Poemas meus1

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Assim que nasceu o dia, o quarto daquele mês de agosto, que poderia muito bem ter sido o primeiro ou o sexto, mas foi o quarto, porque assim quiseram os deuses da Natureza que fosse, dum ano que já distante vai, iniciei a travessia. Maleta não tinha, nem identidade, tampouco passaporte carimbado. Estava nua e chorei. O caminho estava aberto para que os meus pés descalços o percorressem. Como o melhor da viagem não é a chegada, mas sim o seu percurso, estou na estrada até hoje, caminhante que sou pelas trilhas da Vida. Avançar manualmente

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  1. 1. Assim que nasceu o dia, o quarto daquele ms de agosto, que poderia muito bem ter sido o primeiro ou o sexto, mas foi o quarto, porque assim quiseram os deuses da Natureza que fosse, dum ano que j distante vai, iniciei a travessia. Maleta no tinha, nem identidade, tampouco passaporte carimbado. Estava nua e chorei. O caminho estava aberto para que os meus ps descalos o percorressem. Como o melhor da viagem no a chegada, mas sim o seu percurso, estou na estrada at hoje, caminhante que sou pelas trilhas da Vida.
  2. 2. Embondeiro Vejo-te solitrio e fulgido Em fundo vermelho de sol poente Como monumento pla natureza erigido Sobre a plancie agreste e inclemente; Como se benfazeja chuva mendigasses Teus secos braos nus aos cus lanas E como se a rida paisagem afagasses Pelo espao te estendes e avanas; Caem-te, como lgrimas, frutos to pesados A saciar o faminto e sedento caminheiro Que, de ps descalos, gretados e cansados, Te reverencia e te atribuiu dons de curandeiro; Tens bravia beleza e mistrios de feiticeiro Habitas o meu cho, a minha histria por contar, Sempre estiveste no meu caminho, Embondeiro, Quisera eu nunca de ti me separar.
  3. 3. A minha rua Rua feita de pedra e sol De largueza pouca entre o casario Por onde passavam dias modorrentos E gente carregada de estio Rua que, da longa avenida, Era sossegada travessa, Por onde passava a vida Num caminhar sem pressa Rua que noite era vazia Sem nela ningum passar S o silncio se ouvia E as pedras eram feitas de luar Rua que hoje lembrana De quando a dizia minha poca eu a criana Que por ela ia e vinha Por ela h muito no passo Perdi-a no tempo e na distncia Mas de mim ser sempre pedao Aquela rua chamada infncia
  4. 4. Dormia ainda a manh fechei a porta sem alarde parti levei na memria a cor vermelha da terra e do sangue no verdejante capim encarnada do jindungo e das pitangas das missangas cravejando peles escuras descalas no cafezal a brancura do sisal do algodo em flor zarco dos poentes sobre o cais dourada das fogueiras nos quintais rubra das accias nos umbrais o verde danante das palmas entre areias e cu em tardes calmas anil do mar ao sol do meio-dia noite envolto em ardentia levei na memria o odor da maresia da poeira suspensa quando no chovia da goiaba do maboque e do caju do suor do povo quase nu parti nada mais tinha para levar a no ser a vontade de ficar Exlio Cores e Odores
  5. 5. Exlio - Saudade de mim So as de outrora as casas, as ruas e os becos; iguais aos de antes, as angstias, os prantos e os medos; so os mesmos e sempre tantos os ritmos e os cantos, os encantos, os acalantos; ainda l habitam os vermelhos do sangue e da terra, os dos ltimos raios de sol entornados sobre o mar da baa e das praias do farol de areias velhas e brancas de onde partem os dongos em noites de aragens brandas e de luares antigos a esculpirem sombras danantes das esguias casuarinas ... So hoje, como eram antes, os sabores de gajaja e tamarindo, as cores vivas do cu, do capim e das accias florindo ... s como sempre foste, Luanda. Tu ficaste, eu parti. Saudade tenho de mim, de como fui enquanto te percorri.
  6. 6. Olhos-mar trago em meus olhos tanto mar em tempestade tambm em calmaria de sal de saudade e ardentia so meus olhos lgrimas-mar por um Mar que j no tenho distante que de meu olhar
  7. 7. Abandono L longe - to longe Onde o tempo sempre azul E h noites encharcadas de luar L longe - to a Sul Onde o areal encontra o mar Deixei meus sonhos espalhados No voltei para os buscar Continuam l Abandonados
  8. 8. Mesa Vazia Quando po no havia - e se havia era pouco - Quando no era o vinho bastante Para embriagar a fome, Sentvamo-nos mesa E repartamos migalhas. Tempo de medo e de incerteza. Tempo de guerra! Povo em fuga, destroado, A manchar de vermelho a terra. Quando j nem migalhas havia Para repartir, Ainda assim sentvamo-nos mesa, Deixvamos o Sonho afluir, Dizamosno tristeza E alimentvamo-nos de Esperana.
  9. 9. Zinco ao meio-dia Meio-dia Terra vermelha nos cumes Reflectida em espelhos Como lminas de dois gumes Lado a lado Que cortam Desfazem E cobrem Sonhos agrilhoados De todos os esquecidos Que de to empobrecidos De esperana Ali ficaram calados Com olhos amargurados Vendo o brilho De seus telhados de zinco
  10. 10. Retirante Ter de ir No poder ficar Sair sem deixar sinais Calar o riso brando O breve pranto Levar nas mos o nada Na alma o desencanto Que tem dodo tanto Todo o desalento Toda a afeio Cortar os laos Seguir o vento Apressar os passos Buscar um novo cho Partir Sem olhar pra trs O medo despir E recomear ...
  11. 11. Fotografias: Angola Retiradas da Internet Msica: Angola (Cesria vora) Texto e poemas: Guida Burt ([email protected])