Poderes da Pintura - PÚBLICO — Notícias de … · De modo geral, a pintura moderna, ... segundo...

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Poderes da Pintura

Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, n.º 15

1000 ‑282 LisboaTel.: 218 474 450Fax: 218 470 775

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Título: Poderes da PinturaAutor: José Gil

Revisão: Anabela Prates CarvalhoCapa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)

sobre Natureza Morta (1965), de Ângelo de Sousa

© Relógio D’Água Editores, Maio de 2015

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ISBN 978‑989‑641‑522‑8

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Rainho & Neves Lda.

Depósito Legal n.º: 392633/15

José Gil

Poderes da Pintura

Antropos

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Como se vê, é sempre a tendência da pintura para ocupar o espaço tridimensional envolvente da tela e da moldura que leva às especulações e experimentações de Duchamp. De modo geral, a pintura moderna, através do seu princí‑pio de “confundir a arte com a vida”, agudizou essa ten‑dência. Poder ‑se ‑á avançar que as vanguardas e correntes neomodernistas do século xx (pelo menos até aos anos 80) exploraram de inúmeras maneiras a vocação interna da pintura a “misturar ‑se com a vida”. Porque a pop art, a land art, a body art ou a linha que se reclama directamen‑te de Duchamp e que se desenrola nos objectos de Warhol, nas instalações, na arte povera, etc., inscrevem ‑se na his‑tória da pintura (e não da escultura, como observou muito bem Thierry de Duve). Tal como os readymades que resul‑tam daquele movimento da imagem pictural que quer “sair” da tela e do suporte.

De certo modo, a expressão “a pintura tende a sair da tela” não é suficientemente precisa. A pintura não sai da tela, está já fora dela, é um elemento real da vida. Aquele lema do modernismo que atravessou o século xx (até aos anos 80, pelo menos) — “a arte deve inserir ‑se na vida” — exige uma dissolução da arte na vida, isto é, no caso da pintura, o abandono de tudo o que fazia de um quadro um “ente” diferente das coisas da vida quotidiana. Em nome da nova ontologia do objecto de arte, as recusas da ima‑gem mimética, do cavalete, da moldura, da tela, da galeria, do museu, pautavam a luta da arte moderna contra o esta‑tuto específico (e elitista, no discurso das vanguardas) re‑servado à obra artística pela tradição. Portanto, em rigor não se deve dizer que “a pintura tem tendência a sair da tela” porque se recusa a tela e a própria ideia de pintura como prática autónoma, desligada da vida. É o desejo — segundo essa ontologia — de transformar a pintura num elemento da vida que está subentendido na expressão refe‑

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rida. Mas não se chega assim a negar o “objecto de arte” (tornado “objet ‑dard”, segundo Duchamp)?

É verdade que certas correntes das últimas vanguardas do século xx padeceram de um novo equívoco: em nome da cruzada anti ‑sistema (de poder, da sociedade e do Estado que sustentavam o estatuto privilegiado da obra de arte), recusavam violentamente a própria “arte”, proclamando a sua morte (quando se queria insuflar vida na arte, inscreven‑do esta naquela) — não vendo que um Duchamp, um War‑hol, um Fontana, um Stella ou um Judd tiravam a sua força criadora da crítica a um ou vários elementos que definiam ou acompanhavam o “objecto de arte” clássico, explorando então, no plano da arte, o que acontecia a esse objecto sem esses elementos e modificando, no plano da vida, o estatuto do objecto banal, trivial. Crítica parcial que mantinha sem‑pre uma diferença, às vezes mínima (como parecia, às ve‑zes, na land art), com o objecto natural ou o artefacto indus‑trial. Essa diferença preservava a autonomia específica da arte contra as tentativas de a fazer desaparecer na sopa amorfa da sua “dissolução” na vida. Como escreve Deleuze em 1968, “a arte deve extrair essa pequena diferença que a distingue da vida para a trabalhar e dela tirar a força crítica de recusa da vida quotidiana consumista e destruidora (por‑que a vida é também captada e dominada por forças de destruição e morte), e para afirmar uma liberdade para o fim do mundo”13. De cada vez que se retirava um elemento re‑presentativo à figuração mimética tradicional libertavam ‑se forças de vida e o quadro “saía da tela” porque entrava par‑cialmente na vida. A pintura “tende”, afinal, “a sair” da tela — mas transformada em vida ou, em todo o caso, numa outra vida que não a da nossa quotidianidade empírica.

Num conto que exprime perfeitamente esta ideia moder‑na da arte, “A Salvação de Wang ‑Fô”, Marguerite Yource‑nar descreve o poder genérico da arte de transformar a

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representação em vida: o mar pintado por Wang ‑Fô sai do quadro, invade a sala e um barco navega levando o pintor até desaparecer no horizonte.

