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ALVA O narrador explodiu pelos ares — pela noite. A platéia sabe que eles tocaram o céu — aprenderam? — já é dia. E toda história tem começo com o suspiro dos apaixonados — é claro. E sendo a canção sobre dois que se conhecem, e instantâneo embrulha tipicamente a barriga, se o tempo, nesse suspiro, é congelado; então, depois que se beijam pela primeira vez, o léxico obceca? E ouviremos, de novo, velhos casais que se amaram? Não há era uma vez, apenas fábula. Acredita ter sentido nos olhos dela, que tem o impacto do primeiro toque, o brilho colorido do início. Aprenderam de maneira difícil rir com sigilo, lembrando as passadas de corações partidos. E assim foram. Abraçaram-se firmes às lembranças. Cada frágil momento, ela sonhou conformada ao cavado do ombro dele. Não tinha medo. Não quando dizia que tudo ia dar certo se estivessem juntos — e o mundo era muito pouco. Agora se perguntam se é assim: como o tudo ficou tão ferrugento? E são o tema das canções grifadas: o lugar comum, o sentimental do tom, motivos baratos de um grato acidente, talvez algo mais? Há, no momento de um sorriso, a abertura de um farol na noite? São as canções, tolas como são no feitio, que teimam parecer nossas vidas? E cantamos por quê? Por quem cantamos o nascer

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ALVA

O narrador explodiu pelos ares —pela noite. A platéia sabe que elestocaram o céu — aprenderam? — jáé dia. E toda história tem começocom o suspiro dos apaixonados— é claro. E sendo a canção sobre doisque se conhecem, e instantâneo embrulhatipicamente a barriga, se o tempo,nesse suspiro, é congelado; então,depois que se beijam pela primeiravez, o léxico obceca? E ouviremos,de novo, velhos casais que se amaram?

Não há era uma vez, apenas fábula.

Acredita ter sentido nos olhosdela, que tem o impacto do primeirotoque, o brilho colorido do início.Aprenderam de maneira difícilrir com sigilo, lembrando as passadasde corações partidos. E assim foram.Abraçaram-se firmes às lembranças.Cada frágil momento, ela sonhouconformada ao cavado do ombro dele.Não tinha medo. Não quando diziaque tudo ia dar certo se estivessemjuntos — e o mundo era muito pouco.

Agora se perguntam se é assim:

como o tudo ficou tão ferrugento?E são o tema das canções grifadas:o lugar comum, o sentimentaldo tom, motivos baratos de um gratoacidente, talvez algo mais? Há,no momento de um sorriso, a aberturade um farol na noite? São as canções,tolas como são no feitio, que teimamparecer nossas vidas? E cantamospor quê? Por quem cantamos o nascerda aurora? Vêm as luzes. Repartimosa alva. E sob o sol, que se esparramalá da barra da manhã, vão cantaras notas que largaram: parceria.

(inédito do livro Balaio)

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Matinada

Rolava de um lado pro outrona cama. Batia um facho de solque se arrastava lá dos vãos da persiana.Tudo estaria bem — não fosse o incômodode ainda estar vestido com as calçasda noite anterior, mais a dormênciados braços encolhidos sob o corpo.Quando a apnéia o acordou de um sonoconvulso, levantou-se em passo curto,e trôpego largou um rastro de roupaspelo chão. Seguindo até o banheirodeixou pra trás: a alma o riso e a brisa.Antes de entrar no chuveiro, mexeu a pele acumulada na carcaçacurva e o meneio da cabeça seguiao próprio reflexo. Teimoso, esticavano espelho as rugas com os dedos — os mesmosque raspava as remelas, depois coçava o rego —e então media o cheiro. Finalmente, foiao cagatório dar despacho e métodoà manhã, como sempre boa e simples,que aos dentes se resume à pasta na escovae ao corpo a súmula de um banho quente.Repetição sem diferença, como sóia mímica de estar ali, nas linhasda toalha, onde enfia a fina fuçana magra profecia de um dia sem crise;diverso daquela malha que não o seca,aquele felpudo sudário desistidono raso do bidê, dá-se o grosso do discurso:imagem calibrada em tom médio,espécie de matina sem música.

(inédito do livro Balaio)

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lazeado

Saiu de casa comum doce na boca.Na cara, o sorrisode um devotado

prático, se mescla ao barbanteda patuléia. No corpo, as idéiasem gestos médios. Nos bolsos,

a carteira e o analgésico — a quese apega como o crente à cruz.

Deus falte em dobro: a ladeira, a ladainha.

(inédito do livro Balaio)

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Ronda

Criou freqüência em cartórios pra lerjornais e revistas de variedades.Ouve as histórias das recepcionistas— se interessa pelas de perna curta,e as estrábicas guardam algum charme.Baba no vocabulário e não treme.Se abisma com modos de fala ágile segura. Quando dizem bolachas?dizem como quem reza. Bota fé.ao vê-las com os dentes no biscoito,percebe que na queda dos farelosa caspa se mascara nos jalecos.Dá-se conta que é hora de comere desiste de levá-las ao mar.

(inédito do livro Balaio)

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Turno

Muita vez é no início. A coisa tem de acontecer ali — mas não de imediato — naquele espaço, no primeiro lance antes de tomar, absoluto, o equilíbrio. Domar-se por domar, escolher um lado do giro.

