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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 5 Número 15 Maio 2015 Edição Especial Homenageado ARYON DALL'IGNA RODRIGUES 249 POLÍTICAS LINGUÍSTICAS NA AMÉRICA PORTUGUESA: BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIRETÓRIO POMBALINO E SUA APLICAÇÃO NA BAHIA Pedro Daniel dos Santos Souza (UNEB) 1 [email protected] Amanda Kerolainy Braga Santos (UNEB) 2 [email protected] Camila Santos de Oliveira (UNEB) 3 [email protected] Kélly Santos Muniz da Costa (UNEB) 4 [email protected] RESUMO: A sócio-história linguística do Brasil passou por profundas transformações com a chegada dos portugueses, que transplantaram sua língua e cultura, promovendo um novo modo de vida para os povos indígenas da chamada América portuguesa, o que resultou, por seu turno, no extermínio de povos e línguas indígenas e, simultaneamente, as perdas de memórias, culturas e identidades. Tendo em vista essa reconfiguração, buscamos, no presente estudo, refletir sobre a política pombalina de imposição da língua portuguesa às populações indígenas brasileiras, sob o escamoteado discurso de integração desses povos à sociedade em formação no Brasil Colônia, e da qual não poderiam ser excluídos. Para tanto, fundamentamo-nos nas reflexões sobre a diversidade linguística, as políticas linguísticas e as populações indígenas brasileiras apresentadas por Almeida (1997), Almeida (2010), Mattos e Silva (1998, 2004), Oliveira (2002) e Freire (2004), entre outros autores que têm discutido a questão. Objetivando traçar caminhos para uma compreensão e/ou interpretação das histórias de inserção das populações indígenas brasileiras no mundo da cultura escrita e seus reflexos sobre os processos de letramentos em língua portuguesa, analisamos o Diretório Pombalino, ou dos Índios, e o Parecer do Conselho Ultramarino solicitado pelo Conde D. Marcos de Noronha, sobre a aplicação do supracitado Diretório nas aldeias do Estado da Bahia. Ratificamos, através da análise, que a política pombalina interrompeu qualquer chance de o Brasil vir a possuir uma base linguística majoritária indígena, tendo em vista que o português brasileiro passou a ser oficial, tornando-se majoritário, aparentemente, hegemônico, e criando o ideal de país “unilíngue”. PALAVRAS-CHAVE: Brasil Colônia; Sócio-História Linguística; Políticas linguísticas; Populações Indígenas. 1 Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT), Campus XVIII - Eunápolis. Mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Líder do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 2 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bolsista do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 3 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bolsista do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 4 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bolsista do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL).

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ARYON DALL'IGNA RODRIGUES

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POLÍTICAS LINGUÍSTICAS NA AMÉRICA PORTUGUESA:

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIRETÓRIO POMBALINO

E SUA APLICAÇÃO NA BAHIA

Pedro Daniel dos Santos Souza (UNEB) 1

[email protected]

Amanda Kerolainy Braga Santos (UNEB) 2

[email protected]

Camila Santos de Oliveira (UNEB)3

[email protected]

Kélly Santos Muniz da Costa (UNEB)4

[email protected]

RESUMO: A sócio-história linguística do Brasil passou por profundas transformações com a chegada

dos portugueses, que transplantaram sua língua e cultura, promovendo um novo modo de vida para os

povos indígenas da chamada América portuguesa, o que resultou, por seu turno, no extermínio de povos e

línguas indígenas e, simultaneamente, as perdas de memórias, culturas e identidades. Tendo em vista essa

reconfiguração, buscamos, no presente estudo, refletir sobre a política pombalina de imposição da língua

portuguesa às populações indígenas brasileiras, sob o escamoteado discurso de integração desses povos à

sociedade em formação no Brasil Colônia, e da qual não poderiam ser excluídos. Para tanto,

fundamentamo-nos nas reflexões sobre a diversidade linguística, as políticas linguísticas e as populações

indígenas brasileiras apresentadas por Almeida (1997), Almeida (2010), Mattos e Silva (1998, 2004),

Oliveira (2002) e Freire (2004), entre outros autores que têm discutido a questão. Objetivando traçar

caminhos para uma compreensão e/ou interpretação das histórias de inserção das populações indígenas

brasileiras no mundo da cultura escrita e seus reflexos sobre os processos de letramentos em língua

portuguesa, analisamos o Diretório Pombalino, ou dos Índios, e o Parecer do Conselho Ultramarino

solicitado pelo Conde D. Marcos de Noronha, sobre a aplicação do supracitado Diretório nas aldeias do

Estado da Bahia. Ratificamos, através da análise, que a política pombalina interrompeu qualquer chance

de o Brasil vir a possuir uma base linguística majoritária indígena, tendo em vista que o português

brasileiro passou a ser oficial, tornando-se majoritário, aparentemente, hegemônico, e criando o ideal de

país “unilíngue”.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil Colônia; Sócio-História Linguística; Políticas linguísticas; Populações

Indígenas.

1 Professor Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Departamento de Ciências Humanas

e Tecnologias (DCHT), Campus XVIII - Eunápolis. Mestre em Letras pela Universidade Federal da

Bahia (UFBA) e Líder do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 2 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do

Estado da Bahia (UNEB). Bolsista do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 3 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do

Estado da Bahia (UNEB). Bolsista do Grupo de Pesquisa em Memória, Espaço e Linguagem (GpMEL). 4 Graduanda em Letras - Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do

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ABSTRACT: The Brazilian Linguistic social-history has crossed by profound changes due to the arrival

of Portuguese people, who transplanted their language and culture and promoted a new way life to the

Indian people from Portuguese America. On the other hand, this resulted an eradication of indigenous

people and languages, beyond memory, culture and identity loss. Owing to this reconfiguration, in this

research we aim to think over the pombaline policy that imposed the Portuguese Language to the

Brazilian indigenous people, under the palmed speech of integration of these peoples to the society that

was been formed in colonial Brazil, once they could not be excluded. This search was based in the studies

of Linguistic diversity, Linguistic politics and Brazilian indigenous peoples by Almeida (1997), Almeida

(2010), Mattos and Silva (1998, 2004), Oliveira (2002) and Freire (2004), beyond other researches who

have surveyed about the subject. As we aim to draw paths to comprehension and|or interpretation of

insertion histories of the Brazilian indigenous peoples in the world of written culture and its consequences

on the literacy processes in Portuguese language, we analysed the Marquis of Pombal’s Directorate, or

Indigenous and the Overseas Council Report requested by the Conde D. Marcos from Noronha, about the

enforcement of the Directorate in the villages of State of Bahia. We reaffirm in these analysis that the

pombaline policy interrupted any chance of Brazil gets an indigenous linguistic basis, once Brazilian

Portuguese Language became official language, majority, seemingly hegemonic and it created an ideal of

“monolingual” country.

KEYWORDS: Colonial Brazil; Linguistic social history; Linguistic politics; Indigenous peoples.

1 Introdução

No decorrer do complexo processo histórico de formação da sociedade

brasileira, cristalizou-se a ideia de que o Brasil é um país unilíngue. No entanto, antes

mesmo que os portugueses chegassem aqui, já existia uma diversidade de línguas

indígenas, que, de acordo com Rodrigues (2002 [1994]), representavam

aproximadamente 1.200 línguas. Ainda segundo esse autor, na atualidade, são faladas

cerca de 200 línguas no Brasil, que, em sua grande maioria, são autóctones. Sendo

assim, o Brasil constitui-se em uma nação multilíngue, uma vez que a diversidade

linguística existente em seu território é significativa e engloba também as influências e

presença das línguas africanas e de imigração, e suas variantes aqui gestadas, fruto de

histórias próprias de contato com português europeu transplantado.

Desde o início do processo de colonização, foram impostas, em território

brasileiro, práticas político-administrativas, iniciadas pelos jesuítas e apoiadas pela

Coroa, que, consequentemente, tiraram dos povos indígenas sua cultura e sua língua,

pois, para os colonizadores, aqueles não tinham fé, nem lei, nem rei, como nos informa

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Pero de Magalhães Gandavo, um dos primeiros cronistas da colonização portuguesa na

América (cf. VILLALTA, 2012); deveriam passar, portanto, a terem esses atributos para

se tornarem civilizados, ocasionando, consequentemente, perdas linguísticas. Dentre as

diversas estatísticas apresentadas, após 500 anos de dominação, ainda subsistem, no

panorama contemporâneo, “cerca de 180 línguas [indígenas], das quais a grande maioria

se encontra na região amazônica, para a população que se distribui em 41 famílias, dois

troncos, uma dezena de línguas isoladas”, conforme estimativas apresentadas por Leite

e Franchetto (2006, p. 18).

Se já são difíceis e controversas as estimativas na atualidade, muito mais

complexa se torna a questão se intentarmos delimitar o número de índios que habitavam

o Brasil no momento da chegada dos portugueses. O certo é que podemos considerar

que eram muitos ainda mais se comparados à reduzida população portuguesa no século

XVI. Situação que nos possibilita assegurar que o quadro linguístico do Brasil se

caracterizava por um multilinguismo generalizado, em que o predomínio de falantes de

línguas indígenas era hegemônico, embora se comece chegar falantes de línguas

africanas diversas. E quem eram esses falantes autóctones? Questão muito mais

complexa,

[...] se considerarmos a diversidade de grupos etno-linguísticos da

América portuguesa cujo conhecimento nos chegou através das

descrições limitadas e preconceituosas dos cronistas e missionários

que, grosso modo, não compreendiam bem suas línguas e culturais.

Em toda a América, havia inúmeros povos distintos que foram todos

chamados índios pelos europeus que aqui chegaram (ALMEIDA,

2010, p. 31, grifo do autor).

Diversos são os fatores de ordem sócio-histórica que contribuíram para que esse

multilinguismo inicial se localizasse, abrindo espaço o português brasileiro, hoje língua

majoritária no Brasil. Nesse sentido, diversas histórias precisam ser reconstruídas para

que se possa compreender o processo sócio-histórico de formação do português

brasileiro nascido do português europeu transplantado e do contato deste com as línguas

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indígenas aqui já existentes, as africanas também para cá trazidas e, já em fins do século

XIX, as línguas da imigração.

Haja vista o complexo quadro sociolinguístico do Brasil, marcado atualmente

pelo uso majoritário do português brasileiro e por um multilinguismo localizado,

buscamos refletir sobre o processo de transplantação do português no Brasil e

consequentes glotocídios ocorridos ao longo da história, a partir da análise do Diretório

Pombalino, ou dos Índios, de 1757, documento através do qual o Marquês de Pombal

intenta legislar sobre a vida das populações indígenas no período posterior à expulsão

dos jesuítas, inicialmente direcionado ao Estado do Grão-Pará e Maranhão. Nesse

ensejo, faremos também uma análise do “Parecer do Conselho Ultramarino da Bahia

sobre os paragraphos do Directorio para regimen dos Indios das Aldeias das Capitanias

do Pará e Maranhão, approvado por Alvará regio de 17 de agosto de 1758 e que podiam

ser applicaveis aos Indios do Estado do Brazil”5, referente à implantação do Diretório

Pombalino na Bahia, datado de 17 de maio de 1759, que atestem as questões suscitadas,

sobretudo quanto às ordens de sua difusão e implantação no território brasileiro. Sob

essa perspectiva, refletiremos, portanto, sobre a política linguística implementada pelo

Marquês de Pombal na América portuguesa e, em específico, na Bahia.

