POLÍTICAS CULTURAIS PARA O AUDIOVISUAL NO BRASIL: NOTAS SOBRE OS GOVERNOS LULA E DILMA
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POLÍTICAS CULTURAIS PARA O AUDIOVISUAL NO BRASIL:
NOTAS SOBRE OS GOVERNOS LULA E DILMA Renata de Paula Trindade Rocha de Souza1
Fernanda Argolo Dantas2 RESUMO: Este artigo tem como objetivo discutir as políticas culturais para o audiovisual do Ministério da Cultura, com ênfase para as ações da Secretaria do Audiovisual (SAv), ao longo dos 12 anos de Governos Lula e Dilma (2003-2014). Para esta reflexão, propõe-se enfatizar três aspectos específicos: os debates em torno da ampliação das atribuições da Ancine, iniciado com a proposta de criação da Ancinav; o projeto de lei que visava à regulamentação da comunicação social eletrônica; e, por fim, as ações de fomento ao audiovisual implantadas pela SAv, com destaque para o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro, o DocTV. PALAVRAS-CHAVE: Políticas Culturais, Audiovisual, Brasil.
INTRODUÇÃO
A atuação do Ministério da Cultura (MinC) na gestão Gilberto Gil/Juca Ferreira
durante o Governo Lula (2003-2010) inaugura, no Brasil, um processo de gestão democrática
e efetiva, no que diz respeito às políticas culturais. O órgão se destaca, num primeiro
momento, pela reivindicação de uma noção “antropológica” de cultura. Em seu discurso de
posse, Gilberto Gil explicita que “as ações do Ministério da Cultura deverão ser entendidas
como exercícios de antropologia aplicada” (GIL, 2013a, p. 230). Torna-se possível, portanto,
a inclusão de outras modalidades de bens simbólicos — que abarcam as culturas populares,
afro-brasileiras, indígenas, de gênero, das periferias, midiáticas etc. — ultrapassando o
tradicional binômio artes e patrimônio material. Duas importantes consequências desta
escolha são: a ampliação do público-alvo do MinC, pois suas políticas passam a abranger a
totalidade da população, para além de apenas artistas e criadores, como produtora de cultura
(e não somente como receptora); e a transversalidade em sua atuação, que resulta numa maior
1 Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Vice-coordenadora do Centro de
Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), também da UFBA. Professora da Faculdade da Cidade do
Salvador. Email: [email protected]
2Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da UFBA. Pesquisadora do CULT, vinculada ao grupo de pesquisa Miradas. Coordenadora de Fomento da Diretoria de Territorialização da Cultura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBa). Email: [email protected]
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participação em discussões antes consideradas específicas de outros ministérios, como as
relações internacionais, os direitos humanos e a comunicação, dentre outros (BRASIL, 2007).
Em relação à área audiovisual, a nova Secretaria do Audiovisual (SAv), inicialmente
comandada pelo cineasta Orlando Senna , aposta na “radical reconfiguração da dimensão
simbólica do mundo contemporâneo”, ressaltando duas características do sistema
comunicacional na globalização: a “forte concentração do mercado global da
mídia/entretenimento” e o “caráter assimétrico dos processos de circulação e de produção dos
bens simbólicos na arena internacional” (BRASIL, 2006, p. 4 e 5), segundo o Relatório de
Gestão (2003-2006). O texto reafirma a necessidade de se considerar a dupla natureza do
audiovisual: seu viés artístico, cultural, simbólico e sua face empresarial, industrial-
tecnológica e mercadológica. Essa perspectiva alarga de maneira inédita a atuação da
Secretaria, que aposta na ampliação de suas atividades e, ao mesmo tempo, na integração
entre os diversos elos da cadeia produtiva do audiovisual . Em pronunciamento, o então
Secretário Orlando Senna (2003), apresenta as perspectivas da política de audiovisual em
torno de seis linhas programáticas: difusão, promoção, criação, patrimônio e pesquisa,
formação e relações internacionais .
Especial ênfase é dada à necessidade de aproximar o cinema nacional da população,
através de medidas para a descentralização e democratização da produção e difusão. Para
tanto, ressaltava-se a importância de se considerar o audiovisual de forma mais ampla,
incluindo temas como a televisão na agenda estratégica de debates do MinC. No entanto,
embora necessária e frequentemente reivindicada pelos principais teóricos que se debruçam
sobre o tema, tal abrangência não se deu sem conflitos, que envolveram instituições e agentes
diversos, incluindo setores do próprio Governo Federal.
