POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Poema de … · Café preto que nem a preta velha café...

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POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode. Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus, se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Infância A Abgar Renault Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu chamava para o café.

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POEMAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Poema de sete facesQuando nasci, um anjo tortodesses que vivem na sombradisse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homensque correm atrás de mulheres.A tarde talvez fosse azul,não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:pernas brancas pretas amarelas.Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.Porém meus olhosnão perguntam nada.

O homem atrás do bigodeé sério, simples e forte.Quase não conversa.Tem poucos, raros amigoso homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonastese sabias que eu não era Deus,se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundose eu me chamasse Raimundoseria uma rima, não seria uma solução.Mundo mundo vasto mundo,mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizermas essa luamas esse conhaquebotam a gente comovido como o diabo.

InfânciaA Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.Minha mãe ficava sentada cosendo.Meu irmão pequeno dormia.Eu sozinho menino entre mangueiraslia a história de Robinson Crusoé,comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeua ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceuchamava para o café.

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Café preto que nem a preta velhacafé gostosocafé bom.

Minha mãe ficava sentada cosendoolhando para mim:– Psiu... Não acorde o menino.Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeavano mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha históriaera mais bonita que a de Robinson Crusoé.

A rua diferenteNa minha rua estão cortando árvoresbotando trilhosconstruindo casas.

Minha rua acordou mudada.Os vizinhos não se conformam.Eles não sabem que a vidatem dessas exigências brutas.

Só minha filha goza o espetáculoe se diverte com os andaimes,a luz da solda autógenae o cimento escorrendo nas formas.

No meio do caminhoNo meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.

Cidadezinha qualquerCasas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar.

Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham.

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Eta vida besta, meu Deus. (Alguma poesia, 1930)

Hino Nacional

Precisamos descobrir o Brasil!Escondido atrás das florestas,com a água dos rios no meio,o Brasil está dormindo, coitado.Precisamos colonizar o Brasil.O que faremos importando francesasmuito louras, de pele macia,alemãs gordas, russas nostálgicas paragarçonnettes dos restaurantes noturnos.E virão sírias fidelíssimas.Não convém desprezar as japonesas.Precisamos educar o Brasil.Compraremos professores e livros,assimilaremos finas culturas,abriremos dancings e subvencionaremos as elites.Cada brasileiro terá sua casacom fogão e aquecedor elétricos, piscina,salão para conferências científicas.E cuidaremos do Estado Técnico.Precisamos louvar o Brasil.Não é só um país sem igual.Nossas revoluções são bem maioresdo que quaisquer outras; nossos erros também.E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões…os Amazonas inenarráveis… os incríveis João-Pessoas…Precisamos adorar o Brasil.Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidãono pobre coração já cheio de compromissos…se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.O Brasil não nos quer! Está farto de nós!Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Não se mateCarlos, sossegue, o amoré isso que você está vendo:hoje beija, amanhã não beija,depois de amanhã é domingoe segunda-feira ninguém sabeo que será.

Inútil você resistirou mesmo suicidar-se.Não se mate, oh não se mate,

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Reserve-se todo paraas bodas que ninguém sabequando virão,se é que virão.

O amor, Carlos, você telúrico,a noite passou em você,e os recalques se sublimando,lá dentro um barulho inefável,rezas,vitrolas,santos que se persignam,anúncios do melhor sabão,barulho que ninguém sabede quê, praquê.

Entretanto você caminhamelancólico e vertical.Você é a palmeira, você é o gritoque ninguém ouviu no teatroe as luzes todas se apagam.O amor no escuro, não, no claro,é sempre triste, meu filho, Carlos,mas não diga nada a ninguém,ninguém sabe nem saberá. (Brejo das almas, 1935)

Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanheceresse amanhecer mais noite que a noite.

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Congresso internacional do medoProvisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,não cantaremos o ódio porque esse não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,depois morreremos de medoe sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

Elegia 1938Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas, e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção. À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer. Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. A literatura estragou tuas melhores horas de amor. Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva. Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. (Sentimento do mundo, 1940)

Procura da poesiaNão faças versos sobre acontecimentos.Não há criação nem morte perante a poesia.Diante dela, a vida é um sol estático,não aquece nem ilumina.As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.Não faças poesia com o corpo,esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escurosão indiferentes.Não me reveles teus sentimentos,que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.

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O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a naturezanem os homens em sociedade.Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.A poesia (não tires poesia das coisas)elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,não indagues. Não percas tempo em mentir.Não te aborreças.Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de famíliadesaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhastua sepultada e merencória infância.Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.Que se dissipou, não era poesia.Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.Lá estão os poemas que esperam ser escritos.Estão paralisados, mas não há desespero,há calma e frescura na superfície intata.Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.Espera que cada um se realize e consumecom seu poder de palavrae seu poder de silêncio.Não forces o poema a desprender-se do limbo.Não colhas no chão o poema que se perdeu.Não adules o poema. Aceita-ocomo ele aceitará sua forma definitiva e concentradano espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.Cada umatem mil faces secretas sob a face neutrae te pergunta, sem interesse pela resposta,pobre ou terrível que lhe deres:Trouxeste a chave?

Repara:ermas de melodia e conceito

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elas se refugiaram na noite, as palavras.Ainda úmidas e impregnadas de sono,rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

ÁporoUm inseto cavacava sem alarmeperfurando a terrasem achar escape.

Que fazer, exausto,em país bloqueadoenlace de noiteraiz e minério.

Eis que o labirinto(oh razão, mistério)presto se desata:

em verde, sozinha,antieuclidiana,uma orquídea forma-se.