Visando contribuir para uma possível explicação das lacunas existentes no

processo de reconstrução da história do português brasileiro (PB), sobretudo quanto aos

processos de inserção das populações indígenas nas culturas do escrito e consequentes

glotocídios de suas respectivas línguas, é que buscamos direcionar nossas reflexões,

uma vez que consideramos que fatores sócio-históricos de natureza vária, como a

demografia histórica do Brasil do século XVI ao XIX, a mobilidade populacional dos

africanos e afrodescendentes no Brasil colonial e pós-colonial, a escolarização ou sua

ausência do século XVI ao XIX, bem como as reconfigurações socioculturais, políticas

5 O acesso à documentação do Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) foi viabilizado por meio da coleção

de CD-ROM do Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco, disponibilizada no

Laboratório de Ensino de História do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias (DCHT) do

Campus XVIII da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). No caso específico da documentação

mencionada, a mesma pode ser assim identificada: AHU, Bahia - Eduardo de Castro e Almeida (Bahia-

CA), Cx. 23, Docs. 4255-4261.

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e linguísticas que ocorreram ao longo do século XIX, são condicionadores para a

compreensão da língua que falamos.

Diante dessas questões, consideramos ainda que “as histórias que se escrevem

são sempre uma história, reconstruída e escrita a partir dos condicionamentos teóricos,

metodológicos, empíricos e ideológicos dos seus autores”, como afirma Mattos e Silva

(1998, p. 34, grifos da autora). A partir desse princípio, buscamos, no presente artigo,

refletir sobre a política pombalina de imposição da língua portuguesa às populações

indígenas brasileiras, sob o escamoteado discurso de integração desses povos à

sociedade em formação e da qual não poderiam ser excluídos. Nessa direção,

fundamentaremos nossa análise, inicialmente, nas discussões sobre línguas e políticas

linguísticas no Brasil Colônia.

2 Línguas e políticas linguísticas no Brasil: reflexões ainda preliminares

A diversidade linguística, nos últimos anos, tem sido abarcada no contexto das

discussões sobre a diversidade em geral, visto que as línguas são partes intrínsecas de

uma cultura e de uma sociedade. Nesse sentido, o desaparecimento de línguas ocasiona

a perda dos sistemas de conhecimentos, isto é, das formas de expressão e das

representações identitárias de um povo. Diante disso, é preciso considerar que “os

processos de perda de língua” demandam a compreensão de fatores de ordem política e

social; entretanto, os linguistas não têm controle sobre esses aspectos, pois apenas

focalizam no estudo das línguas indígenas e na sua “preservação”, ou revitalização,

buscando conferir-lhe um caráter científico, “enquanto objeto da linguística” (SEKI,

2000, p. 245).

No campo de discussões sobre a “preservação” ou a revitalização de línguas

indígenas, lidamos com um conceito contemporaneamente bastante difundido, ou seja, o

conceito de política linguística. Segundo Freire (2004, p. 90), o termo política

linguística tem sido utilizado no campo da sociolinguística “para designar um conjunto

de medidas, explícitas ou implícitas, adotadas predominantemente pelo Estado, mas

também por outros agentes sociais, para ordenar as línguas faladas em um determinado

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território”. Oliveira (2005), por seu turno, destaca que, só no século XXI, que o termo

política linguística começa a estar mais presente nos debates, sendo muito atrelado à

educação formal.

A intervenção humana na língua ou nas situações de uso linguístico sempre foi

uma prática comum na medida em que “sempre houve indivíduos tentando legislar,

ditar o uso correto ou intervir na forma da língua”, como pontua Calvet (2007, p. 11).

Prática responsável por redefinir comportamentos linguísticos ao ponto, até mesmo, de

levar à morte de línguas, como ocorrido ao longo do processo de colonização. Além

dessa prática, o autor ainda destaca que

[...] o poder político sempre privilegiou essa ou aquela língua,

escolhendo governar o Estado numa língua ou mesmo impor à maioria

a língua de uma minoria. No entanto, a política lingüística

(determinação das grandes decisões referentes às relações entre as

línguas e a sociedade) e o planejamento lingüístico (sua

implementação) são conceitos recentes que englobam apenas em parte

essas práticas antigas (CALVET, 2007, p. 11, grifos do autor).

É justamente nesse aspecto da escolha de uma determinada língua, no caso a

portuguesa, a da Coroa portuguesa, que se sustenta a política pombalina para as

populações indígenas brasileiras, apoiada no discurso de integração dessas populações à

sociedade brasileira em formação e, consequentemente, ao projeto colonizador

português. Sob essa perspectiva, consideramos que o Diretório materializa-se como uma

segunda instituição de política linguística no Brasil, sendo a primeira o trabalho de

gramatização das línguas indígenas instituída pelos jesuítas, a exemplo da Arte de

grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, datada de 1595, do Padre José de

Anchieta, que acabou por difundir o uso da chamada língua geral (ou línguas gerais)6 no

espaço brasileiro.

6 Destacamos aqui que o termo “línguas gerais” recobre uma infinidade de interpretações, não sendo

nosso objetivo discutir o caráter polissêmico de seu uso. Para um aprofundamento da questão, indicamos

a leitura de Rodrigues (2002 [1994]) que se encontra nas referências.

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Com a chegada dos portugueses em meados do século XVI, os povos indígenas

tornam-se aldeados e, na condição de súditos do Rei, passam assim a integrar e assumir

diferentes papéis na nova sociedade que se formava. Nessa perspectiva, dar-se-á início,

a uma nova política linguística, cultural e político-educacional na América portuguesa,

haja vista que, com “a expulsão dos jesuítas em meados do século XVIII, instalou-se a

primeira rede leiga oficial de ensino” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 131).

Considerando o testemunho da História, podemos afirmar que esse fato foi

“catastrófico” para a escolarização do Brasil, uma vez que a língua portuguesa torna-se

obrigatória, sendo abolido o uso de qualquer outra língua. Nessa direção, Lobo e

Oliveira (2007, p. 439) salientam que, no período pombalino, “dito de remodelação

iluminista”, o modelo de ensino seguido foi um dos fatores responsáveis para a

concretização do português como língua predominante e, além disso, esse modelo de

educação “ainda conduziu à homogeneização do português brasileiro”. Em outras

palavras, além dos glotocídios testemunhados, como nos revelam as estatísticas sobre as

línguas indígenas no Brasil atual, ainda assistimos ao processo de normativização e,

consequente, homogeneização linguística que reforçaram o ideal de país unilíngue,

como também podemos evidenciar na sociolinguística aqui praticada, ou seja, a

sociolinguística das variáveis e variantes do português brasileiro, configurando-se,

portanto, na sociolinguística do monolinguismo.

Essas discussões são norteadoras para se pensar como ocorreram as políticas

linguísticas no Brasil e, mais especificamente, o processo de “colonização linguística”,

nos termos de Mariani (2004), na medida em que podemos considerar que refletir sobre

[...] a trajetória histórico-lingüística constitutiva da institucionalização

da língua portuguesa no Brasil é estabelecer uma relação com o

projeto colonizador português de civilizar o Novo Mundo. Trata-se de

um projeto de colonização lingüística constituído com base no

catolicismo jesuítico e em consonância com um imaginário em torno

da relação língua-nação vigente do século XVI ao XVIII (MARIANI,

2004, p. 21).

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É sob o argumento da “civilidade” das populações indígenas, com vistas à sua

integração à nova ordem colonial e à sociedade em formação, que, em 03 de maio de

1757, se criou, pelo Marquês de Pombal, a lei intitulada Directorio, que se deve

observar nas povoaçoens dos índios do Pará, e Maranhaõ em quanto Sua Magestade

naõ mandar o contrario, conhecido como Diretório Pombalino, ou dos Índios, e que se

constituiu como a base para a implementação da política linguística de imposição da

língua portuguesa no Brasil. Segundo Souza (2014), essa lei foi, inicialmente, elaborada

para atender ao Estado do Pará e Maranhão, regiões que dependiam do trabalho

indígena e encontrava-se dividida em diversas “missões religiosas”, que, por sua vez,

impediam o domínio da Coroa portuguesa “sobre a organização econômica e os lucros

da região, e em 1758, foi expandida a todo território brasileiro, sendo revogada em

1798” (SOUZA, 2014, p. 8).

Tendo como principal objetivo uma completa integração dos povos indígenas à

sociedade em formação, o Diretório “buscava civilizá-los” e, dessa forma, tirá-los da

condição de “ignorância”, “rusticidade” e “barbárie” à qual estavam submetidos. Nesse

sentido, entrevemos uma história linguística do Brasil que se reflete em sucessivas

políticas linguísticas unificadoras e repressivas e marcam os glotocídios das línguas

indígenas, como se evidenciam no seguinte trecho do Diretório:

[...] Observando pois todas | as Naçoens polîdas do Mundo este

prudente, e sólido systema, | nesta Conquista se praticou tanto pelo

contrário, que só cuidá- | raõ os primeiros Conquistadores estabelecer

nella o uso da | Lingua, que chamaráõ geral; invençaõ

verdadeiramente abo- | minavel, e diabólica, para que privados os

Indios de todos | aquelles meios, que os podiaõ civilizar,

permanecessem | na rustica, e barbara sujeiçaõ, em que até agora

se conservávaõ. (Directorio, cap. 6, p. 3-4, grifo nosso)7.

Dessa forma, falar de uma política linguística a partir do Diretório significa

considerar que os povos indígenas foram adquirindo a língua portuguesa não como algo

7 Aporte extraído da edição fac-símile de Almeida (1997), bem como as demais citações do Diretório aqui

utilizadas.

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de livre escolha, mas como uma imposição e, muitas vezes, como estratégia de

resistência e negociações. A esse respeito, Freire (2004, p. 80) destaca que tal ação

ocasionou no “extermínio de línguas minoritárias” que propiciaram a expansão da

língua geral e ajudaram na “construção de uma espécie de ponte para que a língua

portuguesa pudesse se tornar hegemônica”. Assim, analisando o texto do Diretório,

observamos que é na obrigação do diretor que fica evidente o projeto de imposição da

língua portuguesa, língua da cultura, da nação portuguesa, como podemos perceber no

trecho:

“[...] será hum dos prin- | cipáes cuidados dos Directores, estabelecer

nas suas respecti- | vas Povoaçoens o uso da Lingua Portugueza,

naõ consen- | tindo de modo algum, que os Meninos, e Meninas,

que | pertencerem ás Escólas, e todos aquelles Indios, que forem |

capazes de instrucçaõ nesta materia, usem da Lingua própria | das

suas Naçoens, ou da chamada geral; mas unicamente da |

Portugueza, na forma, que Sua Magestade tem recomenda- | do em

repetidas ordens, que até agora se naõ observáraõ com | total ruina

Espiritual, e Temporal do Estado” (Directorio, cap. 6, p. 3-4, grifo

nosso).

O Diretório torna-se, portanto, um divisor de águas no quadro linguístico

brasileiro, visto que, com a “proibição” do uso da língua geral, essa é gradualmente

abandonada por seus falantes e o português passa a ser considerado uma língua

“hegemônica”. De acordo com Mattos e Silva (2004, p. 20), com esse fato histórico, “se

define explicitamente para o Brasil uma política lingüística e cultural que fez mudar de

rumo a trajetória que poderia ter levado o Brasil a ser uma nação de língua majoritária

indígena”, ou melhor, de base linguística indígena, haja vista os usos e espaços

ocupados pelas línguas gerais no contexto colonial.

A política pombalina de imposição da língua portuguesa, ao contrário, gestou

uma história marcada por perdas linguísticas que se refletem num processo de inserção

das populações indígenas brasileiras no projeto colonizador português. As

consequências estão intimamente relacionadas com o fato de que o expandir de uma

língua de dominação, como a língua portuguesa, carrega o estigma da morte e da vida,

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de glotocídios e de nascimentos linguísticos, com o predomínio daqueles e não destes,

como pontuado por Mattos e Silva (2004).

Ante o exposto, evidenciamos que a política pombalina interrompeu qualquer

chance de o Brasil vir a possuir uma base linguística majoritária indígena, tendo em

vista que a língua portuguesa passa a ser oficial em todo território brasileiro, tornando-

se, aparentemente, hegemônica e criando o ideal de país “unilíngue”, como pontuamos.

É sob essa perspectiva que Oliveira (2002, p. 84, grifos do autor) afirma que a política

linguística do Estado sempre procurou “reduzir o número de línguas, num processo de

glotocídio (assassinato de línguas), através do deslocamento lingüístico, isto é, de sua

substituição pela língua portuguesa”. Assim, a diminuição de línguas faladas no Brasil

não foi um processo aleatório, mas motivado inicialmente pelo Estado português, a

partir dessa política linguística de imposição da língua portuguesa às populações

autóctones que passaram a ocupar a posição de índios aldeados.

É importante ressaltar que políticas como essas não foram apenas direcionadas

às populações indígenas brasileiras. Ainda segundo Oliveira (2002, p. 87), a política

linguística dos Estados lusitano e brasileiro não só vitimou os índios, mas também os

imigrantes e seus descendentes que para cá vieram, pois passaram por uma “violenta

repressão lingüística e cultural”, depois de 1850. Mais tarde, já no Estado Novo (1937-

1945), instaurado por Getúlio Vargas, essas “línguas alóctones”, através da

nacionalização do ensino, passam por uma forte repressão, conhecida juridicamente

como “crime idiomático”. Com isso, pretendeu-se “selar o destino das línguas de

imigração no Brasil, especialmente o do alemão e do italiano na região colonial de

Santa Catarina e do Rio Grande do Sul” (OLIVEIRA, 2002, p. 87).

Na contemporaneidade, o conceito de política linguística, para Oliveira (2005),

tem sido vinculado à questão educacional no nível formal. Ao pensar essa ideia em

conjunção com a escola, a Constituição Federal de 1988, nos artigos 210 e 231, por

exemplo, garante aos índios o reconhecimento das suas línguas e culturas, através de um

ensino escolar bilíngue. Em função disso, muitas propostas de revitalização têm sido

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desenvolvidas numa tentativa de retomada de línguas, culturas e identidades de

populações indígenas que estavam sendo perdidas e/ou destinadas à morte.

Sobre a questão da revitalização tão amplamente discutida, é preciso considerar

que, como afirma Leite e Franchetto (2006, p. 20), “[...] os grupos, enquanto

conglomerado de pessoas etnicamente diferenciados da população majoritária local

envolvente, podem aumentar, mas a língua pode se extinguir. Ou perder muitas das suas

características básicas”. Nesse caso, vale destacar que o projeto de revitalização

garantiria que as línguas maternas voltassem a ser usadas pelas futuras gerações, como

resultado de um complexo e lento processo de retomada dos usos linguísticos em

espaços não só escolares. Mas essa situação linguística tem raízes históricas profundas e

pode ser entrevista na política pombalina de imposição da língua portuguesa aos índios,

materializada no Diretório Pombalino, ou dos Índios, sobre a qual passaremos a refletir

a partir de sua aplicação no Estado da Bahia.

3 Sobre a aplicação do diretório pombalino na Bahia

Tendo em vista os estudos já realizados, tanto no âmbito da sociolinguística

quanto da dialetologia, consideramos que a recuperação da história do português

brasileiro passa pela “reconstrução” da história social linguística do Brasil, que se

caracteriza por “uma sociolinguística histórica (ou sócio-história lingüística) e uma

história lingüística, isto é, a história das mudanças lingüísticas que fizeram e fazem o

português brasileiro apresentar as características que tem, o seu perfil próprio, a sua

gramática” (MATTOS E SILVA, 1998, p. 39). Apoiando-se nisso, Mattos e Silva

(1998) definirá quatro campos de pesquisas, oriundos e reformulados a partir das vias

propostas por Houaiss (1985), que o pesquisador deverá ater-se no tocante às discussões

sobre o PB, constituindo, assim, um projeto coletivo, de caráter nacional. Com vistas à

implementação desse projeto, para a autora, devem ser considerados os seguintes

campos de pesquisa autônomos, mas interligados:

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a, campo que se moverá na reconstrução de uma história social

lingüística do Brasil; b, campo que se moverá na reconstrução de uma

sócio-história lingüística ou de uma sociolinguística histórica; c,

campo que se moverá na reconstrução diacrônica no interior das

estruturas da língua portuguesa em direção ao português brasileiro; d,

campo que se moverá no âmbito comparativo entre o português

europeu e o português brasileiro (MATTOS E SILVA, 1998, p. 40).

Haja vista os campos apresentados, entendemos que o presente estudo se

inscreve no campo de pesquisa a, uma vez que temos buscado discutir, a partir da

documentação colonial, dados históricos sobre a implantação do Diretório Pombalino e

a imposição do português às populações indígenas do Estado da Bahia, como língua

hegemônica, ato a ser difundido para todo o país, conforme determinação régia. Para

Almeida (1997, p. 19), “o Diretório exprime uma visão de mundo, propõe uma

transformação social, é o instrumento legal que dirige a execução de um projeto de

civilização dos índios articulado ao da colonização”. O Diretório é composto por 95

parágrafos, divididos por assuntos diversos. Sendo assim, do 1° parágrafo ao 16°,

abordam-se questões relativas à organização social dos índios, inclusive quanto à

educação indígena e “ensino” de língua portuguesa; do 17° parágrafo ao 73°, discutem-

se aspectos relacionados à economia; finalmente, no 74° parágrafo ao 95°, trata-se das

medidas tomadas para a consecução do Diretório.

Com intuito de traçar caminhos para uma compreensão e/ou interpretação das

histórias de inserção das populações indígenas brasileiras no mundo da cultura escrita e

seus reflexos sobre os processos de letramentos em língua portuguesa, analisamos os

parágrafos 6º, 7º e 8º do Diretório e o Parecer do Conselho Ultramarino solicitado pelo

Conde D. Marcos de Noronha, sobre a sua aplicação nas aldeias da Bahia8. Assim,

tencionamos possibilitar uma reflexão sobre as orientações para implementação da

política pombalina.

A partir da análise do citado Parecer, observamos que os índios da Bahia foram

sempre vistos como inferiores aos dos Estados do Pará e Maranhão, como afirma o

próprio Conde D. Marcos de Noronha em carta ao Thomé Joaquim da Costa Corte Real,

8 AHU, Bahia-CA, cx. 23, docs. 4255-4261.

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salientando a necessidade de pronunciamento do Conselho Ultramarino quanto aos

aspectos que poderiam ser aplicáveis ou não às

Aldeas do Brazil, por que os Indios, do | que os povôao, estão,

eestiveraõ sempre em muito inferior Estado o | dos do Parà, e

Maranhaõ, naõ se me offerece que dizer a Vossa Exelência, a | outra

couzaàrespeito, senão que ficaõ à passar-se as Ordens necessa- | rias,

para que em tudo aquilo, que se julgou applicavel omesmo Directorio

| o haja deser sem perda detempo nasPovoaçoés dos Indios

desteEstàdo | o que Vossa Excelência faràprezente à Magestade

(AHU, Bahia-CA, cx. 23, doc. 4255, fl. 0396, grifo nosso)9.

Evidenciamos que, na percepção dos colonizadores, os índios da Bahia eram

inferiores aos dos Estados do Pará e Maranhão, principalmente na organização social,

uma vez que ainda não haviam sido “salvos da rusticidade” em que viviam e sempre

viveram. Era, por assim dizer, uma população a ser “lapidada”, conforme os interesses

da Coroa portuguesa. No entanto, a aplicação do Diretório não poderia ser

implementada de maneira uniforme em todo território brasileiro, como havia sido

determinado, na medida em que os parágrafos aplicáveis aos índios das aldeias da Bahia

tiveram que passar por uma flexibilidade, para que pudessem atender ao contexto dessa

população, como podemos observar no trecho do Parecer anteriormente citado.

No parágrafo 6º do Diretório, o Marquês de Pombal apresenta sua intenção de

“civilizar” os índios pela língua, visto que essa prática sempre foi utilizada pelas nações

na conquista de novos domínios, que, ao “introduzir” (ou impor) seus idiomas,

consequentemente, instauram a dominação sobre os povos vistos como “aculturados”,

sendo que sempre foi a

9 As informações apresentadas após os trechos extraídos da documentação se referem ao fundo

documental (AHU, Bahia-CA), caixa onde se localiza, número do documento e folha. Utilizaremos a

mesma forma de identificação para os fragmentos da documentação aqui citada. Para uma melhor

compreensão do texto (Parecer) realizamos uma edição semidiplomática utilizando das normas de

transcrição do Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB). Assim, o texto encontra-se

transcrito como no original. A especificação “|” corresponde à delimitação do final de linha no

documento, e as abreviaturas aqui transcritas encontram-se desenvolvidas em itálico.

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[...] maxima inalteravelmente praticada em | todas as Naçoens, que

conquistáraõ novos Dominios, intro- | duzir logo nos Póvos

conquistados o seu proprio idiôma, por | ser indisputavel, que este he

hum dos meios mais efficazes para | desterrar dos Póvos rusticos a

barbaridade dos seus antigos | costumes; e ter mostrado a experiencia,

que ao mesmo passo, | que se introduz nelles o uso da Lingua do

Principe, que os | conquistou, se lhes radîca tambem o affecto, a

veneraçaõ, e | a obediencia ao mesmo Principe. (Directorio, cap. 6, p.

3, grifo nosso)

Assim, ao correlacionar esse parágrafo do Diretório com informações

apresentadas no Parecer do Conselho Ultramarino, observamos uma preocupação com a

aplicabilidade dessas ordens nas aldeias da Bahia, como atestamos no fragmento,

sempre retirado: “Parece ao Conselho mandar entre- | gar aoS Escrivaens das Camaras

ReSpetivas | a Copia deste paragrafo, para que eles promo- | vaõ asua observancia nos

lugares das suas | Rezidencias” (AHU, Bahia-CA, cx. 23, doc. 4255, fl. 0402).

Outra questão observada diz respeito à cristianização, que, segundo Almeida

(1997, p.172), servia como um instrumento para “civilizar” os índios, sendo que esse

ideal encontra-se disseminado no que o Diretório compreendia como uma tarefa de

instrução dos índios sobre os “meios de civilidade”, incluindo a adoção da língua

portuguesa. Na visão de Freire (2004, p.137-138), a civilização das populações

indígenas ocorria por meio das línguas, uma vez que estas despertam, “[...] em seus

falantes e nas pessoas que entram em contato com elas, comportamentos, sentimentos e

atitudes de identificação ou de estranhamento, funcionando como fatores de identidade

étnica e de coesão social”.

Com vistas a possibilitar meios de “civilizar” os índios, nos parágrafos 7° e 8°

do Diretório, propõem-se criações de escolas públicas para meninos e meninas, filhos de

índios, nas quais aprenderiam a ler, escrever e assimilar a doutrina cristã como

continuidade das matérias da educação elementar. Vale salientar que os mestres e

mestras teriam que ser dotados de “bons costumes, prudência e capacidade”, para que

assim pudessem desempenhar bem as suas obrigações. Os meninos e meninas eram

educados separadamente; só na falta de mestras, as meninas, até os dez anos, poderiam

ser ensinadas juntamente com os meninos, o que possibilitaria adquirir “com maior

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facilidade o uso da língua portuguesa”. Essas informações podem ser observadas nos

fragmentos que se seguem:

7 Haverá em todas as Povoaçoës | duas Escólas pûblicas, huma para

os Meninos, na qual se lhes | ensine a Doutrina Christãa, a ler,

escrever, e contar na for- | ma, que se pratica em todas as Escólas das

Naçoens civiliza- | das; e outra para as Meninas, na qual, álem de

serem instrui- | das na Doutrina Christãa, se lhes ensinará a ler,

escrever, fi- | ar, fazer renda, cultura, e todos os mais ministérios pro- |

prios daquelle sexo.