A falta de consenso sobre a necessidade de uma ação mais efetiva no campo da cultura
em geral e do audiovisual, de forma mais particular, se evidencia durante a primeira gestão da
presidenta Dilma Rousseff (2011-2014). Sob tal perspectiva, mesmo que o Partido dos
Trabalhadores (PT) tenha logrado eleger – e, posteriormente, reeleger – uma candidata dos
seus quadros para a presidência do país, em diversos momentos a continuidade das políticas
implantadas são colocadas em cheque.
A partir da gestão de Ana de Hollanda, em 2011, é possível verificar alguns desvios do
processo em curso, considerado por militantes da cultura o início de um retrocesso no MinC.
A primeira ação da ministra, com a remoção do logotipo das licenças Creative Commons do
site do órgão iniciou a primeira polêmica de sua gestão. Na prática, a retirada representava
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que o conteúdo do site estaria protegido por direitos autorais segundo a lei, sem possibilidade
de livre reprodução, mas de modo simbólico, a ação indicava a primeira oposição ou ruptura
com as políticas anteriores do Ministério .
Havia uma aposta no desenvolvimento de ações que contemplassem o viés econômico
da cultura com a criação da Secretaria de Economia Criativa, anunciada pela Ministra como
uma espécie de carro-chefe da nova gestão. A unificação da Secretaria de Cidadania Cultural
e Secretaria da Identidade e Diversidade na nova Secretaria da Cidadania e da Diversidade
Cultural, também reforçou a mudança de orientação e gerou descontentamento entre os
ativistas da cultura que consideraram a medida um retrocesso nas políticas que vinham sendo
desenvolvidas. Nesse período, a SAv, então dirigida por Ana Paula Santana , já não apresenta
a mesma pujança e as ações mais consequentes para o desenvolvimento do setor audiovisual
são capitaneadas pela Ancine.
Durante a gestão Marta Suplicy alguns importantes projetos originados da gestão
Gil/Juca obtêm aprovação no Congresso Nacional como o Vale-Cultura e o Sistema Nacional
de Cultura, mas verifica-se uma perda gradual de prestígio da pasta, com a retração do seu
orçamento, que voltou ao patamar do primeiro ano da Gestão Lula: 0,1%. Quanto ao setor
audiovisual, o destaque fica a cargo do lançamento, em 2014, do programa Brasil de Todas as
Telas, dirigido pela Ancine. A SAv, então gerenciada por Leopoldo Nunes e, posteriormente
por Mário Borgneth , não passa por grandes revoluções, e permanece com uma atuação
discreta, focada na emissão de editais (MIRANDA, 2015).
A fim de compreender o modo como esse processo se desenvolve, nos debruçamos
sobre três diferentes iniciativas impulsionadas pela SAv/MinC e suas (des)continuidades
durante os governos Lula e Dilma (2003-2014). Inicialmente, ressaltamos as tentativas de
alargamento do âmbito de atuação da Agência Nacional de Cinema (Ancine), inicialmente
representada pela proposta frustrada de sua transformação em Agência Nacional do Cinema e
do Audiovisual (Ancinav), e posteriormente contemplada, de certo modo, na aprovação da
Lei nº 12.485/2011, conhecida como Lei da TV Paga. Em seguida, nos atemos às discussões e
posicionamentos em torno do projeto da Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica que,
embora extrapolem o âmbito de atuação do MinC, são aqui considerados como estreitamente
relacionado ao episódio da Ancinav. Por fim, quanto à implantação de políticas, identificamos
a exitosa política de fomento da SAv, por meio de editais públicos voltados à produção,
formação e difusão. Dentre os diversos projetos e programas, destacamos, por sua
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representatividade, o Programa de Fomento à Produção e Teledifusão do Documentário
Brasileiro (DocTV).
No momento em que a segunda gestão do Governo Dilma acena para o
reestabelecimento das políticas implantadas durante a gestão Gil/Juca, ao convidar este último
para assumir novamente o Ministério da Cultua, acreditamos que a reflexão ora proposta
mostra-se fundamental.
