Política Internacional 2013

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  • Poltica Internacional

    Cristina Soreanu Pecequilo

  • Ministrio dasRelaes Exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar Patriota

    Secretrio-Geral Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira

    Presidente Embaixador Jos Vicente de S Pimentel

    Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais

    Diretor Nome do Diretor

    Centro de Histria e Documentao Diplomtica

    DiretorEmbaixador Maurcio E. Cortes Costa

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a finalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes interna-cionais e para a poltica externa brasileira.

    Fundao Alexandre de Gusmo - FUNAGMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 - Braslia - DFTelefones: (61) 3411 6033/6034/6847Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

  • Poltica Internacional

    Cristina Soreanu Pecequilo

    2a Edio AtualizadaFundao Alexandre Gusmo

    Braslia 2012

  • Direitos reservados Fundao Alexandre de Gusmo Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo 70170-900 Braslia - DFTelefones: (61) 2030-6033/6034Fax: (61) 2030-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Equipe Tcnica:Eliane Miranda PaivaFernanda Antunes Siqueira Gabriela Del Rio de RezendeJess Nbrega CardosoRafael Ramos da LuzWellington Solon de Sousa Lima de Arajo

    Reviso:

    Programao Visual e Diagramao:Grfica e Editora Ideal

    Impresso no Brasil 2012

    M217

    PECEquILo, Cristina Soreanu.Manual do Candidato Poltica Internacional / Cristina Soreanu Pecequilo -- Braslia :

    FuNAG, 2012.354 p.; 22,5 cm.

    ISBN: 978-85-7631-404-2

    1. Poltica Internacional. 2. Tribunal Penal Internacional (antecedentes histricos). 3. Poltica Externa (Estados unidos). I. Fundao Alexandre de Gusmo.

    CDu: 343.17(100)

    Ficha Catalogrfica elaborada pela bibliotecria Talita Daemon James CRB-7/6078

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

  • Existem duas respostas frequentes para qualquer evento histrico, ambas inapropriadas, seno totalmente equivocadas: dizer que tudo mudou ou dizer que nada mudou. Fred Halliday, 2002.

    A meus pais

  • Cristina Soreanu Pecequilo

    Professora de Relaes Internacionais da universidade Federal de So Paulo (uNIFESP). Pesquisadora Associada do Ncleo Brasileiro de Estratgia e Relaes Internacionais (NERINT/uFRGS) e dos Grupos de Pesquisa Insero Internacional Brasileira:

    Projeo Global e Regional da uNIFESP/uFABC e Relaes Internacionais do Brasil Contemporneo da unB. Mestre e Doutora em Cincia Poltica pela FFLCH/uSP. Autora de diversos livros e artigos sobre as Relaes InternacionaisContemporneas e a poltica externa do Brasil e dos EuA. E-mail: [email protected]

  • Embaixador Georges LamazireDiretor do Instituto Rio Branco

    A Fundao Alexandre de Gusmo (Funag) retoma, em importante iniciativa, a pu-blicao da srie de livros Manual do Candidato, que comporta diversas obras dedicadas a matrias tradicionalmente exigidas no Concurso de Admisso Carreira de Diplomata. o pri-meiro Manual do Candidato (Manual do Candidato: Portugus) foi publicado em 1995, e desde ento tem acompanhado diversas geraes de candidatos na busca por uma das vagas oferecidas anualmente.

    o Concurso de Admisso Carreira de Diplomata, cumpre ressaltar, reflete de maneira inequvoca o perfil do profissional que o Itamaraty busca recrutar. Refiro-me, em particular, sntese entre o conhecimento abrangente e multifacetado e a capacidade de demonstrar conhecimento especfico ao lidar com temas particulares. E assim deve ser o profissional que se dedica diplomacia. Basta lembrar que, em nosso Servio Exterior, ao longo de uma carreira tpica, o diplomata viver em diversos pases diferentes, exercendo em cada um deles funes distintas, o que exigir do diplomata no apenas uma viso de conjunto e entendimento am-plo da poltica externa e dos interesses nacionais, mas tambm a flexibilidade de compreender como esses interesses podem ser avanados da melhor maneira em um contexto regional especfico.

    Nesse sentido, podemos indicar outro elemento importante que se encontra sempre presente nas avaliaes sobre o CACD: a diversidade. o Itamaraty tem preferncia pela diver-sidade em seus quadros, e entende que esse enriquecimento condio para uma expresso externa efetiva e que faa jus amplitude de interesses dispersos pelo pas. A Chancelaria brasileira , em certo sentido, um microcosmo da sociedade, expressa na mirade de diferen-tes divises encarregadas de temas especficos, os quais formam uma composio dos temas prioritrios para a ao externa do Governo brasileiro. So temas que vo da Economia e Fi-nanas Cultura e Educao, passando ainda por assuntos polticos, jurdicos, sobre Energia, Direitos Humanos, ou ainda tarefas especficas como Protocolo e Assistncia aos brasileiros no exterior, entre tantas outras. Essa diversidade de tarefas ser tanto melhor cumprida quanto maior for a diversidade de quadros no Itamaraty, seja ela de natureza acadmica, regional ou ainda tnico-racial. o CACD , em razo disso, um concurso de carter excepcional, dada a grande quantidade de provas de diferentes reas do conhecimento acadmico, buscando com isso o profissional que demonstre o perfil aqui esboado.

    No entanto, o perfil multidisciplinar do Concurso de Admisso Carreira de Diplomata pode representar um desafio para o candidato, que dever desenvolver sua prpria estratgia de preparao, baseado na sua experincia acadmica. Em razo disso, o Instituto Rio Branco e a Funag empenham-se em disponibilizar algumas ferramentas que podero auxiliar o can-

    Apresentao

  • didato nesse processo. o IRBr disponibiliza, anualmente, seu Guia de Estudos, ao passo que a Funag publica a srie Manual do Candidato. Cabe destacar, a esse propsito, que as publicaes se complementam e, juntas, permitem ao candidato iniciar sua preparao e delimitar os conte-dos mais importantes. o Guia de Estudos encontra-se disponvel, sem custos, no stio eletrnico do Instituto Rio Branco e constitudo de coletneas das questes do con-curso do ano anterior, com as melhores respostas selecio-nadas pelas respectivas Bancas.

    os livros da srie Manual do Candidato, por sua vez, so compilaes mais abrangentes do contedo de cada matria, escritos por especialistas como Bertha Becker (Ge-ografia), Paulo Vizentini (Histria Mundial Contempornea), Evanildo Bechara (Portugus), entre outros. So obras que permitem ao candidato a imerso na matria estudada com o nvel de profundidade e reflexo crtica que sero exigidos no curso do processo seletivo. Dessa forma, a ade-quada preparao do candidato, ainda que longe de se es-gotar na leitura das publicaes da Funag e do IRBr, deve idealmente passar por elas.

  • Introduo

    Captulo 1 - As Relaes Internacionais

    1.1 As Bases da Disciplina

    A) Conceitos e Atores B) As Teorias: As origens Clssicas e o Sculo XX B.1) o Realismo Poltico B.2) o Liberalismo, o Idealismo e a Interdependncia B.3) o Marxismo e as Vises Crticas

    1.2 O Ps-Guerra Fria: Interpretaes e Hipteses (1989/2012)

    A) o Fim da Histria, a Nova ordem Mundial e o Momento unipolar B) A Globalizao e a Regionalizao C) A Desordem, o Choque das Civilizaes e um outro Mundo Possvel D) A Multipolaridade, a Desconcentrao de Poder e a No Polaridade

    Captulo 2 - O Sistema Internacional Ps-Guerra Fria (1989/2012)

    Parte I - O Ocidente e a Rssia

    2.1 Os Estados Unidos

    A) George Bush e o Status quo Plus (1989/1992) B) Bill Clinton e o Engajamento e Expanso (1993/2000) C) George W. Bush (2001/2008) D) Barack obama (2009/2012)

    2.2 A Europa e a Integrao Regional

    A) Da queda do Muro ao Tratado de Maastricht (1989/1992) B) De Maastricht a Lisboa (1992/2009) C) A Crise da Zona do Euro (2009/2012)

    2.3 Da URSS Rssia

    A) o Fim da Guerra Fria e a uRSS (1989/1991) B) Alinhamento e Crise (1992/1999) C) Autonomia e Pragmatismo (1999/2012)

    Sumrio

  • Parte II - O Mundo Afro-Asitico

    2.4 O Leste Asitico e o Subcontinente Indiano

    A) o Japo B) A ASEAN e a Pennsula Coreana C) A China D) o Subcontinente Indiano: ndia e Paquisto2.5 A frica

    A) um Balano das Crises e Mudanas (1989/2012) B) o Renascimento Africano

    2.6 O Oriente Mdio e a sia Central

    A) o Processo de Paz Israel/Palestina B) o Ir e a sia Central C) A Primavera rabe

    Captulo 3 - As Relaes Internacionais do Brasil

    Parte I - Os Princpios Clssicos e os Temas Contemporneos

    3.1 As Tradies da Poltica Externa Brasileira (1902/1989)

    3.2 A Dcada de 1990 e o Debate Ps-Guerra Fria (1990/2002)

    3.3 A Poltica Externa do Sculo XXI: Os Eixos Combinados (2003/2012)

    Parte II - O Brasil e as Amricas

    3.4 As Relaes Hemisfricas: o Brasil, os EUA e a Amrica Latina

    A) o Projeto Americano e o Bilateralismo: IA e NAFTA (1989/1992) B) A Agenda Econmico-Estratgica: ALCA (1993/2000) C) o Sculo das Amricas e o Dilogo Estratgico Brasil-EuA (2001/2008) D) A Agenda de Barack obama (2009/2012)

    3.5 O Espao Sul-Americano

    A) o Cone Sul A.1) o Mercosul A.2) A Poltica Externa Argentina e as Parcerias Complementares: Paraguai, uruguai e Chile B) A Regio Andina C) A Integrao Sul-Americana: a IIRSA, a CASA e a unasul

  • Captulo 4 - O Brasil e o Mundo

    4.1 O Eixo Horizontal: a Cooperao Sul-Sul

    A) IBAS B) os BRICS C) As Parcerias Africanas, o Mundo em Desenvolvimento e os PMDRs

    4.2 O Eixo Vertical: a Cooperao Norte-Sul

    A) A uE e as Parcerias Bilaterais na Europa ocidental B) o Japo C) o G4

    Captulo 5 - O Brasil e o Multilateralismo

    5.1 As Naes Unidas

    A) Agenda, Reforma e Estrutura B) os Temas Sociais e as Conferncias Internacionais B.1) Meio Ambiente B.2) os Direitos Humanos C) As operaes de Paz

    5.2 A Agenda de Segurana Internacional

    5.3 A Economia Global

    A) A oMC e o G20 Comercial B) o Sistema de Bretton Woods e o G20 Financeiro

    Concluso

    Referncias Bibliogrficas

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    Em 2009, quando da publicao da primeira edio deste Manual de Poltica Internacio-nal, o sistema mundial se encontrava em meio a negociaes poltico-econmicas que visa-vam superao da crise iniciada em 2008 nos Estados unidos (EuA), com extenso Europa ocidental e a zona do euro. Em um cenrio de incertezas, as naes emergentes representa-das pela sigla BRIC (Brasil, Rssia, ndia e China) ainda sofriam os efeitos destas instabilidades, mas demonstravam que, diferente de dcadas passadas, estavam menos vulnerveis a estes desequilbrios e mais preparadas para contribuir com a superao das dificuldades.