8 Para subsistencia das sobreditas Escólas, e de hum | Mestre, e huma

Mestra, que devem ser Pessoas dotadas de | bons costumes,

prudência, e capacidade, de sorte, que possaõ | desempenhar as

importantes obrigaçoens de seus empregos; [...] No caso porém de naõ

haver nas | Povoaçoens Pessoa alguma, que possa ser Mestra de

Meninas, | poderáõ estas até á idade de dez annos serem instruidas

na Escóla dos Meninos, onde aprederáõ a Doutrina Christãa, a |

ler, e escrever, para que juntamente com as infalíveis verda- | des

da nossa Sagrada Religiaõ adquiraõ com maior facilida- | de o uso

da Lingua Portugueza. (Directorio, cap. 7-8, p. 4, grifo nosso).

Considerando o Parecer apresentado pelo Conselho Ultramarino, esse tipo de

ensino já se encontrava em vigor na Bahia e satisfazia aos objetivos da Coroa

portuguesa, uma vez que, através dessa prática, os meninos se tornavam escrivães,

servindo, portanto, aos intuitos dos colonizadores, como podemos depreender do

fragmento abaixo, retirado da documentação analisada:

Parece | ao Conselho que alem do que neles seacha | disposto, se

ordene aoS Escrivaens da Cama- | ra que continuem no ensino dos

meninos | na forma da sua obrigasam, edas meninas | da Vila ate

aidade de des anos, naõ levan- | do estipendio algum de seos pais, ou

de outra | pesoa algu’a, visto serem satisfeitos pela Fa- | zendaReal,

eque quando pelo tempo adi- | ante suceder serem oS Escrivaens

Indios, | nesse | nese cazo, lhes pagaraõ seos pais, ou as pe- | soaS

interesadas no ensino. (AHU, Bahia-CA, cx. 23, doc. 4255, fl. 0402-

0403).

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Nesse aspecto, o Parecer quanto à aplicação do Diretório no Estado da Bahia vai

além da determinação régia inicial, uma vez que entrevemos a orientação de formação

dos meninos para ocuparem o cargo de escrivães, como exposto na documentação:

“Parece | ao Conselho que além do que neles seacha | disposto [...]” (AHU, Bahia-CA,

cx. 23, doc. 4255, fl. 0402). E assim se ratifica a prática dos escrivães já existente.

De acordo com Almeida (1997, p. 173), a imposição da língua portuguesa

constituiu como “uma luta contra o uso da ‘língua geral’, empregada pelos jesuítas no

trato com os índios”, o que a seu ver representou uma “afirmação política” sobre os

conquistados. A autora ainda questiona se a “introdução da língua portuguesa não teria

sido sobretudo uma disputa pela hegemonia [...] entre grupos de uma mesma cultura e

civilização”, antes de ser firmada e apresentada como um projeto de nação.

Conforme Freire (2004, p. 124-125), o fortalecimento da língua portuguesa se

deu com a chegada dos colonos, com casamentos mistos e com a educação escolar. O

autor afirma que cada “[...] aldeia devia abrigar duas escolas, uma para o sexo

masculino e outra para o feminino. As meninas aprenderiam a fiar, costurar, fazer

renda”, o que representa uma materialização dos aspectos apresentados nos 7º e 8º

parágrafos do Diretório anteriormente citados. Diante disso, as propagações das escolas

e da catequização fizeram com que a língua do colonizador se tornasse mais forte e

“supra-étnica”, nos termos de Freire (2004, p. 58), expandindo-se por todo território

brasileiro, o que anulava qualquer chance da Espanha dominar as regiões de falantes do

português. E aqui se revela um aspecto que pode ser entrevisto no projeto pombalino de

civilização dos índios: os domínios territoriais da Coroa portuguesa, uma vez que, onde

há súditos, falantes do português, há império português e não espanhol. Vale ressaltar

que, nesse período, Portugal e Espanha buscam cada vez mais ampliar seus domínios

territoriais.

A política de aldeamento foi essencial para a formação do projeto colonizador,

sendo que os índios aldeados compunham tropas militares, ocupavam espaços

conquistados e “contribuíam” como mão de obra na construção das sociedades

coloniais, como nos informa Almeida (2010). Contudo, os índios, motivados por novos

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interesses, aproveitaram-se de alguns ensinamentos, que podiam ser úteis “na nova

situação colonial”, na medida em que as aldeias serviam como espaços de sobrevivência

dos índios aldeados na Colônia, onde se tornou possível a reconstrução de suas culturas,

memórias e identidades. Esse processo caminhou em conjunto com o intenso processo

de mestiçagem e, após a reforma pombalina, os aldeados passam a ser classificados ora

como índios ora como mestiços.

Considerando essa perspectiva, aprender a ler e escrever o português, para os

índios, constituía-se de um “instrumento eficaz para alguns deles, sobretudo lideranças,

reivindicarem suas mercês ao Rei em moldes bem portugueses” (ALMEIDA, 2010, p.

91). Sendo assim, as populações indígenas brasileiras passam a utilizar das práticas

culturais e políticas lusitanas, como forma de resistência e/ou sobrevivência,

“integrando-se” à sociedade colonial em formação e, consequentemente, inserindo-se

nas práticas de cultura escrita em língua portuguesa, o que contribuiu para a

implementação da política linguística pombalina e os glotocídios testemunhados pelo

devir da história.

Evidência desse processo de negociações e resistências pode ser depreendida dos

cargos que os índios aldeados passam a ocupar na nova ordem colonial.

