en esa gente que en los barrios más ricos de las ciudades vive en la peor

miseria: nosotros todavía tenemos algunos surcos para la siembra, ellos

no. Con ellos también estamos pensando trabajar, porque también han

nacido acá. No queremos implantar el racismo que se ha creado en la

Colonia y sigue vivo en este gobierno. No podemos enfrentar un racismo

indio al racismo blanco, eso sería una aberración social y un suicido

político. Lo que vamos a hacer es a abrazar a todos, este movimiento

tiene un poncho muy grande, y debajo de él pueden cobijarse todos.

(GÓMEZ e GIORDANO, 2002, grifo meu)

No entanto, não se pode negar algumas contradições por que envereda o

indianismo – e aqui não me refiro exclusivamente a Felipe Quispe – ao apelar a uma

idealização do universo indígena, em alguns momentos com um tom espiritualista,

afirmando uma especificidade hermética, que dificulta a aliança com setores sociais

mais amplos e o diálogo com outras teorias críticas.

Força hegemônica no movimento camponês-indígena boliviano ao longo da

década de 80, o katarismo passou por uma série de disputas internas que levaram à sua

44

Um espaço de luta que não foi completamente desprezado por Quispe, que fundou em 2002 o

Movimento Indígena Pachakuti e foi deputado. 45

Nesse aspecto, talvez se possa estabelecer um paralelo com determinadas expressões do movimento

negro estadunidense.

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desarticulação no final desse período. Nesse vácuo, despontaram dois setores que

compuseram vetores importantes dos movimentos indígenas.

Em um pólo distinto em relação a Quispe dentre as principais lideranças andinas,

formou-se Evo Morales. Líder sindical originalmente de corte mais clássico, sua

experiência revela o processo de radicalização dos cocaleros, cuja identidade transitou

de um perfil sindical-camponês para o indígena e fornecem a base social para a

fundação do MAS. A formação dessa base social relaciona-se diretamente às políticas

de colonização da zona tropical do Chapare, que tiveram seu auge a partir de meados da

década de 1980 quando o decreto 21060 implementa o primeiro choque neoliberal na

Bolívia, desarticulando o setor mineiro e levando à relocalização dos operários no

plantio de coca. “Es posible señalar que la transformación de los obreros en las minas

en cocaleros que redescubrieron su identidad indígena, fue facilitada por el hecho que la

condición obrera en las minas de los Andes siempre ha estado teñida del origen

culturalmente indígena – quechua y en menor medida aimara – de los mineros.”

(TEVES, op. cit., p. 71)

Além dos fatores de coesão interna, a radicalização do movimento cocalero

responde aos sucessivos planos de erradicação desses plantios, executados pelas forças

de repressão local sob supervisão direta da embaixada estadunidense. Como resultado,

as federações camponesas locais não apenas radicalizaram seus métodos de luta, como

procuraram dar-lhes uma dimensão nacional, reinventando seus laços identitários e os

aspectos culturais ancestrais da folha de coca e pondo em evidência o caráter

antiimperialista de suas demandas.

O impulso inicial para a mobilização dos povos amazônicos ocorreu em função

das políticas modernizadoras da segunda metade do século XX, que introduziram novos

agentes na região: colonos, agências estatais, .empresas petroleiras e madeireiras,

igrejas, ONGs etc. A partir da interação com esses atores, os grupos locais

desencadearam um processo organizativo articulado desde o início com os países

vizinhos. Em 1987 surge a Assembléia do Povo Guarani e dois anos depois o Congresso

de Povos Indígenas do Beni, que apresentava demandas como o reconhecimento

territorial, a revalorização cultural, o fim das atividades de empresas madeireiras e

pecuárias em seus territórios e a convocatória a uma “Marcha pelo Direito ao Território

e à Vida dos Povos Indígenas” a La Paz. Essa atividade ocorre em 1990 e resulta em um

importante impacto simbólico e organizativo, ao tornar pública a demanda do

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plurinacionalismo e unificar as diversas organizações amazônicas bolivianas na a

Central Indígena do Oriente Boliviano (CIDOB).

Vale ainda assinalar que a emergência política dos povos indígenas ocorre em

um contexto de desarticulação do proletariado que formara historicamente a combativa

base social da COB, abrindo caminho à transição do mineiro ao camponês-indígena

como matriz do nacional popular na articulação de um discurso contra-hegemônico de

resistência ao neoliberalismo.

La crisis boliviana expresa, pues, los límites de las diferenciaciones

regionales, clasistas y étnicas erigidas históricamente en Bolivia, en

medio de una coyuntura de aguda crisis de hegemonía estatal y

socioeconómica; situación que revela los bloqueos del proceso de

conformación nacional y el agotamiento de la promesa republicana

liberal con la cual la nación boliviana – al igual que el resto de las

naciones andinas – vio la luz en las primeras décadas del siglo XIX.

(TEVES, op. cit., p. 63-64)

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VII. Que serve para organizar as idéias, num esforço de síntese do que foi visto,

ouvido e sentido na travessia quixotesca por Abya Yala.

Depois desse panorama geral, capaz de cobrir apenas uma parte da travessia do

nosso bravo “Dom Quixote” por essas terras, seguem-se alguns elementos de síntese

dos aspectos mais significativos dos movimentos indígenas contemporâneos de Abya

Yala.

Embora prevaleçam as organizações circunscritas aos territórios estatais em

detrimento das conformações para além das fronteiras, é interessante observar o

desenvolvimento paralelo nos distintos casos. Fundada em 1979, a CSUTCB realiza seu

segundo congresso em 1983, quando consolida o marco identitário indígena como

estruturante da organização. Em 1984 se constitui o EZLN na selva de Chiapas; em

1986 é fundada a CONAIE. Em 1990, a confederação equatoriana realiza seu primeiro

levante e ocorre a Marcha dos povos do oriente na Bolívia; 1992 foi um ano de

manifestações generalizadas contra os 500 anos da invasão européia; em 1994 o EZLN

se levanta em armas. No ano de 2000, novamente Equador e Bolívia caminham juntos,

com o levante que levou a CONAIE por alguns instantes a compor uma junta de

governo e a guerra da água que marcou a sucessão de mobilizações em solo boliviano.

Esses eventos não alteram a dinâmica prioritariamente nacional dos

movimentos, no entanto auxiliam uma análise menos focada em casos específicos e

voltada para as dinâmicas mais gerais da ação política dos povos originários, assim

como para sua dimensão conceitual. Nesse sentido, arriscaria aqui apontar dois eixos

principais de movimentos indígenas que, a despeito da heterogeneidade e das

particularidades locais, partilham de conceitos e processos comuns, além de

concentrarem dois focos de estudos sobre temáticas correlatas.

Na ampla região que inclui as serras e as terras baixas de Bolívia, Equador e

Peru, mais o norte do Chile e da Argentina, estaria o eixo andino-amazônico, com

epicentro nos dois primeiros países. Os dois povos de maior peso numérico são os

quéchuas e aimarás, que recuperam as tradições e cosmovisões relacionadas ao passado

incaico, sendo entretanto registrados, só no Peru, 72 povos diferentes.

Nessa região, se destaca a reivindicação do marco identitário de

“nacionalidade”, a partir do princípio da autodeterminação e a noção da necessidade de

descolonização ou refundação do Estado, baseado nos conceitos de plurinacionalidade e

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interculturalidade. Daí se compreende a centralidade do debate sobre as Assembléias

Constituintes nos processos boliviano e equatoriano, numa argumentação que, longe de

simplesmente negar a ação política em âmbito estatal ou apontar a possibilidade da

secessão, parece exigir um novo contrato social, deslocando-se da matriz “locke-

hobbesiana” e se aproximando de um Rousseau.

O outro eixo seria o mesoamericano, abrangendo o sul do México e a América

central. Nesta área encontram-se os povos kuna, no Panamá, que batizaram o continente

de Abya Yala (Terra Madura), denominação comumente adotada pelos demais

movimentos; os miskitos, na Nicarágua, que tiveram uma relação extremamente tensa

com o governo sandinista; o povo maia na Guatemala, que sofreu o genocídio nas

décadas recentes e os povos concentrados nos estados ao sul do México – como

Chiapas, Guerrero, Oaxaca, Michoacán. Nesse país existem atualmente inúmeras

organizações, mas sem dúvida foi o Exército Zapatista de Libertação Nacional que

atingiu maior repercussão, projetando mundialmente a questão indígena na perspectiva

da resistência anticapitalista. A construção da autonomia é o tema fundamental dos

zapatistas que, recuperando tantos as tradições comunitárias como o legado do líder

revolucionário camponês, enfatizam a construção do poder desde baixo, contrapondo-se

ao poder estatal. Depois de passar por várias fases, com o trabalho de consolidação

interna nos últimos anos, os zapatistas lançaram-se em 2006 em uma campanha

nacional, na qual busca criar laços orgânicos com setores sociais mais amplos. (EZLN,

2005) Ainda em 2006, a rebelião de Oaxaca surpreendeu o mundo quando, a partir de

um conflito local entre o governador e o sindicato de professores, a capital e algumas

regiões do estado estiveram em poder de uma comuna por seis meses, organizados em

torno da Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO). Sua composição conta com

mais de duzentas organizações, com considerável participação de grupos originários,

inclusive no sindicato de professores entre os quais estão os que participam de

programas de educação indígena.

Não pretendendo aqui estabelecer uma tipologia de todos os movimentos ou

povos indígenas do continente, portanto não aparecem nessa divisão alguns grupos

marcados por suas idiossincrasias e as particularidades históricas das regiões em que se

inserem. Nesse caso estariam exemplos como os mapuche que ocupam o sul do Chile e

da Argentina; os povos que residem em territórios venezuelano e colombiano, que

apesar de minoritários lograram ampliar sua visibilidade e importantes avanços em

termos constitucionais nas últimas décadas; a realidade brasileira, onde se concentra a

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maior diversidade de povos indígena, com mais de 200 grupos reconhecidos, e se

intensificam conflitos, principalmente em torno da demarcação e reconhecimento de

terras.

O recorte estabelecido prioriza aqueles dois complexos etnoculturais que viram

os povos originários interpelarem vertical e horizontalmente as formações sociais que

ocupam esses territórios. Continuemos então essa jornada, buscando analisar as raízes

históricas desses movimentos.

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PARTE 2 – “DESENVOLVIMENTO É UMA VIAGEM COM MAIS

NÁUFRAGOS DO QUE NAVEGANTES” OU

UMA APOLOGIA DOS BÁRBAROS

A língua me ensinastes; e meu ganho nisso

É saber maldizer;

Que a praga vermelha caia sobre vós

Por me fazeres aprender vossa linguagem!

Caliban46

I. Considerações iniciais

Nossa perspectiva agora se estende pela memória larga, buscando uma chave

interpretativa para a condição indígena contemporânea a partir dos nexos históricos

entre povos originários, capitalismo, modernidade e “América latina”.

Essa travessia pelo largo tempo histórico emerge como uma demanda do próprio

sujeito que estamos analisando, os movimentos indígenas contemporâneos, como se

registrou fartamente na parte inicial deste trabalho. No entanto, além do discurso que

fundamenta as lutas políticas atuais na memória histórica dos quinhentos anos de

resistência anticolonial, entendo que o tema requer uma pesquisa que supere a

interpretação conjuntural e busque na constituição e desenvolvimento dos países latino-

americanos os elementos que colocam a “questão indígena” entre os conflitos

irresolutos de nossas formações sociais.

Como ponto de partida, proponho uma periodização dos movimentos indígenas a

partir das independências políticas dos países americanos. Tendo em vista a dialética

dominação-resistência, os ciclos de rebelião se conectam direta ou indiretamente com

ciclos de expansão capitalista e suas formas específicas. A questão que emerge daí é o

caráter excludente e racista dos projetos liberais de nação, que têm na exploração e

subalternização sistemáticas da imensa maioria de originários, afro-descendentes,

46

“You taught me language; and my profit on‟t/ Is, I know to curse; the red plague rid you/ For learning

me your language!” (William Shakespeare A tempestade, ato I, cena dois)

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mestiços e outros setores proletarizados, o fundamento de sua dominação classista local,

subordinada por sua vez aos centros capitalistas avançados. Assim, apoiando-me nas

reflexões sobre colonialidade e colonialismo interno, observo os processos de irrupção

política dos povos indígenas que precedem o período atual, do qual esboço uma

interpretação das formas contemporâneas de intervenção da acumulação capitalista.

Trata-se de um movimento do tempo longo para a conjuntura, com o objetivo de

analisar o significado e as peculiaridades do ciclo atual de rebelião indígena.

Esse esforço analítico implica em alguns questionamentos e alinhamentos

teóricos, explicitados no decorrer do trabalho, mas que podem ser adiantados aqui.

O primeiro refere-se à própria compreensão da estruturação do capitalismo na

América Latina, suas formas de dominação e sua dinâmica. Com efeito, tratando-se o

capitalismo de um sistema global, as características do continente são tomadas como

parte de uma totalidade, sem que criemos falsas dicotomias entre particularismos

fragmentários e estruturalismos descontextualizados de sentidos históricos e

geográficos.

Essa totalidade, cujas formas econômicas, políticas, sociais e culturais começam

a se constituir a pouco mais de quinhentos anos, se expressa pela modernidade

capitalista, que hoje nos fornece elementos para uma análise que dê conta de suas

distintas escalas e múltiplas determinações, superando as abordagens unilaterais, que

assumem os delineamentos globais basicamente a partir dos acontecimentos na Europa

Ocidental. Em uma palavra, trata-se de buscar compreender Abya Yala considerando

seu lugar no “sistema-mundo”, reconhecendo que esta é formada pela Europa tanto

quanto influencia o que vem a ser o “velho continente” e, especialmente, o modo-de-

produção que começa a amadurecer no momento próprio das “descobertas”.

Assumir uma perspectiva distinta, a partir da periferia do capitalismo,47

não

significa simplesmente trazer uma visão alternativa, exótica, de determinado processo,

mas buscar desvendar uma ordem de processos que, embora fundamentais na

constituição da referida totalidade, tende a ser “simplesmente anexada e contemplada a

partir do interior do sistema” (MIGNOLO, 2003, p. 9) A leitura que proponho

47

O termo “periférico” é usado mais em seu sentido histórico-sistêmico do que de orientação espacial,

(WALLERSTEIN, 2006, p. 33-34) estando ciente de que as fronteiras entre “centro” e “periferia” são

cada vez mais tênues e móveis. Casanova, em um balanço recente do conceito de “colonialismo

interno”, além de reafirmar sua atualidade, aponta as possibilidades de seu uso nos países capitalistas

do centro; ampliadas por fenômenos como as migrações e a nova onda de guerras imperialistas.

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compreende a análise a condição dos povos originários como um vetor dessa

perspectiva.

“Por tanto, pensar en la subalternidad de los Pueblos Indígenas

conlleva la necesidad de deconstruir conjuntamente la totalidad de

las dimensiones implicadas en el proceso de su subalternización,

visualizando el fenómeno desde todas sus escalas, desde lo

micropolítico hasta la inserción axial de los pueblos indígenas en

el sistema-mundo capitalista desde el Siglo XVI”. (TURRIÓN;

LÓPEZ; GALVÁN, 2007, p. 14-15)

No caso que aqui se trata, a manifestação fundamental revelada pela perspectiva

subalterna é a dinâmica colonial do capitalismo, a colonialidade do poder que se

estabelece a partir da conquista ibérica e que se estende historicamente na configuração

das estruturas de poder das formações sociais latino-americanas. Esse campo de

reflexão em torno dos temas da colonialidade aparece nos últimos anos como uma

contribuição fundamental do pensamento social desde Nossa América e torna-se ainda

mais profícuo se lido num quadro teórico mais amplo, cuja genealogia passa pela Teoria

da Dependência e os debates das ciências sociais americanas na década de 1960.

Por outro lado, cabe esclarecer que esse olhar a modernidade desde a América

não implica fazer tabula rasa de toda tradição crítica acumulada, inclusive na Europa.

Pois se a pretensão universalista invariavelmente conduz a labirintos de espelhos sem

saída, o apego a particularismos exclusivistas gera apreciações narcísicas, que ignoram

o mundo ao redor. Trata-se portanto de assumir o lugar de onde se fala, reconhecendo as

peculiaridades aí contidas, sem negar que esse lugar tem sua contribuição no esforço

global de interpretação crítica do mundo contemporâneo, no que é imprescindível o

diálogo com instrumentais teóricos outros. Por isso o título desta seção se inspira em

parte no ensaio de Roberto Fernandez Retamar, cuja leitura durante a elaboração deste

trabalho teve impacto imediato, servindo de amálgama de uma série de reflexões em

torno ao desafio de pensar este continente que se convencionou chamar América.

(RETAMAR, 2006) Como expressa o Caliban apresentado pelo ensaísta cubano,

representando nossa condição periférica, contraditória, bárbara, não nos é lícito

renunciar à língua e instrumentos teóricos legados pelo colonizador na luta contra a

colonização.

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Outro tema que permeia esses debates refere-se à crítica do projeto moderno de

Estado-nação, ao menos no que se refere às suas expressões no continente americano.

Mais do que problematizar um conceito, trata-se de confrontar a noção generalizada

desse binômio como uma forma quase natural de organização da sociedade moderna

com a manifestação concreta dos padrões de dominação e dos aparatos institucionais

historicamente constituídos, tendo em vista sua natureza conflituosa pela incapacidade

predominante de representar uma parte majoritária e heterogênea das populações do

continente. Afinal, uma das acusações mais comuns contra os movimentos indígenas é a

de que de uma forma ou outra eles possam representar uma ameaça a esse deus ex-

machina que o pensamento burguês e eurocêntrico insiste em afirmar universal e

soberano. Com isso, invertem o sentido da exploração colonial historicamente operada

contra as populações originárias, buscando torná-las vilãs da crise contemporânea do

“Estado-nação” e da “democracia”. Os velhos arautos da imposição modernidade, a

esconjurar qualquer manifestação de resistência como apego irracionalista ao atraso,

sem se dar conta (ou sem querer admitir) que talvez o problema não se situe na

permanência do “arcaico”, mas nessa leitura fetichista do progresso.

Há ainda a questão do sujeito de que estamos tratando. A formação histórica das

estruturas sócio-econômicas de nossa América colocou a “questão agrária” no centro de

seus problemas teórico-políticos. Daí a importância dos estudos rurais que chegaram a

compor um campo de considerável presença e produção autônoma, mas que nos últimos

anos passaram por uma revisão profunda, a ponto de se colocar em questão seus

próprios fundamentos. (BENGOA, 2003) Mudou o objeto de estudo ou a abordagem

teórica? Seguramente ambos, pois, se por um lado a inevitável revisão das ciências

sociais colocou a necessidade de ampliação das perspectivas de análise, introduzindo

abordagens como as de gênero e etnia, igual ou maior impacto tiveram as profundas

transformações da paisagem rural, a partir de processos de resistência camponesa,

migrações, reformas e contra-reformas agrárias, modernização capitalista

(estabelecimento de estruturas agro-industriais, liberalização mercantil) etc.

Ao longo do século XX, as mobilizações camponesas nem sempre deram conta

da dimensão étnica, tanto no que diz respeito ao discurso dos agentes que interagiam

nesses processos como em relação às interpretações posteriores. Assim se entende a

prevalência da tônica “campesina” em torno a processos como as revoluções mexicana e

boliviana ou as reformas agrárias peruana e guatemalteca. Só para mencionar alguns

exemplos, podemos encontrar sinais dessa leitura na coleção organizada por Pablo

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González Casanova na década de 1980, Historia política de los campesinos

latinoamericanos, apresentada como uma denúncia aos freios da “consciência

camponesa” em contraponto ao paternalismo conservador do liberalismo autoritário; do

indigenismo agrarista, populista, reformista estatal ou de instituições interamericanas48

ou ainda da antropologia “indianista”. (CASANOVA, 1998, p. 10-11). Foi com essa

perspectiva que o catalão-boliviano Xavier Albó, que é atualmente um dos intérpretes

mais influentes dos movimentos indígenas nos países andinos, participou no início dos

anos 1970 da fundação do Centro de Investigação e Promoção do Campesinato

(CIPCA), onde atua até hoje. Da mesma forma, como exemplo prático, nota-se a

influência do discurso étnico em boa parte das organizações camponesas, desde

movimentos na perspectiva classista, até a articulação internacional Via Campesina.

Hugo Blanco faz uma revisão crítica desse enfoque que, a título de fiar-se por

uma consciência classista superior, demonstrou-se restrito diante de outras

determinações fundamentais nas lutas sociais.

“Así como en Guatemala la rebelión se expresó fuertemente en el pasado

reciente, aunque no con el nombre explícito de indígena a través de la

lucha guerrillera, en el Perú también tuvo una fuerte expresión en la

rebelión social de los años 60, aunque no con el nombre explícito de

indígena. La poca inteligencia y miopía de nosotros los participantes en

su dirección, nuestra „occidentalización‟ mental, nos impidió ver algo

que saltaba a la vista: El carácter indígena de la rebelión. Claramente era

la rebelión de la cultura agrícola del „ayllu‟ (comunidad campesina)

contra la hacienda traída por los españoles y mantenida por la República.

Por si no bastara con esto, fue una rebelión que hablaba quechua. Se

extendió por amplias zonas y democratizó la posesión de la tierra.”

(BLANCO, 2004).

Bengoa afirma que os próprios indígenas tendiam a ver-se como camponeses,

deixando suas etnicidades penduradas na porta dentro de casa e saindo à vida pública

como camponeses. (BENGOA, 2003, p. 48) Mesmo não empregando a metáfora a mais

48

O Instituto Indigenista Interamericano foi fundado em 1940 no México e editou, até o final da década

de 1990, o periódico América Indígena.

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adequada,49

chama atenção para o fato de que ainda que não se expressassem como tal,

os povos originários não deixaram de ser sujeitos históricos; tanto porque a

“campesinização” não pode ser considerada conseqüência exclusiva da ação perversa de

governos populistas e partidos de esquerda, como porque, além de históricas, as

identidades são múltiplas e dinâmicas, de maneira que os sujeitos podem se situar ao

mesmo tempo em distintos marcos identitários, dando prioridade àquele ou àqueles que

se adéqüem ou que se atribuam maior importância em determinado contexto. Nesse

sentido, “índio”, “originário” e “camponês” são termos igualmente inventados, na

medida em que são constituídas historicamente, sem que isso signifique que sejam

falsas condições.

Segundo Bengoa, os camponeses “deixaram inteligentemente” essa condição

para trás, tornando-se indígenas. E explica a força desta identidade por sua capacidade

de apelar à “má consciência” dos conquistadores, cujos representantes contemporâneos

vêem-se em situação incômoda ao interpelar o índio que vive reconhecidamente em

miséria secular.

Por outro lado já foi indicado que a tendência a um enquadramento étnico

exacerbado, em nome de destacar a condição indígena e, algumas vezes, do combate ao

eurocentrismo, menospreza outras dimensões da dominação, como a de classe, e reforça

os esquemas fragmentários exaltados pelo discurso pós-moderno. O antropólogo

mexicano Héctor Díaz-Polanco identifica o “etnicismo” como uma das concepções mais

difundidas entre os movimentos indígenas, constituindo junto ao liberalismo

universalista – seu suposto antagonista –, a principal ameaça à autonomia.50 Seus

principais argumentos são: a superioridade da civilização indígena, avaliada em

termos idealistas, em detrimento do “mundo ocidental”; a identificação das “culturas

nacionais” com o “ocidente” e seu consequente rechaço; a defesa de uma essência

étnica imutável e a-histórica; dos anteriores decorre que o problema fundamental se

torna a contradição entre “civilização índia” e “ocidente”; conduzindo à defesa de uma

solução externa ao âmbito nacional, desarticulado de outros setores sociais. (DÍAZ-

POLANCO, 2004, p. 163-165) Em contrapartida, é importante preservar um

49

Pois os cruzamentos culturais e os constructos identitários são algo muito mais complexos do que o

poncho, a sandália ou o sombrero que se escolhem em determinadas ocasiões. 50

Stuart Hall ajuda a compreender o sentido desse recurso ideológico, recorrendo ao conceito de

"essencialismo estratégico”. O intelectual jamaicano-britânico considera uma necessidade pontual de

auto-afirmação, advertindo para o seu caráter acessório e a necessidade de uma política cultural capaz

de, sem deixar de afirmar a diferença, projetar-se para além do essencialismo. “O momento

essencializante é fraco porque naturaliza e deshistoriciza a diferença, confunde o que é histórico com

o que é natural, biológico e genético”. (HALL, 2006, p. 326)

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distanciamento crítico que não torne absoluto o respeito aos discursos subjetivos e tenha

em conta outras determinações não necessariamente explicitadas pelos seus emissores.

A abordagem que assumo reconhece certa ambigüidade própria de nossa

constituição histórica, buscando trabalhar esse tema para além de uma falsas

dicotomias. Primeiro porque, como já foi dito, as identidades não são necessariamente

excludentes e, ainda que possam se expressar de maneira conflituosa, sua interação é

mais complexa do que uma abordagem unidimensional nos faria supor. Segundo,

porque, além de esta pesquisa ter como tema fundamental a emergência política dos

povos originários, esta é a linguagem com que atualmente se expressam os setores

subalternos, não apenas presentes no que se refere a demandas étnicas, mas também

num amplo repertório de lutas sociais relacionadas à defesa do território, soberania

nacional, recursos naturais, direitos consuetudinários, costumes ancestrais.

Nesse sentido, Darcy Ribeiro chamou atenção prematuramente para um

campesinato etnicamente diferenciado e para o potencial mobilizador do marco

identitário étnico-nacional, alertando para o reducionismo conceitual e político que

orientava a noção de “camponês”. “Acreditava-se que com uma boa reforma agrária,

alguma assistência educacional e também com a ajuda das práticas insidiosas do

indigenismo eles deixariam da mania de serem índios para se fazerem bons cidadãos

peruanos, bolivianos, guatemaltecos e mexicanos”. (RIBEIRO, 1986, p. 130) O

antropólogo brasileiro insiste não se tratarem de casos de meros campesinatos atípicos.

Por isso refere-se a esses povos oprimidos com o neologismo “indigenatos”, de maneira

a marcar sua complexidade e antevê que essa condição levaria a reivindicações nos

marcos da reorganização da vida nacional, como a autonomia.