    Ao mesmo tempo, a ascenso de Barack obama ao poder parecia indicar que esta su-perao da crise viria por meio de esforos coordenados e compromissos compartilhados, associado reforma e atualizao dos organismos multilaterais. A era do unilateralismo e da Guerra ao Terror de George W. Bush, que gerara duas operaes militares no oriente Mdio, no Afeganisto e no Iraque, encontrava um ponto de inflexo. Guardadas as propores, o cen-rio de alguma forma se assemelhava ao da queda do Muro de Berlim em 1989, por trazer certo otimismo entre as naes de que as dificuldades poderiam ser superadas. Inclusive, regies que enfrentavam significativas encruzilhadas no incio do ps-Guerra Fria haviam encontrado certo nvel de estabilidade, como a Amrica Latina e a frica. A despeito da permanncia de problemas sociais, polticos e econmicos, ambas seguiam alternativas diferenciadas, produto de mudanas em suas arenas domsticas e relaes externas, iniciando um renascimento. As tendncias de progresso poderiam prevalecer sobre as de regresso.

    Entretanto, como os anos seguintes demonstraram esta polarizao no foi eliminada medida que assimetrias sociais e polticas permaneceram inalteradas no sistema e muitos processos sofreram estagnao. Tais processos envolvem desde as reformas em instituies internacionais, at ajustes de polticas internas dos Estados, e negociaes diplomticas nas mais diversas esferas. Se eventos como a queda do Muro, o 11/09 e a Guerra Global contra o Terror marcaram os primeiros vinte anos depois da Guerra Fria, o trmino da dcada inicial do sculo XXI caracterizada pela continuidade da acelerao dos fenmenos histricos, a emergncia do Sul, a crise econmica global e a Primavera rabe. Assim, a poltica internacio-

    Introduo

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    nal continuava em ebulio, em resposta a estes sentidos de permanncia e ao descolamento entre as realidades do reordenamento de poder mundial e as dinmicas das rela-es interestatais e transnacionais.

    Diante deste contexto, o objetivo desta segunda edio do Manual, com o apoio da FuNAG (Fundao Ale-xandre de Gusmo), recuperar, de forma atualizada esta trajetria do perodo do ps-Guerra Fria desde 1989 at a primeira metade de 2012. A estrutura do livro, assim como seu nmero de captulos permanecem os mesmos, mas foram introduzidas modificaes de contedo em alguns subitens. Alm disso, estes mesmos subitens foram realoca-dos e outros adicionados a fim de abarcar as novas questes geopolticas e geoeconmicas do cenrio contemporneo: as dimenses econmicas da crise, as negociaes comer-ciais e financeiras para a sua superao, a diferenciada atu-ao dos emergentes no cenrio mundial, a atualizao da poltica externa brasileira e os acontecimentos da Primavera rabe so algumas das temticas atualizadas e ampliadas.

    Em linhas gerais, o primeiro captulo, As Relaes In-ternacionais, apresenta uma breve discusso sobre as Rela-es Internacionais, destacando suas principais temticas, atores e paradigmas, a partir de um prisma mais terico e conceitual. Alm disso, examina a evoluo da poltica in-ternacional de 1989 a 2012 e as interpretaes desenvolvi-das para explicar este cenrio. Tais interpretaes pouco se modificaram nos ltimos anos, preservando as tendncias

    de debate entre o uni e o multipolarismo e o choque entre a permanncia das estruturas de poder mundial e as de-mandas por sua atualizao e democratizao diante dos inmeros fenmenos sociais, polticos, estratgicos e eco-nmicos associados aos processos de reordenamento do poder mundial, envolvendo atores estatais e no estatais.

    No Captulo 2, o Sistema Internacional Ps-Guerra Fria (1989/2012) estas hipteses so avaliadas a partir dos atores, estando dividido em duas partes: o ocidente e a Rssia e o Mundo Afro-Asitico. Na parte I, os subcaptulos examinam os EuA de Bush pai a Barack obama, a Europa e a Integrao Regional, chegando aos acontecimentos da crise da zona do euro, e a transformao da unio Sovi-tica (uRSS) Rssia. Por sua vez, a Parte II aborda o Leste Asitico e o Subcontinente Indiano, examinando o Japo, a ASEAN (Associao das Naes do Sudeste Asitico) e a Pennsula Coreana, a China, a ndia e o Paquisto. A frica, o oriente Mdio e a sia Central complementam esta Parte, avaliando seus processos de crise, estagnao e dinamis-mo das revolues populares iniciadas em 2010.

    Neste contexto, os prximos captulos analisam os desafios e a agenda do Brasil em sua insero internacio-nal. Este debate inicia-se no Captulo 3 As Relaes Inter-nacionais do Brasil, composto por duas partes: os Prin-cpios Clssicos e os Temas Contemporneos e o Brasil e as Amricas. A parte inicial do Captulo traz um panora-ma das tradies externas do pas, enfatizando o debate

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    contemporneo, atualizado at o governo da Presidente Dilma Rousseff. Por sua vez, a segunda parte examina o intercmbio bilateral com os EuA, Argentina, Venezuela, dentre outros, somado s iniciativas de integrao regional na Amrica do Sul do Mercado Comum do Sul (Mercosul) unio de Naes Sul-Americanas (unasul), e os esforos di-ferenciados na Amrica Central na forma da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC).

    Em o Brasil e o Mundo, que corresponde ao Ca-ptulo 4, o texto aborda os eixos horizontal e vertical das Relaes Internacionais, avaliando as parcerias Sul-Sul e Norte-Sul, em suas dimenses bi e multilaterais. Na agen-da Sul-Sul iniciativas como o IBAS (ndia, Brasil e frica do Sul), o BRICS, as relaes com o continente africano e pases de menor desenvolvimento relativo so analisa-das. o adensamento do IBAS e dos BRICS um fenmeno contemporneo e que, em pouco tempo, vem ganhando espao como fruns de negociao e articulao das na-es do Sul. No eixo Norte-Sul, as relaes com a unio Europeia, o Japo e a experincia do G4 so examinadas. Por fim, o Captulo 5, o Brasil e o Multilateralismo apre-senta estudos sobre a atuao do Brasil nas Naes uni-das e suas posies, os temas de segurana internacional e uma discusso sobre a economia global, com destaque participao do pas nos G20s, comercial e financeiro, a luz do reordenamento do poder mundial e das presses sobre os Estados e o sistema multilateral.

    Desafiadora, esta agenda demonstra a existncia de um mundo ainda em construo neste incio de sculo XXI, no qual o Brasil pode, e deve, desempenhar um papel deci-sivo amparado por suas tradies, capacidades, potenciali-dades e viso de futuro. Para o pas, e seus futuros diploma-tas, analistas e cidados, o momento traz uma significativa quantidade de indagaes, que somente podero ser res-pondidas a partir de uma perspectiva autnoma e soberana.

    Para a elaborao desta segunda edio, destaca-se o apoio da equipe de pesquisa composta por alunos do Curso de Relaes Internacionais da universidade Federal de So Paulo uNIFESP, campus osasco, Polyana Arthur, Marcela Franzoni e Mrcio Jos de oliveira Junior (Turma 2011, Noturno e Integral) e Clarissa Forner e Natasha Ervi-lha ortolan (Turma 2012 Integral). o trabalho desta equipe foi essencial na construo do o texto, com auxlio na atu-alizao e sistematizao de referncias bibliogrficas, do-cumentos e estatsticas. Ao longo do trabalho, sero indi-cadas as partes nas quais cada um colaborou diretamente.

    Na uNIFESP, ainda, cujo curso de Relaes Interna-cionais encontra-se em seus estgios iniciais no campus osasco, em meio a inmeros desafios, preciso agradecer aos que colaboram com o dia a dia para a consolidao de um novo espao de reflexo sobre a poltica mundial: aos docentes do curso, Flvio Rocha de oliveira e Jos Ale-xandre Altahyde Hage, Valria Curac e ao Anibal Mari (e Erica e ao Ruy, e todos do corpo tcnico, administrativo

    Introduo

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    e acadmico), e last but no least, direo do campus, Pro-fessora Doutora Ieda Therezinha Nascimento Verreschi e Professora Doutora Debora Amado Scerni.

    Igualmente, estendo meus agradecimentos ao co-lega Professor Corival Alves do Carmo por sua colaborao direta neste texto, com a elaborao de materiais de refle-xo para as discusses sobre a crise econmica nos EuA, da Zona do Euro e da economia global (em 2.1 e 5.3). Estas contribuies se estendem aos debates sobre a Venezue-la e dilogos acadmicos realizados ao longo da elabora-o de diversos trabalhos em coautoria nos ltimos anos (e que ajudaram na elaborao da primeira verso deste Manual em 2009).

    Por fim, no possvel encerrar esta Introduo sem mencionar todos que estiveram presentes na primeira eta-pa de elaborao deste trabalho: os alunos do curso de Relaes Internacionais da universidade Estadual Paulis-ta uNESP, colegas professores do Departamento de Ci-ncias Polticas e Econmicas- DCPE, mas em particular Edna e aos hoje Bacharis em Relaes Internacionais pela uNESP de Marlia, Alessandra Aparecida Luque, Ellen Cristi-na Borges Fernandes e Glauco Fernando Numata Batista; e Mrcia Pires de Campos e ao Dr. Hitoshi, Vanessa, Tais e Marina pela ajuda e pacincia.

    Agosto 2012.

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    As Relaes Internacionais

    o estudo da poltica internacional envolve o conhecimento dos acontecimentos, atores, fenmenos e processos que ocorrem alm das fronteiras dos Estados nacionais. Para analisar estas dimenses, a disciplina das Relaes Internacionais uma ferramenta essencial. Nas pa-lavras de Braillard,

    Relaes Internacionais (...) constituem um objeto cujo estudo hoje um local privilegiado de en-contro de diversas Cincias Sociais (...) o que caracteriza propriamente as Relaes Internacionais o fato delas constiturem fluxos que atravessam as fronteiras (...) Podemos pr em evidncia a especificidade das Relaes Internacionais definindo-as como as relaes sociais que atravessam as fronteiras e que se estabelecem entre as diversas sociedades. (BRAILLARD, 1990, pp. 82-83 e p. 86)

    Neste captulo, os conceitos, atores e teorias desta disciplina so apresentados de forma introdutria em 1.11. Na sequncia, o item 1.2 discute as principais tendncias da poltica inter-nacional a partir das interpretaes e hipteses sobre o ps-Guerra Fria.

    1.1 As Bases da Disciplina

    Traando algumas linhas gerais, os temas examinados neste item so: o Sistema Interna-cional (SI), os Atores Internacionais (Estados, oIGs, FTs) e as Foras Internacionais.

    A) Conceitos e Atores

    o primeiro conceito a ser apontado na rea de Relaes Internacionais o do espao no qual ocorrem as interaes sociais mencionados por Braillard, o do Sistema Internacional (SI).

    1 As referncias bsicas para o desenvolvimento deste captulo so Marcel Merle (1981), Duroselle (2000) e BAYLIS and SMITH, (2001). As partes 1.1 e 1.2 possuem perfil mais terico, buscando apresentar alguns dos principais, conceitos e debates da rea de Relaes Internacionais, mas sem a pretenso de esgotar o tema ou abordar sua evoluo histrica. Para estes estudos histricos ver VISENTINI e PEREIRA, 2008.

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    outros termos que podem ser indicados como sinnimos de SI so cenrio e ambiente. Sua caracterstica bsica a anar-quia, representada pela ausncia de um governo ou leis que estabeleam parmetros regulatrios para estas relaes, em contraposio ao sistema domstico dos Estados. A partir deste princpio bsico, a ordem internacional definida por meio dos intercmbios e choques que se estabelecem entre os atores da poltica internacional. o ponto de partida desta viso clssica o surgimento do Estado Moderno e a Paz de Westphalia em 1648 (o outro marco o Tratado de utrecht, 1713).

    Avaliando o SI2 a partir desta viso, trs caracters-ticas definem este ambiente: a sua dimenso global e fe-

    2 A concepo de sistema internacional apresentada por Hedley Bull (representante da escola realista inglesa e tambm chamado de neogrociano ) distinta desta definio baseada em Merle. Bull define o sistema internacional como um sistema de Estados quando dois ou mais Estados tm suficiente contato entre si, com suficiente impacto recproco nas suas decises, de tal forma que se conduzam, pelo menos at certo ponto, como partes de um todo. (BuLL, 2002, p. 15). Na anlise de Bull, o conceito central o de Sociedade Internacional, como resultante da evoluo da poltica internacional alm das concepes do realismo hobbesiano (Estado de Natureza) e do idealismo kantiano. Para o autor, a Sociedade Internacional se constitui quando um grupo de Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns formam uma sociedade no sentido de se considerarem ligados no seu relacionamento por um conjunto comum de regras e participam de instituies comuns. (BuLL, 2002, p. 19). Para Bull, trs etapas podem ser identificadas na evoluo da sociedade internacional, isto, da sociedade anrquica: a crist (sculos XVI/XVII), a europeia (XVIII/XIX) e a global (XX). Jackson and owens (2001) inserem outras divises nesta evoluo: Grcia Antiga ou Helnica (500-100 a.c), Renascena Italiana (1300-1500), Europa Pr-Moderna (1500-1650), Europa ocidental (1650-1950) e Global (1950 em diante). Para leituras adicionais ver WIGHT, 2002 e WATSoN, 2004.

    chada, resultante do processo de expanso do mundo ocidental iniciada pelas potncias portuguesa e espa-nhola nos sculos XV e que atingiu no sculo XX o li-mite de todos os fluxos e Estados que compem o SI; a heterogeneidade que corresponde s diferenas entre os atores que ocupam o espao internacional, a diversi-dade destes mesmos atores (Estados, oIGs e FTs) e dos fenmenos que ocorrem no ambiente global (igual-mente conhecidas como foras que se subdividem em naturais, demogrficas, econmicas, tecnolgicas e ideolgicas); e, por fim, a estrutura, que representa a ordem do SI, ou seja, o Equilbrio de Poder (EP) que se estabelece entre os Estados e define uma determinada hierarquia.

    Em termos tericos, o EP um dos principais pila-res da teoria realista clssica das Relaes Internacionais do sculo XX, mas suas origens podem ser encontradas nos escritos de Tucdides (A Guerra do Peloponeso, 2001) e nas dimenses prticas das relaes intraeuropeias dos sculos XVII a XIX, sendo o Concerto Europeu es-tabelecido no ps-Congresso de Viena considerado o tipo ideal deste modelo. Mas, em que consiste o EP e qual sua importncia para as Relaes Internacionais3?

    3 Bull, inclusive, reconhece a importncia do EP na evoluo e estabilizao das Relaes Internacionais.

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    Entidades soberanas, os Estados no possuem nenhu-ma autoridade acima da sua para regular suas relaes no cenrio internacional, cujo princpio central , como citado, a anarquia. Diferente do ambiente domstico no qual se es-tabelecem pactos e/ou contratos para regular as interaes internas, o mbito externo no possui princpios organizado-res, assemelhando-se ao Estado de Natureza de Thomas Ho-bbes. A ordem internacional emerge a partir da dinmica de competio e choque mtuo entre os Estados que se anulam mutuamente ao perseguir seus interesses nacionais (a razo de Estado orienta o seu comportamento). A prioridade pri-meira a manuteno da soberania e da segurana de cada unidade poltica individual. Este processo de conteno e dis-suaso mtuas entre os diferentes polos produz uma condi-o de estabilidade que se no satisfaz plenamente a todas as naes, evita a ecloso constante de guerras e o extremo dos jogos de soma zero. Neste contexto, tais relaes ocorrem sob a sombra da guerra e visam estabilidade de no a paz, percebida como um objetivo utpico.

    Com o surgimento da arma nuclear, estes equilbrios se tornaram mais sensveis, dado o poder de destruio mtua assegurada desta tecnologia. Para se referir a esta dinmica contempornea, Raymond Aron (2001) faz uso do termo Equilbrio do Terror que simboliza a possibilida-de da poltica voltar a ser um jogo de soma zero e o con-gelamento do poder mundial por aqueles que detm esta tecnologia, caracterstico de toda a bipolaridade.

    Ao longo da histria, trs tipos de ordem podem ser encontrados: o unipolar,com a proeminncia de um polo de poder (Imprio Romano); o bipolar, com a existncia de dois polos principais (Guerra Fria, 1947/1989 entre EuA e uRSS); e o multipolar composto por diferentes polos. Como indicado, o tipo ideal do EP foi o Concerto Europeu de 1815 a 1914, composto pelos polos Frana, Gr-Breta-nha, Prssia (Alemanha depois de 1870 com a unificao), Rssia e Imprio Austro-Hngaro4. No ps-Guerra Fria, ob-servam-se articulaes complexas entre os modelos uni e multipolar (abordado no 1.2).

    Definido o SI, cabe analisar as categorias de atores que interagem em seu ambiente: os Estados (estatais), as oIGs e as FTs (no estatais, i.e, que no so Estados).

    - Estados unidades polticas centralizadas surgidas a partir da Paz de Westphalia em 1648, contrapondo-se s instncias fragmentadas e no seculares da Idade Mdia. os princpios bsicos do Estado Moderno so a territoriali-dade com base em fronteiras definidas, a soberania poltica sobre este territrio, constituindo um governo organizado, e a existncia de uma populao que habita este espao

    4 Mesmo no EP europeu, a Gr-Bretanha possua uma posio mais destacada do que estes outros polos devido a seu poder poltico-econmico e, durante o sculo XIX, construiu sua hegemonia na era que ficou conhecida como Pax Britannica. Porm, sua ttica de ao preservava o EP (isolamento esplndido), atuando como mantenedora do equilbrio e reguladora de suas aes (primus inter pares).

    As RelaesInternacionais

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    geogrfico. Juridicamente, os Estados reconhecem-se mu-tuamente, respeitando seus limites territoriais (respeito aos princpios de no interveno e no ingerncia), e estabe-lecem relaes diplomticas entre si. Em sntese, trs com-ponentes materiais compem estas unidades polticas, o territrio, a populao e o governo. Todos os Estados so, portanto, soberanos dentro de seu determinado territrio.

    Ainda que os Estados sejam iguais de direito, no o so de fato. As diferenas referem-se a suas histrias (pro-cesso de construo e idade como Estados Westphalianos), constituies domsticas (regimes, formas de governo e di-nmica dos atores da sociedade civil5) e a seus recursos de poder. Na medida em que o poder um elemento essen-cial da poltica (seja ela domstica ou internacional), a posse destes recursos por um determinado Estado delimita sua capacidade de atuao e projeo no sistema e sua medida de vulnerabilidade. Estes elementos correspondem ao nvel de autonomia.

    A anlise dos recursos de poder disposio do Estado deve levar em conta duas dimenses, a da posse e a da converso dos recursos. A partir desta premissa preciso fazer a distino entre o poder potencial de um Estado, aquele que existe em sua condio bruta, e o seu

    5 os partidos polticos, os grupos de interesse e a opinio pblica nacional, alm de atores individuais compem as foras da sociedade civil.

    poder real, definido por sua capacidade de converso. Exemplificando: um Estado pode ser detentor das maio-res reservas petrolferas do mundo, mas se no possuir capacidade tecnolgica para explorar este recurso, o seu potencial energtico no se concretizar em recursos disposio de sua populao.

    outra distino a ser realizada quanto ao poder refe-re-se tipologia dos recursos: o poder duro (hard power) e o poder brando e de cooptao (soft and cooptive power)6. o poder duro corresponde aos recursos de carter tradi-cional: dimenses territoriais, posicionamento geogrfico, clima, demografia, capacidade industrial instalada, dispo-nibilidade de matrias-primas e status militar. Por sua vez, o poder brando e de cooptao refere-se s fontes de po-der econmicas, ideolgicas, tecnolgicas e culturais que correspondem capacidade de adaptao, flexibilidade e convencimento de um determinado Estado sobre seus pa-res. A habilidade poltica, da disseminao de valores e de produo de modos de vida (modelos ideolgicos) insere--se nesta dimenso. Em 2009, em uma discusso mais re-lacionada s perspectivas da poltica externa dos EuA (ver 2.1), introduziu-se o conceito de poder inteligente (smart power), que se relaciona juno equilibrada das fontes de poder duro e brando na ao dos Estados. Tendo como

    6 Esta classificao desenvolvida por Nye Jr (1990).

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    base estes recursos, algumas categorias de Estado podem ser identificadas7:

    - Superpotncias ou Potncias Globais, que detm recursos nestes dois nveis, exercendo e projetando seu poder de forma multidimensional em nvel mundial, o que lhes capacita ao exerccio da hegemonia. o grau de auto-nomia elevado, mesmo que estas naes eventualmen-te possuam vulnerabilidades especficas (como os EuA e o petrleo). os recursos brando e duro so utilizados de forma alternada, ou simultnea, para a realizao de seus interesses nas relaes estatais e no estatais;

    - Potncias Regionais, com capacidade para ao em nvel regional em suas respectivas esferas de influn-cia, com menor disponibilidade de recursos que as naes de projeo global. Sua presena definidora do equilbrio ou do desequilbrio em seu espao geogrfico (Estados piv). Detm quantidade razovel de poder brando e duro, mas com deficincias de capacitao em algumas reas. Pode-se inserir uma definio adicional neste grupo, iden-tificando potncias regionais localizadas no mundo desen-volvido (Alemanha e Japo, por exemplo) e as naes em desenvolvimento (Brasil, China e ndia).

    7 Estas categorias, assim como as de recursos de poder, possuem diferentes interpretaes e nomeaes dependendo dos autores. os debates do 1.1 encontram-se em maior extenso em PECEquILo, 2008.

    Avaliando as naes em desenvolvimento do Sul, clas-sificaes alternativas so as de Grandes Estados Perifricos (GEP8), Potncias Mdias e Pases Emergentes (termos como pases baleias e continentais eram utilizados, mas se tornaram menos frequentes). Devido a sua condio, estes Estados pos-suem caractersticas paradoxais: ao mesmo tempo em que detm quantidade significativa de recursos de poder duro, sua capacitao branda apresenta vulnerabilidades. outro termo que passou a ser aplicado a estas naes de novo Segundo Mundo (durante a Guerra Fria o termo correspondia ao mun-do comunista) referente aos emergentes (KHANNA, 2008). o Primeiro Mundo mantm-se como dos pases desenvolvidos e o Terceiro Mundo abrigaria as naes mais pobres, tambm conhecidas como Pases de Menor Desenvolvimento Relativo (PMDR). Esta diferenciao entre Segundo e Terceiro Mundo no aceita de forma ampla, havendo a preservao do con-ceito do Terceiro Mundo como mundo em desenvolvimento que abarca os GEPs aos PMDRs9.

    - Papel Local/Restrito pases de baixa projeo global e regional, cujas polticas externas tradicionalmente

    8 os Grandes Estados Perifricos (GEP) so aqueles pases no desenvolvidos de grande populao e de grande territrio no inspito, razoavelmente passvel de explorao econmica e onde se constituram estruturas industriais e mercados internos significativos (GuIMARES, 1999, p. 21).

    9 Neste texto, optou-se por utilizar a opo Estado emergente, em desenvolvimento, Terceiro Mundo e GEP para naes como Brasil, China, ndia e Rssia, e PMDRs para os mais pobres.

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    so satlites destes outros nveis e que exercem um papel limitado, restrito a seu espao fsico. Duas categorias po-dem ser identificadas: a dos pases menores e estabiliza-dos, como o Chile, e a de Estados menos desenvolvidos e com elevada vulnerabilidade, vide Haiti. Esta segunda cate-goria corresponde aos PMDR e, na classificao da poltica externa norte-americana, aos Estados falidos.

    Porm, os Estados no se constituem nos nicos atores das Relaes Internacionais, apesar de se mante-rem como os principais. o campo dos atores no estatais divide-se em organizaes Internacionais Governamentais (oIGs) e as Foras Transnacionais (FTs).

    - organizaes Internacionais Governamentais ou Intergovernamentais (oIG) referem-se aos grupos polti-cos formados por Estados que ganharam impulso a partir de 1945 no encerramento da Segunda Guerra Mundial. Seu antecedente contemporneo foi a Liga das Naes proposta pelo Tratado de Versalhes a partir dos quatorze Pontos de Woodrow Wilson (para a contextualizao hist-rica ver VISENTINI e PEREIRA, 2008).

    Naquele momento, as oIGs surgem como espa-os de negociao diplomtica e construo de consen-sos, estabelecendo relaes diretas entre os Estados que facilitem a mediao de suas relaes, a cooperao e a perseguio de objetivos comuns. Estes fruns multilate-rais permitem o aumento dos contatos entre as unidades polticas e canais alternativos de ao. As oIGs atuam em

    dimenses diversas da poltica internacional, dividindo--se segundo seus propsitos e extenso (esfera de ao, membros e dimenso): as de Propsito Abrangente (PA) e as de Propsito nico (Pu) e as Globais e Regionais. A oNu, por exemplo, uma PA global, enquanto o FMI e a oMC so oIGs de Pu global. Em termos regionais, a oTAN apresenta Pu, enquanto a uE e o Mercosul seriam PAs.

    Formadas por Estados, as oIGs possuem uma rela-o complexa e paradoxal com seus membros fundadores. medida que se comprometem com as oIGs, os Estados concordam em abrir mo de parte de sua soberania e a respeitar a Carta/Tratado que constituem estas instituies. Com isso, as oIGs ganham autonomia para discutir e pro-por polticas, fortalecendo seu papel como frum de ne-gociao e tomada de decises. Esta autonomia relativa medida que o seu funcionamento depende da ao dos Estados membros que contribuem para a sua manuteno em diversas reas, desde a financeira at a militar e estra-tgica. o poder das oIGs no se sobrepe soberania dos Estados, o que gera, por vezes, desrespeito a suas decises e prescries. No so inditas as oportunidades nas quais os pases alegam questes de segurana e interesse nacio-nal para ultrapassar o mbito multilateral e agir individual-mente. A ao dos EuA na conduo da Guerra do Iraque 2002/2003 ilustra esta situao, como abordado no item 2.1, e os dilemas associados preservao da credibilidade e integridade destas oIGs.

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    preciso igualmente fazer uma distino entre as pers-pectivas que os Estados de diferentes portes trazem para o mbito multilateral. Para as naes menores, as oIGs so elementos essenciais de ao, uma vez que o multilatera-lismo permite sua atuao mais equilibrada e equitativa no sistema internacional diante das naes mais fortes e permi-te a insero de demandas e reivindicaes nestes espaos. Para os Estados com maiores recursos, alm de funcionarem como canais diplomticos, as oIGs podem ser criticamente percebidas como meios alternativos de presso e exerccio de poder.

    Existe, assim, uma relao ambgua entre as oIGs e os Estados, sustentada em uma dinmica de autonomia e dependncia, de igualdade e presso. Estas dificuldades no eliminam o papel fundamental que estas instituies desempenham na poltica mundial contempornea e sua relevncia para as Relaes Internacionais do Brasil em par-ticular. Superando a lgica de conflito do EP, as oIGs so um mecanismo que facilita as interaes entre os Estados, inse-rindo, ao lado do conflito, possibilidades de cooperao.

    - Foras Transnacionais (FTs) Pertencentes catego-ria dos atores no estatais, as FTs diferenciam-se das oIGs por representar fluxos privados mltiplos ligados socieda-de civil (comunicaes, transportes, finanas e pessoas) que afetam a poltica dos Estados tanto positiva quanto nega-tivamente. o progresso tecnolgico permitiu a acelerao deste fenmeno, dinamizando sua intensidade e relevncia

    na poltica internacional. As organizaes No Governamen-tais (oNGs), as Multinacionais (ou Companhias Multinacio-nais ou Transnacionais, CMNs ou CTNs), os Grupos Diversos da sociedade civil e, por fim, a opinio Pblica Internacional representam as FTs.

    Analisando-as individualmente, as oNGs represen-tam foras da sociedade civil, entidades no lucrativas podendo ser locais, regionais ou mundiais, detendo ca-rter privado, espontneo e solidrio. A base de sua uni-dade so valores comuns e a busca da conscientizao, focando em reas como o meio ambiente e os direitos humanos, aes comunitrias. ocupando espaos tra-dicionalmente no atendidos pelo Estado, as oNGs ga-nharam impulso considervel com o fim da Guerra Fria. Positivamente, incentivam a cidadania e a participao popular, mas do lado negativo podem atuar como pode-res paralelos (em particular em pases em desenvolvimen-to). Dentre as oNGs mais conhecidas podem ser citadas a Cruz Vermelha, o Greenpeace, a Anistia Internacional, o Human Rights Watch e a Fundao Mata Atlntica, o Banco do Povo, dentre outros.

    As Companhias Multinacionais ou Transnacionais (CMNs ou CTNs) so empresas de atuao global em diversos Estados, cuja sede localiza-se em um determinado pas de origem. Ao se instalarem em naes fora desta base nacional, as CMNs se-guem as regras destes Estados e influenciam, principalmente em pases menores, a poltica interna destas naes por conta

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    de questes tributrias e financiamentos. Para os Estados mais poderosos, representam, mesmo que indiretamente, fontes de poder brando.

    os Grupos Diversos da Sociedade Civil correspon-dem a sindicatos, Igrejas, Partidos Polticos, Mfias, Grupos Terroristas. A opinio Pblica Internacional ainda um mo-vimento embrionrio, mas que com as interaes cada vez mais rpidas das comunicaes e transportes tem desen-volvido um perfil prprio. As manifestaes globais contra Guerra do Iraque em 2003, a defesa do meio ambiente so alguns acontecimentos relacionados a esta consolidao.

    Finalmente, preciso discutir o papel das Foras Internacionais, tambm chamadas de fatores ou aconte-cimentos, e que correspondem a aes dos agentes inter-nacionais e a fenmenos que independem de sua deciso. Cinco foras podem ser citadas: a natural, a demogrfica, a econmica, a tecnolgica e a ideolgica. os elementos na-tural e demogrfico correspondem a dimenses de poder duro, enquanto as seguintes referem-se ao brando.

    A fora natural corresponde aos elementos geogr-ficos, climticos e de recursos/matrias-primas. Ainda que os desenvolvimentos tecnolgicos tenham permitido aos homens melhor administrar estes fatores naturais ao longo dos sculos, muitos fenmenos continuam no depen-dendo das aes humanas como terremotos e desastres naturais similares. A temtica ambiental relaciona-se ma-neira como as sociedades relacionam-se com a natureza,

    gerando efeitos positivos (irrigao em terras de deserto) ou negativos (aquecimento global).

    A segunda fora, o fator demogrfico, refere-se aos impactos populacionais. os principais componentes re-lacionados a este tema so o crescimento populacional10 e os deslocamentos (migraes). Atualmente, enquanto algumas naes continuam sofrendo problemas relativos exploso demogrfica e controle de natalidade no Ter-ceiro Mundo, os pases do Norte apresentam ndices de crescimento negativo (e mesmo algumas potncias m-dias como o Brasil tambm observam declnio populacio-nal e envelhecimento). o fluxo Sul-Norte das migraes contemporneas, as questes relativas aos direitos e con-dies de vida das populaes (representadas pelo ndice de Desenvolvimento Humano das oNu-IDH), os temas de sade (HIV/Aids, epidemias de gripe como a suna e avi-ria, retorno de doenas como tuberculose e poliomielite em naes pobres) tambm se inserem neste conjunto de preocupaes.

    A terceira fora, o fator tcnico ou tecnolgico, representada pelo campo das inovaes tecnolgicas, que

    10 os trabalhos de Malthus e a avaliao de que a populao cresce em proporo geomtrica, enquanto a produo de alimentos em aritmtica representam algumas das principais preocupaes na passagem do sculo XIX ao XX. o desenvolvimento da tecnologia, contudo, no levou confirmao das previses.

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    ao longo da histria do sistema internacional, permitiu s sociedades que tomaram frente destes processos alarem posies de destaque no equilbrio de poder mundial. o fa-tor tecnolgico impacta diretamente as relaes sociais, os modos de vida e os meios de produo, apresentando pro-funda interdependncia com a fora econmica que deli-mita o progresso e a riqueza das naes. A primeira onda de colonizao martima, as Revolues Industriais (engloban-do a criao da mquina a vapor na primeira, os desenvol-vimentos da indstria qumica na segunda, a cientfico-tec-nolgica na terceira e, possivelmente, a quarta da gentica e biotecnologia), o avano do poderio blico e estratgico (advento do poder nuclear e de outros meios de destruio em massa), a renovao das comunicaes com a internet, so alguns dos fenmenos que podem ser mencionados de forma no exaustiva.

