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1 POLÍTICA DE REFORMA AGRÁRIA, DESENVOLVIMENTO RURAL E O PASSIVO SOCIAL DO “DEIXANDO SEMPRE A DESEJAR”. Hingryd Inácio de Freitas Instituto Federal da Bahia – IFBA [email protected] Tiago Rodrigues Santos 1 Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP [email protected] Resumo Esta pesquisa vem sendo desenvolvida no âmbito do Projeto GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq), com o objetivo de analisar o acirramento das contradições do desenvolvimento capitalista no campo baiano. Para tanto, buscou-se identificar, ao longo do tempo histórico, os (des) caminhos da implantação da política de reforma agrária pelo Estado, sendo este processo entendido a partir da dimensão geopolítica da luta pela terra no território. A análise da espacialização da estrutura fundiária, através do cálculo do Índice de Gini, e da evolução da implantação dos projetos de assentamentos de reforma agrária vem sendo os principais indicadores analíticos desta reflexão. Neste contexto, observa-se a perpetuação do passivo social do “deixando sempre a desejar” no que se refere ao cumprimento das metas oficialmente estabelecidas, aspecto este que tende a reafirmar os desafios da Geografia Agrária nas contradições do desenvolvimento brasileiro. Palavras-chave: Desenvolvimento rural. Reforma agrária. Campo baiano. Introdução Uma reflexão sobre uma política pública, como a política da reforma agrária, explicita a necessidade analítica de se considerar a ação do Estado no processo de produção do espaço geográfico, intervindo politicamente no território com vistas à mediar as contradições do desenvolvimento capitalista no campo. E no caso do Brasil, torna-se imprescindível considerar a particularidade histórica das “Origens Agrárias do Estado Brasileiro” (IANNI, 1984) que confluíram para a institucionalização do poder enraizado na concentração oligárquica da terra. Estes aspectos evidenciam a dimensão geopolítica da reforma agrária, uma vez que a mudança na estrutura da propriedade da terra é uma intervenção política no processo de reprodução do capital, o que repercute diretamente nas relações de poder, historicamente instituídas no território. É por isso que, apesar de ser uma política pública – legitimada constitucionalmente –, a reforma agrária é implantada pelo Estado brasileiro a reboque da ação organizada dos movimentos sociais do campo enquanto

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POLÍTICA DE REFORMA AGRÁRIA, DESENVOLVIMENTO RURAL E O PASSIVO SOCIAL DO “DEIXANDO SEMPRE A DESEJAR”.

Hingryd Inácio de Freitas Instituto Federal da Bahia – IFBA

[email protected]

Tiago Rodrigues Santos1 Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

[email protected]

Resumo Esta pesquisa vem sendo desenvolvida no âmbito do Projeto GeografAR (POSGEO/UFBA/CNPq), com o objetivo de analisar o acirramento das contradições do desenvolvimento capitalista no campo baiano. Para tanto, buscou-se identificar, ao longo do tempo histórico, os (des) caminhos da implantação da política de reforma agrária pelo Estado, sendo este processo entendido a partir da dimensão geopolítica da luta pela terra no território. A análise da espacialização da estrutura fundiária, através do cálculo do Índice de Gini, e da evolução da implantação dos projetos de assentamentos de reforma agrária vem sendo os principais indicadores analíticos desta reflexão. Neste contexto, observa-se a perpetuação do passivo social do “deixando sempre a desejar” no que se refere ao cumprimento das metas oficialmente estabelecidas, aspecto este que tende a reafirmar os desafios da Geografia Agrária nas contradições do desenvolvimento brasileiro. Palavras-chave: Desenvolvimento rural. Reforma agrária. Campo baiano.

Introdução

Uma reflexão sobre uma política pública, como a política da reforma agrária, explicita a

necessidade analítica de se considerar a ação do Estado no processo de produção do

espaço geográfico, intervindo politicamente no território com vistas à mediar as

contradições do desenvolvimento capitalista no campo. E no caso do Brasil, torna-se

imprescindível considerar a particularidade histórica das “Origens Agrárias do Estado

Brasileiro” (IANNI, 1984) que confluíram para a institucionalização do poder enraizado

na concentração oligárquica da terra.

Estes aspectos evidenciam a dimensão geopolítica da reforma agrária, uma vez que a

mudança na estrutura da propriedade da terra é uma intervenção política no processo de

reprodução do capital, o que repercute diretamente nas relações de poder,

historicamente instituídas no território. É por isso que, apesar de ser uma política

pública – legitimada constitucionalmente –, a reforma agrária é implantada pelo Estado

brasileiro a reboque da ação organizada dos movimentos sociais do campo enquanto

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uma política social compensatória das contradições capitalistas, restringindo-se à

criação de assentamentos rurais dirigidos para o alívio das tensões e conflitos sociais no

campo.