DA ANCINAV À LEI DA TV PAGA
Em agosto de 2004, o MinC submete à consulta pública um pré-projeto com a
proposta de transformação da Agência Nacional de Cinema em Agência Nacional do Cinema
e do Audiovisual (Ancinav), que vinha sendo elaborado em parceria com o Conselho Superior
de Cinema3 há 14 meses. Após o recebimento das críticas e contribuições, o texto deveria
retornar ao Conselho para ajustes e posterior entrega à Casa Civil, que o encaminharia, por
fim, ao Congresso Nacional. Dentre as atribuições previstas para o órgão constavam a
fiscalização e regulação de qualquer plataforma de transmissão de conteúdos audiovisuais e
cinematográficos, além da articulação das políticas públicas para o setor. O texto ressaltava,
ainda, a ampliação do conceito de audiovisual, abrangência dos segmentos deste mercado e o
combate à monopolização. (BRASIL, 2004)
O documento foi alvo de duras críticas e de uma intensiva desqualificação, em
especial no que dizia respeito ao seu caráter “autoritário” e “dirigista”. Porém, se por um lado
a proposta descontentou grandes produtores e criadores (cineastas como Arnaldo Jabor e Cacá
Diegues), empresas de radiodifusão4, diversos articulistas da mídia impressa (de veículos
como Folha de São Paulo, Jornal O Globo, O Estado de São Paulo etc.) e mesmo da Motion
Picture Association of America (MPA)5; por outro, recebeu apoio de pequenos e médios
produtores, intelectuais e associações e entidades audiovisuais independentes6. Quanto ao
Governo Federal, além do MinC não obter o respaldo necessário para sua consecução, a
proposta suscitou confrontos com outros órgãos.
3 O Conselho Superior de Cinema tem por finalidade a formulação e a implementação de políticas públicas para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional e é formado por representantes de nove ministérios (Casa Civil, Justiça, Relações Exteriores, Fazenda, Cultura, Comunicações, Educação, Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República), seis representantes do setor cinematográfico e três da sociedade civil (BRASIL, 2009). 4 Representadas pela Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), que reúne as principais emissoras comerciais de televisão do Brasil. 5 A poderosa associação estadunidense é formada pelos seis maiores estúdios dos EUA: Disney, Sony, Paramount, Twentieth Century Fox, Universal e Warner. 6 Para uma análise acurada da intensa cobertura midiática do episódio, ver: LIEDTKE (2008).
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Os números relativos à participação ativa da mídia, definida por Nelson Hoineff
(2004) como “principal campo de batalha” na guerra da Ancinav, dão conta da capacidade de
articulação da imprensa, com as principais indústrias do audiovisual nacionais e
internacionais. São reveladores os dados levantados por Simone Caldas da Silveira.
Entre o dia 06 e 31 daquele mês [agosto de 2004] foram publicadas 1037 matérias, notas, editoriais ou artigos sobre o assunto nos jornais, revistas e noticiários on-line. A maioria, francamente negativa, explorava itens considerados pelos articulistas como nocivos à liberdade de expressão. De 01 de setembro a 31 de dezembro foram publicados outros 1.704 textos citando a ANCINAV. Trocando em miúdos, em agosto foram publicadas uma média de 34,5 matérias por dia. Em dezembro, foram 10,5. Para efeito de comparação, junho de 2005 terminou com apenas 0,96 citações diárias em artigos de críticas generalizadas ao governo Lula. (SILVEIRA, 2005, apud LIEDTKE, 2008, p.13).
As principais críticas ao pré-projeto se relacionavam à perspectiva da Agência exercer
o controle sobre o conteúdo da programação das empresas de audiovisual. E, de fato, são
identificados no documento itens passíveis de serem interpretados como forma de censura7. O
MinC reconhece o caráter dúbio do texto e procede a eliminação ou reformulação dos
aspectos que referem-se a qualquer tipo de ressalva ou censura, já na primeira revisão do
projeto após a consulta pública.