Da mesma forma, a cientista social aimara-boliviana Silvia Rivera51

publicou em

1984, num contexto de emergência do katarismo, uma história das lutas do

“campesinato aymara e quéchua”. (CUSICANQUI, 2003) A autora chama atenção para

a instrumentalização do termo camponês pelo discurso oficial pós-1952, que “suele

enmascarar los contenidos que desarrollaron en su lucha las poblaciones rurales

predominantemente indias (quechwa, aymara, guaraní, etc.) durante el período

republicano.” (ibidem, p. 63)

Ademais, o universo indígena já não se reduz ao “mundo rural”, com todas as

suas transformações. Primeiro porque, na dinâmica contemporânea do capitalismo,

51

Sua obra é elaborada no âmbito do Taller de Historia Oral Andina (THOA), uma importante

experiência impulsionada por intelectuais aimaras da Bolívia. (Ver MIGNOLO, 2002)

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embaralham-se as fronteiras entre urbano e rural, integrados pelos recursos de

comunicação, pela padronização da produção ampliada de mercadorias e a necessidade

de sua circulação descontrolada e pelos movimentos migratórios. Segundo porque a

acelerada e contraditória urbanização, que se manifesta como uma importante expressão

dos processos desenvolvimentistas que caracterizaram o século XX, afetou

definitivamente a geografia dos povos indígenas. Emerge daí uma complexa realidade,

que inclui o mencionado caso de Lima, o exemplo emblemático da cidade aimara de El

Alto e as capitais andinas (La Paz e Quito); os países em que a população indígena

urbana é majoritária (Bolívia, Brasil, Chile, Peru); as colônias de migrantes no exterior

etc. (BENGOA, 2000; p. 50-61; CEPAL, 2007; p. 167-169) Evidentemente, o impacto

dessas transformações não é unilateral: os índios “integrados” ao ambiente urbano

reagem de formas distintas,52 ao mesmo tempo em que transformam a paisagem de

bairros e cidades inteiras.

Finalmente, vale reiterar que essa análise no tempo longo se fundamenta na

dialética entre reforma, revolução, contra-reforma e reação (SALAZAR; LORENZO,

2008, p. 29) que atravessa a nossa trajetória. Um olhar para as formações sociais do

continente que analisa a estruturação da dominação partindo sempre da “visão dos

vencidos”, sistematicamente silenciada ou domesticada pelo discurso hegemônico.

Assim, recusa-se tratar as ações dos “de baixo” como fenômenos episódicos, reações

“espontâneas” e muitas vezes desesperadas em função dos projetos dominantes ou

subordinadas à intervenção exclusiva de agentes externos. Os projetos subalternos, que

recorrentemente emergem dessa dinâmica de conflitos, se acumulam nos interstícios da

exploração cotidiana, que nunca é absoluta, dando margem à preservação-reinvenção de

tempos e espaços não adequados completamente à lógica do capital. Assim, tempos e

espaços são permanentemente reconstruídos entre a submissão e a resistência,

possibilitando o cultivo de culturas políticas contra-hegemônicas (e políticas culturais)

que vêm a compor o mais diversificado arsenal de uma práxis que se contrapões à razão

dominante. O potencial emancipatório desses tempos-espaços subalternos será

investigado na parte 3.

52

Que pode variar da negação da identidade originária na busca de “assimilação” e ascensão social à

reafirmação, reconstrução e – necessariamente – reinvenção dos laços comunitários.

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II. O processo histórico da colonialidade e os ciclos de resistência indígena-plebéia

Nos duzentos anos de independência política latino-americana, é possível indicar

uma periodização, em que se destacam três grandes ciclos de movimentações e

rebeliões dos povos indígenas, tendo o primeiro ocorrido nos pródromos das lutas pela

independência; o segundo, na virada do século XX. O atual ciclo de lutas, que é o objeto

principal desta pesquisa, completa essa proposta de periodização. Como características

comuns desses ciclos, destacam-se três tendências principais que nos possibilitam um

olhar de conjunto e à parte de outros momentos de conflitividade (ou da

homogeneização que implicaria falar em algo como um “estado permanente de

rebeldia”), a saber: a emergência política autônoma das massas indígenas; o alcance

dessa ação política, que se projeta no âmbito do debate nacional, superando motivações

inicialmente locais; a articulação desses movimentos como respostas aos processos de

esgotamento de um modelo de dominação ou de alterações no padrão de acumulação de

capital, assim como de reação a esforços de modernização capitalista.

Com esse último aspecto não se quer restringir a ação camponesa-indígena à sua

dimensão reativa, implicando entretanto no aprofundamento das reflexões críticas sobre

esses fenômenos, diante da utilização ideológica e fetichizada das noções de

modernização e progresso formuladas pelo discurso hegemônico. Fazendo um balanço

dos estudos sobre consciência e rebeliões camponesas, o historiador estadunidense

Steve Stern indica entre os principais pressupostos e afirmações que moldaram a

imagem geralmente estabelecida nesse campo de investigações, o acordo com a noção

de que o avanço do capitalismo sobre territórios rurais teve um impacto eminentemente

destrutivo na vida camponesa. Mesmo os que interpretam positivamente a

modernização, tendem a reconhecer o preço alto que ela cobra: ataque aos valores e

relações tradicionais; precarização das instituições locais que proporcionavam certo

nível de segurança econômica e redistribuição de bens; obsolescência de estratégias

políticas de longa data eficazes no enfrentamento com senhores e Estado. (STERN,

1990, p. 27)

Assim, a compreensão da condição indígena contemporânea se plasma no

cenário mais amplo de desenvolvimento capitalista, cuja interpretação se torna

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elucidativa para uma perspectiva que assume o componente indígena como constitutivo

das formações sociais de Abya Yala contemporânea.53

II.1) As rebeliões anticoloniais e a formação dos Estados “nacionais”

O duplo caráter do processo que culminou com a independência política

americana já foi considerado por diversos autores.54

Antes que a luta contra a metrópole

fosse capitaneada por setores insatisfeitos das elites locais, os grupos subalternos da

sociedade colonial impulsionaram diversas rebeliões que expressavam as contradições

que se acumulavam em seu interior.55

Consolidaram-se nesse contexto de lutas

anticoloniais duas correntes: uma de corte popular, na qual podemos incluir desde as

rebeliões indígenas, a revolução haitiana, as “republiquetas” andinas e as tropas

montoneras no Prata até setores radicalizados da elite criolla que se expressam nas

proclamações e decretos de Hidalgo e Morelos, Artigas, Moreno, Belgrano e Miranda; a

outra identificada com o ideal de modernização liberal burguesa, integrada ao comércio

internacional, esforçada em manter o compromisso com a aristocracia mantuana. Essa

divisão no processo de independência pode ser vista como um preâmbulo das formas

que assumiriam os conflitos classistas que marcariam século XIX. Celso Furtado chama

atenção para a prevalência da corrente europeísta no século XIX e ressurgência dos

projetos populares no séc. XX.56

(FURTADO, 1972, p. 19-25)

Porém, a composição dos projetos independentistas foi desde o início mais

complexa do que sugere tal divisão. Flores Galindo assinala como, a despeito da

tendência homogeneizante da administração colonial, desde a etapa inicial do domínio

53

Em seu interessante trabalho sobre a experiência equatoriana, Pablo Peralta e Fernando Cazar

articulam uma interessante visão entre a curta e a longa duração, enfatizando as transformações na

estrutura agrária. (CAZAR e PERALTA, 2003, 11-29) 54

Ver as referências dos trabalhos de Furtado, Cueva, Zavaleta, Retamar, Roitmann; Vilaboy; Prado Jr. 55

No Brasil, as tendências populares foram prematuramente sufocadas com a “interiorização da

metrópole” (DIAS, 1982). Ainda assim, em torno de movimentos como Conjuração dos Alfaiates

(Bahia, 1798), Revolução de Independência (Recife, 1817), Confederação do Equador (Pernambuco,

Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, 1824) e Revolução Praieira (Recife, 1848) circularam

personagens como Cipriano Barata, Abreu e Lima, Frei Caneca, Domingos José Martins e Antônio

Gonçalves da Cruz “Cabugá”, que expressavam uma corrente liberal com tonalidades radicais:

republicana, constitucionalista, antilusitana e conectada com outros revolucionários americanos.

Martins chegou a se aproximar de Francisco de Miranda e Cabugá apresentou-se como diplomata do

movimento de 1817, buscando sem sucesso o apoio de Monroe. 56

O economista paraibano considerava Simon Bolívar uma expressão autêntica dessa corrente

europeizante. A meu ver, o pensamento do Libertador contém os elementos contraditórios de um

indivíduo que, sem romper completamente com as concepções de sua classe, se abre em alguns

momentos às demandas de setores populares.

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europeu se engendrou no Peru um país de “todos os sangues”. Por um lado, ao reduzir

toda a população originária à condição de índios ou colonizados, o colonialismo deu

margem à emergência de novos fatores de coesão. Por outro, a administração espanhola

manipulava novos e velhos conflitos e, apesar da rígida distinção jurídica entre índios e

espanhóis, as relações entre dominados e dominadores produziram aquele sujeito

relegado aos interstícios de tal sociedade que é o mestiço. “A ellos habría que añadir

esos españoles nacidos en América que recibirían el nombre de criollos; sin olvidar los

múltiples grupos étnicos de la selva, las migraciones compulsivas procedentes de África

y después del Oriente, para de esta manera tener a los principales componentes de una

sociedad sumamente heterogénea.” (GALINDO, 2005, p. 20)

Assim, além do corte horizontal representado pelo projeto autonômico

embandeirado por grupos de criollos insatisfeitos com o papel periférico a que estavam

relegados na estrutura política colonial, os descendentes das civilizações pré-conquista e

demais povos colonizados estabeleceram um corte vertical cuja radicalidade se

confrontava inclusive com o humanismo de dirigentes influenciados pelas luzes

européias. Enquanto a dissidência dos filhos de europeus na América e seus

contendedores metropolitanos partilhavam de um caldo cultural comum, a idéia de um

triunfo dos “jacobinos negros” (JAMES, 2000) ou o fantasma da ação autônoma dos

povos indígenas eram percebidas como ameaça pelos fiéis à Coroa tanto quanto por

muitos independentistas. Segundo Marcos Roitmann,

“La independencia en América Latina significó una lucha política por el

poder. Pero no sólo entre peninsulares y criollos. A estas luchas debemos

unir las correspondientes por el tipo de Estado y las formas de gobierno

que se sucederán tras la crisis colonial. La historia hegemónica ha

querido soslayar las demandas democráticas cuyas banderas

reivindicativas no sólo fueron el derecho de autodeterminación y la

formación de gobiernos independientes. En la lucha anticolonial se

plantearon igualmente reivindicaciones nacionales por reformar la

tenencia de tierra y un reconocimiento de derechos para los pueblos

indígenas y las nacientes clases sociales populares.” (ROSENMANN,

2008, p. 161)

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Tal contradição pode ser verificada na política bolivariana em relação aos povos

originários. Bolívar já antecipara a perspectiva do tratamento liberal que as novas

repúblicas deveriam dispensar aos indígenas. Flores Galindo lembra que, apesar da

concessão ritual à grandeza do passado incaico, a passagem por Cuzco não demoveu o

libertador de sua “política borbônica” em relação à aristocracia indígena. (GALINDO,

2005: 228-229) O Libertador se orientou pelo arquétipo do bom selvagem, até os

primeiros contatos com índios contemporâneos nos Andes centrais. Sem compreender a

resistência que lhe opunham os povos da região, sem habilidade política para atraí-los

ao campo independentista, introduziu um programa liberal57

que apenas aprofundava as

diretrizes metropolitanas precedentes e consolidou uma postura de rancor e ódio, que

chegou a implicar a crítica à mestiçagem, o recurso à aniquilação militar e o esforço de

negação simbólica. Nesse aspecto, Simón Bolívar antecipa o medo e a ojeriza em

relação às massas indígenas e populares que dominaram a consciência criolla durante

todo o século XIX.58

(FAVRE, 1986)

Atentos a essas clivagens, podemos dimensionar o impacto dos movimentos

populares pela independência nos Andes e na Mesoamérica.

II.2) A força dos da plebe andina (origens dos “métodos plebeus” no Tawantisuyu)

A rebelião de Tupac Amaru e Tupac Katari irradiou-se pela serra sul-peruana e

boliviana como uma verdadeira “guerra civil” entre 1780 e 1782.59

(STERN, op. cit., p.

45) Entre seus líderes estavam caciques que viam a crescente depreciação de sua

posição social intermediária entre o colonizador e as comunidades desde as reformas

bourbônicas.60

José Gabriel Condorcanqui era um filho de cacique que buscara o

reconhecimento oficial tanto de uma linhagem incaica descendente do último inca,

como de um título nobiliárquico. Mas percebe que tanto essas possibilidades de

57

Os três pontos fundamentais dos decretos indigenistas editados em 1825 em Cuzco são a abolição do

título e cargo de cacique, a supressão da instituição da comunidade e a supressão dos serviços

pessoais, instaurando a liberdade de trabalho. 58

Em resposta às rebeliões dos pastusos entre 1822 e 1824, ordena o seu aniquilamento e a ocupação do

território por uma colônia militar. Na Bolívia, sua atitude se volta para o silenciamento diante da

massa indígena, que inclui a inexistência de menções a Tupac Amaru. (FAVRE, op. cit., p. 15-16) 59

Essa interpretação unitária dos movimentos de Amaru e Katari os insere em uma era mais ampla de

insurreições nos Andes, iniciadas em 1842 com Atahualpa. 60

As reformas borbonicas foram um movimento de centralização metropolitana, caracterizado como um

esforço de reconquista da América que incluía o ataque a privilégios da Igreja, a reforma

administrativa, a reorganização militar, a onda migratória de burocratas e comerciantes tinham por

objetivo principal ...“aproveitar ao máximo os benefícios da dominação colonial.” (CARDOSO e

BRIGNOLI, op. cit., p. 136)

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reconhecimento social estavam bloqueadas, como interessava à metrópole o aumento da

extração de riquezas que significava o descumprimento de antigos acordos com as

autoridades comunitárias e o aumento da pressão tributária sobre os índios.

Condorcanqui segue então pela via da sublevação e, adotando o nome do último inca,

Tupac Amaru II convoca a todos os indígenas do altiplano, proclama intenção de

extinguir os obrajes textiles (imposto em trabalho), executar os chapetones e

corregedores. “Por medio de su mensaje incitaba a levantarse contra la opresión que

sufrían los indios sobre los que recaían gran parte de la imposición contributiva,

retumbando sus palabras en medio de una mala situación económica que posibilitó la

rápida extensión del movimiento”... (GÓMEZ, 1992, p. 210) Suas primeiras ações se

desenvolvem no início de novembro de 1780 e têm rápida propagação pelo interior

vice-reinato peruano, trasladando-se à audiência de Charcas, com auxílio das redes

familiares e comerciais a que Amaru tinha acesso. Em meados de novembro, o cacique

proclamava a liberdade de todos os escravos negros e mulatos, reunia um exército de

alguns milhares de combatentes e logo teria o caminho livre para Cuzco. No entanto,

postergou a ação e só se dirigiu à capital do Tawantisuyu no fim do ano, estabelecendo

um cerco, ao invés do ataque frontal que lhe aconselhavam vários colaboradores,

inclusive sua esposa Micalea Bastidas que tivera participação ativa desde o início do

movimento. A perda do elemento surpresa possibilitou que a reação armasse a defesa de

Cuzco, para a qual contou com a lealdade das comunidades mais próximas. Derrotado e

feito prisioneiro cinco meses após o levante, Amaru II foi executado com Micaela,

decapitado, esquartejado e seus miembros espalhados pela serra peruana: a cabeça

enviada a Tinta, o corpo feito cinzas no cerro de Picchu, os braços mandados para

Tungasuca e Carabaya e as pernas para Libitaca e Santa Rosa. (ibidem, p. 216)

Nesse ínterim, um cacique aimara iletrado originário de Ayo Ayo emergiu na

Audiência de Charcas de uma seqüência vertiginosa de eventos desencadeados em

escala regional e no âmbito mais local, dando coesão à insatisfação que fermentava nas

massas indígenas. Reconhecendo a importância de predecessores imediatos e

possivelmente para construir legitimidade, Julián Apasa Sica adotou o apodo de Tupac

Catari. Ao nome do último inca que era evocado por aqueles dias na serra peruana,

juntava uma referência aos irmãos Catari, família de caciques que, envolvida em uma

série de conflitos com corregedor local, desencadeou uma onda de distúrbios em

represália ao assassinato do cacique de Chayanta Tomás Catari

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“De esta manera, habiendo conseguido poner en pie de guerra a más de

cuarenta mil indígenas, en marzo de 1781 Tupac Catari pasó a dominar

rápidamente las provincias de Sica Sica, Carangas, Pacajes, Yungas,

Omasuyus y Chucuito, sitiando después con todos los hombres que se le

unían la ciudad de La Paz, destruyendo y aniquilando todo cuanto se le

cruzaba en su camino, saqueando las propiedades que se encontraban a

su paso demostrando en su empeño extraordinaria saña y ferocidad bien

puesta de manifiesto en el asesinato de cualquier enemigo que caía en sus

manos.” (ibidem, p. 227)

Apesar do ímpeto sem as hesitações que teve Tupac Amaru em relação a Cuzco,

Katari encontrou uma defesa obstinada em La Paz. O sítio sem tréguas se manteve por

mais de três meses, até que uma expedição realista consegue levantar o bloqueio. Em

agosto empreende o novo assalto, reforçado com tropa de Andrés Memdigure, sobrinho

de Tupac Amaru. Mas a estratégia foi malograda forçou retirada e captura de Bartolina

Sisa, esposa de Katari. Em seguida, não obstante algumas vitórias pontuais, o próprio

Katari foi capturado em novembro e condenado ao esquartejamento. Um ano depois,

Bartolina, que teve um papel importante no desenvolvimento de operações bélicas

durante o cerco, foi enforcada junto com Gregoria Apasa, imã de Julia Tupac Katari.

A guerra civil liderada inicialmente por Condorcanqui-Amaru e em seguida por

Apasa-Katari, respectivamente, com a bandeira da reconstituição da civilização pré-

colonial, fundou uma utopia enraizada no imaginário popular andino, potencializando a

ação das massas indígenas no sentido de uma construção nacional distinta à que se

concretizaria a partir de 1821. O sociólogo boliviano Zavaleta Mercado, cuja obra foi

em grande medida dedicada a refletir sobre as matrizes nacional-populares de seu país,

considera que

“el intento más profundo y orgánico de restablecer la lógica vieja del

espacio andino y de recomponer esta sociedad en los nuevos términos,

ahora bajo un núcleo democrático de interpelación, fue Amaru. Su

fracaso es también el fracaso del programa democrático de constitución

de la nación peruana”. (MERCADO, 1986, p. 84)

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Seu gênio político está na capacidade de propor um programa “eclético”, para toda a

sociedade.61

Deriva de sua própria posição na sociedade colonial, entre índios e

crioulos, por sua extração de origem aristocrática indígena. Um programa bolivariano às

avessas, no sentido que seu núcleo de interpelação partia dos indígenas. “De lo que se

trataba entonces era de una interpelación incaica a toda la sociedad o sea una

convocatoria a la unificación dentro de ciertos patrones de legitimidad y no fuera de

ellos.” (ibidem, p. 86)

Sujeito a distintas determinantes, inclusive de dinâmicas regionais, o movimento

se bifurca em duas tendências principais: uma linha camponesa ecumênica, com um

programa incaico para todo o Peru, expressa por Condorcanqui, Tomás Katari, irmãos

Rodríguez (espanhóis líderes da rebelião em Oruro); a outra ala, a milenarista,

militarista e etnocêntrica, sintetizada “de un modo directo y un tanto feroz” por Tupac

Katari.62

Há ainda setor indígena integrado à sociedade colonial partidário da reação

contra Amaru, que seria estratégico na defesa de Cuzco.

As contradições programáticas do movimento fundam duas tendências que

representam o que poderia ter sido uma via revolucionária na fundação dos Estados

latino-americanos, mas também duas atitudes que se enraizaram na cultura política da

plebe andina. O contexto da rebelião na audiência de Charcas (Bolívia) atingiu uma

extensão global por situar-se na zona de influência potosina, fundando aí um

temperamento que Zavaleta chama da “plebe em ação”, que repercute ao largo da

história boliviana. A radicalidade desse fenômeno a teria educado em um sentido de

democracia multitudinária. Tal força pode ser verificada na recorrência do cerco a La

Paz pelas massas indígenas com Katari, Willka (ver infra) e na rebelião polarizada por

El Alto em 2003. “El modo agitado del ser de estas masas sitiará al estado que no podrá

ser en su rotina sino eso, un estado de sitio”. (ibidem, p.88)

Katari instaura uma ideologia de insubordinação, Amaru convoca o bloco

nacional-popular e propõe um programa de reforma para toda a sociedade. Duas

61

Conteúdo programa: 1) Nomeação de índios em posições de responsabilidade administrativa; 2)

Direito de ir à Espanha sem permissão prévia; 3) Acesso às dignidades eclesiásticas; 4) Educação para

índios; 5) Abolição da mita em Potosí; 6) Abolição do “reparto de efeitos” (imposto em espécie). 62

Que não se interprete esta distinção como uma atribuição valorativa e menos ainda uma tomada por

tal ou qual partido. Uma aproximação que se poderia ensaiar seria com o processo haitiano que,

inicialmente liderado por um Toussaint L‟Ouverture mais aberto a um entendimento com a França

revolucionária, só obteve a independência com o acionar intransigente de um Dessalines. Stern

corrobora as analogias com o Haiti assinalando que, assim como a vitoriosa revolução escrava se

projeta secularmente na interpretação das sociedades escravistas, a “Guerra Civil” andina lança uma

imensa sombra sobre a história de Peru e Bolívia sendo imprescindível a qualquer consideração

profunda sobre o curso da história andina nativa. (STERN, 45)

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dimensões conflituosas, mas de certo modo complementares, de um projeto cujo sujeito

de interpelação era o índio, convocando a uma nacionalização que deixava de lado o

apelo à homogeneização nos moldes europeus, ao se articular em torno ao “Peru

profundo”, de todos os sangues. Ambos escrevem um capítulo da utopia andina, que se

apresenta como uma tentativa de “Buscar una alternativa en el encuentro entre la

memoria y lo imaginario: la vuelta de la sociedad incaica y el regreso del inca.”

(GALINDO, 2005, p. 21)

Daí decorre a força que enraíza essas alternativas no imaginário popular, mas

também a contundência da reação colonial espanhola e crioula,63

que começa com a

desquechuização forçada e a fundação da hispanofilia ideológica que fizeram do Peru

bastião da lealdade à Espanha cerca de três décadas após a rebelião. O projeto de Amaru

não seria aceitável nem com o advento de um Bolívar, o qual encarnava uma dimensão

do projeto crioulo ilustrado. A guerra de independência assume ali sentido distinto das

demais regiões, cristalizando a cisão entre Charcas e Lima que se tornou inevitável com

a derrota da grande rebelião de 1781. Desde então, a idéia de “Gran Peru” se dissolve,

não passando de uma proposição intersenhorial.64

A insurreição abarcara todo o circuito

comercial entre Lima, Potosí e Buenos Aires, “o sea que la fuente potosino-amarista fue

la última posibilidad de consolidación del espacio clásico de la zona.” (MERCADO, op.

cit., p. 94-95) A sociedade peruana precisou se construir em contraponto ao que Amaru

representava, incorporando à sua cultura aquela fobia ao índio que já fora manifestada

por Bolívar. “Es la historia de toda clase dominante que no ha sido desbaratada pero sí

amenazada.” (ibidem, p.90)

II.3) A matriz do nacional-popular no México

No México, o programa de uma construção nacional desde baixo se expressou

com os exércitos liderados por Miguel Hidalgo e José Maria Morelos. Ambos eram

párocos diretamente envolvidos em atividades de organização das populações locais,

travando portanto contato direto com as comunidades indígenas.

63

Duas forças que estabelecem o que Zavaleta chamou o “largo empate entre el caudillismo y la plebe

en acción”. (MERCADO, op. cit., p. 93) Possivelmente com essa referência em mente, Álvaro Garcia

Linera tenha passado a usar a expressão gramsciana “empate catastrófico” para explicar o impasse

entre governo Evo Morales e oligarquias. 64

Como nos casos da Confederação Peru-Boliviana (1836-1839) e da aliança entre esses mesmos países

na segunda metade do século XIX. Ambas as iniciativas foram derrotadas pela ação chilena, mas

também por facções oligárquicas internas rivais.

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O movimento das juntas espanholas contra a ocupação napoleônica mobilizou as

elites coloniais em função de uma possível ampliação da margem de incidência política

e instigou o projeto autonomista. No entanto, suas contradições e a negativa de

concessões aos representantes das colônias, acrescidas do quadro de insatisfação social

aguçada pelo ciclo de secas e fome entre 1808 e 1811, formaram o pano de fundo para

as conspirações.

Hidalgo era um crioulo ilustrado que se tornara líder das conspirações em

Guanajuato, pólo de efervescência revolucionária, desencadeando o movimento em

setembro de 1810 com o Grito de Dolores, proferido desde a igreja local. Esse

chamamento inicial, precipitado pela descoberta das conspirações, não declarava ainda

o rompimento com a coroa espanhola, mas indicava desde o início uma preocupação

no sentido de ampliar sua base social. Com uma convocatória abrangente, contava-se

com a adesão de índios e mestiços na luta contra a exploração dos gachupines

(fidalgos espanhóis) e os pesados tributos, declarando a Virgem de Guadalupe como

guardiã e protetora. O programa foi se ampliando no desenrolar dos combates,

incorporando novas demandas e em dezembro do mesmo ano publicava um decreto

que adotava entre as medidas mais urgentes a abolição imediata da escravidão, sob

pena de morte em caso de recusa e o fim de todos os tributos exigidos aos indígenas.

“La promesa formulada desde el principio por Hidalgo de devolver las

tierras de comunidad a sus legítimos dueños y la desesperación

producida por la vertiginosa subida de los precios del maíz, le atrajo el

ferviente apoyo de los peones e indígenas, convertidos en la fuerza

motriz de la primera Revolución Mexicana.” (VILABOY, 2006, Cap.

4)

A revolta se alastrou rapidamente pela intendência de Guanajuato, de maneira

que no início de outubro formara uma “heterogênea força” de 60 mil combatentes,

que começava a acumular importantes vitórias locais. No final do mês, quando

Hidalgo acampou nos arredores de Cidade do México, já comandava 80 mil indígenas,

mestiços e crioulos. No entanto, a vitória sobre exército realista nessa batalha, por

superioridade numérica, foi o início de sua derrocada. Apesar dos esforços de

reorganização sustentados pelos rebeldes em função dos novos combates, Hidalgo foi

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capturado em fins de março de 1811 e fuzilado quatro meses depois. (ANNA, 2001,

p. 86-88)

Não obstante a liderança crioula, alguns setores que haviam se articulado por

autonomia condenaram a rebelião; o cabildo do México se alinhou ao governo vice-

real. A Igreja atuou com interditos, condenações inquisitoriais e propaganda e o vice-

rei reorganizou exército e buscou consolidar a base de apoio criolla com a abolição do

tributo. Segundo Guerra Vilaboy, o caráter de uma autêntica rebelião camponesa

determinou a aliança entre o grosso da aristocracia mexicana, a burocracia peninsular,

o alto clero e os proprietários espanhóis. “A partir de entonces, el principal sostén del

régimen colonial en Nueva España residió en las propias clases privilegiadas criollas,

que suministraron sus mejores cuadros a la oficialidad realista. ” (VILABOY, op. cit.)

A noção da população européia e crioula de que tratava-se do “equivalente mexicano

da rebelião de Tupac Amaru” fizera o pertencimento de classe prevalecer sobre o

inconformismo com a rigidez colonial e as diferenças entre americanos e peninsulares

ficaria sublimada pelo sentimento comum de pavor em relação às classes subalternas.