Configura-se, assim, um reformismo agrário – no qual as formas de intervenções

espaciais do Estado são recriadas, permanecendo o conteúdo definidor da ação política

que se utiliza da prática democrática conservadora de negação e violação dos direitos

sociais. Neste caso, a negação do direito a terra para a reprodução social da vida no

campo como previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

Nesta perspectiva entende-se a projeção tardia da reforma agrária como uma política de

Estado, como também os (des) caminhos no planejamento e na gestão da política agrária

em que a criação das normas legais e o cumprimento das metas estabelecidas perpetuam

o passivo social do “deixando sempre a desejar”.

Em especial, considerando o momento histórico atual de intensificação da inserção

subordinada da economia brasileira no capitalismo monopolista mundial, com o

decorrente acirramento das contradições do desenvolvimento capitalista no campo.

Os (des) caminhos da política de reforma agrária

É importante ressaltar que apesar dos antecedentes históricos da luta popular pela terra

no Brasil remontarem ao processo da colonização portuguesa, a partir do século XVI –

tendo sido os conflitos fundiários acirrados com a aprovação da Lei de Terras de 1850 –

, as primeiras discussões sobre a reforma agrária no Congresso Nacional ocorreram de

forma destacada somente durante a Constituinte de 1946, tendo sido estas promovidas

pela bancada do Partido Comunista do Brasil (PC do B) então liderada pelo senador

Luiz Carlos Prestes. 2

Isto significa dizer que o Estado brasileiro só “reconheceu” a questão (da reforma)

agrária quase um século depois da institucionalização da propriedade privada da terra.

Ainda assim, frente ao poder reacionário da elite agrária no legislativo, nenhum dos

projetos apresentados concretizou-se em lei até a década de 1960, momento histórico da

espacialização do primeiro movimento social de luta pela terra no campo brasileiro: as

Ligas Camponesas.

É importante ressaltar que a espacialização das Ligas Camponesas ocorreu no contexto

de acirramento das contradições espaciais do desenvolvimento rural, impulsionado pela

“modernização agrícola”. A industrialização da agricultura brasileira repercutiu

diretamente na estrutura da propriedade da terra e nas relações sociais de trabalho,

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acirrando o conflito de classe. Nesse contexto que se materializou a organização,

reinvidicação e luta popular contra a expropriação da terra e a exploração do trabalho,

como afirma Oliveira:

A sociedade nacional que, desde 30, marchava na direção da industrialização e da urbanização, continuava a conviver, no lado oposto das elites, com o aprofundamento dos conflitos no campo [...] o final da década de 40, os anos 50 e o início da década de 60 foram marcados por este processo de organização, reivindicação e luta no campo brasileiro. No Nordeste esse processo ficou conhecido com a criação das “Ligas Camponesas”, cuja luta pela terra e contra a exploração do trabalho marcou significativamente sua ação (OLIVEIRA, 2007, p.104).

Destaca-se também que, considerando o avanço mundial do socialismo no pós-guerra, a

luta camponesa adquiriu significados geopolíticos que transcenderam as fronteiras

nacionais, aspecto que pressionou o Estado a intervir com o mecanismo da política

pública para garantir o ordenamento territorial através do controle social.

Assim, a política da reforma agrária foi introduzida no Congresso Nacional em 1962,

via ementa constitucional, constituindo-se numa “reforma de base” proposta pelo

governo de João Goulart. Entretanto, a proposta da emenda constitucional foi derrotada

no Congresso Nacional, em outubro de 1963, sendo assim explicitada a correlação

desigual das forças sociais na estrutura de poder do Estado. Foi então que, em última

instância de luta, João Goulart utilizou o instrumento legal do decreto presidencial para

implantar a política de reforma agrária no país, sendo esta ação decisiva para o Golpe de

Estado de 1964.

Em sua essência, o Golpe de Estado de 1964 significou a intervenção militar dos

Estados Unidos articulada com os interesses capitalistas da burguesia nacional para

reprimir a luta camponesa que concretizava o avanço mundial do socialismo no

território nacional. A geopolítica da reforma agrária foi explicitada para além das

relações de poder entre as classes sociais, mas também como uma estratégia de

dominação dos países centrais na lógica do desenvolvimento desigual.

Neste sentido, Paris Yeros afirma que:

[...] os conhecidos instrumentos de controle imperial permanecem em vigência. A estratégia permanece a de reproduzir a desarticulação e dependência na periferia do sistema através de alianças com as burguesias domésticas, especialmente as dos Estados semiperiféricos, as quais são encarregadas do gerenciamento da ordem capitalista no interior do Estado periférico e na região (YEROS, 2007 p. 171).

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O campo brasileiro viu-se em estado de guerra civil e os militares foram obrigados a

intervir para impor a “paz” na terra com estratégias políticas mais representativas no

imaginário social. Assim, ao mesmo tempo em que a repressão militar foi intensificada,

institucionalizou-se a 1ª Lei de Reforma Agrária no Brasil: o Estatuto da Terra (Lei

4.505/1964). Como órgãos executores da política agrária foram criados o Instituto

Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento

Agrário (INDA), em substituição à Superintendência de Política e Reforma Agrária

(SUPRA), criada em 1962, no governo de João Goulart.