No entanto, a atitude não foi suficiente para abrandar as críticas, já que a proposta
manteve outros pontos de divergência – não tão nobres ou irrefutáveis como a liberdade de
expressão –, com as grandes produtoras e distribuidoras nacionais, em sua maior parte ligadas
a concessionárias de televisão8, e internacionais. Dentre os quais, a instituição de impostos
pela aquisição de espaço publicitário em suportes audiovisuais para o anúncio de obra
cinematográfica ou videofonográfica e a taxação progressiva do setor cinematográfico. A base
de incidência da contribuição era consideravelmente elevada a fim de viabilizar Fundo
Nacional para o Desenvolvimento do Cinema e do Audiovisual Brasileiros, com o objetivo de
transferir recursos de grandes produções para a produção independente. Além disso, as taxas
incidiam de maneira sobreposta em diversos momentos da cadeia audiovisual, o que elevaria
o custo final do produto audiovisual.
Como o tema seguia provocando desgastes para o Governo, foi realizada uma reunião,
em janeiro de 2005, entre o Presidente Lula, o Ministro Gilberto Gil e ministérios de setores
7 Exemplo disso é o Art. 33, que delega à Ancinav a competência para dispor sobre “a responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação”, ou o inciso I do Art. 8º, segundo o qual “a liberdade será a
regra, constituindo exceções, as proibições, restrições e interferências do Poder Público” (BRASIL, 2004) 8 Este é o caso, por exemplo, da Globo Filmes, subsidiária das Organizações Globo e maior produtora de cinema no Brasil, detendo uma fatia superior a 20% do mercado cinematográfico doméstico.
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estratégicos. Segundo matéria publicada no Jornal O Globo (BRAGA; CAMAROTTI;
JUNGBLUT, 2005) este encontro seria uma forma de o Planalto assumir o controle do
projeto.
Um dos mais enfáticos críticos foi o ministro interino da Justiça, Luiz Paulo Barreto, que chegou a pôr em dúvida a constitucionalidade de alguns itens. Também criticaram a proposta os ministros Eunício Oliveira (Comunicações) e Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento).
O ministro da Fazenda, Antonio Palocci, disse a Gil que sua assessoria fez uma avaliação negativa do projeto. Em comum, os ministros críticos ao projeto alertaram sobre o dirigismo cultural contido na proposta e até mesmo sobre eventuais interpretações de censura (Idem, ibidem).
Creditando a informação a “ministros”, o texto cita, ainda, a seguinte declaração do
Presidente Lula: “Não imaginava que tivesse tanta divergência. Como não há consenso, não
podemos pôr o assunto em pauta no Congresso. É preciso encontrar uma posição unitária do
governo” (Idem, Ibidem). Surpreende, no entanto, que os titulares dos ministérios citados
como ferrenhos críticos do projeto, possuam assento no Conselho Superior de Cinema, órgão
que havia participado de sua elaboração, ao lado do MinC, conforme já mencionado. Após a
reunião, o governo anunciou que seria encaminhada ao Congresso Nacional uma nova
proposta de legislação contemplando apenas os setores de fomento e de fiscalização na área
da produção audiovisual. A decisão foi justificada pela a criação da agência deveria suceder a
instituição do marco regulatório do setor, a Lei Geral de Comunicação de Social Eletrônica.
Quase dez anos após o episódio, o atual Presidente da Agência Nacional de Cinema,
Manoel Rangel, avalia que um dos problemas centrais do projeto foi propor “uma mudança de
conjunto no arranjo regulatório das comunicações e dos serviços audiovisuais no país.” (2013,
p. 7, grifo nosso). E sob tal perspectiva, desde então, a Ancine passou a assumir
progressivamente as atribuições anteriormente previstas para a Ancinav. Um exemplo é a
promulgação da Lei n.º 11.437/2006, que determina a criação do Fundo Setorial do
Audiovisual (FSA), prorroga mecanismos de apoio e aperfeiçoa as possibilidades de
fiscalização e acompanhamento, pela Ancine, do mercado audiovisual no Brasil. Nesse
sentido, é ainda mais exemplar a instituição da Lei n.º 12.485/2011 (Lei da TV Paga) que
unifica o regulamento dos serviços de televisão por assinatura e separa as atividades
relacionadas ao conteúdo audiovisual – produção, programação e empacotamento – das
atividades de transporte e distribuição, referentes às telecomunicações9. Segundo a norma
9 Ademais, dentre os pontos mais importantes da Lei estão a abertura do mercado aos novos competidores, ampliando a oferta do serviço e estimulando a diminuição do preço final ao usuário; bem como a adoção de cotas
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(BRASIL, 2011), a regulação e fiscalização das atividades de programação e empacotamento
passam a ser responsabilidade da Ancine10.