(ANNA, op. cit. , p. 86)

Mas o próprio dominador reconhece que o rompimento da frágil estabilidade

da dominação libera forças difíceis de serem contidas. Félix María Calleja,

comandante do exército realista, recorreu a uma metáfora tradicional para definir a

situação após a execução de Miguel Hidalgo:65 "A insurreição está longe de ter-se

acalmado; ela volta como a hidra, em proporção ao número de vezes que sua cabeça é

cortada." (ANNA, op. cit. , p. 88)

Após um período de disputas e polêmicas quanto à condução do movimento,

José María Morelos consolidou sua posição como o comandante principal no início de

1812, representando a linha que lutava pela independência sem excluir os setores

subalternos. Mestiço de uma família humilde de Michoacán, conseguiu acessar a

universidade, foi ordenado padre e atuou nas paróquias indígenas da região. Participou

desde o início da rebelião e foi designado por Hidalgo, de quem fora aluno, para levá-

la ao litoral sul, criando "um pequeno exército eficiente e obediente", compacto e

65

Os historiadores britânicos Linebaugh e Rediker (2008), analisando a cultura rebelde no Atlântico

setecentista, observam a presença recorrente da alegoria da Hidra, por parte dos agentes da repressão,

para ilustrar a dificuldade em conter os sucessivos levantes.

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melhor preparado, ainda que de base igualmente heterogênea, que até 1815

“constituiu a principal ameaça ao poder espanhol”.66 (ANNA, op. cit. , p. 89)

Redefinida a composição das forças postas em movimento em 1810, coube ao

bloco nacional-popular ampliar sua pauta e atender às demandas dos setores que

compunha a sua base. Assim como seu antecessor e como costuma ocorrer nesse tipo

de processo, o programa do padre michoacano não se expressa apenas em um corpo

específico de escritos, mas em decretos, proclamações e atos diversos. Em 14 de

setembro de 1813, Morelos reuniu o “Supremo Congresso Nacional da América”, à

qual apresentou os pontos de um novo programa revolucionário, intitulado

“Sentimentos da Nação”.67 Nele constam a proclamação da independência; o princípio

da soberania popular; a defesa de um governo republicano; a abolição dos tributos

coloniais, da escravidão e do sistema de castas; introdução de imposto de renda. Além

disso, o dirigente manifestara-se a favor da redistribuição de riquezas e pela garantia

da posse da terra aos que nela trabalhavam, com confisco de propriedades dos

inimigos. Por outro lado, como atenuantes para uma tentativa frustrada de atrair apoio

criollo, reconhecia o primado da Igreja, o direito ao dízimo e declarou respeito à

propriedade privada.

Nem todas as medidas foram aprovadas pelo Congresso, cuja composição

incluía ricos proprietários crioulos que se mantiveram no campo independentista

sustentados pela facção moderada. Além das divisões internas, o reforço das tropas

realistas com novos contingentes espanhóis e o compromisso assumido pela maioria da

alta sociedade crioula mantiveram o Congresso sob acosso, com a tomada de cidades

importantes e baixas de líderes revolucionários, até a captura e execução de Morelos

em fins de 1815.

66

O autor do artigo referente à independência mexicana na respeitada coleção da Universidade de

Cambridge investe em uma revisão “criollista”, pelo alto, pelo que sua contribuição se reduz aos

dados factuais e referências a fontes primárias. Além de não contextualizar etapas da rebelião,

resumindo-se a juízos de valor, parece querer separar movimentos que têm origem comum,

prescindindo de uma análise global do processo. Mais de uma vez, compara Hidalgo e Morelos em

detrimento do primeiro, sempre coerente com a crítica ao surgimento de alternativas mais radicais,

independente do contexto. Ao fim, mesmo as reformas propostas por Morelos seriam "demasiado

radicais para um grande segmento da população politicamente ativa"; sua leitura limitada e

preconceituosa da rebelião ressalta saques e execuções em tom de condenação moral, considera

programa limitado e "vago" sem maior análise, pouco contribuindo para uma análise consistente da

guerra civil de independência, ainda que para uma avaliação crítica. 67

Documento disponível em <http://www.patriagrande.net/mexico/morelos.htm>.

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III.4) Do assalto ao céu ao saque de terras

Os dois conjuntos de rebeliões têm como traço comum a integração, em um

processo, da luta contra a metrópole e de um programa que serviria de base do

imaginário democrático plebeu, antioligárquico, antagônico às narrativas oficiais de

constituição nacional. Matrizes para o nacional-popular nos Andes e na Mesoamérica

que repercutiriam ao longo do século XX, sendo recriadas nas lutas sociais

contemporâneas. Pois, além das características próprias a cada movimento em seu

tempo, sua presença foi assimilada de maneira distinta em cada região, a partir das

peculiaridades histórico-culturais. A memória construída em relação a Hidalgo e

Morelos foi composta de elementos diversos daquela formada em torno de Katari e

Amaru. “En México no se encontraría una memoria histórica equivalente a la que existe

en los Andes”. (GALINDO, op. cit., p. 22) Não existe uma utopia asteca análoga à

utopia andina; em seu lugar estão a Virgem de Guadalupe, o potencial de intervenção

política dos camponeses experimentado em mais de uma ocasião, a transcendência que

o apelo da ideologia da mestiçagem atingiu com esses processos, estabelecendo uma

base social mais ampla que a de um extrato cujo poder político se fundava sobre a

opressão étnico-classista da maioria da população.

Porém, o padrão de dominação oligárquico, dividido entre as concepções

eurocêntricas católica-conservadora e liberal, prevalece desde os primeiros momentos

de consolidação dos Estados independentes. Sendo Peru e México centros políticos e

econômicos da colonização espanhola, as revoluções pré-independência nessas regiões

tiveram consequências semelhantes. A reação antiindígena fez com que a oligarquia

criolla contivesse os primeiros impulsos autonomistas, formando bastiões realistas e

aferrando-se ao regime colonial de maneira que seria definidora não apenas do

desenlace da crise do colonialismo ibérico, mas também das estruturas político-sociais

dos novos Estados.68

Assim, os projetos emancipatórios compostos pelos povos originários no

contexto das rebeliões plebéias anticoloniais são sufocados antes da concretização da

68

O que não significa, como se infere da análise de Anna, que a radicalidade do programa de Hidalgo e

Morelos tenha sido responsável pela determinação reacionária que coroou Itúrbide.

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99

independência.69

Esta se dissocia do potencial democrático contido nos movimentos

precursores e define o perfil oligárquico das novas repúblicas. Se na Alemanha a via

junker só foi possível pela derrota de Münzer, a via hispano-americana de formação

nacional se impôs em detrimento de Amaru, Katari, Hidalgo e Morelos, resultando na

fragmentação regionalista em função de poderes locais consolidados por caudilhos

destacados na guerra de independência; cuja extração social representava uma classe

dominante sustentada pelo domínio da terra e a exploração dos recursos naturais para

exportação, que passaram a servir-lhes de adjetivos: oligarquias açucareiras, bananeiras,

salitreiras, do guano, do café ou gado... (ROSENMANN, op. cit., p. 173)

A condição das classes subordinadas na “nova ordem” continuou então

caracterizada pela exploração violenta, exclusão do espaço político institucional,

discriminação jurídica, compondo o quadro da colonialidade do poder. Tanto a etapa de

consolidação das repúblicas como o advento posterior do liberalismo a confirmaram

como marco estruturante das relações sociais nos países americanos. Num processo que

une a um tempo a formação dos Estados e a transição do sistema colonial para o

capitalismo dependente, a construção nacional esteve determinada por essa forma de

afirmação da dominação. “Las dimensiones étnico-raciales de la dominación impuestas

durante el período colonial mantienen, en lo fundamental, inalterada su presencia.”

(idem)

No entanto, o controle criollo sobre o aparato estatal não se refletiu em

legitimidade estável para o grupo dominante. O projeto de estabelecimento da

dominação interna atravessou o século, atendendo às diferentes etapas de inserção no

mercado mundial70

e se expressando em diversas formas de disputas intra-oligárquicas:

centralismo x federalismo; protecionismo x livrecambismo; tutela da Igreja x laicismo.

Esses conflitos foram sintetizados, com suas particularidades nacionais, nos partidos

conservadores e liberais que, a despeito do eventual recurso à mobilização popular,

compartilhavam da base social comum.

69

Em que pese a participação indígena nas tropas montoneras e nas republiquetas na América do Sul ou

os levantes dos povos caribes e miskitos na América Central entre 1811 e 1812. (GALINDO, 2005:

221-232; ROMÁN, 1976: 74-81) O Haiti termina então por se afirmar como a exceção de uma

rebelião vitoriosa contra a metrópole e a oligarquia local. 70

Ciro Cardoso e Héctor Brignoli (1983, p. 138) identificam duas etapas: a primeira, da independência a

meados século XIX, caracterizada pela abertura ao livre comércio, entrada maciça de produtos

ingleses, perda de massa de metal precioso em circulação, dificuldade de inserção de novos produtos,

reeditando atividades de base colonial; a segunda, a partir da metade do século, quando se observa a

entrada massiva de capitais para infra-estrutura e o aumento da demanda por produtos primários nos

países industrializados.

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As reformas liberais, que se iniciam em meados do século e são intensificadas

em seu último quartel, apresentaram como questão fundamental as disputas em torno da

propriedade fundiária. Nesse aspecto, modernizar equivalia a consolidar o mercado de

terras, avançando muitas vezes violentamente sobre propriedades da Igreja, públicas e

comunitárias. Trata-se do processo que alguns autores consideram de acumulação

primitiva, em que o capitalismo consolida as estruturas para operar desde dentro do

continente e não mais como agente eminentemente externo, que assume na América

tonalidades semelhantes às observadas na Europa nos séculos precedentes. (CUEVA,

1983, p. 69-80; FERNANDES, 1981, p. 25)

“O roubo dos bens da Igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do

Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade

feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com

terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da acumulação

primitiva. Conquistaram o campo para a agricultura capitalista,

incorporaram as terras ao capital e proporcionaram à indústria das

cidades a oferta necessária de proletários sem direitos”. (MARX, 1998, p.

847)

Os projetos liberalizantes e as campanhas de “povoamento” afetaram

diretamente a vida das populações originárias.71 (CARDOSO e BRIGNOLI, 1983, p.

139) Estas últimas, apesar da resistência “tenaz e duradoura” capaz de garantir em

alguns casos margens de reconhecimento não previstas originalmente nas legislações

republicanas, foram submetidas a esforços sistemáticos de despojo e colonização. (idem,

p. 161) Nesse ponto, é necessário observar essas iniciativas além da sua dimensão

econômica imediata, compreendendo-os como fator de constituição e integração

nacional, que consolidam o padrão de colonialidade do poder, o que em alguns casos

correspondia simplesmente ao extermínio das populações “não-civilizadas”. Segundo

Barral Gómez,

71

É importante chamar atenção para o fato de que expressões como “povoamento” ou “pacificação”

referem-se à narrativa oficial de casos específicos de colonização interna, como o argentino e o

chileno.

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“las jóvenes repúblicas americanas que nacen a la vida política en el

mundo contemporáneo como entidades independientes durante el primer

cuarto de siglo, heredarán de la antigua metrópoli unos conflictos con la

población amerindia aborigen cuyo desenlace en muchos casos va a

ayudar a definir los propios perfiles y los contornos geográficos de las

incipientes naciones, e incluso, la culminación del proceso de luchas

contra estos grupos aborígenes contribuirá a formar en buena medida, en

algunos casos, la propia identidad nacional en estos países.” (GOMEZ,

1992, 267)

As guerras chiriguanas e o governo Melgarejo (1864-1871) na Bolívia, as lutas

contra os yaquis e a modernização porfirista no México, a “campanha do deserto”

empreendida por Julio Roca na Argentina,72

as guerras araucanas que se prolongaram

por todo o século no Chile exemplificam a recorrência de um modelo de constituição

estatal que, a despeito de particularidades regionais, fundava-se na matriz liberal

européia e ajudou a conformar os aparatos estatais e burocrático-militares das antigas

colônias, colocando como opções para as populações originárias a integração – parcial,

subordinada e aculturada – ao mercado de trabalho ou o extermínio. Daí podermos

afirmar que as nações latino-americanas se constituíram geralmente contra ou apesar

dos povos indígenas. “El problema de la estructura social del orden oligárquico expresa

su dimensión étnica en las guerras contra los pueblos indígenas y en su concepción

racial de aniquilamiento y menosprecio de su cultura.” (ROSENMANN, op. cit., p. 173)

Nos melhores dos casos, o liberalismo fazia da incompreensão a base para

ataques aos costumes indígenas. Promessas de “regeneração” e “integração à vida

nacional” sustentavam invariavelmente a imposição de políticas opressivas e

discriminatórias e, principalmente, os esforços sistemáticos de aniquilação das

comunidades, dos quais podem ser mencionados como exemplos as leis “de

Exvinculação” (Bolívia, 1874), “de Extinção de Comunidades Indígenas” (1881) e “de

Extinção de Ejidos” (1882) em El Salvador, de reforma do governo mexicano Benito

Juarez (1855-1857).

Observado em seu conjunto, o século XIX pode ser caracterizado como a etapa

de estruturação do colonialismo interno, dividida em dois momentos: a criação dos

72

Sintetizada pela célebre frase de Juan Bautista Alberdi: “Governar é povoar.”

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Estados “nacionais” e a conformação do capitalismo dependente. As manifestações de

crise dessa ordem oligárquica se intensificam no último quartel do século, ao passo em

que se delineavam interna e externamente os elementos distintivos do capitalismo em

sua fase imperialista.

II.5) O ciclo de crise das repúblicas liberais

O perfil dos estados latino-americanos na virada para o século XX esteve

delimitado externamente pelas transformações globais do capitalismo, cujos efeitos

mais imediatos passaram a relacionar-se com o advento do imperialismo. Internamente,

a crise do padrão de dominação vigente foi acirrada por três fatores que se

influenciaram mutuamente: as reformas liberais, os conflitos intra-oligárquicos e os

movimentos populares.

Nesse contexto, surgem novos sujeitos políticos, como o movimento operário e

as camadas médias urbanas. As gerações que vivenciaram esse processo empreenderam

uma crítica profunda e muitas vezes ácida das sociedades constituídas pós-

independência. As populações indígenas passaram ao centro dessa busca por uma nova

consciência nacional. Sujeitos a tributos especiais, despojados das terras comunais,

assediados pelo racismo, explorados na condição de miséria do trabalho semi-servil das

haciendas, impulsionaram inúmeras rebeliões, que se estendem desde a resistência à

ocupação chilena, à “guerra camponesa” engendrada na revolução mexicana, passando

pela Guerra Federal na Bolívia, processos sempre permeados pelos conflitos agrários.

II.6) Tempestades nos Andes

Nos Andes, o processo crucial foi a Guerra do Pacífico (1879-1884), que opôs a

oligarquia chilena à aliança entre Peru e Bolívia em disputas territoriais regionais.

Zavaleta identifica nessa guerra o ato originário que inaugura o primeiro ciclo estatal do

século XX, a partir de uma aliança “Una alianza entre un subestrato oligárquico y el

campesinado indigena impuso entonces por la vía militar un nuevo bloque social

dominante, un nuevo eje político-geográfico”... (MERCADO, op. cit., p.11)

Humilhadas na Guerra do Pacífico, as classes dominantes peru-bolivianas

ficaram desmoralizadas internamente e o sistema de poder estruturado após a

independência, falido. Despreparados e divididos, os exércitos aliados viram a

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economia ser destruída, a ocupação de Lima após a fuga do governo local e foram

obrigados a ceder vastos territórios ao vencedor – o que incluiu a perda do contato

com o mar por Bolívia. A elite, sem um Exército estruturado, recorreu à massa dos

povos originários73 que viviam na serra. Porém, esses, que eram a maioria da

população, não abraçavam a guerra como se fosse sua, o que de fato nunca poderia ter

sido. No entanto, essa mobilização detonou diversas rebeliões contra a condição

secular de exploração e miséria. Outros grupos seriam acaudilhados por chefes

criollos locais nas disputas pela recomposição do poder. As contradições internas

chegaram a tal ponto que um setor significativo da classe dominante, inclusive com

apoio na própria oficialidade, abandonou os brios patrióticos e adotou uma atitude

colaboracionista com os chilenos, buscando negociar condições mais favoráveis para

um acordo de paz.

Na Bolívia, o quadro de crise teve seu auge com a Guerra Federal de 1899,

impulsionada por uma disputa intraoligárquica que engendrou uma revolução

indígena. O grupo ascendente, associado ao capital externo e agrupado no partido

liberal sob a bandeira da transferência da capital de Sucre a La Paz, foi à guerra

contra o governo conservador.74 No entanto as consequencias dessa pugna foram

ampliadas quando o chefe liberal, José Manuel Pando, buscou o apoio das massas

indígenas. Liderados por Pablo Zárate Willka, estas nem de longe reduziram-se a

massa de manobra e emergiram na guerra civil com um programa próprio, que

reativou os temores mais profundos, comuns a ambas facções da classe dominante, a

ponto de os “aliados” liberais assumirem a responsabilidade de liquidar a insurreição

indígena.

O acionar da multidão aimara reeditou em larga escala o fantasma do cerco a

La Paz. A insatisfação em relação à apropriação sistemática de terras, que se

acumulara desde Melgarejo, culminou no levante militar generalizado, potencializado

por condições específicas. O horizonte se fazia indígena, não apenas metaforicamente

em termos de apresentação de um projeto político, mas objetivamente na estratégia de

guerra dispersa geograficamente, mobilizando todos os recursos ao redor. O acordo

73

Essa é a forma como nos últimos anos os descendentes dos povos que aqui estavam quando da

chegada dos europeus se denominam. Embora no Brasil a palavra “índio” não tenha o sentido

pejorativo que adquiriu em outros país, evitarei usá-la. A polêmica da capital foi reativada nos últimos

anos pela oposição ao governo de Evo Morales. 74

É importante notar que a natureza desse conflito expressa a deficiência da construção nacional

boliviana, ainda que pelo alto: Chuquisaca não era a Prússia, La Paz não poderia passar a cumprir o

papel do Piemonte.

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com Pando, fundamental para a vitória liberal, garantia a autonomia das tropas

indígenas, cuja formação ao sistema de autoridades próprio. Willka se apresenta nesse

cenário a partir das estruturas de poder comunitárias, reeditando a intransigência

radical de Julián Apasa, de quem tinha em comum também a região de origem, ao

proclamar a consigna de extermínio da raça branca75 e formação de um governo

indígena. “A lo último, el levantamiento general de los indios en el seno mismo de la

guerra civil estuvo a punto de echar por la borda a todos y a todo Chuquisaca y La

Paz, blancos o blancoides, vencedores y vencidos, todas las zonas de Bolivia oficial. ”

(MERCADO, op. Cit. , 143)

A ameaça da “ indiada” passa ao primeiro plano do ponto de vista de liberais e

conservadores, especialmente quando seu programa se autonomiza. Nele se

identificam como pontos principais a restituição de terras comunais usurpadas, o

desconhecimento de autoridades liberais e conservadoras e a consequente constituição

de um governo indígena. (MERCADO, op. cit. , 155; CUSICANQUI, op. cit, 72)

Coube ao próprio Pando comandar a liquidação do exército aimara, inaugurando uma

nova etapa de ocultamento sociológico e negação política do indígena.

No Peru, o pós-Guerra do Pacífico acarretou igualmente um clima de tensão que

partia das comunidades, gerando conflitos, instabilidade e rebeliões. Andrés Cáceres,

um dos caudilhos que se opunha aos acordos de paz, armou milícias na sierra central

para resistir à ocupação chilena. Porém, os montoneros não atacaram apenas as forças

do governo, voltando-se contra a oligarquia considerada traidora e ocupando fazendas

que eram reclamadas pelas comunidades. (KLARÉN, 2001, p. 324) Pouco depois, em

1885, irrompeu a revolta de Astuparia, no departamento de Ancash. Essa insurreição

teve grande repercussão, por sua extensão e intensidade. Astuparia era um curaca76

que

apoiara Cáceres na guerra civil, mas que não aceitou a imposição de novos tributos aos

indígenas – na verdade a reedição de antigos impostos – para cobrir os custos da guerra.

Comandou o levante de milhares de camponeses que chegaram a tomar a capital do

departamento, Huaraz. À derrota para as forças governistas, se seguiu um inevitável

massacre.

75

Esse ponto afirmado no trabalho clássico de Condarco Morales sobre o tema é contestado por Silvia

Rivera Cusicanqui (op. cit., p. 72) 76

Curaca ou kuraka eram os chefes comunitários. Em geral, eram cooptados para a estrutura de

dominação colonial e oligárquica, porém em determinados momentos se rebelaram e comandaram

insurreições.

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Portanto, o século XX surgiu com a marca das rebeliões camponês-indígenas.

Na serra sul-peruana, foram registrados mais de 300 conflitos esporádicos de 1901 a

1930 em Arequipa, enquanto outra pesquisa aponta 11 sublevações nos trinta e quatro

anos que se seguem a 1890 na região vizinha de Puno. (KLARÉN, ibidem, p. 354) A

mais famosa dessas ocorreu em 1915 até hoje é envolta em mistério. Seu principal líder

fora um major do Exército, mestiço, com o nome de Teodomiro Gutiérrez, que cumprira

dois anos antes uma missão de levantamento da condição da população originária de

Puno. Antes disso, como subprefeito de Chucuito, tomou uma série de medidas em

favor dos camponeses. Os fazendeiros locais o acusaram de incitar os camponeses e de

fato Teodomiro assumiu o nome quéchua Rumimaqui (Mão de Pedra) e comandou o

levante de um exército de indígenas. Pouco se sabe sobre seu desenrolar ou objetivos. O

relato da rebelião foi todo produzido por fazendeiros da região e os poucos documentos

e declarações atribuídos a Rumimaqui falam da expulsão dos gamonales e de uma

restauração do Tawantisuyu. O líder do levante foi preso em maio de 1916 e negou

qualquer participação no movimento. Há duas versões para o seu fim: a mais provável é

a de que tenha sido fuzilado; a mais popular é a de que sumiu através da fronteira com a

Bolívia e teria se integrado ao movimento anarquista. (LEIBNER, 1999, p. 199)

II.7) Uma revolução indígena no México? Zapata e a Comuna de Morelos.

As regiões observadas atingem então o século XX com estruturas oligárquicas

que, incapazes de incorporar os sucessivos movimentos indígenas, populares e agrários

em amplos projetos nacionais, se estruturam sob os cadáveres da repressão. No entanto,

se em Bolívia, Peru e Equador as linhas gerais desse padrão de dominação perduraria

respectivamente até 1952, 1968 e a década de 1970, no México a cultura política

popular gestada em 1810 reemerge recorrentemente ao longo do século XIX articulada

a movimentos federalistas, liberais, nacionalistas que, embora não chegassem ao poder,

mantiveram presença na política nacional, de maneira que a revolução de 1910 pode ser

lida como a irrupção dessa agenda popular. (MALLON, 1992, p. 43-46)

Na convergência de rebeliões que compõem a revolução mexicana, a

participação camponesa-indígena foi um pilar fundamental. A influência das culturas

indígenas na base popular da revolução mexicana é ainda tema de controvérsia entre

posições que variam desde os que a expurgaram historicamente o movimento liderado

por Zapata desde uma perspectiva elitista como uma manifestação das massas indígenas

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ignorantes, incendiários e saqueadores; até aqueles que consideram insignificante a

presença indígena no Exército Libertador do Sul, o qual teria sido um movimento

eminentemente agrarista. Tampouco há certeza se dominava o nahuatl. Em todo caso, se

compreendemos a dimensão étnica como um elemento complementar em boa parte do

que se considera o “mundo rural” de Abya Yala, é mister reconhecer o componente

indígena da revolução agrária do sul mexicano. Principalmente quando observamos

elementos tão importantes como a composição majoritária de sua base social e as

estruturas internas de poder do Exército libertador do Sul. (LÓPEZ Y RIVAS, 2007)

Uma peculiaridade do processo mexicano, a primeira grande revolução do

século XX, está na sua ausência de programas, ideólogos, núcleo político orgânico...

“Ningún otro movimiento revolucionario tuvo participantes con tan poca conciencia de

sus papeles y de sus posiciones”. (WOLF, 1972, p. 47) Os interesses de classes e de

grupos sociais regionais se expressavam contingencialmente, desdobrando-se em lutas

políticas e consequencias inesperadas, o que pode ser notado na espontaneidade no

surgimento de líderes militares e no próprio desenrolar global do processo que “Avanzó

con sacudidas y saltos, y en varias direcciones a la vez; arrasó por igual los bastiones

del poder y los „jacales‟77

de los peones”. (idem) Por isso a revolução política liderada

por Francisco Madero para derrocar o regime ditatorial de Porfirio Diaz, que teve seu

desenlace negociado em um semestre, serviu apenas como o estopim para o turbilhão da

guerra civil que sacudiu o país na década seguinte, alimentada por diversos conflitos e

disputas políticas, sociais, econômicas, diplomáticas.

Da miríade de conflitos e projetos que convergiram naquela década

revolucionária, a revolução agrária do sul teve uma dinâmica própria e, nesse processo

particular, a comuna de Morelos merece ser destacada como um episódio transcendente

para a construção do conceito de comuna a partir das tradições comunitárias.

Eric Wolf caracteriza Morelos como uma região de relativa concentração

populacional, cujos costumes indígenas, bem como o idioma nahuatl mantinham-se

preservados. As haciendas que ocupavam os vales com uma economia açucareira

avançaram sobre as terras comunitárias nas serras vizinhas, não apenas pelas

necessidades de expansão da propriedade privada, mas também para forçar as

populações originárias a servir nas grandes propriedades. Apesar do acosso constante,

as aldeias conseguiram manter sua autonomia, conservando intactas as unidades sociais

77

Casa de palhoça, pau-a-pique.