Em 1970, foi criado o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA),

representando a integração do IBRA e do INDA e o Programa de Integração Nacional

(PIN) com a finalidade de financiar obras de infraestrutura nas áreas de atuação da

Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e da Superintendência

de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM) a fim de integrá-las à economia nacional.

Na continuidade deste processo também foram criados o Programa de Redistribuição

de Terras e Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (PROTERRA), em 1971, e a

Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba

(CODEVASF), em 1974, sendo assim reafirmada a função produtiva do Nordeste na

divisão territorial do trabalho.No entanto, apesar dos instrumentos legais, da estrutura

burocrática e dos anseios sociais pela reforma agrária, o que predominou no período da

Ditadura Militar com relação à política agrária do Estado foram os grandes projetos de

colonização, em especial na Amazônia.

Com o processo de redemocratização do país, em meados da década de 1980, a questão

(da reforma) agrária foi recolocada na pauta da sociedade brasileira pelas forças

populares organizadas. Em 1984, foi criado o mais representativo movimento social do

campo brasileiro – o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – tendo

sido fundamental neste contexto a consolidação do trabalho de formação e organização

política dos camponeses e trabalhadores rurais, iniciado na década anterior pelas

Comunidades Eclesiásticas de Base (CEBs) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Nesta conjuntura, acirraram-se a luta e o conflito de classe no campo brasileiro e o

Estado foi pressionado a reconduzir a política nacional da reforma agrária. Em 1985, o

Governo Sarney criou o Ministério da Reforma Agrária e Desenvolvimento Agrário

(MIRAD) e elaborou I Plano Nacional de Reforma Agrária (I PNRA), reproduzindo o

discurso do alinhamento da redemocratização à realização da reforma agrária no Brasil.

No entanto, a oligarquia rural se articulou institucionalmente e de forma reacionária ao

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avanço do movimento de luta dos “sem-terra” criou, também em 1985, a União

Democrática Ruralista (UDR), o que representou o fortalecimento do poder oligárquico

no legislativo brasileiro.3

Teoricamente, o momento histórico de “transição democrática” seria favorável ao

atendimento das demandas sociais que vinham sendo oprimidas pelos militares. E esta

foi sem dúvida a expectativa que congregou as forças populares para empunharem a luta

social pela reforma agrária na Constituinte de 1988. Entretanto, os ruralistas

conseguiram barrar no plenário do Congresso Nacional a proposta de uma Reforma

Agrária ampla, geral e irrestrita, e inscreveram na nova Carta Constitucional, uma

legislação mais retrógrada que o próprio Estatuto da Terra dos militares de 1964

(OLIVEIRA, 2007, p.127).4

A desigual correlação de forças na estrutura de poder do Estado foi explicitada no

cumprimento das metas do I PNRA, como se pode observar na Tabela 1 :

Constata-se na Tabela 1 que, no período de 1985 a 1989, foi estabelecida a meta de

assentamento de 1.400.000 famílias abrangendo a área de 43.090.000 hectares, sendo

que destas foram assentadas apenas 89.950 famílias (equivalendo a 6,4% do previsto) e

desapropriada uma área de 4,8 milhões de hectares (correspondendo a 1,5 % do

previsto).

Ao analisar a espacialização das famílias assentadas por regiões brasileiras, constata-se

a reprodução da estratégia do governo militar de “eliminar os focos de tensão e conflitos

agrários onde eles aconteciam e transportá-los para bem longe onde era difícil se

noticiar ou incomodar” (GERMANI, 2001). Isto porque, como se observa na Tabela 2,

foram assentadas 41.792 famílias na Região Norte e seguidamente 24.385 famílias na

Região Nordeste, o que correspondeu, respectivamente, a 46,5% e 27,1 % do total das

famílias assentadas.

Tabela 1 I PNRA – Metas Estabelecidas e Cumpridas (1985 -1989)

Metas Estabelecidas Metas Cumpridas

Nº Famílias Área (ha) Nº Famílias % Área (ha) % 1.400.000 43.090.000 89.950 6,4 4.800.000 1,5

Fonte: INCRA. Elaboração: Projeto GeografAR, 2009

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Tabela 2 I PNRA - Famílias Assentadas por Região

(1985 -1989)

Região Nº Famílias %

Norte 41.792 46,5

Nordeste 24.385 27,1

Centro-oeste 12.775 14,2

Sul -Sudeste 10.998 12,2

Brasil 89.950 100 Fonte: INCRA Elaboração: Projeto GeografAR, 2009.

Estes dados nos permitem afirmar que na chamada “Nova República” a correlação de

forças na estrutura de poder do Estado não favoreceu mais uma vez a realização da

reforma agrária no Brasil. E assim continuou sendo, na década de 1990, nos sucessivos

governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992 -1995) e Fernando

Henrique Cardoso (1995-2002), a partir dos quais o modelo da agricultura capitalista

proposto pelo Banco Mundial (BM) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) foi

consolidado na expressão do “agronegócio”.