(inédito do livro Balaio)

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APÊNDICEpara Ismar

Moído, de verdade. Mas como sou carrancudopensando, agora por do corte de escrever umas belezas aí, é que vem: se tudo for de pena, o microfone aberto da minha vida volta às parcas com os que não fazem questão dela.

Gosta de mim?

Se pertença minha, a benevolência — um bemque tenho evitado —, tomo teu nome e fazemosum filho, pode ser? À criança será dada força— e será má fama (vamos revirar o cinema?).

Pausa, breve, para o recado dos organizadores:

COMPREM

A singela da Gávea

que dá fundos à penúltima da coleção. Agora é direto com vocês dividindo a sombra de um mundo novo.

bem vindo à noite de logo mais. Se quiser furar a fila, atenda ao termo do convite:

traje, apenas.

Eu te encontro fôlego. Não há lastro pra mim, pois que caí aqui da janela e vem daí que me interessa, mais, o que a cada vez tu faz melhor.

Foi uma bela tarde em Kon Mei.

Imediatamente anteriores aos de cima,que de andar na areia fofa, dependendo da coorte de passear por aí, foi bem óbvio que não era tão de boa um deus nos livre, urgindo a exigência de um alívio. Não me disseram, as loucas, tocando meu rim, enquanto esperava o ano passar desperdício?Era um quê da vida que falavam? Ah me dera.

Ficou mais a pressa medida dos sapos. E este é esse verso que perde suas armas.

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E se já não é, ele disse: acabou! acabou!Por vezes o que falta é essa perna aí.E era o fim do pavio, o fio da boina. E se já não sabe, está bem sem dúvida.

Ela é quem vai ler no arranhão. Casal pronto & acabado. Só isso. O resto épuro desserviço — o calo cativode esquecer que essas frases pegam mal.Eu, de cá, acho um grande despropósitoser revistado a pente fino antesde entrar de férias na escolinha. Bastade brinquedo novo no repertório.Serão dados amigos jovens. Saltospra quem espera a vez nos trampolins.Já me afastei com medo do convite —o que dá um interessante efeito,confesso — para a vida no divino:lenha e matéria gasta até o fim.

Uns poucos traços do de sempree segue rindo. Não precisaagradecer imenso, não.Tá tudo certo entre nós, sim?Respira em paz. Esquece a merdatoda em que nos metemos juntos.Foi chato à vera, você sabe.Que a terra lhe seja bem leve.

A sumidade esclarecida se perdeu. Foi contra as recomendações do seguimento.Achando umas paradas muito estilo severo,abandonou-se às suas rotinas de hábito.

Começo a ficar difícil ser eu;Já deu ruim. Fiquem bem com os teus, certo?Aqui gente, por favor, tenham modos.

Da série de epitáfios pífios que escrevi,aqui deixo: “vem cá, continuo tentando?”.

(inédito do livro Balaio)

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há certo conforto no jazztirado ao timbre do apetitefumaça e bourbon. o que pensam:ainda há tempo; vai dar certo.piano e bumbo estancam justos— síncope de galope, um loop.se saírem, fala depressa —hora de ir — não por impulso.largados do lado de foraum pouco mais de paciênciae ninguém mais nos incomoda.a noite esfria enquanto esperam.mais um pouco e as luzes se apagam.ainda há tempo; vai dar certo.

(inédito do livro chabu)

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não há saber algum, nenhuma cifra,quando a vontade de morder a vida crua dá rumo à existência dos dentes.alimento meus dias com os bilhetesque larguei, mas ninguém não leu correto.na barriga, só miudezas. as dobrasmantenho regadas; e as flores santas,mesmo que frágeis. o amor, a capinaadestra o corpo. se cabe de novona cama descoberta entre lençóis?não fosse o barulho que você fez,só pra dizer que vai levar o gatoque eu também alimentei; olha, atérolava. agora, desse jeito, é foda.

(inédito do livro chabu)

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não há que soprar nem madeiras nem metais se orquestra a virilha

tecido teu mantô à mobília aferra a cachimanha de dígitos arrola se o caldo entorna a uva azeda e que

perfume na suã seu cosmético?que lábia mostra ofício diário?

a torcida me orgulha carrego no peito o escudo do mergulho

quê me iliba se na despedidaária de bestas despenteadas noescuro não conciliam? noturna

cultivo pesadelos

bu!

(inédito do livro chabu)

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sesob o efeito domésticode a cada cálculo passar e repassarum longo testepradescobrir enfim como fomoseconômicos(tais vermute e amendoim)vaiambula em tom menor a antiga normaetoma em testemunho a palma abertachocada a outra palma o que da vida seguecomo certo não o amornem a morte quem sabe nós e pouca coisa gera mais certezasaber melhor mover moinhos ventanias

(inédito do livro chabu)

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André Capilé, nascido em Barra Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro, em 1978. Publicou Dois (Não Pares), em 2008, pela editora Anome/Funalfa edições; a plaquette Zangarreio (2010), edição do autor; rapace (2012), pela editora TextoTerritório. Prepara seu próximo livro, chabu, a sair pela editora TextoTerritório, e Balaio, que vai integrar a coleção Moby Dick da 7Letras. Co-Fundador e ex-organizador do ECO – Performances Poéticas de Juiz de Fora, é mestre em Literatura Brasileira, pela PUC-Rio, onde cursa, atualmente, doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade.