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POLÍTICA E BUROCRACIA NO PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO 69 POLÍTICA E BUROCRACIA NO PRESIDENCIALISMO BRASILEIRO: o papel do Ministério da Fazenda no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso * Maria Rita Loureiro Fernando Luiz Abrucio RBCS Vol. 14 n o 41 outubro/99 Introdução O presente trabalho procura entender a lógi- ca de nomeação para os altos cargos governamen- tais em nossa recente experiência democrática. Examinando os vínculos entre política e burocracia no sistema presidencialista brasileiro, enfoca-se es- pecificamente o primeiro governo Fernando Henri- que Cardoso e, dentro dele, o caso do Ministério da Fazenda, considerado predominantemente técnico e “imune” às interferências políticas. Este estudo justifica-se por três razões. Em primeiro lugar, a relação entre política e burocracia é fundamental na definição do processo de gover- no, sobretudo no presidencialismo. De um lado, porque o Executivo constitui sua maioria parla- mentar em grande medida através da distribuição de cargos. De outro, porque, quanto maior for a politização da burocracia, maior será o problema do controle da delegação, tanto para o presidente como para os parlamentares que participaram da indicação dos postos governamentais. Logo, en- tender como funciona o equilíbrio das relações entre política e burocracia torna-se fundamental. A segunda razão deriva exatamente da argu- mentação desenvolvida pelos poucos trabalhos que estudaram a relação entre política e burocracia no Brasil. 1 A grande maioria dos estudos, ao invés de entender como ocorre o equilíbrio dos ditames da burocracia com os da política, geralmente busca estabelecer uma divisão entre o comportamento técnico do corpo burocrático — o padrão merito- crático — e a forma meramente clientelista de atuação dos parlamentares. Disto resultam, muitas vezes, análises que abraçam como ideal a total despolitização da burocracia, como se esta apenas produzisse decisões “técnicas” visando à defesa do “interesse público”, não necessitando de controle político. Como contraponto a esta visão, deve-se con- siderar que as decisões “técnicas” não são neutras. Constituem, na verdade, escolhas entre possíveis * Este artigo é uma versão revisada e reduzida de texto apresentado ao GT Economia e Política, no XXII Encon- tro Anual da Anpocs, 27-31 de outubro de 1998. O apoio técnico e financeiro do Núcleo de Publicações e Pesqui- sa (NPP) da Fundação Getúlio Vargas foi fundamental para a realização do trabalho. Agradecemos ainda a Carlos Alberto Rosa, pela colaboração no levantamento de dados e na construção de tabelas e quadros, e a Argelina Figueiredo, Cláudio Couto, George Avelino Filho e Kurt Mettenheim pelos comentários preciosos.

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POLÍTICA E BUROCRACIA NOPRESIDENCIALISMO BRASILEIRO:o papel do Ministério da Fazendano primeiro governo FernandoHenrique Cardoso*

Maria Rita LoureiroFernando Luiz Abrucio

RBCS Vol. 14 no 41 outubro/99

Introdução

O presente trabalho procura entender a lógi-ca de nomeação para os altos cargos governamen-tais em nossa recente experiência democrática.Examinando os vínculos entre política e burocraciano sistema presidencialista brasileiro, enfoca-se es-pecificamente o primeiro governo Fernando Henri-que Cardoso e, dentro dele, o caso do Ministério daFazenda, considerado predominantemente técnicoe “imune” às interferências políticas.

Este estudo justifica-se por três razões. Emprimeiro lugar, a relação entre política e burocraciaé fundamental na definição do processo de gover-no, sobretudo no presidencialismo. De um lado,porque o Executivo constitui sua maioria parla-mentar em grande medida através da distribuiçãode cargos. De outro, porque, quanto maior for apolitização da burocracia, maior será o problemado controle da delegação, tanto para o presidentecomo para os parlamentares que participaram daindicação dos postos governamentais. Logo, en-tender como funciona o equilíbrio das relaçõesentre política e burocracia torna-se fundamental.

A segunda razão deriva exatamente da argu-mentação desenvolvida pelos poucos trabalhos

que estudaram a relação entre política e burocraciano Brasil.1 A grande maioria dos estudos, ao invésde entender como ocorre o equilíbrio dos ditamesda burocracia com os da política, geralmente buscaestabelecer uma divisão entre o comportamentotécnico do corpo burocrático — o padrão merito-crático — e a forma meramente clientelista deatuação dos parlamentares. Disto resultam, muitasvezes, análises que abraçam como ideal a totaldespolitização da burocracia, como se esta apenasproduzisse decisões “técnicas” visando à defesa do“interesse público”, não necessitando de controlepolítico.

Como contraponto a esta visão, deve-se con-siderar que as decisões “técnicas” não são neutras.Constituem, na verdade, escolhas entre possíveis

* Este artigo é uma versão revisada e reduzida de textoapresentado ao GT Economia e Política, no XXII Encon-tro Anual da Anpocs, 27-31 de outubro de 1998. O apoiotécnico e financeiro do Núcleo de Publicações e Pesqui-sa (NPP) da Fundação Getúlio Vargas foi fundamentalpara a realização do trabalho. Agradecemos ainda aCarlos Alberto Rosa, pela colaboração no levantamentode dados e na construção de tabelas e quadros, e aArgelina Figueiredo, Cláudio Couto, George AvelinoFilho e Kurt Mettenheim pelos comentários preciosos.

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rumos a tomar, com determinados impactos sobrea sociedade. Os ocupantes de cargos públicos dealto escalão são aqueles que, legitimados peloprocesso democrático, devem optar por uma dassaídas técnicas existentes. Além do mais, o exces-sivo insulamento da burocracia ante o sistemapolítico tende a favorecer determinados grupos deinteresse. Os “anéis burocráticos” criados no regi-me militar demonstraram que uma burocracia pro-tegida da influência dos partidos politiza-se poroutras vias, sem que haja o devido controle públicodemocrático (Cardoso, 1975).2

A constituição de uma burocracia de mérito ecom certo grau de autonomia é, sim, essencial noEstado moderno, mas suas ações devem ser moni-toradas pelo sistema representativo, cabendo aospolíticos fazer a ponte entre as decisões burocráti-cas e os interesses por eles representados. Não setrata, portanto, de privilegiar um ou outro grupo e/ou lógica de atuação. Como já mostrara Weber, háuma “inseparável complementaridade” entre polí-ticos e burocratas no mundo moderno, emborasuas relações sejam marcadas por permanentestensões (Weber, 1993; Cohn, 1993, p. 16; Beetham,1993, pp. 51-63).

As mudanças operadas no mundo moderno,ademais, tornam mais difícil a manutenção de umaperspectiva dicotômica no que tange à relaçãoentre burocracia e política, sobretudo no altoescalão governamental. Isto porque, com o au-mento da cobrança democrática por parte da po-pulação e com a necessidade de uma atuação cadavez mais eficiente por parte do Estado, o limiteentre o que é a tarefa do burocrata e o que cabe aopolítico vem-se tornando cada vez mais tênue e,em alguns casos, há um total “embaralhamento”destas duas funções. Ao ocupar cargos públicos, ospolíticos precisam responder tecnicamente aosproblemas, e caso não o façam, suas carreiraspodem correr risco. Os burocratas, por sua vez,sobretudo quando ocupam funções do alto esca-lão, precisam atuar politicamente no sentido deescolher prioridades e levar em conta interesses evalores, sejam eles referentes à lógica interna dosistema político, sejam vinculados a determinadasorientações técnicas com maior aceitação na soci-edade. A própria separação entre político e buro-

cracia definida por Weber, portanto, torna-se maiscomplexa.

Uma das análises mais instigantes sobre arelação entre os políticos e os burocratas realizadanos últimos anos reforça a posição teórica adotadaaqui. Trata-se do estudo comparativo feito porAberbach, Putnan e Rockman (1981), analisandosete países — Estados Unidos, Grã-Bretanha, Fran-ça, Alemanha, Itália, Holanda e Suécia. Os autoresmostram que é errôneo adotar a visão de que opolítico governa e o burocrata apenas administra.Na verdade, o que vem ocorrendo é a burocratiza-ção da política e a politização da burocracia,fazendo com que os dois grupos adotem umaestratégia híbrida de atuação — políticos baseandosua atuação cada vez mais no discurso técnico eburocratas reforçando o aspecto político em seucálculo de atuação, seja mediando interesses declientelas específicas, seja norteando-se pelos si-nais emitidos por políticos. Desta forma, ambosprecisarão cada vez mais adotar a posição depolicy-makers, com responsabilidade política esem ignorar o caráter técnico dos assuntos deEstado.

E aqui entra a terceira razão que justificanosso trabalho. A escolha do Ministério da Fazenda(MF) brasileiro na experiência democrática recentedeve-se à sua importância central nas relações entrepolítica e burocracia. O MF não é apenas umaestrutura insulada, voltada a discussões e decisõesmeramente técnicas; ele é fundamental para aconsecução de dois objetivos estratégicos aos go-vernos latino-americanos: para a adoção de deter-minada linha de política econômica que garantaapoio interno e externo ao presidente, sendo por-tanto seu êxito essencial para se obter apoio parla-mentar, e, ademais, como estrutura utilizada pelaPresidência para controlar a delegação de poderese responsabilidades na distribuição de cargos públi-cos aos aliados. Na verdade, defende-se aqui a tesede que o Ministério da Fazenda tornou-se o princi-pal núcleo de poder do gabinete presidencial brasi-leiro, especialmente no primeiro governo FernandoHenrique Cardoso, constituindo-se, a um só tempo,como elemento técnico e político. Seus integrantes,portanto, tornaram-se um dos mais importantespolicy-makers do Executivo federal.

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Assim sendo, o objetivo do artigo é analisarquais variáveis explicam a importância e o pode-rio adquiridos pelo Ministério da Fazenda no ga-binete presidencial no período democrático re-cente, mais especificamente no primeiro governoFernando Henrique Cardoso. Para tanto, iremosestudá-lo no seus planos externo e interno. Noque tange à dimensão externa, as referências bá-sicas são o papel crescente da área econômicanos governos contemporâneos e a crise fiscal doEstado latino-americano, o funcionamento do sis-tema político brasileiro e a montagem dos gabi-netes presidenciais ao longo da redemocratiza-ção. No âmbito interno, por sua vez, analisare-mos as estruturas de poder formais e informaisdo MF, as características profissionais do alto es-calão deste Ministério, além de sua articulaçãocom o restante do gabinete, sobretudo com aPresidência. Os fatores externos serão tratados aseguir. Depois, concentraremos a discussão nosfatores internos, resumindo as principais conclu-sões de extensa pesquisa empírica (Loureiro eAbrucio, 1998a e 1998c).

O papel da área econômica nosgovernos contemporâneos

Na formação do Estado liberal moderno, oMinistério da Fazenda ou das Finanças constituiu-se, junto com as Forças Armadas e a Justiça, nonúcleo central das burocracias governamentais.Depois de toda a expansão das áreas sociais aolongo da construção dos vários modelos de welfarestate, hoje novamente o Ministério da Fazenda —ou correlato — ganha destaque. Isto porque ele setransformou em agência dominante na estruturagovernamental em razão do imperativo fiscal queguia os governos em praticamente todo o mundo.É uma era, segundo Flynn e Strehl (1996), em quea lógica orçamentária da otimização do inputprevalece sobre a lógica do output, da produçãodas políticas em si.

Na América Latina, este imperativo fiscalganhou contornos ainda maiores, com a crise dadívida se somando a um forte ciclo inflacionário.Na década de 80 e no início da de 90, os paíseslatino-americanos viveram sob o signo da urgência

econômica, o que evidentemente conferiu maiorimportância ao posto de ministro da Fazenda e atoda a “equipe econômica” que gira em sua volta.Além disso, no países presidencialistas latino-ame-ricanos, nos quais a crise fiscal e as reformaseconômicas estão no centro de suas agendas polí-ticas, a centralidade política dos ministérios daFazenda é evidente quando se observam, porexemplo, os vínculos particularmente estreitos es-tabelecidos entre os presidentes da Repúblicas eseus ministros da Fazenda e, sobretudo, a posiçãode líderes presidenciáveis destes ministros, comoforam os casos de Fernando Henrique Cardoso, noBrasil, Domingos Cavallo, na Argentina, e Alejan-dro Foxley, no Chile.

Além disso, em um estudo centrado nasrelações entre burocracia e política, como o nosso,a escolha do Ministério da Fazenda é particular-mente interessante na medida em que se supõeque, por sua própria natureza institucional, oscomponentes técnicos das suas decisões (ou seja,a lógica do controle de gastos e da distribuiçãorígida de recursos dentro das alocações orçamentá-rias) normalmente sobressaem-se em relação aoscomponentes estritamente vinculados ao jogo po-lítico (isto é, a lógica das disputas eleitorais, dosinteresses federativos, das demandas sociais etc.).Entretanto, se a luta entre a racionalidade técnicados burocratas e a racionalidade política manifesta-se aqui como luta entre Ministério da Fazenda,defensor do ajuste fiscal, e outros ministérios “gas-tadores”, que pressionam para aumentar os gastospúblicos e atender as demandas de suas clientelas,por outro lado não se pode esquecer que a políticacomo luta entre interesses e/ou valores divergen-tes está também presente no interior do próprioMinistério, intimamente imbricada com as escolhastécnicas que o presidente realiza e, sobretudo, deacordo com os resultados das políticas macroeco-nômicas e seus impactos para a legitimação dogoverno.

Nesse sentido, as relações de poder no altoescalão (entre políticos e burocratas e destes en-tre si) configuram-se no Ministério da Fazenda deforma bastante específica. Tal especificidade de-corre da própria natureza de seus burocratas (e/ou especialistas recrutados fora da burocracia

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que tomam decisões) como atores políticos híbri-dos. Ou seja, são técnicos especializados queagem politicamente, levando em conta interesses,orientações teóricas, políticas e mesmo ideológi-cas. Portanto, para os fins deste estudo, são con-siderados políticos os membros da alta burocraciaque atuam nas diferentes secretarias do Ministérioda Fazenda, não só implementando suas políti-cas, mas igualmente participando do processodecisório, e para aí aportando recursos políticoscomo a articulação de idéias e interesses e osaber técnico necessários para a formulação des-sas políticas.

Mas antes de estudar especificamente estespolicy-makers do Ministério da Fazenda, é funda-mental entender os dois outros fatores externos: ofuncionamento do presidencialismo brasileiro e amontagem dos gabinetes ao longo da redemocra-tização.

Presidencialismo e burocraciano Brasil: a formação dos gabinetesministeriais da redemocratização

A estrutura da alta burocracia de qualquerpaís depende, em grande medida, da relação entreo sistema político e a administração pública. Nestesentido, o sistema de governo, o sistema partidário,a organização político-territorial e a permeabilida-de política da alta burocracia são variáveis funda-mentais.

No Brasil, a variável político-institucionalmais relevante é o presidencialismo. SegundoShugart e Carey (1992), o sistema presidencialistatem as seguintes caracterísiticas: eleição populardo chefe do Executivo; mandatos fixos para ospoderes Executivo e Legislativo, e não dependen-tes de confiança mútua; chefe do Executivo no-meia e dirige a composição do governo, além deter poderes legislativos outorgados pela Consti-tuição.

A partir desta caracterização, constatam-setrês efeitos mais gerais do presidencialismo naformação da alta burocracia. O primeiro é que opresidente torna-se, de fato, o construtor de seugabinete, e não o partido majoritário ou a coalizãovencedora, como ocorre no parlamentarismo. Au-

menta assim a capacidade presidencial de montare remontar estruturas administrativas vinculadas aoseu projeto político, bem como o seu poder denomeação independentemente dos arranjos buro-cráticos mais perenes. O spoil system constitui-se,desse modo, em uma das características fundamen-tais da maioria dos presidencialismos.

Em segundo lugar, o presidente, sobretudona América Latina, possui poderes legislativos quetornam o Executivo bastante forte perante o Con-gresso Nacional (Mainwaring e Shugart, 1997; Fi-gueiredo e Limongi, 1997). Se este poder doExecutivo for acrescido do enfraquecimento insti-tucional do Legislativo — por exemplo, no proces-so orçamentário —, a carreira da classe política vaiser direcionada mais para os postos no Executivo.Este é o caso típico do Brasil, onde a meta principaldo parlamentar não é a reeleição, mas ocuparcargos no Executivo, de todos os níveis de gover-no, que potencializem sua carreira política (Abru-cio e Samuels, 1997).

Se as duas características acima contribuemmais para o fortalecimento do presidente, há umaoutra que o enfraquece. Trata-se da necessidadede o Executivo obter apoio parlamentar em umsistema em que não há vinculação imediata entreos dois Poderes — ao contrário, o presidencialismoé por princípio baseado no governo dividido.

O caso brasileiro possui as três característicasacima apontadas e, historicamente, a montagemdo gabinete presidencial passa pelo convívio decaracterísticas majoritárias e consociativas (Couto,1997). Dentre as características consociativas, des-tacam-se, primeiro, o grande número de partidosrelevantes no Congresso, a indisciplina partidária eas constantes mudanças de legenda, obrigando opresidente a montar um gabinete bastante hetero-gêneo e difícil de controlar — mesmo no primeirogoverno de Fernando Henrique, considerado forteem comparação ao restante da história republicanabrasileira, o presidente precisou dividir o seuMinistério com cinco partidos, com fidelidade nemsempre garantida.

A estrutura federativa, por sua vez, tem umcaráter centrífugo, dando bastante autonomia polí-tica aos estados e tornando-os colégio eleitoral daeleição nacional, exatamente num contexto de

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fragilidade dos partidos na organização da carreirada classe política. Disto resulta, entre outras coisas,que a lealdade dos parlamentares vincula-se, mui-tas vezes, mais aos seus estados do que aospartidos ou a uma lógica nacional (Mainwaring,1999; Abrucio, 1998). Deste modo, o presidente,para obter maioria, terá de responder não somenteàs lideranças políticas instaladas em estruturascentralizadas, mas também às bases locais.

A estas características consociativas soma-seoutra de cunho majoritário: o forte poder daPresidência da República em nosso sistema políti-co. Sua explicação está, inicialmente, na dinâmicapersonalista presente na figura do presidente, tan-to no momento eleitoral como no governativo.Este caráter não diz respeito apenas à culturapolítica; ele já está instalado nas instituições e nomodus operandi do sistema político e do Executi-vo, e a criação das medidas provisórias,3 na Cons-tituição de 1988, veio reforçar este aspecto. Demodo que o presidente será quase sempre aliderança a iniciar o jogo político. Além do mais,para ganhar autonomia ante os compromissospolíticos assumidos num sistema consociativo, opresidente cria estruturas paralelas de poder efortalece determinados nichos de insulamento bu-rocrático. É como se o presidente, por um lado,distribuísse poder para obter apoio político e, poroutro, tivesse também que reconcentrar outra par-cela de poder para conseguir de fato reduzir aomáximo a dispersão causada pela barganha decargos e, assim, “controlar” os aliados e realizar assuas políticas prioritárias. A forma mais utilizadapara obter apoio parlamentar, nesse caso, é oloteamento dos principais postos governamentais,com seu efeito paradoxal: garante a maioria aopresidente mas pode reduzir sua capacidade decontrolar a delegação de funções na montagem deseu gabinete. Este é o dilema da governabilidadedo presidencialismo brasileiro. Como veremos,não é um dilema que leva inexoravelmente àingovernabilidade, como argumenta parte da lite-ratura, mas cuja resolução depende de uma enge-nharia política complexa, envolvendo vários ele-mentos.

