PoliticasCulturais

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POLÍTICAS CULTURAIS informações, territórios e economia criativa

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Políticas Culturais

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  • POLTICAS CULTURAIS

    informaes, territrios e economia criativa

  • Centro de Documentao e Referncia Ita Cultural Catalogao na publicao (CIP)

    Polticas culturais : informaes, territrios e economia criativa / organizao de Lia Calabre; traduo de Carmen Carballal. So Paulo : Ita Cultural ; Rio de Janeiro : Fundao Casa de Rui Barbosa, 2013. 244 p.

    ISBN 978-85-7979-044-71. Poltica cultural. 2. Polticas pblicas. 3. Economia criativa. 4. Cultura e territrio I. Ttulo.

    CDD 353.7

  • POLTICAS CULTURAIS

    informaes, territrios e economia criativa

    Realizao

  • SUMRIO

    INDSTRIAS CRIATIVAS E POLTICAS CULTURAIS. PERSPECTIVAS A PARTIR DO CASO DA CIDADE DE BUENOS AIRES

    MEGAEVENTOS E POLTICAS CULTURAIS

    A LGICA DOS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS

    O LEGADO IMATERIAL DAS OLIMPADAS DO RIO DE JANEIRO

    ECONOMIA CRIATIVA: ABORDAGEM CONCEITUAL E DINMICA DA MPE

    A QUANTIFICAO DO CONSUMO CULTURAL E AS POLTICAS CULTURAIS

    TERRITORIALIDADE E CULTURA: A EXPERINCIA DE SERGIPE EM PLANEJAMENTO REGIONAL

    INDICADORES CULTURAIS E O NOVO MODELO DE GESTO DA PREFEITURA DE PORTO ALEGRE

    , SIM, L EM ACARI! MAPEAMENTO DA PRODUO CULTURAL EM UMA FAVELA DA ZONA NORTE DO RIO DE JANEIRO

    EDUCAO A DISTNCIA PARA FORMAO DOS GESTORES CULTURAIS DOS PONTOS DE CULTURA: LIMITES E POSSIBILIDADES

  • Idealizado em 2002, o Setor de Polticas Culturais da Fundao Casa de Rui Barbosa vem se empenhando na divulgao de pesquisas e informaes sobre o campo das polticas culturais e na promoo do dilogo entre pesquisadores, professores, gestores e estudantes. Em 2006, teve incio a srie de seminrios anuais sobre polticas culturais, a partir de 2008, o seminrio passou a contar com a importante parceria do Observatrio Ita Cultural e, em 2010, se transformou em Seminrio Internacional. A nova denominao se deveu efetiva incorporao aos objetivos do seminrio o de promover e ampliar a discusso sobre polticas culturais, tambm em mbito interna-cional, em especial, com os pases da Amrica Latina. Dentro dessa nova srie teve lugar nos dias 19, 20 e 21 de se-tembro de 2012, o III Seminrio Internacional de Polticas Culturais, que deu origens a discusses que parcialmente esto apresentadas no presente livro, contando com a participao de professores e especialistas internacionais e nacionais, gestores e alguns dos trabalhos premiados do programa Rumos do Ita Cultural.

    Em 2006, ainda era uma grande novidade a discusso das polticas culturais em uma chave ampliada, tendo como um dos elementos fundamentais a efetiva gesto compartilhada entre Estado e sociedade civil. A problemtica do financia-mento atravs das leis de incentivo dominava a cena. Mais de meia dcada depois, com o Plano Nacional de Cultura em vigncia, com o Sistema Nacional de Cultura aprovado, novos desafios esto colocados. Se por um lado o processo de institucionalizao das polticas pblicas de cultura ainda se mostra frgil e insuficiente, por outro lado novos atores tm entrado em cena exigindo mudanas mais radicais, quem sabe sinalizando um tempo prximo de mudana. O presente volume est dividido em duas parte, na primeira sero discutidas problemticas mais ligadas aos territrios e a economia criativa e numa segunda parte temos as questes das informaes e dos territrios

    dentro dessa conjuntura complexa que o professor argentino Rubens Bayardo, nos apresenta suas reflexes sobre as indstrias criativas e a polticas culturais, tendo como lugar de discusso a cidade de Buenos Aires. Den-tro dessa perspectiva de poltica, cultural, cidade e economia, temos os trabalhos de Maurcio Siqueira e Clarissa Semensato, que trata da problemtica dos megaeventos no contexto das polticas culturais; de Cldice Diniz que discute a lgica dos megaeventos esportivos, seguida por Gerardo Silva, que problematiza o impacto local de um megaevento sobre o patrimnio material de uma comunidade. Fechando essa primeira parte o livro temos o trabalho de Heliana Marinho que nos apresenta uma abordagem mais conceitual sobre economia criativa.

  • A professora uruguaia Carolina Asuaga, em uma segunda parte da presente obra, nos apresenta questes sobre a quantificao do consumo cultural e a elaborao de polticas culturais, consideraes indispensveis para o campo da gesto pblica contempornea. Refletindo sobre a problemtica da cultura e da territorialidade temos o trabalho da professora e gestora pblica Maria Lcia Falcn, que apresenta a experincia de Sergipe onde foram integrados a questo das prticas culturais e sua territorializao e o processo de planejamento regional. Seguindo a linha da produo de informaes culturais e da gesto pblica, temos o trabalho de lvaro Santi sobre a expe-rincia de Porto Alegre.

    Ainda nessa segunda parte Adriana Facina, uma das premiadas do programa Rumos Ita Cultural, nos apresenta os resultados no mapeamento cultural em Acari, uma favela da zona norte do Rio de Janeiro. E, fechando o vo-lume, temos o trabalho de Maria Daniela Carneiro Gouveia de Melo, tambm premiada pelo programa Rumos, que nos traz os resultados sobre seus estudos sobre a problemtica da formao dos gestores culturais dos pontos de cultura, a partir da metodologia do ensino distncia. Os dois ltimos trabalhos mostram a potencialidade do campo de estudos de polticas culturais para a proposio de novas pesquisas (ou novas abordagens sobre velhos temas) e novas metodologias. Boa leitura a todos!

    Lia Calabre

    Coordenadora do setor de polticas culturais

    Fundao Casa de Rui Barbosa.

    Rio de Janeiro, 10/08/2013

  • INDSTRIAS CRIATIVAS E POLTICAS CULTURAIS. PERSPECTIVAS A PARTIR DO CASO DA CIDADE

    DE BUENOS AIRES

    Rubens Bayardo1

    Nos ltimos anos, observa-se uma institucionalizao nos mbitos estatal, privado e associativo de reas e inicia-tivas ligadas s indstrias criativas. Essa noo se apresenta como uma continuao e/ou como uma substituio natural da noo de indstrias culturais. Instalou-se rapidamente nas agendas e nas polticas pblicas, ligada a uma maior ateno sobre o setor cultural, aprofundando, ao mesmo tempo, uma mudana conceitual para fomentar a sua rentabilidade. Esse setor explica sua configurao por mais de meio sculo de debates e acordos interna-cionais sobre polticas culturais, que contriburam para definir o campo de problemas que o ocupam, assim como os seus princpios orientadores, seus quadros normativos e organizacionais, seus enquadramentos oramentrios e suas linhas de ao. As indstrias criativas redefiniram essas questes com uma retrica sobre a criatividade, os aspectos criativos e os criadores, apresentando algumas cifras que a fundamentariam e promovendo novos princpios de coleta de dados e confeco de estatsticas. Nesse movimento aparentemente limitado descrio e potencializao de uma dinmica setorial, instala-se um arcabouo terico difuso que omite os antecedentes em polticas culturais para legitimar polticas pblicas de ordem econmica e social. por isso que neste trabalho nos propomos a analisar a noo de indstrias criativas e sua relao com as polticas culturais a partir do caso da cidade de Buenos Aires, onde recentemente foram concretizadas algumas iniciativas que lanam luz sobre esse assunto2.

    Em 2004, o Governo da Cidade Autnoma de Buenos Aires (GCABA) criou em sua Secretaria de Cultura um Observatrio de Indstrias Culturais, com a finalidade de sistematizar informaes sobre as mesmas e obter insumos para o desenho de polticas na rea. As indstrias culturais foram entendidas a partir de perspectivas con-ceitualizadas pela Organizao das Naes Unidas (ONU) para a Educao, a Cincia e a Cultura (UNESCO, 1982) e os estudos foram empreendidos em sintonia com recomendaes das ltimas iniciativas internacionais em matria de polticas culturais (UNESCO, 1999, 2000). Em tal sentido, comeou-se a questionar a economia dos ramos escrito, sonoro e audiovisual dessas indstrias, a partir de um enquadramento poltico de democratizao e pluralismo. Entre 2006 e 2007, com a mudana das autoridades frente da cidade, o citado Observatrio foi transferido rbita do Ministrio de Desenvolvimento Econmico e reconvertido em um Observatrio de In-dstrias Criativas. Isso foi acompanhado por uma reformulao da instituio, seus estudos e relatrios, prxima s abordagens de economia criativa da Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o Desenvolvimento (UNCTAD, 2004, 2008). E tambm por novos discursos e prticas das autoridades no tocante a outras iniciativas envolvendo a criatividade e seu lugar na gesto urbana, relacionadas com perspectivas anglo-saxnicas (JARVIS et al., 2006). o caso do Centro Metropolitano de Desenho, da instaurao dos distritos Tecnolgico, Audiovisual

    1 Doutor em Filosofia e Letras pela Universidade de Buenos Aires (UBA), Programa Antropologia da Cultura, FFYLUBA; Curso de Especializao em Gesto Cultural e Polticas Culturais, IDAESUNSAM.

    2 Pode-se ver um tratamento mais pormenorizado e com maiores referncias empricas que envolvem essa questo em nosso trabalho Polticas culturas y economa simblica de las ciudades. Buenos Aires: En todo ests vos, publicado em Latin American Research Review, 2013, nmero Especial.

  • e de Desenho, do lanamento dos Centros de Atendimento ao Investidor e da elaborao do Guia Investir em Buenos Aires (Gua Invertir en Buenos Aires). A anlise desses elementos nos permite questionar os sentidos das indstrias criativas e da criatividade, seu significado nas polticas pblicas e suas implicaes para as construes conceituais que vinham associadas aos debates sobre polticas culturais.

    Polticas culturais e indstrias culturais

    As polticas culturais se referem a intervenes sistemticas em cultura, que requerem princpios, normativas e for-mas organizacionais, que demandam oramentos, infraestruturas e pessoal qualificado e envolvem certas rotinas especficas. No incio, foram consideradas polticas de governos, como as agncias encarregadas de implementar obrigaes dos Estados no tocante a cumprir e proteger os direitos culturais dos cidados, principalmente o impe-rativo democrtico de acessar e participar livremente da vida cultural da comunidade. Em tempos mais recentes, as polticas culturais passaram a ser entendidas como polticas pblicas, ou seja, no somente oficiais, dos Estados, como tambm de interveno de diversos agentes do mercado e da sociedade civil e cifradas em suas inter-rela-es, debates e acordos sobre as aes que so empreendidas (RUBIM et al., 2006). Essas aes so concebidas como episdios de polticas de longo prazo que requerem informaes rigorosas, conhecimentos concretos do terreno e implicam em um planejamento estratgico das intervenes, cuja implementao, acompanhamento e avaliao servem para repensar e redesenhar novas polticas culturais.

    Podemos resumir quatro tpicos fundamentais, que apontam momentos de desenvolvimento, das polticas culturais (BAYARDO, 2008, 2010): a) a democratizao, vale dizer, garante populao o acesso aos bens e aos servios culturais; b) a descentralizao, ou seja, fazer especial referncia s necessidades dos locais e s possibilidades das comunidades, atravs das instncias locais em detrimento de uma centralidade administrativa que pode operar des-conhecendo os territrios e suas prioridades; c) o desenvolvimento, j que as polticas culturais se referem a bens simblicos e identidades, assim como a recursos materiais e a implicaes socioeconmicas que fazem parte de processos de desenvolvimento que preciso investigar, registrar e quantificar; e d) a diversidade cultural, isto , o reconhecimento da existncia de semelhanas e diferenas entre os grupos humanos e do valor material e intangvel de suas contribuies para a vida em comum da espcie. A democratizao, a descentralizao, o desenvolvimento e a diversidade cultural se entrelaam com a expanso das indstrias culturais e so envolvidos por suas dinmicas.

    As indstrias culturais so um conjunto de ramos, segmentos e atividades auxiliares industriais produtoras e dis-tribuidoras de mercadorias com contedos simblicos, concebidas por um trabalho criativo, organizadas por um capital que se valoriza e destinadas finalmente aos mercados de consumo, com uma finalidade de reproduo ideolgica e social (ZALLO, 1988, p.26). Dentro dessas indstrias, Getino (2003) distingue os complexos editorial (livros, revistas, jornais), fonogrfico (disco, rdio) e audiovisual (televiso, cinema, vdeo), domnios transversais (propaganda) e indstrias auxiliares (suportes e insumos) e relacionadas (telecomunicaes, informtica). Esses bens e servios culturais produzidos industrialmente e comercializados em mercado tm valor econmico e, si-multaneamente, veiculam valores simblicos, sentidos e identidades sociais. Como qualquer outra produo de grandes volumes, requer tecnologias complexas, seriao, padronizao, diviso do trabalho e importantes ca-pitais. Nas indstrias culturais, estes ltimos comearam sendo de origem nacional, depois se estrangeiraram e,

  • posteriormente, transnacionalizaram, assumindo na atualidade magnitudes muito maiores e envolvendo capitais financeiros e investimentos em diversas reas culturais e no culturais. Na Amrica Latina, os grandes aglomerados transnacionais concentram de 80 a 90% dos negcios nos diferentes setores da indstria, por isso o espao que fica para outras iniciativas limitado (YUDICE, 2004). Estas existem em situao assimtrica ou dependente das majors, com ciclos curtos de durao e dificuldades de sustentabilidade, com capacidades limitadas e conjunturais de operar e influenciar no setor, de representar e formar pblicos.

    No contexto atual das formulaes mais recentes de polticas culturais, reforaram a possibilidade de considerar os aspectos materiais e simblicos da cultura, entendendo tanto as implicaes econmicas quanto as peculiaridades que transcendem uma lgica meramente mercantil das mercadorias. Assim, a UNESCO (2001 e 2005a) sustentou que os bens e os servios culturais no so mercadorias como outras quaisquer, mas sim mercadorias que comunicam ideias, portam contedos, veiculam valores, portam sentidos, que fazem a formao dos sujeitos, os modos de socia-bilidade e as formas de entender a natureza, o mundo, as relaes com outros. Alm disso, considerando que existem profundas assimetrias no comrcio internacional de bens e servios culturais, ligadas a processos de globalizao e concentrao transnacional, recomendou o estabelecimento de polticas nacionais e locais atentas s indstrias cultu-rais, buscando formas de promover iniciativas de diferentes tipos e magnitudes para configurar um universo pluralista. Mas, paralelamente (embora tambm imbricada com esta perspectiva a partir de sua preocupao comum com o desenvolvimento), surgiu uma retrica sobre a economia e as indstrias criativas que circunscreve as dimenses simblicas da cultura a uma condio intercambivel de contedos e se concentra em exaltar suas capacidades de gerar riquezas, renda e emprego juntamente com o comrcio exterior, ignorando as desigualdades que o caracteri-zam (UNCTAD, 2004, 2008,2010). Estimulam-se as pequenas e mdias empresas (PMES) e o empreendedorismo cultural individual como provedores de contedos para as majors, antepondo os benefcios destas sustentabilidade do conjunto das iniciativas culturais. Esse discurso sobre a criatividade avana em reas de cultura em nveis nacionais e locais, assim como em academias3, mesmo sendo exorbitante no contexto das polticas culturais.

    Criatividade e indstrias criativas na Cidade de Buenos Aires

    Em 2001, o GCABA apresentou um Plano Estratgico de Cultura denominado Buenos Aires Cria (Buenos Aires Crea)4. O plano d continuidade a iniciativas em curso e muitos dos seus enunciados correspondem a momentos anteriores, mas tambm perfila novos estmulos que corroboram o exposto anteriormente. Define a cultura como meio para a gerao de identidade e valores culturais, elemento de conteno social e de recuperao de bair-ros deprimidos, geradora de oferta turstica e de recursos e emprego, base para o desenvolvimento econmico

    3 Enquanto o GCABA tem o seu Observatrio de Indstrias Criativas, o Instituto Cultural da Provncia de Buenos Aires conta com uma Direo de Indstrias Criativas. Por sua vez, a Secretaria de Cultura da Nao organiza em nvel federal e regional o Mercado de Indstrias Culturais Argentinas (MICA), concebido a partir de uma ostensvel noo de indstrias criativas que agrupa artes cnicas, msica, edio, audiovisual, desenho e videogames. O Observatrio Cultural da Universidade de Buenos Aires organizou um Encontro Internacional de Economia Criativa, no qual se comeou a ministrar o Mestrado em Administrao de Organizaes do Setor Cultural e Criativo, e na Universidade Nacional de Crdoba se ministra uma ps-graduao em Gesto de Empreendimentos Criativos. Em ambos os casos, sintomaticamente, as propostas formativas so oferecidas na Faculdade de Cincias Econmicas.

    4 A elaborao de planos estratgicos baseados na matriz SWOT (Pontos fortes Oportunidades Pontos fracos Ameaas) proliferou na Argentina a partir de meados dos anos noventa em diversas reas. No final da dcada, essa iniciativa se estendeu ao setor cultural, sendo Buenos Aires Cria o primeiro e nico plano desta natureza na cidade. A criatividade aparece tanto no nome do plano como em todas as fases e linhas planejadas, na Fase 1 - 2002-2006 Buenos Aires Cria, Fazer para Ser: linha 1 Buenos Aires Cria Talentos, linha 2 Buenos Aires Cria Produo, linha 3 Buenos Aires Cria Difuso, linha 4 Buenos Aires Cria Identidade; na Fase 2 - 2007-2010 Buenos Aires Cria: Vamos ao Mundo: linha 5 Buenos Aires Crea na Amrica Latina, e linha 6 Buenos Aires Cria no Mundo de Fala Hispnica.

  • sustentvel (BUENOS AIRES CREA, 2001, p. 23). O plano estratgico se orienta preservao e recuperao do patrimnio tangvel e intangvel, captao de talentos e s estratgias de comunicao. A nfase na cria-tividade no se refere ainda ao desenvolvimento de indstrias criativas, mas concebe a criao como o momento prvio produo, e os criadores (simblicos) como agentes diferentes dos produtores (econmicos). Os talentos aos quais se refere o plano no so os inovadores genricos da economia criativa, mas sim artistas e intrpretes entendidos como criadores. Tambm alude s capacidades de todos de imaginar e encarar situaes, focando a criatividade como forma de resoluo diversa e plural da vida, pluralismo que envolve a perspectiva dos direitos culturais proclamados como fundamento das polticas culturais (UNESCO, 1996, 1999, 2000). Buenos Aires Cria sustenta o conceito ento habitual de indstrias culturais, distingue os clssicos ramos da msica, da indstria editorial e do audiovisual e destaca como problemas a concentrao e o peso das empresas transnacionais. Ao mesmo tempo, prope que Buenos Aires deveria ser a vitrine da Argentina e se tornar a capital cultural do MERCOSUL; a cultura poderia ser utilizada como trao distintivo de Buenos Aires e assim projetar esse posicio-namento para dentro e para fora, em uma sintonia de cidade-empresa-exportadora que se afirmaria mais adiante com a representao discursiva da criatividade patrocinada na regio pela UNCTAD.

    Em 2004, o GCABA criou dentro de sua Secretaria de Cultura um Observatrio de Indstrias Culturais com a finalidade de levantar, processar e elaborar informao tanto qualitativa como quantitativa das indstrias locais e produzir insumos para a gesto pblica cultural. Especificamente, comeou questionando sobre livro e publicaes peridicas, fonogramas, cinema e vdeo, rdio, televiso e propaganda, prevendo depois faz-lo sobre indstrias auxiliares e relacionadas. Mas em 2007, com a mudana das autoridades da cidade, o Observatrio de Indstrias Culturais foi transferido ao Ministrio de Desenvolvimento Econmico e reconvertido em Observatrio de Inds-trias Criativas. Nesse movimento se constata o que sustentam Galloway e Dunlop: enquanto tradicionalmente as indstrias culturais - radiodifuso, cinema, publicao, msica gravada - foram incorporadas poltica cultural, nessa nova postura poltica a cultura foi considerada na agenda de poltica econmica das indstrias criativas e no processo seus aspectos distintivos foram ofuscados (2007, p. 19). Isso pode ser apreciado no somente na localizao dada dependncia administrativa, como tambm revisando as orientaes adotadas pela instituio. O site do novo Observatrio assimila as indstrias criativas a diferentes atividades que tm em comum o fato de estarem baseadas no capital intelectual5, fazendo referncia a um objeto em construo e debate sobre o aspecto criativo e o aspecto cultural, sem mencionar possveis descontinuidades ou conflitos, uma tnica que reiterada em sucessivos relatrios (Observatrio de Indstrias Criativas, 2008). Entretanto, no espao de documentao do site se distingue as indstrias culturais das criativas, optando-se decididamente por esta segunda abordagem. Ali so registrados aspectos metodolgicos de suas medies, aludindo ao Marco de Estatsticas Culturais (MEC) da UNESCO (2009) e a enquadramentos relativos a indstrias protegidas por direitos autorais (IPDA), mas est claro que o modelo preferido so os Creative Economy Report da Conferncia das Naes Unidas para o Comr-cio e o Desenvolvimento (UNCTAD 2008, 2010). A abordagem das IPDA pode ser relacionada com a das inds-trias criativas por seu destaque comum dos direitos de propriedade intelectual. Por sua vez, o MEC 2009 invoca claramente outro tipo de perspectivas, pois inclui atividades no sujeitas a esses direitos (cfr. museus) e prticas de participao referentes a direitos culturais entendidos como direitos humanos (cfr. uso de lnguas, conhecimentos). Alm disso, o MEC descarta a tipificao do aspecto criativo, assim como a ampliao do domnio cultural a

    5 Cfr. OBSERVATRIO de Industrias Creativas, El concepto de economa creativa. Disponvel em: http://oic.mdebuenosaires.gov.ar/system/contenido.php?id_cat=69. Acesso em: 20 Jun. 2012.

  • todas as indstrias TIC ou de investigao e desenvolvimento (UNESCO, 2009, p. 18). Tambm expressa preo-cupao pela usual sub-representao estatstica de microempresas e comerciantes individuais, precisamente por sua abundncia no setor (2009, p. 83). Isso mais bem entendido quando so consideradas as exorbitantes fatias de mercado adquiridas pelas majors em detrimento de PMES e empreendedores.

    O sentido das indstrias criativas est mais pontualmente definido pelo Ministrio de Desenvolvimento Econmico do GCABA no site de outro dos seus departamentos, o Centro Metropolitano de Desenho. Estas so indstrias de contedos, que utilizam a criatividade e o capital intelectual como principais insumos. Incluem atividades eco-nmicas que conjugam criao, produo e comercializao de bens e servios. As Indstrias Criativas da Cidade de Buenos Aires contemplam os seguintes setores: msica (gravada e ao vivo); editorial (livros e publicaes pe-ridicas); audiovisual (cinema, vdeo, rdio e televiso); artes cnicas e visuais (teatro,dana, pintura etc.); desenho (grfico, interativo, industrial, moda etc.); software, videogames e internet; arquitetura; propaganda; bibliotecas, arquivos e museus.6. A noo aparece relacionada com aquela difundida pelo Departamento de Cultura, Mdia e Esportes (DCMS) do Reino Unido em 1998. Ali, as indstrias criativas foram definidas como indstrias que tm origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que tm um potencial para gerar riquezas e empregos por meio da gerao e explorao da propriedade intelectual. () isto inclui: propaganda, arquitetura, mercado de artes e antiguidades, artesanatos, desenhos, moda, filme e vdeo, software de prazer interativo, msica, artes cnicas, publicaes, software e servios de computador, televiso e rdio (DCMS, 1998) (JARVIS et al., 2008, p. 2). A insistncia do GCABA em figuras como a economia criativa, as cidades criativas, os distritos criativos, os clusters criativos, inscritas na mesma perspectiva de impulso anglo-saxnico7, refora esse lao e a problemtica de sua assuno que perfila como poltica pblica privilegiada.

    Como aponta Miguez (2007), as indstrias criativas so um objeto definido mais por polticas pblicas com vieses pragmticos nacionais do que por debates acadmicos de fundamento. A enumerao de atividades que fazem parte das indstrias criativas, mais do que permitir uma identificao precisa, evoca o desaguisado da enciclopdia chinesa citada por Borges em O idioma analtico de John Wilkins. O agrupamento acrob-tico da msica e da moda, das artes cnicas e dos videogames, da arquitetura e da internet parece responder a fundamentos de acmulo econmico ou de poder poltico que no esto explcitos. Mesmo se estivessem, responderiam a momentos e a contextos peculiares dificilmente generalizveis e que demandariam especifica-es (SCHLESINGER, 2011). rduo, se no impossvel, imaginar algum tipo de raciocnio para administrar um conjunto to heterclito e, mais ainda, para desenhar, implementar e avaliar uma poltica cultural sistemtica para essas indstrias. Mas tambm no est claro se so indstrias: a dana e os arquivos no so indstrias, os artesanatos so, por definio, o contrrio de uma indstria. Tampouco est claro se so culturais, no mesmo sentido que a pintura e os museus, atividades como a propaganda e o software, a menos que se conceba que tudo cultura e, nesse caso, por que no incluir as massagens corporais, a criao de animais de estimao e os negcios imobilirios que, sem dvida, envolvem criatividade?

    6 Cfr. Centro Metropolitano de Diseo, Industrias Creativas, Qu son las industrias creativas? Disponvel em: http://www.cmd.gob.ar/industrias-creativas/que-son. Acesso em: 20 jun. 2012.

    7 As primeiras concretizaes da abordagem da criatividade em polticas pblicas vm da Austrlia, que lanou o programa Creative Nation, em 1994, para enfrentar a globalizao, reposicionando-se no acordo internacional. Esse prope um novo acordo econmico e social em termos de pacto multicultural, saldando as dvidas com os povos originrios at ento negados, e reunindo tanto os bens e os servios tradicionais, como as indstrias e os meios modernos, para aumentar sua valorizao e suas contribuies para a economia nacional. O aspecto criativo tomou impulso no mbito anglo-saxnico com diferentes conotaes e se expandiu rapidamente por outros pases e entidades internacionais.

  • A referncia criatividade e ao capital intelectual como insumos dessas indstrias resulta de uma vagueza pouco esclarecedora (GALLOWAY; DUNLOP, 2007). A definio britnica tem, ao menos, o mrito de deixar claro que procura gerar e explorar propriedade intelectual, inclusive especificaes posteriores passaram a falar diretamente de copyright. Na definio do GCABA, devido s razes conceituais, as referncias metodolgicas s IPDA e o fato de que o capital envolve propriedade, cabe sustentar que o capital intelectual um subterfgio de proprieda-de intelectual. Mas aqui surge um problema inverso ao apontado no pargrafo anterior, pois ao delimitar as ativida-des s includas nesse tipo de regime, exclui-se a maior parte das prticas culturais. Especialmente se pensarmos na regio latino-americana, onde os registros de patentes ou domnios de internet so particularmente escassos e no admitem comparaes mundiais. Mais ainda se considerarmos que na Argentina predomina um sistema de direito autoral de inspirao europeia continental, que distingue do direito econmico um direito moral, normalmente au-sente no copyright anglo-saxnico, salvo contratos expressos. Este direito de cpia tendeu a proteger o produtor sem fazer o mesmo com o criador, deixando inserido o aspecto intelectual no privilgio do capital (BAYARDO; SPADAFORA, 2001). difcil conceber que uma poltica cultural no considere esses assuntos, mas o que cabe destacar aqui que, alm de invocaes cultura, o que est em jogo no so preocupaes de poltica cultural, mas sim de polticas econmicas e sociais.

    A exportao das indstrias criativas e o desenvolvimento

    Como sustenta Schlesinger no h dvidas de que as ideias viajam. Mas essas no o fazem sem uma determinada bagagem. () No caso do Reino Unido, onde o discurso da criatividade foi elaborado em condies precisas ao longo de um decnio, altamente interessante examinar a questo de sua exportao e transferibilidade (2011, p. 98). Mas alm do patrocnio anglo-saxnico, Buenos Aires adotou a perspectiva das indstrias criativas impulsio-nada na Amrica Latina como iniciativa de desenvolvimento pela UNCTAD. A estrutura terica do Creative Eco-nomy Report 2010 considera a emergncia dos conceitos associados de classe criativa, cidades criativas, clusters criativos, assim como as noes inovadoras mais recentes relacionadas com a economia da experincia, creative commons e ecologia criativa (UNCTAD, 2010, p. 3). O agrupamento de conceitos e noes to diferentes possvel porque se omitem suas especificidades e contradies, enquanto se insiste que as indstrias e a economia criativa contribuem com 7 % do Produto Bruto Mundial. No h referncias s polticas culturais e as menes aos bens e servios culturais, s indstrias culturais e economia cultural aparecem como meras aluses elegantes para consider-las parte de um conjunto proposto fora de discusso. Assim, a categoria criativo se estende alm dos bens e servios culturais definidos acima, para incluir produtos tais como a moda e o software. Estes ltimos podem ser vistos como produtos essencialmente comerciais, mas sua produo envolve algum nvel de criativida-de (UNCTAD, 2010, p.5). Para a UNCTAD, o que unifica as criatividades artstica, cientfica e econmica que elas envolvem criatividade tecnolgica. Por ltimo, define a criatividade como o processo pelo qual as ideias so geradas, conectadas e transformadas em coisas que tm valor. Por isso, a abordagem da UNCTAD das indstrias criativas reside em expandir o conceito de criatividade desde atividades que tm forte componente artstico at qualquer atividade econmica que produz produtos simblicos com uma pesada dependncia de propriedade intelectual e para um mercado o mais amplo possvel (UNCTAD, 2010, p.7).

    Como se manifesta na Declarao Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural (2001) e na Conveno

  • sobre a Proteo e Promoo da Diversidade das Expresses Culturais (UNESCO, 2005a), nos ltimos anos as po-lticas culturais conceitualizaram os bens e servios culturais como mercadorias diferentes das demais enquanto por-tadoras de identidades, valores e significados que vo alm do seu valor comercial. Alm disso, questionaram o mer-cado como atribuidor de recursos e benefcios, apontando os desequilbrios entre os pases ricos e os pases pobres. Nada disso se vislumbra na retrica propagandstica de comrcio, propriedade intelectual e mercado da UNCTAD. Se havia alguma dvida sobre o carter promocional, essa acaba por ser esclarecida examinando sua abordagem das medies estatsticas. J foi dito mais acima que s foradamente se pode relacionar o MEC 2009 da UNESCO com a metodologia da UNCTAD. Mas esta insiste em desvanecer as discrepncias sustentando que a classificao da UNESCO melhor ao capturar a experincia dos pases do Norte global, enquanto que a UNCTAD reflete melhor as oportunidades para os pases no Sul. () Comparativamente, a classificao da UNCTAD enfatiza a criatividade no descoberta do Sul global, fornecendo elementos para identificar potencialidades (UNCTAD, 2010, p.111). As estatsticas medem fenmenos observveis, baseiam-se em definies discretas para evitar registros duplicados e assinalam distribuies rigorosas e verificveis. A criatividade no descoberta, as oportunidades e as potencialidades fazem parte de operaes especulativas de uma ordem fora de enquadramentos cientficos contrastveis.

    Tambm no se verifica que a UNCTAD reflita melhor o Sul: dos vinte e oito grupos de produtos que inclui em seu sistema, somente oito so assimilveis aos registrados nas nomenclaturas do MERCOSUL, apenas um quarto do total8. Essa regio segue a proposta metodolgica do Convnio Andrs Bello (CAB) para a implementao de contas satlite de cultura9 na Amrica Latina, considerando como produtos culturais caractersticos aqueles cuja razo de ser consiste em criar, expressar, interpretar, conservar e transmitir contedos simblicos (2009, p. 61)10. Conforme sustenta o CAB, existe a dificuldade de que a classificao internacional de produtos () ainda agregada demais para permitir uma identificao detalhada dos produtos culturais (2009, p. 62). No mbito do MERCOSUL, vm sendo realizados alguns avanos no tocante a medies do setor cultural, embora valha desta-car que essas no se nutrem da noo de economia ou de indstrias criativas. As medies se encontram em fases primrias, os dados so parciais, fragmentados, descontnuos, o que deveria induzir as organizaes internacionais a consider-los com extrema cautela. As prprias autoridades nacionais advertem que, mesmo em grupos de ati-vidades selecionadas, os pases no contam com a informao necessria (SECRETARIA DE CULTURA DA NAO, 2006, p. 9) para transcender nveis exploratrios. Em outros casos para a Amrica do Sul, os nveis de desagregao dos dados disponveis chegam a seis dgitos sobre os doze alcanados pelo nomenclador, o que im-pede a diferenciao entre produtos culturais e no culturais (SECRETARIA DE CULTURA DA NAO, 2008, p. 17). Analisando o comrcio mundial de bens culturais, a UNESCO esclarece que utiliza o sistema HS 199211 pela falta de atualizao do sistema, especialmente nos pases em desenvolvimento (2005b, p. 54), e pelas distores do auge de transaes intra-empresas transnacionais que no contam como exportaes para as alfndegas.

    8 Cfr. UNCTAD 2010, Tabela 4.1 Comparative analysis of statistical methodologies for international trade of creative/cultural goods. Vale assinalar que as referncias ao MERCOSUL so as nicas feitas a pases do sul, os outros includos so Reino Unido, Itlia e Finlndia. Nota-se que, alm disso, o quadro rene, sem distines, bens criativos e culturais, o que aumenta as possibilidades de que os dados no sejam consistentes.

    9 As Contas Satlite de Cultura so contas implementadas para agrupar dados de reas especficas da economia (cfr. turismo, cultura como nesse caso) com base no Sistema de Contas Nacionais de 1993, das Naes Unidas. Embora as polticas macroeconmicas utilizem grandes nmeros, tambm preciso desagregar as cifras consolidadas para gerir setores particulares e pouco conhecidos, por isso se formula esse tipo de contas satlite.

    10 Esta noo de razo de ser pode ser assimilada concepo de Galloway e Dunlop (2007) no tocante a que os produtos culturais so de uma natureza simblica, artstica, esttica que influencia em como entendemos a sociedade e que tm seu valor de uso primrio na comunicao de ideias, mais do que em um valor funcional, diferentemente, por exemplo, da moda ou da propaganda.

    11 A sigla HS se refere a Harmonised System Commodity Description and Coding System, da Organizao Mundial de Alfndegas.

  • Em contraste com as expectativas salvficas da UNCTAD, os dados mostram um panorama pouco animador: em 2002, a Amrica Latina e o Caribe participavam com 3 % das exportaes mundiais de bens culturais, e com 3,6 % das importaes12. No domnio do copyright, os dados so inclusive mais sombrios, somente 2,5% do total, o que leva a UNESCO a considerar essas contribuies como insignificantes (2005b, p.51)13. Mas a UNCTAD no se pergunta por essas assimetrias nem por seus fundamentos, exalta as oportunidades e prope medidas audaciosas e inovadoras que ajudem a transformar as reservas no exploradas de talento e capacidades criativas existentes nos pases em desenvolvimento em oportunidades reais de renda, emprego e comrcio14. Para isso, coloca como exemplo como os ritmos africanos influenciaram na criao da msica rock, confundindo o tradicional, coletivo e gratuito com a inovao individual retribuda por regalias. Tambm menciona o programa de desenho de objetos Fazer Brasil, cuja ideia de que os artistas renunciem s obras nicas e aceitem a reproduo de aproxima-damente 50 unidades, nas quais pelo menos algumas partes possam ser elaboradas por bons carpinteiros15. consistente com o discurso perverso das reservas no exploradas de talento nos pases em desenvolvimento que a rplica seja o testemunho das capacidades criativas, e que uma economia do brinde dos artistas sustente a eco-nomia de mercado da propriedade intelectual.

    Buenos Aires criativa

    Vrios projetos recentes do governo local se orientam a configurar Buenos Aires como cidade criativa e a poten-cializar as indstrias criativas: o Distrito Tecnolgico, o Distrito Audiovisual e um planejado Distrito de Desenho. O primeiro est orientado s empresas de informticas e ao desenvolvimento de software e hardware; o segundo s indstrias do cinema, da propaganda, dos meios audiovisuais, atividades relacionadas como a atuao e o de-senho; o terceiro se dirige ao desenho, s artes e s antiguidades. Cada um e seu conjunto se referem noo de indstrias criativas desenvolvida anteriormente. Enquanto em Distrito de Desenho so explicitamente promovidas as indstrias criativas e o empreendedorismo a partir Centro Metropolitano de Desenho, os cartazes do Distrito Audiovisual pregam: Juntar-se produz coisas criativas. Concentramos talento em Palermo, Chacarita, Colegiales e La Paternal. O antigo mercado El Dorrego, sede do futuro Centro Metropolitano do Audiovisual, j aloja um Centro de Atendimento ao Investidor e distribui o Guia Investir em Buenos Aires, confeccionado com a coope-rao do British Council. Sob a gigantesca cobertura que ocupa todo o quarteiro vazio, com exceo de alguns pequenos escritrios de tijolos e de um grande toldo de lona, o prdio parece descuidado. Na cerca perimetral de grade se apoiam moradias de plstico e papelo de vrias famlias indigentes, assim como barracas precrias de

    12 Em contraste, as exportaes chegavam Europa a 58% e Amrica do Norte a 16,9%, enquanto as importaes a 47,5% e a 30,1 %, respectivamente, do total mundial (UNESCO 2005b, p. 21-22).

    13 Na Argentina, durante as ltimas dcadas, esteve em disputa a questo da propriedade intelectual e industrial, especialmente em torno da nova lei de patentes aprovada em 1996, a pirataria de mercadorias e de marcas, o patenteamento de organismos geneticamente modificados, as emissoras de rdio clandestinas, as fotocpias e a cpia de msica e filmes, o download e a difuso de contedos da internet. Merecem destaque as campanhas protecionistas realizadas por empresas e entidades como a Sociedade Argentina de Autores e Compositores de Msica (SADAIC) e a Associao Argentina de Intrpretes Cmara Argentina de Produtores de Fonogramas e Videogramas (AADI-CAPIF). Por outro lado, existem iniciativas favorveis ao software e cultura livre, e/ou contrrias privatizao da vida e do conhecimento, como Software Livre Argentina (SOLAR), a Fundao Via Livre e diversos movimentos indgenas e rurais. Trata-se de um amplo leque que usualmente se refere a vinculaes globais e inclui desde perspectivas tcnicas at propostas alternativas de ps-desenvolvimento ou outro desenvolvimento.

    14 Cfr. material de difuso do Frum Enhancing the Creative Economy: Shaping an International Centre on Creative Industries, Salvador da Bahia, Brasil, 18 20 abril 2005.

    15 Cfr. ECONOMIA: Creatividad, industria libre de polucin, por Mario Osava, Inter Press Service News Agency. Disponvel em: http://www.ipsnoticias.net/print.asp?idnews=33627. Acesso em: 14 maio 2005.

  • comidas baratas para trabalhadores que circulam por essa zona, onde juntar-se produz coisas criativas. A deriva das indstrias em direo s coisas criativas promove uma dissoluo aguda da criatividade que antecipa sua utilizao para quaisquer fins, nesse caso abertamente imobilirios16. Trata-se tambm de uma desierarquizao do criativo (antes associado a excepcionalidades) em direo a uma democratizao frgil e populista, moda dos programas televisivos que descobrem dolos e talentos ao mesmo tempo em que realizam ganhos a baixo custo17. O juntar-se voluntrio se conjuga com um concentramos, cujo plural esconde que a proviso criativa decidida pelo GCABA em benefcio de grandes empresas.