A pobreza rural foi institucionalizada como uma distorção socioeconômica, sendo

negada a sua real existência enquanto contradição material do desenvolvimento

capitalista no campo. Dessa forma, a reforma agrária passou a ser implantada de forma

restrita à criação de projetos de assentamentos de população “pobre” em áreas rurais,

sendo concebida pelo Estado como uma política social compensatória para a qual foi

atribuído “o papel de corrigir as distorções sociais causadas pelo processo de

modernização e que o mercado não pode resolver, ao contrário, agrava”

(ALENTEJANO, 1996, p.95).

No governo Collor, o “Programa da Terra” estabeleceu como meta para o período de

1990 a 1994 o assentamento de 500 mil famílias. Entretanto, transcorridos os dois

primeiros anos do governo, menos de 30 mil famílias tinham sido assentadas (ou seja,

apenas 6% do estabelecido) e nesse ritmo, o presidente só cumpriria com 12% do que

havia sido planejado até o término do seu mandato.

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No governo de Itamar Franco, foram assentadas menos de 50 mil famílias o que

correspondeu a um retrocesso em relação ao governo de Sarney, tendo sido este

reafirmado no governo FHC como evidencia Oliveira:

Em 1995, assumiu a Presidência da República Fernando Henrique Cardoso com uma proposta de reforma agrária ainda mais tímida que a de seus antecessores: assentar em quatro anos de governo (95/98) um total de 280 mil famílias. Dessa forma, sua meta constituiu-se em menos de 60% da previsão do governo Collor e somente 20% do previsto no I PRNA do governo Sarney (OLIVEIRA, 2007, p.130).

Ressalta-se que o próprio presidente FHC reconheceu os limites da meta proposta

caracterizando-a como “modesta” diante da realidade agrária brasileira, e também

“audaciosa”, ao compará-la como o que havia sido feito nos governos anteriores. No

término do mandato, o governo publicou o documento intitulado “Balanço da Reforma

Agrária do Governo FHC (1995/1998)” divulgando o assentamento de 7.539 famílias.

Com isso, afirmou ter alcançado um “recorde” na política de reforma agrária brasileira

desde a criação do Estatuto da Terra em 1964.

Ainda que seja considerada toda a propaganda política do governo – inclusive o fato de

que as estatísticas oficiais não distinguiram os processos de regularização fundiária

(reconhecimento legal do direito histórico da terra pelas comunidades tradicionais),

reassentamento fundiário (reassentamento das famílias atingidas por barragens e

hidrelétricas) e reordenamento fundiário (substituição e/ou reconhecimento de famílias

presentes nos assentamentos já existentes) – constatou-se, de fato, um ritmo

diferenciado nas ações do Estado.

Esta realidade não foi decorrente da benevolência sociológica do governo FHC, mas

sim do agravamento da questão (da reforma) agrária pelo avanço do neoliberalismo que

impunha o agronegócio como o modelo de desenvolvimento da agricultura moderna.

Houve assim o acirramento do conflito de classe no campo brasileiro e os camponeses e

os trabalhadores rurais organizados em movimentos sociais se impuseram como uma

força política na sociedade civil – através das marchas, ocupações e acampamentos dos

“sem terra” – na luta pela construção de uma sociedade com mais liberdade e menos

desigualdade, como afirma Souza (2006, p.106) referindo-se ao “desenvolvimento

autônomo”.

O Estado buscou mecanismos para alienar a consciência de classe dos camponeses e

trabalhadores rurais, desqualificar a essência da luta popular e reprimir a ação dos

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movimentos sociais que historicamente definiram a implantação da política agrária no

país. A violência tornou-se marca da paisagem rural, passando a ser legalmente

praticada para legitimar os interesses capitalistas das empresas e bancos estrangeiros,

como ocorreu no Massacre de Corumbiara (1995) e no Massacre de Eldorado dos

Carajás (1996).

Contudo, considerando que a violência é uma arma de munição vencida, pois quanto

mais mata, mais desperta a vida, como afirma Bogo (2006, p.67), foi na concretude do

conflito no território que os movimentos sociais do campo, em especial o MST, se

consolidaram no cenário nacional (e internacional), colocando na pauta da sociedade a

questão da (reforma) agrária como uma questão nacional.5

O governo FHC inicia então o seu segundo mandato, em 1999, propondo a construção

do “Novo Mundo Rural” enquanto um processo de ruptura nas intervenções do Estado

no campo brasileiro, onde a reforma agrária seria conduzida de forma pacífica nos

princípios “da lei e da ordem” como instrumento de promoção do desenvolvimento

rural.

Na perspectiva do desenvolvimento rural, a reforma agrária passou a ser compreendida

como um mecanismo de integração dos pobres rurais reformados ao mercado enquanto

“agricultores familiares” assim como já vinha sendo proposto em algumas reflexões

teóricas sobre o campo brasileiro, a exemplo de Abramovay e Carvalho Filho:

A Reforma Agrária, portanto, pode ser definida como a política governamental que procurará ampliar a quantidade de pobres rurais capazes de se incorporar como produtores à vida nacional pelo apoio que receberam de instrumentos de política agrícola (ABROMOVAY e CARVALHO FILHO, 1994, p.43).