    No sculo XXI, um conceito que se torna cada vez mais presente o das guerras cibernticas (cyberwars), que traz uma ameaa diferenciada segurana dos Esta-dos. Segundo este conceito, os conflitos interestatais as-sumem uma dimenso virtual, e passam a ser travadas por meio de invases de computadores, stios oficiais de governo e empresas, que podem paralisar servios pbli-cos (energia, transporte, gua) e servios em geral (bancos, supermercados, escolas). outras questes relacionadas so a espionagem, o roubo de dados pessoais e trfico de in-formaes.

    o fator econmico influencia as esferas sociais, pro-dutivas, ideolgicas e culturais das sociedades modernas, resultando em diferentes formas de diviso de trabalho no cenrio global e na separao interna das classes depen-dendo do modelo adotado. Durante o sculo XX, dois mo-delos econmicos confrontaram-se, o capitalista e o socia-lista. A Guerra Fria representou o auge desta confrontao, respectivamente entre os blocos liderados pelos EuA e a antiga uRSS, e a precedncia do capitalismo liberal norte--americano sobre este outro modo de vida (ver 1.2). Estes modelos no eram nicos, apresentando variaes: no ca-pitalismo, alm do norte-americano, a Europa desenvolveu a socialdemocracia (um capitalismo regulado) e os pases asiticos um capitalismo de Estado. No campo socialista, os modelos sovitico e chins apresentavam diferenas. No sculo XXI, o modelo hbrido da Economia Socialista de Mercado chinesa ganhou destaque, assim como as teorias da globalizao e, mais recentemente, da crise.

    A fora ideolgica representa o conjunto de valores e percepes desenvolvidas pelas sociedades humanas para explicar e compreender sua realidade. As ideologias so instrumentos de construo poltica e produzem sistemas de pensamento e agendas capazes de motivar e comandar Estados e suas populaes (e coopt-los). o liberalismo, o nacionalismo, o fascismo, o socialismo so exemplos destas construes e smbolos que prescrevem e orientam certos modelos de comportamento e modos de vida, sustentan-

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    do paradigmas sociais, culturais e econmicos. A partir desta breve abordagem, o prximo item apresenta uma viso panormica das principais correntes tericas da rea.

    B) As Teorias: As Origens Clssicas e o Sculo XX

    Ainda que o desenvolvimento das Relaes Interna-cionais como disciplina em separado no quadro das Cincias Humanas localize-se no sculo XX a partir da ascenso da he-gemonia norte-americana11, as bases de seu pensamento da-tam das reflexes poltico-sociais-econmicas que emergem a partir do sculo XV. A classificao destas bases, que origi-nam as divises tericas do campo das Relaes Internacio-nais, no so consensuais entre a literatura, havendo uma ra-zovel quantidade de terminologias para express-las: alguns autores tendem a dividir as escolas de pensamento somente entre realismo e idealismo, outros entre realismo, pluralismo e globalismo, existindo tambm a opo das teorias sistmicas, da integrao, da paz e conflito ou ambientais12.

    Apesar do predomnio das perspectivas anglo-sa-xnicas, outras escolas de Relaes Internacionais devem merecer ateno como as tradies francesa de Pierre Re-nouvin (1967), Marcel Merle e Jean Baptiste Duroselle, as-sim como as reflexes de Raymond Aron e os estudos cr-ticos. Ainda que aqui mencionadas, estas escolas e alguns de seus conceitos no podem ser trabalhados em maior

    11 Esta associao leva alguns autores a definir as Relaes Internacionais como uma Cincia Social norte-americana (HoFFMAN, 1987).

    12 Para estas discusses ver ARoN, 2001, KAuPPI and VIoTTI, 2008, DouGHERTY and PFALTZGRAFF, 1997.

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    extenso. A opo aqui desenvolvida inspira-se nos estu-dos Michael Doyle (1997) e de Baylis and Smith (2001) que agrupam as teorias conforme as linhas clssicas da cincia poltica, o realismo, o liberalismo e o marxismo13.

    13 o construtivismo e as abordagens alternativas das Relaes Internacionais precisam ser mencionados como vises tericas possveis: a sociologia histrica, a teoria normativa, a teoria feminista, o ps-modernismo e o ps-colonialismo. o construtivismo ganha cada vez mais espao devido a seu enfoque sociolgico, focando sua preocupao na construo das identidades, valores e o estudo da relao entre agentes e estruturas (ver WENDT, 1999). Estas teorias mais especficas, entretanto, no sero aqui abordadas em extenso dado o escopo deste texto.

    B.1) O Realismo Poltico Conhecida como a mais tradicional abordagem

    terica das Relaes Internacionais, o Realismo Poltico sistematiza suas preocupaes em torno de dois concei-tos-chave, o poder e o conflito. A percepo da natureza humana sustentada em uma avaliao que a identifica como propensa conquista, egosta e predatria (seguran-a, glria, prestgio so objetivos a serem perseguidos).

    Desde suas fontes clssicas na Cincia Poltica como Maquiavel e Hobbes, ao anterior estudo de Tucdides sobre as interaes Atenas e Esparta, passando por Max Weber e chegando a E.H Carr e Hans Morgenthau no sculo XX, alm das novas vertentes estruturais e neoclssicas14 com Kenneth Waltz, John Mearsheimer, Randal Schweller, Jose-ph Grieco e Christopher Layne, estas orientaes mantm--se praticamente as mesmas, com variaes de nfase.

    Avaliando rapidamente esta progresso, como men-cionado, as origens clssicas do Realismo remetem s refle-

    14 De acordo com Tim Dunne e Brian Schmidt (2001), a abordagem realista pode ser dividida em Realismo Clssico, Realismo Estrutural, Realismo Neoclssico e Realismo da Escolha Racional. Tambm no se pode esquecer-se da Escola Inglesa das Relaes Internacionais de Hedley Bull. No campo da guerra e da segurana, os trabalhos clssicos de Clausewitz, as preocupaes de geopoltica (Mackinder) e a atualidade dos estudos de securitizao de Barry Buzan e da Escola de Copenhagen relacionam-se ao campo realista, preservando, contudo, sua identidade prpria que as aproxima de premissas sociolgicas.

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    xes de Tucdides em Histria da Guerra do Peloponeso (2001) que examina o conflito entre Atenas e Esparta na Grcia. As formulaes de Tucdides abordam o funcionamento do mecanismo do equilbrio de poder, demonstrando as intera-es e choques entre as cidades gregas. o Dilogo Meliano apontado como um dos exemplos mais claros da dinmi-ca realista de contraposio de interesses e preparao da Guerra (ver Dunne e Schmidt, 2001).

    Em um diferente contexto e perodo histrico, re-ferente ao processo de formao dos Estados na Europa ocidental, Maquiavel examina em O Prncipe a dinmica da conquista, manuteno e expanso do poder. o objetivo da poltica refere-se ao poder e as aes do governante devem ser julgadas quanto sua eficincia na perseguio deste alvo especfico15.

    A estas percepes agrega-se a de Thomas Hob-bes16 em O Leviat, cuja imagem do Estado de Natureza pr-pacto social simboliza o cenrio de anarquia das Re-laes Internacionais. Soberanos, os Estados organizam-se dentro de suas fronteiras por meio do contrato, o que esta-

    15 As reflexes de Weber sobre a separao do poder e da moral e a lgica da ao poltica tambm se incluem neste campo (tica da responsabilidade e da convico). outro elemento essencial do estudo weberiano para a constituio do Estado Moderno o uso legtimo da fora e a anlise sobre as formas de dominao derivadas da lei, da tradio e do carisma.

    16 Rousseau tambm considerado um autor realista por alguns analistas como Doyle, Dunne and Schmidt.

    belece controles e leis sobre a vida dos cidados. No cam-po internacional, contudo, prevalece o Estado de Natureza e competio original, no qual a anarquia fator definidor e a guerra uma possibilidade real como um jogo de soma zero. o EP e a diplomacia tero como funo evitar estas ameaas constantes de destruio, seja pelo choque de in-teresses entre os Estados, como pelo estabelecimento de relaes regulares e mediadas entre os mesmos.

    Com a formao dos Estados Nacionais, estas con-cepes tericas passaram a ganhar uma dimenso prtica no desenvolvimento das polticas das naes nos sculos XVII/XIX. Dentre estas, emerge o conceito de Razo de Estado (raison dtat) francesa desenvolvida pelo Cardeal Richelieu (1585/1642) que estabelece que os interesses nacionais do Estado constitudo devem ser buscados de forma racional, seguindo um clculo de custos e benef-cios, visando o incremento do poder nacional e sendo julgados a partir de critrios exclusivamente polticos. Na Alemanha unificada de Bismarck (1815/1898), as prticas do equilbrio de poder e a ao baseada em consideraes racionais visando o interesse do Estado passam a ser defi-nidas como realpolitik.

    A distino entre a baixa e a alta poltica (low and high politics) tambm emerge no cenrio europeu, iden-tificando as esferas da economia e da cultura (low) e da diplomacia, do poder e da guerra (high). No perodo con-temporneo, estas classificaes so intercambiveis com

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    as perspectivas do poder brando e duro, podendo ser per-cebida a variao em seu peso ao longo dos sculos. Para a consolidao do Estado, o poder duro estava no ncleo das preocupaes, mas com a evoluo de suas dinmicas e a maior complexidade do cenrio, o brando ganhou es-pao, superando a condio secundria da baixa poltica (reconhecendo a multidimensionalidade do poder).

    A transio do sculo XIX ao XX representada pela ecloso da Primeira Guerra Mundial (1914/1918), seguida pela Segunda Guerra Mundial (1939/1945) e a Guerra Fria (1947/1989) representam a consolidao dupla do realis-mo e da disciplina das Relaes Internacionais. As reflexes de E. H. Carr em Vinte Anos de Crise (2001) dialogam com os defensores do idealismo wilsoniano (ver B2). Em sua obra, o autor oferece sua crtica e diagnstico dos arranjos de paz ps-1918. Confrontando as utopias realidade, o texto fundamental na consolidao do pensamento realista, destacando a necessidade de repensar a poltica a partir de seu elemento real, qual seja, o poder.

    Compartilhando as percepes de Carr de que era preciso compreender a poltica internacional pelo prisma de qualquer poltica, o da luta pelo poder, Hans Morgenthau desenvolve em Politics Among Nations uma teoria que ten-ta entender a poltica internacional como ela realmente (MoRGENTHAu, 1985, p.17). No livro, o autor define os seis princpios do realismo poltico partindo dos pressupostos clssicos do realismo sobre o conflito, a natureza humana, a

    autonomia e centralidade dos Estados. Sistematizando bre-vemente estes princpios, segundo Morgenthau, o conceito--chave do realismo poltico o interesse definido em termos de poder, meio e fim da ao estatal, e que varia conforme suas necessidades e contextos histricos.

    A prioridade primeira, porm, permanece a mesma: a preservao da segurana e da soberania. Para definir ou-tros componentes deste interesse, o Estado atua como ser racional, avaliando seus riscos e seus benefcios. A coope-rao, bi ou multilateral, uma ttica possvel de ao, no assumindo o carter de valor. Demandas morais e idealis-tas no devem ser levadas em conta neste processo, uma vez que a poltica internacional e a domstica representam esferas separadas e de lgicas distintas.

    Estes princpios e a ideologia de um determinado Estado no podem, ou devem, ser impostas a outras socie-dades, evitando a pretenso de universalizao de modos de vida e valores (o que, como ser analisado, contrasta com algumas das interpretaes liberais e hipteses so-bre o ps-Guerra Fria). A ordem internacional sustentada pelo Equilbrio de poder e Morgenthau define a diploma-cia como um fator de relevncia na conduo dos Esta-dos e suas interaes no ambiente mundial. No extremo, a guerra mantm-se presente como instrumento vivel e, por vezes, necessrio, de poltica internacional.

    Predominantes nos anos 1950 e 1970 estas ava-liaes sofreram o desafio da emergncia de tendncias

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    contemporneas do liberalismo (B2) e de revises tericas dentro do realismo a partir dos desenvolvimentos da po-ltica internacional. Tais desenvolvimentos, principalmente os da integrao regional e o multilateralismo nas oIGs, colocam em questo a ao dos Estados somente como maximizadores de poder e que no valorizam a coopera-o, abrindo novas perspectivas tericas.

    Na dcada de 1970, o Neorrealismo ou Realismo Estrutural de Kenneth Waltz surge como um desafiador destas premissas clssicas, ainda que compartilhe em larga medida as vises tradicionais do realismo (anarquia, cen-tralidade do Estado e EP, no qual a posio dos Estados define-se por seus recursos de poder). Man, The State and War (2001) e Theory of International Politics (1979) so as ba-ses destas reflexes, nas quais se estabelecem os nveis de anlise, ou trs imagens de Waltz: natureza humana, orga-nizao interna dos Estados e sistema (estrutura).

    Muito resumidamente, de acordo com a viso ne-orrealista, o sistema internacional a estrutura dentro da qual se processam as Relaes Internacionais, delimitando a atuao dos agentes, isto , os Estados, segundo par-metros da socializao e da competio. o sistema deter-mina as aes dos atores que, por sua vez, influenciam as transformaes da estrutura a partir de suas aes em um argumento de certa forma circular. A socializao se refere ao compromisso do Estado a certas regras de conduta e a competio o EP. Em qualquer uma destas condies,

    predomina para os Estados a lgica do self-help (autoaju-da). De acordo com esta lgica, os Estados somente podem contar consigo mesmos para sua proteo e sobrevivncia e, mais do que naes expansionistas, convertem-se em defensores de posio.

    o Realismo Estrutural abre espao para as interaes interno-externo nos processos de elaborao de polticas e tomada de deciso, mas no avana muito na resoluo dos dilemas relativos cooperao dos Estados. A coope-rao percebida como instrumental, viso que se repete nas abordagens neoclssicas e racionalistas. Autores como John Mearsheimer, Christopher Layne, Schweller, Grieco situam-se nestas dimenses contemporneas do realismo, tambm no sendo facilmente classificados: ou seja, alm de neoclssicos e racionalistas, outros termos a eles asso-ciados so realistas ofensivos ou defensivos. Mas, como destacado, medida que no objetivo estender discus-ses destas particularidades tericas, tenta-se, apenas deli-near o debate em suas linhas gerais.

    Resumindo-as, Dougherty e Pfaltzgraff, assim sinte-tizam os seis componentes bsicos compartilhados pelas vises realistas,

    (1) o sistema internacional baseado no Estado-Nao como seu ator-chave (2) a poltica internacional essen-cialmente conflituosa, uma luta por poder em um am-biente anrquico no qual estes Estados inevitavelmente dependem de suas prprias capacidades para garantir sua sobrevivncia (3) os Estados existem em uma condi-

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    o de igualdade de soberania, porm detm diferentes capacidades e possibilidades (4) os Estados so os ato-res principais e a poltica domstica pode ser separada da poltica externa (5) os Estados so atores racionais, cujo processo de tomada de deciso sustentado em escolhas que levem maximizao de seu interesse na-cional (6) o poder o conceito mais importante para explicar e prever o comportamento dos Estados. (Dou-GHERTY e PFALTZGRAFF, p. 58).

    Adicionalmente, preciso ressaltar que apesar de seu foco no poder e conflito, e no Estado como percebido pelos itens acima, o realismo sustenta-se como uma ferra-menta crtica para revelar a jogo dos interesses nacionais sob a retrica do universalismo. (DuNNE and SCHMIDT, 2001, p. 179). Em outra vertente, as vises liberais procu-ram ampliar o espectro realista a partir da interao entre Estados, sociedades, valores e cooperao.

    B.2) O Liberalismo, o Idealismo e a Interdependncia

    Assim como o nascimento do realismo poltico en-contra-se condicionado ao surgimento e consolidao do Estado Moderno, a corrente liberal relaciona-se a um fen-meno poltico: a ascenso da classe burguesa e seu ide-rio poltico-social e econmico. os sculos XVII e XVIII so marcados pelas Revolues Liberais, a Revoluo Gloriosa de 1688/89, a Revoluo Americana de 1776 e a Revoluo Francesa de 1789, orientadas segundo os princpios da li-berdade, da igualdade, do individualismo e da reforma do Estado absolutista17.

    De John Locke a Montesquieu, dos Federalistas Americanas a Bentham e Mill, o pensamento liberal res-salta a importncia da lei e da legitimidade que permitem s sociedades humanas realizar seus potenciais. Embora compartilhem com o realismo o princpio da anarquia e mesmo a desconfiana sobre o carter da natureza huma-na, o caminho liberal substitui o conflito pela cooperao e redireciona o contedo do poder para o lucro e benefcios (gerao de riqueza). Recuando ao pensamento de Gro-tius, possvel estabelecer tanto dentro quanto fora das sociedades regras, normas de direito que conduzam a um

    17 No campo econmico, Adam Smith representa o pensamento liberal clssico.

    As RelaesInternacionais

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    ambiente propcio a interaes pacficas e construtivas (a inspirao da sociedade internacional de Bull).

    No sculo XIX, Immanuel Kant em A Paz Perptua aborda temas relativos ao cosmopolitismo e a governana global ao discutir a formao de uma federao de Estados livres e republicanos. Suas reflexes encontram-se nas ra-zes das teorias de integrao europeia, demonstrando a capacidade transformadora dos indivduos e seu potencial para alcanar uma conscincia universal.

    No sculo XX, com o Idealismo Wilsoniano, estas concepes liberais ganham maior destaque, estando re-lacionadas ao processo de construo de ordem no ps--Primeira Guerra Mundial e citada ascenso hegemnica norte-americana (ver PECEquILo, 2005). Embora o realis-mo de Morgenthau reivindique o carter de formulao terica inicial da rea, a disciplina das Relaes Internacio-nais emerge como ctedra em separado j nos anos 1920 (HALLIDAY, 1999), consistindo-se na viso americana des-te campo. Esta viso estabelecida nos quatorze Pontos discurso proferido por Woodrow Wilson no Senado dos EuA em 1918 (tambm conhecido como Programa para a Paz Mundial) e ser base desta viso terica e do Tratado de Versalhes (1919).

    o idealismo sustenta-se em trs premissas: a demo-cracia e a disseminao de seus valores, universalizando prticas legtimas e transparentes entre as sociedades e os Estados (as democracias no vo guerra umas com as

    outras a concluso daqui derivada); a segurana coletiva para garantir a cooperao e defesa mtua entre as naes, prevenindo o avano de agressores, a partir da instituio de um mecanismo coletivo (a Liga das Naes, embrio da oNu e cuja lgica multilateral estende-se s oIGs em geral); a autodeterminao dos povos, que estabelece o di-reito soberania aos povos que detiverem uma identidade e unidade comum.

    As dcadas de 1920 e 1930 assistiram ao colapso destes arranjos por conta de uma combinao de fatores como as opes da poltica externa dos EuA, a conjuntura da Grande Depresso e os fascismos. Em 1939, a Segunda Guerra parecia encerrar estas prescries idealistas, mas a constrio da ordem depois de 1945 levou a recuperao de alguns de seus mais importantes princpios como o multila-teralismo e a segurana coletiva. Na oportunidade, porm, a hegemonia, os EuA, buscou corrigir seus erros de 1918, desenvolvendo o que alguns autores como Ikenberry (2006) definem de Internacionalismo Liberal. Este internacionalis-mo agrega elementos de poder ao idealismo, sustentando a hegemonia em trs pilares: o estrutural (poder duro), o ins-titucional e o ideolgico (ambos brandos e de cooptao representados pelas oIGs e a retrica cooperativa)18.

    18 Para a Teoria da Estabilidade Hegemnica ver Kindleberger (1973) e para discusses sobre as aes dos EuA, GILPIN, 2002. Gilpin apresenta interessante debate terico sobre a Economia Poltica Internacional.

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    Todavia, esta viso no representa uma nova verten-te terica ou corpo conceitual para o liberalismo, o que se consolida nos anos 1960 e 1970 a partir das abordagens de Robert Keohane e Joseph Nye em obras que se tornam clssicas na rea das Relaes Internacionais: Transnational Relations, Power and Interdependence e After Hegemony. As-sim como as discusses sobre o Neorrealismo dominam os anos 1970 no realismo, as obras de Keohane e Nye, e sua ponte entre realismo e liberalismo, a partir da introduo de conceitos como interdependncia e transnacionaliza-o tornam-se recorrentes no campo liberal. Estas vises so conhecidas como Liberal Institucionalismo, Neolibera-lismo ou Paradigma da Interdependncia

    Para Keohane e Nye, a evoluo da poltica interna-cional desde 1945 e as estruturas multilaterais construdas para organizar as relaes entre os Estados nos mais diversos campos, incrementou as possibilidades de cooperao en-tre as naes, reduzindo a incerteza e aumentando a trans-parncia nas relaes interestatais. A partir destes mecanis-mos facilitadores, o conflito passa a ser secundrio diante da cooperao, uma vez que os Estados comeam a dar prefe-rncia a este mbito institucional e mudar a natureza de seu comportamento voltado apenas para o conflito.

    Com isso, estabelecido um conjunto claro de re-gras e princpios, facilitando a ao coletiva. Alm de parti-ciparem em oIGs, os Estados tambm apoiam a criao de regimes, regulando suas relaes (a relevncia e a magni-

    tude do multilateralismo podem ser facilmente percebidas nas anlises do Captulo 5). Em definio bastante conhe-cida, Krasner afirma que os

    Regimes so conjuntos de princpios, normas, regras e procedimentos de tomada de deciso implcitos e ex-plcitos em torno dos quais as expectativas dos atores convergem em uma determinada rea das Relaes Internacionais e fornecem as estruturas nas quais as re-laes entre os Estados podem se organizar de maneira mais completa e equilibrada19.

    Como resultado deste espiral e disseminao da cooperao (spillover) e da interligao cada vez maior dos Estados e suas sociedades, existe a crescente relevncia dos atores no estatais. Neste contexto mais complexo e multidi-mensional, os temas clssicos do conflito entre os Estados e os recursos duros comeam a ser acompanhados por preo-cupaes cada vez mais diversas na economia, na cultura, na poltica e na sociedade, como democracia, meio ambiente e direitos humanos. A acelerao do desenvolvimento tecno-lgico e seus impactos nos fluxos de capital, bens, pessoas e informao reforam os fenmenos da interdependncia e da transnacionalizao, elementos essenciais da globalizao.