    O desenvolvimento dos trs distritos mencionados acima faz parte de uma projeo mais geral de lanamento de distritos globais na cidade, sob o entendimento de que esse modelo funciona muito positivamente nas principais cidades do mundo e queremos replic-lo em Buenos Aires porque est economicamente comprovado que atrai investimentos, desenvolvimentos de novos negcios e melhor posicionamento internacional18. Afirma-se que um setor que gera emprego, exportaes e reconhecimento internacional requer esse tipo de estmulo para aumentar o seu desenvolvimento econmico em mdio prazo, j que grandes produes esto selecionando outros destinos para a promoo desse setor por parte do Estado, como o Uruguai, o Chile, a frica do Sul, a Austrlia, entre ou-tros. No est claro que os creative clusters constituam um modelo triunfante e replicvel sem condicionamentos (PANOS, 2004), tambm no est comprovado economicamente o sucesso das indstrias criativas como se disse antes, nem seu efeito sobre a regenerao urbana (JARVIS et al., 2008). O que contundente a determi-nao das autoridades de seguir esse rumo, dando subsdios pblicos nessas reas (pela via de isenes de impos-tos e outros benefcios fiscais) a iniciativas privadas que so anteriores s polticas e envolvem empresas de grande porte. A nfase no posicionamento e reconhecimento internacionais e nas estratgias de internacionalizao so consistentes com uma longa srie relacionada ao tpico recorrente da liderana portenha incitada no contexto de globalizao. Tambm notvel que se aspire a grandes produes e que sejam elaboradas polticas de estado em concorrncia com outros pases, mais do que em atendimento s prprias populaes.

    O Guia Investir em Buenos Aires19 afirma que essa uma cidade vital e cosmopolita reconhecida internacional-mente por sua qualidade de vida, apontando que, conforme o estudo para 2010 da consultora Mercer, ocupa o melhor lugar dentro da regio ao se situar no posto 78 sobre 221 cidades (Gua Invertir en Buenos Aires, s/f:21). Apresenta a cidade como capital cultural da Amrica do Sul e como usina de conhecimento, resumindo dados sobre educao, sade e mobilidade urbana. Tambm descreve atraes entre as quais contabiliza a quantidade de convenes, festivais, exibies, museus, cinemas, teatros, restaurantes e bares. Fazendo uma resenha das van-tagens dos custos operacionais na cidade, o texto afirma que Buenos Aires conta com uma ampla mo de obra qualificada, cujas remuneraes se encontram entre as mais baixas da Amrica Latina e so ainda mais baixas se

    16 Nos arredores, Palermo Hollywood inaugura novos edifcios com facilidades em torno s grandes produtoras audiovisuais, lojas de desenho, negcios gourmet, o Mercado das Pulgas e circuitos tursticos de arte urbana. Os preos de terras e propriedades do que havia sido Colegiales se multiplicaram com sua internacionalizao.

    17 Mencionemos programas do tipo American Idol, X Factor, La Voz, Bailando por un Sueo, Cantando por un Sueo.

    18 Assinalado na apresentao do Ministro de Desenvolvimento Econmico perante a Legislatura da Cidade do respectivo projeto de lei. Cfr. Industria Audiovisual / Buenos Aires Ciudad Audiovisual. Apresentao perante a Comisso de Desenvolvimento Econmico da Legislatura de 10 de dezembro de 2010. Disponvel em: http://audiovisual.mdebuenosaires.gov.ar/system. Acesso em: 11 jun. 2012.

    19 Os dados incluem cifras (extenso, populao, PIB, importaes, exportaes, custos operacionais, alugueis, salrios) e informaes qualitativas (legislao, sistema impositivo, empresas, universidades, oferta cultural). O folder no tem data, rene dados especialmente dos anos 2008 e 2009 e algumas informaes para 2010, que permitiriam dat-lo para este ano ou 2011). Disponvel em: http://cai.mdebuenosairs.gov.ar/contenido/objetos/manualbsas_1294843744763221.pdf. Acesso em: 11 jun. 2012.

  • comparadas com as de outros centros urbanos do mundo (Gua Invertir en Buenos Aires, s/f:19). Um quadro com-parativo expressa em dlares nominais e em porcentagens as diferenas salariais com So Paulo, Toronto e Madri, que retribuem entre 150% e 500% a mais. Das vinte e uma ocupaes registradas, a maioria corresponde a exe-cutivos (diretores gerais, diretores de rea e gerentes) e a profissionais (contadores, advogados, arquitetos, enge-nheiros), e somente trs se referem a posies menores (administrativos, assistentes e data entry)20. Sem dvida, o objetivo do guia mais a captao de investimentos e de inovadores internacionais, do que locais, mas a recepo parece ser pouco atrativa para a fora de trabalho supostamente globalizada e qualificada. Em um mundo fluido e interconectado parece rentvel levar capitais a locais com remuneraes declaradamente baixas. Mas qual seria o atrativo de se mudar para pessoas cosmopolitas em condies de expandir criatividade no trabalho em diferentes localizaes21? Sendo esse o estatuto e a retribuio de diretores e profissionais do talento internacionalizado, que so bem-vindos em distritos globais como o Audiovisual, o Tecnolgico e o de Desenho, o que esperar do pessoal menos preparado? Qual qualidade de emprego seria promovida para a populao local? Quais abrangncias po-deriam ter de fato a pretendida incluso social de certos setores da populao e a revitalizao urbana?

    Para terminar

    Alm do funcionalismo da cidade, outros atores se uniram promessa felicista da criatividade, incluindo profissio-nais, consultores e acadmicos. Referindo-se criticamente comunho entre polticas pblicas e estudos culturais nos anos noventa, Gorelik expe que o mal-estar poderia ser enunciado em uma frmula: nunca se falou tanto de imaginrios urbanos ao mesmo tempo em que o horizonte da imaginao urbana nunca esteve to enclausu-rado em sua capacidade projetiva (2004, p. 1). Algo similar poderia ser dito no presente frente ao uso e abuso da criatividade em algumas administraes oficiais e academias, considerando, alm disso, que essa doutrina estaria entrando em decadncia no prprio Reino Unido, um dos locais originrios (SCHLESINGER, 2011). A insistncia reiterada sobre a excepcionalidade criativa de Buenos Aires s aumenta a fora imitativa do slogan e sua falta de originalidade. A menos que por criatividade se entenda uma melhor explorao da cpia, como propunha Trem-blay (2011) para a China, a aposta na criatividade do GCABA pouco criativa. Da a importncia de debater o auge das indstrias criativas praticamente transformado em uma nova religio (BUSTAMANTE, 2011, p. 150) que cumpre um propsito retrico especfico no discurso destinado s polticas pblicas. Serve como slogan, como referncia rpida e, por isso, mobiliza irreflexivamente um conjunto de posies polticas e tericas que o apoiam. Esta falta de reflexo essencial para alcanar o seu poder ideolgico (GARNHAM, 2011, p. 22).

    Por sua familiaridade, pelas evocaes artsticas e seus vnculos destacados com as indstrias culturais, as indstrias criativas aparentam envolver polticas culturais, porm diluem os contornos emanados de seu fundamento nos di-reitos culturais e na realizao da cidadania. As indstrias criativas se incluem, quando no desaparecem as polticas culturais, sob polticas econmicas e sociais orientadas a gerar investimentos, renda, comrcio externo, emprego e empreendedorismo. O esforo cooperativo que aglutinariam essas indstrias nas agendas das administraes

    20 Tambm apontam para os setores sociais mais acomodados s opes esportivas de destaque, entre as quais se mencionam o golfe, a equitao e a nutica.

    21 Os baixos salrios relativos esto relacionados taxa de cmbio do dlar, porm, como mostram as ltimas crises, as instabilidades de moedas e taxas podem ser rentveis para capitais volteis, mas no para trabalhos em prazos mdios e longos.

  • pblicas parece resolver uma antiga preocupao com a transversalidade do setor cultural e a necessidade de uma abordagem intersetorial produtiva. Mas trata-se de uma intersetorialidade orientada por uma perspectiva de cul-tura como economia rasa, sem considerao por suas especificidades e sem interesse por valores simblicos que so visivelmente concebidos como colaterais. A democracia da criatividade genrica lembra um tudo cultura problemtico por suas indefinies e pelas dificuldades para projetar polticas e desenvolver gesto. Poderamos acreditar que implica em um reconhecimento de potencialidades e de realizaes plurais, muitas vezes ocludas em prol da consagrao exclusiva de algumas prticas (artsticas), qualidades (excelncia) e obras (mestras) associadas a grupos privilegiados. Mas a mira aponta mais alto e seu objetivo est precisamente delimitado por suas capacidades de motorizar mercados e promover copyright, assim como por sua funo poltica de articular confusamente em torno da propriedade intelectual os interesses das majors com os de PMES e empreendedores culturais, de artistas e pblicos. Na economia criativa assim proposta, os criadores se transformam em provedores de contedos para as majors e o marketing urbano, enquanto os pblicos so magicamente transfigurados em talentos, provedores de cor local ou provedores locais de hospitalidade para turistas e investidores, sem o devido cuidado com as prticas culturais e a condio cidad.

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  • MEGAEVENTOS E POLTICAS CULTURAIS

    Mauricio Siqueira1

    Clarissa Semensato2

    As reflexes aqui apresentadas derivam dos desdobramentos de nosso projeto de pesquisa intitulado Economia criativa: formas caractersticas de trabalho e suas tendncias na economia brasileira, desenvolvido na Fundao Casa de Rui Barbosa.

    O tema dos megaeventos, relacionado economia criativa e cidades criativas, impe-se como pauta obrigatria para aqueles que, como ns, esto voltados para questes de polticas culturais no Brasil. Isso se deve no apenas relevncia assumida pelos processos sociais, urbanos e culturais a envolvidos, como tambm pelo envolvimento do prprio Ministrio da Cultura do Brasil e de rgos de gesto cultural locais nesses eventos. Referimo-nos, por exem-plo, Copa do Mundo de Futebol, s Olimpadas, Rio +20, entre outros previstos para os prximos anos no Brasil.