Telegrama de MoscouPedra por pedra reconstruiremos a cidade.Casa e mais casa se cobrirá o chão.Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.Começaremos pela estação da estrada de ferroe pela usina de energia eléctrica.Outros homens, em outras casas,continuarão a mesma certeza.Sobraram apenas algumas árvorescom cicatrizes, como soldados.A neve baixou, cobrindo as feridas.O vento varreu a dura lembrança.Mas o assombro, a fábulagravam no ar o fantasma da antiga cidadeque penetrará o corpo da nova.Aqui se chamavae se chamará sempre Stalingrado– Stalingrado: o tempo responde.

A ingaia ciênciaA madureza, essa terrível prendaque alguém nos dá, raptando-nos, com ela,todo sabor gratuito de oferendasob a glacialidade de uma estela,a madureza vê, posto que a vendainterrompa a surpresa da janela,o círculo vazio, onde se estenda,e que o mundo converte numa cela.A madureza sabe o preço exato

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dos amores, dos ócios, dos quebrantos,e nada pode contra sua ciênciae nem contra si mesma. O agudo olfato,o agudo olhar, a mão, livre de encantos,se destroem no sonho da existência.

LegadoQue lembrança darei ao país que me deutudo que lembro e sei, tudo quanto senti?Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceuminha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,uma voz matinal palpitando na brumae que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichosona vida, restará, pois o resto se esfuma,uma pedra que havia em meio do caminho.

A máquina do mundoE como eu palmilhasse vagamenteuma estrada de Minas, pedregosa, e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos que era pausado e seco; e aves pairassem no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindona escuridão maior, vinda dos montese de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriupara quem de a romper já se esquivavae só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,sem emitir um som que fosse impuronem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeçãocontínua e dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcendea própria imagem sua debuxada

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no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidandoquantos sentidos e intuições restavama quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,se em vão e para sempre repetimosos mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,a se aplicarem sobre o pasto inéditoda natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz algumaou sopro ou eco ou simples percussãoatestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,em colóquio se estava dirigindo:"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,mesmo afetando dar-se ou se rendendo,e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riquezasobrante a toda pérola, essa ciênciasublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,esse nexo primeiro e singular,que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardenteem que te consumiste... vê, contempla,abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,o que nas oficinas se elabora,o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,os recursos da terra dominados,e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestreou se prolonga até nos animaise chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,dá volta ao mundo e torna a se engolfar,

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na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,suas verdades altas mais que todosmonumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solenesentimento de morte, que floresceno caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relancee me chamou para seu reino augusto,afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em respondera tal apelo assim maravilhoso,pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelode ver desvanecida a treva espessaque entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadaspresto e fremente não se produzissema de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,e como se outro ser, não mais aquelehabitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontadeque, já de si volúvel, se cerravasemelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;como se um dom tardio já não foraapetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,desdenhando colher a coisa ofertaque se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousarasobre a estrada de Minas, pedregosa,e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,enquanto eu, avaliando o que perdera,seguia vagaroso, de mãos pensas. (Claro enigma, 1951)

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EternoE como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno.

Eterno! Eterno! O Padre Eterno, a vida eterna, o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)— O que é eterno, Yayá Lindinha?— Ingrato! é o amor que te tenho. Eternalidade eternite eternaltivamente

eternuávamos eternissíssimo

A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana se soube florir é o menino recém-nascido antes que lhe dêem nome e lhe comuniquem o sentimento do efêmero é o gesto de enlaçar e beijar na visita do amor às almas eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma força o resgata é minha mãe em mim que a estou pensando de tanto que a perdi de não pensá-la é o que se pensa em nós se estamos loucosé tudo que passou, porque passou é tudo que não passa, pois não houve eternas as palavras, eternos os pensamentos; e passageiras as obras. Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um mar profundo. Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos afundamos. É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.

Eternos! Eternos, miseravelmente. O relógio no pulso é nosso confidente. Mas eu não quero ser senão eterno. Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma essência ou nem isso. E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde pousou uma sombra e que não fique o chão nem fique a sombra mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma esponja no caose entre oceanos de nadagere um ritmo. (Fazendeiro do ar, 1954)

Suas mãosAquele doce que ela faz

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quem mais saberia fazê-lo?

Tentam. Insistem, caprichando.Mandam vir o leite mais nobre.Ovos de qualidade são os mesmos,manteiga, a mesma,iguais açúcar e canela.É tudo igual. As mãos (as mães?)são diferentes.

ProgramaQue vais fazer no dia da saída?Acaso vais reinventar a vida?

Dizendo adeus a negras matemáticasnunca mais voltar ao colégio férreo?

Montar em pêlo o macho Trintapatase galopar no rumo do Insondável?

Buscar destino de cigano ou de pária,livre pra lá da Serra do Curral?

Vais procurar o que é vedado e chama:a pedra, o som, o signo, a senha, o sumo?

– Vou visitar os tios e os padrinhos.Vou chateá-los e chatear-me, apenas.

(Preceito Dez, das Tábuas de Família.) (Boitempo I, 1979)

Arte poéticaUma breve uma longa, uma longa uma breveuma longa duas brevesduas longasduas breves entre duas longase tudo mais é sentimento ou fingimentolevado pelo pé, abridor de aventura,conforme a cor da vida no papel.

A paixão medidaTrocaica te amei, com ternura dáctilae gesto espondeu.Teus iambos aos meus com força entrelacei.Em dia alcmânico, o instinto ropálicorompeu, leonino,a porta pentâmetra.Gemido trilongo entre breves murmúrios.E que mais, e que mais, no crepúsculo ecóico,senão a quebrada lembrançade latina, de grega, inumerável delícia? (A paixão medida, 1980)