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POLOP e MIR: perspectivas radicais da esquerda latino americana Nashla Dahás Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da UFRJ "(...) E nada basta, / nada é de natureza assim tão casta // que não macule ou perca sua essência / ao contato furioso da existência. // Nem existir é mais que um exercício / de pesquisar de vida um vago indício, // a provar a nós mesmos que, vivendo, / estamos para doer, estamos doendo". (Carlos Drummond de Andrade, "Relógio do Rosário") “Democratas do Brasil, não desconfiem das gloriosas Forças Armadas de nossa pátria”, dizia Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, para a multidão que marchava em São Paulo “Com Deus pela Liberdade” dias antes do golpe civil militar de 31 de março de 1964. Naquele primeiro de abril, quando militares e seus tanques avançaram sobre as principais cidades brasileiras, foram saudados por muitos como verdadeiros defensores da ordem nacional frente à ameaça comunista. Autodenominaram de “Revolução Democrática” a deposição sumária do presidente eleito João Goulart. Ao contrário do que parte da memória construída durante os anos de ditadura militar sugere ainda hoje, o golpe só foi possível por uma conjunção de forças que iam muito além das armadas, com a conivência e o apoio de parcelas importantes da sociedade civil. Mas também, dentro de um quadro político nacional e latino americano “radical” no qual projetos políticos de esquerda surgiram e foram defendidos em nome de determinada interpretação histórica da região, e pela revolução socialista como alternativa política viável. A história contada neste trabalho procura entender as raízes e significados dessa radicalidade política, seu impacto no contexto dos golpes civis militares no Brasil e no Chile, assim como as diferenças - entre os dois países - das políticas oficias de memória e da percepção social sobre elas.

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POLOP e MIR: perspectivas radicais da esquerda latino americana

Nashla Dahás

Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História Social da UFRJ

"(...) E nada basta, / nada é de natureza assim tão casta // que não macule ou perca sua

essência / ao contato furioso da existência. // Nem existir é mais que um exercício / de

pesquisar de vida um vago indício, // a provar a nós mesmos que, vivendo, / estamos

para doer, estamos doendo".

(Carlos Drummond de Andrade, "Relógio do Rosário")

“Democratas do Brasil, não desconfiem das gloriosas Forças Armadas de nossa

pátria”, dizia Auro de Moura Andrade, presidente do Senado, para a multidão que

marchava em São Paulo “Com Deus pela Liberdade” dias antes do golpe civil militar de

31 de março de 1964. Naquele primeiro de abril, quando militares e seus tanques

avançaram sobre as principais cidades brasileiras, foram saudados por muitos como

verdadeiros defensores da ordem nacional frente à ameaça comunista.

Autodenominaram de “Revolução Democrática” a deposição sumária do presidente

eleito João Goulart.

Ao contrário do que parte da memória construída durante os anos de ditadura

militar sugere ainda hoje, o golpe só foi possível por uma conjunção de forças que iam

muito além das armadas, com a conivência e o apoio de parcelas importantes da

sociedade civil. Mas também, dentro de um quadro político nacional e latino americano

“radical” no qual projetos políticos de esquerda surgiram e foram defendidos em nome

de determinada interpretação histórica da região, e pela revolução socialista como

alternativa política viável.

A história contada neste trabalho procura entender as raízes e significados dessa

radicalidade política, seu impacto no contexto dos golpes civis militares no Brasil e no

Chile, assim como as diferenças - entre os dois países - das políticas oficias de memória

e da percepção social sobre elas.

Entre a revolução e a ditadura

Certa vez o escritor britânico George Orwell (1903-1950) afirmou que não se

pode estabelecer uma ditadura com o fito de salvaguardar uma revolução, mas sim, faz-

se a revolução para estabelecer a ditadura. A frase pode servir para pensar alguns

acontecimentos que marcaram a América Latina entre os anos 60 e 70, especialmente os

casos de Argentina e Uruguai, onde existia, de fato, uma esquerda armada considerável

com propósitos de tomada do poder pela força, mas não se encaixa no cenário político

chileno. Há pouco mais de 40 anos, um violento golpe aniquilou o governo eleito de

Salvador Allende. Mas, por lá, o que vigorava era uma tentativa de construção do

socialismo por meios democráticos. À época – como ainda hoje, em grande parte – a

democracia, contudo, significava um conjunto de procedimentos para o funcionamento

do Estado e da sociedade, todos dispostos na Constituição Federal. Foi a esta

Constituição que Allende prometeu lealdade, da mesma maneira como não se pode

dizer que o presidente João Goulart tenha, em algum momento de seu governo, entre