Resulta, portanto, que, em relação ao campo audiovisual brasileiro, apenas as
emissoras de televisão aberta permanecem fora do âmbito de atuação da Ancine. O episódio
relativo à tentativa de criação da Ancinav demonstra o modo como o desmedido poder de
pressão exercido pelos proprietários das grandes emissoras de televisão aberta do país em
relação aos demais agentes do campo audiovisual incide nas políticas para o setor (SOUZA,
2014).
LEI GERAL DE COMUNICAÇÃO DE SOCIAL ELETRÔNICA
Como visto, em janeiro de 2005, a necessidade de instituição da Lei Geral de
Comunicação de Social Eletrônica é apontada pelo Governo como a principal justificativa
para a retirada da Ancinav e apresenta-se como uma importante, ainda que novamente
frustrada, consequência deste processo11. Em declaração para o jornal O Globo o ministro Gil
afirmava: “O presidente deixou claro que quer que se continue fazendo a agência de fomento
e fiscalização e que se faça a lei de comunicações para respaldar. E que tudo seja feito pelo
grupo” (BRAGA; CAMAROTTI; JUNGBLUT, 2005).
No entanto, ao contrário da comoção gerada em torno do pré-projeto de criação da
nova Agência, as discussões sobre a Lei Geral de Comunicação Social Eletrônica, passaram
ao largo da mídia, recebendo pequenas notas de veículos especializados e artigos de militantes
e teóricos da área, motivados, em diversos momentos, pela defesa pública do projeto por
agentes do MinC, a exemplo do Secretário Orlando Senna e do Ministro Gil (SENNA, 2006;
GIL, 2013b).
Como consequência deste processo, entre 2005 e 2006, foram criados um Grupo de
Trabalho Interministerial e uma Comissão Interministerial, que não chegaram a realizar uma
reunião sequer (LIMA, 2011). Dois fatos conjunturais certamente influenciam o
arrefecimento do empenho do Governo em sua tentativa de regular as comunicações: o
prolongamento da crise político-midiática do “mensalão”12 e a candidatura à reeleição do
de programação e de canais, destinadas a potencializar o mercado de conteúdos brasileiros como filmes, documentários e séries, incluindo animação. 10 Os aspectos relativos a atividade de distribuição e de prestação do serviço serão regulamentados pela Anatel – Agência Nacional de Telecomunicações. 11 Mais informações sobre este episódio em Souza (2014). 12 Na entrevista, o então deputado e Presidente do PTB, Roberto Jefferson, denunciou um esquema de corrupção, do qual fazia parte, em que parlamentares que compunham a chamada "base aliada" recebiam, periodicamente,
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presidente Lula, que transforma 2006, em um ano “dominado pelas campanhas eleitorais”
(LIMA, 2012, p. 246).
Em fevereiro de 2007, a discussão em torno da regulamentação da comunicação social
eletrônica é retomada pelo então Ministro das Comunicações Hélio Costa depois de passar
incólume pela Casa Civil da Presidência da República. Em entrevista, Costa – cuja trajetória é
vinculada à radiodifusão13, em especial como jornalista da Rede Globo – promete uma minuta
até julho. A proposta deveria ser entregue à Casa Civil, e posteriormente à Presidência da
República, que encaminharia um Projeto de Lei ao Congresso Nacional. (YODA, 2007). Em
outubro do mesmo ano, porém, é anunciada a convocação – pelos ministros da Casa Civil,
Dilma Rousseff, e da Secom-PR, Franklin Martins –, de uma reunião interministerial para
discutir uma nova proposta de Lei. (MARQUES, 2007). Segundo o colunista Joaquim
Castanheira:
Causou estranheza no Ministério das Comunicações a informação de que a Secretaria de Comunicação Social, chefiada por Franklin Martins, recebeu a tarefa de coordenar as discussões da nova Lei Geral da Comunicação, nas mãos do Ministério desde o início do governo Lula. A praia de Hélio Costa foi invadida (2007, online).