À sua maneira, a arte contemporânea (cujo início fixare‑mos artificialmente em meados dos anos 90) realiza tam‑bém uma “mistura” da arte com a vida, seguindo a linha da pulsão “para fora” da pintura. Se a arte moderna quis des‑truir as barreiras que separavam a arte da vida, explorando mil modos de transformar as imagens artísticas em imagens banais quotidianas (mantendo, no entanto, a sua especifici‑dade estética), a arte contemporânea inverteu a ordem do processo, conservando o mesmo objectivo: inserir a arte na vida. A arte moderna trouxe para o plano artístico a realida‑de trivial, enquanto a indústria e o comércio colocavam no espaço público, na decoração, na fabricação de toda a espé‑cie de objectos, uma infinidade de produtos estetizados (graças, sobretudo, ao design). Assim se obteve uma certa “mistura” da arte e da vida — diferente daquela pretendida pelos artistas vanguardistas. (Por razões estéticas e políti‑cas: não esquecer o ímpeto revolucionário dos primeiros e últimos modernistas que queriam fazer ruir tudo o que, no “sistema”, impedia a arte de se tornar vida, desde o museu até à moldura de um quadro [Buren, por exemplo]).

Porque se estetizou a vida, a arte contemporânea fez do próprio espaço banal uma matéria a trabalhar. Tranquila‑mente, sem desconstruções ideológicas ou revoltas políti‑cas. Já não se tem de meter um cavalo numa galeria para criar uma obra de arte (revolucionária), basta pendurar ob‑jectos ordinários (como pneus) num mastro de candeeiro público, suscitando uma pequena estranheza, sinal do “ar‑tístico” no universo manufacturado. É a mutação, às vezes mínima, dos objectos estetizados “já feitos” pelas máqui‑nas que “provoca” a existência da obra de arte. Nesse sen‑tido, até o corpo humano é um readymade: daí a explora‑

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ção, sondagem, manipulação dos seus órgãos. O “já feito” tornou ‑se uma matéria ‑prima que desafia a arte contempo‑rânea: a própria vida como readymade.

Compreende ‑se a extraordinária fascinação que Du‑champ continua a exercer sobre os artistas contemporâ‑neos que reactivam constantemente os seus readymades, pintando ‑os ou reconstruindo ‑os, retomando ‑os sempre como uma interrogação viva sobre a natureza do trabalho artístico. Vindo tudo, seminalmente, dos mais profundos poderes da pintura que lhe permitem irradiar e transformar o espaço e o tempo para lá da imagem plana.

Resumindo esta nota sobre a arte contemporânea: como os objectos do quotidiano mais banal foram investidos pelas mais sofisticadas técnicas do virtual, os objectos de arte en‑contram aí, naturalmente, o seu lugar. As próprias galerias, museus, espaços de exposição são agora espaços eleitos mas de certo modo banais que coexistem com o espaço da rua. As desigualdades e disparidades são integradas e legitima‑das pela universalidade hegemónica do virtual. E a (falsa) exposição máxima a que o virtual submete a realidade per‑mite que o objecto de arte funcione em circuitos altamente elitistas (codificados pelo capital), mas sob a luz da demo‑cratização igualitária. A arte contemporânea confronta ‑se assim com duas direcções da pulsão que a leva a “sair da tela”: entrar nos circuitos mortíferos da “arte contemporâ‑nea” = vida virtual ou lutar contra este tipo de virtualização (estetização) da vida, inventando outros modos de existên‑cia (para a vida e para a arte).

Na sua capacidade de tudo integrar, as instituições de arte contemporânea vão ao ponto de recuperar a velha pintura da representação. Não só através do revivalismo que procura cada vez mais as posições da pintura pré ‑modernista, mas incentivando novas formas de “figurativismo”. Regressa ‑se, também, à vontade de encenar o mundo da representação,

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porque o mundo deixou de ser uma tentação real para ser imagem de uma realidade sempre virtualizável.

Em certo sentido, vive ‑se agora o objectivo modernista, perversamente atingido: a vida tornou ‑se artística porque a arte pôde e pode, sem esforço, tornar ‑se vida. Não é a pin‑tura que se deve irrigar de vida, ser mais viva do que a vida, mas o contrário — que, aliás, está sempre a acontecer.