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e os laços comunitários tradicionais, à diferença dos trabalhadores das haciendas,

oriundos de diferentes aldeias. Com essas tradições cultivava-se uma consciência da

liberdade conquistada pela resistência de longa data às usurpações dos grandes

proprietários. Um exemplo é San Miguel Anenecuilco, que sustentara diversas batalhas

legais conduzidas pelo conselho de anciãos e onde a assembléia geral convocada por

esse conselho em 1909 designou um comitê de defesa liderado por um rancheiro local

chamado Emiliano Zapata. Ele organizou um fundo comum e ficou encarregado dos

documentos legais da comunidade, datados do início do século XVII. No ano seguinte,

quando a fazenda próxima ameaçou ocupar as terras comunais preparadas para o

plantio, Zapata organizou a sua defesa e em seguida, com a adesão de outras

comunidades, a recuperação de terras anteriormente invadidas pelas fazendas, dando a

conhecer os seus métodos: derrubada de cercas, repartição de terras entre os comuneros

e defesa armada dessa posse. (WOLF, op. cit., p. 48-50; GILLY, 2000, p. 90)

O mesmo autor lembra ainda que naquela região, justamente um século antes, o

cura cujo nome batizara o estado da República liderara uma rebelião de características

muito similares à do rancheiro de Anenecuilco. Além de uma família cuja participação

nas lutas políticas do século XIX remete à oposição ao Partido Conservador, à

resistência contra a ocupação francesa e às próprias tropas de José Maria Morelos, a

ligação de Zapata com a rebelião popular pela independência aparece em elementos

comuns como o método guerrilheiro de luta, a zona de operações, o programa agrário

que incluía a expropriação de fazendas e restituição de terras às comunidades indígenas

e até mesmo a adoção da Virgem de Guadalupe como guardiã espiritual. (WOLF, op.

cit., p. 50-51)

“El plan zapatista desciende, por otra parte, de una larga estirpe mexicana

de planes revolucionarios y utopías agraristas que se remontan al menos

hasta los Sentimientos de Nación de José María Morelos – es decir, hasta

la fundación misma de la patria –, reiteran bajo formas diversas la idea

persistente de abolir la renta agraria y atraviesan todo el siglo XIX y sus

rebeliones campesinas.” (GILLY, op. cit., p. 96)

Os camponeses de Morelos aderiram inicialmente à luta de Madero e seu

programa reformista expresso no Plano de San Luis. No entanto, seguiram desde o

início uma agenda própria. Zapata não fora designado chefe revolucionário por

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instâncias superiores, mas conforme as tradições comunitárias. Suas ações não

obedeceram ao ritmo das negociações de cúpula e quando essas se deram por concluídas

com os acordos de Ciudad Juárez,78

romperam o tênue compromisso com a revolução

oficial e puseram em marcha a revolução agrária. Nesse aspecto, a trajetória dos

camponeses do sul do México se assemelha bastante à do exército aimara liderado por

Zárate Willka: impulsionados por disputas hegemônicas no centro do poder, organizam-

se em estruturas autônomas e constroem orientações estratégicas independentes.

O Exército Libertador do Sul foi o organismo político e militar dessa revolução

dentro da revolução mexicana. Comandado por Zapata e outros camponeses e

rancheiros, militares e intelectuais médios, representava o povo em armas. O Plan de

Ayala, publicado em novembro de 1911, vinha concretizar e aprofundar o Plan de San

Luis de Francisco Madero, mas protelado no que se referia às demandas camponesas e

populares. Prenunciando um aspecto do modus operandi zapatista, o manifesto

consolidava em letra de lei o que já vinha sendo praticado; assegurava a restituição de

terras, montes e águas usurpados e a devida expropriação de “hacendados, cientificos ou

caciques”, ações a serem garantidas pelas armas. A distribuição seria imediata, cabendo

aos fazendeiros apelar posteriormente aos tribunais. Nos anos seguintes, o controle do

território de Morelos em meio às reviravoltas do processo a nível nacional possibilitou a

experiência de uma democracia camponesa, comunitária e anticapitalista, que tem seu

auge entre 1914 e 1917.

A transcendência da revolução mexicana, especialmente em seu capítulo

morelense não reside apenas em sua profunda contribuição ao imaginário popular de

rebeldia. Destaca-se em seu tempo como a primeira grande revolução de um século de

revoluções e por sua projeção continental que influenciou as gerações seguintes.

Ademais, seu conhecimento acrescenta informações importantes para a compreensão

dos métodos e propostas dos neozapatistas organizados no EZLN ou outras

organizações camponesas.

78

Por esse acordo, firmado em 25 de maio de 1911, Porfírio Díaz retirava-se do país e Francisco Madero

era reconhecido como presidente legítimo. Com isso podia considerar vitoriosa a revolução que

iniciara em 20 de novembro do ano anterior. Mas a protelação da aplicação do Plan de San Luis

(especialmente a redistribuição de terras), a manutenção de notórios porfiriststas no novo governo, a

restituição da autoridade ao antigo exército para o restabelecimento da ordem, para a qual se

determinara como prioridade o desarmamento dos camponeses marcaram a atitude dos setores

populares diante da “revolução oficial”.

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II.8) Revolução, modernismo e indigenismo.

A partir desses processos, o “problema do índio” aparece pela primeira vez

como um fator fundamental nos debates teórico-políticos do continente, convergindo

com um movimento amplo de reflexão e crítica da condição latino-americana.

Desenvolve-se um ambiente de solidariedade continental e antiimperialismo em torno a

experiências tão diversas como a reforma universitária de 1918 que se irradia de

Córdoba por diversos países, a revolução mexicana, as grandes greves de massa do

proletariado argentino, brasileiro e peruano, entre 1917 e 1920, as lutas do proletariado

chileno em 1920-21, os levantes militares no Brasil em 1922 e as epopéia da Coluna

Prestes, as mobilizações de grandes massas populares animadas por programas de

governos reformistas (Irigoyen na Argentina, Alessandri no Chile, Battle y Ordóñez no

Uruguai ou os caudilhos militares no México), o movimento sandinista contra a

ocupação estadunidense ou na rebelião de 1932 em El Salvador.79

Um amplo arco de

movimentos com bases sociais heterogêneas, democratizantes, antioligárquicos,

antiimperialistas e vagamente socializantes, que projetaram uma dinâmica particular de

Abya Yala no contexto de crise e agitação mundiais, criando condições para a

maturação de correntes intelectuais radicais, como o anarquismo, os exercícios de

apropriação criadora do marxismo e o nacionalismo revolucionário.

Em torno a essas mobilizações, formaram-se nos países de presença autóctone

importantes correntes indigenistas, que refletiram através de romances, revistas, jornais,

círculos intelectuais, redes de solidariedade, organismos governamentais a presença dos

povos originários na crítica da consciência nacional. A peruana Clorinda Matto de

Turner com o romance Aves sin nido (1889) é considerada precursora na introdução da

temática, que torna-se desde então presença marcante no processo literário e intelectual

de determinados países. O indigenismo, desenvolvido por camadas médias urbanas,

podia se expressar na perspectiva de ação humanista cristã, focada na caridade, ou em

manifestações mais críticas, coincidindo com o movimento das vanguardas modernistas

e do movimento operário. Este encontro foi um importante fator de radicalização dessa

intelectualidade.

79

Pouco conhecida em geral, a insurreição de 1932 liderada pelo Partido Comunista, teve um saldo de

milhares de mortos, incluindo a execução do dirigente Farabundo Martí. Um estudioso do tema

registra a integração de indígenas no movimento. (ANDERSON, 1992, 29-35)

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O México revolucionário incorporara a figura do índio ao muralismo, por

exemplo, e no pós-revolução desenvolve um poderoso indigenismo oficial.

(RENTERÍA, 2004) Precedentes mediatos do movimento indígena contemporâneo no

Equador podem ser observados nas experiências organizativas dos primeiros sindicatos

camponeses formados na região de Cayambe na década de 1920, que buscaram

consolidar-se através do apoio mútuo com os incipientes partidos socialista e comunista.

(BECKER, 1999)

Mas foi no Peru, marcado pela grandeza incaica, a centralidade colonial e as

tragédias das guerras do Pacífico, que surgiram as expressões mais significativas desse

processo.80

(SCHWARTZ, 1995, 167-169) Na capital e pelo interior do país, diversos

intelectuais assimilaram a causa dos povos originários, através de romances, manifestos,

artes visuais e revistas. Mesmo aqueles que não podem ser qualificados exatamente de

indigenistas, mas se dedicaram a refletir um projeto para o Peru, foram obrigados a

pensar a temática, que se impôs como uma contradição fundamental em um país que se

questionava sobre o passado recente e debatia que passos dar para seguir em frente.

Vinculando a decadência da nacionalidade peruana à exclusão daqueles que

eram a maioria da população, Manuel González Prada (1848-1918) foi a maior

expressão intelectual da desilusão com as classes dirigentes. De origem aristocrática,

alternou fases onde eram maiores as influências positivista, romântica, socialista, até

chegar ao anarquismo. Porém, o que o caracteriza não é um programa para ação, mas os

ataques demolidores àquela sociedade e seus valores. Atribui à aristocracia peruana a

impotência e o fracasso na guerra, ao contrário do boliviano Alcides Arguedas que vê

no “povo enfermo” a causa principal da decadência. Em suas Horas de Lucha e Pájinas

Libres sua metralhadora giratória atinge sem eufemismos a liberais, conservadores,

magistrados, aristocracia e Igreja. Esta é o seu alvo predileto e o seu anticlericalismo

lembra o velho anarquismo ibérico. Prada sintetiza o fracasso do Peru no fato de a

maior parte da população não estar incorporada à vida nacional, denunciando o

oportunismo caudilhista. “Con las muchedumbres libres aunque indisciplinadas de la

Revolución, Francia marchó a la victoria; con los ejércitos de indios disciplinados i sin

libertad, el Perú irá siempre a la derrota. Si del indio hicimos un siervo ¿qué patria

80

Não por acaso surge em meados do século, nesse mesmo país, a obra literária de José Maria

Arguedas. Fluente no quéchua, familiarizado com o universo cultural andino por suas reminiscências

infantis e pela formação antropológica, sua obra situa-se em meio às fronteiras culturais que marcam

aquela formação social.

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defenderá? Como el siervo de la Edad media, sólo combatirá por el señor feudal”.81

(PRADA, 1976, p. 44)

Seu estilo e suas idéias influenciaram não apenas os anarquistas peruanos, mas

toda a geração seguinte da intelligentsia peruana, que reconhece a importância e o

pioneirismo do anarquista que, cético quanto a apelos humanitários à classe dominante,

pregou a libertação pela violência e pela autoorganização e antecipava a questão

indígena como uma questão sócio-econômica:

“La condición del indígena puede mejorar de dos maneras: o el corazón

de los opresores se conduele al extremo de reconocer el derecho de los

oprimidos, o el ánimo de los oprimidos adquiere la virilidad suficiente

para escamotear a los opresores. Si el indio aprovechara en rifles y

cápsulas todo el dinero que desperdicia en alcohol y fiestas, si en un

rincón de su choza o en el agujero de una peña escondiera una arma,

cambiaría de condición, haría respetar su propiedad y su vida. A la

violencia respondería con la violencia, escarmentando al patrón que le

arrebata las lanas, al soldado que le recluta en nombre del gobierno, al

montonero que le roba ganado y bestias de carga”. (PRADA, 1995, p.

43.).

O modernismo peruano surge na década de 1920 pelas letras de César Vallejo

(autor de Los heraldos Negros, Trilce). Em Cuzco se articula o grupo Risorgimiento,

onde se destaca Luís E. Valcárcel (Tempestad en los Andes) e em Puno o Boletim

Titikaka, que reuniu os irmãos Arturo Peralta (El pez de oro) e Alejandro Peralta (Ande,

El Kollao). (SCHWARTZ, 1995, 168) Muitos desses setores mais radicalizados

estiveram entre os círculos que deram origem ao Partido Socialista Peruano.

Nesse contexto surge a obra de José Carlos Mariátegui, que vincula a questão

indígena ao problema da terra, sem menosprezar os aspectos culturais dos povos

originários. Aponta no ayllu, a comunidade indígena, a base para a organização e para o

projeto emancipatório nos países andinos. Reconhece dessa forma o potencial

revolucionário do campesinato e dos povos indígenas, contrapondo-se a uma certa

ortodoxia marxista. Registra a debilidade do Estado e das formações nacionais no

81

Mantida grafia original. Prada se caracteriza também por propagar uma renovação da língua.

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continente. Destaca o papel das tradições no processo revolucionário, reconhecendo a

importância do passado incaico para a resistência dos povos atuais, através do conceito

de mito.

Para ele, é a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí

decorrentes que possibilita compreender e elaborar um programa de emancipação dos

povos indígenas. São inócuas as tentativas de soluções unilaterais do ponto de vista

administrativo, jurídico, étnico, moral, educacional ou eclesiástico, que eram

apresentadas e praticadas pelos governos, pela Igreja ou por entidades civis com o

intuito declarado de melhorar a situação dos povos originários. De maneira bem

objetiva, para Mariátegui: “O novo enquadramento consiste em pesquisar o problema

indígena no problema da terra”. (MARIÁTEGUI, 1975, 28) Se é verdade que suas

reflexões foram superadas em alguns pontos e demandam uma revisão crítica quando

assimiladas, deve-se reconhecer que alguns pontos fundamentais permanecem válidas,

pois o peruano foi capaz de empregar um marxismo permeável à herança andina e não

dogmático, rompendo com um modelo eurocêntrico predominante ao longo do século

passado. (BEIGEL, 2001) Com isso levou o indigenismo aos seus limites, deixando

abertos os canais de diálogo.

II.9) Um novo Pachakuti?

Com essa breve resenha histórica, vê-se como, de maneira mais ou menos

latente, o debate sobre a condição dos povos originários atravessa a história das

formações sociais americanas e ressurge com toda a intensidade na sua última década

do século XX. Na primeira parte deste trabalho tentei traçar um panorama geral dos

movimentos indígenas. Em seguida, atendendo uma sugestão de sua própria construção

identitária, dei um salto na história para encontrar as raízes, a partir do período

republicano, da condição dos povos originários de Abya Yala. Retomo agora o enfoque

conjuntural, articulando a análise das formas contemporâneas de acumulação e

expropriação capitalista, mecanismo clássicos e contemporâneos de intervenção

imperialista e dominação de classe com as alternativas que emergem da plebe indígena.

A emergência dos movimentos indígenas ocorre em um contexto de consolidação de

importantes processos de escala regional ou mundial que exerceram influência direta ou

indireta no acionar político dos povos originários.

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113

O conjunto de transformações que configuram o capitalismo nesta virada de

século, bem como seus efeitos, têm sido analisados pelos mais distintos enfoques.

Tratando-se o período atual de uma transição cujo desenlace ainda está longe de

despontar no horizonte, já que o próprio debate das ciências sociais está sujeito ao

desenvolvimento de um contexto ainda indefinido. Não cabendo aqui um esforço global

de interpretação do capitalismo contemporâneo, destaco alguns traços gerais para uma

leitura desde Abya Yala, fundamentando-se em interpretações que nos aproximam dos

elementos que influenciam o surgimento e a trajetória dos movimentos indígenas.

Anibal Quijano identifica no período atual um amplo “processo de

reconcentração do controle de recursos, bens e rendas em mãos de uma minoria da

espécie”; o que implica em uma crescente polarização social a nível mundial entre um

grupo dominante cada vez mais restrito e a vasta maioria da humanidade, da qual uma

parcela crescente é submetida a níveis extremos de superexploração.(QUIJANO, 2002

p. 8) Ao mesmo tempo, declinam as possibilidades para o capital de converter a força de

trabalho em mercadoria, provocando a expansão de formas não-salarias como

escravidão e servidão. O sociólogo peruano caracteriza a partir desses elementos um

processo de transição do sistema capitalista, que implica, por um lado “um processo de

reclassificação social da população mundial, em escala global” e por outro a

“reconcentração e reconfiguração do controle do trabalho, seus recursos e seus

produtos, em escala mundial.” Lembra ainda que tais processos estão associados à

consolidação do predomínio da acumulação especulativa e da financeirização desde

meados da década de 1970.

Nesse momento de eclosão da crise global do capitalismo ocorre o ponto de

virada no sentido de assegurar a retomada do controle do poder político em escala

internacional por um “bloco imperial mundial” (ibidem, p. 11) – eufemisticamente

batizado pela sociologia burguesa de “governança global” – constituído

institucionalmente não apenas pelos Estados hegemônicos, mas também por entidades

intergovernamentais ou privadas de controle e exercício da violência e do fluxo de

capital: OTAN, Conselho de Segurança da ONU, FMI, Banco Mundial, G8, Fórum

Econômico de Davos, Clube de Paris etc. A estratégia de construção desse bloco

ganhou consistência a partir da derrota do conjunto extremamente heterogêneo de

movimentos “anti-sistêmicos” (WALLERSTEIN, 2003) que desafiara em distintos

níveis o sistema capitalista após a II Guerra Mundial: as guerras anticoloniais afro-

asiáticas; as revoluções sociais triunfantes, seja de orientação socialista, seja de

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libertação nacional ou ainda nacionalistas, em territórios como a China, Vietnã, Coréia,

Indonésia, Cuba, Bolívia, Chile, Angola, Moçambique, Argélia etc.; os movimentos

regionais de orientação nacionalista-reformista (nacionalismo militar na América

Latina, nasserismo e pan-arabismo, pan-africanismo e “socialismo africano”); a

consolidação do Estado de bem-estar social nos países centrais do capitalismo; os

movimentos democráticos e antiburocráticos que visavam retomar a orientação

socialista nos países do leste europeu; os movimentos de crítica das relações sociais

dominantes, pela liberação sexual e nas relações de gênero, étnicas e geracionais. Pode-

se dizer que esses movimentos, observados de conjunto, representavam uma efetiva

desconcentração do poder sobre o globo terrestre, bem como uma relativa redistribuição

de benefícios e rendas, de controle do trabalho e seus recursos, acompanhados de um

acúmulo teórico crítico e radical.

“Foi a derrota de todo esse contexto, pela combinação de medidas de reconcentração do

controle sobre o trabalho, que se deu durante a crise mundial do capitalismo, e da

derrota dos movimentos que alguns chamam 'anti-sistêmicos', primeiro por uma aliança

entre os regimes rivais dentro do sistema, e da derrota e desintegração posterior dos

regimes rivais mais influentes (a ex-União Soviética, o “campo socialista” europeu),

que permitiram aos Estados-nação mais poderosos do padrão mundial de poder a rápida

e relativamente fácil, sem resistência apreciável até agora, reconcentração do controle

da autoridade pública, em muitos casos, uma clara reprivatização do Estado, como no

caso peruano mediante o regime fujimorista.” (QUIJANO, op. cit., p. 15)

Função cumprida em outros países por regimes que surgem de situações

particulares mas seguem roteiros semelhantes, como os de Hugo Banzer-Sanchez de

Lozada na Bolívia, Pinochet-Concertacion no Chile, Salinas de Gortari-Zedillo no

México, os governos pós-guerras civis na América Central. O que se convencionou

chamar neoliberalismo como apresenta-se então como uma dimensão do esforço de

reorganização do capitalismo, com suas manifestações específicas na América latina. É

necessário aprofundar a crítica às raízes mais imediatas do processo atual, dentre as

quais geralmente se aponta a globalização neoliberal e seus processos correlatos: os

Programas de Ajuste Estruturais, os projetos de “modernização” e desregulamentação

de mercados etc. Nesse contexto pode-se compreender a “globalização” como um

processo que, longe de representar o “admirável mundo novo” afirma-se

fundamentalmente como uma ofensiva pela universalização da forma mercadoria, a qual

implica a reconfiguração da colonialidade sob novos termos (mas não sob novas bases),

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em um contexto global de esgotamento do Estado-nação como campo prioritário

equalização das disputas políticas.82

Uma leitura bastante criativa e consistente do período atual, é a que vem

desenvolvendo o EZLN. Afirmando o movimento social como lugar de produção de

uma teoria, trabalham com alegorias, metáforas e conceitos que não se fiam pelos

cânones acadêmicos, mas que delineiam uma interessante interpretação do mundo

contemporâneo que tem sido consolidada não apenas em seus célebres comunicados e

declarações, mas em fóruns internacionais, reflexões sobre temas específicos e diálogos

com intelectuais de várias partes do mundo.

Partindo de suas reflexões mais recentes, entende-se que o capitalismo é um

sistema social caracterizado pela concentração de poder e de riqueza, sendo esta

baseada na exploração dos trabalhadores e no despojo sistemático de bens como a terra

e os recursos naturais. A lógica desse sistema gira em torno da produção e circulação de

mercadorias, com sua capacidade de ocultar relações sociais e sua necessidade de

expansão mundial.

“Y entonces el capitalismo todo lo convierte en mercancías, hace

mercancías a las personas, a la naturaleza, a la cultura, a la historia, a la

conciencia. Según el capitalismo, todo se tiene que poder comprar y

vender. Y todo lo esconde detrás de las mercancías para que no vemos la

explotación que hace. Y entonces las mercancías se compran y se venden

en un mercado. Y resulta que el mercado, además de servir para comprar

y vender, también sirve para esconder la explotación de los trabajadores.”

(EZLN, jun. 2005)

A fase atual do capitalismo se diferencia de outros momentos pela sua capacidade de

articular globalmente a dominação. Assim caracterizam os zapatistas a “globalização

neoliberal”, que opera nos planos econômicos, políticos, culturais e militares.

82

Interessante notar como o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro já vislumbrava na década de 1980 a

forma específica em Nossa América do processo de declínio de “um dos principais protagonistas da

história contemporânea”: “Refiro-me ao Estado unitário burguês, montado como máquina de

dominação de um componente étnico sobre as demais, dentro de sociedades multiétnicas.” (RIBEIRO,

1986, p. 115)

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“Entonces los capitalistas globalizados se meten a todos lados, o sea a

todos los países, para hacer sus grandes negocios o sea sus grandes

explotaciones. Y entonces no respetan nada y se meten como quiera. O

sea que como que hacen una conquista de otros países. Por eso los

zapatistas decimos que la globalización neoliberal es una guerra de

conquista de todo el mundo, una guerra mundial, una guerra que hace el

capitalismo para dominar mundialmente.” (idem)

Os zapatistas percebem antes (e para além) da era Bush que a lógica da guerra, imanente

ao capitalismo, atinge uma nova etapa nos dias atuais. O fim da mal chamada “guerra

fria” acentua as condições para o desenvolvimento da “Quarta Guerra Mundial”,

caracterizada por esse assalto da forma mercadoria a todos os aspectos da vida social,

enquanto se varrem os focos de resistência pela via da repressão.83

O geógrafo estadunidense David Harvey interpreta o contexto do capitalismo

contemporâneo “em termos de uma série de ajustes espaço-temporais que fracassaram,

inclusive no médio prazo, em enfrentar os problemas de sobreacumulação”. (HARVEY,

2005, 96) Essa crise que desponta na década de 1970 e, irresoluta, apresenta atualmente

novas e mais profundas manifestações, acarreta, segundo Harvey, a inviabilidade de

acumulação pela reprodução ampliada sobre uma base sustentável e o consequente

fortalecimento da via de acumulação pela espoliação. A esse processo dá o nome de

“novo imperialismo”. Não pretendo aqui tomar parte na ampla polêmica em torno à

validez de tal expressão, mas creio pertinente o debate com o conceito de “acumulação

por espoliação”.

Partindo de uma leitura crítica das contribuições de Marx e Rosa Luxemburgo

sobre o problema da acumulação capitalista, Harvey propõe que não se relegue a uma

delimitada etapa originária a acumulação baseada em métodos depredaciativos,

violentos e fraudulentos e que esta tampouco seja considerada uma dinâmica exterior ao

capitalismo. (HARVEY, 2005, p. 108) Ao contrário, uma “revisão geral do papel

permanente e da persistência de práticas predatórias de acumulação 'primitiva' ou

83

Note-se que a pertinência dessa caracterização pode ser verificada pela difusão nos centros de poder

de teorias das novas formas de guerra: de baixa intensidade, assimétrica, humanitária, de quarta

geração, até serem sintetizadas após o 11 de setembro de 2001 na “guerra infinita contra terror”.

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'originária' ao longo da geografia histórica” (idem) do capitalismo indicam que este

sistema internaliza essas práticas, que podem até tronar-se latentes em períodos de

reprodução ampliada, mas tendem a se acelerar em períodos de crise. Destaca ainda os

novos mecanismos de acumulação por espoliação, consolidados em processos como a

imposição dos direitos de propriedade intelectual nos mais diversos âmbitos, a

biopirataria, as privatizações, a mercantilização de bens culturais etc.

Ainda que esta não seja a dinâmica predominante do capitalismo,84

é importante

ressaltar esse aspecto, especialmente em sua periferia. Afinal, salta aos olhos a

atualidade de métodos como o roubo, a violência e o terrorismo estatais e paraestatais,

descritos por Marx no célebre capítulo XXIV d'O Capital, reafirmando a dinâmica

colonial permanente do capitalismo, com a diferença de que os “novos cercamentos”

operam a expropriação de recursos naturais, propriedades comunais, bens culturais e

recursos genéticos e biológicos prescindindo da demanda de formação trabalhadores

assalariados que caracterizava a acumulação “originária”.

Em função dessas dinâmicas, o atual padrão de acumulação capitalista reativou

distintos mecanismos de conflitividade direta entre as comunidades e as empresas

transnacionais, os aparatos estatais locais ou as forças militares do imperialismo. No

avanço das empresas sobre os recursos naturais, nas tentativas de imposição do mercado

de terras, nos megaprojetos de intervenção infra-estrutural para facilitar o fluxo de

mercadorias e no acirramento dos conflitos diretos ou indiretos com o aparato militar

estadunidense estão as raízes mais imediatas da resistência indígena.

Com tempos e peculiaridades locais, verifica-se um padrão de intervenção ao

largo do continente. Mineradoras, petroleiras, papeleiras, madeireiras apresentam-se

como os novos conquistadores. Já observamos que o marco inicial do atual processo

boliviano a luta contra a privatização dos serviços de abastecimento urbano de água e

seu auge na disputa – ainda em desenvolvimento – pelo destino a ser dado às reservas

de combustíveis fósseis; enquanto isso, o elemento definidor da radicalização dos

cocaleros, setor predominante na força política que atualmente governa o país, foi a

política de erradicação da folha de coca, financiada e supervisionada diretamente pela

embaixada dos Estados Unidos. Da mesma forma, setores como os cocaleros, as

comunidades afetadas pela mineração e os povos originários amazônicos tornaram-se

sujeitos de conflitos estratégicos com o Estado peruano, impulsionando importantes

84

E em que pese algumas imprecisões conceitos, especialmente quando discute as expressões de

resistência ao “novo imperialismo”.

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mobilizações e pela rearticulando um discurso identitário indígena, em um país cuja

desarticulação social impôs-se por um longo período sobre a capacidade de resistência

dos grupos subalternos. Na Amazônia equatoriana, o incremento das atividades

petroleiras iniciadas há três décadas, introduziu as multinacionais do setor – incluindo a

Petrobras – como motivadoras de enfrentamentos que suplantaram o âmbito regional.

(FONTAINE, 2005; Folha Online, 2 jul 2007) A ação das mineradoras na América

Central tem sido outro vetor de conflitos, como os gerados pela atividade da companhia

canadense Gladis Gold Ltds em San Miguel Ixtahuacán (Guatemala) e a concentração

de 70% das concessões mineras em terras indígenas, afetado especialmente o povo kuna

yala no Panamá (GARCÍA-FALCES, 2006) Casos semelhantes se repetem no Brasil,

com os ataques da Aracruz Celulose a comunidades indígenas e quilombolas; no Chile,

onde a repressão estatal às organizações mapuche cresce proporcionalmente à

ampliação de projetos de empresas mineradoras e madeireiras e em exemplos que se

multiplicam em todo o território de Abya Yala.