Inevitavelmente, assumir a função de escrivão, como destacado no Parecer do Conselho

Ultramarino dos parágrafos do Diretório aplicáveis à Bahia, exige daqueles que o

desempenham um domínio diferenciado das capacidades de ler e escrever em língua

portuguesa. Nesse sentido, as populações indígenas, sobretudo aqueles que buscavam

reivindicar suas mercês ao Rei, passaram a inserir-se nos contextos de uma cultura

escrita que contribuiu para perdas linguísticas irreparáveis, consequência de um dos

fatores principais dessa condenação à morte, qual seja,

[...] a pressão das línguas nacionais, dominantes, em situações de um

poder superior socioeconômico, de assimilação, através de meios e

canais, como escolarização, [...] e a sedimentação de atitudes

valorativas positivas, para a língua do colonizador, e negativas, para a

língua dos colonizados (LEITE; FRANCHETTO, 2006, p. 20, grifo

nosso).

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É no contexto da escolarização, nas escolas para meninos e meninas onde “[...]

aprederaõ a | Doutrina Christan, a ler, e escrever, para | que juntamente com as infaliveis

verdades da | nossa Sagrada Religiaõ adquiraõ com maior | facilidade o uzo dalingua

Portugueza [...]” (AHU, Bahia-CA, cx. 23, doc. 4255, fl. 0425), que se instala o início

do processo de perdas linguísticas, na medida em que se consolida a ruptura geracional

e a obrigatoriedade de uso da língua portuguesa.

O Parecer do Conselho Ultramarino sobre os parágrafos do Diretório aplicáveis

aos índios da Bahia, embora reconheça a distinção entre estes e os índios do Estado do

Grão-Pará e Maranhão, ratifica, em diversos momentos, a necessidade de “civilizar” as

populações indígenas a partir da imposição da língua do Príncipe, através da

escolarização de meninos e meninas, expressando ser uma das funções do diretor dos

índios,

[...} estabele- | cer naS suas Respetivas povoasoens o uzo da | Lingua

Portugueza, naõ consentindo por | modo algum, que os meninoS, e

meninas, que | pertencesem aS escolas, etodos aqueles Indios, | que

fosem capazeS de instrusam nesta mate- | ria, uzasem da lingua

propria das suas na- | soenS, ou da cHamada geral; maS unicamen- | te

da Portugueza naforma que V. Mg.e | tem Recomendado em Repetidas

ordens [...] (AHU, Bahia-CA, cx. 23, doc. 4255, fl. 0424).

A referência, reiteradas vezes, ao 6º parágrafo do Diretório, como ocorre no

Parecer analisado, deixa entrever a importância, para a Coroa portuguesa, de tornar a

língua portuguesa hegemônica no território brasileiro, no caso aqui discutido, o Estado

da Bahia. As consequências desse processo histórico que marcou a formação da nova

ordem colonial refletem as perdas e extermínios evidenciados quando se intenta

estabelecer os números, fruto de meras deduções, mas que deixam transparecer o

impacto violento da conquista e da colonização das populações indígenas brasileiras sob

o escamoteado discurso da integração.

4 A título de conclusão

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Sem dúvida, a história social e linguística do Brasil modificou-se, radicalmente,

com a chegada dos portugueses, que transplantaram sua língua e cultura e promoveram,

portanto, um novo modo de vida para os índios da América portuguesa. Como resultado

dessa mudança, podemos atestar o extermínio de povos e línguas indígenas e,

simultaneamente, as perdas de suas memórias, culturas e identidades.

Em função dessas questões, consideramos que o tecido histórico pode contribuir

para uma reconstrução da história de constituição do português brasileiro, fornecendo

dados que podem lançar luz à própria história interna e externa das línguas e abrir

caminhos para a compreensão de como e quando a língua portuguesa tornou-se

hegemônica, não perdendo de vista que muitas histórias precisam ser reescritas.

O Diretório Pombalino tencionava internalizar, nas populações indígenas, novas

instituições, hábitos e crenças para formar uma nova base de caráter nacional e

identitário, proveniente dos colonizadores. Ademais, é nos encontros e/ou desencontros

que o português brasileiro passa a diferenciar-se do português europeu devido às

influências das línguas indígenas que eram aqui faladas, das línguas de origem africana

para cá transplantadas e, posteriormente, das línguas de imigração. É nesse entrecruzar-

se das variantes indígenas, africanas e de imigração, menos ou mais aportuguesadas,

que se instauram e emergem traços específicos do PB, a língua que falamos.

Embora não nos tenhamos ocupado, no presente artigo, desses traços

diferenciadores, entendemos que a história social e linguística do Brasil, e consequente

emergência do chamado português brasileiro como língua majoritária, passa pela escrita

da história (ou histórias) do contato linguístico. Nesse sentido, as reflexões sobre a

política linguística de imposição do português às populações indígenas, a entrada de

povos de tradições orais em uma cultura escrita, a morte de línguas e adoção do

português como língua hegemônica são aspectos sócio-históricos fundamentais para

uma melhor compreensão da realidade linguística da atualidade.

Em nosso exercício de reflexão, apresentamos alguns indícios desse complexo

processo de penetração das populações indígenas brasileiras no mundo da cultura

escrita, resultado da política linguística pombalina materializada no Diretório, bem

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como a sua aplicação no Estado da Bahia, como transparece no Parecer do Conselho

Ultramarino solicitado pelo Conde D. Marcos de Noronha.

Por fim, é importante salientar a escassez de documentos e pesquisas relativas a

essa questão fundamental para a compreensão dos processos sócio-históricos que

possibilitaram tornar o português uma língua majoritária no Brasil. Mesmo cientes

dessa fragmentariedade da documentação, intentamos apresentar alguns indícios com

vistas a contribuir na direção de uma reconstrução de uma sócio-história linguística do

Brasil e, principalmente, da Bahia, tendo em vista a memória coletiva preservada nos

arquivos, cuja função é, segundo Cook (1998, p. 23), “ajudar a sociedade a se lembrar

do seu passado, de suas raízes, de sua história”.

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Recebido Para Publicação em 28 de fevereiro de 2015.

Aprovado Para Publicação em 19 de maio de 2014.