Estamos longe da tendência para “sair da tela” ou de a tela reproduzir a vida. Quando se dizia, classicamente, de um pintor que ele conseguia que o espectador “entrasse” nos seus quadros (como Kandinsky, nas suas memórias, descrevendo o seu sentimento, na infância, de ter uma im‑pressão tão profunda da cena pintada que lhe parecia pe‑netrar e percorrer as ruas do quadro como se fossem reais), evocava ‑se tanto o poder de ser afectado do espectador como o de afectar do pintor. E supunha ‑se que o quadro se reduzia à imagem finita, contida dentro de limites geomé‑tricos precisos, na superfície bidimensional da tela. Rara‑mente se considerava o “sair da tela” das forças do quadro que se desdobravam no espaço para além da área pintada. O quadro consistia naquela superfície; tudo o que a ultrapas‑sava era da ordem da ilusão, da alucinação. Ora, como nota Merleau ‑Ponty, “ser ‑me ‑ia muito difícil dizer onde está o quadro que estou a olhar. Porque não o olho como olho uma coisa, não o fixo no seu lugar […], vejo segundo, ou com ele, mais do que o vejo”.14 É num outro espaço que ele está, que ele produz e que não o da alucinação ou outra qualquer declinação degradada do espaço objectivo tridimensional.

Na verdade, não existe um espaço bidimensional pictu‑ral.15 A sua suposta “conquista” pela pintura (de Cézanne e Manet aos cubistas e Pollock) foi apenas uma maneira de dizer que o espaço pictural não é bidimensional: as maçãs de Cézanne ou os seus Jogadores segregam um outro espa‑ço de forças que não se resume às duas dimensões das re‑

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presentações. Se a planeidade das figuras de Cézanne ope‑rava uma ruptura com o espaço do modelo ‑referente e com o mimetismo pictural, aproximando mais a pintura de si mesma, era porque ela abria à “pintura pura” um espaço original, específico, diferente. Foi preciso “conquistar” a planeidade para que a pintura significasse e autonomizasse o seu mundo próprio com dimensões distintas das dimen‑sões espaciais conhecidas e visíveis.

Porque não existe um espaço pictural plano, porque a pintura projecta imediatamente as linhas e figuras no ar, para cá e para lá da tela — uma cor cria logo um volume que sai do fundo branco —, Ângelo foi levado a construir um plano flutuante, próprio do desenho, que foge à super‑fície bidimensional.16

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Voltemos ao quadro de Ângelo. Vimos como vários mo‑vimentos, em direcções diferentes e quase contrárias (es‑piral centrípeta da esquerda para a direita, espiral centrífu‑ga da direita para a esquerda), o atravessam. A espiral induzida pelas linhas que limitam as superfícies coloridas prolonga ‑se no ar, aquém da tela. O espaço paradoxal (es‑cheriano) dos planos de cor afunda, esburaca o quadro, no triângulo do centro. Para ser exacto, este triângulo não se situa no centro da composição. Ligeiramente deslocado para a esquerda, obriga a uma compensação à direita pela grande largura do plano encarnado que equilibra horizon‑talmente o conjunto das forças geométricas. Assim se “ar‑ticula” a estrutura geométrica com a densidade e velocida‑de dos planos coloridos.

O equilíbrio obtido é, por sua vez, paradoxal. Não pára os movimentos internos, reforça ‑os. Porque se trata de um equilíbrio da composição, ele dá o nexo ao movimento

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inteiro do quadro, encerrando o conjunto dentro dos limi‑tes visíveis da superfície pintada (dentro, pois, da moldura: isto, mesmo se o quadro transvaza para fora da tela. Na verdade, é porque o visível é delimitado que o invisível transborda para o espaço hors cadre).

Uma característica desta pintura, que se verifica em múltiplas outras e em muitos desenhos de Ângelo, é o modo como o pintor cria, em simultâneo com uma ocu‑pação saturada da superfície, um vazio invisível. Este nasce daquela, no seio dela. Não já ameaçada pela densi‑ficação espacial, a composição respira. Mais um parado‑xo: da densificação nasce o vazio. Todo o plano da tela está coberto de cor, em largas praias homogéneas de azul, encarnado, amarelo ‑esbranquiçado, verde ‑amarelado, que se encostam umas às outras sem que um branco, um inter‑valo, um “entre” as separe. O risco seria um conjunto fe‑chado e pesado. Ora, é o contrário que acontece: do qua‑dro emana leveza, jogo, diversidade. Porquê? Por duas razões, sobretudo: primeiro, porque a apresentação de um espaço impossível, que faz coexistir no seu seio duas di‑mensões diferentes, incompossíveis, abre esse espaço, criando um vazio subterrâneo, não visível. Por outro la‑do, o movimento interno dos planos coloridos arrasta ‑os para espaços diferentes, tridimensionais, em múltiplas direcções — o que desloca a planeidade, desfolha ‑a, esfolia ‑a: “por baixo” dela percebem ‑se espaços interva‑lares vazios.

A este procedimento de Ângelo chamarei sobreposição e achatamento. Sobrepõem ‑se e achatam ‑se dois planos