A questão volta à tona apenas em julho de 2010, quando o presidente Lula promulga
novo decreto criando, uma vez mais, uma Comissão Interministerial. A Secretaria de
Comunicação Social da Presidência lidera o processo, enquanto o Ministério da Cultura é
excluído de sua formação. Em novembro de 2010, foi anunciada apresentação da proposta do
anteprojeto de lei – que nunca chegou a vir a público – para a futura presidente do Brasil,
Dilma Rousseff, a quem foi transferida a incumbência de tornar o sistema de comunicação
brasileiro mais democrático e plural (LIMA, 2011).
O tema, no entanto, não é incorporado à agenda. Diante da resistência e da campanha
dos vários setores da mídia tradicional contra a proposta de regulamentação, a então candidata
se posiciona contra qualquer controle de conteúdo, e reforça que a regulação estaria restrita ao
caráter econômico da atividade. Em entrevista ao Jornal do Brasil durante a campanha
eleitoral de 2010, Dilma destaca: "Não acredito que tem alguém que seja contra modelos que
criem regulações para o setor, por exemplo, qual é a participação do capital estrangeiro.
Monitoramento é de conteúdo. Repudio o monitoramento de conteúdo editorial. Acho que
isso não pode se criar no Brasil" (BORGES, 2010). Durante o primeiro mandato da
recursos do Partido dos Trabalhadores para garantir o apoio ao Governo Federal. O neologismo “mensalão”,
usado para se referir a uma suposta “mesada", foi então largamente adotado pela mídia para se referir ao caso. 13 O Ministro é, inclusive, dono de uma rádio (Sucesso FM 101,7), na cidade de Barbacena (LIEDTKE, 2007).
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presidenta, o anteprojeto de regulamentação formulado no Governo Lula não é encaminhado
ao Congresso. Para o então ministro das Comunicações Paulo Bernardo era preciso uma
análise aprofundada do documento e um maior debate sobre o tema com a sociedade
(DOMINGOS, 2011).
Há um ensaio de retomada do assunto pouco antes da campanha para a reeleição de
Dilma, em 2014, quando a presidenta informa sua pretensão de incluir no Programa de
Governo 2015-2018 o debate sobre a regulação da mídia, com foco especial em seu viés
econômico, e ao combate dos monopólios e oligopólios da rede de radiodifusão. A proposta,
no entanto, não obteve adesão dos partidos da base aliada e foi retirada do programa do
segundo mandato.
A POLÍTICA DE FOMENTO PARA O AUDIOVISUAL E O PROGRAMA
DOCTV
Um dos destaques da atuação da SAv está à cargo das políticas de fomento que
recebem novas configurações a partir da primeira gestão do presidente Lula. Diferentes
projetos de incentivo ao desenvolvimento da cadeia de produção audiovisual, valorizando, em
especial, o formato de editais públicos, têm sido desenvolvidos pelo MinC nos últimos 12
anos.
Orientado pelos conceitos centrais de regionalização e democratização das políticas, o Programa inclui uma série de editais para atender a demanda tradicional do setor - roteiro, longa metragem, curta metragem, documentários, além de experiências inovadoras de produção, fomentando novos nichos de mercado, como o Edital Jogos BR, de incentivo à produção de jogos eletrônicos; promovendo a inclusão de setores tradicionalmente excluídos das políticas públicas, como o Projeto Revelando os Brasis; fortalecendo os processos de formação profissional, como o Edital de Teses, de apoio aos trabalhos de conclusão de cursos universitários de cinema (BRASIL, 2006, p.12).
Dentre outras14, uma das ações pioneiras neste sentido foi o Programa de Fomento à
Produção e Teledifusão do Documentário Brasileiro (DocTV), que pode ser observada como
um interessante contraponto para esta reflexão, pelo seu êxito e representatividade na atuação
da SAv. O Programa abarca diversos momentos da cadeia audiovisual (criação, produção,
difusão e formação); promove circuitos de teledifusão por meio da articulação entre a
produção independente representada pela Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-
14 Entre os anos de 2003 e 2010, merecem destaque iniciativas como o DocTV, Documenta Brasil, Revelando os Brasis, Animação Um Minuto, Curta Criança e Curta Animação, XPTA.LAB, AnimaTV, Nós na Tela, Nossa Onda e outros (BRASIL, 2006; BRASIL, 2010).