    Desde 2009, ano em que as cidades-sede foram eleitas para sediar a Copa e ano em que a cidade do Rio de Janeiro foi eleita para sediar as Olimpadas, passaram a haver intensas intervenes urbansticas e investimentos vultosos para fornecer a infraestrutura adequada aos eventos. O fenmeno insere-se em uma tendncia mundial de utilizar os megaeventos como recurso para potencializar a imagem da cidade e se lanar com mais fora no mercado competitivo global. (HARVEY, 2005; VAINER, 2000)

    De incio, cabe observar que o objeto de nossa ateno tem sido submetido a severas crticas por parte de seg-mentos acadmicos e movimentos sociais aqui e no exterior. As crticas se do principalmente no que tange concentrao dos benefcios em uma parcela privilegiada da sociedade, seja uma elite empresarial, seja atravs da concentrao espacial do legado. No Brasil, movimentos como o Comit Popular da Copa denunciam casos de violao dos direitos moradia, irregularidades trabalhistas, impedimento participao social, falta de transparn-cia nas prestaes de contas, ineficincia do transporte pblico, dentre outras3 (DOSSI, 2011).

    Variadas so as temticas que cabem ser observadas num processo que interfere demasiadamente na dinmica de uma cidade. No entanto, nota-se que poucos so os estudos que focam os aspectos culturais e as propostas culturais embutidas nesses projetos de eventos. Entre esses, consideramos uma referncia importante o trabalho de Barbara Szaniecki e Gerardo Silva, Dois projetos para uma cidade do conhecimento (Szaniecki e Silva, 2010).

    1 Socilogo do Setor de Pesquisa em Poltica e Culturas Comparadas, da Fundao Casa de Rui Barbosa.

    2 Mestre em Polticas Sociais, bolsista da Fundao Casa de Rui Barbosa e professora do curso de Produo Cultural da Universidade Federal Fluminense.

    3 Outras crticas tambm dizem respeito ao gasto excessivo do investimento em infraestrutura. Os relatrios do TCU apontam para acrscimos nos gastos previstos e atraso em algumas obras. Os estdios, por exemplo, j ultrapassam em 2,5 milhes de reais o preo da estimativa inicial. Aponta-se tambm a subutilizao de estdios em momento posterior Copa; e, em algumas cidades, o risco da rentabilidade futura no cobrir os gastos com a manuteno grande (TCU, 2011).

  • Nossa ateno est voltada para o caso emblemtico do municpio do Rio de Janeiro e para as polticas municipais relacionadas a esses megaeventos. Interessam-nos, em particular, e sobre isso focamos no presente trabalho, as concepes, os discursos que justificam e fundamentam as intervenes em pauta nessa cidade. Embora no cai-ba nos limites deste artigo, convm lembrar que imprescindvel levar em considerao as experincias de outras cidades no exterior que passaram por essas experincias, notadamente no que se refere aos aspectos culturais. Casos como os de Sydney (2000), Pequim (2008), frica do Sul (2010) e, principalmente, Barcelona (1992), so marcantes no que diz respeito utilizao do megaevento para promoo da imagem e nas intervenes sociais internas (GREENE, 2003; RAEDER, 2009).

    O fato que em funo desses eventos e com base num discurso de economia criativa e cidade criativa esto sendo executadas intervenes radicais no planejamento urbano e no campo da cultura no Rio de Janeiro, como o caso da regio em torno do Porto, por exemplo.

    Sob o discurso de fomento economia criativa, o governo municipal investe em setores estabelecidos como prio-ritrios (moda, design, audiovisual) e majoritariamente em aes que favoream ao turismo, como a implantao do Museu do Amanh, Museu de Arte do Rio e o apoio a eventos globais como Rock in Rio, Arte Rio, Rio + 20, a Copa 2014 e o Rio Olmpico4. As aes que envolvem cultura se resumem principalmente revitalizao do espao com intervenes arquitetnicas e de design atravs de clusters culturais, afinal o patrimnio cultural uma rea estratgica para a inovao e a criatividade5.

    Nesse contexto, duas questes emergem como bsicas para nossos estudos:

    1) em que medida a Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e o Ministrio da Cultura esto partici-pando desse processo?

    2) em que medida os projetos dos megaeventos levam em considerao os atores culturais j presentes na cidade, como no caso dos Pontos de Cultura?

    Aqui, conveniente notar que a concepo de revitalizao, em muitos casos, baseia-se na ausncia, na carncia e na no considerao da potncia do presente, do j existente. Da o descaso pelos movimentos culturais exis-tentes. Alm disso, o vocabulrio que vai se consagrando entre os gestores desses megaprojetos reflete bem a concepo utilitarista e mercantil das respectivas polticas. Fala-se em clusters culturais ou clusters criativos; players no lugar de sujeitos ou atores sociais etc. No demais ressaltar que entre os sujeitos (e no players) dessas intervenes urbansticas encontram-se no s o Estado, mas tambm o capital imobilirio, o capital de turismo, o capital de servios e capital cultural; mas, principalmente, os habitantes das cidades impactadas, os movimentos sociais, os pontos de cultura, entre outros.

    4 Mario Borghini, na ocasio do I Seminrio Internacional sobre Economia Criativa, na Fundao Getlio Vargas em setembro de 2011. representante da Diretoria de Desenvolvimento Econmico-Estratgico do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos, cujo objetivo articular projetos de fomento de atividades econmicas estratgicas e de implantao de um ambiente favorvel aos negcios na cidade do Rio de Janeiro, especialmente nos setores de Energia, Indstria Criativa e Tecnologia de Informao e Comunicao.

    5 Apresentao das aes por Washington Fajardo, subsecretrio de patrimnio cultural, interveno urbana, arquitetura e design da Prefeitura do Rio de Janeiro, na ocasio do I Seminrio Internacional sobre Economia Criativa, na Fundao Getlio Vargas em setembro de 2011.

  • Parece-nos consensual o entendimento de que as intervenes urbansticas radicais em questo mudam a carto-grafia cultural da cidade (migraes entre bairros, remoes, choque de ordem etc.), j que impossvel separar cidade e cultura.

    A pretenso de uma interveno radical na cidade pode ser ilustrada com artigo assinado pelo atual Prefeito Eduardo Paes e pelo Subsecretrio Municipal de Patrimnio Cultural, Interveno urbana, Arquitetura e Design, Washington Fajardo, os quais se atribuem o dom de determinar as verdadeiras demandas das comunidades (PAES e FAJARDO, 2012, p. 7):

    ARQUITETURA NMADE o fim da cidade partida. (...)

    O que estamos propondo em termos de legado um conceito totalmente novo, que acreditamos ser revolucionrio, e

    cria um novo paradigma para a prpria mecnica de produo das Olimpadas a Arquitetura Nmade. Inteligncia

    carioca pura. (...)

    E se fosse possvel fazer com que os prdios andassem, mudassem de formato ou de lugar? Ento o veldromo do

    Parque Olmpico, na Barra, poderia se transformar em um Ginsio Experimental Carioca, em Anchieta. O complexo de

    tnis poderia virar uma biblioteca na Mar. A arena de lutas poderia se transmutar em um teatro na Regio Porturia.

    Isso exatamente o que estamos propondo e queremos fazer. A cidade vai investir em novos prdios para eventual

    uso esportivo que, passada a utilidade olmpica, vo se reposicionar na cidade e ter sua finalidade convertida em algo

    que agregue valor e seja realmente til ao dia a dia e vida do carioca.(...)

    Esta que estou chamando de Arquitetura Nmade busca conexes mais sinrgicas com o futuro e com as verdadeiras

    demandas das comunidades (FAJARDO e PAES, 2012)

    No que se refere contextualizao histrica desses empreendimentos e concepes de cidade, convm lembrar que a poca em que vivemos, principalmente naquilo que diz respeito s caractersticas do trabalho no capitalismo contemporneo, marcada por formas ps-fordistas de produo e realizao da riqueza e por um capitalismo que pode ser denominado de capitalismo cognitivo, para o qual o trabalho imaterial, os servios e as formas de consumo so referncias decisivas. Tais caractersticas tambm marcam decisivamente as cidades, principalmente as metrpoles, onde os respectivos governos tornam-se cada vez mais competitivos para se inserir nas condies atuais do mercado mundial ps-fordista, criando para isso concepes tais como economia criativa e cidades cria-tivas como estratgias de adequao ao mercado mundial.

    As recentes iniciativas de trazer megaeventos para o Brasil inserem-se nesse contexto e no so novidades por aqui. H muito que governos anteriores tentam trazer esse tipo de evento para o Brasil. No Rio de Janeiro, esse objetivo foi fortemente buscado no governo de Csar Maia, declaradamente inspirado no modelo de Barcelona (HERCE, 2010).

    Um exemplo interessante e atual candidatura e escolha do Rio de Janeiro, em novembro de 2010, como distrito criativo para sediar o Frum Mundial de Criatividade de 2012:

  • Cidade a primeira da Amrica Latina a fazer parte da rede de Distritos Criativos do mundoOKLAHOMA CITY - A cidade do Rio de Janeiro foi escolhida sede da edio de 2012 do Creativity World Forum

    (Frum Mundial de Criatividade) - o maior encontro do planeta sobre a chamada economia criativa, que rene os

    setores de design, moda, audiovisual, games, softwares e arquitetura. (LISBOA, 2010)

    O ento e atual Prefeito do Rio de Janeiro, que foi pessoalmente defender a candidatura carioca, declarou:

    Os representantes do Frum ficaram muito impressionados com os nossos projetos de reinveno de reas urbanas,

    como o Porto e a Lapa. O Rio de Janeiro tem at as Olimpadas uma agenda incrvel com grandes eventos e muitas

    mudanas. E esse bom momento e todas as transformaes que a cidade j vive passam sem dvida pela criatividade

    afirmou o prefeito. (LISBOA, 2010).