Uma última característica mais geral do presi-dencialismo brasileiro refere-se à estrutura de car-

reiras, tema pouco tratado pela Ciência Políticabrasileira. Na verdade, nossa administração públi-ca foi montada a partir de cargos e não de carreiras.Deste modo, em geral o topo do organogramaestatal não é preenchido necessariamente por fun-cionários de carreira do Estado, mas sim por meiode nomeações.4 Há, aparentemente, uma maiorfragilidade burocrática diante das injunções políti-cas. Tal afirmação esconde um aspecto importante:parte significativa do alto escalão é ocupada pordeterminados grupos que estão sempre em cargoscomissionados, sobretudo porque a forte rotativi-dade ministerial leva os políticos a escolheremburocratas com experiência e conhecimento damáquina. Os “bons esplanadeiros”,5 como os defi-niram vários entrevistados, são fundamentais parao funcionamento do presidencialismo brasileiro epara a sobrevivência da classe política que osustenta.

A argumentação acima poderia ser refutadapela constatação de que, na grande maioria dasvezes, estes burocratas circulam de um ministériopara outro, resultando em baixa estabilidade orga-nizacional e, por conseguinte, em descontinuidadede políticas. Mas o fato mais relevante aqui é queos burocratas com maiores qualidades técnicas ecapacidade de mobilização política permanecem, adespeito das mudanças de governo. Embora con-figurando um padrão informal, tal característica écrucial para o funcionamento estável do presiden-cialismo brasileiro.

Este padrão, é bem verdade, estabeleceu-semais claramente e de forma mais continuada noMinistério da Fazenda, objeto de nosso estudo.Neste caso, as carreiras têm uma importância maiordo que nos outros ministérios, mas há um conjuntode técnicos que tem permanecido no MF sempertencer às carreiras internas. O poder de mobili-zação política, o conhecimento da “máquina” e aadoção de um receituário cada vez mais hegemô-nico de soluções para os problemas econômicossão as características comuns a este corpo defuncionários que tem tido “cadeira cativa” no altoescalão do Ministério da Fazenda. A estes sesomam os que vêm “de fora”, provindos da univer-sidade e/ou do setor privado, cujos nomes não sealteraram tanto como nos outros ministérios. Tais

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nomes, entretanto, revezam-se em função de mu-danças nas orientações da política econômica e daconfiança do presidente e do ministro da Fazenda.

Em resumo, nem na área fazendária, uma dasmais insuladas, há uma completa vinculação entrecarreira e cargos do alto escalão como nos paísesparlamentaristas; no entanto, há um número signi-ficativo de técnicos, do governo federal ou não,que têm permanecido nestes postos, não ocorren-do aqui um modelo completamente aberto, comoo gabinete presidencial brasileiro é caracterizadopela literatura. Embora as carreiras sejam maisimportantes neste ministério do que nos demais, apermanência do técnico vai depender, repetindo oargumento acima, da mobilização política, de eleser um “esplanadeiro” e de atuar conforme umreceituário técnico que se tornou hegemônico.Estas três características mostram cabalmentecomo até na Fazenda os técnicos — de fora ou dedentro do governo — precisam atuar politicamen-te, isto é, têm de se tornar técnicos-políticos.

Além destas características mais gerais dosistema político, temos de entender o provimentodos cargos de alto escalão do Ministério da Fazen-da no contexto da formação dos gabinetes presi-denciais da redemocratização do país. O fim doperíodo autoritário levou a um aumento da compe-tição política pelos cargos de alto escalão. Apósvários anos em que o provimento da alta funçãopública do governo federal esteve fechado à boa

parte da classe política e também a uma parcelasignificativa dos principais núcleos técnicos não-governamentais, a Nova República significou aoportunidade de acesso a estes postos para osvários grupos políticos. A partir de amplo estudosobre a escolha de todos os ministros e ocupantesde secretarias vinculadas à Presidência da Repúbli-ca, desde o governo Sarney até o final de 1997,6

constatamos, em primeiro lugar, uma grande insta-bilidade ministerial ao longo da redemocratizaçãobrasileira, como mostra a Figura 1. Note-se que ogoverno Sarney teve a maior taxa de renovaçãoministerial, ao passo que o governo FernandoHenrique Cardoso obteve a menor taxa,7 porrazões que explicaremos depois.

Tais dados tornam-se mais expressivos seobservarmos que as taxas de rotatividade ministe-rial no Brasil são muito maiores do que as dorestante da América Latina e de outros países emdesenvolvimento. Segundo Naím (1996), os minis-tros na América Latina, no período 1988-93, perma-neceram no cargo por apenas 14,6 meses emmédia. Se forem excluídos países como México,Chile e Colômbia, que apresentam ocupações mi-nisteriais mais longas, a média do continente caipara 11,5 meses. No conjunto desses países, algu-mas áreas como os ministérios do Trabalho, daSaúde e da Educação têm rotatividade maior doque a das pastas econômicas. A Figura 2 expressamelhor esta situação.

SARNEY

COLLOR

ITAMAR

FHC

0 10 20 30 40 50 60 70

SARNEY

COLLOR

ITAMAR

FHC

P = n. de Pessoas

Taxa de Renovação:FHC = 1,15Itamar = 1,72Collor = 1,77Sarney = 2,34

Figura 1Número de Pessoas que Ocuparam Cargos de Ministros e nos

Demais Órgãos da Presidência da República

Obs.: No caso de Fernando Henrique Carsoso, o cálculo da taxa de renovação vai até dezembro de 1997, antes das reformasministeriais do primeiro semestre de 1998.

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No caso do governo Sarney, a explicaçãopara a instabilidade ministerial está, primeiro, naheterogeneidade da aliança que dera base à NovaRepública, e portanto o número de “pretendenteslegítimos” era alto. Além disso, o presidente JoséSarney precisou recorrentemente afirmar o seupoder perante os integrantes da Aliança Democrá-tica, elevando o conflito pela disputa dos cargos.

Mas a competição política por cargos públi-cos continuou alta nos outros governos. A explica-ção baseada na fragilidade do governo Sarney nãodá conta deste fenômeno. A instabilidade ministe-rial, como visto na Figura 1, continuou nos gover-nos Collor e Itamar. No primeiro, a explicaçãoconjuntural está no erro de sua estratégia inicial dequerer governar e montar seu gabinete a despeito

do Congresso Nacional. Collor, assim, esqueceu-sede que no presidencialismo, sobretudo quandosomado a um alto grau de consociativismo, comoé o caso brasileiro, não se pode governar semlotear a estrutura ministerial, em maior ou menormedida. Mais do que isso, como mostrou OctávioAmorim Neto (1994, p. 25), os presidentes brasilei-ros com maior estabilidade governativa foramaqueles que dividiram o governo com o maiorpartido no Congresso, e na primeira parte de seumandato, exatamente a mais longa (um ano emeio, num período de dois anos e meio), Fernan-do Collor praticamente alijou o PMDB da partilhado poder.

A instabilidade ministerial do governo Itamarexplica-se conjunturalmente por dois fatores. O

0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50 55

Brasil

Peru

Argentina

ALC, exceto México

Coréia

Venezuela

América Latina

Tailândia

Colômbia

Chile

Espanha

Malásia

Botsuana

México

Cingapura

Número de Meses

Fonte: Chiefs of state and cabinet members of foreign governments. Periódico do governo norte-americano (1988-1993), apudNaím (1996, p. 251).

Figura 2Número Médio de Meses em que Permanecem no Cargo os Ministros

dos Países em Desenvolvimento (1988-1993)

Os meses de um ministro no cargo

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primeiro e mais importante é o da relação entre otipo de coalizão montado inicialmente e as caracte-rísticas peculiares da liderança do presidente Ita-mar. O caráter inicial de coalizão pró-impeachmentobrigou o presidente a, num primeiro momento,dividir a composição do governo com uma amplacoalizão, maior até do que a da Nova República. Aolongo do governo, o resultado desta ampla coalizãofoi sendo remodelado pelas escolhas de Itamar, quequeria imprimir uma feição própria ao gabinete.Aliás, o governo Itamar foi aquele em que asescolhas pessoais mais pesaram no provimentoministerial, como veremos depois, e em que osmotivos meramente idiossincráticos mais atuaramna demissão ou nomeação de um ministro. Só noMinistério da Fazenda, Itamar Franco teve maisministros do que Sarney (seis contra quatro), sendoque seu governo durou a metade do cumprido peloprimeiro presidente da redemocratização. Alémdeste fator, como Itamar teve o final de seu governomarcado pela composição em torno de uma campa-nha presidencial, ele teve de adaptar e readaptarseu Ministério de acordo com as injunções vincula-das à candidatura de Fernando Henrique Cardoso àPresidência da República.

Estes fatores conjunturais ajudam a explicarmas não respondem por completo o problema dainstabilidade ministerial na redemocratização. Demodo que quatro outros fatores estruturais devemser agregados. O primeiro, de cunho mais estrutu-ral, vincula-se à crise do Estado desenvolvimentista,iniciada na década de 80, e à dificuldade de seconstituir uma nova aliança hegemônica no país(Sallum Jr., 1996). O fato é que pelo menos os trêsprimeiros governos do período pós-autoritário (Sar-ney, Collor e Itamar) sofreram muito com estasituação, pois tinham menos recursos para distribuirà sua base — o que a tornava mais instável — emenor capacidade de organizar a ação coletiva pararesolver a “urgência econômica” que o país vivia.Assim, o apoio político-parlamentar foi estreitamen-te vinculado aos sucessos momentâneos, sobretudoos alcançados com os planos de estabilização.

O segundo fator refere-se à necessidade derepartir o gabinete com um grande número departidos. Ao contrário do que grande parte daliteratura afirma, os partidos são instrumentos im-

portantes na montagem dos gabinetes presidenci-ais. Dados de nossa pesquisa, analisados maisadiante (Figura 3), e os coletados por Rachel Mene-guello (1998) e Octávio Amorim Neto (1994) de-monstram claramente isto. No entanto, há umcontingente de partidos relevantes muito alto noBrasil se comparamos a outros países de gabinetedividido — já chegamos a ter oito no períodoItamar, alcançando um padrão bem acima do presi-dencialismo latino-americano e só perdendo para opresidencialismo polônes no período de Lech Wa-lessa (Linz e Stepan, 1996). Desse modo, o processode divisão do governo é mais fragmentador no casobrasileiro, dificultando o controle da delegação e,assim, criando maiores incertezas aos governantes.Diante desta situação, os presidentes muitas vezestêm sido impelidos a fazer sucessivas alterações noorganograma estatal ou nos postos ministeriais paratentar recuperar poder ou aumentar a capacidadede monitoramento dos cargos distribuídos.

A disputa acirrada por cargos ministeriais,ademais, é impulsionada pelo mote principal dacarreira típica da classe política brasileira: a prefe-rência por obter cargos no Executivo a fortalecerinstitucionalmente o Legislativo. Este é um terceirofator que favorece a instabilidade ministerial. Éinteressante comparar aqui, ainda que brevemente,o caso brasileiro com o provimento de cargosministeriais no presidencialismo norte-americano.Regras constitucionais que impedem a participaçãosimultânea em mais de um Poder e a predominân-cia do bipartidarismo fazem com que, nos EUA, oposto de secretário, equivalente ao de ministro, nãoseja atrativo para os membros do Congresso. Aocontrário, ocupar o posto de secretário pode signifi-car, em muitos casos, um declínio na hierarquia depoder e de prestígio. No gabinete, o político estadu-nidense será um subordinado ao presidente, aopasso que como congressista poderá estar numaposição mais simétrica, já que nos EUA efetivamen-te há uma separação e equivalência dos Poderes(Jones, 1995). Isto pode ser constatado no processoorçamentário, no qual o Congresso norte-america-no tem um grande poder, ao contrário do queocorre no Brasil, onde os parlamentares buscampostos executivos para terem, de fato, participaçãono manejo dos recursos públicos. Portanto, dados

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estes incentivos, são raríssimos os casos nos EstadosUnidos em que congressistas deixam seus cargospara ocuparem uma secretaria.8

O quarto elemento causador da instabilidadeministerial é a necessidade de se conjugar diversoscritérios na indicação dos ministros. Não só ocritério partidário, mas também o federativo éfundamental, dada sua importância na lógica dacarreira política. Igualmente, o critério pessoalganha relevância como modo de o presidentepreencher postos estratégicos do gabinete comnomes de sua inteira confiança, a fim de contraba-lançar os problemas de delegação de nosso siste-ma. Por fim, o critério técnico é cada vez maisessencial, uma vez que os políticos têm de realizartrade-offs entre a conquista de cargos para adistribuição de recursos às clientelas e a busca deracionalidade e legitimação das políticas junto àopinião pública — sobretudo porque não há umpreenchimento imediato dos postos do alto esca-lão por critérios meramente burocráticos.

Traçamos, então, um perfil das escolhas mi-nisteriais ao longo da redemocratização segundo

seis critérios — partidário, federativo, técnico-político, imagem, grupo de interesse e pessoal.9

Os pressupostos básicos são que os critérios nãosão excludentes entre si e que as indicações envol-vem uma combinação entre estes mesmos critéri-os, o que nos levou a conferir pesos de 1 a 6conforme a importância de tais aspectos em cadanomeação. Para confeccionarmos um mapa doprovimento dos postos ministeriais ou correlatos,utilizamo-nos de dados biográficos (participaçãoem partidos ou entidades da sociedade civil, ori-gem regional etc.), documentos oficiais, de im-prensa, e entrevistamos um amplo leque de pesso-as que ocuparam (ou ainda ocupam) cargos estra-tégicos, pedindo-lhes que indicassem um peso (de1 a 6) a cada um dos nomeados.10 A Figura 3 revelaos resultados.

A figura acima indica que os critérios prepon-derantes no governo Sarney, caracterizado porgrande instabilidade ministerial, foram o partidárioe o federativo. Isto se explica pelo interesse dopresidente em dividir ao máximo os cargos do altoescalão com as bancadas estaduais e partidárias. O

Governos Pesquisados

Tota

l de

Pont

os

5

15

25

35

45

55

Sarney Collor Itamar FHC

Partidário Federativo TécnicoGrupos de Interesse Imagem Pessoal

Figura 3Critérios Predominantes de Nomeação de Ministros

e Secretários Especiais da Presidência da República nos GovernosSarney, Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso

Fonte: Loureiro e Abrucio (1998c).

Totalização de pontos por Critério/Governo

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que, aliás, não lhe garantiu alto grau de governabi-lidade. Collor, por sua vez, priorizou inicialmenteo critério de imagem, uma vez que fora eleitocontra os políticos (os “marajás”), e tentou, assim,estabelecer-se como um presidente acima do siste-ma político. Sua visão cesarista logo foi dissipada,pois não poderia governar no presidencialismoconsociativo brasileiro sem o Congresso Nacional.Contudo, oito meses depois de incluir em seugoverno os partidos e o jogo federativo, Collorcomeçou a sofrer as denúncias de corrupção queatingiram os seus cinco últimos meses de governo.Neste período, ele novamente apostou no critérioda imagem no provimento ministerial, agora pormotivos diferentes: tratava-se de colocar pessoasreconhecidas pela sociedade por seu comporta-mento ético, e desta forma contrabalançar as de-núncias de corrupção.

Itamar priorizou, no início de seu governo, oaspecto partidário, porque precisava do suporte daclasse política para lhe assegurar a legitimidadenecessária após o impeachment. Com o tempo, opresidente procurou autonomizar-se e os critériospessoal e técnico ganharam importância, tornando-se os mais utilizados durante o governo, comomostra a Figura 3. Isto ocorreu por duas razões:primeiro, pelo próprio perfil do presidente, sempreinseguro quanto ao apoio político e deste modochamando seus amigos mais próximos para auxiliá-lo. Daí surgiu a “República do pão de queijo”, o quetambém, por tabela, deu um peso significativo aocritério federativo, mais especificamente a MinasGerais. Mas é a segunda razão a essencial. Entre1993 e 1994, o perfil técnico do governo se acen-tuou, fenômeno causado e reforçado, sucessiva-mente, pela escolha de Fernando Henrique para oMinistério da Fazenda, pelo sucesso de seu planode estabilização econômica e por sua conseqüentetransformação em candidato do establishment e dosgrandes partidos, vacinados pelo episódio Collor econtrários à candidatura Lula. Na verdade, Fernan-do Henrique atuou no final do mandato de Itamarcomo um verdadeiro primeiro-ministro, e toda apolítica governamental ficou atrelada ao êxito desua gestão no Ministério da Fazenda. O aumento docomponente técnico neste governo foi, em grandemedida, uma conseqüência disso.

O governo Fernando Henrique, como seapreende dos dados acima, tem sido aquele commaior estabilidade ministerial e em que há umpredomínio forte do critério técnico, seguidopelo partidário. Fica a pergunta: por que o perfildo gabinete do presidente Fernando HenriqueCardoso é diferente daquele dos governos anteri-ores? Em primeiro lugar, porque o presidenteFernando Henrique Cardoso tinha em seu primei-ro mandato uma situação financeira melhor doque a dos demais presidentes do período pós-autoritário. É fato também que parte desta situa-ção foi construída na gestão de Fernando Henri-que no Ministério da Fazenda. E aqui encontra-mos a segunda resposta para entender a peculia-ridade do atual gabinete ministerial: em grandemedida, o gabinete do presidente Fernando Hen-rique representou uma continuidade de seu man-dato de “primeiro-ministro”. Ou seja, o presidentecolocou pessoas de sua confiança e que estavamna Fazenda ou participaram de sua gestão noMinistério das Relações Exteriores em vários pos-tos importantes no governo. Isto tem resultadoem uma maior estabilidade ministerial, pois taispessoas são classificadas no mercado político decargos como “da cota do Planalto”.

Mais importante ainda, o estrondoso sucessopolítico do Plano Real fez com que os aliados,dependentes do apoio do governo para otimizarsuas carreiras políticas, fornecessem uma maiorindependência a Fernando Henrique na monta-gem do gabinete. Deste modo, os excelentes resul-tados econômicos sustentados pelo Ministério daFazenda propiciaram à Presidência, a um só tem-po, o aumento da capacidade de negociação juntoao Congresso e do controle sobre a montagem dosministérios.

O presidente contou também, em seu primei-ro mandato, com uma boa dose de virtù naestratégia de montagem do gabinete. Ao contrárioda estratégia Collor, Fernando Henrique estrutu-rou, sim, seu governo com base na distribuição decargos importantes aos partidos e, em menor me-dida, aos governadores aliados, inclusive loteandoos cargos de segundo e terceiro escalões nosestados — e aqui conta mais a variável federativa—, porém, colocando em postos estratégicos pes-

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soas de estrita confiança e que possuíam grandeconhecimento da máquina. Com isso, garantiumaior capacidade de monitoramento sobre oscargos distribuídos segundo a lógica da obtençãode maioria parlamentar. Entram aqui sobretudo ossecretários executivos, cargo equivalente ao vice-ministro, grupo cujo perfil era composto, em suamaioria, da combinação de duas caracterísiticas:são pessoas que obtiveram a confiança do presi-dente ou de auxiliares próximos a ele durante operíodo de governo de Itamar Franco e que, aomesmo tempo, eram “esplanadeiras”.11

A chave para obter o controle da distribuiçãode cargos, por fim, foi obtida alçando um ministé-rio em particular a um status não só acima dosdemais, como também responsável pela fiscaliza-ção de todos os outros ministérios a partir doângulo financeiro. Trata-se do Ministério da Fazen-da. Além de este governo estar intrinsecamenteligado à lógica financeira, como quase todos naAmérica Latina, o MF constituía, basicamente, a“casa” dos técnicos que participaram da gestãobem-sucedida do Plano Real, sob o comando doentão ministro Fernando Henrique.

A grande estabilidade de Pedro Malan nocargo é a maior prova do caráter estratégico adqui-rido pelo Ministério da Fazenda. Enquanto, nosoutros governos da Nova República, houve trocasconstantes de ministro, Malan permaneceu nocargo por todo o primeiro governo FernandoHenrique Cardoso e por lá se manteve no gabineteinicial do segundo mandato.

É neste contexto político-institucional queestudaremos a lógica de provimento do alto esca-lão do Ministério da Fazenda e o funcionamento daestrutura de poder no seu interior.

O provimento de cargos doalto escalão: o caso do Ministérioda Fazenda

O preenchimento dos cargos da alta burocra-cia no sistema presidencialista brasileiro funcionabasicamente através de nomeações políticas. Alémdo ministro e seus assessores mais imediatos,grande parte da alto escalão é também preenchidapor meio de diferentes critérios políticos. Se em

alguns países, como o Japão e a França, mudam-seapenas algumas dezenas de pessoas a cada gover-no, em países presidencialistas como os EstadosUnidos e o Brasil esse número se eleva substanci-almente (Schneider, 1995).

Assim, existem poucas carreiras estruturadasem nosso setor público, tais como a militar (Coe-lho, 1976), a diplomática (Cheibub, 1990), a domagistério de ensino superior, algumas dentro doMinistério da Fazenda, como a de auditor daReceita Federal e a de analista de finanças econtrole etc. Estudo anterior indicou que, em 1993,quase a metade (47,3%) dos funcionários públicosbrasileiros estava agrupada em uma categoria semespecificação precisa, denominada PCC (Plano deCargos e Carreira), e menos de 15% dos servidoresencontravam-se em uma carreira estruturada(Abrucio, 1993). Não há nenhuma indicação deque esta situação se tenha alterado. Diferentemen-te de outros países, especialmente europeus, ascarreiras públicas no Brasil limitam-se a apenas umcargo. Nesse sentido, nossa administração pública,como já mencionado antes, está mais próxima domodelo americano, em que o cargo e não a carreiraestrutura o avanço profissional. Isso terá reflexosno provimento do alto escalão governamental.

Pode-se afirmar que o provimento dos cargosdo alto escalão é bastante aberto à nomeaçãopolítica, dadas as características do sistema presi-dencialista e a ausência de carreiras aí estruturadas.Distribuindo o conjunto dos ministérios em funçãodo seu grau de abertura à nomeação política(entendida aqui como distinta da nomeação buro-crática), pode-se indicar o seguinte continuum:

Ministérios �

Itamaraty �

MF �

Demaismilitares ministérios(mais fechados) (mais abertos)

Analisaremos aqui como se manifesta a no-meação política para os altos escalões do Ministé-rio da Fazenda (MF). Para os fins dessa análise,consideramos alto escalão os ocupantes de cargosde DAS-6, DAS-5 e DAS-412 distribuídos nas suasdiversas secretarias. Do ponto de vista formal,todos os ministérios do governo federal estrutu-ram-se em secretarias. No caso do Ministério da

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Fazenda, há sete secretarias e duas subsecretarias.Dentre as diversas secretarias, as mais importantessão a do Tesouro Nacional, a da Receita e a dePolítica Econômica. No Tesouro encontra-se opoder de liberar ou segurar as verbas orçamentári-as. O peso da Receita reside em sua função arreca-dadora. E a Secretaria de Política Econômica, comoórgão principal de assessoria do ministro, elaboraas orientações gerais para as políticas econômicasdo governo.

Selecionando os aspectos mais relevantes doperfil do alto escalão governamental brasileiro,13

pode-se constatar que, no conjunto da União, osfuncionários DAS representam pouco mais de 3%,ao passo que no MF este percentual é três vezessuperior, atingindo 9,29% do total de seus funcio-nários. Tal dado ajuda a reforçar a idéia da impor-tância estratégica do MF no gabinete presidencialbrasileiro. Além disso, há outros importantes pon-tos de diferenciação do perfil dos DAS do MF emrelação ao restante da administração pública fede-ral. O provimento do alto escalão do MF é feitopredominantemente com pessoas do próprio Po-der Executivo, originárias de diferentes agênciasgovernamentais. Enquanto, na União, cerca de40% dos DAS-5 e DAS-4 e mais de 48% dos DAS-6são recrutados fora das agências governamentais,na Fazenda as nomeações de pessoas externascaem bastante, reduzindo-se para menos de 15%no nível de DAS-6. Isso significa que, se no MF orecrutamento do alto escalão se faz sobretudoentre quadros burocráticos governamentais, naUnião esse recrutamento ocorre principalmenteconforme critérios partidários e/ou federativos.

Outra característica distintiva encontra-se nomaior nível de escolaridade dos DAS da Fazenda,comparativamente ao dos demais DAS federais.Por exemplo, apenas 7% dos DAS-5 do Executivofederal têm títulos de mestrado e/ou doutorado, aopasso que essa porcentagem atinge mais de 17%entre os DAS-5 no MF. No nível de DAS-6 adisparidade acentua-se muito mais: somente 8,3%dos ocupantes desse nível têm pós-graduação, aopasso que no MF mais de 42% do total possuem taltitulação. Esses dados reforçam o perfil predomi-nantemente técnico dos cargos de confiança doMinistério da Fazenda.

Com relação ao provimento dos cargos dealto escalão do MF, embora as carreiras internassejam fonte importante de recrutamento, elas nãoconstituem a única nem tampouco a mais rele-vante forma de acesso a estes postos. O que teráobviamente efeitos sobre a distribuição do poderno Ministério, como se verá a seguir. São três asprincipais fontes de recrutamento de quadrospara a alta burocracia do MF: (a) funcionários deoutros órgãos da burocracia governamental, taiscomo Banco Central, Banco do Brasil, SERPRO,IPEA etc., órgãos considerados fornecedores demão-de-obra; (b) profissionais externos aos mei-os governamentais, da universidade ou vindos dainiciativa privada; (c) funcionários de carreirasinternas do MF.

De acordo com os dados de 1998, a maioriados ocupantes de cargos de DAS-6 e mais osecretário executivo provinham de outros órgãosgovernamentais, preenchendo dois terços dos pos-tos. Também era significativa a participação depessoas externas aos meios governamentais (1/3),originárias dos meios universitários e empresariais.No primeiro governo Fernando Henrique, nenhumsecretário originou-se das carreiras internas doMinistério, mostrando que, mesmo em uma estru-tura predominantemente técnica como a Fazenda,há um descolamento entre carreira e cargo no altoescalão. Este fato agrega mais um indicador para onosso argumento de que os cargos do topo doorganograma estatal são essencialmente políticos,isto é, providos por vínculos de afinidade e confi-ança política no sentido amplo.

Tomando como exemplo o caso da Secretariado Tesouro Nacional, constata-se que o provimen-to de grande parte dos DAS-5 e DAS-4 dessasecretaria foi feito com quadros vindos de outrosórgãos governamentais, tais como IPEA, BancoCentral etc. Além disso, examinando alguns exem-plos de trajetórias de carreira de membros atuais daalta burocracia do MF, destaca-se que estas podemser diferenciadas em dois tipos principais: trajetóriaintragovernamental e trajetória mista, envolvendogoverno e vinculações externas. A trajetória intra-governamental é desenvolvida por membros daburocracia pública, originários de diferentes ór-gãos da área econômica do governo, que fazem

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sua vida profissional predominantemente dentrodo governo; a trajetória mista é realizada porpessoas que passam transitoriamente pelo gover-no, vindos dos meios universitários e/ou de con-sultoria privada, para onde retornam depois daexperiência no Executivo.

Conforme indicado em trabalho anterior(Loureiro e Abrucio, 1998b), o exame de váriastrajetórias de carreira mostrou que os titulares dassecretarias, tanto quanto o ministro e o secretarioexecutivo, mesmo em um ministério técnicocomo o da Fazenda, foram nomeados politica-mente. Em outras palavras, se as carreiras inter-nas do MF detêm praticamente o monopólio decargos em certas áreas, como na Secretaria daReceita Federal e na Secretaria Federal de Contro-le, esse monopólio não atinge os níveis maiselevados. Nesse sentido, pode-se afirmar que acarreira não é fonte “natural” de poder, isto é, elasozinha não dá a seus membros acesso automáti-co aos cargos de direção, senão quando associa-da a critérios políticos.

Cabe repetir o que foi classificado antescomo nomeação política. De um lado, procuramosdiferenciá-la da nomeação burocrática e, de outro,procuramos ampliá-la, ultrapassando a noção quecomumente a identifica apenas a processos nosquais operam pressões de partidos, de bancadasregionais, de grupos de interesses etc. Assim,considera-se nomeação política, em um primeirosentido, aquela que não se orienta por critériospreviamente estabelecidos, de forma expressa outácita, e que restringe a escolha ao preenchimentode certas condições, tais como ser membro dedeterminada carreira, ter senioridade etc. É o queocorre, por exemplo, nas corporações militares ouna diplomacia. Num segundo sentido, e maisimportante ainda, classifica-se de nomeação políti-ca, especialmente em áreas técnicas como o Minis-tério da Fazenda, também aquelas orientadas porafinidades pessoais, por orientações teóricas oumesmo ideológicas comuns, que ligam o presiden-te ou o ministro a seus auxiliares e determinam aescolha de alguns técnicos ao invés de outros. Emoutras palavras, considerando que as escolhas paraos cargos da alta burocracia são sempre políticas,pretende-se, com essa distinção, dar conta da

especificidade de nomeações políticas que não sefazem pelos critérios mais comumente utilizados.

Se a participação em uma determinada carrei-ra é critério para garantir certa exclusividade noprovimento de cargos, havendo inclusive disputasem determinadas secretarias, como a STN, entreprofissionais de carreira e os de fora,14 a carreira,em si, não é fonte de poder, nem de acesso à altaburocracia. No caso da Procuradoria da FazendaNacional, por exemplo, o escolhido provinha daassessoria jurídica do Banco Central e não dacarreira específica. Isto reforça a natureza políticados cargos de alto escalão, tal como temos definidoeste conceito até agora.

A utilização de critérios político-partidáriosou federativos ocorre em maior grau nos órgãosfederais instalados nos estados, inclusive no Mi-nistério da Fazenda, o mais imune às pressõespolíticas. Em São Paulo, caso que estudamos, odelegado do Patrimônio da União foi indicaçãodo senador Romeu Tuma, do PFL, um dos parti-dos que dá sustentação ao Executivo federal. E odelegado de Assuntos Administrativos do MF foiindicação do PMDB paulista, em particular dodeputado federal Michel Temer. É bem verdadeque estas indicações políticas foram contrabalan-çadas pela nomeação do superintendente da Re-ceita Federal em São Paulo, Flávio Del Comuni,diretamente escolhido e respaldado pelo ministroPedro Malan. Com esta decisão, a delegação defunções do Ministério para sua estrutura descen-tralizada foi garantida.

É preciso analisar agora como se organiza opoder no interior de uma agência, como o Ministé-rio da Fazenda, em que o critério político semanifesta predominantemente nos termos acimaindicados e que se orienta pela lógica do sistemapresidencialista.

Estrutura de poder no Ministério daFazenda e seus efeitos no gabinete

Como em todo sistema presidencialista, opoder no interior do aparato burocrático no Brasiladvém do cargo e esse origina-se, basicamente, dorespaldo do presidente da República. Nos sistemaspresidencialistas, em tese, o relacionamento entre

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o chefe do Poder Executivo e os ministros éfortemente hierarquizado. Os ministros são, segun-do as regras constitucionais, auxiliares do presi-dente, livremente nomeados e passíveis de demis-são a qualquer momento por vontade do chefe dogoverno.

Se todo o poder emana do presidente, eleobviamente repercute hierarquicamente nos níveisimediatamente inferiores dentro dos ministérios: oapoio do presidente sustenta o poder do ministro;o apoio do ministro sustenta o poder do secretáriosdo ministério e assim por diante. Todavia, emalguns casos, o ministro pode não ter sido escolhi-do pelo presidente, mas nomeado por força denegociações necessárias à constituição da coalizãogovernamental. Mesmo no Ministério da Fazenda,de modo geral resguardado da barganha parla-mentar, houve situações, na Nova República, emque isto aconteceu. Nessas circunstâncias, o poderdo presidente pode manifestar-se na escolha dosecretário executivo e/ou de outros cargos estraté-gicos, os quais aparecem, então, como “homens dopresidente”.

Embora o Poder Executivo esteja, em princí-pio, todo concentrado na pessoa do presidente, éimpossível que ele sozinho possa dar conta detodas as atividades do cargo. Conseqüentemente,ele delega autoridade aos ministros para resolvertrês problemas cruciais de coordenação das tarefasdo Executivo: execução das políticas de governo,integração dos diferentes departamentos adminis-trativos do governo e, em muitos casos, obtençãode apoio político no Congresso (Amorim Neto,1994, p. 12). Estas responsabilidades são, em várioscasos, compartilhadas com o secretário executivo edemais secretários do Ministério. Além disso, ossecretários executivos, que funcionam como “ho-mens do presidente” em ministérios cujos titularesnão são de confiança do presidente, mas foramnomeados para obter apoios parlamentares, têmoutra função importante: eles exercem o controleinstitucional através do qual o presidente delegaautoridade como mandante ou principal e verificao cumprimento de suas diretrizes, a fim de evitarque as ações de tais agentes se desviem dosobjetivos do governo. Os secretários executivos deconfiança do presidente garantem assim, em prin-

cípio, o monitoramento das ações do Ministério,tentando diminuir as perdas de agenciamento en-tre presidente e ministros.

De forma sintética, há basicamente três for-mas de delegação de poder e funções no Ministérioda Fazenda. A primeira é aquela vinculada àestrutura formal do organograma, com uma linhahierárquica muito bem definida. A delegação, aqui,vai ser definida pelas relações de confiança entreos mandantes e os escolhidos e por mecanismosformais de controle de resultados. O organogramatem, portanto, de ser construído segundo linhas deconfiança, e por isso os ocupantes dos altos postoscostumam ter um estreito relacionamento comseus superiores, relações estas que podem serformadas em loci distantes do MF, como o meioacadêmico ou o mercado. Mesmo naqueles casosem que os laços de lealdade foram formados nosetor público, nem sempre o foram através dascarreiras da Fazenda — o que confirma a hipótesede que as carreiras são importantes mas definitiva-mente não são acesso direto aos cargos da altafunção pública. Quanto aos mecanismos de con-trole formal da delegação, estes foram poucocitados nas entrevistas, e parece-nos que o agenci-amento passa muito pouco por este caminho.

A segunda forma de delegação é feita para osintegrantes das carreiras internas do Ministério daFazenda, delegação esta que, conforme um policy-maker influente, “é importantíssima para fazerfuncionar a engrenagem da máquina do Ministé-rio”. A centralidade desta delegação deriva nãoapenas da existência formal e perene de taiscarreiras. Este aspecto é importante, porém não ésuficiente para explicar o porquê da delegaçãosegura de funções às carreiras internas do Ministé-rio. Segundo a grande maioria dos entrevistados,os mandantes (ministro e secretários) sabem que,para além da carreira, há um forte espírito de corponestes grupos, vinculado ao rigor das práticasadministrativas fazendárias. Isto ocorre não apenasporque todos passaram por um concurso público,mas também em virtude de esses funcionáriosterem uma socialização comum que os une.

Além do mais, as diversas mudanças naFazenda, bem como algumas práticas nefastasadotadas no período autoritário (como o Orçamen-

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to monetário), também são fatores que agregaramos membros destas carreiras em torno do que deveser feito no Ministério. Por fim, e não menosimportante, a falta de carreiras no restante daadministração pública faz com que os integrantesdas carreiras internas do MF valorizem o seu statusfuncional e busquem sempre se diferenciar. Comonos disse um entrevistado, “é ressaltando a diferen-ça que eles [originários de carreiras internas doMinistério] aumentam a sua coesão”.

Mesmo com este espírito de corpo, tais car-reiras “dificilmente formam líderes”, conforme nosafirmou um membro do alto escalão de longa datano MF. Ao que nós completaríamos, seguindo asobservações de várias entrevistas: se o integrantede uma carreira torna-se um agente transformador,isto ocorre por características que vão além doespírito de corpo. Isto é, a capacidade de liderançavai depender do desenvolvimento de habilidadespolíticas e comunicativas que respondam tanto aosditames dos superiores como às demandas daque-les que estão nos escalões mais abaixo.

Essas relações nos remetem à estrutura inter-na de poder no interior do MF. É importanteressaltar que esta se baseia não só em estruturasformais, visualizadas nos diversos níveis hierárqui-cos mostrados anteriormente nos organogramasdo órgão, mas também em relações informais,como ocorre em todas as grandes organizações ecertamente nos demais ministérios do governobrasileiro. Isso nos remete às análises clássicas deMichel Crozier (1981) sobre o tema, que nosajudam a entender melhor o caso do MF. Conside-rando que o caráter de neutralidade da burocracia,tal como Weber a definiu, não a torna imune àexistência de uma luta interna de poder, Crozierindica que a burocracia não “preenche de raciona-lidade” toda a estrutura administrativa, havendonichos de incerteza em toda e qualquer organiza-ção complexa. Nestes nichos de incerteza, ineren-tes às organizações complexas, o que predominasão os padrões informais de distribuição de racio-nalidade e poder, convivendo este aspecto com aestrutura formal da organização. Logo, as organiza-ções não funcionam de forma mecânica, seguindolinearmente aos padrões definidos pelos organo-gramas e procedimentos; as organizações possuem

regras — extremamente importantes — mas sãopermeadas por relações informais de poder queperpassam toda a estrutura administrativa (Crozier,1981, p. 243). Desta análise, derivamos o terceiropadrão de delegação na Fazenda, estruturado porrelações informais, que vão além e cortam diago-nalmente as carreiras e os organogramas.

No alto escalão do Ministério da Fazenda, ospolicy-makers estão vinculados, portanto, a umadupla estrutura de distribuição de poder e raciona-lidade: uma formal, que é importante para enten-der os mecanismos consolidados de mando, eoutra informal, na qual também há importantes“regras” determinando a estrutura de poder. Alémda hierarquia presente no relacionamento entre opresidente e o ministro da Fazenda, as relações deconfiança entre eles, por exemplo, vão ser funda-mentais para definir a força do ministro. Caso opresidente não confie integralmente neste minis-tro, ele poderá “pular” a hierarquia formal e obterinformações sobre a economia com outros inte-grantes do alto escalão da Fazenda.

As relações do Ministério da Fazenda comautarquias ou outros órgãos vinculados a ele —como Banco Central, Banco do Brasil etc. —variam historicamente, dependendo não só decondições institucionais, como as já mencionadasanteriormente, mas também das afinidades queligam o ministro da Fazenda aos presidentes dessesbancos. Apesar de formalmente escolher tais car-gos, o ministro da Fazenda não controla inteira-mente o Banco do Brasil, que, como indicaramvários entrevistados, ainda é uma burocracia muitoforte. Também com relação ao Banco Central, asrelações de seu presidente com o ministro daFazenda variam e nem sempre se processam semconflito ou divergências, especialmente quando opresidente do Banco tem relação mais próximacom o presidente da República do que com oministro.

No período em questão, o Ministério da Fa-zenda não controlou por completo algumas agênci-as da área econômica. O Banco do Brasil, emboravinculado à Fazenda, teve suas decisões fortementemarcadas pelas decisões políticas do Planalto. Ébem verdade que a gestão da Fazenda no primeirogoverno de Fernando Henrique pôde controlar

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mais o Banco do Brasil do que em outros governos,mas ainda não o fez segundo a lógica econômicaimplantada no interior do MF. A Caixa EconômicaFederal e o BNDES, duas das mais importantesagências da área econômica, não somente ficaramfora da estrutura formal da Fazenda, como sualógica esteve mais próxima da lógica de obtençãode apoio político, não obstante tais agências atua-rem mais próximas da racionalidade estabelecidapelo MF neste do que nos demais governos daredemocratização. Mesmo assim, quando os aliadosficaram descontentes e o Executivo federal precisoude votos, surgiram empréstimos que obviamentenão se coadunaram com a lógica geral da Fazenda— bons exemplos disso foram os empréstimos paraa Prefeitura de São Paulo, realizados pela CaixaEconômica Federal, e aqueles obtidos pelo governodo Estado do Rio Grande do Sul, pela via do BNDESe à revelia do Tesouro Nacional.

O caso do BNDES é também interessante paranotar outra engenharia institucional utilizada peloprimeiro governo Fernando Henrique Cardoso. Ogrupo que dominou o BNDES foi composto, emboa parte, por setores mais desenvolvimentistas dacoalizão governamental, os quais não estavam atre-lados e por vezes se contrapunham diretamente àequipe econômica. A estratégia adotada aqui foi ade dividir para governar, uma vez que o insulamen-to da Fazenda não poderia se constituir totalmente àrevelia de setores importantes do governo, e, aomesmo tempo, tal divisão serviu para testar alealdade da cúpula do MF à Presidência.

Mesmo com tais divisões, o presidente Fer-nando Henrique Cardoso optou por uma linha depolítica econômica, baseada na âncora cambial,que fortaleceu a dupla Pedro Malan (Fazenda)/Gustavo Franco (Banco Central). Como argumen-tamos em outra ocasião,

Fernando Henrique ficou preso à armadilha dosucesso de seu plano de estabilização, vinculado adeterminado padrão de política econômica, quecertamente não era o único, e gerou muitosconflitos dentro do próprio governo. Mas entre ocusto de insular e fortalecer o grupo dominante naFazenda e no BC [...] e o custo de ter maiorflexibilidade para mudar tal política econômica

com o risco de errar e perder a legitimidade obtidaatravés do Real, [o presidente] optou claramentepor assumir o primeiro custo. (Loureiro, Abrucio eRosa, 1998, p. 76)

A despeito dos conflitos, esta opção foi a quemais fortaleceu o poder de controle da delegaçãopor parte do presidente, já que toda a aliançapolítica esteve presa, sobretudo com a aprovaçãoda reeleição, à manutenção da estabilização eco-nômica (leia-se: controle da inflação).

Em seus vínculos externos, a Fazenda estabe-lece relações formais e informais de controle. Opoder formal mais importante é, claramente, o deliberar e contingenciar recursos por intermédio daSecretaria do Tesouro. Através deste poder, aFazenda não apenas se autonomiza em relação aorestante do gabinete, ganhando um status ministe-rial diferenciado; ela também se torna um órgãocrucial para o presidente da República controlar adelegação de funções nos outros ministérios. As-sim, a barganha política necessária para conquistarmaioria tem um contrapeso no poder de manipularo Orçamento por meio do Ministério da Fazenda.

Informalmente, o MF exerceu seu poder noprimeiro governo Fernando Henrique Cardoso aoexpandir cada vez mais a lógica economicista parao restante do gabinete, inclusive com a entradacada vez maior de economistas em outros ministé-rios. O Cade é um exemplo disso, pois a briga entrea visão jurídica e a econômica resultou em vitóriaspara o setor vinculado às idéias da Fazenda. Mas éna força que o ideário da equipe econômica tevesobre grande maioria dos secretários executivosque esteve o poder informal mais relevante noperíodo 1995-98.

Considerações finaisO texto procurou analisar a formação do

gabinete presidencial brasileiro do governo Sarneyao primeiro governo de Fernando Henrique Car-doso. Em linhas gerais, constatou-se, primeiro, agrande instabilidade ministerial no Brasil, sobretu-do quando comparado a outros países. Segundo,essa instabilidade deriva em grande medida dajunção de características consociativas e majoritári-

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as em nosso sistema, criando uma situação defortalecimento do presidente e enfraquecimentoda capacidade governativa do Congresso, ao mes-mo tempo que obriga o chefe do Executivo arealizar uma complexa teia de negociações paragarantir a formação de maioria parlamentar e ocontrole da delegação de funções.

Para montar seu gabinete, o presidente preci-sa, então, realizar uma composição partidária, tor-nando os partidos importantes na função governa-tiva mas enfrentando a dificuldade de articular umgrande número deles para um mesmo objetivo,além de precisar estabelecer alianças com os líde-res regionais mais poderosos. Só que tal negocia-ção inicial é necessária para obter maioria parla-mentar, porém insuficiente para garantir o monito-ramento dos cargos distribuídos. Por isso, ganhamtambém expressão significativa as variáveis pesso-al e/ou de imagem, capazes de legitimar a atuaçãoquase que direta do presidente nos ministérios, e atécnica, essencial numa alta burocracia em que ospostos mais importantes não são preenchidos porcritérios burocráticos e sim pelo spoil system, demodo que os políticos vão precisar ter ou indicaralguém com competência especializada para darconta da tarefa de responder ao eleitorado com umgrau razoável de racionalidade. Ademais, a Presi-dência da República tem de cada vez mais zelarpelo conteúdo técnico de suas políticas perante aopinião pública, o que a faz interferir ou noorganograma estatal, criando estruturas paralelasde poder, ou na escolha de determinados postos,a fim de colocar pessoas que possam garantir omonitoramento das funções distribuídas por crité-rios de maioria parlamentar.

Embora sua constituição seja um processocomplexo e intrincado, o gabinete presidencialbrasileiro não está destinado inexoravelmente àingovernabilidade. Decerto que os três primeirospresidentes da redemocratização tiveram enormesdificuldades governativas — algumas, ressalte-se,de suas próprias lavras —, mas os instrumentos depoder da Presidência, somados a resultados empolíticas públicas que aumentem o grau de legiti-midade do chefe do Executivo, podem levar apadrões mais efetivos de controle da delegação defunções. Mas, para isso acontecer, é necessária boa

dose de virtù ao presidente, mensurada pelacapacidade de combinar bem os critérios de forma-ção de maioria parlamentar com os de controle dadelegação, no sentido de reforçar o lado técnico dogoverno sem levá-lo ao rumo completamenteoposto aos objetivos políticos dos membros dacoalizão governamental. É bem verdade que estavirtù dependerá da fortuna, dos efeitos das políti-cas sobre a legitimidade presidencial, como frisare-mos adiante.

Foi exatamente isso que ocorreu no primeiromandato do presidente Fernando Henrique Cardo-so, no qual houve uma baixa instabilidade ministe-rial e obteve-se um alto grau de controle dadelegação. O principal instrumento neste sentidofoi alçar o Ministério da Fazenda (MF) a órgãosuperior e controlador do gabinete, espalhandosua lógica de atuação pelos ministérios por meiode mecanismos formais e informais. Esta engenha-ria, ressalte-se, dependeu do apoio firme e contí-nuo do presidente ao MF — mantendo o ministropor todo o mandato — e do sucesso deste nacondução do Plano Real.

A despeito de vários entrevistados terem ditoque a Fazenda sempre foi e sempre será poderosa,percebemos claramente que o MF teve maiorpoder no primeiro governo Fernando HenriqueCardoso do que em outros períodos da redemocra-tização e o exerceu de forma diferenciada. Asrazões para isso residem nas funções específicascumpridas por este Ministério neste governo. Suacentralidade esteve associada, primeiro, a umasituação marcada pela escassez de recursos e anecessidade constante de controlar as contas pú-blicas, resultando num predomínio das políticas deinput definidas pela Fazenda sobre a lógica dooutput, predominante em quase todo o restantedos ministérios; segundo, à importância do planode estabilização para o sucesso político do presi-dente; terceiro, aos laços de confiança estabeleci-dos entre o presidente e a cúpula do MF, que seoriginam da gestão de Fernando Henrique naFazenda no governo Itamar; e, por fim, comoafirmamos acima, à importância estratégica que oMinistério da Fazenda teve como controlador dosoutros órgãos cuja distribuição de poder foi feitapara garantir maioria parlamentar.