O combate à pobreza como instrumento de promoção do desenvolvimento rural torna-se

então a ordem do discurso governamental, como enuncia o Plano Nacional de

Desenvolvimento Rural Sustentável (PNDRS): 6

[...] Não se deve, portanto esperar que o crescimento liquide a pobreza. É preciso inverter a equação: transformar a erradicação da pobreza em instrumento promotor do crescimento econômico. Os meios para pôr fim a pobreza devem ser políticas públicas que ajudem a população pobre a aumentar a sua renda e que assegurem o acesso de toda a população ao trabalho e aos bens de serviços essenciais, principalmente alimentação, educação, saúde, transporte e moradia. Enfim, para erradicar a pobreza é necessário ocupar a população diretamente na produção dos bens e serviços essenciais, transformando desempregados em produtores e consumidores de bens e serviços (MDA, 2002).

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A agricultura familiar assume uma centralidade estratégica enquanto expressão da

“reforma agrária pacífica conduzida nos princípios a da lei e da ordem que contribui

para o progresso”, considerando ainda que,

[...] com seu reconhecido potencial na geração de emprego e renda, além de elemento na dinamização das economias locais, deve ocupar papel central nesta proposta de desenvolvimento, para que, além dos efeitos econômicos desejados, contribua muito para a distribuição da riqueza e da renda, assim como para o melhor aproveitamento dos recursos naturais do país (MDA, 2002).

Para garantir a “paz no campo” o Estado reproduz a ideologia da violência no campo – a

partir da qual os movimentos sociais são criminalizados como sujeitos da ação –

buscando a articulação de estratégias que viessem a deslegitimar a luta popular pela

terra no imaginário social. Assim, propagou-se o mercado fundiário como mecanismo

de aquisição pacífica da terra – o que fortaleceu a lógica especulativa e rentista da

produção capitalista do espaço – sendo criado o Banco da Terra como fundo de recursos

dos projetos de “combate a pobreza rural” propostos pelo Banco Mundial: Reforma

Agrária Solidária (1997-1998), Cédula da Terra (1999-2002), Crédito Fundiário (2002-

2009); realizou-se a “Reforma Agrária Virtual pelos Correios” o que gerou um cadastro

de mais de 1,2 milhões de pretensos “reformados”; e também foram criados

mecanismos legais para reprimir as ocupações e os acampamentos, em especial a MP

2.109 - 50 que proíbe a vistoria (por dois anos) em imóveis ocupados e a

Portaria/MDA/nº 62 de 27/03/2001 que exclui os assentados da reforma agrária devido

“atos de invasão ou esbulho de imóveis rurais”.7

Com o início do governo Lula, em 2003, ressurgiu a esperança popular de realização da

reforma agrária. Isto porque, como afirma Stédile (2005, p. 15), a hegemonia do debate

e das idéias em torno do que deveria ser uma reforma agrária foi compartilhada, na

década anterior, pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tanto que houve, neste referido ano, o

crescimento de 86,3% do número de ocupações e de 209% de acampamentos (CPT,

2003) .8

Dessa forma, a política agrária foi redirecionada para a construção de uma “Vida Digna

no Campo” a partir da promoção do desenvolvimento sustentável e solidário no campo

brasileiro (MDA, 2003). Nessa perspectiva, a reforma agrária e a agricultura familiar

foram reafirmadas como políticas estratégias, sendo então aprovado o II Plano Nacional

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de Reforma Agrária (II PNRA – 2003/2006) com a meta de assentamento de 400.000

novas famílias em projetos de reforma agrária e também constatado o crescimento de

65% da meta orçamentária do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura

Familiar (PRONAF) no ano agrícola de 2003/2004 (o que equivaleu a oferta de R$ 4,5

bilhões aos agricultores familiares).

Foi então que o governo federal incorporou a abordagem territorial do desenvolvimento

rural enquanto política pública, sendo os territórios rurais incorporados como as

unidades de planejamento e gestão espacial. No entanto, ainda que a reforma agrária

seja reproduzida no discurso governamental como sendo um instrumento essencial para

a promoção do desenvolvimento rural, a criação de novos assentamentos rurais pela

ação desapropriatória do Estado não se evidencia enquanto questão estruturante na

perspectiva adotada de desenvolvimento. Este processo se evidencia no orçamento e no

cumprimento das metas oficialmente estabelecidas, o que garante a continuidade dos

(des) caminhos da política da reforma agrária no campo brasileiro, nas diversas escalas

espaciais.

O mesmo ocorreu em relação ao (des) cumprimento das metas estabelecidas no II

PNRA, como analisa Oliveira (2007), constatando que, em média, apenas um terço das

metas das novas famílias assentadas foi atingido, o que configurou a “NÃO Reforma

Agrária do MDA/INCRA no governo LULA”.