    A opo estratgica de inserir a cidade do Rio de janeiro em condies de competitividade no mercado mundial pode ser assim ilustrada:

    O calendrio de intervenes assume assim um duplo papel, acenando ao mesmo tempo para melhorias sociais e

    promoo comercial, funes que se sobrepem no discurso da prefeitura do Rio de Janeiro. O Rio est disputando

    um mercado internacional, em que as cidades buscam se posicionar em relao quilo que o mundo imagina hoje como

    o melhor futuro para o arranjo metropolitano urbano afirma o presidente do Instituto Pereira Passos, o economista

    Ricardo Henriques. Nesse contexto, esses eventos tm um efeito de acelerar o desenvolvimento de dois pontos

    fundamentais. A integrao e reduo da desigualdade, por um lado, e por outro a explorao de um dos principais

    capitais econmicos da cidade: sua beleza, a dimenso natural. (CONDE, 2011, p. 2).

    Outro aspecto importante dessa estratgia o fato de que sua elaborao e execuo so patrocinadas por um conjunto de foras que inclui os governos federal, estadual e municipal. O governo federal, inclusive o Mi-nistrio da Cultura, tem incentivado esses megaeventos, em que pesem as crticas de urbanistas renomados do prprio Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados, crticas de movimentos sociais e de rgos de defesa dos direitos humanos. Por exemplo, na prpria ONU neste ano:

    ONU questiona Brasil sobre grandes obrasA poltica do Brasil para grandes obras de infraestrutura foi um dos principais temas da sabatina a que o pas foi

    submetido ontem pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. O pas foi questionado pelas remoes

    foradas de populaes de terrenos que daro lugar a obras da Copa de 2014 e da Olimpada de 2016.

    Para grandes obras de forma geral (como as do PAC, embora o programa no tenha sido citado especificamente),

    houve cobrana por dilogo com populaes locais afetadas. Foi a segunda participao do pas na Reviso Peridica

    Universal da ONU, que avalia questes de direitos humanos a cada quatro anos. (...) No ano passado, o Brasil foi

    repreendido pela Comisso Interamericana de Direitos Humanos pela construo da usina de Belo Monte, no Par,

    em razo do impacto em comunidades indgenas. Em uma de suas manifestaes, a ministra Maria do Rosrio (Direitos

    Humanos), chefe da delegao do pas, afirmou que o Brasil ter respeito aos direitos humanos nos grandes eventos

  • e que est orgulhoso por receb-los e por contar com a confiana internacional (RUSSO, 2012).

    Convm ressalvar que a composio de foras polticas no atual governo municipal do Rio de Janeiro reflete aque-la no governo federal, estando sujeita a conflitos internos e externos similares. Alm disso, em geral, os processos aqui abordados no so retilneos e uniformes; so tpicos de um capitalismo cognitivo, sua mobilidade, fluidez, fle-xibilidade e rapidez. Sob essa tica, fica mais fcil entender a coexistncia entre intervenes urbanas de corte au-toritrio e socialmente excludente e aes e discursos de preocupao com a cultura e com o patrimnio cultural.

    Nesse contexto, algumas aes positivas da Prefeitura do Rio de Janeiro devem-se, em grande medida, resistncia das populaes afetadas pelas respectivas polticas municipais. Por exemplo, o caso da antiga fbrica da Behring que, como se sabe, foi finalmente desapropriada pela Prefeitura, aps mobilizao de artistas que j usavam o local:

    Para o professor Orlando Santos Jnior, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano Regional (Ippur), rgo

    ligado UFRJ, os artistas so compatveis com o processo de revitalizao da rea.

    H 500 famlias na Zona Porturia que devem ser removidas, segundo a prefeitura. Bastava a elas um decreto,

    como o da Bhering. O que ocorre que os artistas se alinham ao projeto de urbanizao, no significam ativo de

    desvalorizao, como as populaes locais. Pelo contrrio, podem at valorizar o espao diz ele, que coordenador

    da rede nacional Observatrio das Metrpoles. Mas pode ser que a Bhering sirva como resistncia nesse projeto de

    gentrificao, de elitizao da cidade. (FURLANETO, 2012).

    Ainda a esse respeito, vale lembrar que, ao incio da primeira gesto do Prefeito Eduardo Paes, o choque de ordem tentou impedir artistas de rua e que isso s foi interrompido em funo de protestos de vrios segmentos da populao carioca.

    A conjugao de foras e polticas pblicas para a concretizao de megaeventos no Rio de Janeiro, culminando em todo um planejamento estratgico, fica evidente pelo artigo abaixo, de autoria de Maria Silva Bastos Marques, presidente da Empresa Olmpica Municipal do RJ e de Augusto Ivan Pinheiro, assessor da Presidncia da Empresa Olmpica Municipal do RJ.

    A meta buscada pela Prefeitura a de construir um legado urbano permanente, cujo valor material se aproxime do

    valor do investimento realizado, contribuindo para que o Rio seja reconhecido, na prxima dcada, como a melhor

    cidade do hemisfrio sul para viver, trabalhar e visitar. A vinculao dos compromissos olmpicos ao Plano Diretor de

    Desenvolvimento Sustentvel da Cidade, aprovado pelo prefeito e pelos vereadores em 2009, ao Plano Estratgico

    do Rio, e o alinhamento com outros nveis de governo, foram elementos fundamentais deste processo, pois garantem

    a esses compromissos o lastro poltico-institucional para sua execuo. A vitria em 2009 da candidatura carioca para

    sediar os Jogos deve-se assim, em grande medida, ao compromisso da Prefeitura de realizar projetos estratgicos para

    o desenvolvimento da metrpole, sejam eles materiais ou imateriais. (BASTOS e PINHEIRO, 2012, p. 7)

    Do ponto de vista dos interesses em polticas pblicas de cultura, no que se refere aos seus rgos de gesto, per-cebe-se o lugar subalterno por estes ocupados nas estratgias acima delineadas. Isso se aplica tanto ao Ministrio

  • da Cultura (MinC), como Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. O Ministrio da Cultura, desde a gesto de Gilberto Gil, tem se destacado por posies de vanguarda apesar de breve interregno respaldadas num conceito amplo de cultura e, por isso, no lhe fica bem o papel de mero coadjuvante nas estratgias dos me-gaeventos, conferindo a estes um carter cultural que no corresponde inovadora trajetria do MinC.

    No que se refere ao Ministrio da Cultura, podemos destacar quatro aes:

    1) Agosto de 2011, nos dias 11 e 12, a realizao do Seminrio Megaeventos Esportivos Intercmbio de Expe-rincias Culturais, com os objetivos de: a) conhecer experincias em megaeventos esportivos com mbito na Cultura, reunindo gestores pblicos culturais, representantes do Comit Executivo Copa 2014 e representantes das cidades-sede da Copa 2014; b) contribuir com as diretrizes e aes do Ministrio da Cultura para os processos que envolvem a Copa de 2014.

    2) Outubro de 2011: a assessora especial da ministra e coordenadora do GT Copa MinC, Morgana Eneila, apre-senta Comisso Nacional de Incentivo Cultura (CNIC) as diretrizes e aes do MinC para a Copa de 2014.

    3) Maio de 2012, o MinC anuncia : 8 de maio, teve incio a oficina de planejamento do grupo gestor da Cultura na Copa, realizada pelo Ministrio da Cultura com a participao de representantes das doze cidades-sede. Para organizar as aes e diretrizes que mostraro ao mundo a cultura nacional, o MinC constituiu uma estratgia de compartilhamento das decises em conjunto com os rgos municipais e estaduais de cultura, bem como com os rgos executivos da Copa criados nas cidades-sede.

    4) 15 de junho de 2012: MinC discute preparativos para a Copa. Palestrantes discutiram aes na rea da Cultura durante seminrio Copa e Sustentabilidade, no RJ (no mbito da Rio+20). A coordenadora do GT Copa MinC, Morgana Eneile, ressaltou que a integrao de estratgias culturais entre os estados brasileiros ser um dos legados que o evento deixar ao pas. Ela tambm falou da importncia das Arenas Culturais da Copa. Sero o principal eixo de promoo da cultura brasileira durante os jogos, disse. E lembrou que o MinC lanou edital para selecionar o projeto arquitetnico das arenas, cujo edital est disponvel no site do ministrio.

    Alm disso, interessante lembrar o ttulo de Patrimnio mundial como paisagem cultural outorgado pela UNESCO ao Rio de Janeiro, comentado pela ex-Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, e pelo ex-Presidente do IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, em artigo de responsabilidade de ambos, que explicita a concepo de cidade ento predominante no MinC:

    Preservar para poder avanarA perfeita harmonia entre a paisagem natural e a interveno criativa e precisa do homem, incluindo o uso e as prticas

    em seu espao e suas manifestaes culturais, tornaram o Rio de Janeiro internacionalmente conhecido. Mas no basta

    ser apenas apreciado, esse bem excepcional deve ser compreendido, preservado e, principalmente, compartilhado.

    Foi com esse intuito que o Ministrio da Cultura e o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan),

    associados a parceiros como o governo estadual e a prefeitura do Rio de Janeiro, a Associao de Empreendedores

  • Amigos da Unesco e a Fundao Roberto Marinho, apresentaram Unesco a candidatura Rio de Janeiro: Paisagens

    Cariocas entre a Montanha e o Mar. (ALMEIDA; HOLLANDA, 2012, p. 7).

    No que se refere Prefeitura do RJ, ao se comparar o plano estratgico desse municpio de 2009-2012 com o de 2013- 2016, focando nas polticas culturais municipais, percebe-se uma ampliao do que essa Prefeitura engloba no conceito de indstria criativa; no plano estratgico mais recente j no h uma limitao da indstria criativa a turismo, design e moda, e audiovisual, indicando uma tentativa de encontrar maior preciso acerca desse campo da economia.

    Especificamente em relao cultura, parece haver mudanas entre os planos, constatando-se uma vinculao direta das polticas culturais s intervenes urbansticas em pauta, o que indica uma subalternidade da rea res-ponsvel pela gesto cultural nessa cidade.