    Em termos conceituais a interdependncia corres-ponde aos efeitos recprocos que se estabelecem entre

    19 KRASNER, 1983, p. 2

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    pases ou entre atores de diferentes pases como produto do aumento e aprofundamento dos contatos internacio-nais. Estes contatos ocorrem alm-fronteiras e produzem situaes de dependncia mtua, abrangendo fenmenos diversos: socioculturais, polticos, econmicos (comerciais e financeiros), ambientais e tcnicos. os canais da interde-pendncia so mltiplos, interestatais, transgovernamen-tais e transnacionais. os Estados so afetados e determina-dos significativamente por foras externas, tanto de forma simtrica quanto assimtrica (dependendo de seu grau de exposio e vulnerabilidade externa).

    o segundo conceito, o de transnacionalizao, rela-ciona-se interdependncia e emerge da ao dos agen-tes privados no sistema internacional que se intensificou a partir dos desenvolvimentos tecnolgicos e dos fenme-nos que surgem alm dos Estados e seus limites, mas que por eles no podem ser controlados. Apesar de nascerem dentro dos Estados, estes fenmenos ultrapassam suas fronteiras, sendo representados por quatro fluxos: comu-nicaes, transportes, finanas e pessoas (no que se rela-cionam s foras internacionais e aos atores FTs analisados no item 1.1 A).

    No contexto da globalizao (1.2B), alguns autores indicam que a correlao destes fenmenos levaria ao de-saparecimento e superao do Estado, enquanto outros, incluindo Keohane e Nye, indicam a existncia de uma transio e convivncia de formas mltiplas e tabuleiros

    diferenciados nas Relaes Internacionais. Esta multiplici-dade refere-se ampliao das questes que interessam e afetam os Estados alm do poder militar, do incremento da ao de outros atores, da ampliao das interaes es-tatais e no estatais e das transformaes das sociedades. Trata-se de um debate relevante que, como o marxista, de-monstra a complexidade da poltica internacional.

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    B.3) O Marxismo e as Vises Crticas

    Diferente do realismo e do liberalismo que, depois de suas bases clssicas, desenvolveram concepes teri-cas especficas para as Relaes Internacionais, o marxismo ainda no gerou um enfoque disciplinar claro para a rea como sustenta Fred Halliday (1999). o domnio do campo de estudos pela escola norte-americana dificultou o desen-volvimento de reflexes, principalmente ao longo da Guerra Fria e depois de 1989 dada a queda dos regimes socialistas como o da uRSS e a reavaliao do modelo (ver 1.2C).

    Porm, desde suas origens que datam do sculo XIX com a anlise da Revoluo Industrial, suas transformaes e a contestao da sociedade burguesa pelo proletariado nos trabalhos de Karl Marx e Friedrich Engels (O Capital, 18 Brumrio, O Manifesto Comunista so algumas obras que podem ser mencionada), o marxismo detm preocupa-es sobre o internacional Assim, esta corrente apresenta formas crticas de questionamento sobre a realidade e ele-mentos que compem uma possvel agenda para compre-end-la. As vises de Marx sobre a economia capitalista e seu processo de expanso e presso sob outras sociedades detm um perfil claramente internacional, demonstrando o poder global deste modo de produo.

    Como indica Halliday, o materialismo histrico uma teoria geral abrangente da ao poltica, social e eco-nmica, capaz de considerar todos os campos da ao so-

    cial (HALLIDAY, 1999, p. 69) que pode nos ajudar a pensar as Relaes Internacionais e transformar a realidade. Mas, quais so os pilares que embasam esta reflexo? Para Halli-day, estes pilares so a determinao material, a determi-nao histrica, a centralidade das classes e a revoluo.

    A determinao material refere-se ao peso da eco-nomia na organizao social, poltica e cultural de uma sociedade. A estrutura, os meios de produo, determi-nante na definio de suas demais formas de reproduo social e ideolgica (superestrutura). No campo da determi-nao histrica o que se observa o peso do passado so-bre a histria presente, no se podendo ignorar o processo formativo das sociedades para, posteriormente, mud-las. o processo de evoluo destas sociedades ocorre por meio do conflito, um movimento dialtico, gerado a partir dos outros dois pilares do pensamento marxista: a diviso das classes entre burgueses e proletrios, seu antagonismo natural, e a inevitabilidade da revoluo (que se consiste em um dos elementos mais criticados desta corrente20). No caso da diviso de classes, Halliday indica que a mesma se estende ao sistema internacional, entre diferentes burgue-sias e proletariados nacionais.

    20 Dentre estas crticas apontadas por Halliday encontram-se a subestimao da democracia, da reforma e do nacionalismo e da tecnologia como elementos de atualizao do capitalismo diante de seus desafiadores de esquerda e de direita.

    As RelaesInternacionais

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    Para Halliday, o potencial do marxismo como instru-mento analtico reside em sua concepo das interaes sociais. Autores como Lenin, Rosa de Luxemburgo, Gramsci oferecem importantes contribuies para o estudo do im-perialismo, da evoluo do capitalismo e, principalmente no caso de Gramsci, da construo e exerccio da hegemo-nia em suas formas concretas e ideolgicas. Abordagens inspiradas por Gramsci no estudo da reproduo hegem-nica foram desenvolvidas por autores como Robert Cox no perodo mais contemporneo, alm da viso da teoria crtica com Andrew Linklater a partir dos estudos da Escola de Frankfurt. Dentre os representantes do novo marxismo encontram-se Bill Warren e Justin Rosenberg21.

    Alm destas reflexes, historiadores como Eric Ho-bsbawm desenvolvem um pensamento de orientao marxista e merece destaque a anlise sistmica de Imma-nuel Wallerstein sobre a evoluo do capitalismo e das Relaes Internacionais, a Teoria dos Sistemas Mundiais. Na viso de Wallerstein22, o sistema capitalista a fora motriz do desenvolvimento e sua evoluo poltica e eco-nmica leva a formao do sistema mundo e fenmenos contemporneos. A partir deste processo, estabelece-se uma diviso social de trabalho entre os Estados compos-

    21 Para uma anlise mais extensa ver HoBDEN and JoNES, 2001.22 The modern world system, vols. I, II e III so os textos nos quais Wallerstein

    desenvolve esta abordagem (WALLERSTEIN, 1980, 1980, 1988).

    ta por Estados no Ncleo, na Semiperiferia e Periferia do cenrio global.

    Finalmente, preciso mencionar dentre as vises tericas de esquerda a Teoria da Dependncia elaborada pela CEPAL (Comisso Econmica das Naes unidas para a Amrica Latina e o Caribe)23. Esta teoria sustenta a diviso estrutural do cenrio entre Norte e Sul (pases desenvol-vidos e em desenvolvimento). A base do pensamento a defesa da nova ordem econmica internacional (NoEI) e do desenvolvimento autctone dos pases do Sul por meio da superao da deteriorao dos termos de intercmbio por meio da ao estatal e da substituio de importaes.

    A partir deste breve panorama, percebe-se a ri-queza das Relaes Internacionais e os diversos prismas e conceitos que ajudam a compreender sua dinmica. Ace-lerada pelo fim da Guerra Fria, esta dinmica trouxe desa-fios renovados s linhas tericas e o questionamento das vises tradicionais. Dentre as correntes examinadas, realis-mo e marxismo foram considerados superados em 1989, consolidando a supremacia do liberalismo. Acontecimen-tos como o 11/09, a desigualdade social, as guerras, a po-breza, reverteram esta tendncia. Estas oscilaes revelam a complexidade do perodo e inspiram muitas discusses

    23 Ral Prebisch e Fernando Henrique Cardoso so alguns dos representantes desta corrente.

  • 39

    contemporneas, envolvendo a arena mais concreta de como pensar a ordem internacional. No prximo item, so examinadas as interpretaes e hipteses sobre a poltica internacional no ps-Guerra Fria.

    1.2 O Ps-Guerra Fria: Interpretaes e Hipteses (1989/2012) Ao longo do ps-Guerra Fria, as interpretaes sobre

    o funcionamento e a reestruturao da poltica mundial envolvem diferentes percepes sobre o papel e o peso dos atores internacionais, estatais e no estatais, fenme-nos sociais, culturais, polticos e econmico, o novo equil-brio de poder e a dinmica entre padres de cooperao e conflito em nvel global.

    A) O Fim da Histria, a Nova Ordem Mundial e o Momento Unipolar

    No imediato ps-Guerra Fria, em 1989, a publicao do artigo de Francis Fukuyama, The End of History?, no peridico The National Interest, ao qual seguiu o livro o Fim da Histria e o ltimo Homem, sintetizou o sentimen-to corrente de paz e cooperao que dominava o mundo. Segundo a hiptese de Fukuyama, a histria, entendida como a competio ideolgica e concreta entre modelos alternativos de sociedade teria chegado ao fim em 1989 devido ao desaparecimento do desafio representado pelo comunismo ao ocidente.

    Este desaparecimento era simbolizado pelo predo-mnio do modelo norte-americano sobre o sovitico e pela

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  • 40Poltica InternacionalCristina Soreanu Pecequilo

    adeso deste bloco adversrio, incluindo de seu Estado l-der, a uRSS, a este modelo de forma pacfica, voluntria e consensual. o resultado desta adeso era a disseminao e a universalizao dos princpios liberais, na economia e na poltica. A partir deste compartilhamento de valores, o conflito seria substitudo pela cooperao, permitindo o estabelecimento de uma era de paz no sistema interna-cional. Este predomnio revelava o sucesso da estratgia de expanso do modelo ocidental desenvolvida pelos EuA ao longo da Guerra Fria como parte da poltica de con-teno. Desde 1947, a grande estratgia norte-americana sustentava-se em trs prioridades: a conteno da uRSS, a conteno do comunismo e a disseminao da ordem liberal democrtica.

    o fim da histria simbolizava a concretizao destes objetivos de forma coordenada e a disposio positiva dos EuA e seus aliados em integrar seus antigos adversrios em seu sistema de relaes estatais e multilaterais. No mbito multilateral, as organizaes internacionais governamen-tais criadas no ps-Segunda Guerra Mundial preservavam sua funcionalidade e eram os canais por meio das quais os EuA exerceram, e continuavam exercendo sua liderana. A globalizao e a regionalizao reforavam esta unidade das democracias e a transformao dos tradicionais par-metros da poltica internacional, favorecendo a coopera-o em detrimento da guerra.

    Diferente de outras eras de ps-guerra, a vitria era

    apresentada como um encaminhamento natural da ade-so do bloco oriental ao ocidental, que no diferenciaria ganhadores e perdedores, que no gerava a emergncia de vcuos de poder ou a necessidade de construir uma nova ordem mundial. Prevalecia um cenrio de estabilida-de da hegemonia e das estruturas por meio das quais seu poder era exercido. Segundo Fukuyama,

    o triunfo do ocidente, da ideia ocidental evidente, em primeiro lugar, pela exausto total de alternativas sist-micas viveis ao liberalismo ocidental (...) o que talvez estejamos testemunhando no seja somente o fim da Guerra Fria, ou a passagem de um perodo particular da histria ps-guerra, mas o fim da histria como tal: isto , o ponto de chegada da evoluo ideolgica da humanidade e a universalizao da democracia liberal ocidental como a forma ltima de governo humano.

    (FuKuYAMA, 1989, s/p).

    Em termos polticos e econmicos, esta ordem liberal que passava a ser dominante, seno universal, era caracteri-zada pelos seguintes padres: na poltica, sociedades aber-tas, transparentes, livres e sem censura para a organizao de partidos, grupos e expresso de ideias, que permitiam a participao de seus cidados em eleies peridicas (as re-gras do jogo); na economia, tambm uma sociedade livre, que recuperava as foras e a lgica do mercado como refe-renciais do sistema produtivo, com um Estado mnimo, de baixa interveno e presena em temas sociais, de defesa da abertura econmica e do comrcio sem barreiras.