Segundo os dados elaborados pelo Laboratório de Geografia Agrária USP/Instituto

Iandé, o governou cumpriu apenas 32,9% da Meta 1 (assentamento de 400.000 novas

famílias), sendo assentadas 131.745 novas famílias a partir da política de reforma

agrária. Contudo, as estatísticas governamentais agregaram todas as famílias

beneficiadas com as RBs – Relação dos Beneficiários – pela execução das distintas

políticas agrárias (reforma agrária, regularização fundiária, reordenamento fundiário e

reassentamento fundiário). Outro aspecto importante foi a reprodução da espacialização

da política de reforma agrária do Estado que concentrou as suas intervenções fundiárias

no Nordeste (52%) e Norte (24%), assim como ocorrera no I PNRA.

A questão (da reforma) agrária no contexto do desenvolvimento territorial rural

A questão (da reforma) agrária foi redefinida no contexto da política de

desenvolvimento territorial rural enquanto processo de transformação dos

assentamentos rurais em espaços de produção com viabilidade econômica e, com isso, a

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necessidade estrutural do acesso a terra vem sendo escamoteada pelo marketing político

do fortalecimento da agricultura familiar que adquire concretude nos territórios rurais

através do financiamento dos projetos territoriais de custeio à produção e à

infraestrutura.

Este modelo de desenvolvimento é uma expressão do Paradigma do Capitalismo

Agrário (ABROMOVAY, 2007), sendo atribuído ao Estado o papel estratégico de

financiar a tecnificação do território necessária a garantia da fluidez espacial do capital,

contrapondo-se ao Paradigma da Questão Agrária (KAUTSKY, 1986; MARTINS,

1981), uma vez que o conflito por terra e o desenvolvimento rural são negados enquanto

processos inerentes à contradição estrutural do capitalismo.

Ainda que a reforma agrária seja reproduzida no discurso governamental como sendo

um instrumento essencial para a promoção do desenvolvimento rural, a criação de

novos assentamentos rurais pela ação desapropriatória do Estado não vem se

configurando enquanto prioridade no desenvolvimento rural. Define-se assim um

continuísmo da política agrária do governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) que

buscou garantir o ordenamento territorial necessário ao desenvolvimento das relações

capitalistas no campo e consolidá-lo, em suas distintas temporalidades e

territorialidades.

Com isso, não se pretende ignorar a importância de serem criados mecanismos

governamentais que viabilizem a produção agrícola nos assentamentos rurais. Ao

contrário, esta é uma condição basilar para a conquista da autonomia produtiva dos

assentamentos rurais e reprodução social das “campesinidades” espacializadas em cada

lugar.

Segundo o IPEA (2011), os camponeses são o grupo social mais atingido pela pobreza

extrema do Brasil. Entre as famílias consideradas “extremamente pobres”, 36% tinham

como fonte de renda, em 2009, a produção agrícola. Os principais fatores que levam os

camponeses à pobreza são, pela ordem, o pequeno tamanho de suas terras; a baixa

disponibilidade de insumos agrícolas, especialmente de água; a falta de assistência

técnica; e os baixos preços pagos pelos seus produtos. O desafio se define quando o viés

economicista do acesso aos recursos públicos passa a determinar a essência da ação política

no território (..)

A atual política agrária não estabelece como meta prioritária a criação de novos

assentamentos rurais pelo cumprimento legal da função social da propriedade da terra

porque a ação desapropriatória do Estado evidencia o conflito de classe, reconhecendo

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os trabalhadores rurais como sujeitos sociais de sua própria (geo) história, enfim, é um

questionamento à propriedade privada da terra e ao próprio modelo de desenvolvimento

capitalista. Ao contrário, prioriza-se a recuperação e a consolidação dos assentamentos

já existentes pela ação concessiva de créditos de fomento à produção e infraestrutura

com vistas à emancipação dos assentados enquanto agricultores familiares integrados ao

mercado, processo este que também desencadeia tensões e conflitos entre estes sujeitos

sociais. Dessa forma, a tradição conservadora do reformismo agrário permanece, sendo

reafirmadas as contradições do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro.

O reformismo agrário no campo baiano

Desde 1996, o Grupo de Pesquisa GeografAR vem buscando analisar o passivo social

do “deixando sempre a desejar” no que se refere à implantação da política da reforma

agrária no campo baiano. No que se refere ao II Plano Regional de Reforma Agrária,

elaborado em 2004, por exemplo, foi definida a meta de assentamento de 27.200

famílias para o período 2004-2007. Entretanto, constatou-se que foram assentadas

apenas 7.365 famílias, o que corresponde a 27,07% da meta estabelecida (de forma

análoga à média nacional). Neste período, foram implantados 138 projetos de reforma

agrária que abrangem uma área reformada de 272.637,96 ha.

Percebe-se assim, que o reformismo agrário vem perpetuando a propriedade oligárquica

da terra, como pode ser historicamente observada na estrutura fundiária da Bahia,

através da relação inversamente proporcional entre o número de estabelecimentos rurais

e a área total ocupada. A concentração da propriedade privada da terra, portanto, da

natureza, está na base dos conflitos territoriais que marcam, hoje, todo o campo

brasileiro. Entende-se assim que a estrutura fundiária é a representação numérica da

dimensão da violência manifestada pela apropriação privada da natureza.