Para consolidar os planos estratégicos do poder, tomam corpo megaprojetos de

intervenção infra-estrutural que, sob a roupagem da integração, representam sérias

ameaças às comunidades indígenas. A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura

Regional Sulamericana (IIRSA) e o Plano Puebla Panamá (PPP) formulam propostas

ambiciosas de pavimentação da infra-estrutura das regiões mais “atrasadas” do

continente, buscando efetivar reestruturações territoriais que facilitem a exploração de

recursos naturais e a circulação de mercadorias.85

A IIRSA traça como objetivo “realizar acciones conjuntas para impulsar el

proceso de integración política, social e económica suramericana, incluyendo la

modernización de la infraestructura regional y acciones especificas para estimular la

integración y desarrollo de subregiones aisladas”, concebendo a América do Sul como

“un espacio económico plenamente integrado, para lo cual es preciso reducir al mínimo

las barreras internas al comercio y los cuellos de botella en la infraestructura y en los

sistemas de regulación y operación que sustentan las actividades productivas de escala

regional”. Atualmente está composto de 335 projetos de financiamento de infra-

estrutura, com investimentos da ordem de US$ 37,5 bilhões de dólares financiados via

Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Corporação Andina de Fomento

(CAF) e Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA)

85

Uma compilação de análises e dados relativos a esses projetos pode ser encontrada em

<http://www.megaproyectos.org>.

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distribuídos em dez Eixos de Integração e Desenvolvimento, em grande parte

executados pelas empreiteiras brasileiras.86

O projeto chama atenção por ser planejado e

gerido pelos governos sul-americanos, financiado por capitais locais e sem intervenção

direta dos Estados Unidos, desempenhando na América do Sul um papel complementar

ao projetado para o Plano Puebla-Panamá.87

A esse respeito, organizações indígenas se

manifestaram na Cúpula Social pela Integração dos Povos em dezembro de 2006, na

cidade de Cochabamba, criticando o modelo agro-exportador, focado na construção de

mega-estradas e prevendo o desalojo de povoados, etnocídio de populações em

isolamento voluntário, destruição de costumes produtivos locais e degradação da

natureza. Na Bolívia, para apontar apenas um exemplo, povos chiquitanos e ayoreo

denunciaram os impactos sócio-ambientais como contaminação hídrica e seca,

agressões à fauna local, expulsão das comunidades de suas terras, extração ilegal de

madeira, entre outros efeitos não anunciados na avaliação preliminar para a

implementação de projetos ligados ao IIRSA. (Adital, 2007)

O Plan Puebla Panamá (PPP) foi proposto em 2001, por iniciativa do presidente

mexicano Vicente Fox, sendo relançado em junho de 2008 como “Projeto

Mesoamérica”. Seu espaço de intervenção se estende dos estados do sul do México pela

América Central, chegando atualmente à Colômbia. Como o seu correlato sul-

americano apresenta-se como um projeto ambicioso de integração regional,

prescrevendo a ideologia do desenvolvimento como impulsionador de melhores

condições de vida para a maioria da população. Originalmente esteve composto de dois

grandes sistemas de corredores logísticos enlaçando rede de integração mediante linhas

de fluxos progressivamente complexos, que incluiriam estradas, portos, ferrovias e

aeroportos, além de projetos de infra-estrutura de plantas de geração e linhas de

distribuição de eletricidade, gasodutos, centros de armazenamento e processamento de

petróleo e derivados, hidrovias, aquedutos, redes telefônicas de fibra óptica etc.,

86

Lançada em 2000 na capital brasileira, a iniciativa tem no Banco Nacional de Desenvolvimento

Econômico e Social um de seus principais financiadores. Informações e citações retiradas de

<http://www.iirsa.org>. Acesso em 13 de fevereiro de 2007. 87

No que se refere ao tema central deste trabalho, cabe destacar que, se por um lado o auge neoliberal

apontava em um sentido recolonizador, com propostas de fundamentos explicitamente

intervencionistas como a ALCA, o Plano Puebla-Panamá, o Plano Colômbia e a instalação de bases

militares por todo o continente; por outro lado a tendência neodesenvolvimentista presente em

diversos governos de esquerda não rompe com a condição de dependência e superexploração, sendo

compatível com a expansão do mercado, cooperação militar, projetos modernizadores que arrasam a

natureza e os povos originários, manutenção e reforço da hierarquização internacional, confirmação da

divisão internacional do trabalho,primarização das economias etc.

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direcionados para consolidar o Golfo do México e a costa do Pacífico como acessos

estratégicos de corredores mercantis globais.

Complementados por sucessivos projetos apresentados nos últimos anos,88

observa-se a convergência dos planos econômicos, políticos e militares na estratégia de

recomposição da hegemonia das classes dominantes, operando a partir de propostas de

uma geopolítica do poder que define entre suas prioridades o controle de recursos

energéticos, do fornecimento de matérias-primas (recursos naturais) e dos mercados.

Diante das múltiplas resistências a esse redesenho hegemônico dos territórios,

incrementa-se a alternativa da militarização, reforçando os capítulos regionais da

“quarta guerra mundial”. Ao se sobrepor no mapa de Nossa América os recursos

estratégicos, os principais focos de resistência e os posicionamentos militares dos

Estados Unidos, Ceceña chama a atenção para a “coincidência” entre esses três vetores

do conflito. (CECEÑA, 2001) Com efeito, diversos trabalhos têm registrado a

correlação significativa entre diversidade cultural biológica, o que não se deve a uma

leitura idílica, mas em função de razões históricas e da persistência de formas de

organização social que não se sustentam exclusivamente da forma mercadoria.

(GARCÍA-FALCES, op. cit.; DÍAZ-POLANCO, 2003)

Nesse contexto de crise e tentativas de reorganização do capitalismo, os povos

indígenas emergem como uma potência anti-sistêmica, articulando passado e presente

na radicalidade de lutas que põem em questão tanto os mecanismos contemporâneos de

exploração quanto as bases históricas da opressão. Sua dimensão subversiva não se

restringe à capacidade de resistência às diretrizes da dominação, mas se amplia pelo

esforço coletivo de interpretação da realidade e a elaboração de novos conceitos, pela

reconstrução de laços sociais e a contribuição para a construção de novas formas de

sociabilidade – sobre as quais passo agora a um exercício de análise.

88

Não podemos deixar de mencionar a função complementar a tais projetos, nos planos econômico e

jurídico, de organismos político-financeiros multilaterais ou nacionais (Banco Mundial, Fundo

Monetário Internacional, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Corporação Andina de

Fomento, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social); bem como de acordos

internacionais como os Tratados de Livre Comércio, o Mercosul, os acordos de livre comércio da

América do Norte (TLCAN) e central (ALCAC).

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Parte 3 – Ensaio sobre a forma-comuna

“Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo

arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva”.

Gabriel Garcia Marquez

I. Apresentação

A emergência política dos povos originários de Abya Yala na década de 1990

representa um acúmulo potencial do ponto de vista da práxis que desafia boa parte das

teorias consagradas aos movimentos sociais e cujas consequencias teóricas apenas

começam a ser testadas.

Uma série de trabalhos recentes, de intelectuais formados nas lutas sociais ou

comprometidos em vincular sua reflexão a esses processos, trazem importantes aportes

para superar tanto os esquemas mais tradicionais, que separam a dimensão política da

social, restringindo a ação dos movimentos sociais à segunda; como as gavetas

multiculturalistas das identidades pós-modernas. No horizonte teórico desses

“paradigmas” (ou pós-paradigmas), estabelecidos a partir das academias dos países

centrais, prevalece a ênfase nos aspectos formais, “das formas organizativas aos ciclos

de mobilização, da identidade aos marcos culturais”, (ZIBECHI, 2006, p. 28)

priorizando aspectos como demandas e reivindicações, lideranças e discursos públicos,

projetos e articulações institucionais. (GOHN, 2004, p. 255-263) Em função desses

elementos, os movimentos sociais são classificados segundo objetivos, pertencimento

estrutural, características das mobilizações, momento e motivos de sua irrupção.

Na vasta bibliografia acumulada com esses enfoques,89

muito pouco se

desenvolveu sobre as particularidades dos processos continentais desde uma perspectiva

própria, que possibilite a construção (ou apropriação) de conceitos mais adequados a

essas experiências. Não se trata de uma mera afirmação da especificidade, mas de

buscar contribuir para o enriquecimento de um pensamento crítico descolonizado, tendo

sempre em vista a articulação dialética entre universal e particular que orienta esse

esforço teórico-prático. Como assinalou um intelectual cubano no simpósio convocado

89

Gohn (2004, p. 211) menciona um levantamento bibliográfico sobre movimentos sociais latino-

americanos de cerca de 500 títulos.

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pelo EZLN no final de 2007, em Nuestra América a diversidade assumiu o caráter de

movimento político e ganhou visibilidade epistemológica. (Gilberto Valdés apud

BELLINGHAUSEN, 16/12/2007) Cabe, portanto, ousar na análise de um fenômeno que

supera os quadros teóricos estabelecidos e buscar novas referências.

Nesse sentido, Raul Zibechi aponta o limite do próprio conceito de movimento

social, entendendo que os recortes sociológicos referidos não dão conta de uma

realidade que envolve, muito mais que mobilizações setoriais por demandas específicas,

sociedades inteiras em movimento, abalando de baixo para cima as estruturas de

dominação. O boliviano Luis Tapia identifica que em “países multissocietais” como a

Bolívia,90

as forças não se movem na mesma direção, impulsionando um “flujo

subterráneo de procesos sociales desarticuladores del orden estatal y económico

nacional”. Esses processos não se enquadram na definição de movimento social,

representando efetivamente “movimientos de sociedades en proceso de conflicto más o

menos colonial en el seno de un país estructuralmente heterogéneo”. Analisando esse

fenômeno, Tapia (2008) constrói o conceito de “movimento societal”.

A partir de Zibechi, destacam-se alguns elementos comuns aos movimentos

sociais-societários de Abya Yala: territorialização; autonomia tensa frente a Estado e

partidos; revalorização da cultura e afirmação da identidade popular; formação de

intelectuais próprios; novo papel da mulher; organização do trabalho e relação com

natureza; prefiguração das novas relações sociais no cotidiano. (ZIBECHI, 2007, p. 22-

26)

Já mencionei, quando analisava a luta mexicana de independência, a importância

de buscar nas entrelinhas os traços programáticos das lutas dos grupos subalternos, pois

nem sempre os projetos estratégicos dos de baixo são formulados explicitamente, nos

códigos da sociedade hegemônica. De maneira que, detectar e interpretar esses projetos

pressupõe revisar a contrapelo em um tempo histórico de longa duração, “con un énfasis

en los procesos subterráneos, en las formas de resistencia de escasa visibilidad pero que

anticipan el mundo nuevo que los de abajo entretejen en la penumbra de su

cotidianidad.” (ZIBECHI, 2008, p. 6)

A partir dessas observações, me dedico nesta parte a um exercício de reflexão do

potencial emancipatório desses movimentos societais que estamos analisando, com seus

90

Os elementos que caracterizam essas formações sociais foram analisados na Parte 2 deste trabalho.

Apesar de me iniciar por uma trilha com algumas diferenças daquela pela qual já avançou Tapia,

posso dizer que temos uma referência comum em Zavaleta, do qual é discípulo direto.

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costumes e tradições, tomando a comunidade indígena como núcleo interpretativo.

Como se verá mais à frente, por comunidade indígena, seus costumes e tradições, não

estou defendendo uma visão romântica dos povos indígenas, intocados pela civilização,

aversos à tecnologia ocidental e ao mercado, vivendo harmonicamente em bucólicas

paisagens rurais ou santuários naturais.

A concepção que fundamenta esta reflexão é a de que a história traz em seu

desenrolar inúmeras possibilidades e que esses “processos subterrâneos” comportam,

ainda que de maneira contraditória e turva, potenciais projetos emancipatórios,

alternativas às formas de organização política vigentes. E que os movimentos indígenas

deram pistas, no ciclo recente de lutas e rebeliões, de como podem prefigurar novas

relações sociais.

***

Das diversas formas do poder popular, a comuna emerge em distintas situações

históricas, apesar de ter sido pouco teorizada enquanto tal. De um lado, as correntes

mais dogmáticas do marxismo se prenderam ao problema da administração do aparato

estatal burguês, no caso da social-democracia, ou da burocracia “proletária”, no caso do

stalinismo. Por outro lado, as correntes revolucionárias que se aproximavam da

perspectiva da comuna (em seus diferentes formatos) foram marginalizadas no debate

em que foi predominante a “estadolatria”.

Em uma interessante análise conjuntural da Argentina na primeira metade da

década de 1970,91

após analisar as formas do poder burguês, Mario Roberto Santucho

identificava as duas principais manifestações do poder revolucionário: primeiro na

forma típica dos “soviets o consejos obreros y populares (...) consistentes en Asambleas

permanentes de delegados obreros, soldados y otros sectores populares, que asumían

responsabilidades gubernamentales, en general opuestos a las intenciones del gubierno

burgués.” (SANTUCHO, 2000, p. 295) As experiências posteriores de China, Vietnã e,

certamente, Cuba, colocaram no debate uma segunda possibilidade através de

“insurreciones parciales, es decir con levantamientos locales que estabelezcan el poder

revolucionario en una región o província, las denominadas zonas liberadas.” (idem) A

experiência cubana, especialmente a partir das sínteses teóricas de Che Guevara,

91

Retiro desse texto a caracterização do poder revolucionário, sem entrar aqui no debate relativo ao

contexto em que foi produzido.

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conduziu ao intenso debate em torno da guerrilha como estratégia revolucionária e

possibilitou que esta fosse, entre as décadas de 1960 e 1980, a via predominante nas

polêmicas teórico-políticas do continente.

No entanto, é ao primeiro exemplo mencionado por Santucho, aqui referido

genericamente como forma comuna, que me esforçarei por estabelecer uma

aproximação, observando sua trajetória histórica e refletindo sobre sua pertinência, hoje,

em Abya Yala. Tal aproximação pode parecer à primeira vista um tanto quanto aleatória

e pouco rigorosa, mas se inspira diretamente na dinâmica dos movimentos indígenas

contemporâneos, especialmente na força da vida comunitária como estruturante das

relações sociais, ao mesmo tempo em que reconhece intersecções entre experiências em

distintos tempos e lugares na resistência às imposições do mercado e do Estado.

Assim, meu objetivo nesta parte é analisar a forma comuna como uma

alternativa de poder ao Estado uninacional e colonizado, a partir da análise da sua

gênese em contextos de acirramento agudo dos conflitos sociais. Busco delinear uma

genealogia que conecte esses momentos com as experiências e tradições das classes

subalternas, entendendo a espontaneidade não como categoria pejorativa para designar

uma suposta insuficiência teórica e organizativa, mas como uma dimensão legítima do

repertório de ações e das formas próprias de manifestações dos de baixo.

Nesse ponto, também aprofundo o diálogo com Zibechi, que em trabalho recente

dedica-se a refletir sobre o potencial da comunidade como forma de organização social

antiestatal. Para o intelectual e militante uruguaio,

“Tomar los relámpagos insurreccionales como momentos

epistemológicos es tanto como privilegiar la fugacidad del

movimiento, pero sobre todo su intensidad, para poder conocer

aquello que se esconde detrás y debajo de las formas establecidas.

Durante el levantamiento se iluminan, aún fugazmente, las zonas

de penumbra (o sea los márgenes mirados desde el Estado); la

insurrección es un momento de ruptura en el que los sujetos

despliegan sus capacidades, sus poderes como capacidades como

capacidades de hacer, y al desplegarlas muestran aspectos ocultos

en los momentos de reposo o de menor actividad colectiva.”

(ZIBECHI, 2006, p. 39)

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A comuna tampouco pode ser concebida como um tipo ideal universal,

ahistórico. Para isso, revisaremos alguns processos de construção desta forma de

organização social, visando entender as dinâmicas que possibilitam o seu surgimento

em determinados contextos históricos, bem como a contribuição de alguns

revolucionários que assimilaram os princípios da comuna em sua práxis.

Os bolivianos Raquel Gutierrez e Luis A. Gómez interpelam assim a obra em

que Zibechi:

“Presentemos la pregunta de Zibechi con la mayor claridad

posible, porque su pertinencia hoy, en Bolivia, es asombrosa. Si

de lo que se trata es de responder a la cuestión de cómo ha sido

posible la cadena de movilizaciones, levantamientos e

insurrecciones recientes en Bolivia, y si la respuesta está, grosso

modo, en la permanencia reajustada de la comunidad, en la

capacidad expansiva de formas comunitarias de decidir y hacer,

entonces, una pregunta inmediatamente posterior es aquella sobre

la posibilidad de que tales relaciones comunitarias, tales

tecnologías sociales, tales capacidades humanas que se han

desbordado en los años recientes a las instituciones oficiales, a la

academia y a la producción serializada de opinión pública, puedan

alcanzar un momento de expansión estable – es decir, no

meramente convulsa –, profundizando el proceso auto

emancipador que hoy tiene a la oligarquía boliviana pasmada en

un rincón [...]. La pregunta es, pues, cómo se puede ir más allá del

Estado y del capital.” (ibidem, p. 18)

Hipóteses instigantes, que sintetizam bem a ordem de questões às quais se

associa o esforço de reflexão desta parte do trabalho.

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II. A forma comuna na história.

II.1) Uma matriz para pensar a comunidade-comuna.

A comuna de Paris é o marco inaugural da gestação de uma ordem social

emancipatória, superadora do capitalismo. As formas organizativas gestadas nas

barricadas de 1871 foram saudadas por seus contemporâneos e logo interpretadas e

assimiladas como parte da tradição de diferentes correntes do espectro revolucionário.

A crise aguda da dominação burguesa, culminada na guerra contra a Prússia, foi

respondida pelo proletariado parisiense com a desestruturação da máquina estatal e a

luta decidida pela construção de uma nova forma de poder, baseada na democracia

direta. Em seu programa oficial de 20 de abril, a Comuna proclamava seus dois

princípios de governo: “a gestão popular de todos os meios da vida coletiva” e “a

gratuidade de tudo que é necessário e de todos os serviços públicos”. Fundado nesses

princípios, o governo revolucionário aboliu as forças armadas e “as velhas autoridades

de tutela, criadas para oprimir o povo de Paris” e colocou em seu lugar o povo em

armas, conselheiros, magistrados e funcionários administrativos eleitos por sufrágio

universal com mandatos revogáveis e salário limitado pela média do recebido pelos

operários.

Karl Marx notou ali o gérmen sobre o qual poderia se fundar a nova sociedade,

avançando teoricamente nas concepções relativas a Estado e revolução, diante das

experiências que observava desenvolverem-se. O desenvolvimento da luta de classes na

França apontava para o esmagamento do aparato estatal, o que começava a tomar forma

com a Comuna, e não mais para sua transferência de umas mãos a outras. (MARX,

1997, p. 310)

Porém, sua análise vai além da interpretação do significado imediato da comuna

e discute sobre suas raízes:

“Em geral, as criações históricas completamente novas estão

destinadas a ser tomadas como uma reprodução de formas velhas,

e mesmo mortas, da vida social, com as quais podem ter certa

semelhança. Assim, essa nova Comuna, que vem destruir o poder

estatal moderno, foi confundida com uma reprodução das

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comunas medievais, que precederam imediatamente esse poder

estatal e logo lhe serviram de base. O regime comunal foi

erroneamente considerado como uma tentativa de fracionar numa

federação de pequenos Estados, como sonhavam Montesquieu e

os girondinos, aquela unidade das grandes nações que, se em suas

origens foi instaurada pela violência, se converteu num poderoso

fator da produção social. O antagonismo entre a Comuna e o

poder do Estado tem sido apresentado como uma forma exagerada

da velha luta contra o excessivo centralismo.” (MARX, s/d, p. 82)

Dessa leitura, pode-se aprofundar uma reflexão sobre a dialética passado-

presente: nem as novas formas de organização social podem prescindir completamente

das relações preexistentes – o novo nasce do velho –, nem aqueles projetos que se

apresentam como a busca por um passado mítico concretizam-se dessa forma, podendo

representar, em determinados contextos, a construção efetiva das novas formas.92

Tal

abordagem permite responder com uma leitura mais complexa inúmeros movimentos

históricos intrigantes, que leituras saturadas da noção de progresso relegam a mero

arcaísmo incapaz de assimilar “valores ocidentais” e iluministas.93

Para os debates em

torno dos movimentos indígenas, vale a crítica tanto a esse “iluminismo” raso que

identifica na linguagem e nos projetos políticos dos povos originários uma ameaça

reacionária à democracia liberal, quanto a certas expressões de intransigência de alguns

intelectuais indígenas ou não-indígenas que, em nome da descolonização e da pureza da

restauração cultural, pretendem rejeitar qualquer referência externa, o que, além de

impossível, bloqueia interessantes possibilidades de diálogo.

Porém, se o Marx da Comuna já traz elementos para entender o seu potencial de

reorganização das relações sociais sobre novas bases, é o “Marx tardio” (SHANIN,

1983), alguns anos depois, quem reflete a partir da aproximação que busco estabelecer.

92

E aqui, naturalmente, não estou me referindo a manifestações de nacionalismos e comunitarismos

reacionários desde os fascismos até determinas seitas religiosas, embora mesmo essas experiências

necessariamente se desenvolvam num sentido diferente de sua pretensa restauração de relações

passadas. 93

Essa abordagem é válida para movimentos que tendem a ser desqualificados desde uma leitura liberal

ou do progresso, como os milenarismos. Importantes contribuições a esse movimento revisionista

podem ser encontradas nos trabalhos do grupo de historiadores britânicos (Eric Hobsbawm, George

Rudé, E. P. Thompson, Christopher Hill). No Brasil, pesquisas recentes aportam com releituras de

processos como o de Canudos.

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Sua obra, que pela amplitude de temas que alcança e pelo longo período em que

foi desenvolvida não pode ser tomada como um corpo doutrinário monolítico, deixou

pistas analisar tanto a comuna “proletária”, quanto o potencial revolucionário da

comuna “tradicional”, que chamarei aqui de comunidade-comuna, na falta de um nome

melhor que as distinga. São bem conhecidos os seus comentários sobre as

consequencias da insurreição parisiense, já mencionados. Por outro lado, suas idéias

sobre o segundo caso são esboçadas nas menos difundidas considerações sobre o

contexto russo, no final da vida.

Indagado pela militante russa Vera Zasulich a partir de dúvidas que a leitura de

O Capital despertara em seu círculo, o alemão lamentou não poder se aprofundar o

necessário na resposta – o que não o impediu de esboçá-la cuidadosamente.

Contrapondo-se à visão tributária à noção de progresso que se tornaria predominante no

marxismo, conclui que

“El análisis presentado en El Capital no da, pues, razones en pro

ni en contra de la vitalidad de la comuna rural, pero el estudio

especial que de ella he hecho, y cuyos materiales he buscado en

las fuentes originales, me ha convencido de que esta comuna es el

punto de apoyo de la regeneración social en Rusia, mas para que

pueda funcionar como tal será preciso eliminar primeramente las

influencias deletéreas que la acosan por todas partes ya a

continuación asegurarle las condiciones normales para un

desarrollo espontáneo”. (MARX e ENGELS, 1980, p. 61)

Essa abordagem antecipa uma resposta à crítica de idealização, ao mesmo tempo

em que deixa clara a necessidade de observar aquela realidade com lentes distintas ao

monóculo do progresso.94

Numa passagem suprimida do texto enviado a Zasulich: “O

que põe em perigo a vida da comuna russa não é nem uma fatalidade histórica, nem uma

teoria: é a opressão pelo Estado e a exploração por capitalistas intrusos, tornados

poderosos pelo mesmo Estado às custas dos camponeses” (MARX e ENGELS, 1980, p.

94

Situando esse movimento do pensamento de Marx e Engels, José Aricó (1982, p. 132-133) chama

atenção para a diferença de critérios entre ambos, identificando no primeiro uma maior atenção aos

aspectos próprios da comunidade rural no contexto russo. A posição de Engels que estaria

representada no prefácio à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista, traduzido por Vera

Zasulich, enfatiza o desenvolvimento do capitalismo como determinante de uma inexorável

desintegração da propriedade comunal.

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51) Temos então no pensador renano pistas para interpretar a comuna e a comunidade-

comuna como embriões de uma forma de organização pós-capitalista, inclusive pela

possibilidade de diferenciar entre dois momentos distintos (que eventualmente se

encontram): o do aparelho político que emerge como plataforma de poder dual

(Comuna de Paris, conselhos operários) e o da forma social tradicional reinventada

desde os costumes e experiências coletivas dos grupos subalternos (comunidade rural

russa).

II.2) A revolução fundamental na Rússia.

A experiência soviética foi tão atacada desde os seus primeiros momentos –

tanto desde o interior com os erros da direção bolchevique que deram margem à vitória

da burocracia stalinista, como por seus inimigos de primeira hora em todas as partes –

que hoje está pendente o trabalho por recuperar a sua justa dimensão e o que ela

representou, em seu tempo, em termos de avanço das lutas emancipatórias da

humanidade. Os sovietes, que como se sabe significa conselho, surgiram com o

movimento revolucionário de 1905, inicialmente como esforço de coordenação do

movimento grevista e logo assumindo responsabilidades de governo, diante da

imobilidade do Estado czarista. Seu surgimento também acendeu um intenso debate

entre os principais dirigentes revolucionários europeus, quanto ao seu significado para o

processo revolucionário e sua relação com a institucionalidade constituída.

O antropólogo estadunidense Eric Wolf desenvolve uma abordagem que facilita

este trabalho, com sua leitura das revoluções do século XX como “guerras

camponesas”. Tratando da Rússia, analisa o desenvolvimento da instituição rural da

mir, cujo ressurgimento após o fim da servidão ampliou os espaços de organização

autônoma e reativou os laços coletivos tradicionais do campesinato russo. Sua presença

se estendeu pela vida cultural e na correlação de forças da Rússia pré-revolucionária,

como se pôde verificar nos debates intelectuais, pela concentração de ações nos ciclos

de rebeliões de 1902 e 1905 nas regiões de maior consolidação das comunas, ou na

tentativa de reforma modernizadora de 1906, que visava o seu fim.