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De forma mais explícita, este controle foiexercido basicamente pelo poder de liberar e con-tingenciar recursos que tem a Secretaria do TesouroNacional (STN). É este, ainda, um dos órgãos maispoderosos do gabinete presidencial, pois o ritmo daimplantação das políticas dos ministérios dependefortemente de suas decisões. Obviamente, o poderde resistir às pressões por recursos depende doslaços de confiança entre o presidente e a Fazenda,bem como da legitimidade do presidente junto àbase parlamentar. Verificou-se que quando o presi-dente não controlou ou estabeleceu relações muitoconflituosas com a equipe econômica, a dinâmicaorçamentária não foi um instrumento efetivo decontrole da delegação — tal qual ocorrera nogoverno Sarney. Quanto ao apoio da base parla-mentar, ele vai estar intrinsecamente ligado ao êxitoeconômico do presidente — novamente colocandoa Fazenda em destaque no sistema político.

O Ministério da Fazenda também exerceu oseu poder de controle disseminando informalmen-te o seu raio de ação ao restante do gabinete, sejapelo aumento significativo de profissionais ligadosà área econômica em outros ministérios, seja pelatentativa de tornar determinados nichos de podervinculados à lógica econômica. No entanto, aafinidade que um grande número de secretáriosexecutivos teve com a equipe econômica foi avariável mais relevante. É importante frisar que aforça dos secretários executivos se explica, primei-ro, pela habilidade do presidente em conjugarcritérios de maioria parlamentar com os técnico-políticos, e, segundo, pela afinidade informal des-tes com o próprio presidente, muitos deles vindosdas gestões de Fernando Henrique na Fazenda eno Itamaraty, ou mesmo “descobertos” por ele emseu período de “primeiro-ministro”, ou ainda indi-cados por ministros de inteira confiança do Planal-to. Instrumentos como o dos secretários executivosou a chamada administração paralela de JuscelinoKubitschek constituem válvula de escape impor-tante no presidencialismo brasileiro, mas a grandemaioria dos presidentes não conseguiu implantá-los. Um pouco por falta de virtù, mas o insucessonas políticas é a variável explicativa mais relevante.

O presidente Fernando Henrique, além domais, escolheu a Fazenda como órgão estratégico

por razões internas à sua estrutura. Em primeirolugar, por causa do forte caráter técnico presenteneste Ministério, aferido pela comparação entre ograu de escolaridade presente na administraçãopública federal e o existente no MF.15 Em segundolugar, novamente de forma contrária ao que ocorreno restante do Executivo, há na Fazenda importan-tes carreiras com grande espírito de corpo e autono-mia nas políticas, o que incentiva o cumprimento dadelegação nos níveis inferiores — em outras pala-vras, o ethos destas carreiras normalmente garante aboa realização do processo de agenciamento para omandante. Por fim, destaca-se o papel de liderançada alta burocracia do MF, que conseguiu criar umaponte entre as decisões políticas e as técnicas.

É igualmente interessante ressaltar que, mes-mo sendo raras, as injunções partidárias-federati-vas aconteceram nas delegacias regionais da Fa-zenda. Tais cargos são estratégicos para a conquis-ta de maioria parlamentar em todos os ministérios.No caso da Delegacia Regional do MF em SãoPaulo, observou-se que a estratégia de distribuiçãode cargos orientou-se de forma híbrida, mesclandoas lógicas. Assim, alguns cargos foram distribuídospara assegurar votos no Congresso, porém o minis-tro Pedro Malan indicou para o principal postoalguém de sua inteira confiança, o qual atuoucomo fiscalizador e garantidor da delegação defunções do nível central para o estadual. Conse-guiu-se, assim, “matar dois coelhos com uma caja-dada só”: o Ministério preencheu suas funçõespolíticas e técnicas.

Cabe, finalmente, ressaltar que o êxito dautilização do Ministério da Fazenda como órgãoestratégico no gabinete presidencial dependeufortemente do sucesso do Plano Real. E aqui entrauma variável fundamental negligenciada pela lite-ratura atual: o efeito das políticas (policies) nosarranjos políticos imediatos e nos incentivos insti-tucionais existentes. Assim, em resumo, podemosdizer que o sucesso do primeiro mandato deFernando Henrique derivou da criação de umaengenharia interna de controle da delegação vin-culada basicamente à atuação do Ministério daFazenda, das características técnicas e de organiza-ção interna — formal e informal — deste Ministérioe do seu papel como disseminador de uma lógica

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financeira ao alto escalão governamental, sobretu-do por meio dos secretários executivos. Entretanto,sem a legitimação da política econômica seriaprovavelmente muito mais difícil chegar a estearranjo bem-sucedido.

Neste artigo, procuramos mostrar a importân-cia de aspectos ignorados pelo debate a respeito dosistema de governo, mas igualmente frisamos que amontagem de nosso gabinete presidencial continuadependendo de um delicado equilíbrio, da combi-nação entre a fortuna em relação aos resultados daspolíticas e a virtù da ação da Presidência daRepública. Portanto, mesmo não resultando numaingovernabilidade endêmica, o presidencialismobrasileiro precisa de reformas institucionais quefacilitem mais a vinculação da formação de maioriaparlamentar com o controle ótimo da delegação,para que a regra não seja a instabilidade ministerialque marcou a Segunda República e que se repetiuno processo recente de redemocratização.

NOTAS

1 Ver, entre os principais, Geddes (1994), Gouvea (1994),Schneider (1994) e Nunes (1997).

2 Edson Nunes (1997) é um dos autores que mais chamoua atenção para a possibilidade de o insulamento buro-crático, em muitos casos, vincular-se a critérios particu-laristas, em vez de obedecer aos ditames do universalis-mo de procedimentos.

3 Uma análise completa do significado das medidas pro-visórias encontra-se em Figueiredo e Limongi (1997).

4 Schneider (1994) foi o primeiro a ressaltar este aspecto.

5 “Bom esplanadeiro”, definiu-nos um entrevistado, “éaquele que permanece por muitos anos na Esplanadados Ministérios e tem excelente trânsito em suas diver-sas áreas”.

6 Analisamos um universo de 194 pessoas para traçar operfil dos quatro gabinetes presidenciais deste período.Para isso, utilizamos material de imprensa, documenta-ção oficial, e entrevistamos pessoas que ocuparampostos governamentais, sobretudo aqueles de cunhoestratégico, ou que conheciam a lógica de nomeações.Este levantamento mais geral é fundamental para com-preendermos o papel recente do Ministério da Fazendano presidencialismo brasileiro.

7 A taxa de renovação ministerial (TR) foi obtida peladivisão do contingente de pessoas que ocuparam minis-térios e secretarias da Presidência pelo número decargos existentes (fórmula: TR = Pessoas/Número de

cargos). Quanto mais nos afastamos de 1, maior é oíndice de renovação. Como os governos tiveram manda-tos não equivalentes temporalmente, a TR nivelou estasdiferenças de duração utilizando padrões médios derenovação.

8 De modo geral, os secretários norte-americanos sãomembros ou simpatizantes do partido do presidente daRepública, mas são escolhidos mais por sua notoriedadee saber técnico em uma área específica do que por sualiderança ou influência dentro da máquina partidária.Sobre este assunto ver, entre os principais trabalhos,Fenno (1959), Cohen (1988) e Jones (1994 e 1995).

9 A definição de cada um dos critérios está em Loureiro eAbrucio (1998c, pp. 7-8). É importante frisar apenas osignificado de um deles, mais controverso. Trata-se docritério técnico-político, que ganha este nome porqueos cargos do alto escalão brasileiro não são automatica-mente preenchidos pela burocracia, mas, sim, por no-meações políticas, configurando um sistema de spoilsystem. Isso faz com que o técnico seja escolhidopoliticamente e sua permanência seja garantida nãosomente por critérios burocráticos de carreira.

10 Quando houve dificuldade em revelar claramente opeso de cada critério na indicação de determinadoministro, procurou-se confrontar o máximo de opiniõespossível. Nos casos em que critérios eram classificadosigualmente como importantes, um mesmo peso foiestabelecido.

11 Tais constatações são corroboradas por pesquisas sobreos três primeiros escalões no ministérios da Educação,Fazenda e Transportes (Loureiro e Abrucio, 1998a) e arespeito dos secretários executivos, transformados empostos estratégicos para monitorar a delegação feitapelo presidente (Loureiro e Abrucio, 1998b).

12 Os DAS (Direção e Assessoramento Superior) são deno-minações utilizadas para determinar o nível salarial ehierárquico dos ocupantes dos cargos de confiança,variando em ordem crescente de 1 a 6.

13 Para analisar o perfil do alto escalão governamentalbrasileiro, procuramos, no presente artigo, resumir algu-mas conclusões extensamente trabalhadas em Loureiroe Abrucio (1998a). Por questão de espaço, preferimosnão reproduzir e analisar mais pormenorizadamenteaqui as tabelas e gráficos que produzimos no trabalhocitado.

14 Vários membros da Secretaria do Tesouro Nacional têmconflitos com o pessoal da Receita em termos decarreira, porque nem todos são recrutados dentro dessacarreira. Muitos vêm do meio acadêmico. Conformemencionou um entrevistado: “nossa briga aqui é fazercom que o pessoal de carreira assuma a casa”.

15 Isto também pode ser notado pela existência, há umbom tempo e de forma consolidada, de uma excelenteescola de formação na área fazendária, a Escola Superi-or de Administração Fazendária (ESAF), situação quecontrasta fortemente com o restante do funcionalismopúblico federal.

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