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metragistas (ABD), emissoras de caráter público e o Estado15 (nos âmbitos transnacional,
federal e estadual); incentiva o mercado audiovisual sob uma perspectiva regionalizada; bem
como contribui para a promoção da diversidade cultural, por meio da ampliação do
conhecimento das diferentes expressões culturais. Em suas quatro temporadas, o DocTV
Brasil tem 3.000 projetos inscritos em 100 concursos estaduais, selecionando e coproduzindo
170 documentários (BRASIL, 2010).
A abertura de mercados para o documentário brasileiro, um dos mais destacados
objetivos do DOCTV, foi promovida através da exibição dos filmes pelas emissoras regionais,
do incentivo à aplicação de recursos no projeto em âmbito regional, e da valorização dos seus
espaços de mídia. (BEZERRA, MOREIRA, ROCHA, 2010). Por outro lado, o Programa
também contribui para a institucionalização do segmento audiovisual no país. Um exemplo é
o estímulo à instituição de regionais da ABDs nos estados onde esta entidade não existia, o
que permite sua nacionalização efetiva. Do mesmo modo, existiam emissoras associadas à
Abepec em apenas 19, das 27 unidades da federação, o que motiva a realização da primeira
edição do DocTV apenas em 20 Estados. A partir da segunda edição, porém, logra-se
abranger todo o país por meio de parcerias com emissoras locais, em sua maioria de caráter
público, e mesmo das instituições responsáveis pela cultura. (CAETANO, 2011).
Em 2006, o Programa torna-se um modelo de política pública, expandindo-se para
outros países. O DocTV América Latina (nos demais países, DocTV Latinoamerica) é
desenvolvido no âmbito da Conferência de Autoridades Cinematográficas Iberoamericanas
(CACI), que congrega a maioria dos países latinoamericanos, além de Portugal e Espanha. Na
primeira edição, a parceria viabiliza a realização de 13 documentários; na segunda, lançada
em 2009, são 14; e a terceira edição, divulgada dois anos depois, promove a realização de 15
filmes, exibidos em 18 canais de caráter público do continente. Também é instituída uma
Rede DocTV no âmbito latinoamericano, articulando autoridades audiovisuais nacionais e as
emissoras do campo público de quinze países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia,
Costa Rica, Cuba, Equador, México, Panamá, Peru, Porto Rico, Uruguai e Venezuela (Idem,
ibidem).
Já em 2009, é lançado o DocTV CPLP, que reúne os países membros da Comunidade
de Países de Língua Portuguesa (Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste), além do território de Macau, que se encontra
15 A SAv é responsável por 80% da verba; e cada canal ou órgão de cultura envolvido, por 20%, a título de contrapartida. (BRASIL, 2010).
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em processo de adesão à comunidade. A EBC/TV Brasil é parceira, em território nacional, na
teledifusão das séries internacionais do programa. (MOREIRA, BEZERRA, ROCHA, 2010)
Apesar do êxito do DocTV, a gestão da SAv pós-Gil/Juca não garantiu continuidade
do programa, em especial em sua versão nacional. Sua última edição, já na versão DocTV
América Latina, ocorre no início da gestão de Ana Hollanda, em julho de 2011. Outras
iniciativas, no entanto, foram implementadas pela Secretaria como ações de fomento, sem que
nenhuma delas alcançasse a mesma representatividade. Durante o período de Hollanda à
frente do ministério tais iniciativas se concentraram em editais temáticos, à exemplo do Edital
de Desenvolvimento de Roteiro – Profissional, e do Edital Curta-Afirmativo: Protagonismo
da Juventude Negra na Produção Audiovisual.