    Por fim, preocupa-nos a possibilidade desses megaeventos e outros megaprojetos significarem uma volta aos postulados de grandeza nacional e a uma espcie de desenvolvimentismo, num contexto como bem afirma Luiz Werneck Vianna - quando polticas estratgicas so conduzidas pelo Estado sem anuncia explcita da socie-dade civil e suas instncias de deliberao. A mobilizao de tal repertrio tem ignorado a crtica que lhe foi feita pelos movimentos democrticos e populares, no curso de suas lutas contra o regime autoritrio, consagrada insti-tucionalmente na Carta de 1988, que, ao preservar a instncia do pblico como dimenso estratgica, submeteu-a ao controle democrtico da sociedade. (Werneck Vianna, 2011, p. 43).

    Referncias bibliogrficas

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  • A LGICA DOS MEGAEVENTOS ESPORTIVOS

    Cldice Nbile Diniz1

    O Modelo de Negcio dos Megaeventos

    Os megaeventos so eventos de cultura de massas que se apresentam como fenmeno contemporneo e se destacam pela aura de grandiosidade espetacular com que so propostos. Em sua denominao, est empregado o prefixo mega com o seu sentido original, do radical grego , utilizado para nominar algo grande.

    O morfema mega cria a expectativa de um evento ter milhes de participantes porque, desde 1960, segundo a Wikipdia (2012), associado pelo Sistema Internacional de Unidades representao de um milho de unidades, isto , 106 - o Mega (M). nesse sentido que se o encontra empregado em jogos lotricos, com fins de induzir o consumidor expectativa de ganhos em dinheiro da ordem do milho. Nas ltimas dcadas, com a criao de novos padres de medidas, o termo passou a referenciar novos valores, como na Informtica, na qual o mega informtico vale 2 ou 1.048.576 de unidades. Porm, continua remetendo a algo constitudo de um nmero exagerado de unidades.

    A adjetivao de megaevento busca comunicar aos interessados que ele ser mega, que tem o significado subli-minar de que ir contar com atrativos caractersticos e que ser uma festa memorvel, em que haver compareci-mento macio da populao.

    H muitas definies de megaeventos na literatura recente, destacando-se as levantadas por Tavares (2011), mais prximas do uso atual do termo, que destaca duas delas: uma que define os megaeventos como eventos culturais de larga escala, incluindo eventos comerciais e esportivos, que apresentam carter dramtico, apelo popular de massa e significado internacional. A outra, que a autora cita como sendo de Hall (2006, p. 59 apud Tavares, 2011, p. 17), considera como megaeventos aqueles que apresentam grandiosidade em termos de pblico, mercado alvo, nvel de envolvimento financeiro do setor pblico, efeitos polticos, extenso de cobertura televisiva, construo de instalaes e impacto sobre o sistema econmico e social da sociedade anfitri.

    A partir dessas duas definies, Tavares (2011) ala a megaeventos prototpicos as exposies e feiras internacio-nais, os Jogos Olmpicos e a Copa do Mundo de Futebol, devido s possibilidades que seus organizadores tm de explorar a vasta audincia global que oferecem, articulando com o setor de comunicao e outros os direitos exclusivos de transmisso, direitos de patrocnio e possibilidades amplas de merchandising.

    Essas exigncias levam seu projeto a ser de longo prazo e apresentar-se como um modelo de negcio bem-su-

    1 Engenheira Naval, Doutora em Cincia da Informao (UFRJ) e Mestre em Administrao Pblica, pesquisa perfis profissionais e identidades culturais entre universitrios para melhoria da aprendizagem; eventos culturais e inovaes sociais; e sobre valorao do patrimnio cultural.

  • cedido na ps-contemporaneidade, uma vez que a atual sociedade , ao ver de Debord (1997), a sociedade do espetculo, denominao atualizada por Kellner (2006) para sociedade do infoentretenimento, na qual h uma moldagem da vida poltica e social, de tal maneira que os mecanismos culturais de lazer e consumo tornam-se importantes na economia nacional.

    O Carter Contemporneo dos Megaeventos

    Os megaeventos foram se transformando ao longo do tempo. Uma notvel mudana foi operada pela comercia-lizao dos direitos de transmisso. Cooper-Chen apud Wikipdia (2012) apresenta a Olimpada de Inverno de 1960 como marco do incio do patrocnio corporativo aos megaeventos esportivos. Desde ento, os ganhos com os negcios televisivos de transmisso dos jogos vm aumentando exponencialmente, como pode ser verificado na Figura 1.

  • O International Olympic Committee (IOC) informa em seu site que tem 47% de sua receita formada por contri-buio das transmisses televisivas e apenas 5% resultante da venda de ingressos (International Olympic Com-mittee, 2012). Porm, segundo a publicao Executive Digest (2012), a empresa de consultoria Brand Finance, especializada em avaliao de marcas e outros bens intangveis, avaliou em 3,9 bilhes de dlares o ganho com transmisses, o que corresponde a 2/3 das receitas, representando um acrscimo de 51% em relao aos valores obtidos com as transmisses dos jogos olmpicos de 2008.

    O aumento dos ganhos com as vendas dos direitos televisivos se d devido s inovaes tecnolgicas dos meios de mdia e ao desenvolvimento da tecnologia de megaevento, seduzindo os espectadores com espetculos te-levisivos, o que, em conjunto com outros recursos relacionados ao patrocnio de empresas, situa o megaevento olmpico como um fenmeno da economia neoliberal ou da Nova Economia. Isso tambm ocorre com os outros megaeventos, situando-os como fenmenos da modernidade, que ocorrem com mais frequncia a partir da dca-da de 1970, impulsionados pela globalizao do mundo, o uso intenso da tecnologia e a urbanizao.

    Nos negcios televisivos, segundo Vilches (2006), o valor est relacionado capacidade de gerar servios e pro-dutos a serem oferecidos, atravs dos quais os custos da mdia na criao, edio e difuso de produtos so siste-maticamente reduzidos pela digitalizao.

    Em contraponto imensa rentabilidade resultante da explorao de marcas que so associadas aos megaeventos, esses no negociam valores com as localidades pelo uso de suas imagens, ou se o fazem, no divulgam esse fato. possvel se fazer o clculo do valor de uso de uma imagem, seguindo a lgica dos negcios e de seus construtos de clculos de valor. Ter-se-ia, para um clculo simples, que se considerar o valor dos negcios que ela origina e/ou que se tenha em vista que vir a originar, descontando os custos e impostos. Esse resultado, segundo Vilches (2006), o valor criado pelo negcio, ou seu lucro.

    No se pode deixar de observar que, alm do valor assim obtido, esto sendo desconsiderados os valores criados indiretamente, por produtos e/ou caractersticas de produtos que no so negociadas de forma objetiva, como os relacionados qualidade propiciada a um servio pela populao. Nesse caso, novos valores so criados suces-sivamente pelo intercmbio de bens e servios, gerando vantagens a outros negcios, sem que suas parcelas de contribuio estejam consideradas nas planilhas de clculos.

    A Experincia do Sagrado no Profano

    O aspecto ldico e de encantamento em um megaevento destacado pela mdia e pelas organizaes parceiras nas atividades promocionais, segundo Veloso (2007), que cita Westerbeek, Turner e Ingerson (2001) para explicar a razo dessa ao, afirmando ainda que elas buscam reforar a publicidade dos realizadores, ao jogar estrategica-mente para obter um clima que resulte para o pblico interessado em sentimentos de acrscimos de poder e de realizao. Entretanto, como se apresentar a seguir, h outras razes.

    Os eventos dividem-se, segundo Allen et al. (2002), citado por Veloso (2007), por porte e escala, considerando

  • dois tipos bsicos: o dos megaeventos e o dos eventos de marca, ambos criados por algum centro decisor fora da esfera pblica, grandes dimenses e de carter extraordinrio, de durao limitada e realizao peridica. O que os diferencia o fato de que os eventos de marca so realizados na mesma localidade, como o caso da Oktoberfest, na cidade de Blumenau.

    H tambm eventos que no so projetados, originando-se em pequenos grupos, que se aglutinaram e cresceram, sobretudo ao estenderem a novos interessados a aceitao de que compartilhassem da festa. Nela, os participan-tes sentem um sentimento ocenico de estar junto e imersos no mar de gente, participando em comunho de uma atividade memorvel e festiva.

    Ao longo do tempo, o desejo de estar presente ao encontro festivo vai integrando pessoas de mesma vontade e disposio, o que leva os moradores, as autoridades locais e outros interessados a resolverem os problemas, conflitos e contradies e a superarem as dificuldades, agigantando-se, tendo sua localizao determinada pela localizao especfica da populao que o engrandeceu e dela e nela existem para comungar da euforia.

    Passam a fazer parte do calendrio da localidade, atuando na tessitura da imagem da populao que os geraram, da qual se alimentam e a qual realimentam continuamente, razo de aqui referenci-los por eventos identitrios. Esses so em si patrimnios culturais de suas sociedades, amealhados com a contribuio cultural de geraes e geraes do lugar de sua realizao. o caso do carnaval de rua, no Rio de Janeiro, com milhes de folies.

    A possibilidade de se compartilhar de um espetculo comungando da euforia de tantos o motor que os realiza-dores dos megaeventos acionam para oferec-los s multides, que os procuram, segundo GoldBlatt citado por Veloso (2007), que explica ser a emoo obtida no grande calor humano da multido em jbilo a forma mais eficaz de contrabalanar as influncias da alta tecnologia na vida cotidiana.

    Essa emoo, segundo Contrera e Moro (2008), uma forma de vivenciar a experincia do sagrado, da qual o homem moderno foi afastado pelas mdias que invadiram o seu espao privado, as mesmas que paradoxalmente o levaro experincia do sagrado nos megaeventos. O xtase que o indivduo sente no espetculo, segundo Con-trera e Moro (2008, p. 10), ocasionado pelos meios eletrnicos, que so utilizados para fazer com que milhares de imagens sejam apresentadas em intenso e ininterrupto movimento, em teles gigantescos, associadas msica e a outros recursos como iluminao e efeitos especiais, que o remetem s experincias vividas em rituais religiosos.

    a mesma sensao de vertigem eufrica que surge quando se rodopia at perder-se o equilbrio, ou quando h consumo de bebidas alcolicas ou outras drogas que tm propriedades de fazer o indivduo sair de si, segundo Gastaldo (2002.). Ele explica que as atividades que apresentam essas propriedades foram classificadas de ilin