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    Esta agenda econmica era sintetizada nos precei-tos do neoliberalismo, implementado desde os anos 1980 a partir das aes de Margaret Thatcher, Primeira-ministra Britnica, e de Ronald Reagan, Presidente dos EuA. Em am-bas as naes, ncleo do capitalismo mundial, estas medi-das de diminuio do Estado, abertura comercial, privatiza-es, flexibilizao das leis trabalhistas, corte de assistncia social, desregulamentao haviam surgido para reformar os Estados de Bem-Estar Social e reduzir custos.

    o argumento para estas reformas e o retorno do Estado mnimo do liberalismo clssico e da mo invisvel sustentava-se em duas vertentes: primeiro, nos dficits or-amentrios gerados pelos programas sociais e, segundo, na alegao de que as polticas assistencialistas coibiam o desenvolvimento humano. Para as sociedades em transi-o, tanto as do Leste quanto as do oeste pertencentes ao mundo em desenvolvimento, a agenda neoliberal con-substanciou-se no Consenso de Washington.

    o Consenso de Washington, termo cunhado por John Williamson, correspondia a um conjunto de dez pres-cries elaboradas a partir de discusses das principais ins-tituies econmicas internacionais sediadas em Washing-ton (FMI e Banco Mundial) para direcionar as reformas dos pases em desenvolvimento, em particular os da Amrica Latina, luz de suas reformas estruturais internas e da tran-sio do ps-Guerra Fria. As dez prescries do Consenso de Washington eram: disciplina fiscal, direito de proprieda-

    de, privatizao, desregulamentao, abertura comercial, atrao ao investimento estrangeiro direto, taxas de juros favorveis aos investidores estrangeiros e poupana e ta-xas de cmbio variveis adequadas ao mercado.

    Estas medidas que combinaram estudos do Banco Mundial, FMI e do governo dos EuA foram aplicadas na Amrica Latina, na frica e nas sociedades em transio do Leste Europeu. Tanto no ncleo quanto na periferia do ca-pitalismo mundial, as recomendaes neoliberais tiveram impactos decisivos para gerar crises sociais, econmicas e polticas com diferentes perfis e graus de intensidade que sero abordados ao longo do texto, polarizando defenso-res e crticos desta agenda.

    Bastante populares e difundidas no imediato ps-1989, estas avaliaes e agendas associadas ao Fim da Histria foram completadas no binio 1990/1991 pela hiptese de construo de uma nova ordem mundial. Contrariando as previses iniciais de que o ps-Guerra Fria seria uma era de paz, este conceito emerge a partir da invaso do Iraque de Saddam Hussein ao Kuwait em 1990. Sem entrar em detalhes da dinmica desta invaso e da posterior operao Tempestade do Deserto, analisa-da no item 2.1, importante ressaltar que esta invaso e a resposta da comunidade internacional foram apresen-tadas, neste momento, como uma prova no do fracasso, mas sim do sucesso das hipteses sobre a universalizao do liberalismo.

    As RelaesInternacionais

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    A invaso foi avaliada como uma exceo regra da paz, perpetrada por um dirigente autoritrio com pre-tenses de expanso regional que ignorara as tendncias positivas do sistema internacional em nome de seus inte-resses. uma vez que as demais naes do cenrio compar-tilhavam de similares regras e valores, a clara agresso de Hussein a uma nao soberana foi rechaada, com as Na-es unidas funcionando como principal frum de debate e formulao de polticas. Coletiva e consensual, a respos-ta ao Iraque deu-se dentro dos ditames da oNu, gerando aes legais e legtimas de defesa do Kuwait por meio de uma coalizo militar liderada pelos EuA (segurana cole-tiva). A eficincia da oNu e seus pases membros ao lidar com o Iraque preconizavam o nascimento de uma nova ordem mundial, nucleada por esta organizao, e pelos va-lores e princpios que a regem. Nas palavras de Bush pai,

    Este um mundo novo e diferente. Nunca desde 1945 ha-vamos tido a possibilidade de usar as Naes unidas da maneira que foram concebidas: como um centro para a se-gurana coletiva internacional (...) A tarefa central do mundo antes, agora e sempre deve ser demonstrar que a agres-so no ser tolerada ou recompensada (...) As Naes uni-das podem ajudar a trazer um novo dia (...) Est em nossas mos (...) deixar as trevas onde elas pertencem e impulsionar um movimento histrico em direo a uma nova ordem mundial e a uma longa nova era de paz. (BuSH, 1990, s/p).

    Em termos tericos, as vises do Fim da Histria e da Nova ordem Mundial, inserem-se no mbito de uma tradi-

    o liberal. No auge destas vises, chegou-se a considerar que no somente a histria vista como confrontao ide-olgica havia chegado ao fim, mas que paradigmas tradi-cionais como o realismo e o pensamento de esquerda no teriam mais espao no debate poltico. Contudo, mesmo neste primeiro momento reaes de diversas linhas con-testaram estas previses.

    A despeito das dificuldades apresentadas pela es-querda em se reorganizar luz do declnio sovitico, pen-sadores como Eric Hobsbawm, Fred Halliday e Immanuel Wallerstein alertavam sobre as limitaes destas interpre-taes, em particular a do Fim da Histria, diante de um cenrio internacional que possua um elevado potencial de instabilidade devido s assimetrias de poder poltico e social vigentes. Embora a Guerra Fria tenha se encerrado como conflito entre os sistemas estatais sovitico e nor-te-americano, eliminando o vis Leste-oeste, as contra-dies Norte-Sul (a oposio Primeiro e Terceiro Mundo) continuavam presentes. Tambm se indagava sobre o Mo-vimento no alinhado, e era questionado se o discurso de integrao via adeso ao liberalismo traria a prosperidade e crescimento prometidos.

    Muitos dos conflitos sociais, tnicos, polticos, estratgicos e religiosos que haviam sido congelados durante a bipolaridade, recuperaram sua lgica, contra-pondo-se a este suposto cenrio de estabilidade entre as potncias dominantes, sustentando fortes instabilidades

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    na periferia e na reorganizao de poderes regionais em suas zonas de influncia (e levando em conta o declnio do imprio sovitico).

    Wallerstein ainda completa afirmando que a supre-macia do capitalismo como projeto vencedor diante de seus dois principais adversrios do sculo XX, o socialista sovitico (cujas origens so a Revoluo Russa de 1917) e o fascista alemo-japons dos anos 1930, representava a contradio final do modelo. De acordo com este autor, a ausncia do contraponto ideolgico ao capitalismo traria a exacerbao das tendncias de desregulamentao, per-da de parmetros sociais e lucratividade a ele associadas, uma vez que no existiria um contraponto e crtica a esta expanso. Caracterizado por crises cclicas, o capitalismo teria, talvez, no ps-Guerra Fria a sua crise final, uma vez que seus rumos no seriam corrigidos (o que pareceu se comprovar com a crise de 2008, definida como similar e, por vezes, pior que a Grande Depresso de 1929).

    Esta ausncia de alternativas ideolgicas e deba-tes tambm apresentada por autores norte-americanos como Ikenberry (2006), que ressaltam a presso pela una-nimidade de formas de viver e pensar como momentos de inrcia. Alternativas em construo como o socialismo de mercado chins que mesclava tendncias capitalistas e so-cialistas ainda eram vistas como incipientes, havendo um considervel refluxo do pensamento de esquerda apesar das tentativas de reflexo mencionadas.

    Mesmo com o desaparecimento do socialismo de tipo sovitico, prevaleciam em pases como Cuba e Coreia do Norte modelos que sustentavam uma linha mais pr-xima a estas vises, no se deve esquecer os paradigmas associados socialdemocracia europeia e o capitalismo de Estado asitico que, mesmo pressionados pelas demandas neoliberais, tentavam sustentar-se em alguma medida. Tambm importante ressaltar que mesmo dentro do blo-co ocidental, naes como a Frana, que tradicionalmente detinham uma poltica externa autnoma, j expressavam, suas preocupaes diante da supremacia dos EuA e seu modelo que, mais adiante, traduzir-se-iam em crticas hiperpotncia imperial norte-americana, conforme as pa-lavras de Hubert Vedrine Ministro das Relaes Exteriores francs em 1999.

    Ikenberry, contudo, ressalta que no havia uma ide-ologia alternativa forte o suficiente capaz de contrapor-se norte-americana, seja para oferecer-lhe crticas como para permitir o seu aperfeioamento. Esta ausncia de al-ternativas somente comea a ser superada a partir da se-gunda metade dos anos 1990. o marco para o renascimen-to destas tentativas de repensar o mundo justamente a crise uma vez que os resultados incipientes das transies ao modelo ocidental comeam a se tornar mais evidentes, associados estagnao, desemprego e perda de valores. A frustrao relativa diante das promessas da prosperida-de e igualdade da globalizao e a regionalizao sero

    As RelaesInternacionais

  • 44Poltica InternacionalCristina Soreanu Pecequilo

    componentes deste processo. A reao vir tanto da direi-ta quanto da esquerda nas formas da reviso das polticas neoliberais, a Terceira Via e o incio da realizao dos Fruns Sociais Mundiais.

    Este vcuo ideolgico era acompanhado pela ma-nuteno das estruturas hegemnicas de poder comanda-das pelos EuA que permitiam que a construo do mundo ps-1989 partisse de um patamar diferenciado de outros ps-guerras. Neste patamar, prevaleceria a legitimidade e a legalidade da ordem vigente, sendo tarefa da hegemonia no mais construir um novo mundo, mas sim reformar e atualizar o anterior a fim de responder a seus novos desa-fios e realidades de poder. Tal avaliao de certa forma acrtica uma vez que considera como natural a preserva-o do status quo, sem dar conta das alteraes de poder relativo em curso, referente hegemonia dos EuA e as de-mais potncias regionais, que colocaram em xeque a esta-bilidade hegemnica.

    outra reao s vises de cooperao, paz e multi-lateralismo, prevalecentes nas hipteses do fim da histria e da nova ordem mundial, nas quais os EuA desempe-nhavam um papel de parceria com as demais naes do sistema, nasciam do debate domstico norte-americano. Enquanto as premissas at aqui analisadas supunham a preservao do perfil da hegemonia dos EuA conforme es-tabelecida no ps-1945, caracterizada pelo internacionalis-mo multilateral e pela construo de canais alternativos de

    domnio, que implicava a manuteno da autorrestrio estratgica e a percepo da ascenso de potncias regio-nais a leste e oeste, analistas defendiam a retomada de um padro de expanso de poder e unilateralismo.

    A base para a substituio da conteno pela expan-so residia na percepo de que o sistema internacional atravessava o que escritores como Charles Krauthammer definiam como momento unipolar. o momento unipolar era sustentado na supremacia estratgica, poltica, econ-mica, mas principalmente militar norte-americana, o que permitia a emergncia do pas como nica superpotncia restante do sistema internacional e sua projeo global e regional. Neste quadro, seria possvel e prioritrio aos EuA agir de forma unilateral, recuperando seus recursos e mar-gem de manobra perdida durante a Guerra Fria que levara a uma acomodao dos interesses nacionais agenda de aliados e das institui