Desta forma, foram desenvolvidos procedimentos específicos para coletar, adequar e

sistematizar os dados secundários dos Censos Agrícolas de 1920, 1940, 1950, 1960 e

Censos Agropecuários de 1970, 1975, 1980, 1985, 1995/1996 e 2006 do IBGE.

Posteriormente, foi calculado o Índice de Gini 9 de todos os municípios baianos na série

histórica de 1920 a 2006, como se observa na Tabela 3:

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Tabela 3 Evolução do Índice de Gini na Bahia ( 1920 à 2006)

Fonte: Censos Agrícolas e Agropecuários do IBGE. Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.

Perpetua-se assim uma histórica concentração fundiária, sendo esta realidade agravada,

em especial a partir da década de 1970, com o avanço das relações capitalistas no vácuo

da “modernização da agricultura”. Com destaque para o ano de 2006, o que evidencia a

contradição entre o discurso e a prática governamental no contexto da política de

desenvolvimento territorial rural.

A espacialização da concentração fundiária, no ano de 2006, pode ser mais bem

compreendida através da Figura 1, sendo que dos 417 municípios baianos, 19

municípios (equivalendo a 4,55%) apresentam a concentração variando entre muito

forte a absoluta; 283 municípios (equivalendo a 67,87%) apresentam a concentração

variando entre forte a muito forte; 109 municípios (equivalendo a 26,14 %) apresentam

a concentração variando entre média a forte; e apenas 1 município (equivalendo a 0,23

%) apresenta a concentração variando entre fraca a média.10

Ano Índice de Gini

1920 0,734

1940 0,784

1950 0,794

1960 0,779

1970 0,795

1975 0,805

1980 0,821

1985 0,835

1995/96 0,829

2006 0,838

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Figura 1

Tornando evidente a luta e resistência política pela coquista dos territórios em disputa

no campo baiano, foi sistematizado, em 2010, a existência de 480 projetos de

assentamentos de reforma agrária implantados, com a correspondência de 35.370

famílias assentadas., como se observa na Figura 2. É importante ressaltar que a

metodologia desenvolvida pelo Projeto GeografAR considera apenas os projetos de

assentamentos rurais decorrentes da implantação da política de reforma agrária, tendo

como instrumento legal a ação desapropriatória do Estado por interesse social.

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Figura 2

Ao se analisar a historicidade desse processo, percebe-se a confluência do mesmo com

os (des) caminhos da política de reforma agrária na escala nacional, anteriormente

descrito, estando a intervenção política do Estado no território diretamente relacionada

ao acirramento das contradições do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro.

Nesta perspectiva, destacam-se os contextos dos governos de FHC (em especial, no ano

de 1997) e Lula (com destaque para o ano de 2003), como se observa na Figura 3:

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Figura 3

PROJETO DE REFORMA AGRÁRIA, CÉDULA DA TERRA E CRÉDITO FUNDIÁRIO NA BAHIA 1986 - 2010

01020304050607080

1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

2010

Projetos de Assentamentos de Reforma Agrária Cedula da Terra Credito Fundiário

Fonte: INCRA. Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.

No ano de 2011, no atual gestão da política agrária do governo Dilma (PT), foram

criadas apenas três projetos de assentamentos de reforma agrária no campo baiano! Não

é à toa que este governo vem sendo considerando até então “um dos piores anos da

reforma agrária” no Brasil, como se observa na Tabela 4:

Tabela 4 Projetos de Reforma Agrária Implantados na Bahia, 2011.

Projeto Município Area Fam.( assent) Criação Vale da Califórnia Mirante 4.331,17 54 02/06/2011

3 de Abril São Sebastião do Passé 2.443,53 92 16/06/2011 Jovita Rosa Paratinga 2.269,27 27 09/05/2011

Fonte: INCRA. Elaboração: Projeto GeografAR, 2010.

Dessa forma, o contexto atual da reforma agrária se define assim como sendo de grande

complexidade para a Geografia Agrária brasileira. Não só sendo esta entendida como

uma política pública, mas também, e principalmente, como uma luta popular de direito

social ao campo.

Vários elementos definem esta complexidade, a começar pela emergência político-

partidária do PT no seio da classe trabalhadora do campo e da cidade, e das

organizações e movimentos sociais de luta pela e na terra. No entanto, nos limitamos,

aqui neste momento, a destacar um elemento desafiador a participação representativa

dos movimentos sociais nas instâncias institucionalizadas do poder, em especial nos

colegiados dos territórios rurais.

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Ora, se historicamente, a implantação da política da reforma agrária – ainda que

enquanto um reformismo agrário – se deu a reboque da pressão da luta política, como

então se concretiza este processo no contexto no qual o enfrentamento político com o

Estado deixa de ser o foco da ação? Ao mesmo tempo, o acesso a estes espaços

institucionalizados é compreendido pelos referidos sujeitos sociais como uma ação

estratégica para possibilitar (ou não) a viabilidade econômica dos assentamentos rurais,

através dos recursos de custeio e infraestrutura produtiva via a aprovação dos projetos

territoriais.