Así, la comuna sobrevivió a las vicisitudes del cambio, al igual que la

institución del consejo aldeano y de la aldea, un pequeño mundo

autodeterminado, basado en el consenso. Centralizada en la cima, en sus

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bases la sociedad era un agregado de innumerables comunas aldeanas, en

muchos aspectos más allá de la influencia y la esfera de visión del

Estado. (WOLF, 1972, p. 105)

Desencadeada a revolução, esse movimento societal se relocaliza como primeiro

ponto de equilíbrio da estabilização revolucionária. Os sovietes camponeses foram

simplesmente os antigos conselhos sob nova roupagem; aos bolcheviques era

fundamental o apoio dessa base para rechaçar a aliança contra-revolucionária, por isso,

pouco fizeram e pouco poderiam fazer para mudar suas estruturas. (ibidem, p. 132-135)

John Reed, cronista privilegiado daquele processo, já notara essa relação entre as

comunidades tradicionais camponesas e as formas organizativas surgidas da revolução:

“Antes de la revolución había más de veinte millones de miembros en sociedades

cooperativas en Rusia. Esta es una forma muy natural para los rusos, por su parecido

con la primitiva cooperación de vida rural de Rusia durante siglos.” (REED, 2000)

O comunista catalão Andreu Nin publicou em 1932 um interessante estudo sobre

os sovietes. No seu ponto de vista de então, “Para los obreros y campesinos españoles el

problema de los Soviets adquiere un carácter eminentemente práctico, puesto que sin la

creación de los mismo o de otros organismos análogos, su victoria será imposible.” Nin

destaca o surgimento e evolução espontâneos desses organismos, bem como sua rápida

difusão pelo amplo território russo. Sua forma, tamanho, alcance, funções, grau de

complexidade ou simplificação variavam de acordo com a região em que se formava e o

momento da luta. Ainda em 1905, se destacaram os sovietes de Petrogrado, Moscou e

Sibéria, pelo poder que conseguiram concentrar, mas não foram poucos os casos em que

ferrovias, comunicações, imprensa e as diversas funções públicas de determinada região

estiveram controladas por conselhos de operários, camponeses e soldados. Em Moscou,

se estabeleceram conselhos nas barricadas, nos três territórios mencionados formaram-

se milícias a seu cargo. Porém, citando Lenin, lembra que sua força não advinha das

armas, do dinheiro, ou da institucionalidade vigente, da participação ativa e consciente

da imensa maioria da população. Quanto à composição, define: “Los Soviets son

creados únicamente por las clases revolucionarias (obreros, campesinos, empleados); se

constituyen, no de acuerdo con la ley, sino por la vía revolucionaria, por la actividad

directa de las masas explotadas, y se transforman en instrumentos de la insurrección y

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en el embrión del futuro Poder proletario. En realidad, son ya un Poder, la dictadura del

proletariado en germen.”95

(NIN, 2006)

Nin analisa detalhadamente a forma comuna no processo russo entre 1905 e

1917, detendo-se em aspectos como a relação conflituosa com os partidos operários, as

particularidades locais, sua estrutura e funcionamento ou sua difusão pelo interior do

país. Anos mais tarde, o dirigente do POUM, se veria desafiado a dar respostas no

decorrer do conturbado processo espanhol. Alguns dias antes de ser “desaparecido” por

agentes stalinistas, respondia às duras críticas recebidas de Trotsky, diferenciando a

experiência russa da realidade espanhola, cujo desenrolar se complexificara com a

conjunção do processo revolucionário com a luta antifascista, o papel desempenhado

pelas forças da Frente Popular, as agressões do Partido Comunista, as inconsistências na

política da CNT, a dificuldade em consolidar organismos alternativos de poder, a

avaliação da inexistência de uma dualidade de poderes. Diante do quadro que se

colocara e em momentos diferentes do processo espanhol, Nin se deteve sobre o

problema do poder revolucionário trazendo outros aportes para o problema, enfatizando

a necessidade de unificação dos revolucionários, o papel do sindicalismo revolucionário

e os desafios de um governo de composição policlassista. (NIN, 2002)

II.3) A revolução espanhola e a difusão da comuna.

Na revolução espanhola, não obstante o fato de estar espremida em um contexto

violentamente desfavorável que seria determinante para o seu desenlace trágico,

particularmente durante os primeiros meses floresceram milícias, conselhos, comitês,

em boa parte inspiradas pelos anarquistas, que se dividiam nas tarefas do combate aos

franquistas, manutenção da ordem em zonas republicanas, distribuição da terra,

coordenação da produção industrial. Tendo em Barcelona o “bastião da Espanha

soviética” e exemplos como a épica defesa de Madri, a experiência republicana gerou

autênticas expressões de poder comunal, em tensão permanente com o governo da

Frente Popular. (BROUÉ; TÉMINE, 1989, p. 133)

Nessa experiência extremamente complexa e trágica, o confronto de

territorialidades não se resumiu à disputa decorrente da guerra entre república e

95

Ao final, nenhum dos setores foi capaz de equalizar o problema do poder, dividido entre o governo da

Frente Popular e organismos de poder revolucionário e disputado pelos diversos grupos de esquerda

(comunistas, anarquistas, socialistas, liberais, POUM), em meio à guerra civil contra as tropas de

Franco.

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restauração monárquica. Dentro do campo republicano contrapunham-se o esforço de

reordenamento do governo legítimo ao impulso pela base de construção de formas

autogestionárias em meio à guerra.

A particularidade da experiência espanhola está em ter sido a mais difundida e

“nacionalizada”, expressando-se tanto como instrumento político-militar de mobilização

generalizada (defesa de Madri e Catalunha), quanto na forma embrionária de um novo

tipo de organização social, especialmente nas regiões controladas pelos anarquistas e

pelo POUM (p. ex.: Aragón, Andaluzia, Barcelona, Levante, Valencia).

Diego Abad Santillan (1980) propôs-se a sistematizar, desde a tradição

anarquista e criticando a tendência ao localismo e à dispersão, o organismo econômico

da revolução, baseado em uma estrutura nacional de conselhos. Nesse sistema, cujo

interesse reside em ter sido inspirado nas particularidades do processo espanhol no calor

da guerra, o controle da produção e circulação de todos os ramos da economia atende

aos princípios do federalismo desdobrados na coordenação dessas diferentes unidades,

estruturando-se a partir dos conselhos de fábrica, aos quais se sucederiam os conselhos

de ramo e os regionais, até se agruparem na instância maior de coordenação, o Conselho

Federal de Economia.

II.4) Um esboço de síntese teórica da comuna no contexto europeu.

Se na década de 1930 a burguesia européia lançou mão do fascismo para afogar

em sangue as experiências revolucionárias que se acumulavam, o período anterior foi

rico em experiências conselhistas. Inspirados pelos furacões revolucionários da Rússia e

pela grave crise derivada da guerra, as massas de operários e camponeses europeus

espalharam por países como Itália, Alemanha, Ucrânia, Áustria e Hungria organismos

que se assemelhavam em maior ou menor medida dos sovietes russos.

Influenciados por esses processos, diversos intelectuais e militantes

revolucionários assimilaram os princípios da comuna como elemento fundamental do

projeto de emancipação da humanidade. Destacam-se nessa linha as reflexões dos

alemães Karl Korsch e Paul Mattick, os holandeses Anton Pannekoek e Herman Gorter,

os italianos Amadeo Bordiga, Antonio Gramsci. A polonesa Rosa Luxemburgo, com

seu conhecido e muitas vezes mal compreendido reconhecimento da ação espontânea

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das massas,96 também pode ser lida nessa tendência que questiona o inchaço do partido

e do Estado no processo revolucionário, enfatiza a ação consciente e autônoma da

massa popular como um imperativo para a construção da nova sociedade e sugere uma

valorização, mesmo que indireta, das tradições populares no processo de

enfrentamento.97

Desse debate, podemos extrair alguns elementos gerais para uma reflexão crítica

sobre o Estado e as relações de poder na sociedade capitalista, bem como os

instrumentos e as vias de sua superação. Se considerarmos pendente a construção de um

autêntico projeto emancipatório, não podemos prescindir dos ricos aportes dessas

experiências, obviamente sem deixar de realizar as devidas mediações.

Na releitura esboçada aqui, a comuna aparece como alternativa de poder em

contextos de crise revolucionária, mas se expressa também como forma social pré-

capitalista que sobrevive tensamente à imposição das relações mercantis, com o

potencial de ser recriada no patamar de superação dessas relações. O modo político de

organização e ação aparece como um momento distinto (mas não antagônico) da forma

social pré-capitalista e pré-Estado moderno, da qual eventualmente descende, podendo

esta última servir de infra-estrutura subjetiva para superar o capitalismo.

As hipóteses que orientam estas reflexões não se referem a um projeto utópico,

mas à reinvenção e reapropriação de formas de vida. A história do capitalismo é história

da imposição da forma mercadoria (bem como do Estado moderno centralizado) sobre a

dissolução de formas sociais comunais “naturais”; o comunismo é então a reconstrução

dessas relações em outro patamar. Por isso se compreende a difusão da comunidade-

comuna por zonas atrasadas da Europa (Espanha, Rússia, leste), expressando uma

dimensão do desenvolvimento desigual na qual as tradições dos de baixo se afirmam

como um anteparo aos dilúvios do capital.

O que permite essa dinâmica está relacionado com o acionar dos grupos

subalternos. Já indiquei que tradição e consciência são dois elementos que interagem

nesses processos sociais como uma força criadora. Walter Benjamin traduz, entre

trágico e utópico, a história como um campo fundamental do embate de classes.98

96 Afinal, o que é o “espontaneísmo” senão a emergência mais ou menos consciente de tradições e

experiências compartilhadas por determinado coletivo? 97 Vale lembrar, não sem alguma ironia, que em seu panfleto escrito em 1920, Esquerdismo, doença

infantil do comunismo, com que pretendia erigir o caso russo em modelo de revolução, Lenin oferece

um mapa de interessantes contribuições sobre o tema. 98 As referências das teses sobre a filosofia da história de Walter Benjamin foram retiradas de LÖWY,

2005.

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Enquanto o anjo da história olha para trás, impelido violentamente pela tempestade do

progresso, o alemão nos lembra que tanto opressores como oprimidos contemporâneos

carregam a herança de seus antepassados. O chamado ao acerto de contas é, portanto,

permanente, colocando-se também a possibilidade da perpetuação do “...cortejo de

triunfo que conduz os dominantes de hoje por cima dos que, hoje, jazem por terra.”

(Tese VII)

Nesse embate, Benjamin mobiliza um instrumental teórico alheio ao marxismo

para recuperar o impulso capaz de contrapor os oprimidos à barbárie capitalista. Tal

impulso surge necessariamente distante da ideologia positivista do progresso, que

aparece na forma da tempestade avassaladora sobre o anjo da história (Tese IX) e que é

até hoje saudada por socialistas, social-democratas e liberais. O filósofo alemão luta

para que o materialismo histórico ganhe vida, evitando que ele se torne um autômato e,

para isso, se apóia na “pequena e feia” teologia. (Tese I) Seu compromisso com os

explorados dá vazão a uma formulação que, para além do seu lirismo barroco, assume a

perspectiva dos oprimidos, traduzindo-a para sua própria linguagem, atingindo dessa

forma sua dimensão radicalmente autônoma e anticolonialista. É esse compromisso que

permite lançar-se à defesa apaixonada da necessidade de que as classes subalternas

recuperem a sua história, suas tradições, sua “fraca força messiânica” (Tese II), com a

certeza de que “os dominantes de turno”, os mesmos que seguem a marcha do

progresso, “são os herdeiros de todos os que, algum dia, venceram” (Tese VII);

enquanto do outro lado, a luta dos trabalhadores se nutre da visão dos ancestrais

escravizados (Tese XII).

Mas seu impulso não surge apenas do passado. Pelas situações observadas, a

comuna pode ser entendida como um híbrido entre tradições mais profundas e demanda

de respostas às novas situações da opressão capitalista, o encontro da cultura camponês-

plebéia com a proletarização.

III. Abya Yala: da comunidade à comuna?

O que vimos até agora permite esboçar uma aproximação desde Abya Yala,

pensando a comuna a partir de sua vigência histórica até suas manifestações nas lutas

sociais contemporâneas.

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III.1) A comunidade originária em Abya Yala

O tema da comunidade indígena-camponesa já foi abordado desde as mais

distintas perspectivas, mas sua presença histórica continua a ser um ponto de

interrogação na teoria social, apesar da centralidade da vida comunitária em amplos

territórios e por períodos tão extensos. Na perspectiva que venho trabalhando, boa parte

dessa dificuldade se deve à distorção metodológica que orienta a tentativa de tentar

compreender Abya Yala a partir da aplicação ou do “teste” de conceitos construídos

para a análise de outros contextos particulares.

Roger Bartra identificou uma falta de clareza, “em termos de uma concepção

histórica objetiva”, quanto às peculiaridades da sociedade mesoamericana pré-Colombo.

(1978, p. 159) Nem feudal nem escravista, combinando um tipo de diferenciação

classista – consolidada em aparato estatal – com a propriedade coletiva, a formação

social mexica99

apresenta uma mescla de traços “primitivos” e “civilizados” que

motivou por um longo tempo polêmicas intensas e confusões variadas. A proposta do

referido autor para tentar captar a lógica dessa estrutura híbrida é adotar o conceito de

modo de produção tributário. Sua aplicação é explicada por tornar-se inviável o uso do

conceito marxista de “modo de produção asiático” ao referir-se a outras regiões, bem

como por que o tributo seria o eixo da relação classista entre comunidade aldeã e

Estado. (ibidem, p. 160)

Luis Vitale considera o “modo de produção asiático” um termo improvisado em

um rascunho, inconcluso nos conceitos que apresenta. Revisando as alternativas

derivadas dessa proposta, o historiador chileno assinala a recorrência de uma confusão

teórica derivada da ênfase no papel do Estado e propõe como ponto de partida para o

estudo das sociedades americanas o modo de produção comunal. Observa-se aí, antes,

portanto, da formação das sociedades incaica e asteca, o surgimento da comunidade

originária em Abya Yala. Atestar o caráter coletivo da propriedade e da produção, a

partir da centralidade da comunidade, não implica uma idealização de um “comunismo

primitivo”, mas em reconhecer que ambas se organizavam nesse âmbito, transcendendo

o círculo familiar:

99

Que nesse nível de descrição mais genérico se assemelha ao Tawantisuyu.

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“La unidad doméstica no era autónoma o autosuficiente, sino que

dependía de la comunidad, tanto en lo relacionado con la posesión de la

tierra como en la producción de cultivos comunes y, sobre todo, en la

redistribución del sobreproducto social. La familia destinaba alguno de

sus miembros para las labores generales de la comunidad, como el

regadío, desecación de pantanos, construcción de acequias, roturación de

tierras, etc. El excedente no era apropiado de manera particular por cada

familia sino por la comunidad, la cual lo destinaba a un fondo común de

reserva que se utilizaba en caso de sequía y también para el ceremonial y

obras de bien público. De este modo, se garantizaba la reproducción del

modo de producción comunal.” (VITALE, 1991)

Por outro lado, essa não é uma definição isenta e reconhece naquela organização

social algum nível de reflexão do conceito comunista moderno de cada qual segundo

sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades como uma dimensão concreta

das comunidades originárias. 100

“Si se entiende este concepto en un sentido no economicista, es decir, no

de dar y recibir sólo bienes materiales, sino en un sentido más amplio,

cultural y de fraternidad igualitaria, entonces podríamos pensar acerca de

que las comunidades agrícolas aborígenes daban según su capacidad, sin

ajustarse a reglas ni horarios, con alegría en un trabajo cuyo producto

sabían que no era ajeno, y recibían de parte de la comunidad según sus

necesidades. Se sabe que parte del sobreproducto social se redistribuía a

los más necesitados y que los jóvenes cultivaban las parcelas de los

ancianos.” (VITALE, 1991)

100

Um interessante diálogo com esta perspectiva pode ser desenvolvido a partir dos ensaios dos

antropólogos Pierre Clastres (1990) e Marshall Sahlins (1978) e a releitura despida de preconceitos

“civilizados” dos aspectos políticos e econômicos das sociedades primitivas.

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O progressivo e lento surgimento de estruturas políticas centralizadas a nível

local dá origem a sociedades de transição,101

até que incas e astecas reuniram as

condições de centralização do poder como um exército permanente, uma organização

territorial estável, capacidade de subjugar e integrar etnias através de trabalhos forçados

e tributos, uma classe dominante capaz de sustentar sua legitimidade para controlar e

redistribuir grandes excedentes a seu cargo. (VITALE, 1991, Cap. II) Esse processo de

centralização consolidava a transição a sociedades que Vitale caracteriza como

protoclassistas e, completando as análises de Bartra – entre outros –, baseadas em um

modo de produção chamado comunal-tributario. (ibidem, Cap. III)

O interessante dessa caracterização é que, buscando uma precisão conceitual

correspondente à base produtiva daquelas sociedades, chega à vida comunitária como

elemento fundamental e distintivo das sociedades originárias de Abya Yala. Uma

proposta que ademais sustenta sua pertinência no fato de que o sistema tributário tenha

sido destruído pela conquista européia,102

mas comunidade não; é ela que se imbrica

com os modos de produção que, mais do que se suceder, entrecruzam-se na paisagem

do continente, até chegar ao capitalismo como modo predominante. Nesse sentido, a

comunidade indígena, seja na forma do ayllu andino, seja através dos calpulli-ejidos

mesoamericanos acumula a memória larga da sobreposição de tempos históricos desde

as civilizações pré-conquista, passando pela colônia, república, reformas agrárias,

modernizações liberais pelo alto. Processos que quase invariavelmente decretaram a

extinção da comunidade originária, sem que suas instituições tivessem essa capacidade

de sobrevivência.

“Que el ayllu esté incrustado en el presente, como tantas otras

instituciones tradicionales, incrustadas en la modernidad tardía, hace que

este estar presente se convierta en una interpelación de la concepción

moderna del tiempo, de sus prácticas productivas y de consumo, de su

racionalidad instrumental. Esta concepción modernista de la historia es

lineal y groseramente evolutiva, entendiendo la evolución como

progreso. La modernidad, fuera de ser una experiencia intensiva de la

vertiginosidad, de la versatilidad y de la frugalidad del acontecer, es

101

Das quais podem ser mencionadas como exemplo as sociedades Olmeca, Maya, Teotihuacan, Tolteca

em Mesoamérica e Chavín, Mochica, Nazca, Tiahuanaco, Huari nos Andes. 102

Embora mesmo deste tenham subsistido algumas instituições durante a colônia e até a era republicana.

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también una representación colectiva, una creencia social; es decir, un

prejuicio compartido.” (PRADA, 2008, p.65)

III.2) A chave andina para a síntese teórica da experiência da comuna em Abya Yala

Uma síntese precoce do tema que trato aqui aparece no pensamento de

Mariátegui. Nos Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, desenvolve uma

breve revisão crítica dos enfoques que a questão indígena recebera até então, que iam

desde as abordagens administrativas, jurídicas ou eclesiásticas, até as medidas policiais

ou educativas, sempre eludindo da análise econômico social. (Mariátegui, 1975, p. 21)

Assim, seu autor se insere no debate corrente na década de 1920, explicitando

qual seria um enfoque marxista original, atento às particularidades do continente e

aberto a influências externas, como a admiração declarada por Manuel Gonzalez Prada.

É a análise do regime de propriedade agrária e das relações sociais daí decorrentes que

possibilita compreender a situação dos povos indígenas e propor um programa de sua

emancipação. O exemplo mais dramático da ineficiência de soluções unilaterais é a

própria independência que igualou todos juridicamente na condição de cidadãos e

empreendeu a modernização do Estado, elaborando uma nova legislação que explicitava

preocupação com a população indígena, mas ao fim atendeu unicamente aos interesses

dos setores dominantes. Manteve a condição das massas indígenas pouco alterada e em

alguns momentos até pior, pois acrescentou à antiga estrutura agrária a superexploração

capitalista, o avanço mercantil sobre as terras comunais e a reedição de impostos e

tributos do período colonial. Diante desse quadro, de maneira objetiva, conclui

Mariátegui: “O novo enquadramento consiste em pesquisar o problema indígena no

problema da terra”. (ibidem, p. 28)

Por isso, os três primeiros ensaios de sua obra fundamental, nos quais ele estuda

o “Esquema da evolução econômica”, o “Problema do índio” e o “Problema da terra”,

articulam-se dialeticamente. No primeiro, Mariátegui analisa o desenvolvimento da

economia do Peru, destacando os aspectos básicos dos períodos colonial e republicano.

Logo na abertura do texto, observa que a conquista espanhola representou uma ruptura

na história do país. “Até a Conquista, desenvolveu-se no Peru uma economia que

brotava espontânea e livremente do solo e do povo peruanos”. (ibidem, p. 3) Uma

economia que se desenvolvia com afluência foi destruída e substituída por um sistema

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de exploração e atraso. “Sobre as ruínas e os resíduos de uma economia socialista,

lançaram as bases de uma economia feudal”. (ibidem, p. 4)

Essa análise recebeu muitas críticas, pelas informações imprecisas em que se

baseava. De fato, podemos dizer que esse seria uma debilidade em termos de uma

pesquisa acadêmica. Hoje, este é em geral reconhecido como um Estado aristocrático e

expansionista e ainda que sua natureza ainda seja motivo de controvérsia,103

é inegável

que a idéia de socialismo construída após a Revolução Francesa dificilmente seria

adequada à estrutura dessa sociedade. No entanto, para Mariátegui, o essencial não é

reconstituir o funcionamento do Império Inca por algum método histórico-científico.104

Na sua perspectiva, inclusive na forma como entende a história, muito

influenciada pelo combate ao positivismo dominante, o que importa é como os povos

originários atuais interpretam e absorvem o passado incaico e como os ayllus se

organizam e se inserem na sociedade contemporânea. Isso porque seu interesse não é

acadêmico e sua proposta não é o retorno a esse passado, mas o aproveitamento de

elementos potenciais na construção do socialismo, seu objetivo estratégico. Daí a

centralidade do conceito de “mito”, que cumpriria o papel de catalisador das

mobilizações e da construção do projeto socialista. É evidente a impossibilidade de

voltar atrás a roda da história, além da inconveniência de abrir mão das técnicas e das

ideologias modernas.

Em uma extensa nota na qual defende o emprego do conceito de “comunismo

incaico”, o amauta peruano adverte enfaticamente que

“O comunismo moderno é uma coisa diferente do comunismo incaico.

Isto é, a primeira coisa que deve entender o estudioso que explora o

Tawantisuyu. Um e outro comunismo são produto de diferentes

experiências humanas. Pertencem a diferentes épocas históricas.

Constituem a elaboração de civilizações dessemelhantes. A dos incas foi

uma civilização agrária. A de Marx e Sorel é uma civilização industrial.

Naquela, o homem submetia-se à natureza. Nesta, a natureza se submete,

às vezes, ao homem. É absurdo, portanto, confrontar as formas e as

103

Esse é um tema que se presta a anacronismos e avaliações preconceituosas, em função de leituras

apressadas ou de puro eurocentrismo. Para mencionar apenas um exemplo, vale citar a advertência de

Rostworowski (1999, p. 19) quanto à inadequação do termo Império para referir-se ao incário. 104

“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo „como ele de fato foi‟. Significa

apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.” (Benajmin in:

LÖWY, 2005, p. 65)

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instituições de um e outro comunismo. O único que podemos confrontar

é a sua incorpórea semelhança essencial, dentro da diferença essencial e

material de tempo e espaço. E para esta confrontação é necessário um

certo relativismo histórico”. (MARIÁTEGUI, 1975, p. 54)

E mais à frente, respondendo à acusação de autocrático ao regime dos Incas,

argumenta: “A autocracia e o comunismo são incompatíveis em nossa época; mas não o

foram em sociedades primitivas. Nos dias atuais, uma nova ordem não pode renunciar a

nenhum dos progressos morais da sociedade moderna. O socialismo contemporâneo –

outras épocas tiveram outros tipos de socialismo, que a história designa com nomes

diversos – é a antítese do liberalismo; mas nasce de suas entranhas e nutre-se da sua

experiência. Não rejeita nenhuma de suas conquistas intelectuais. Escarnece e vilipendia

apenas suas limitações.” (ibidem, p. 54-55)

Entretanto, se o problema do índio é o problema da terra, a sobrevivência da

comunidade camponesa não é alardeada como registro idílico de um passado idealizado,

mas interpretada no contexto geral da sociedade andina. E nesse ponto se destaca e a

identificação de três regimes econômicos que se sobrepõem. Na serra, os resquícios das

comunidades incaicas sobrevivem sob o que ele chama de regime feudal. No litoral, o

capitalismo se insere sem formar uma burguesia forte. Mariátegui aponta a inexistência

de uma burguesia peruana capaz de liderar a revolução antifeudal. Por outro lado, ao

analisar a realidade peruana não encontra o proletariado do qual falava Marx. Isso não o

impede de defender o socialismo como alternativa ao atraso colonial de seu país e à

opressão histórica dos indígenas. A solução da questão agrária, a emancipação dos

índios e a revolução socialista, além do próprio processo de formação da nação se unem

em um só processo. Enquanto isso, a APRA de Haya de la Torre e o comunismo oficial

a partir dos anos 1930 partem de premissas opostas para chegar às mesmas conclusões.

Para ambos, os resquícios feudais e a industrialização incipiente no continente

colocavam a tarefa prioritária de uma revolução antifeudal, antiimperialista e

democrática, dirigida pelas burguesias locais. (LÖWY, 1999)

No documento enviado à reunião de partidos comunistas do continente em 1929,

o programa mariateguiano é sistematizado. (MARIÁTEGUI, 1982) Após uma breve

introdução onde coloca a questão nos termos já apresentados nos Sete ensaios, o

documento analisa o conceito de “raça”, numa perspectiva que supera as teorias racistas

do século XIX. Em seguida, relaciona o aumento da exploração capitalista com os

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conflitos raciais. Em sua análise sobre os países andinos, articula as reivindicações

indígenas com as demandas gerais da população, já que compõem sua maioria. Suas

observações levam em conta as nuances de se trabalhar com o intercruzamento entre os

fatores raça e classe.

Preocupado com questões “técnicas” da possibilidade de penetração da

propaganda socialista nas comunidades, Mariátegui indica a necessidade de preparar

agitadores indígenas, a partir do contato com o proletariado e os sindicatos urbanos.

Analisa de forma sintética a situação dos povos originários no Peru e faz alguns

apontamentos sobre os demais países do continente, quando cai em algumas

imprecisões. Sobre México e Guatemala, afirma que o problema foi resolvido com a

incorporação à vida nacional, o que é negado pelos processos mais recentes. No Brasil,

aparentemente (mal) informado pelo delegado deste país, afirma não existir questão

racial em relação ao negro. Porém, ao apontar o caráter da luta dos indígenas, o autor do

documento lembra o seu potencial revolucionário no México e se detém novamente

sobre o caso peruano, destacando a combatividade e o número de insurreições dos

povos originários nesse país.

Ao enumerar as propostas e tarefas sobre o tema, recusa a idéia de solução da

questão indígena pela constituição de um Estado autônomo. Essa proposta, defendida

pelos delegados alinhados à III Internacional com base na tese da autodeterminação dos

povos, não daria na sua visão origem a um Estado socialista, mas burguês. A tarefa

básica portanto seria desenvolver um movimento de reivindicações classistas,

priorizando a reivindicação básica da terra, fundamentando a luta na resistência dos

ayllus e pautando outros elementos, como liberdade de organização, supressão do

enganche, aumento de salários, jornada de oito horas.

Contra as dificuldades da propaganda dentro das haciendas, deve-se confiar no

aumento do tráfego, mobilizando operários do transporte. Esse intercâmbio com os

sindicatos urbanos é fundamental no desenvolvimento da consciência e na garantia do

sucesso de uma educação socialista. Devido à desconfiança em relação ao branco e ao

mestiço, dificuldade da língua, é essencial a formação de militantes vindos das

comunidades. Para isso, destaca a importância do desenvolvimento do trabalho entre os

mineiros bolivianos e peruanos, entre os quais o contingente de indígenas é

significativo. E aposta no seu sucesso com palavras que parecem antecipar os processos

atuais, mesmo que em termos distintos: “Uma consciência revolucionária indígena

tardará talvez a formar-se, mas, quando o índio tiver feito sua a idéia socialista, ele a

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servirá com disciplina, tenacidade e força que poucos proletários de outros meios

poderão superar”. (ibidem, p. 74)

Em seguida, enumera as reivindicações básicas em três pontos que buscam tocar

no fundamental da situação dos trabalhadores indígenas e negros: 1) Expropriação da

terra, sem indenização; 2) formação de organizações camponesas específicas

(sindicatos, ligas camponesas, blocos operários), ligadas, “sem preconceitos raciais”, às

organizações urbanas, com reivindicações comuns entre o proletariado e o campesinato

negro e indígena e armamento para a defesa das conquistas; 3) revogação das leis que

pesavam especificamente sobre os negros e os povos originários: “sistemas feudais

escravistas”, recrutamento militar, o tributo conscripción vial.

Por fim, defende o potencial socialista das comunidades, assim como das

grandes empresas agrícolas, delimitando de que forma esse potencial é visto:

“Mas isto, do mesmo modo que o estímulo que se presta ao livre

ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de suas forças e

espírito nativos, não significa em absoluto uma romântica e anti-histórica

tendência de reconstrução ou ressurreição do socialismo incaico, que

correspondeu a condições históricas completamente superadas e do qual

somente restam, como fator aproveitável dentro de uma técnica de

produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo

dos camponeses indígenas. O socialismo pressupõe a técnica, a ciência, a

etapa capitalista; e não pode admitir o menor retrocesso na aquisição das

conquistas da civilização moderna, senão, pelo contrário, a máxima e

metódica aceleração da incorporação destas conquistas à vida nacional...”

(ibidem, p. 78)

Desta forma, é interessantes atentar às analogias entre a análise mariateguiana e

o debate sobre a especificidade russa no quadro europeu. Nos Sete ensaios, são feitas

menções ao histórico russo, o que mostra algum conhecimento sobre o tema. Ao referir-

se ao indigenismo literário, compara-o ao “mujikismo” pré-revolucionário russo.

(MARIÁTEGUI, 1975, p. 31) Examinando a comunidade durante o período colonial,

compara a mir russa ao ayllu andino, para observar a forma como o regime senhorial, a

que ele chama feudalismo, descaracteriza-os, tornando-os funcionais à exploração dos

camponeses e como o latifúndio avança vorazmente sobre a propriedade comum.

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(ibidem, p. 44) Ao analisar a relação entre a comunidade e o latifúndio no período

republicano, novamente compara com a realidade russa, para defender a

improdutividade da grande propriedade. (ibidem, p. 60)

Portanto, entendo que a principal contribuição teórica de Mariátegui está em

extrair do método marxista, de forma coerente e original, as ferramentas para conceber

uma via socialista para Peru. Isso, apesar de algumas imprecisões conceituais como o

emprego do termo “feudal” para essa formação social ou as poucas informações

disponíveis sobre o passado incaico. Ao analisar as estruturas e o processo histórico de

seu país, tornou a teoria um instrumento útil para a interpretação e ação revolucionárias

e não seguiu a tendência dominante de tentar adaptar a realidade a uma teoria universal

pré-concebida. Com isso, sua obra se destaca na trajetória do pensamento social de

Nossa América e serve como um interessante ponto de partida para pensar o tema da

comuna indígena como base para a construção de poderes populares desde um

enquadramento mais amplo. Pois, se por um lado é mister uma reflexão atualizada, que

leve em conta as transformações ao longo do século e o acúmulo teórico-prático das

experiências mais recentes, por outro lado pode ser enriquecedor o diálogo com uma

contribuição prévia de elementos tão profícuos.

III.3) Os movimentos societais contemporâneos e o ressurgimento da comuna: da

resistência à revolução?

Um aspecto fundamental da emergência política dos povos originários de Abya

Yala é a presença da comunidade como sua articuladora. Mais importante do que as

organizações formais dos movimentos sociais; expressa o núcleo integrador do que

estamos chamando sociedades em movimento. Essa possibilidade independe de sua

manutenção em condições associadas (equivocadamente) à estabilidade da paisagem

rural

“Los desplazamientos de las poblaciones a trabajar a lugares muy

distantes, nos conducirán a la necesidad de estudios que den cuenta de la

manera cómo esos campesinos se insertan de manera deslocalizada en la

modernidad y mantienen en su comunidad un espacio de reserva, de

acogida, de culto, o simplemente de carácter ceremonial y festivo.”

(BENGOA, 2003, p. 61)

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Na verdade, a situação é ainda mais complexa. Essa inserção não é exatamente

“deslocalizada”, mas reterritorializada a partir de processos de intensas transformações.

A comunidade é então mais recriada do que preservada diante de situações tão extremas

como as migrações, os processos de modernização no campo, as lutas por reforma

agrária.

Na perspectiva que venho defendendo, esse padrão de mobilização comporta o

potencial de uma forma de organização pós-capitalista e pós-estatal. Uma democracia

plebéia cuja possibilidade não é nem imediata, nem utópica, sendo prefigurada no

cotidiano de sobrevivência e resistência, do qual destaco algumas experiências recentes.

III.4) Bases para uma democracia comunitária no altiplano andino

Se for possível encontrar um fio condutor no multifacético ciclo de rebeliões,

este é um papel desempenhado pelo ayllu.

“El ayllu como forma de organización social, económica y política es

hoy en día la muestra de la persistencia y vigencia de los pueblos

indígenas; a pesar de los esfuerzos realizados por parte del Estado

primero colonial, después republicano, y hoy con la imposición de la

forzosa sindicalización y el neoliberalismo basado en la privatización, el

ayllu logró mantenerse de manera silenciosa hasta nuestros días.”

(CHOQUE, 2000, p. 16-17)

O trabalho consciente e sistemático de intelectuais aimarás junto a organizações

de base, de reconstituição étnica a partir da comunidade altiplânica, possibilitou que

esta emergisse como uma possibilidade de desestruturação do colonialismo e

concretização do plurinacionalismo sobre novas bases institucionais.

Esse movimento não resultou em uma estratégia explicitamente definida

unitariamente de afirmação de uma democracia comunitária, mas em um amplo

processo de revalorização das autoridades tradicionais (mallkus, jilaqatas e alcaldes

comunais) e difusão por diferentes instâncias da sociedade de princípios organizativos

do ayllu: a concepção de cargos de autoridade como serviços comunitários; o privilégio

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à busca pelo consenso; a assembléia como fórum de deliberação, indissociável da vida

cotidiana, pelo que se ocupa dos mais diversos assuntos e não apenas os estritamente

políticos; motivo também para que os momentos de reunião sejam aproveitados para

trabalhos coletivos (minga), cultos religiosos, eventos esportivos etc.

A visibilização desse processo de reconstituição do ayllu ocorre a partir do ciclo

insurgente iniciado em setembro-outubro de 2000, quando se produz uma quebra na

dominação étnica e na exploração econômica que serviam de fundamentos do Estado

boliviano. A sucessão de levantes indígenas-populares “beligerantes e territorializados”,

além de desnudar o discurso do poder, traz à tona os mecanismos de organização

sociopolítica derivados da interpelação dos povos originários em movimento, ou seja,

reconstruindo os laços comunitários na dinâmica das lutas contra o colonialismo do

capital e do intercâmbio com setores não-indígenas. (MAMANI, 2006, p. 89)

Tal dinâmica se reflete na comuna de El Alto, nos cabildos de Cochabamba, nos

levantes de ayllus das províncias de La Paz, Oruro, Cochabamba e Potosí, interagindo

ainda com os movimentos indígenas amazônicos e de terras baixas. Uma convergência

de movimentos, ou melhor, de sociedades em movimento, cuja irrupção na cena pública

as interpõe como “sociedades contra o Estado”, dispersando o poder para o âmbito

comunitário. (ZIBECHI, 2006, p. 105)

As formas de concretização desse poder são ainda tema de debate, pois se

referem a experiências ainda em gestação. Zibechi fala da dispersão do poder, para a

qual considera necessário dispersar o Estado, sem que se crie outro em seu lugar, pelo

que se refere sempre à possibilidade de um “Estado” aimara, entre aspas. O sociólogo

aimara Pablo Mamani vislumbra essa possibilidade na forma de microgovernos

barriais, “experiências sociais territorializadas” enquanto práxis, que se consolidam

como espaços de decisão e ação coletivas, portadores de uma nova racionalidade

sociopolítica. Uma experiência organizativa coletiva fundada no manejo do espaço e do

tempo urbanos em profunda interrelação com espaços e tempos rurais. (MAMANI,

2006, p. 92-93) Para García Linera (antes do envolvimento direto no centro dos espaços

de gestão do poder estatal), o formato do Estado monoorganizativo não comporta as

múltiplas matrizes civilizacionais presentes na sociedade boliviana.

“Esto significa que en el ámbito de los poderes legislativo, judicial y

ejecutivo, aparte de distribuir proporcionalmente su administración

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unitaria general y territorial en función de la procedencia étnica y

lingüística, las formas de gestión, representación y de intervención social

deberían incorporar múltiples mecanismos políticos compuestos, como la

democracia representativa, vía partidos, la democracia deliberativa, vía

asambleas, la democracia comunal vía acción normativa de comunidades

y ayllus, etc. De lo que se trata entonces sería de componer a escala

macro, general, instituciones modernas con instituciones tradicionales,

representación multicultural con representación general en

correspondencia a la realidad multicultural y multicivilizatoria de la

sociedad boliviana. En otras palabras, se trata de buscar una modernidad

política a partir de lo que en realidad somos, y no simulando lo que nunca

seremos ni podremos ser.” (LINERA, 2004)

III.5) EZLN e os caminhos da autonomia

A autonomia, eixo do acionar zapatista, é construída como um processo.

Afirmada como objetivo estratégico desde as primeiras manifestações públicas, as

formas que ela passou a assumir foram resultado tanto do acúmulo político endógeno

das comunidades quanto dos diálogos e embates com agentes externos. Nessa trajetória,

fixada desde o início no princípio do mandar obedecendo, a proposta dos Caracoles

aparece como um momento de viragem na construção da autonomia, uma superação que

assimila experiências anteriores.

A constituição, num primeiro momento, dos “municípios autônomos” já se

baseava em instituições comunitárias de democracia direta, com a eleição de

autoridades locais e delegados sob mandatos imperativos e revogáveis. Articulados em

instâncias maiores, inicialmente chamadas Aguascalientes, os municípios buscavam

encarar as contradições internas, fortalecendo os laços de solidariedade entre

comunidades de etnias distintas. Em 2003, uma série de comunicados anuncia

mudanças nas estruturas organizativas dos territórios rebeldes, visando, entre outros

objetivos, dissociar as funções relativas à organização militar de possíveis interferências

nos níveis de autogoverno comunitário. Ademais, diante da falência dos Acordos de San

Andrés, as bases zapatistas deliberam pelo aprofundamento imediato da autonomia,

representado desde então pelos Caracoles.

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“La dimensión y profundidad que alcanza el nuevo proyecto zapatista

corresponde a la capacidad que ha mostrado este movimiento para

redefinir su proyecto rebelde en los hechos y también en los conceptos,

manteniendo al mismo tiempo sus objetivos fundamentales de un mundo

con democracia, libertad y justicia para todos.” (CASANOVA, 2003)

Assim, entendo que a sintonia fina na análise do zapatismo está em compreender

a processualidade de suas formas políticas e de seus conceitos, coadunados a

determinados princípios e objetivos estratégicos fixados desde os primeiros passos. A

autonomia é construída então como um conceito da práxis, a partir das lutas políticas

projetadas para fora do campo de disputas do aparato estatal. A proposta do EZLN se

antagoniza com o calendário do poder, sem cair aderir a um apoliticismo que concebe a

construção de “contrapoderes” e acracias à revelia da disputa de projetos, inevitável

numa perspectiva emancipatória.

“El nuevo planteamiento de los caracoles combina e integra en la

práctica ambas lógicas, la de la construcción del poder por redes de

pueblos autónomos y la de integración de órganos de poder como

autogobiernos de los que luchan por una alternativa dentro del sistema.

El planteamiento hace suyos elementos antisistémicos en que la creación

de municipios autónomos rebeldes empieza por fortalecer la capacidad de

resistencia de los pueblos y su capacidad de creación de un sistema

alternativo. Ambas políticas -la de la construcción y la de integración del

poder- son indispensables para una política de resistencia y de creación

de comunidades y redes de comunidades que hagan del fortalecimiento

de la democracia, de la dignidad y de la autonomía la base de cualquier

proyecto de lucha.” (idem)

Os caracoles representam, hoje, essa articulação dialética que a resistência

indígena põe em cena. No núcleo comunitário imbricam-se a resposta a situações

cotidianas, a memória de lutas multisseculares e a esperança, ou – para colocar em

termos mariateguianos – o mito de um mundo novo em gestação.

Pablo Gonzalez Casanova propõe, a partir da leitura dessa trajetória, a apreensão

de um novo método de reflexão e ação que tem sete características principais: o

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prevalecimento das combinações às disjuntivas, como forma de privilegiar o diálogo (e

a dialética) que transcenda a construção política interna dos povos indígenas; a

capacidade de “generalizar los conceptos al tiempo que se generalizan las redes de

comunidades”, como uma forma de viabilizar esse diálogo, rompendo com

particularismos e tornando efetiva aquela noção da “unidade na diversidade”, que se vê

na entrada de La Paz e aparece como um princípio de diversos movimentos; a

necessidade de aprofundar os conceitos de acordo com a dinâmica das lutas; bem como

de ampliar as escalas de intervenção de acordo com a capacidade de aprofundar os

conceitos e a força das redes – do nível mais local, na luta contra o cacique, ao nível

mais geral, em âmbito nacional, ou de megaprojetos regionais – sem perder a

capacidade de articular lutas locais e globais; e ainda, a necessidade de ampliar os

espaços de coordenação das lutas nos diferentes níveis. A sexta característica, Casanova

apresenta nos seguintes termos: “El subir de lo abstracto o formal a lo concreto o actual,

corresponde a la expresión 'ir más allá de..' que a menudo alude a etapas superadas”.

Assimilando lutas passadas, sem temor de superá-las, atualizando, redefinido e

adaptando o que for necessário. E, finalmente, o reconhecimento de uma dimensão

utópica expressa e realizada em meio a contradições:

“Corresponde a la necesidad de superar "las ideas de los caballeros

andantes" que buscaban "desfacer entuertos" para construir ("haciendo

camino al andar", como dijo el poeta) relaciones personales, relaciones

sociales, culturales, sistemas sociales que faciliten, entre tropezones,

practicar y concretar determinados objetivos como "la democracia, la

justicia, la libertad". Esa es la característica de los sueños y de las

impertinencias de Durito, de esos sueños e impertinencias bien y mal

hablados, idealistas y picarescos que se nutren en la imaginación del

mundo entero, maya o no maya, occidental o no occidental, clásico o

moderno, o posmoderno.” (idem)

Os caracóis zapatistas representam a síntese do acúmulo de experiências desse

movimento. Sem pretensão de instaurar um modelo e reconhecendo as particularidades

do contexto local, as comunidades zapatistas da selva chiapaneca interpelam a

sociedade civil à possibilidade da educação no exercício de formas de democracia

assembleária. Está em aberto o potencial de sua universalização, através do diálogo com

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outras formas de resistência, ampliando e aprofundando a perspectiva de construção do

poder desde baixo.

III.6) A comuna de Oaxaca

Um movimento espontâneo, totalmente inesperado, de proporções imprevistas,

que teve como estopim uma greve de professores. Ninguém imaginava que a repressão

a esse movimento, iniciado em fins maio de 2006, daria origem a um movimento tão

profundo. Um mês após o início da greve, formava-se um guarda-chuva de

organizações, formada por centenas de indivíduos independentes e coletivos de direitos

humanos, ONGs, ecologistas, de gênero, estudantis, sindicais, agrupamentos políticos,

comunidades indígenas etc. A APPO passou a coordenar um inédito e vigoroso

processo de autogoverno, que implicava no controle territorial de Oaxaca, incluindo a

ocupação permanente de edifícios públicos; a construção de centenas de barricadas e

comitês de autodefesa; a instauração de assembléias populares permanentes nas próprias

barricadas e em outros espaços, deliberando sobre as questões que se colocavam; a

autogestão de vários meios de comunicação “recuperados” (rádio, televisão, internet,

impressos). Enquanto o território da capital era controlado por um sistema de barricadas

e rondas noturnas desde fins de agosto, cenas semelhantes se difundiam pelo interior do

estado.

A transcendência de um movimento inicialmente setorizado pode ser explicada

pela particularidade da Seção 22 do geralmente corrompido Sindicato Nacional de

Trabalhadores da Educação: uma parte considerável de suas bases é formada de

docentes dos programas de educação bilíngüe, oriundos das comunidades ou em contato

direto com elas. Essa base dá origem a uma tradição sindical combativa, conectada com

setores sociais mais amplos e independente do clientelismo predominante nas direções a

nível nacional. Com efeito, os mecanismos, a forma e o discurso da comuna de Oaxaca

não representavam uma matriz sindical. Novamente encontram-se ali as múltiplas

tradições que formam uma cultura indígena-plebéia de resistência, incluindo as

comunidades do estado de maior presença indígena do país, como núcleo organizativo e

inspirador, as memórias da luta contra a ocupação estrangeira no século XIX e da

vertente libertária na revolução de 1910.

Às táticas de resistência massiva não-violenta, os poderes locais e nacional

responderam com uma estratégia contrainsurgente comum. De partidos rivais, o

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governador Ulises Ruiz obteve respaldo do presidente Vicente Fox para manter-se no

poder contra a exigência da rebelião popular, enquanto o PRI garantia a contestada

transição presidencial, sob fortes indícios de fraude, de Fox para seu companheiro do

Partido da Ação Nacional, Felipe Calderón. Como recursos de repressão, o governador

recorreu a forças paramilitares, além dos contingentes policiais à sua disposição. O

assassinato do repórter independente estadunidense Brad Will foi o sinal para a entrada

em fins de outubro da Polícia Federal Preventiva que, apesar de composta de uma força

de quatro mil efetivos, foi repelida num primeiro e obrigada a recuar em diversos

pontos, até conseguir estabelecer-se como uma autêntica força de ocupação nos meses

seguintes. No estado de sítio imposto de fato, tanto as forças federais quanto os grupos

repressivos locais oficiais e clandestinos envolveram-se em casos denunciados de

violações dos direitos humanos, detenções ilegais, ações de esquadrões paramilitares

pela capital e interior do estado, perseguição de lideranças.

IV. Sete teses para uma práxis comunitária

A democracia direta costuma ser descartada com o simples argumento de que a

complexidade das sociedades atuais a torna inviável. Trata-se, para usar de eufemismo,

de preguiça intelectual, já que qualquer forma política é histórica e, enquanto tal,

resultado de longos processos de experimentações e lutas políticas e sociais.

Com efeito, instaura-se um teoria política do poder, que se resume a afirmar

como verdades definitivas a emulação e naturalização da forma parlamentar do Estado,

organizado sob o princípio uninacional, como única possibilidade de garantia de

liberdades e direitos fundamentais. Tal pensamento linear e unidimensional redunda

invariavelmente no fetichismo da “democracia” concebida abstratamente, a não ser

pelos critérios procedimentais.

A observação de experiências passadas e presentes dos grupos subalternos

possibilita vislumbrar a construção de formas societais para além do Estado e do

mercado. A partir das questões apresentadas nesses diferentes contextos, apresento a

seguir alguns pontos para se repensar a política desde essa perspectiva emancipatória.

Das experiências anteriores, pretendo sugiro algumas reflexões sobre a forma comuna,

reforçando que o objetivo das generalizações aqui desenvolvidas não é propor uma

“teoria geral da comuna”, mas compreender como, a despeito das particularidades

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históricas esse fenômeno irrompe em diversas situações como um núcleo organizativo e

embrião de uma alternativa organização social.

São pontos para sustentar a possibilidade da universalização dessa forma a partir

de sua assimilação à práxis, de acordo com as peculiaridades de cada situação. Desse

modo, não é absurdo estabelecer analogias entre Petrogrado e Oaxaca.

1. A comuna representa a mobilização geral dos setores subalternos em um

determinado território, surgida independente de um centro convocatório, em

reposta a uma situação de acirramento da crise de dominação e do conflito de

classes.

2. Seu acionar se funda em uma territorialização, interferindo ou mesmo

controlando a circulação de grupos sociais, serviços e informações. Trata-se de

uma reapropriação do tempo e do espaço, em que é fundamental controle

territorial, inclusive como forma de defesa militar.

3. Desta forma, a comuna pode se projetar no sentido de uma “dualidade de

poderes”, confrontando-se à lógica espaço-territorial da dominação. É

importante assinalar que a comuna, em suas manifestações históricas, manifesta-

se ora como instrumento político, ora como forma social e seu sentido anti-

sistêmico mais profundo se dá no encontro entre ambos os momentos. Cruzam-

se então as dimensões da mobilização política, dos sistemas coletivo de

propriedade e da organização social comunitária, que apontam para problema do

(auto-)governo e do poder.

4. A comuna tira sua força da comunidade. Verifica-se uma relação profunda entre

tradições locais, entendidas como um elemento dinâmico da cultura, e a irrupção

da comuna que assume de diferentes formas as referências ao passado. Por isso

trabalho com a hipótese de que o surgimento “espontâneo” da comuna é

impulsionado pelo cruzamento entre as tradições comunitárias e o elemento da

consciência desenvolvido nas lutas sociais.

5. O reverso do enraizamento que a comunidade proporciona é o localismo, que se

apresenta como um desafio à sua sobrevivência. Desafio de nacionalizar

processo e romper o isolamento foi decisivo em Paris, se refletiu no processo

espanhol e influencia os esforços dos zapatistas em estabelecer alianças sociais

mais amplas.

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6. O calendário do poder sabe que o controle da comuna só é possível com sua

liquidação. É como Hernán Cortez relatando como lidava com a resistência

durante sua passagem a Tenochtitlán: “Antes do amanhecer do dia seguinte

tornei a sair com cavalos, peões e índios e queimei dez povoados, onde havia

mais de três mil casas”. (CORTEZ, 1999, p. 17) Assim sucedem-se as cenas dos

massacres nos arredores de Paris, nas ruas de Berlim, no arraial de Canudos, na

imposição do fascismo espanhol total com que se busca conter essa “força

sísmica”. A estratégia da guerra total, que se reedita nas táticas

contrainsurgentes, guerras de baixa intensidade, estados de sítio aplicados em

Chiapas, Oaxaca, El Alto-La Paz...

7. A construção da comuna representa a forma da emergência política de

sociedades que se movem à margem da sociedade hegemônica. Com isso, se

interpõem novas formas de controle e exercício do poder, projetando um tipo de

organização social para além do Estado e do mercado. Coloca-se então o desafio

de repensar a emancipação nos dias atuais, assimilando o potencial libertário e

de resistência presente na comunidade tradicional.105 Como me expressou um

velho militante comunista dedicado hoje à rearticulação das lutas indígenas,

repensar hoje a construção de algo que em algum momento se chamou

socialismo pode ser sintetizado como a luta por “La extensión del ayllu a todos

los ambientes de la sociedad”. (BLANCO, 2007)

105

Uma realidade que não se restringe a Abya Yala. Um aprofundamento destas linhas de reflexão nos

levaria a investigar o problema da modernização e a vigência de formas comunitárias em outras

regiões periféricas do capitalismo. Apenas para mencionar um eco desse debate, o líder da

independência e primeiro presidente de Gana reconhece na comunidade tradicional uma fonte de

inspiração para o socialismo africano, no sentido do humanismo de da reconciliação entre indivíduo e

coletivo. (NKRUMAH, 1967)

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Parte 4 – Olhar o passado para caminhar pelo presente e o futuro

“Voltarei e serei milhões”

Tupac Katari

“Nós somos novos, mas somos aqueles de sempre”

EZLN

Desde o momento em que se iniciou a pesquisa para a elaboração deste texto, já

ocorreram a terceira e a quarta cúpulas continentais dos povos indígenas de Abya Yala

(Iximche, Guatemala, 2007 e Puno, Peru, 2009); um presidente aimara assumiu o

governo na Bolívia, mantendo-se pelo período mais longo da década; foi fundada (em

julho de 2006) a CAOI, uma instancia de coordenação das organizações indígenas dos

Andes; foi possível acompanhar morte e vida da comuna de Oaxaca; os comandantes (e

subcomandantes) do EZLN atravessaram o México de sul a norte, até a fronteira com os

Estados Unidos, dialogando com os mais distintos movimentos sociais e buscando

coordenar nacionalmente as lutas; as organizações indígenas e camponesas

guatemaltecas articularam-se em um Levante maia e popular; o movimento indígena

peruano passou de uma situação em que era tema por sua ausência a protagonista de

lutas de dimensão nacional, através do movimento cocalero, da resistência às

mineradoras e de dois levantes dos povos amazônicos; no Equador, a CONAIE viu o

declínio de seu protagonismo na cena pública após uma frustrada aliança presidencial.

Esta enumeração aleatória e incompleta de eventos mostra a vitalidade que os

movimentos indígenas mantêm nos dias atuais. Captar alguns elementos fundamentais

dessa dinâmica e estabelecer os pontos para aprofundar a sua compreensão foi a tarefa

que busquei dar conta com o presente trabalho.

A trajetória de quase duas décadas de presença política marcante possibilita um

balanço que leve em conta, além daquilo que os movimentos indígenas apresentaram e

ainda possam apresentar como potencialidade, suas contradições, impasses e conquistas.

Após a etapa de maturação das organizações e conceitos na década de 1980, o decênio

seguinte foi marcado pela irrupção na cena pública, que se consolidou até meados da

década atual pelo incisivo protagonismo nacional. Nos últimos anos, observa-se uma

redefinição do papel desempenhado nas lutas políticas, em função do novo patamar de

debate colocado pelas consequencias das lutas nos períodos anteriores, a intervenção de

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agentes externos (ONG's, multinacionais, partidos políticos etc.) e a consolidação dos

governos progressistas.

A modo de conclusão segue-se uma breve síntese do panorama atual do sujeito

que inspirou este estudo, destacando o conjunto de reivindicações fundamentais

elaboradas em suas trajetórias, as potencialidades ainda presentes na práxis analisada e

os desafios e limites a serem enfrentados.

I. As principais reivindicações

Os principais eixos de reivindicações dos movimentos aqui analisados podem

ser sintetizados nos seguintes pontos: reconhecimento do território; defesa da cultura,

educação bilíngüe; dignidade, respeito enquanto povos, luta pela memória e contra o

esquecimento; defesa da natureza e da biodiversidade; fim do colonialismo interno,

descolonização das relações sociais e do pensamento, refundação do Estado; livre

determinação e autogoverno.

Nos países andinos, o projeto do plurinacionalismo sintetiza essas bandeiras,

enquanto no México a construção se orienta pela noção de autonomia. Esse conjunto de

demandas, além de apresentar pontos bastante originais em relação ao histórico das

esquerdas, choca-se com a concepção liberal de direito. Atuando na perspectiva de

sujeitos coletivos de direitos, a pauta construída nos movimentos da noção clássica de

cidadania e coloca o seu “multiculturalismo” no centro do embate político, o que os

torna difícil digerir aos esquemas pós-modernos. Também projeta aliança com setores

mais amplos, no que chamei aqui de acionar da plebe, embora esse tenha sido um

desafio permanente, como se observará melhor a seguir.