1961-63, contrariado a Carta Magna de seu país. No Brasil, como no Chile, conjunturas

específicas com muitas diferenças, mas também com semelhanças importantes, é

possível afirmar que o nascimento e a difusão de uma cultura política radicalizada e

levada a cabo por grupos autodenominados revolucionários apontaram para caminhos

políticos desconhecidos, que extrapolavam as normas estabelecidas e que polarizaram

os poderes institucionais e sociais dessas sociedades em uma disputa histórica de que,

hoje, somos filhos bastardos, uma vez que não nos foi concedido o direito de reconhecê-

la como parte de nossa história e identidade social.

Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC), Forças Armadas de

Libertação Nacional (FALN) na Venezuela, Exército de Libertação Nacional (ELN) na

Bolívia, Movimento de Libertação Nacional Tupamaros (MLN-Tupamaros) no

Uruguai, Partido revolucionário dos Trabalhadores – Exército Revolucionário do Povo

(PRT-ERP) na Argentina, e, aqueles que nos interessam diretamente, o Movimiento de

Izquierda Revolucionaria (MIR) no Chile, e a Organização Marxista Política Operária

(ORM-POLOP) no Brasil, entre outras organizações, tentaram “reinventar a política” a

partir de uma verticalização esquerdista que atribuía à “esquerda tradicional” duras

críticas voltadas para seu comportamento “aliancista”, “reformador” e “eleitoreiro”.

Eles foram responsáveis pela construção de projetos nacionais chamados

radicais. Ao longo do aartigo tentaremos reconstruí-los - os casos de Brasil e Chile -

como possibilidade de acesso a uma memória social menos conhecida do senso comum.

Vale dizer que essa é uma perspectiva que integra pesquisa mais ampla no que diz

respeito não apenas aos projetos, mas também a forma de atuação dos grupos que

encamparam essas ideias como modo de viver; suas tentativas de tornar a revolução

uma realidade, assim como o diálogo e as reações de poderosos setores sociais nesse

processo.

A derrota, o desaparecimento ou a desintegração da maioria desses movimentos

ao longo do tempo - raras exceções, como as FARC na Colômbia e o MIR no Chile, que

são politicamente atuantes ainda hoje - tornam seu estudo tanto mais complexo, quanto

as suas lembranças ficam a cargo quase exclusivo daqueles que construíram tais

histórias com as próprias mãos e, muitas vezes, com o próprio sangue. Nostalgia,

vitimização, heroicização e desqualificação dos projetos formulados e da política

empreendida vêm ganhando maior ou menor força de acordo com o momento político

em que se rememora, com a capacidade de mobilização popular ou eleitoral das

políticas de memória, ou a partir de ondas internacionais como a que desde finais dos

anos de 1990 prega a universalidade dos “Direitos Humanos” em países pós-conflito.

Por outro lado, há pelo menos quarenta anos movimentos sociais espalhados

pelo mundo, não apenas ocidental, vem se dedicando a causas coletivas de maneira que

poderíamos considerar em alguma medida análoga à geração de 1968, por exemplo. É o

caso da chamada primavera árabe, entre 2010 e 2012, e dos protestos organizados pelo

Movimento estudantil no Chile em 2011. Neste último caso, o historiador e ex-militante

do MIR, Gabriel Salazar, tem chamado a atenção para “uma esquerda sensível e

extraparlamentar que busca canais de representação, atua à margem da Constituição de

1980 e em nome da soberania popular”. De acordo com Salazar, trata-se de um processo

de construção do Estado, o que é bem diferente de sua gestão, e este poder popular

deverá se auto educar para reconstruir o Estado e fundar uma nova Constituição. Fazer

isso em uma geração que não conta com “Salvador Allende, Victor Jara, Violeta Parra,

Miguel Enriquez, Raul Pellegrin”; ícones que ajudaram a construir um mínimo de

identidade de esquerda, dificulta a tarefa. Mas isso não significa que o modelo de Che

Guevara, por exemplo, devesse ser reproduzido, mas que há exemplos simbólicos de

luta consolidados como uma memória histórica viva e uma base mínima para construir

novas propostas em um novo tempo.