Com a entrada de Marta Suplicy no Ministério, a SAv mantém os editais, com
propostas temáticas de políticas afirmativas, e há um movimento de alinhamento com a
Ancine, explicitado pela parceria no programa Brasil de Todas as Telas, lançado em julho de
2014, pela presidenta Dilma. O programa pretende investir 1,2 bilhão no setor audiovisual –
em especial no incentivo ao desenvolvimento, produção e difusão de conteúdos brasileiros; na
capacitação de profissionais e na expansão das salas de cinema –, e foi desenvolvido a partir
das diretrizes elencadas no Plano de Diretrizes e Metas para o Audiovisual - O Brasil de
todos os olhares para todas as telas, publicado em julho de 2013 pela Ancine. Na ocasião, a
presidenta assinou o Decreto nº 8281/2014 que dispõe sobre o Programa de Apoio ao
Desenvolvimento do Audiovisual Brasileiro - PRODAV, destinado ao fomento das atividades
audiovisuais brasileiras via Fundo Setorial do Audiovisual, e institui o Prêmio Brasil
Audiovisual. O documento foi celebrado por estabelecer procedimentos simplificados,
especialmente em relação às análises de prestação de contas dos projetos apoiados. Outro
destaque do normativo se refere à flexibilização de regras para o estabelecimento de parcerias
entre o FSA e instituições de ensino públicas e privadaS (BRASIL, 2013).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As conclusões, ou reflexões suscitadas a partir dos três casos analisados, são várias e
muitas delas não possuem caráter definitivo. No entanto, todas remetem à necessidade de
repensar o modo como as políticas públicas para a cultura são implantadas, frente aos
conflitos de interesses à desigualdade de poder entre os principais agentes inseridos no
processo.
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Em relação ao Estado, enquanto lugar de realização destas políticas, verifica-se que os
“límites de la acción estatal son porosos ya que son el resultado de un proceso permanente de
desafíos, restauración y re-letigimación, protagonizado por personas, grupos e instituciones
‘estatales’ y ‘no estatales’ ” (BOHOSLAVSKY e SOPRANO, 2009, p. 30). Esta breve
análise identifica, portanto, um notável embate no Governo quanto ao enfoque dado a suas
políticas de cultura e, consequentemente, do audiovisual. Em meio aos diversos interesses em
jogo, a atuação do MinC e de sua Secretaria de Audiovisual, se dá de forma conflitante,
inclusive no interior do governo, ao longo das gestões Lula e Dilma.
No âmbito regulatório, a instituição de mudanças conjunturais, em especial as que
contrariam interesses das empresas de radiodifusão são inviabilizadas por acirradas
campanhas, ou ainda por profundos silenciamentos, por parte dos meios de comunicação
tradicionais. Esse parece ter sido um ponto primordial nos episódios da Ancinav e da Lei de
Comunicação Social Eletrônica, respectivamente. Por outro lado, a necessidade de atualização
da legislação para o setor é premente16 e se mostra possível caso ocorra de forma gradual.
Por outro lado, existem ainda projetos e programas que – mesmo que sem grandes
repercussões na grande mídia, como é o caso do DOCTV – tampouco são demarcados por
estes como uma ameaça. O Programa cria um modelo inovador de negócio e fomenta a
produção independente sem colocar em cheque, pelo menos não de maneira imediata, a atual
conjuntura das indústrias culturais no Brasil. Embora necessárias e promissoras, estas ações
possuem efeitos limitados, em especial se não ocorrem de maneira processual e contínua; o
que não se verifica, haja vista que não foi dada continuidade ao DocTV, apesar do seu êxito.
Assim, uma das grandes batalhas do setor, talvez a maior, é garantir que o Estado desenvolva
políticas de Estado, e não de governo, para alcançar uma maior eficácia em suas ações.
A partir de nossa observação, verifica-se que a SAv passou a apresentar uma curva
descendente em sua atuação, em comparação ao que se entendia como atribuição da unidade
na primeira gestão do governo Lula. Em contrapartida, a Ancine aumentou seu capital político
e se solidificou como o local de formulação e implementação das políticas, bem como de
interlocução para as demandas e debates do audiovisual.
Ressaltamos, por fim, a existência de três questões-chave, ainda a serem equacionadas:
de que maneira garantir a institucionalidade das políticas para o audiovisual? Diante de tantos
e tão poderosos agentes envolvidos no processo, como implantar uma política para o setor que
16 Para que se tenha ideia da grande defasagem da legislação brasileira, a comunicação social no Brasil é
atualmente regulamentada pela Lei Geral de Comunicações de 1962. Por outro lado, a Constituição de 1988 não teve regulamentados seus dispositivos ligados à comunicação social.
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supere os interesses políticos/institucionais e empresariais/mercadológicos? Em que pesem as
descontinuidades, o retorno de Juca Ferreira ao Ministério, sinaliza para a retomada do papel
estratégico desempenhado pela SAv, quanto à formulação de políticas e a seu poder de
fomento?
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