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Política de comércio exterior e desenvolvimento: a experiência brasileira Amado Luiz Cervo Professor titular de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasília RESUMO Expõe-se o pensamento do governo brasileiro e a política de comércio exterior entre 1930 e os dias presentes. Três constatações da diplomacia brasileira condicionaram o processo decisório: as doutrinas não presidem à prática das grandes potências, um país emergente dispõe de escasso poder nos foros multilaterais, experiências liberais radicais não produzem os efeitos apregoados por seus doutrinários. A política de comércio exterior evitou por essa razão obedecer a grandes princípios e modelos, orientando- se por crescente realismo. Foi historicamente concebida como instrumento de reforço à economia e ao mercado internos e evoluiu com base numa estratégia contraditória que protegia o mercado interno e reivindicava a abertura do mercado global. Cedeu nos anos noventa à tendência da globalização, não sem estender a introspecção para o mercado regional ampliado, o Mercosul. Palavras-chave: Brasil: comércio exterior, desenvolvimento, protecionismo, multilateralismo. ABSTRACT The article exposes the Brazilian government thought and Brazilian external trade policy between 1930 and nowadays. Three verifications of Brazilian Diplomacy have conditioned Brazilian decision-making process: doctrines do not guide the practice of great powers, an emergent country disposes of little power in multilateral fora, radical liberal experiences do not produce the effects proclaimed by their indoctrinators. For this reason, the international trade policy avoided to obey the major principles and models, orienting itself with growing realism. It has been historicaly developed as an instrument to reinforce the internal economy and market,

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Política de comércio exterior e desenvolvimento: a experiência brasileira

 

 

Amado Luiz Cervo

Professor titular de História das Relações Internacionais da Universidade de Brasília

 

 

RESUMO

Expõe-se o pensamento do governo brasileiro e a política de comércio exterior entre 1930 e os dias presentes. Três constatações da diplomacia brasileira condicionaram o processo decisório: as doutrinas não presidem à prática das grandes potências, um país emergente dispõe de escasso poder nos foros multilaterais, experiências liberais radicais não produzem os efeitos apregoados por seus doutrinários. A política de comércio exterior evitou por essa razão obedecer a grandes princípios e modelos, orientando-se por crescente realismo. Foi historicamente concebida como instrumento de reforço à economia e ao mercado internos e evoluiu com base numa estratégia contraditória que protegia o mercado interno e reivindicava a abertura do mercado global. Cedeu nos anos noventa à tendência da globalização, não sem estender a introspecção para o mercado regional ampliado, o Mercosul.

Palavras-chave: Brasil: comércio exterior, desenvolvimento, protecionismo, multilateralismo.

ABSTRACT

The article exposes the Brazilian government thought and Brazilian external trade policy between 1930 and nowadays. Three verifications of Brazilian Diplomacy have conditioned Brazilian decision-making process: doctrines do not guide the practice of great powers, an emergent country disposes of little power in multilateral fora, radical liberal experiences do not produce the effects proclaimed by their indoctrinators. For this reason, the international trade policy avoided to obey the major principles and models, orienting itself with growing realism. It has been historicaly developed as an instrument to reinforce the internal economy and market, and it has evolved based on a contradictory strategy that protected the internal market and cried out for global markets openning. On the 90's, it has ceded to globalization tendencies, but not before it had extended introspection to the broaden regional market, Mercosul.

Key words: Brazil: external trade, development, protectionism, multilateralism.

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Introdução

A política de comércio exterior do Brasil envolveu historicamente um grande debate nacional. Governo e lideranças sociais a ela vincularam as possibilidades do desenvolvimento econômico, desde as origens, na primeira metade do século XIX. Em três períodos ela foi atrelada a diferentes paradigmas de inserção internacional: o liberal conservador do século XIX, que se estendeu até os anos 1930; o do Estado desenvolvimentista que vigorou desde então até 1989; e o novo paradigma de inserção liberal em formação nos anos noventa. O presente estudo se propõe recuperar as tendências fundamentais da primeira fase para inclinar-se longamente sobre as duas últimas com a intenção de compreender as atitudes e as definições do governo e da sociedade diante das políticas de comércio exterior bem como os impactos sócio-econômicos que elas exerceram nas últimas décadas.

 

1. O período do Nacional-desenvolvimentismo (1930-1990)

1.1. Política de comércio exterior, multilateralismo e bilateralismo. A lei de 1899, liberalismo e comércio compensado nos anos trinta, a criação do sistema de Bretton Woods. Impacto da criação do MCE e OPA.

Até o regime de licenciamento das importações, que seria desde 1947 o instrumento destinado a acionar o modelo substitutivo de importações, não houve no Brasil continuidade de política comercial. Os regimes aduaneiros eram fixados de forma empírica, o que não valia dizer irracional, porquanto eram determinados por razões que ora ponderavam um, ora outro elemento de cálculo. Buscava-se expandir as exportações, uma tendência favorável ao regime de livre comércio, ou defender a indústria nacional, outra tendência favorável à proteção do mercado interno. Buscava-se ora o tratamento de nação mais favorecida, ora a obtenção de tarifas reduzidas ou de direitos acordados, ora a reciprocidade de tratamento, ora o tratamento privilegiado, ora preencher as necessidades do tesouro, ora, enfim, o simples interesse do consumidor interno.

À diferença dos Estados Unidos, onde o regime aduaneiro foi posto desde a independência a serviço da industrialização interna, com acentuação dessa tendência a partir da Guerra de Secessão, e onde a política de comércio exterior integrou-se ao ideário dos partidos, sendo o republicano fortemente protecionista e o democrata propenso ao livre comércio, o Brasil conheceu fortes oscilações entre o protecionismo e o livre comércio e nunca converteu a política de comércio exterior em bandeira partidária. A percepção macroeconômica, ou seja, a consciência de que a política de comércio exterior condiciona as estruturas econômicas – mantendo-as arcaicas, primárias, agrícolas, ou desencadeando a modernização industrial – ocorreu cedo no Brasil, nos anos 1840. À essa época, uma forte reação diante do regime de baixas tarifas fixadas à época da independência, sob pressão do imperialismo das portas abertas com que a Grã-Bretanha e outros países capitalistas impuseram o livre comércio para fora, fez aflorar no Brasil, uma vez por todas, o pensamento protecionista, segundo o qual ao Estado convinha tanto fomentar a expansão da economia agrícola quanto fazer desabrochar as indústrias.

Desde a tarifa protetora de 1844, as oscilações entre o livre comércio e o protecionismo fariam o regime aduaneiro do Brasil alternar no curto prazo entre o protecionismo, por vezes exacerbado, e o livre comércio que era reivindicado pelos interesses da agroexportação. A própria República Velha (1889-1930), considerada coesa na

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implementação da "diplomacia da agroexportação" conheceu essas oscilações. A tarifa Rui Barbosa de 1890, de caráter fortemente protecionista para acabar com o exclusivismo agrícola da economia, foi sucessivamente modificada pelo Congresso e acabou sendo substituída em 1896 pela tarifa Rodrigues Alves. Esta, por sua vez, seria substituída no ano seguinte pela tarifa Bernardino de Campos, que significou um recuo do protecionismo. Uma certa ordem na política de comércio exterior adviria com a lei aduaneira de 22 de novembro de 1899 (Tarifa Joaquim Murtinho) que se prolongaria até os anos trinta do século XX com pequenas alterações. Introduzia-se a tarifa dupla, mínima e máxima, que permitia ao Executivo taxar fortemente as importações de países que não favorecessem a entrada dos produtos brasileiros. Os Estados Unidos beneficiaram-se enormemente com esse mecanismo porquanto o café lá entrava livre de direitos, ao passo que a Europa teve que negociar novos convênios (França, Itália) para obter as tarifas mínimas. Mas a redução negociada com Europa foi pequena e, por essa razão, ceder-se-iam preferências para entrada de produtos norte-americanos nos portos do Brasil e um novo tratado em 1923, após a promulgação nos Estados Unidos da Emergency Tariff de 1922, até então uma das mais protecionistas dentre as suas leis aduaneiras. Em 1923, todos os produtos estrangeiros ficaram em pé de igualdade, sujeitos à tarifa mínima, enquanto se buscavam tratados de reciprocidade, com a cláusula de nação mais favorecida1.

A ascensão de Getúlio Vargas ao poder após o triunfo da Revolução de 1930 representou novo momento para o país. Externamente, a crise dos preços e a depressão capitalista representavam desafios novos para os formuladores de política comercial e, internamente, a determinação de promover como opção política o crescimento das indústrias resultou de percepções de interesses da sociedade. Era indispensável relançar o comércio exterior para alcançar resultados de modernização interna, daí o cuidado e a preocupação que o governo revelou a seu respeito.

O decreto de 8 de setembro de 1931 pôs termo à lei de 1900, introduzindo novo regime tarifário. Todas as nações eram convidadas a firmar acordos com cláusula de nação mais favorecida e dispositivos práticos para regular o comércio bilateral. Universalismo e bilateralismo eram, portanto, pragmaticamente vinculados na nova política de comércio exterior. Entre 1931 e 1933, 31 acordos dessa natureza foram firmados com diferentes países e outros mais o seriam até que, em dezembro de 1935, todos os acordos com cláusula ilimitada de nação mais favorecida foram denunciados de uma só vez. Em maio de 1936, em sua mensagem ao Congresso, Vargas forneceu as razões para a ruptura e a necessidade de nova política de comércio exterior: os acordos anteriores haviam cessado de produzir os efeitos esperados, porque poderosos óbices foram introduzidos, que neutralizavam seus efeitos, tais como tarifas proibitivas, contingenciamento de importações, exigência de compensações, não-pagamento.

A disposição, a partir de 1935, quando se rompeu com o caráter universalista, era a de não mais ostentar uma política de comércio exterior, ao menos ela deixaria de ser referida no discurso do governo. Com senso realista e pragmático, o governo agia e reagia ante as circunstâncias e as tendências do comércio internacional. Essa flexibilidade convinha para evitar pressões sobretudo norte-americanas e para poder manobrar entre os blocos antagônicos que dividiam o mundo no pré-guerra. Aos Estados Unidos Vargas cederia em 1935 um tratado liberal, com cláusula de nação mais favorecida, levantando protestos generalizados da opinião que o considerava prejudicial à expansão da indústria e lesivo ao interesse nacional. A resposta a esse clamor viria em 1936, por meio do tratado com a Alemanha, e de outro com o da Itália, chamados de comércio compensado, porquanto intercambiavam produtos que eram solicitados de lado a lado e incluídos em listas flexíveis e compensáveis. Por essa via, os interesses tanto da agroexportação quanto da burguesia urbana nacional eram atendidos, além de estarem os militares satisfeitos com o fornecimento de equipamentos para as Forças Armadas. O comércio compensado, bilateral e antiliberal, revelou excelente desempenho, porquanto elevou a Alemanha em 1938 à posição de primeiro fornecedor externo do país. O descontentamento dos exportadores norte-americanos traduziu-se em pressões diplomáticas que seriam convertidas por Vargas em poder de barganha para negociação

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de vantagens concretas e compartilhadas, já no contexto de preparação para a guerra mundial. Essas circunstâncias permitiram ao país excelentes resultados junto aos Estados Unidos em termos de créditos para exportações, condições especiais de entrada e financiamentos para a indústria nacional, de que foi maior exemplo a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda.

A lição que se pôde auferir dos conturbados anos trinta e do contexto de guerra para implementar uma política de comércio exterior destinada a estimular os negócios, a buscar o equilíbrio das contas externas e a promover mudanças estruturais na economia nacional rumo à industrialização era a de que não convinha uma diretriz permanente mas sim operar em jogo escondido. Bilateralismo, liberalismo e universalismo caíram no descrédito. Como afirmava Vargas em mensagem ao Congresso Nacional, ante as práticas dos outros só era possível ao país "manter constante atividade e vigilância" caso pretendesse "defender os interesses nacionais". O pragmatismo dos meios sobrepunha-se ao conselho dos princípios 2.