Considerações Finais

A permanência histórica da concentração fundiária reafirma, no tempo-espaço, sendo a

propriedade oligárquica da terra um instrumento de acumulação do capital e exploração

do trabalho. Assim, as contradições do desenvolvimento capitalista no campo brasileiro

tendem a ser agravadas, em suas distintas escalas e dimensões. Em especial, no

momento histórico atual de intensificação da inserção subordinada da economia

brasileira no capitalismo monopolista mundial, com a consolidação da economia e

sociedade do agronegócio.

Evidenciam-se assim os (des) caminhos no processo de implantação da política de

reforma agrária com o passivo social do “deixando sempre a desejar” no que se refere

ao cumprimento das metas institucionalmente estabelecidas. A criação da 1ª Lei de

Reforma Agrária no Brasil – o Estatuto da Terra (Lei 4.505/1964) – após mais de um

“século” da institucionalização da propriedade privada da terra com a Lei de Terras de

1850, assim como o descumprimento (i) legal da função social da propriedade da terra

que e das metas estabelecidas no I e II Planos Nacionais de Reforma Agrária, assim

como nos Planos Regionais de Reforma Agrária na Bahia, evidenciam a questão.

A política agrária não prioriza a democratização da base material de reprodução social

considerando que a ação desapropriatória do Estado para a obtenção de terras como

direito social à vida e ao trabalho é um questionamento ao modelo de desenvolvimento

capitalista. Dessa forma, define-se um reformismo agrário – no qual as formas de

intervenções espaciais do Estado são recriadas, permanecendo o conteúdo definidor da

ação política que se utiliza da prática democrática conservadora de negação e violação

dos direitos sociais. Neste caso, a negação do direito a terra para a reprodução social da

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vida no campo como previsto na Constituição da República Federativa do Brasil, de

1988.

Notas

____________ 1A co-autoria deste trabalho é também compartilhada com a Profa. Dra. Guiomar Inez Germani. Coordenadora do Grupo de Pesquisa GeografAR – A Geografia dos Assentamentos na Área Rural. ( POSGEO/UFBA/CNPq) . E-mail: [email protected] 2 Embora o discurso da reforma agrária ainda não fosse explícito, destacam-se como marcos na história da luta pela terra no campo brasileiro a Guerra de Canudos na Bahia, entre 1892 e 1897 e a Guerra do Contestado em Santa Catarina, entre 1912 e 1916, além da Revolta de Trombas e Formoso em Goiás, entre 1946 e 1964, e da Revolta de Porecatu no Paraná, entre 1955 e 1961. Sobre o assunto ver Germani (1993). 3O Estatuto da Terra demandou a elaboração de Planos Nacionais e Regionais de Reforma Agrária para serem os instrumentos do Estado na implantação da política nacional de reforma agrária. Na Bahia, o I Plano Regional de Reforma Agrária (PRRA) foi elaborado em 1986, no Governo Waldir Pires. 4Em 1987, o INCRA é substituindo pelo Instituto Jurídico de Terras Rurais (INTER), sendo a execução da política assumida diretamente pelo MIRAD. Em 1989, o MIRAD foi extinto e o INCRA, recriado no âmbito do Ministério da Agricultura. 5É importante destacar que em 1995 o MST realizou o seu III Congresso Nacional, em Brasília, definindo como palavra de ordem "Reforma Agrária, uma luta de todos". Em 1997, organizou a histórica "Marcha Nacional Por Emprego, Justiça e Reforma Agrária" com destino a Brasília, um ano após o massacre de Eldorado dos Carajás. 6A 3ª versão (versão final) do PNDRS foi aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS) em reunião ordinária realizada em 04/12/2002. Contudo a discussão do “esboço preliminar” teve início no mês de janeiro, sendo a 1ª e 2ª versões apresentadas, respectivamente, em junho e julho do referido ano. Ressalta-se que as ementas da 2ª versão contou com a participação do Grupo Interagencial coordenado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BIRD). 7Sobre a implantação dos programas orientados pelo modelo de reforma agrária de mercado ver Sauer e Pereira (2006). 8Esta esperança popular se materializou na elaboração do Programa Agrário Unitário dos Movimentos Camponeses e Entidades de Apoio – a “Carta da Terra” –, no Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo,em 1993, que defendia a realização de uma ampla reforma agrária e o fortalecimento da agricultura familiar como mecanismos democráticos de garantida do direito social ao trabalho para a reprodução da vida. 9O Índice de Gini foi criado, em 1912, pelo estatístico, demógrafo e sociólogo italiano Conrado Gini (1884 –1965). Equivale à medida do grau de concentração ou desigualdade de distribuição, nesse caso, a terra. O valor do coeficiente de Gini oscila entre 0 e 1. Quanto mais próximo do zero, menor é o grau de concentração e quanto mais próximo do valor 1, maior é o grau de concentração. 10Classificação proposta por Câmara (1949) a partir das seguintes categorias: (0,000 a 0,100 = nula); (0,101 a 0,250 = nula a fraca); (0,251 a 0,500 = fraca a média); (0,501 a 0,700 = média a forte); (0,701 a 0,900 = forte a muito forte); e (0,901 a 1,000 = muito forte a absoluta).

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