Pudemos analisar como essa postura se confronta com as noções liberais de

soberania e Estado-nação, não apenas pelo perfil das demandas, mas pela inserção

histórica dos povos originários nas formações sociais latinoamericanas. A atualidade da

questão nacional, que se expressa de formas variadas ao redor do mundo,106 irrompe em

Abya Yala a partir da interpelação desses setores historicamente subalternizados,

106 Com efeito, é possível dizer que os casos em que a nação alcançou o nível de homogeneidade e

representatividade no âmbito estatal previstos no ideal que comporta a noção liberal desse conceito

são a exceção e não a regra. Observe-se desde os casos em que se chegou a uma solução negociada,

como Canadá e Suíça, até os inúmeros conflitos que se perpetuam até os dias atuais: País Basco,

Balcãs, Oriente Médio, África, Ásia etc.

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mostrando que a independência política anterior a formação dos Estados na África e

Ásia não garantiu uma solução para problema.

II. Movimentos como forças criadoras

Esse contexto permite enumerar, a partir da jornada empreendida nesta

investigação, as principais conquistas, potencialidades, bem como as limitações

encontradas pelos povos originários em movimentos.107 Tentei destacar nos capítulos

precedentes as contribuições dos movimentos indígenas – e dos povos em movimento –

para uma práxis emancipatória. Enumero aqui alguns pontos que considero

fundamentais:

1. Enriquecimento dos conceitos de liberdade e democracia, questionando o

etnocentrismo, afirmando o direito à diferença e reivindicando o direito

coletivo dos povos. Na verdade, mais do que “enriquecer” propriamente dito,

ressignificam e colocam em xeque o status quo, ao combinar na prática a

resistência às dimensões classista e étnica de dominação, e bem assim na

interpelação que apresentam ao Estado-nação.

2. Aporte de formas organizativas para além do capital, a partir da vida

comunitária. Essa foi a chave de interpretação que assumi para os ayllus, os

ejidos, as comunas de El Alto e Oaxaca.

3. Dessa valorização dos princípios comunitários deriva a possibilidade de

aprender, reproduzir e multiplicar as práticas fundadas no princípio da

solidariedade

4. Defesa dos recursos naturais: a Pachamama, mãe-terra andina cuja

mercantilização é inadmissível.

5. Revalorização dos sábios e das tradições ancestrais, que inspira uma releitura

do papel das tradições no processo revolucionário.

6. Surgimento de uma intelectualidade indígena, que vimos ser parte de

esforços de desenvolver espaços próprios de produção teórica. Essa jovem

geração de intelectuais, cuja formação variada inclui professores do sistema

bilíngüe, artistas, acadêmicos, sem esquecer os vínculos comunitários e a

107 Os pontos são desenvolvidos também a partir de Rojas (1998, 2008).

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importância dos amautas, desenvolve uma contribuição à descolonização das

ciências sociais e às possibilidades de se pensar Abya Yala e o mundo que

ainda está por ser assimilada. Daí pode-se compreender e reconhecer a força

epistemológica de conceitos construídos a partir dos processos sociais, como

os de autonomia, plurinacionalidade, resistência, pachakuti, comunidade...

7. Renovação da esquerda e do pensamento crítico. “Mandar obedecendo”

como princípio de direção, relação diferenciada com o poder, possibilidade

de articulação com outros setores subalternizados.

8. Revisão histórica, como esbocei na segunda parte da dissertação, que

possibilite uma nova compreensão do lugar dos grupos subalternos na

história de América latina (a ponto de nos permitir relê-la como Abya Yala).

9. Filosofia da história: a contribuição, por exemplo, do conceito de

Pachakutik em um possível diálogo com Walter Benjamin.

III. Dilemas e ameaças para os movimentos indígenas

Os desafios apresentados aos movimentos indígenas ganharam complexidade

com sua passagem ao centro da cena política. O salto à fase político-universal projetou

o que era até então considerado o “problema do índio” para a ordem de conflitos no

âmbito nacional.

Entre os fatores externos que ameaçam a organização autônoma e o respeito à

vida comunitária, observamos a ação de empresas multinacionais na exploração de

recursos naturais (petrolíferas, madeireiras, mineradoras etc.). Atividades econômicas

ilícitas (especialmente o narcotráfico) e políticas de repressão indiscriminada, como a

erradicação da folha de coca, afetam igualmente os territórios indígenas.

Outro problema refere-se à necessidade de sustentação financeira, que torna

diversas organizações e comunidades dependentes do apoio de ONG‟s internacionais e

organismos estatais. Como contrapartida, a intervenção desses agentes tende a cobrar

uma etnização e despolitização do discurso, imprimindo uma lógica de ações baseadas

na elaboração de projetos para captação de recursos e na negociação de incremento do

aporte de assistência estatal.

Essa dinâmica, bem como os debates expostos a seguir, revela duas dificuldades

internas enfrentadas pelos movimentos indígenas. A tendência a uma nova

diferenciação e estratificação social interna, a partir dos setores com acesso privilegiado

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aos canais de financiamento e negociação e a fragilidade das estruturas organizativas e

da qualificação de dirigentes que, apesar dos esforços próprios de formação, muitas

vezes dependem igualmente de estruturas alheias.

III.1) O discurso da reação

Um desafio que se incrementa a partir da irrupção na cena pública refere-se à

relação com outras forças sociais e políticas. A rearticulação de uma direita racista, que

identifica nos movimentos indígenas um de seus alvos principais, buscando sedimentar

a noção de tratar-se de uma ameaça à democracia. Esses seriam uma expressão latino-

americana de “ameaças globais”, ou mais especificamente, dos riscos de xenofobia e

“balcanização” derivados de “conflitos étnicos”. Não sem uma dose de sarcasmo

devemos reconhecer a coerência dessa postura desde uma perspectiva liberal-

conservadora. Demonstrando os limites objetivos das pretensões universalistas e do

discurso multiculturalista pós-moderno, as leituras conservadoras e liberais reagem com

veemência à afirmação política das identidades indígenas, desde as primeiras

manifestações, intervindo nos debates sobre a “comemoração” dos 500 anos do início

da colonização européia, até o recrudescimento do discurso racista após a eleição de

Evo Morales. Uma matriz dessa interpretação está no estadunidense Samuel P.

Huntington, cuja teoria do “choque das civilizações”, prognosticando um inevitável

enfrentamento do Ocidente com as demais culturas classificadas por ele, serve de

fundamento teórico da atual orientação do Departamento de Estado e teve maior

prosperidade acadêmica no pós-guerra fria do que a famigerada tese do fim da história.

(HUNTINGTON, 1996)

Essa visão liberal enfatiza o conflito dos povos indígenas com a modernidade,

traduzindo-o como sinal do seu atraso e lamentando a “persistência do arcaico” na

América Latina; coloca no mesmo patamar os atuais movimentos indígenas, o processo

bolivariano na Venezuela, os governos e candidatos identificados progressistas ou de

esquerda, sob a alcunha de “neopopulismo”; confunde as demandas de autonomia e

plurinacionalidade com separatismo; em alguns casos chega ao paroxismo de negar-lhes

a condição de indígenas.108

108 Essa tática foi em certa altura empregada pela Aracruz, para deslegitimar as comunidades

indígenas e quilombolas que reivindicavam seus direitos e eventualmente aparece nos ataques da

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Na América Latina, o principal representante dessa crítica “ilustrada” é o

escritor peruano Mario Vargas Llosa, que em livros, artigos, conferências internacionais

em círculos acadêmicos e empresariais da América e Europa, assumiu a linha de frente

do discurso antiindigenista, enfatizando o que considera o risco à democracia e a

persistência arcaica. Tratando do indigenismo peruano, registrou uma ampla polêmica

com José Maria Arguedas, considerado o mais importante representante da corrente

nesse país. (LLOSA, 1996)

A declaração do papa, em sua passagem pelo Brasil, demonstra que nem a

formalidade politicamente correta exigida pela liturgia do cargo foi capaz de conter a

lente eurocêntrica que pauta esse viés de leitura. Parecendo ecoar as formulações de

Huntington e Llosa, o representante máximo da Igreja Católica, conhecido por suas

posições conservadoras, afirmou que “La utopía de volver a dar vida a las religiones

precolombinas, separándolas de Cristo y de la Iglesia universal, no sería un progreso,

sino un retroceso. En realidad sería una involución hacia un momento histórico

anclado en el pasado.” (RATZINGER, 2007)

Diante desse nível de enfrentamento, o risco do isolamento torna-se um desafio

mais sério, que aumenta a necessidade de se articular com setores mais amplos da

sociedade. Se por parte de determinados setores dos movimentos indígenas, o

essencialismo étnico e o particularismo indianista são fatores a dificultar o diálogo, a

contrapartida desde as tendências marxistas predominantes oi em boa medida a

incompreensão.

III.2) Desencontros e encontros

A relação com partidos e intelectuais de esquerda nem sempre ocorre

tranquilamente. Vimos nos casos do Sendero Luminoso no Peru e da Frente Sandinista

na Nicarágua duas situações extremas a que chegou essa tensão. Atualmente, em um

paradoxo que não é incomum à história das esquerdas, os setores responsáveis por sua

renovação teórica e prática geram tensões e incompreensões mútuas. Certas abordagens,

muito genéricas e pautadas por um enfoque marxista dogmático, priorizam as

expressões formais dos movimentos, desde sua dimensão estatal, do paradigma

centralidade do trabalho – ou de maneira ainda mais reducionista, do papel dirigente da

imprensa brasileira a Evo Morales. Ver

<http://www.aracruz.com.br/questaoindigenanoES/index.html> Acesso em 10 jul. 2007.

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classe operária –, utilizando categorias referentes a contextos distintos da realidade

americana sem as devidas mediações. (Ver SÁENZ, 2004; PETRAS, 2002, 2006, 2007)

Apesar do seu compromisso com o pensamento crítico e de algumas observações

lúcidas, essa interpretação mais dogmática tem o problema de analisar a realidade a

partir de modelos pré-estabelecidos, tomando como ponto de partida uma idéia do que

deveriam ser as relações sociais e não os processos como eles realmente se apresentam.

Nesse ponto, cabe explicitar um debate teórico que permeou toda a pesquisa e

que, se por um lado trazê-lo para o primeiro plano desvirtuaria a perspectiva construída

para este trabalho, ocultá-lo seria escamotear uma tensão que tem inegável presença na

temática a ser discutida. Trata-se dos pontos de contato e de desencontro entre as razões

indianista e marxista.

Há um certo lugar comum que costuma associar o marxismo a uma leitura

linear, unilateral e acrítica da modernidade. Marx é geralmente assimilado como um

entusiasta do progresso. Tal leitura se baseia numa noção eurocêntrica do advento do

mundo contemporâneo, pautada na noção de progresso que orienta considerável parte

da esquerda. O debate sobre as relações entre tradição, modernidade e revolução, que

remete ao pensador renano é, no entanto, mais complexo e rico do que essa leitura

linear. Marx o tratou de maneira ambígua ou mesmo contraditória em diferentes

momentos. Se é verdade que sua obra anuncia o avanço irresistível da modernidade,

inclusive cedendo a momentos de uma visão entusiástica diante do advento do

capitalismo,109

podem-se destacar ricas passagens em que vislumbra a ação autônoma

dos explorados e suas tradições pré-capitalistas como elementos constituintes do

processo de construção da nova sociedade, como pudemos constatar em suas reflexões

sobre a Comuna de Paris e, com Engels, sobre a Rússia.

Por isso a incoerência em tentar estabelecer um modelo universal a partir da

exegese de determinados textos foi apontada em algum momento pelo próprio Marx que

em certo momento adverte quem

“A todo o custo, quer converter meu esboço histórico sobre as origens do

capitalismo na Europa Ocidental em uma teoria histórico-filosófica sobre a

trajetória geral a que se acham fatalmente submetidos todos os povos, quaisquer

que sejam as circunstâncias históricas que nelas concorram, para chegar enfim

109

Vale mencionar seus escritos sobre a colonização britânica na Índia ou a apropriação do território

mexicano pelos Estados Unidos.

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naquela formação econômica que, a par do maior impulso das forças produtivas

do trabalho social, assegura o desenvolvimento do homem em todos e cada um

dos seus aspectos. (Isso me traz demasiada honra e, ao mesmo tempo, demasiado

escárnio.)” (MARX; ENGELS, 1980, p. 64-65).

Partindo dessas formulações iniciais, podemos apontar duas variantes entre seus

sucessores. Uma corrente majoritária, que se apóia também nos escritos de Lênin110

e

teve seu pleno desenrolar posterior nos canais dos partidos comunistas oficiais,

enfatizando o modelo europeu de revoluções burguesas e trabalhando com uma noção

de progresso que abre o marxismo para uma leitura linear da história, fechada em seus

influxos positivistas. Tal postura se acomodou ao longo do século XX na linha oficial

da burocracia soviética e de seus seguidores nos partidos comunistas. Por outros

caminhos, a social-democracia já se acomodara desde o século XIX em posturas

semelhantes, encarando com fatalismo a democracia parlamentar burguesa como

estágio máximo de organização social. Segundo essa visão eurocêntrica, o capitalismo

representa por definição um estágio civilizacional superior, igualmente necessário e

benéfico para toda a humanidade. No início do século XX, o fundador do Partido

Socialista Argentino saudava o avanço da civilização capitalista: "Una vez suprimidos

(sic) o sometidos los pueblos salvajes y bárbaros e integrados todos los hombres a lo

que llamamos hoy civilización, el mundo estará más cercano a la unidad y la paz, lo

que se traducirá por una mayor uniformidad del progreso". (Juan B. Justo, 1909 apud

LOWY, 2007)

A outra tendência, relegada desde cedo a situações marginais no movimento

revolucionário mundial,111

assimilou criticamente as contribuições de Marx e Engels,

desenvolvendo uma abordagem dialética da relação entre tradição e modernidade, o que

a permitiu apresentar elementos para uma crítica não reacionária ao progresso e, em

alguns casos, um marxismo enraizado, capaz de articular as especificidades nacionais a

uma interpretação totalizante do sistema capitalista. Na terceira parte desta dissertação

indiquei algumas possibilidades dessa leitura.

Um conjunto de reflexões que não cheguei a explorar foi o de Gramsci, que por

sua vez inspirou os historiadores britânicos Hobsbawm e Thompson em seus estudos

110

O dirigente russo era um entusiasta do taylorismo e da disciplina fabril. 111

Marginalizado em função do contexto histórico, esse grupo teve dificuldade em estabelecer laços

orgânicos com o movimento revolucionário, sendo bastante heterogêneo.

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inovadores sobre a classe operária inglesa. O primeiro analisou elementos diversos e até

então pouco notados da cultura operária e, principalmente, apontou como as tradições

são um elemento vivo da cultura, criados e recriados em determinadas circunstâncias

históricas. Seu companheiro Edward P. Thompson trouxe contribuições fundamentais,

estudando as origens da classe operária inglesa, identificadas com a cultura da plebe

londrina da qual recupera uma valiosa tradição de radicalismo e resistência ao avanço

do capitalismo. Observando o comportamento desse setor diante da gênese do novo

modo de produção, aponta uma situação semelhante às que estivemos analisando:

“Temos assim um paradoxo característico daquele século: uma cultura

tradicional que é, ao mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da

plebe quase sempre resiste, em nome do costume, às racionalizações e

inovações da economia (tais como os cercamentos, a disciplina de

trabalho, os 'livres' mercados não regulamentados de cereais) que os

governantes, os comerciantes ou os empregadores querem impor.”

(THOMPSON, 1998, p. 19)

Não é difícil notar que, quase trezentos anos depois, tais paradoxos ainda

marcam o cenário político americano. Obviamente os mecanismos de expressão da

“cultura tradicional” neste contexto diferem de inúmeras maneiras daquele enfrentado

pela plebe inglesa, a começar pelo fato de estar lidando atualmente com o capitalismo

amadurecido e de amplitude global. No entanto, seus mecanismos de ataque às classes

subalternas parecem se repetir ciclicamente, já que entre as mirabolantes propostas

modernizadoras que o chamado neoliberalismo tenta impor, o avanço do mercado sobre

as terras comunais e a colonização da natureza em geral (além dos alimentos) pela

forma mercadoria assumiram caráter estratégico. Para o tema que estamos debatendo, os

dois historiadores ajudam a desmistificar as tradições, tirando a exclusividade de

folcloristas, conservadores e antiquários de diferentes especialidades sobre a matéria.

Nesse sentido, os dois intelectuais que trouxeram os elementos mais ricos e

criativos para abordar o problema na sua radicalidade viveram na mesma época, mas em

contextos bem distintos. Captando a dissolução da civilização burguesa, o avanço e as

contradições da revolução socialista e, em níveis diferentes, a articulação da reação

fascista, o olhar do peruano José Carlos Mariátegui dialoga indiretamente, desde a

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periferia do capitalismo, com a obra do alemão Walter Benjamin no esforço de articular

dialeticamente tradição e modernidade.112

Sobre Mariátegui, acrescente-se que desenvolveu, em meio a uma obra

diversificada, uma interessante reflexão sobre a relação entre tradição e modernidade

que permeia vários de seus trabalhos, a ponto de um importante estudioso considerar

esse o “núcleo gerador” do pensamento mariateguiano na maturidade (MÉLIS in

AMAYO; SEGATTO, 2002, p. 66). Refletindo a partir de um país marcado pelas

contradições do desenvolvimento do capitalismo na periferia, a hibridez estrutural e das

conformações culturais na região está presente em todos os famosos sete ensaios de seu

trabalho principal113

e em boa parte de seus artigos. O livre desenvolvimento da

civilização incaica foi interrompido pela empresa colonizadora e, posteriormente, pelo

Estado republicano estabelecido por uma débil burguesia. Essa contradição só poderia

ser resolvida pela revolução socialista, para a qual é fundamental a recuperação das

tradições originárias.

Em um artigo de 1927, Mariátegui desenvolve sua argumentação, deixando claro

estar muito além de qualquer tipo de utopia passadista. Sua crítica vai tanto contra o

tradicionalismo conservador que entende o passado engessado como folclore como o

revolucionarismo simplista que reduz a idéia de transformação radical à pura

inconoclatia. Tomando como referencial o teórico francês Sorel e apoiando-se em

Proudhon para se contrapor às visões dogmáticas, defende a idéia de uma tradição viva,

que se alimenta do passado para construir as lutas do presente: “Los verdaderos

revolucionarios no proceden nunca como si la historia empezara con ellos. Saben que

representan fuerzas históricas, cuya realidad no les permite complacerse con la

ultraísta ilusión verbal de inaugurar todas las cosas.” (MARIÁTEGUI, 1989: 316)

A trajetória do século XX mostra que materialismo histórico só teve alguma

utilidade teórico-prática nesta parte do mundo quando assumiu uma perspectiva

radicalmente anticolonial e foi capaz de compreender e assimilar – ou dialogar – com as

tradições mais profundas dos explorados. Assim, só é possível compreender o processo

cubano a partir das lutas pela independência no século XIX da mesma forma que as

lutas sociais contemporâneas na Nicarágua, México, Bolívia são profundamente

112

A obra de Mariátegui, que nos últimos anos voltou a despertar interesse em diversos países, destaca-se

por sua universalidade que, partindo das especificidades do continente, intervém no debates mais

importantes de sua época. 113

Os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicados originalmente em 1928, dissertam

sobre a estrutura econômica, a questão do índio, o problema da terra, o processo educacional, a

religião, a dicotomia centro x província e a literatura.

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marcadas respectivamente pelas lutas antiimperialistas do início do século passado e

pelas revoluções de 1910 e 1952, só para ficarmos em alguns exemplos.

Creio que com esta perspectiva é possível estabelecer um diálogo mutuamente

enriquecedor entre duas razões revolucionárias, como indica Linera quanto à viabilidade

de superação do desencontro prevalecente entre ambas.

“Por último, no que se refere a uma nova relação entre estes indianismos

e o marxismo, diferentemente do que sucedia nas décadas anteriores, nas

que a existência de um vigoroso movimento obreiro estava acompanhada

de uma primária, mas estendida, cultura marxista, hoje o vigoroso

movimento social e político indígena não tem como contraparte uma

ampla produção intelectual e cultural marxista. O antigo marxismo de

Estado não é significativo nem política nem intelectualmente e o novo

marxismo crítico provém de uma nova geração intelectual, tem uma

influência reduzida e círculos de produção ainda limitados. Contudo, não

deixa de ser significativo que este movimento cultural e político

indianista não venha acompanhado de uma vigorosa intelectualidade

letrada indígena ou indianista. Se o indianismo atual tem uma crescente

intelectualidade prática nos âmbitos de direção de sindicatos,

comunidades e federações agrárias e comunitárias, o movimento carece

de uma intelectualidade letrada própria e de horizontes mais estratégicos.

O grupo social indígena que poderia ter desempenhado este papel se

encontra ainda adormecido pelo impactada cooptação geral de quadros

indígenas pelo Estado neoliberal na década de 90. E, curiosamente, são

precisamente parte destes pequenos núcleos de marxistas críticos os que

com maior dinamismo reflexivo vêm acompanhando, registrando e

difundindo este novo ciclo do horizonte indianista, inaugurando assim a

possibilidade de um espaço de comunicação e enriquecimento mútuo

entre indianismo e marxismo, que serão provavelmente as concepções

emancipatórias da sociedade mais importantes no século XXI.”

(LINERA, 2007, p. 4)

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III.3) O desafio do progressismo

As relações contraditórias dos movimentos indígenas com as forças de esquerda

e as conseqüências de certas debilidades estratégicas se aguçaram com o advento dos

governos “progressistas” no continente. A crise do padrão de dominação estatal e as

sucessivas rebeliões colocaram em pauta o problema da institucionalização das

demandas indígenas ou, diretamente, o de uma estratégia de poder. No entanto, trouxe

também o risco da captura pela lógica estatal que foi respondido de maneiras distintas

nos três casos em que o movimento indígena alcançou maior projeção na cena pública.

O EZLN distanciou-se radicalmente da alternativa eleitoral, rechaçando

inclusive as alianças pontuais com os partidos da esquerda institucional mexicana e

buscando consolidar alianças mais amplas em outros espaços de articulações. A

CONAIE aderiu à via institucional, tendo o Pachacutik como braço político. As relações

entre movimento social e instrumento político trouxeram resultados principalmente no

âmbito regional, mas sofreram tensões crescentes até atingirem pontos críticos durante a

conturbada participação no governo de Lucio Gutierrez. O trauma dessa experiência não

chegou a ser totalmente superado pela força mais significativa do movimento indígena

equatoriano, que desempenhou um inegável papel de renovação para as esquerdas do

continente. A opção pela participação eleitoral não foi descartada, mas a hesitação entre

priorizar uma tática de alianças ou o fortalecimento de candidatos próprios, as divisões

internas, o desgaste político foram alguns fatores de debilitação do movimento, que

abriram espaço para a vitória nas eleições presidenciais de Rafael Correa, um neófito

cuja orientação política, apesar de declaradamente de esquerda, distanciou-se

permanentemente do que vinha sendo construído pelos movimentos indígenas.

Na experiência boliviana, a tática eleitoral colocava-se em um campo de ação

quase inevitável diante da contundência da crise estatal e de representação partidária,

alternando-se com as ações autônomas e extraparlamentares. Entretanto, as tendências

divergentes e até conflitantes entre as forças do movimento social boliviano

impossibilitou a construção de uma estratégia comum. Felipe Quispe apresentou no

MIP um instrumento político subsidiário à ação de massas das comunidades aimaras do

altiplano articuladas pela CSUTCB, mas sua retórica flamejante de reconstituição do

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Qolasuyu114 não foi capaz de atender os anseios de setores mais amplos mobilizados

pelo contexto de crise nacional. De certa forma, foi o MAS, que sem abrir mão das

mobilizações massivas logrou apresentar uma alternativa institucional, vitoriosa com a

eleição de Evo Morales. Tal sucesso reordenou as forças sócio-políticas bolivianas,

transferindo o centro de gravidade de deliberação das ruas para o parlamento e a disputa

entre governo central e oligarquias departamentais. Com essa dinâmica, o MAS se

estabeleceu como força preponderante entre os movimentos populares e indígena,

assumindo o peso da responsabilidade da gestão das coisa pública. A relação com

determinados movimentos importantes no período anterior foi contraditória, apesar de

ser majoritária a adesão ao governo; o ritmo das mudanças se alternou entre os

momentos de radicalização do discurso e priorização da concertação; sua ideologia

mescla elementos do movimento indígena contemporâneo e do nacionalismo

revolucionário boliviano, em que se vislumbra uma influência desenvolvimentista.115

Coloca-se então o problema dos governos progressistas para os movimentos

indígenas e forças populares em geral. Sua vigência aconselha que apenas sejam

registradas algumas interrogações, considerando ainda pendente uma definição sobre o

que efetivamente representam: experiências “pós-neoliberais” possíveis em um contexto

adverso, que servem de transição para transformações mais profundas ou contenção de

ímpeto emancipatório dos movimentos sociais? Refundação ou relegitimação do

Estado, sobre bases neodesenvolvimentistas? Será possível descolonizar o Estado

mantendo as formas e os mecanismos da democracia parlamentar clássica (constituição,

parlamento, judiciário, eleições, partidos, eleições)?

Uma interessante crítica a essa tendência que chamo aqui deliberadamente de

progressista é desenvolvida pelo economista argentino Claudio Katz, que observa que

“La mayor parte de los críticos del neoliberalismo en la periferia

reconocen que la dependencia persiste como una causa central del

subdesarrollo. Pero proponen superar esta sujeción mediante la

construcción de “otro capitalismo”. Ya no vislumbran un proyecto

totalmente nacional, autónomo y centrado en la “sustitución de

importaciones” -como sus antecesores de la CEPAL- pero si un modelo

114 Dentro do Tawantisuyu, o país dos incas, era o território correspondente à Bolívia. 115 O vice-presidente Garcia Linera apresentou o programa do governo Morales como um

“capitalismo andino”. Para uma análise dos fundamentos teóricos do MAS, ver Stefanoni, 2003.

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regional, regulado y basado en los mercados internos. Auspician

esquemas keynesianos, para erigir 'estados de bienestar en la periferia',

sostenidos en transformaciones institucionales (erradicar la corrupción,

recomponer la legitimidad) y en grandes cambios comerciales (frenar la

apertura), financieros (limitar los pagos de la deuda) e industriales

(reorientar la producción hacia la actividad local).

[...] Los partidarios del nuevo capitalismo periférico no brindan

respuestas a ninguno de estos interrogantes cruciales. Ignoran que el

margen para implementar su proyecto se ha reducido a partir de la

asociación creciente de las clases dominantes periféricas con el capital

metropolitano. Esta vinculación obstaculiza la acumulación interna,

multiplica la salida de capitales y dificulta la aplicación de políticas

reactivantes de la demanda interna. Las burguesías que no lograron en el

pasado poner en pié un capitalismo autónomo, tienen menos

posibilidades de aproximarse a esa meta en la actualidad.” (KATZ,

2002)

Coloca-se então, para essa wiphala116 de movimentos e experiências a disjuntiva

entre a tentativa de acomodação à ordem e o aprofundamento de experiências cujo

potencial libertário pôde ser observado nas últimas décadas. Apreender e desenvolver

esse potencial é um desafio político e epistemológico, para o qual espero que este

trabalho possa trazer algum tipo de contribuição.

116 A wiphala é uma bandeira recuperada pelos movimentos indígenas como um elemento

tradicional da cultura andina. Suas cores se inspiram no arco-íris.

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