O governo de Gaspar Dutra, entre 1945 e 1950, revelaria mais uma vez que a opção por uma determinada doutrina não convém à condução da política de comércio exterior. Determinado inicialmente a apoiar as concepções norte-americanas de uma ordem econômica internacional fundada nos parâmetros do liberalismo universal e ilimitado – do comércio internacional, dos capitais, das empresas e das finanças – prestou a esse país um apoio valioso em razão de importante papel que a contribuição de guerra ao lado dos aliados lhe facultou na criação dos órgãos internacionais – ONU e sistema de Bretton Woods. A crença de que o liberalismo atrairia investimentos moldou também os regimes tarifário e cambial. A ilusão fez-se perceber logo. Em 1947, implantava-se um sistema de controle de importações para fazer face ao déficit do comércio exterior e a ele agregava-se, em 1949, novo regime de câmbio com licença prévia. Foi, portanto, o próprio governo Dutra que criou os mecanismos que seriam utilizados pelos governos posteriores para acionar o Nacional-desenvolvimentismo consoante o modelo de substituição de importações. A política de comércio exterior tornava-se assim mais introspectiva e autônoma, apesar da conclusão de acordos bilaterais de comércio com inúmeros países. O controle do câmbio e o regime de licenças para as importações condicionavam os dispositivos dos tratados bilaterais3.

O retorno de Vargas ao poder em 1951 significava uma injeção de nacionalismo econômico na política exterior. A conjuntura não lhe era favorável, estando o parceiro principal, os Estados Unidos, sob orientação dos governos Truman e Eisenhover. Para estes, e para os órgãos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, a intervenção do Estado no controle do comércio e das finanças era nociva, a não ser que se fizesse para sanear as finanças públicas por medidas de ortodoxia liberal e para desobstruir os fluxos econômicos com o exterior mediante a adoção dos cânones do mercado. Vargas revidava com o discurso dos egoísmos dos grandes, da competição econômica e das necessidades do desenvolvimento. Embora não estivesse disposto a fazer concessões gratuitas, seu nacionalismo não podia ser qualificado de confrontacionista. Ao contrário, buscava por todos os modos a cooperação para o desenvolvimento, sobretudo com o parceiro principal, os Estados Unidos, cedendo o quanto convinha em termos de abertura de mercado, de facilidades para investimentos e para remessa de lucros. Segundo a palavra de seu Ministro das Relações Exteriores, a época caracteriza-se pela "elevação da idéia de defesa econômica em fator central da política exterior dos povos"; e o significado desse diagnóstico para o Brasil era claro: "nossa política exterior não perde de vista o aparelhamento econômico e industrial do país"4.

Em 1957, discursando na XII Sessão Ordinária da Assembléia Geral da ONU, Oswaldo Aranha expressava nesse foro pela primeira vez uma nova tendência do pensamento diplomático brasileiro, destinada a desenvolver-se posteriormente. Deixava clara a percepção dos brasileiros de como os Estados Unidos no pós-guerra haviam negligenciado a América Latina, investindo esforços e capitais na reconstrução da Europa, um empreendimento aliás bem sucedido. Reconhecia que a América Latina

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frustrou-se igualmente ao apoiar em Bretton Woods a criação das agências de fomento: o BIRD cumpria apenas a tarefa da reconstrução e ignorava a do desenvolvimento dos povos, sua segunda razão de ser; o FMI desviara-se de seu objetivo original que era dirimir as dificuldades de balanços de pagamentos. Aranha conclamava as Nações Unidas a empreenderem "uma participação mais ativa no encaminhamento da solução dos problemas de desenvolvimento econômico". Introduzia, pois, a visão Norte-Sul dos problemas internacionais em plena vigência da política norte-americana do containment e da massive retaliation. Acreditava corresponder a todo pensamento latino-americano essa nova visão do mundo, mas traduzia sua fé nos organismos internacionais e no multilateralismo como agentes e método indutores de mudanças: "Não somos, porém, um bloco e nem queremos ser. As Repúblicas Americanas não se guiam por aspirações puramente continentais"5.

O pensamento multilateralista brasileiro reagiu à criação do Mercado Comum Europeu, denunciando seus prejuízos ao país em termos de comércio e investimentos tanto na Assembléia Geral da ONU quanto junto ao GATT. A associação do bloco à economia dos territórios coloniais era vista como nova versão do imperialismo, origem de "novas distorções permanentes nas relações econômicas internacionais" nas palavras do delegado brasileiro, José Joffily, à Assembléia da ONU de 1958. Junto ao GATT, a representação brasileira protestou com veemência contra as discriminações tarifárias e não-tarifárias de que seriam vítimas os países da América Latina, alardeando o atentado que se cometia contra os princípios originais do órgão de liberalização e de promoção da competitividade do comércio internacional6.

Embora não fosse uma reação direta à integração européia e europeu-colonial, que eram vistas como uma ameaça para as exportações brasileiras, a Operação Pan-Americana encaminhada pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1958 orientava a política exterior do Brasil para a América Latina mediante um programa de esforços integrados de todo o continente para realização de projetos de desenvolvimento. Era o início do multilateralismo regional. Na realidade, essa orientação da política exterior era compreendida no contexto de inúmeros fatores: a decepção pela negligência dos Estados Unidos com a América Latina estava a reclamar uma tomada de consciência e uma nova atitude; o reordenamento das relações internacionais para enfrentar os problemas do atraso e do desenvolvimento dos povos impunha-se como oportuno na percepção dos brasileiros, após a reconstrução européia e a estabilização política internacional; a criação de uma união aduaneira na Europa e desta com suas colônias reclamava a união das Américas; o pensamento cepalino e o desenvolvimentismo dinâmico do Brasil estavam a exigir volume crescente de cooperação internacional. Entende-se, pois, o pensamento do ideólogo da OPA, Embaixador Augusto Frederico Schmidt: "A Operação Pan-Americana visa a reforçar o conteúdo econômico do Pan-Americanismo, mediante a adoção de um conjunto de medidas enérgicas e coordenadas, suscetíveis de remover os obstáculos ao desenvolvimento dos países da América Latina, cujas economias necessitam de vigoroso impulso para que ultrapassem o estado de atraso em que se encontram e ingressem numa era de industrialização, aproveitamento máximo dos recursos naturais e ativo intercâmbio"7.

1.2. As experiências de integração entre 1960 e 1986. CEPAL, ALALC, ALADI

Julgou-se muitas vezes que o modelo cepalino de substituição de importações teria sido responsável pelo malogro do multilateralismo continental, especialmente o da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC), criada em 1960. Uma revisão recente do legado conceitual da CEPAL lança dúvidas sobre essa interpretação, visto que a prática daquele modelo correspondia a uma racionalização do processo de proteção e expansão industrial sem conflito aberto com a negociação comercial ou com a integração regional. Tampouco pode-se afirmar categoricamente que o modelo substitutivo respondia ao exacerbado protecionismo latino-americano que o precedeu, porque sua filosofia era a de promover mudanças estruturais na economia da região, uma necessidade histórica que o processo de integração recente contempla, quando põe ênfase na competitividade e na apropriação de tecnologias avançadas. De todo modo, percebe-se que o discurso liberal

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inerente ao pensamento latino-americano não apresentava e não mais apresentaria, dos anos cinqüenta aos oitenta, coerência com políticas comerciais que eram marcadamente protecionistas8.

Os anseios de integração regional foram inicialmente tomados por utópicos pela diplomacia brasileira. Em documento de 1964, Vasco Leitão da Cunha, Ministro das Relações Exteriores, afirmava claramente que a integração estava condicionada à construção de meios de comunicação regional, como vias rodoviárias, fluviais, marítimas e aéreas. Apesar disso, o discurso diplomático prosseguiria nos anos a seguir dando apoio explícito à ALALC. Mas era incoerente ao reconhecer seu bom funcionamento e ao mesmo tempo afirmar que a integração haveria de se fazer de forma gradual, criando-se previamente condições físicas adequadas9. O amadurecimento dessa última percepção levaria as diplomacias dos países da Bacia do Prata a firmar em 1969 o Tratado da Bacia do Prata, destinado a "promover o desenvolvimento harmônico e a integração física da Bacia do Prata e de suas áreas de influência"10. A iniciativa produziria resultados concretos, visto que 180 resoluções haviam sido aprovadas pelos chanceleres até 1981, mas não foi em seu seio que teve equacionamento o contencioso acerca do aproveitamento dos rios da região.

Nas décadas de sessenta e setenta, a diplomacia brasileira empenhou-se no sentido, não de modificar o modelo substitutivo de importações mas no de provocar o modelo complementar, o substitutivo de exportações. Com efeito, o vasto parque industrial já implantado no Brasil havia cumprido com sua função original e pressionava por mercados externos de manufaturados. Os países avançados cerceavam a realização desse objetivo mediante os contingenciamentos que se tornaram regra na Europa e nos Estados Unidos. Por esta razão, a diplomacia brasileira reviu sua política africana e buscou penetrar o mercado da África através dos novos Estados independentes. Quanto à América Latina, tentou converter a ALALC em via de escoamento desses manufaturados à região. Em 1971, pela segunda vez em dez anos de ALALC, o Embaixador Maury Gurgel Valente reivindicava em sessão do Comitê Executivo Permanente preferência na zona para os produtos industrializados do Brasil, sem qualquer êxito11. A ALALC caía em descrédito e o termo integração passaria a ter uma conotação mais política que comercial, aliás passaria freqüentemente a expressar toda e qualquer iniciativa em andamento na América Latina – diplomática, política, estratégica, econômica, cultural etc. – o que evidenciava a desqualificação do conceito. O declínio do termo e do conceito integração ocorreria na linguagem diplomática brasileira em tendência contrária à ascensão e valoração do termo cooperação, que abrigava tanto o desempenho do multilateralismo, considerado sofrível, quanto do bilateralismo, crescentemente promissor.

No início dos anos oitenta, a percepção de que a América Latina era pouco relevante para a estratégia de inserção internacional do país consoante o paradigma do Nacional-desenvolvimentismo direcionava o discurso diplomático para a esfera vazia do entendimento e para parcas oportunidades concretas de negócios relevantes. Com efeito, as três fases a galgar para atingir um desenvolvimento pleno requeriam da política exterior o preenchimento de requisitos e o fornecimento de insumos que não eram encontrados nos esquemas de relações regionais: consolidar e dar sustento ao parque industrial; prover a economia de matérias-primas básicas, mormente energia; e adquirir e desenvolver tecnologias avançadas. O mercado dos países da região, protegido pelas políticas substitutivas, via com suspeita as preferências procuradas pelo Brasil que queria substituir como fornecedor aos países industrializados. Bolívia e Colômbia não davam andamento aos projetos de cooperação na área energética e de mineração. A Argentina procurava obstruir essa cooperação substantiva e alimentava a querela acerca do aproveitamento dos rios. Apenas o Paraguai dava garantias à execução de um projeto importante, a hidrelétrica de Itaipu. Nessas condições, a diplomacia buscava manter as aparências de uma região unida: "Estimular o diálogo entre os nossos vizinhos...levar adiante os ideais de cooperação regional", eram expressões que reproduziam um discurso sem conteúdo, a menos que preparasse uma fase de efetiva cooperação regional12.

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1.3. A pregação do multilateralismo: GATT, ONU, GRUPO dos 77 e outros

Enquanto conformava-se com o malogro do multilateralismo regional, durante três décadas, entre 1960 e 1990, a diplomacia brasileira veiculou insistente discurso multilateralista no sistema ONU, incluindo a UNCTAD, no Grupo dos 77, no GATT e em outros organismos internacionais13. Os impulsos que alimentavam a pregação multilateralista e liberal da diplomacia eram: a) a convicção de que a expansão das exportações era elemento estratégico para acelerar o desenvolvimento; b) a constatação de que os países avançados erigiam crescentes obstáculos à penetração dos produtos primários e manufaturados oriundos do Terceiro Mundo; c) a reivindicação de tratamento preferencial sem contrapartida a ser dado às economias em desenvolvimento pelos países do Primeiro Mundo; d) a condição de global trader que era ostentada como perfil do comércio exterior que convinha ao país. A todos esses impulsos assistia por um certo tempo uma ingênua visão de ordem internacional a ser construída pela ação dos órgãos multilaterais e posta a serviço do desenvolvimento dos povos atrasados. Essa pregação passou nesse período pelas fases de entusiasmo, ceticismo e descrença com que a diplomacia se movimentava nos órgãos multilaterais, porém sem nunca desistir ou arredar pé. Com efeito, a presença brasileira nesses órgãos situava o país entre os quatro ou cinco países de maior representação.

A perversidade do sistema internacional era denunciada em razão da inoperância de resoluções aprovadas com o fim de promover o desenvolvimento, em razão da articulação dos países avançados para neutralizar os ganhos concedidos através do sistema geral de preferência e da autorização de proteger indústrias nascentes no Terceiro Mundo, em razão das políticas nacionais de comércio exterior que revidavam às reivindicações dos países menos desenvolvidos, em razão enfim da conduta de órgãos como GATT, FMI, BIRD que contemplavam via de regra apenas os interesses dos países centrais. Tudo isso levaria a minar, enfim, a fé no multilateralismo como via de promoção dos interesses do desenvolvimento nacional, como reconhecia o Presidente João Figueiredo ao abrir a XXXVII sessão ordinária da ONU em 1982: "Têm sido infrutíferos os esforços do Terceiro Mundo no sentido de modificar – em instituições como o FMI, o Banco Mundial e o GATT, entre outras – quadros normativos, estruturas de decisão e regras operacionais discriminatórias"14.

A percepção de que o sistema internacional obedecia a regras adversas ao mundo em desenvolvimento converteu-se desde os anos sessenta em determinação de buscar a articulação tanto com o Terceiro Mundo quanto com o Primeiro e de engendrar as negociações Norte-Sul com o objetivo de modificar a ordem vigente. Em meados dos anos oitenta, o balanço desses esforços produzia como resultado concreto a perda de credibilidade no multilateralismo como instrumento eficaz para reformar a ordem existente: "Sucedem – afirmava o Chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro em 1984 – os episódios de resistências por parte de países desenvolvidos à ação concertada, lembre-se da falta de resultados de Cancún, a obstrução ao lançamento das Negociações Globais, o fracasso da última reunião da UNCTAD, o descumprimento dos princípios e compromissos do GATT"15. Essa crítica generalizada persistiria como elemento central do discurso diplomático brasileiro até o fim da década dos oitenta: "A chamada crise do multilateralismo compromete o esforço de regulamentação jurídica da vida internacional e abala os alicerces da cooperação entre os Estados"16.

1.4. A diplomacia e o MERCOSUL, das origens ao Tratado de 1991

Conduzida pelo paradigma do Nacional-desenvolvimentismo e pelo pragmatismo de meios, a política exterior do Brasil não haveria de acalmar-se com as lamentações acerca do funcionamento adverso da ordem internacional e do malogro geral do multilateralismo e com a constatação de que o esforço de integração latino-americana tampouco produzia resultados. Novas oportunidades eram procuradas, e inventadas se necessário. Os presidentes da Argentina, Raúl Alfonsín, e do Brasil, José Sarney, aproveitando-se do bom entendimento em que se assentavam as relações bilaterais, desencadeariam em meados

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dos anos oitenta, como reação construtiva ao sistema internacional e como resposta de suas políticas exteriores, uma nova modalidade de integração regional.

Embora o Itamaraty fizesse uso do termo integração para qualificar as ações desenvolvidas no seio de órgãos regionais como a ALADI, o SELA, a OLADE, o Consenso de Cartagena17, o movimento de sua diplomacia junto aos países do Cone Sul destinava-se a inaugurar uma experiência diferente de integração, dadas as causalidades que a haviam inspirado: "No Brasil – dizia o Chanceler Abreu Sodré em 1986 – estamos firmemente, irreversivelmente comprometidos com a causa da integração econômica da América Latina. Há muito que essa integração tem sido exigida, mas nunca antes como agora criaram-se as condições adequadas para o surgimento de uma autêntica vontade política para aprofundá-la"18.

Com efeito, esse novo processo era claramente visto como uma saída para o impasse do multilateralismo e das tentativas anteriores de integração latino-americanas. Brasil e Argentina dispunham-se a elevar substancialmente o volume do comércio, a deslanchar a cooperação econômica, mormente a complementação industrial, e a desenvolver conjuntamente tecnologias em setores estratégicos da economia19. Ao inaugurar essa nova experiência, impunha-se a necessidade de evitar o discurso sonhador e de firmar o realismo da ação. O Comunicado Conjunto das chancelarias do Brasil e da Argentina evidenciava a 21 de julho de 1986 o caráter cauteloso e firme que haveria de condicionar os passos deste novo processo de integração: crescimento econômico dos dois; comércio dinâmico e equilibrado; ampla cooperação cultural, científica e tecnológica; gradualismo e flexibilidade dos mecanismos para haver adaptação do sistema produtivo; preferências aos produtores industriais e agrícolas da região; realismo das propostas para evitar a letra morta dos atos; aperfeiçoamento da infra-estrutura física requerida pela integração; função reguladora e jurídica do Estado conjugada com função dinâmica do empresariado; integração empresarial com base no mercado ampliado20.

A Ata para Integração Brasileiro-Argentina juntamente com os 12 protocolos firmados a 29 de julho de 1986 pelos chanceleres Abreu Sodré e Dante Caputo definiram a filosofia da nova integração. O processo guiar-se-ia por três diretrizes básicas: a) enquadramento com o pensamento nacional-desenvolvimentista que havia animado as políticas exteriores dos dois países nas últimas décadas e que desde aquele momento acoplavam-se para robustecer-se; b) evolução gradual e flexível, com atos e mecanismos a serem extraídos de forma seletiva de um conjunto de decisões estratégicas que comporiam o permanente processo negociador; c) expansão em leque pela América Latina, desde o eixo original Brasil-Argentina21.

O sucesso que originalmente se vislumbrava para a iniciativa de integração no Cone Sul, a ser interpretada como reação concreta diante da existência de obstáculos na ordem internacional, não modificou as diretrizes da política exterior do Brasil até o fim dos anos oitenta. Cinco pontos norteavam a conduta diplomática às vésperas da virada liberal dos anos noventa, pontos estes que correspondiam ao acumulado das últimas décadas: a) o desempenho universalista que impedia se priorizassem regiões ou conceitos na escolha dos objetivos a serem alcançados; b) a apresentação de propostas circunstanciais para robustecer o multilateralismo e revigorar seus órgãos quando definhavam; c) a subordinação das iniciativas multilaterais e bilaterais externas ao propósito de preencher requisitos de desenvolvimento; d) a eleição do desenvolvimento tecnológico avançado como terceira etapa do desenvolvimento, após a consolidação do parque industrial e da infra-estrutura produtiva; e) o enquadramento do incipiente processo de integração da América Latina na política brasileira do Nacional-desenvolvimentismo pela via da ampliação do mercado, da participação crescente da região no exterior e de seu fortalecimento nos foros multilaterais22.

 

2. Globalização e regionalização nos anos noventa

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Os anos noventa presenciaram uma radical transformação do pensamento diplomático brasileiro aplicado às relações econômicas internacionais do Brasil. Essa mudança não produziu, todavia, um consenso linear ao longo da década. Alguns traços caracterizam o novo período em seu conjunto, mas a evolução não se faria sem repercussões sobre a sociedade e sem que suas forças acabassem por reagir. Três tempos curtos marcam o período. Durante o governo de Fernando Collor de Mello, entre 1990 e 1992, procedeu-se à demolição instantânea dos conceitos que haviam alimentado há décadas os impulsos da diplomacia: o Nacional-desenvolvimentismo e sua carga política e ideológica cederam à vontade de abrir a economia e o mercado de forma irracional e reativa à onda de globalização e neoliberalismo que penetravam de fora. Ao substituí-lo na Presidência, Itamar Franco recuou momentaneamente aos parâmetros anteriores do Estado desenvolvimenista, sem contudo bloquear a consciência da necessidade de se prosseguir com as adaptações aos novos tempos. A ascensão à Presidência da República de Fernando Henrique Cardoso, em 1995, levou à reposição das disposições ideológicas e políticas do primeiro Fernando no seio do Estado, vale dizer ao desprezo pelo projeto nacional de desenvolvimento e à resignação diante da nova divisão do trabalho inerente à forma globalizante do capitalismo, mas seu estilo de diplomacia democrática daria alento a pressões que vinham de segmentos sociais e que acabaram por condicionar o pensamento e o processo decisório.

2.1 – Liberalismo multilateralista radical: a abertura reativa

O pensamento que confrontou o Nacional-desenvolvimentismo desde os primeiros dias do governo de Fernando Collor foi o da modernização. Esse pensamento surgiu no embate da campanha eleitoral para as eleições presidenciais do final de 1989, porquanto seu opositor ainda alardeava os parâmetros do discurso anterior, e tomou conta do Estado e da sociedade após a vitória nas urnas. De tipo triunfalista e mágico, o discurso da modernização alimentou a expectativa de um salto para frente em termos de qualificação nacional e de inserção internacional "correta e definitiva", uma espécie de "fuga da periferia"23. O governo circunscreveu sua doutrina de modernização apenas à implementação prática de duas decisões: a simples abertura de mercado – que agradava a uma classe média consumista – e à privatização de empresas públicas – que interessava a portadores de títulos da dívida interna.

O diagnóstico das dificuldades que a ordem internacional em construção após o término da Guerra Fria oferecia à abertura da economia brasileira fundava-se em percepções novas mas também em obstáculos tradicionalmente denunciados: o protecionismo dos ricos e o egoísmo dos megablocos econômicos convertidos em "fortalezas comerciais", a fraqueza do multilateralismo, a retirada da cooperação para o desenvolvimento da agenda internacional. O discurso liberal-modernizador do início dos anos noventa mergulhava na ideologia dependentista: pela via da abertura comercial e econômica, a promoção do desenvolvimento interno era confiada ao estrangeiro que, mediante a transferência de tecnologias e de recursos, elevaria a competitividade do sistema produtivo nacional ao tempo em que o desnacionalizava24.

Ao proceder ao balanço de sua gestão, a 13 de abril de 1992, na cerimônia de transmissão do cargo a Celso Lafer, o Chanceler Francisco Rezek reivindicava do exterior o que se praticava no Brasil: "A liberalização do comércio, a abertura da economia e o programa de privatização apoiaram nosso combate às tendências anacrônicas de protecionismo e discriminação e nossa luta por regras que disciplinem o intercâmbio internacional de bens e serviços. Fortaleceram, também, nosso projeto de integração regional que integra mercados sem discriminar contra terceiros."25. Os dois chanceleres de Fernando Collor, eminentes intelectuais e analistas das relações internacionais, não permitiram a simplificação do pensamento diplomático que certamente agradava ao Presidente. Lafer alude à complexidade do Brasil para indicar a gama de interesses que a política exterior haveria de veicular de forma pragmática, operando entre o multilateralismo e a integração: "O Brasil é um país amplo e complexo. Por isso ele tem interesses globais. Nós não queremos adesões excludentes, mas evidentemente nós

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temos prioridades, e aqui o conceito com o qual estamos trabalhando é o de parcerias operacionais"26.

A integração, uma liberalização de âmbito regional, é percebida como exercício suplementar ao esforço de liberalização no âmbito global com vistas a estimular o comércio internacional. São todavia as dificuldades e a lentidão do multilateralismo em eliminar entraves ao comércio que induzem uma distorção nos processos de integração com a formação indiscriminada de blocos regionais fechados27. Segundo Celso Lafer, o que convém ao Brasil é o triunfo do multilateralismo sobre qualquer outra prática de comércio internacional e todo esforço deve tender à realização desse objetivo. Embora fossem importantes os intercâmbios com Estados Unidos, União Européia e Japão, os três pólos dinâmicos da economia mundial, bem como os intercâmbios crescentes no seio do MERCOSUL, o perfil de global trader do Brasil não aconselha concentrar suas relações com um determinado parceiro, como ocorre com México e Canadá no seio do NAFTA. O ideal são parcerias estratégicas operativas, porém múltiplas, enquanto se aguarda o triunfo do multilateralismo universal. Em particular, o processo de integração do Cone Sul, aberto e complementar, deve evitar os riscos de exclusivismos que o NAFTA impôs aos parceiros dos Estados Unidos28.

2.2 – O recuo desenvolvimentista de Itamar Franco

A reconquista do discurso desenvolvimentista pelo presidente Itamar Franco (fins de 1992 a fins de 1994) trouxe novamente a público o pensamento precursor do processo de integração do Cone Sul, aquele que o subordinava não em primeiro lugar à criação do mercado ampliado mas ao apoio logístico aos sistemas produtivos nacionais num esforço de desenvolvimento sustentado. Essa nuance de pensamento tendia à introspecção na concepção da integração e, para compensar essa introspecção, o Presidente estimulava a articulação do MERCOSUL com o Chile e a Bolívia, com o Pacto Andino e com os países que integravam a Cooperação Amazônica. Propôs, no âmbito de negociação da ALADI, a criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), com o intuito de reforçar a integração regional e de controlar seus mecanismos, subordinando-os ao projeto de desenvolvimento associado sul-americano29.

Se o pensamento desenvolvimentista de Itamar afinava-se com seu segundo Chanceler, Celso Amorim, não era claro que houvesse seduzido o primeiro, Fernando Henrique Cardoso, que ocupou a pasta entre 5 de outubro de 1992 e 21 de maio de 1993. Pensador sistêmico e autônomo, de trânsito fácil entre doutrinas antagônicas em nome das circunstâncias, o futuro Presidente da República conformava-se, enquanto Chanceler, com enunciar princípios de política econômica e comercial tradicionalmente aplicados às relações internacionais do país. Punha ênfase no caráter de global trader para situar o MERCOSUL como alternativa de grande utilidade, porém diluída numa estratégia conservadora de comércio exterior que resumia em quatro pontos: a) abertura de novas frentes de comércio; b) busca de maior liberalização dos fluxos comerciais e de maior acesso aos mercados internacionais; c) explorar nichos de oportunidades comerciais junto aos centros dinâmicos do Norte; d) consolidar a projeção das exportações nos mercados regionais e nos países em desenvolvimento30.

Os conceitos que acabam por prevalecer no Itamaraty durante o governo de Itamar são os de um multilateralismo ortodoxo e de uma integração inevitável. A menção à integração costumava vir acompanhada de algum atributo restritivo que denotava graus variados de impropriedade. "Os esforços de cooperação política e econômica do Brasil – afirma Amorim – não se esgotam na América Latina. De vocação universal, nossa diplomacia tem se empenhado em consolidar e aprofundar os laços que nos unem a países amigos em todos os quadrantes do globo, assim como em desenvolver novas e importantes parcerias políticas e comerciais". Para evitar precisamente de ter que manifestar repugnância pelo processo de integração do Cone Sul, a diplomacia lançará o conceito de regionalismo aberto. Nele situam-se as iniciativas de alargamento do MERCOSUL aos países da América do Sul no âmbito da formação da ALCSA até o ano 2005. Assim mesmo, "o regionalismo aberto deve ser visto como um complemento, não

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como uma alternativa ao multilateralismo". MERCOSUL e ALCSA são compatíveis com os princípios e propósitos da OMC, ou seja, com o desejado multilateralismo de "regras estáveis e justas", governando um mercado aberto universal31.

A criação de uma área de livre comércio hemisférica (ALCA) é decidida na Cúpula das Américas de Miami, em dezembro de 1994. O pensamento diplomático brasileiro de então reagia com prudência e aversão à idéia, porque parecia, por um lado, poder engolir a autonomia da política nacional de desenvolvimento que se cuidava de implementar no contexto do MERCOSUL e da ALCSA e, por outro, inibir o conveniente multilateralismo ao fomentar a dependência econômica e a parceria comercial exclusiva vis-à-vis dos Estados Unidos. Era preciso avançar gradual e lentamente, para dar tempo às adaptações da economia nacional e do regionalismo aberto: "A área de livre comércio hemisférica – dizia na ocasião Itamar Franco – se construirá com base na convergência e aproximação dos atuais esquemas de integração sub-regional, cuja importância todos reconhecemos. Serão negociações complexas, com enfoque gradualista. Dentro do espírito de regionalismo aberto que nos inspira, atuaremos com plena observância dos compromissos assumidos multilateralmente e sem que se criem barreiras aos parceiros de outras regiões. Favorecemos o reforço de um sistema multilateral de comércio baseado em regras universalmente aplicáveis"32. Por isso mesmo, negociava-se paralelamente, nesse final de 1994, a aproximação entre MERCOSUL e União Européia, que se faria mediante um acordo-quadro de cooperação que previa no futuro uma zona de livre comércio entre os dois agrupamentos regionais.

2.3 – Adaptação ao capitalismo global e abandono do projeto nacional; pressão social e diplomacia de consenso

Estando na Presidência da República Fernando Henrique Cardoso e na Chancelaria Luiz Felipe Lampreia desde o início de 1995, o pensamento brasileiro seria conduzido ao mais avançado estádio de adaptação às tendências da ordem internacional dos anos noventa. O país não era mais visto pelos dirigentes brasileiros como um país em desenvolvimento, vale dizer, a política exterior abandonava definitivamente o desígnio de preencher requisitos de desenvolvimento interno que lhe fora consignado nos anos trinta e mantido invariavelmente como vetor nas décadas seguintes. O país não tinha nem deveria ter um projeto nacional. A adaptação à era da globalização significava para a inteligência de cúpula da diplomacia brasileira a aceitação de uma situação de interdependência que o capitalismo traçava a partir de seu centro dinâmico e a busca de alguma compensação em recompensa. A abertura do mercado seria cedida sem barganha, as privatizações seriam implementadas sem cuidar do reforço da economia nacional, o sistema financeiro seria posto a serviço de um plano de estabilização monetária, o indivídio seria entregue à própria sorte. Embora essas avaliações críticas ao novo modelo sócio-político fossem feitas, o governo as tinha por desprezíveis. "Brasil e Estados Unidos – assim expressava Fernando Henrique Cardoso suas convicções – partilham os mesmos valores democráticos e os mesmos princípios da economia de mercado. Não como valores abstratos ou fins em si mesmos, mas antes como o melhor caminho para promover o bem-estar e a prosperidade de seus cidadãos"33.

As críticas eram tímidas em 1995-96, estando a oposição política sem condições de influir sobre uma opinião pública favorável ao governo, em razão de benefícios da estabilização monetária e econômica que advinham para a população. Contudo, lideranças sociais e políticas, dirigentes de órgãos e associações de classe, ainda imbuídos do senso nacional que impregnara um combate de décadas pela defesa dos interesses nacionais, lançavam dúvidas sobre as novas concepções de inserção internacional e não se deixavam deprimir com a acusação de saudosistas de esquerda que lhes endereçava o governo. Indícios de desequilíbrios forneciam argumentos crescentes a essas críticas. O comércio exterior revertia a tendência brasileira de grandes superávits e tornava-se deficitário; o país se endividava de forma assustadora; a indústria nacional perdia parte substantiva do mercado interno; o desemprego estrutural aparecia como uma ameaça no horizonte. Diante desses efeitos do novo modelo de inserção neoliberal no mundo – um novo paradigma liberal-global em construção – as pressões sociais tinham que ser ouvidas.

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O impulso oriundo da base social harmonizou-se com a disposição congênita ao governo de Fernando Henrique de exercer uma diplomacia democrática. Percebia-se, talvez pela primeira vez na história do país, a conjunção entre a política exterior e a nação, passando aquela a legitimar-se não mais pelo projeto estatal do Nacional-desenvolvimentismo mas pelo reconhecimento das pressões dos diversos segmentos sociais, de modo a definir sua conduta a posteriori. Isso não significa afirmar que essa harmonia não se tenha realizado no passado, mas que ela deixara de ser iniciativa do Estado e passara a espelhar a dinâmica da própria sociedade na origem da conduta diplomática.

A doutrina simplista da globalização com suas implicações reativas sobre o processo decisório – o que era caro ao governo – foi depurada de seu caráter de subserviência às pressões externas na medida em que a sociedade teve condições de exercer pressão sobre as decisões. A diplomacia democrática traduzia-se em diplomacia do consenso ao impor novos condicionamentos aos conceitos que regiam o processo decisório nas esferas multilateral, bilateral, da integração e da abertura do mercado. Em certa medida, regredia-se a orientações e objetivos bem como ao método realista e pragmático de movimento que já se haviam transformado em acumulado histórico da diplomacia brasileira e que vinham sendo aperfeiçoados por força das novas circunstâncias internacionais.

O Ministro Lampreia não só reafirmava a necessidade de se diversificar os mercados externos para as exportações, evitando aprofundar em demasia o MERCOSUL e compensando este eixo com a exploração dos mercados dinâmicos do Norte, mas definia com maior clareza o conceito de regionalismo aberto que vinha sendo observado como orientação para a ALADI em seus esforços de integração latino-americana, "a partir de um esquema de múltiplos focos dinâmicos, baseados em movimentos convergentes de aproximação sub-regional que consideramos – como dizia Lampreia – uma forma de regionalismo aberto". Avaliava como experiências positivas tanto a consolidação do processo de integração do Cone Sul quanto os progressos alcançados pelo multilateralismo no seio da OMC. Ao Brasil interessava essa convivência harmoniosa do multilateralismo com a integração34.

O tipo de acordo 4+1, com que os membros do MERCOSUL procuravam estabelecer novas parcerias na América (Chile, Bolívia, Grupo Andino etc), era considerado um mecanismo adequado que tendia à criação de uma zona de livre comércio na América do Sul (ALCSA). Os horizontes estavam, todavia, mais distantes: "O processo de integração é um instrumento para participação mais ampla no mercado global...O MERCOSUL tem comprovado que a integração regional favorece a liberalização comercial global". A integração de forma cada vez mais explícita é considerada como um meio, não como o fim da política. O desígnio que convinha realizar era um multilateralismo global e aberto35.

Embora a lógica do raciocínio tendesse à expansão gradual da integração regional – do MERCOSUL via ALCSA para a ALCA – a advertência de Itamar Franco em 1994 era tida por oportuna durante o governo de Fernando Henrique. O confronto de interesses e a dificuldade de contemplá-los de parte a parte nas negociações com os Estados Unidos eram percepções que vinham dos anos setenta. As pressões sociais após a abertura econômica dos anos noventa no Brasil evidenciavam que o choque de interesses permanecia, cada lado acusando a outra parte de falta de boa vontade em conciliar interesses. Tudo aconselhava prudência, gradualismo, postergação.

Essas idéias vieram a público em fevereiro de 1996, durante a reunião dos vice-ministros de comércio exterior da ALCA que se realizou em Recife. As experiências de integração, segundo sentenciava Lampreia na ocasião, devem guiar-se pelos princípios de equilíbrio, realismo e pragmatismo. A ALCA haveria de ser produto do consenso a cada passo, não só internacional, dos governos contratantes, mas acima de tudo produto do "consenso nacional emanado de debate abrangente entre todos os setores da sociedade participante". A diplomacia do consenso, nascida do reconhecimento das pressões da sociedade organizada, configurava-se como nova doutrina a nortear as decisões de

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política de comércio exterior: "A integração não é um projeto entre governos, é um compromisso entre nações... Não é razoável, assim, esperar que o Brasil se disponha a avançar rapidamente em um novo esforço de liberalização comercial, em particular quando essa abertura envolve relações patentementes assimétricas, com parceiros que dispõem de economias bem mais desenvolvidas, sofisticadas e competitivas". A pressão social condiciona a política comercial nos anos 1996-97 e, nessas circunstâncias, a ALCA somente teria chances se repousasse sobre os agrupamentos existentes, os quais atendiam satisfatoriamente os requisitos de bem-estar popular36.

Durante a III Reunião de ministros responsáveis pelo comércio exterior das Américas, o chamado Fórum das Américas, realizado na cidade de Belo Horizonte em maio de 1997, o ministro Lampreia poria ênfase ainda maior na nova diplomacia do consenso. Fê-lo tanto em seu discurso como na organização de um fórum paralelo de representantes sociais (federações empresariais do comércio, da indústria e da agricultura, sindicatos patronais, sindicatos operários e outras entidades) que vieram evidenciar ao continente e na prática como a sociedade levava suas necessidades ao governo para subsidiar a tomada de decisões. As lideranças sociais não se opunham de princípio à abertura da economia, uma tendência portanto irreversível para todos, mas desejavam controlar os riscos e os efeitos negativos da globalização sobre a produção agrícola, a indústria, o emprego e a renda.

O Itamaraty realizava desse modo o aprimoramento de seus conceitos e dava conteúdo e sentido operativos à diplomacia democrática pela via do consenso entre Estado e nação. O debate em torno da formação de uma zona de livre comércio hemisférica fornecia a oportunidade que se esperava para a definição desses novos parâmetros de pensamento: a) o Brasil mantém um processo aberto e transparente de consulta com todos os setores sociais relevantes e o faz também ao promover a integração hemisférica; b) a ALCA só terá legitimidade se fundada em consensos nacionais de empresários, trabalhadores e consumidores e por isso sua criação deverá conformar-se aos princípios da cautela, do gradualismo e da flexibilidade, sem decisões precipitadas: c) a sociedade revela os interesses nacionais a serem preservados: "Possuímos um vigoroso parque industrial, construído com muito sacrifício e empenho dos brasileiros, e um setor agroindustrial que, sem recorrer a subsídios, honra com sua produtividade e competitividade o potencial do Brasil também como país de vocação agrícola, graças à abundância de terras para lavrar, água, sol e condições climáticas favoráveis"; d) a ALCA, como o MERCOSUL, não corresponde à finalidade da decisão política, sendo esta a participação competitiva do Brasil nos fluxos de comércio e inversões internacionais; e) não há causalidade imediata entre eficiência econômica e solução dos problemas sociais brasileiros37.

 

Conclusões

O pensamento diplomático brasileiro aplicado no século XX às variadas práticas de comércio exterior revelou percepções objetivas, enunciou conceitos e fundou opções políticas.

Percepções objetivas. Dentre as primeiras percepções da diplomacia brasileira quanto às políticas de comércio exterior dos diferentes países registra-se a constatação de que o multilateralismo do comércio internacional – aquele da cláusula de nação mais favorecida até a Segunda Guerra Mundial e das regulações do GATT depois – estabelece princípios que os governos passam rapidamente a burlar por meio de mecanismos de proteção de seus mercados, que os esterilizam. Essa era a consciência que tinha Vargas nos anos trinta, bem como a viva consciência das três últimas décadas, e a explicação para reações pragmáticas. O protecionismo latino-americano tanto deriva do modelo substitutivo de importações quanto desses condicionamentos externos. Uma segunda constatação da diplomacia brasileira é a da falta de poder de um país emergente nos foros multilaterais, o que conduziu o Brasil a uma política nacionalista introspectiva e

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depois a uma integração de precaução no MERCOSUL. Uma terceira percepção aflorou diante de três experiências malogradas e corrigidas de pronto de liberalismo radical, sem uma rationale, observadas nos governos de Dutra (1945-50), Castelo Branco (1964-67) e Fernando Collor (1990-92): experiências liberais radicais não produzem os efeitos decantados por seus doutrinários e provocam danos diversos à economia e à sociedade. Uma última constatação diz respeito ao fato de que o Brasil, como país novo, deve lutar com maiores dificuldades para abrir mercados externos, já que estes encontram-se sob domínio de economias avançadas cujos agentes lá chegaram e estabeleceram antes seus negócios. A esta visão da conjuntura histórica, acrescentou-se a de que o país, em razão de sua complexa e forte base econômica, deve lidar com o mercado global, visto que para toda parcela que o compõe tem algo a vender.

Princípios e conceitos. As percepções objetivas induzem conceitos e princípios normativos. O primeiro dentre eles é precisamente o cuidado em adotar conceitos e princípios, grandes políticas e modelos (bilateralismo, multilateralismo, livre mercado) porque eles não presidem à prática. Realismo atento e uma diplomacia de plantão impõem-se sobre as doutrinas e os modelos de política de comércio exterior. O crescimento industrial e o desenvolvimento econômico foram eleitos como vetores da política de comércio exterior do Brasil, dos anos trinta ao final dos anos oitenta. A ideologia globalizante neoliberal imiscuiu-se no governo Collor em 1990, foi contida por Itamar Franco e ressurgiu durante o governo de Cardoso, porém temperada pela conciliação entre Estado e nação, por meio de uma denominada diplomacia de consenso que levava em conta a manifestação de interesses das lideranças sociais. A nova modalidade da diplomacia de consenso representa um passo à frente nas relações entre Estado e nação, estando esta agora na origem dos impulsos políticos e não mais sendo carregada por um super-Estado protetor, como na fase anterior do Nacional-desenvolvimentismo.

Intenções e opções. Duas linhas de política comercial foram traçadas nas últimas décadas. A primeira conduzia ao protecionismo do mercado, sem contrapartida externa, para servir de suporte e fundamento a uma economia agrícola e industrial em formação. As necessidades do desenvolvimento, consoante o pensamento diplomático, assentavam a legitimidade do protecionismo do mercado, que era ostentado sem melindres diante das crítidas de liberais doutrinários antes dos anos noventa e que passou a legitimar-se, embora em novo modelo, com a diplomacia consensual na era da globalização. A segunda perspectiva da política comercial conduzia ao multilateralismo aberto do mercado mundial. Essa foi a luta travada pelo Brasil nos órgãos multilaterais que regulamentavam o comércio internacional no pós-guerra e a ela subordinou-se o entendimento acerca dos processos históricos de formação de blocos econômicos. Estes são, em princípio, nocivos às regras estáveis e justas do comércio internacional. O pragmatismo não permite, todavia, ao país furtar-se de utilizar a integração como instrumento de defesa e promoção do comércio exterior e até mesmo como via de fato de abertura gradual e flexível dos mercados, até que se realize o ideal do multilateralismo aberto em escala global.

 

Notas

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73291997000200001&script=sci_arttext

A POLÍTICA BRASILEIRA DE COMÉRCIO EXTERIOR: A ANTIGA E A NOVA ORTODOXIA - CONFRONTO ENTRE DOUTRINAS E MECANISMOS DE AÇÃO.

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 R E S U M O

 LEITE, Érico Lins. A Política Brasileira de Comércio Exterior: a antiga e a nova ortodoxia - confronto entre doutrinas e mecanismos de ação.Rio de Janeiro: UFRJ/IE, 1998. Tese de Doutorado. xxxi, 611 p., 2 v.

 

O principal objetivo desta Tese é demonstrar que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o modelo liberal de comércio, no início dos anos 90, quando rompeu com uma longa tradição regulatória e abdicou em favor do mercado à prerrogativa de promover uma política de comércio exterior.

 Até um passado recente, o Estado brasileiro manteve fortes estruturas de

formulação de política e de administração do comércio exterior, o que lhe permitiu desempenhar decisivo papel regulador para solução de diferentes crises cambiais, desde aquela provocada pela Depressão Mundial dos anos 30 até as mais recentes, nas décadas de 70 e 80.

 De fato, a política brasileira de comércio exterior nasce com a formidável

crise desencadeada pela Depressão de 30 e se desenvolve em razão de novos acontecimentos internacionais que, a partir de então, envolvem o País. À medida que nova crise se sucedia, eram instituídos mecanismos de defesa ou procedidos a ajustes nos instrumentos anteriores, fazendo com que seguidamente fosse aumentado o grau de regulação do Estado sobre a economia e, em especial, sobre as contas externas, com o que foi sendo dado forma e desenvolvimento à política comercial brasileira.

A esse longo e vigoroso período de intervenção do Estado, que objetivava

equilibrar as contas externas e fomentar a produção nacional, através dos critérios de seletividade nas importações e promoção das exportações, sucede-se, a partir de 1990, uma nova ortodoxia, baseada no liberalismo comercial, que renega a política e todos os instrumentos até então adotados.

 A estratégia de desenvolvimento fundamentada na proteção à indústria

nacional e na substituição de importações, adotada pelo Brasil ao longo de, no mínimo, cinqüenta anos, acrescida da promoção às exportações, nas décadas de 60 a 80, é integralmente abolida para dar passagem a outro modelo, sob o argumento de que a sua continuidade impediria a retomada do desenvolvimento econômico e maior inserção do País na economia mundial.

  O novo paradigma consiste em liberalizar as importações de forma a expor

a indústria brasileira à concorrência externa. A expectativa é que sejam elevados os padrões de qualidade e diminuídos os preços e, em conseqüência, o produto nacional obtenha ganhos de competitividade. Isso beneficiaria tanto a produção voltada para o mercado doméstico, que

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se tornaria mais competitiva comparativamente aos produtos de origem estrangeira, quanto a produção destinada à exportação que, inclusive, poderia prescindir de qualquer incentivo.

 

Considerando que o atual modelo apresenta formas de atuação governamental e de regulação da atividade econômica diametralmente opostas às adotadas no passado, que possibilitaram ao País enfrentar diferentes crises de balanço de pagamentos, a Tese questiona se a nova ortodoxia é suficientemente capaz de evitar ou sequer contornar novas crises cambiais ou, o que seria pior, se eleva o grau de exposição do País a repentinas mudanças na ordem econômica internacional.

 O ponto fundamental, portanto, é saber se a nova ortodoxia favorece ou,

pelo contrário, limita o desenvolvimento econômico brasileiro, tendo em vista que a liberalização das importações (e, em decorrência, o déficit na balança comercial) requer o contínuo ingresso de recursos financeiros internacionais para o equilíbrio das contas externas.

 Visando a discutir a questão, foi confrontada a política de comércio

exterior aplicada pelo Brasil desde o início do século até o final dos anos 80, período que denominamos de Antiga Ortodoxia, com a Nova Ortodoxia, que se inicia e se desenvolve na atual década.

 A memória de oitenta anos de política comercial foi recuperada através do

inventário e da análise da legislação pertinente (leis, decretos-leis, medidas provisórias, decretos, portarias, instruções, resoluções, circulares, comunicados e avisos), além de se pautar em depoimentos de pessoas que atuaram na área, em diferentes épocas, e na própria experiência do autor, como técnico da Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, nos anos 70 e 80, da Secretaria de Comércio Exterior, até o início de 1995, e como professor de economia internacional da UFRJ, desde 1978.

 A Tese destaca a importância dos organismos governamentais criados com vistas a formular, coordenar e executar a antiga política industrial e de comércio exterior; examina e põe em relevo os incentivos fiscais e creditícios utilizados para promover as exportações, assim como os subsídios concedidos ao frete, aos armadores e à indústria de construção naval; examina os instrumentos administrativos e cambiais de restrição às importações, desde a instituição do conceito de similar nacional, passando pelos leilões de câmbio, até as listas de mercadorias com guia de importação suspensa e os programas de importação.

 Além disso, são comparados os efeitos sobre o desenvolvimento da

produção nacional na vigência do antigo regime tributário das importações, em que prevaleciam tarifas aduaneiras nominais elevadas, mas dada a existência de regimes especiais de importação, as tarifas efetivas eram baixas, com o atual sistema, em que são aplicadas alíquotas reduzidas, indistintamente, à toda a pauta. Também é amplamente discutida a falta de preparo dos atuais órgãos governamentais no que concerne à aplicação de medidas de

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defesa comercial, relativamente às práticas desleais de comércio amplamente utilizadas por terceiros países, para promover suas exportações.

 A Tese estuda a abertura do Brasil ao mercado internacional de capitais e

mostra que, nos anos 90, em razão dos resultados comerciais, da maior ou menor sobrevalorização do câmbio e da variação no nível das reservas internacionais do País, foram procedidas a periódicas alterações nos instrumentos de captação recém-criados, numa incrível sucessão de idas e vindas, ora incentivando, ora impondo limites à captação, pelo País, de recursos no mercado financeiro internacional, palco, nos últimos anos, de sucessivas e repentinas transformações.

 A Tese também examina atentamente os planos de estabilização econômica

aplicados na economia brasileira, nas décadas de 80 e 90, considerando estarem fortemente relacionados ao câmbio e ao comércio exterior. Ademais, mostra que o País, desde longa data, se utiliza largamente da sobrevalorização do câmbio como instrumento de política antiinflacionária.

 Finalmente, são analisados os resultados pós-liberalização do comércio

exterior e do movimento de capitais.

 A esse respeito, releva observar que toda vez que o nível de atividade

econômica se expandiu, as importações dispararam e as exportações se entorpeceram, exceto nos períodos em que as cotações internacionais de algumas commodities se elevaram. Em conseqüência, os saldos comerciais declinaram de forma quase ininterrupta desde 1990, até se tornarem negativos, a partir de 1995. Na conta de serviços cresceram geometricamente os pagamentos de juros, relativos ao antigo e, sobretudo, ao novo endividamento, além das remessas de lucros e dividendos, em grande parte derivadas do avanço do programa de desestatização de empresas e serviços públicos, assim como do aumento de aquisições de empresas e bancos nacionais por grupos estrangeiros. Além disso, houve desmesurado aumento das despesas com transportes e viagens internacionais.

 Em decorrência, ocorrem, na atual década, sucessivos déficits no balanço de

pagamentos em conta corrente, que alcançam, somente em 1997, o expressivo valor de US$ 33 bilhões, equivalente a mais de 4% do Produto Interno Bruto brasileiro.

 Desde que o Brasil adotou o modelo liberal, deixando de praticar qualquer

política industrial e de comércio exterior, o equilíbrio das contas externas ficou na inteira dependência da captação de recursos no mercado financeiro internacional, fazendo-se necessário para dar sustentação ao modelo que também fosse liberalizado o movimento internacional de capitais. À medida que os saldos comerciais recuavam e, sobretudo, quando os déficits começaram a se suceder, foram freneticamente criados e postos em prática um sem número de mecanismos financeiros para atração de recursos externos visando o fechamento do balanço de pagamentos. Enquanto isso, seguindo o receituário liberal, o País se resignava em esperar que a produção nacional obtivesse, espontaneamente, competitividade suficiente

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para incrementar as exportações e todos os agentes econômicos diminuíssem a demanda por importações.

 Ao longo da década, acumulou-se substancial volume de reservas

internacionais, visando a prevenir eventuais interrupções no influxo de capitais e forma de evitar maior sobrevalorização cambial que, paradoxalmente, tinha origem na própria entrada maciça de recursos externos no País.

 A ausência de política de comércio exterior e a decorrente dependência ao

mercado internacional de capitais implicaram na necessidade de o País manter as taxas de juros em patamares elevados. A política monetária, portanto, precisou ser periodicamente ajustada, no mínimo, ao diferencial entre as taxas de juros internas (descontada a variação cambial) e as taxas internacionais. O endividamento interno público, além de se ter elevado em grande parte por conta do aumento das reservas, passou a crescer continuamente, em função da extraordinária realimentação provocada pelas altas taxas de juros.

 A expansão da atividade econômica foi contida e o nível de emprego

reduziu-se em mais de 30%.

Relativamente à estabilização econômica, são evidentes os resultados alcançados pelo País, a partir de 1994, com o Plano Real. Com efeito, a liberdade para importar e a política cambial de sobrevalorização da moeda nacional constituem as bases sobre as quais foi construída e se mantém a atual política antiinflacionária. Oferta abundante a preços baixos disciplinam e mesmo limitam os preços dos bens de produção doméstica que estejam submetidos à concorrência internacional.

 Nada obstante, a estabilidade do nível geral de preços, como objetivo de

curto e longo prazos de política econômica, embora desejável e, até certo ponto, fundamental para o desenvolvimento econômico, não pode se transformar em um fim em si mesma. Assim, os meios utilizados para alcançar e manter a estabilidade da renda monetária devem ser objeto de rigorosa avaliação, pelas implicações negativas que, a médio e longo prazos, podem acarretar sobre o desenvolvimento econômico.

 Não se desconhece que é tradicional, na ciência econômica, o conflito entre

equilíbrio interno e equilíbrio externo. Vale dizer, há indissociável choque entre estabilidade das contas domésticas concomitante com a das contas externas. Na maioria das vezes, quando é alcançado o primeiro equilíbrio, isto ocorre em detrimento do segundo e vice-versa. Aceitável no curto prazo, mas perigoso no longo prazo, justamente pelas suas conseqüências sobre o desenvolvimento econômico.

 Onde parecem existir novidades no caso brasileiro atual, em relação ao

tradicional conflito, não é a submissão das contas externas do País à política antiinflacionária, mas a insistência em praticar a liberdade comercial na expectativa que, em função de ganhos

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de competitividade do produto nacional, venha ocorrer aumento espontâneo das exportações, o que permitiria o equilíbrio das contas externas e viabilizaria a continuidade dos resultados de controle da inflação.

 Nessa linha de raciocínio, os déficits comerciais sucessivamente

contabilizados desde 1995 ganham dimensão superior. Não se tratam mais, como no passado, de déficits conjunturais ou de déficits estruturais, decorrentes de choques externos de oferta ou de uma ação programática de substituição de importações. Agora, os déficits na balança têm origem na liberalização comercial, ou seja, no próprio modelo adotado pelo País, visando a promover a reestruturação produtiva e servir como instrumento para a estabilização da economia.

 A Tese aponta para o fato de que em presença de sucessivos déficits

comerciais não é sequer possível continuar mantendo o atual programa de estabilização econômica, baseado na abertura comercial e na sobrevalorização do câmbio, porque os déficits implicam no aumento da dependência da captação de recursos externos para o equilíbrio do balanço de pagamentos e a submissão da política monetária aos resultados externos, numa conjuntura internacional em constante mutação.

 A Tese conclui que o Brasil cometeu um grave erro ao adotar o modelo

liberal de comércio, ao romper com a tradição regulatória e abdicar em favor do mercado à prerrogativa de promover uma política de comércio exterior.

 A atual ortodoxia é incapaz de solucionar ou evitar a ocorrência de novas

crises cambiais. Pior, o novo modelo aumenta consideravelmente o grau de exposição do Brasil a crises internacionais, porque o equilíbrio das contas externas e o desenvolvimento econômico passaram a depender de forma contínua e crescente da captação de recursos de curto prazo no mercado financeiro internacional.

 Portanto, a causa da crise cambial que aí está é o modelo seguido pelo

País, a ausência de política comercial, que subordina o equilíbrio das contas externas brasileiras ao permanente ingresso de capitais estrangeiros, elevando consideravelmente a exposição do País à ocorrência de crises econômicas internacionais.

 A rapidez com que processou tanto a perda quanto a recuperação das

reservas internacionais brasileiras, nas crises do México, ao final de 1994, e do Sudeste Asiático, no início de 1998, assim como o expressivo valor das reservas perdidas em curto espaço de tempo, na atual crise cambial, iniciada com a débâcle russa, além de evidenciarem a volatilidade dos fluxos de capitais e o risco de o País continuar dependendo exclusivamente desses recursos para o equilíbrio das suas contas externas, são argumentos que ajudam a demonstrar o grande equívoco cometido pelo Brasil ao adotar a ortodoxia liberal de comércio.

 

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A solução reside na obtenção de uma balança comercial positiva. Todavia, em presença de ampla liberdade comercial, que acarreta o contínuo crescimento das importações, e na falta de uma política industrial consistente, que forneça meios efetivos para o aumento da competitividade do produto nacional e incremento das exportações, é impossível resolver o déficit comercial e, por conseguinte, estancar o déficit em transações correntes.

 A proposta para a superação definitiva da atual crise cambial, evitar que

outras se desenvolvam, assim como para permitir que se possa praticar uma política monetária independente, é que o Brasil estabeleça um projeto mínimo de desenvolvimento e venha a formular uma Política de Comércio Exterior, sendo necessário, ainda, criar um órgão coordenador de política e reestruturar os atuais órgãos encarregados da administração do comércio exterior.

http://ericolinsleite.blogspot.com.br/2013/02/a-politica-brasileira-de-comercio.html

A Camex na Formulação da Política de Comércio Exterior

A Câmara de Comércio Exterior (camex) foi criada em 1995 e é o órgão interministerial responsável pela formulação, adoção, implementação e coordenação de políticas e atividades relativas ao comércio exterior de bens e serviços, incluindo o turismo.A dispersão de competências do comércio exterior brasileiro em diversos órgãos dificultava a adoção de medidas capazes de atender às necessidades do país. Assim, na qualidade de presidente da camex, ressalto a importância desse colegiado na coordenação da ação de governo, e deste com o setor privado, em matérias relacionadas com o comércio exterior.

A camex reúne os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Fazenda; do Planejamento, Orçamento e Gestão; das Relações Exteriores; da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; a Casa Civil da Presidência da República e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que passou a integrá-la desde 2005.

O papel institucional da camex é o de articular os diferentes órgãos e agências governamentais para otimizar os resultados do país no comércio internacional, em defesa dos legítimos interesses do setor produtivo nacional. Com a criação da camex, o governo brasileiro ficou melhor aparelhado para definir importantes diretrizes da política de comércio exterior e adotar as medidas necessárias ao enfrentamento dos novos desafios do comércio globalizado.

A maior inserção internacional de nossa economia e a crescente disputa por mercados, no contexto de globalização comercial dos últimos anos, ampliam as responsabilidades e exacerbam as demandas por uma atuação cada vez mais intensa da camex. Além de comprovar a importância da criação desse órgão de regulação e articulação dos diferentes atores do comércio internacional, públicos e privados, as profundas transformações do cenário externo trouxeram novos desafios à atuação do órgão.

Nesse sentido, a camex, com o apoio dos ministérios que a integram e de outros órgãos públicos, tem dedicado redobrada atenção aos temas relacionados com o aumento da

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competitividade da empresa brasileira, a ampliação de mercados para nossos exportadores e a defesa da indústria nacional.

Para reduzir custos de produção e melhorar o acesso do produto brasileiro aos mercados externos, diversas medidas foram aprovadas e implementadas nos últimos meses, a exemplo da desoneração dos insumos nacionais aplicados na produção de produtos exportados, a partir da criação do drawback verde-amarelo. Eliminou-se uma distorção histórica de nosso sistema tributário, que favorecia a importação em detrimento da produção nacional, com a equiparação do tratamento tributário dispensado ao insumo nacional nos mesmos moldes daquele previsto para os insumos importados.

Outras medidas visaram contribuir para a maior competitividade do produto brasileiro no mercado externo, como a isenção nas remessas para pagamento, no exterior, de despesas de promoção comercial de produtos brasileiros, benefício ampliado para alcançar também outras despesas vinculadas à exportação.

A desoneração dos investimentos portuários, mais recentemente estendida aos investimentos em ferrovias, também foi discutida e aprovada no âmbito da camex.

Ao longo dos últimos anos, a camex atuou numa enormidade de temas muito próximos ao cotidiano do setor produtivo brasileiro, seja na produção seja na ponta do consumo, sempre que se precisou posicionar diante de assuntos relacionados com produtos como arroz, leite, alho, trigo, pêssego, couro, têxteis, vinhos, armas, fertilizantes, defensivos, siderúrgicos, máquinas e equipamentos, e tantos outros.

Temas relacionados com o financiamento da exportação também têm sido objeto de crescente atenção da camex. Além de contribuir para aumentar a presença de empresas brasileiras em outros países, os mecanismos de apoio governamental à exportação de bens de maior valor agregado viabilizam a geração de renda e emprego no país.

A continuidade dos projetos de empresas brasileiras no exterior, em especial na presente conjuntura de escassez de crédito internacional, requer firmeza e determinação do governo para adotar as medidas necessárias visando ampliar as fontes internas de financiamento para a exportação e para a produção.

Outra importante frente de atuação da camex é o permanente monitoramento dos preços de insumos essenciais e da exportação de commodities, por seus importantes impactos nos resultados da balança comercial do país.

O acirramento da competição internacional no comércio tem como conseqüência a ampliação da concorrência predatória, que ameaça a sobrevivência da produção brasileira em alguns segmentos. Sobre os temas relacionados à defesa comercial, compete à camex deliberar a respeito das medidas de proteção à indústria nacional contra práticas desleais de comércio, conforme se verá mais adiante.

Estrutura e competências

A Câmara de Comércio Exterior possui a seguinte estrutura: o Conselho de Ministros da camex, o Comitê Executivo de Gestão (gecex), a Secretaria Executiva, o Conselho Consultivo do Setor Privado (conex) e o Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações (cofig).

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O Comitê Executivo de Gestão (gecex) é núcleo executivo da camex e é composto por 26 membros do governo, incluindo os representantes dos ministérios que compõem o Conselho de Ministros da camex e os demais ministérios e órgãos que intervêm de alguma maneira em temas relacionados ao comércio exterior. Os trabalhos do gecex subsidiam o Conselho de Ministros, que é o núcleo decisório da camex.

O Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações da camex (cofig)

O Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações (cofig) é um colegiado integrante da Câmara de Comércio Exterior (camex), com as atribuições de enquadrar e acompanhar as operações do Programa de Financiamento às Exportações (proex) e do Fundo de Garantia à Exportação (fge). Sua tarefa consiste em estabelecer os parâmetros e condições para concessão de assistência financeira às exportações e de prestação de garantia da União.

É por meio do cofig que a camex atua na definição de critérios para a aplicação de recursos orçamentários da União na promoção das exportações brasileiras.

O cofig é integrado pelos representantes dos ministérios que compõem a camex, além de envolver também participantes da Secretaria do Tesouro Nacional, do Banco do Brasil, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, do irb–Brasil Resseguros e da Seguradora Brasileira de Crédito à Exportação (sbce).

Dessa mescla de visões resultam as orientações para que o programa possa atender às demandas do setor exportador, levando em consideração os compromissos macroeconômicos do governo. Foi assim que, recentemente, a camex aprovou medidas, sugeridas por esse Comitê, para tornar o proex mais efetivo, buscando o aproveitamento integral dos recursos disponíveis e visando contribuir para neutralizar os efeitos da redução de linhas de crédito às exportações brasileiras, decorrente da atual situação financeira internacional.

Em decisões recentes do Conselho de Ministros, foi ampliado o universo de empresas que poderão acionar o proex e foi também regulamentada a utilização de seguro de crédito à exportação para pequenas empresas, com vistas a minimizar os problemas de garantia que enfrentam. Além disso, estão bem avançados os estudos para aprovar modalidade do programa que permitirá o financiamento de atividades voltadas para a exportação de bens e serviços desde a fase de produção.

Em outra vertente da atuação na área de créditos à exportação, o Conselho de Ministros delibera sobre a aprovação de projetos visando o desenvolvimento econômico e social de países prioritários para a política externa brasileira. Nesses casos, têm sido aprovados projetos de exportação de empresas brasileiras voltados para a realização de obras de infra-estrutura, para a modernização da atividade agrícola, para o turismo e a integração regional com os parceiros do Brasil. Essa modalidade de financiamento tem-se revelado importante ferramenta de aproximação entre o Brasil e países da América Latina e da África, viabilizando exportações de bens e serviços brasileiros para esses mercados, em escala crescente.

A articulação com o setor privado

As decisões da camex consideram as demandas do setor privado nacional e são tomadas de maneira que revela o diálogo existente entre o governo e o setor privado em temas de comércio exterior. Para reforçar esse papel, em 2004, a camex criou o Conselho Consultivo

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do Setor Privado (conex), composto por vinte representantes do empresariado brasileiro para assessorar o Comitê Executivo de Gestão (gecex), pela elaboração e encaminhamento de estudos e propostas para aperfeiçoar a política de comércio exterior do Brasil.

Ao longo dos últimos anos, as atividades do conex envolveram temas como: 1) medidas de facilitação do comércio; 2) Política de Desenvolvimento Produtivo e incentivo ao investimento, inovação tecnológica e diversificação das exportações brasileiras; 3) investimentos brasileiros no exterior e internacionalização das empresas brasileiras; 4) diretrizes e estratégias para negociações internacionais; 5) criação de classificação tarifária própria para o etanol como combustível; 6) regulamentação do drawback verde-amarelo; 7) financiamento pré-embarque em reais; 8) normas regulamentadoras de financiamento de exportações. Todos esses são assuntos relevantes para o comércio exterior do país, que contaram com a participação ativa de segmentos do setor privado.

Facilitação de comércio

Das discussões na Rodada Doha, em especial das propostas apresentadas no Grupo Negociador de Facilitação de Comércio, resultaram avanços importantes para a simplificação, modernização e desburocratização de procedimentos relacionados ao comércio exterior. Essas propostas serviram de base para a definição de diretrizes que integram os trabalhos conduzidos na área pela camex.

A omc contribuiu assim para a adoção paulatina, no âmbito doméstico, das melhores práticas de facilitação de comércio em uso no exterior. Elas estão voltadas à redução da burocracia, à melhoria na gestão dos processos, das operações, das rotinas e dos procedimentos e trazem benefícios para exportadores e importadores brasileiros, sem prejuízo à segurança e ao combate às fraudes.

Medidas de facilitação de comércio têm-se tornado cada vez mais necessárias à continuidade do crescimento do comércio exterior e à melhoria da competitividade da empresas brasileiras.

Ressalte-se que o fluxo do comércio exterior brasileiro aumentou 222% em valor e 37% em tonelada, na comparação do período de janeiro a setembro de 2003 com o mesmo período de 2008. Tal crescimento contribuiu decisivamente para a melhoria dos resultados macro e microeconômicos, com efeitos positivos na produção, nos investimentos e na competitividade do país.

Para modernizar, racionalizar e dar maior eficácia à ação de governo na formulação da política de comércio exterior, a camex coordena importante trabalho de revisão de normas e procedimentos operacionais dos órgãos intervenientes e anuentes do comércio exterior.

Desenvolveu várias iniciativas no campo da facilitação e desburocratização do comércio para atender a uma das principais reivindicações dos exportadores brasileiros e do setor produtivo nacional, de simplificar as operações de comércio exterior com a redução de custos administrativos. Esse trabalho envolveu 35 órgãos de governo, que atuaram de maneira coordenada, para tornar os trabalhos e exigências legais mais céleres e inteligentes.

Nesse sentido, a camex estabeleceu novas diretrizes de facilitação de comércio que enfocam, entre outros, os seguintes aspectos: criação da figura do operador autorizado, inclusive para anuentes; aceitação de documentos eletrônicos; organização da chamada single window;

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adoção de práticas de gestão de risco, inclusive para anuentes. Outro avanço significativo foi a criação, em março deste ano, do Grupo Técnico de Facilitação de Comércio (gtfac), na estrutura permanente da camex.

Como resultado da coordenação efetuada pela camex, diversas medidas foram implementadas, ou estão em andamento, contribuindo para descongestionar as zonas primárias de portos, aeroportos e pontos de fronteira terrestre.

São exemplos de medidas implementadas a exclusão da Comissão de Coordenação do Transporte Aéreo Civil (cotac) da Agência Nacional de Aviação Civil da condição de órgão anuente; a resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (anvisa), que previu que todos os produtos para saúde, fabricados no país e destinados exclusivamente à exportação, não mais necessitarão de registro no órgão; as exclusões de anuências na exportação por parte da Agência Nacional de Petróleo (anp) e do Departamento de Polícia Federal; o uso de novo serviço pela Receita Federal, na internet, denominado “consulta pública externa”, que permitirá à sociedade conhecer e oferecer sugestões às propostas de alterações da legislação aduaneira, antes da sua entrada em vigor.

Além disso, há medidas de grande importância em andamento. Entre elas, o desenvolvimento de Licenças de Importação instantâneas, que permitirão a utilização de filtros e critérios de seleção de operações, a serem definidos e gerenciados pelos próprios órgãos anuentes. Cabe mencionar também o sistema de documentos eletrônicos no Sistema Integrado de Comércio Exterior (siscomex), que permitirá anexação de documentos, quer por parte do operador de comércio exterior, quer pelo anuente, de forma que subsistam em plataforma de visualização comum.

Outras ações de grande relevância estão sendo tratadas em caráter prioritário pela camex, como a construção de uma “Linha Azul” sanitária e fitossanitária no Ministério da Agricultura, para as empresas que se comprometerem a não importar mercadorias com embalagens de madeira bruta ou em desconformidade com as normas internacionais, além da disponibilização de relatórios gerenciais desenvolvidos pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (serpro) aos órgãos anuentes, o que permitirá definir ações estratégicas na fiscalização de empresas, com critérios efetivos de gestão de risco.

A camex, em conjunto com o Ministério do Planejamento e a Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (abdi), está realizando também um amplo levantamento do número de funcionários e horários de atendimento nas zonas primárias brasileiras, para elaborar um Plano Nacional de Harmonização de Horários e de Rotinas em Zonas Primárias e um Plano de Capacitação de Servidores Públicos em Comércio Exterior.

Defesa comercial

Na área da Defesa Comercial, a crescente atuação da camex e dos órgãos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior em defesa da indústria nacional pode ser aferida pelas estatísticas do período mais recente: o número de medidas antidumping aprovadas evoluiu de 23, em 2007, para cerca de 60, em 2008.

Convém mencionar que os prazos para concluir as investigações foram reduzidos substancialmente, a despeito do expressivo aumento do número de medidas de defesa comercial. A aplicação tempestiva de direitos provisórios também permitiu a redução dos

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danos potenciais à indústrias domésticas que apresentaram pleitos ao governo contra práticas desleais de comércio adotadas por empresas estrangeiras em suas exportações para o Brasil.

As deliberações sobre defesa comercial contam com as recomendações do Grupo Técnico de Defesa Comercial (gtdc), embasadas no trabalho investigativo do Departamento de Defesa Comercial da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento. O gtdc é composto pelos sete ministérios que compõem a camex. Em sua decisão, os ministros devem levar em conta elementos de interesse nacional, como inflação, desabastecimento do produto e interesses difusos dos consumidores.

A discussão prévia nos Grupos Técnicos que assessoram a camex sobre os impactos das medidas de defesa comercial visa, justamente, equacionar interesses diversos entre os consumidores dos produtos objeto de tais medidas, a defesa da indústria brasileira contra práticas desleais de comércio e o interesse público envolvido no tema.

 

Estímulo ao investimento: ex-tarifários

Sob a ótica do investimento privado, para reduzir custos de investimentos e modernizar o parque industrial brasileiro, a camex pode conceder para Bens de Capital (bk) e Bens de Informática e de Telecomunicações (bit) a redução temporária no Imposto de Importação pelo mecanismo de “Ex-tarifário”. Para tanto, o comitê técnico competente, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, aprecia os pleitos e os submete à camex, para a deliberação interministerial em relação às políticas de desenvolvimento do governo em consonância com os interesses do setor privado.

Para se ter uma noção da importância desse instrumento, de julho de 2001 a setembro deste ano, a camex concedeu “Ex-tarifários” no valor total de US$ 13,6 bilhões, para setores relevantes da economia brasileira, como aeronáutico, agroindustrial, automotivo, bens de capital, construção civil, farmacêutico, eletroeletrônico, metalúrgico, papel e celulose, petróleo, siderúrgico e têxtil.

Revisão da lista de exceções à tec

Sobre a revisão temporária da Tarifa Externa Comum (tec) do Mercosul, no caso do Brasil, o Conselho de Ministros da camex fixa as alíquotas do Imposto de Importação e efetiva as revisões na Lista de Exceções brasileira à Tarifa Externa Comum do Mercosul. Para isso, a Secretaria Executiva da camex coordena um Grupo Técnico Interministerial, composto por representantes dos órgãos integrantes do referido Conselho de Ministros. A importância dos trabalhos da camex nesse tema está na possibilidade de atender aos interesses públicos e privados no curto prazo, pelo próprio dinamismo do comércio exterior.

Contenciosos comerciais

 

Com referência aos contenciosos envolvendo o Brasil, cabe à camex decidir não somente o início do processo, caso o Brasil seja demandante, mas também as linhas gerais da estratégia a ser seguida em cada conflito. Como ilustração, pode-se mencionar o painel do algodão, no

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qual a camex decidiu acionar os Estados Unidos pelos subsídios concedidos por aquele país a seu setor algodoeiro, tendo sido confirmada pela omc a ilegalidade da prática norte-americana e autorizada a retaliação por parte do Brasil, pois os eua não cumpriram a determinação do órgão multilateral.

Além disso, deve-se destacar a atuação do Conselho de Ministros no conflito da importação de pneus usados, movido pela União Européia contra o Brasil, em que a ue acusou o país de tratamento discriminatório, por permitir a importação de pneus usados apenas do Mercosul. A camex decidiu basear a defesa brasileira no argumento de direito à proteção ao meio ambiente e saúde pública, os quais foram acolhidos pelo Órgão de Solução de Controvérsias da omc.

Negociações Internacionais

As negociações comerciais internacionais são importantíssimas para a inserção do país na economia internacional. Tendo em vista nossa enorme competitividade na área agrícola, é muito importante que as negociações da Rodada Doha, no âmbito da omc, sejam concluídas com sucesso, pois somente no âmbito multilateral os países desenvolvidos poderão eliminar os subsídios às exportações agrícolas e reduzir as medidas de apoio interno a seus respectivos setores agrícolas.

Restrições e barreiras ao comércio têm sido reduzidas, gradualmente, a partir do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (gatt), de 1947. Desde então, o cenário político e econômico modificou-se, substancialmente. Disso dão exemplo a emergência dos setores de serviços e de tecnologia; a organização dos países em blocos comerciais; a crescente preocupação com o meio ambiente e com as normas sanitárias e fitossanitárias; e o fortalecimento das questões relacionadas à propriedade intelectual.

Em tal cenário, o arcabouço do gatt tornou-se ineficaz para enfrentar os desafios do comércio mundial. Deu-se então o lançamento da Rodada Uruguai (1986–1994), que resultou na construção do modelo vigente para regular o comércio internacional, sob a égide da Organização Mundial de Comércio (omc), uma instituição de caráter permanente e abrangência mais ampla do que fora o gatt.

Rodada Doha

A Rodada Doha foi inaugurada em 2001 e motivada pelo interesse dos países desenvolvidos em aprofundar os acordos de liberalização de tarifas industriais, serviços, investimentos e compras governamentais. Essa Rodada também é conhecida como a “Rodada do Desenvolvimento”, por priorizar a inclusão de objetivos comerciais favoráveis aos países mais pobres, particularmente a abertura dos mercados agrícolas dos países desenvolvidos.

O Conselho Geral da omc organizou os grupos de trabalhos técnicos, sob a coordenação do Comitê de Negociações Comerciais (cnc), para iniciar as discussões sobre 19 temas agrupados em seis áreas de atuação. Entre eles, destacavam-se: agricultura, serviços, acesso a mercados não-agrícolas (nama – non-agricultural market access), os chamados “Temas de Cingapura” (investimentos, políticas de concorrência, compras governamentais e facilitação de comércio), uma avaliação sobre a implementação dos acordos trips (de propriedade intelectual) e trims (de investimentos), além da criação de grupos de trabalho sobre transferência de tecnologia, dívida e finanças, e de alguns temas novos, a exemplo do comércio eletrônico.

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De forma específica, o mandato de Doha definiu que o acesso a mercado de bens não-agrícolas (nama) concentrar-se-ia no tratamento dos picos tarifários, na escalada tarifária e nas barreiras não-tarifárias. Além disso, estabeleceu que, num primeiro momento, a cobertura das negociações seria ampla, sem exclusões, e que as necessidades e interesses especiais dos países em desenvolvimento e dos países menos desenvolvidos seriam levados em consideração.

O mandato para agricultura incluiu uma agenda de trabalho abrangente e genérica, com o propósito de conciliar os interesses antagônicos entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Nesse contexto, entendeu-se que o equilíbrio entre as ambições em agricultura e em bens industriais seria a chave para o sucesso da Rodada. Pode-se mencionar, entre os elementos sintetizados pelas versões dos textos agrícolas, temas como subsídios, apoio interno, redução de tarifas e crédito à exportação.

Para comércio e investimento, a Rodada Doha estabeleceu temas como escopo e definição, transparência, não-discriminação, modalidades de compromissos de preestabelecimento, disposições sobre desenvolvimento, exceções e salvaguardas de balança de pagamentos, mecanismos de consultas e de solução de controvérsias.

Desde o lançamento da Rodada, em 2001, o comércio exterior brasileiro experimentou grandes mudanças. Entre 2001 e 2007, nossa corrente de comércio aumentou significativamente, passando de US$ 113 bilhões para US$ 281 bilhões, o que representou incremento percentual de 148,6%. As exportações, no mesmo período, aumentaram 175,6 %, de US$ 58,2 bilhões para US$ 160,6 bilhões.

Além do expressivo crescimento em termos de valor e de volume, observaram-se alterações nas distribuições percentuais dos parceiros comerciais. Na exportação, por exemplo, verificou-se marcante alteração nas participações dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, ao longo dos últimos anos. Em 2001, os percentuais haviam sido, respectivamente, de 60,1% e de 39,9%; em 2007, as participações haviam-se alterado substancialmente, de 50,2% para os países desenvolvidos e 49,8% para os países em desenvolvimento. Em 2007, atingiu-se, na prática, um equilíbrio quase perfeito entre os dois agrupamentos de países no que se refere ao peso participativo no comércio exterior brasileiro.

Isso demonstra a crescente importância dos países em desenvolvimento no nosso comércio exterior e aponta, ainda, a relevância assumida pelas negociações multilaterais para o Brasil, bem como o êxito da política de diversificação de exportações adotada pelo governo.

Do ponto de vista multilateral, cada país-membro da omc elegeu um modelo para congregar governo e setor privado nas negociações da Rodada Doha, para que o processo negociador contemplasse o conjunto mais abrangente possível de , interesses de suas respectivas sociedades.

A atuação da Camex

No caso do Brasil, a articulação intragovernamental, com o acompanhamento rotineiro por parte do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior, e de seus demais colegiados, concentrou-se em grupos técnicos específicos constituídos pelo Ministério das

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Relações Exteriores. Esses grupos contaram, ainda, com a importante participação de representantes do setor privado, notadamente por meio de suas entidades.

Sobretudo em função dos valores envolvidos, o processo negociador da Rodada Doha tem sido motivo de diversas discussões. Mais notadamente nos últimos anos, com a perspectiva de desenlace da Rodada, os temas técnicos relacionados foram amplamente apresentados e discutidos em diversas reuniões da camex, freqüentando sua agenda em oito reuniões do Conselho de Ministros; em cinco reuniões do Comitê Executivo de Gestão (gecex); em duas reuniões do Conselho Consultivo do Setor Privado (conex), entre outras reuniões de nível técnico. Ainda no governo federal, os debates se verificaram em outros fóruns com representação da Secretaria Executiva da camex, a exemplo do chamado Conselho do Agronegócio.

A camex sempre acompanhou as negociações multilaterais desenvolvidas no âmbito da Rodada Doha, em virtude de sua atribuição institucional de formulação, adoção, implementação e coordenação de políticas e atividades relativas ao comércio exterior de bens e serviços.

Tais negociações foram priorizadas, sobretudo em decorrência da diversidade geográfica e do caráter de global player alcançado pelo comércio exterior brasileiro. Ilustra a importância da Rodada para o comércio brasileiro o variado fluxo das exportações e importações do País: de janeiro a setembro de 2008, por exemplo, a União Européia respondeu por 23,6% das exportações (US$ 35,6 bilhões) e 20,8% das importações (US$ 27,3 bilhões); os países da Associação Latino-americana de Integração (- aladi), respectivamente, por 21,7% (US$ 32,7 bilhões) e 15,7% (US$ 20,7 bilhões); a China, por sua vez, por 9,1% das vendas externas (US$ 13,7 bilhões) e por 11,3% das compras (US$ 14,9 bilhões); e os eua, por 14,3% dos valores exportados (US$ 21,5 bilhões) e 14,6% dos importados (US$ 19,1 bilhões).

Além das discussões intragovernamentais verificadas, houve o completo e continuado engajamento da camex com o setor privado. A Rodada Doha foi motivo de seminários e estudos, com a participação de diversos representantes do governo federal e entidades de classe do empresariado. O setor produtivo não apenas foi informado sobre os estágios das negociações, mas também pôde apresentar propostas e debater temas técnicos específicos, levados em consideração pelos órgãos governamentais.

Participação do setor privado

Presença importante, ao longo de todo o processo negociador, foi a da chamada Coalizão Empresarial Brasileira, que congrega 170 organizações empresariais, sob coordenação da Confederação Nacional da Indústria (cni), da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (fiesp) e da Confederação Nacional da Agricultura (cna), entre outras. Por sua vez, cada entidade privada desenvolveu trabalhos sobre os temas de seu interesse, no âmbito de seus grupos técnicos estaduais ou regionais, para buscar a efetiva e ampla participação das empresas e das entidades representativas no processo negociador.

No âmbito das negociações da omc sobre acesso a mercados de bens não-agrícolas (nama), valendo-se do princípio que lhes permite tratamento especial e diferenciado, os países em desenvolvimento obtiveram a prerrogativa de eleger um grupo de produtos sensíveis para os quais se prevê liberalização menos acentuada.

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Assim, entre 2005 e 2007, para definir uma lista de sensibilidades no âmbito industrial, a camex desenvolveu, junto com a Coalizão Empresarial Brasileira (ceb), um intenso esforço de coordenação.

O processo de elaboração dessa lista de sensibilidades envolveu a realização de numerosas consultas formais, reuniões, análises e elaboração de notas. Devido ao fato de as diversas consultas realizadas pela ceb junto a seus associados resultarem num número de produtos superior ao limite determinado pelo texto em negociação em nama, a camex instituiu parâmetros para determinar o nível de sensibilidade, para permitir à ceb construir uma lista válida para as discussões com os demais membros da omc.

Esse esforço foi vital, inclusive, para permitir o posterior cotejamento das sensibilidades do Brasil com as sensibilidades dos demais Estados Partes do Mercosul, para restringir possíveis perfurações à Tarifa Externa Comum. A camex também tem discutido várias medidas de política comercial do Mercosul, para aprofundar cada vez mais a integração regional, pois o fortalecimento do bloco é uma das prioridades da política externa brasileira.

Acordos bilaterais e regionais

Paralelamente às negociações da omc, o Brasil não ficou parado sem uma estratégia de diversificação de negociações bilaterais e regionais. Buscou acordos de livre comércio e de preferências tarifárias, muitos dos quais iniciados antes mesmo do lançamento da Rodada Doha, em 2001, como foi o caso dos acordos firmados entre o Mercosul e a Bolívia e entre o Mercosul e o Chile.

Desde 2001, por intermédio do Mercosul, ou no âmbito dos acordos firmados na Associação Latino-americana de Integração (aladi), o Brasil vem intensificando o processo de integração em várias frentes de negociação, sendo elas: com a União Européia, que esperava conclusão da Rodada Doha para renegociar com o Mercosul; com a Índia e com Israel; com o Conselho de Cooperação do Golfo (Arábia Saudita, Bahrein, Qatar, Emirados Árabes, Omã e Coveite); com a União Aduaneira da África Austral (sacu), composta por África do Sul, Botsuana, Lesoto, Namíbia e Suazilândia; com Marrocos, Turquia, Egito, Paquistão, Jordânia, Coréia do Sul, Rússia e com os países que integram o Sistema da Integração Centro-Americana e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (asean).

Ressalte-se que o Acordo com a Índia foi concluído e aprovado pelo Congresso Nacional, o Acordo com Israel se encontra em estágio avançado e o Acordo com a sacu será assinado na reunião de Cúpula do Mercosul, em dezembro próximo.

Após o início da Rodada Doha, o Brasil, por intermédio do Mercosul, firmou acordos com o Peru, com a Comunidade Andina (Venezuela, Colômbia e Equador) e com Cuba. Somam-se, ainda, acordos setoriais (automotivo e outros produtos) com o México e com Trinidad e Tobago e com a Guiana. Existe também um acordo em negociação com o México.

A todos os processos mencionados se acrescentam o próprio aprofundamento e alargamento do Mercosul, peça-chave do processo de integração regional do Brasil com seus vizinhos.

No âmbito da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (unctad), o Mercosul está negociando como bloco o Sistema Global de Preferências Comerciais (sgpc),

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importante instrumento para promover o comércio entre os países em desenvolvimento membros do Grupo dos 77.

As negociações da Rodada Doha trazem uma importante lição adicional, e mesmo uma exigência para o êxito de um possível acordo de comércio multilateral: os países emergentes devem-se manter firmes na estratégia de convergir e de se alinhar nas discussões, pois o desalinhamento será fator comprometedor para o êxito da própria Rodada, e para seu objetivo primordial de ampliação de comércio com promoção do desenvolvimento. A camex tem consciência desta necessidade e está atenta para aumentar a sintonia entre todos os órgãos do governo que lidam com o tema e a interação governamental com o setor privado brasileiro.

Além disso, as negociações multilaterais em curso na Rodada Doha têm papel de destaque pela abrangência dos temas tratados. Um eventual retorno às negociações bilaterais, em escala global, seria incapaz de contemplar assuntos de grande impacto para o comércio mundial e de interesse para o Brasil, a exemplo dos subsídios agrícolas, que são tratados efetivamente no foro multilateral da omc.

Devido aos interesses nem sempre coincidentes dos setores privados, pois alguns setores são mais ofensivos e outros, mais defensivos, é necessário que a camex faça a mediação entre esses interesses divergentes, tornando viável a negociação, sem desproteger os setores mais sensíveis.

Considerações finais

A coordenação e articulação intragovernamental e entre o governo e o setor privado são inerentes às atividades da camex em seu trabalho cotidiano. Evidentemente, os interesses setoriais dos agentes econômicos nem sempre coincidem, o que obriga o governo a ter o máximo nível de articulação, inclusive para aparar as arestas dentro do próprio setor privado nas matérias relativas a negociações de acordos comerciais de grande envergadura.

O que é importante assegurar é o fortalecimento das instituições que se propõem a aglutinar as pautas de trabalho de diversos órgãos públicos que compartilham responsabilidades na área de comércio exterior, como é o caso da camex. É no âmbito da camex que deverão desembocar, sobretudo a partir de agora, temas ainda mais urgentes em matéria de posicionamentos do Brasil em assuntos de comércio internacional, financiamento às exportações, como o proex, e as linhas de financiamento do bndes, defesa comercial, promoção de investimentos, entre outros.

A camex foi peça fundamental para articular um amplo conjunto de iniciativas do governo para simplificar as operações de comércio exterior de bens e serviços.

O momento, agora, impõe a necessidade de fortalecer esse papel de articulação da camex, já que é em seu âmbito que todos esses temas de interesse do setor produtivo brasileiro devem ser debatidos, para melhor orientar os caminhos adotados em nossas negociações comerciais internacionais, tanto em caráter bilateral como multilateral.

As políticas tratadas no âmbito da camex sempre refletiram a preocupação do governo em tornar o ambiente de negócios do país cada vez mais favorável ao empreendedorismo do setor privado. O êxito da articulação intragovernamental e entre o governo e o setor privado,

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certamente, contribuirá para melhorar a competitividade de nossos produtos nos mercados externos e para a crescente internacionalização das empresas brasileiras.

O caráter dinâmico dos processos de negociação internacional na área de comércio, como demonstrado nos últimos anos pela Rodada Doha e pelas outras agendas de negociação com parceiros comerciais do Brasil, requer o contínuo aperfeiçoamento e reforço dos mecanismos de articulação dentro do governo e entre o governo e o setor privado, na defesa do interesse nacional.

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