Em todo caso, utilizaremos esse texto para apresentar o conceito norteador de

nossas ideias; aquilo que entendemos por “Radical” e que está a impregnar a memória

que pretendemos construir a partir dos projetos de Estado e de sociedade elaborados nos

anos de 1960 e 70 por duas organizações revolucionárias com impacto em toda a

América Latina, a ORM-POLOP brasileira e o MIR chileno. A seguir, breve

apresentação dos dois movimentos.

A questão da radicalização

“Caim matou Abel, Rômulo matou Remo; a violência foi o início e, ao mesmo tempo, não poderia haver nenhum início sem se usar a violência, sem violentar. Os primeiros atos registrados me nossa tradição bíblica e secular, quer sejam reconhecidamente lendários ou considerados como fato histórico, percorreram os séculos com a força que o pensamento alcança nos raros casos em que cria metáforas irresistíveis ou narrativas universalmente aplicáveis. A narrativa foi clara: qualquer fraternidade de que sejam capazes os seres humanos nasceu do fratricídio, qualquer organização política a que tenham chegado os homens teve origem no crime. A convicção de que no início esteve um crime trouxe ao longo dos séculos uma plausibilidade tão autoevidente para o estado dos assuntos humanos quanto a plausibilidade que a primeira frase de São João – “No princípio era o Verbo” – teve para os assuntos da salvação”. (ARENDT, Hannah, 2011)

Quando os projetos revolucionários surgiram na América Latina dos anos de

1960 e 70, era a violência da exploração social que os motivava, assim como toda a

nova sociedade que buscavam deveria começar pela violência de uma ruptura com a

ordem atual ou com a própria violência das armas a defender “a voz dos oprimidos”, em

expressão comum para a época. É possível que eles estivessem respondendo às

contingências daqueles tempos, marcados por tensões econômicas, por sua vez

relacionadas aos processos combinados e desgovernados de industrialização e

urbanização espalhados pelo continente. Mostravam-se atentos ao contexto

internacional, via de regra interpretado como um “processo mundial de esgotamento do

ciclo de expansão capitalista iniciado na década de 30”, acompanhado pelas lutas

anticoloniais na África e na Ásia, pelos movimentos nacionalistas bascos e irlandeses na

Europa, e, principalmente, pela eclosão e vitória da Revolução Cubana em 1959. Mas

essas eram as “condições históricas favoráveis”, aquilo que em seus discursos aparecia

quase como uma necessidade histórica, um processo irreversível de crise do capitalismo

cujo ponto de inflexão era a revolução cubana:

“A revolução cubana quebrou o monopólio do domínio americano, mas não se limitou a isso. Libertou, pela primeira vez na história, um país latino-americano de todo e qualquer domínio imperialista. Finalmente, mostrou às massas exploradas que a única forma de libertação absoluta do jugo imperialista consiste na derrubada da própria classe dominante, na revolução socialista. (...) A revolução cubana naturalizou o marxismo- leninismo no continente. O que os países da América Latina têm em comum hoje é, antes de tudo, uma similaridade de condições de luta que cria uma solidariedade ativa entre as massas do continente. A luta antiimperialista dirige-se contra uma determinada potência — os EUA”. (POLOP, Programa Socialista para o Brasil, 1967)

No centro dessa interpretação, contudo, estava a radicalidade latente de um projeto que

nascia de uma percepção do funcionamento da sociedade expressa sob a linguagem da

violência, da exploração econômica, da desigualdade social e da exclusão política, e

que, ao mesmo tempo, somente viabilizar-se-ia pela via da revolução.

Certamente não era ao termo original Antigo a que o Movimiento de Izquierda

Revolucionaria chileno se referia, mas àquele herdeiro da Revolução Francesa, segundo

o qual somente por este caminho coloca-se de maneira frontal e inescapável o problema

dos inícios. O começo de uma sociedade - que se pensava – poderia ser livre das

condições capitalistas de produção e de vida. A palavra ‘revolucionário’ aplicava-se,

portanto, à radicalidade da transformação almejada e à convicção sobre o uso da

violência como meio para tanto. Da construção de mitos fundadores latino americanos

comuns, parecia surgir um intenso desejo de libertação, de ser ver livre da opressão

internacional associada aos Estados Unidos e herdeira de uma mentalidade colonial; a

combinar-se com um modo de fazer política, com um modo político de viver que tomou

conta de uma geração de militantes, estudantes, jovens, guerrilheiros:

“(...) O que os países latino-americanos têm em comum é um passado similar criado pelo domínio colonial ibérico, que deixou uma herança de problemas sociais parecidos, principalmente no campo. Mas a história mais recente criou diferenciações sensíveis à base dessa herança comum. Hoje, temos países no continente que continuam a viver praticamente da monocultura de produtos tropicais, como principalmente na América Central. Temos, igualmente, países que passaram por fases de industrialização, possuindo um proletariado desenvolvido e com tradição de luta, como na Argentina, Chile e Brasil. Em todos esses países, portanto, cabe aos revolucionários aplicar, de modo criador, a experiência do socialismo científico nas condições concretas criadas e elaborar uma estratégia e uma tática apropriadas para alcançar um objetivo comum: a revolução socialista”. (POLOP, Programa Socialista para o Brasil, 1967)

Em Sobre a Revolução, originalmente publicado em 1963, a filósofa judia alemã

Hannah Arendt deixara claro como uma maneira de datar o nascimento efetivo de

fenômenos históricos gerais – seu exemplo mais profundo foram os regimes totalitários

– começa por descobrir quando a palavra começa a aparecer e a vincular-se de maneira

irrecusável ao fenômeno. Ressalvas são, é claro, elaboradas a respeito do fato de que

todo novo aparecimento entre os homens acaba por requerer novas palavras, “quer se

cunhe um termo novo para designar a nova experiência, quer se utilize um termo antigo

com significado totalmente novo”, aplicando-se isto à esfera política da vida, na qual a

linguagem, a narrativa e o discurso reinariam supremos.

Arendt destacou a importância, no que chamou de “revoluções modernas”, do

surgimento de formas inéditas de organização e associação de trabalhadores e operários,

alternativas aos padrões partidários do fazer político que dariam vida mais genuína ao

conceito de política. Seria um novo começo, que a autora, falecida em 1975, não pôde

acompanhar por completo, mas cuja riqueza de experiências políticas ela pôde intuir ao

ponto de sugerir que suas histórias não se perdessem no esquecimento. Fascinada pela

imprevisibilidade do agir, supôs que apenas a memória e a lembrança poderiam impedir

que se tornassem definitivas as derrotas do espírito revolucionário em busca de algo

novo. E num campo em que é difícil demarcar as linhas entre o individual e o coletivo,

o pessoal e o intelectual, a vida e a política, a moça que fugiu de um campo de

concentração nazista, clamou por uma relação com o passado em que o perdão fizesse

sentido. Não apenas como base filosófica de figuras jurídicas como as variadas formas

de anistia, mas como o único recurso à disposição dos sujeitos abertos à faculdade

humana de iniciar de novo, de recomeçar, de levar á frente àquilo que jamais poderá ser

desfeito.

Será nesse sentido que buscaremos tratar de uma “memória radical para a

América Latina”, reconstituindo (na medida do nosso possível) os projetos políticos que

nasceram, se desenvolveram e, em grande parte, foram sufocados, sob o signo da

radicalidade como expressão de suas ideias e ações, como maneira de constituir-se

politicamente, de celebrar uma ruptura e a construção de uma nova sociedade; assim

como de vivenciar aquilo que consideraram um momento histórico.

A respeito do termo “radical”, a historiografia brasileira tem se posicionado

desde os anos de 1980 associando-o a ideia de miopia política, ressaltando os equívocos

de uma esquerda precipitada que fracassou nos anos de 1960. Uma das teses mais

significativas para a construção desta visão histórica foi o trabalho de Argelina

Figueiredo intitulado “Democracia ou reformas?”. Em sintonia com o movimento de

renovação da história política e da crise do estruturalismo, especialmente o marxista, a

autora recusa teses deterministas que, de algum modo, afirmavam a inevitabilidade do

golpe a partir da consideração de algumas condições até então suficientes, fossem os

fatores econômicos, políticos ou institucionais. Igualmente nega a centralidade do papel

do empresariado, ou da burguesia na conspiração golpista de 1964 e mostra como a

simples existência de uma conspiração não bastaria para a eclosão do golpe.

Argelina enfatiza a sucessão de opções políticas dos grupos de poder, sobretudo,

aquelas tomadas pelo próprio presidente João Goulart, em direção à radicalização de

suas posições minando definitivamente a possibilidade de acordos. Destaca a

necessidade de uma análise que considere as escolhas, atitudes e decisões que, ao longo

do governo Goulart, foram estreitando as opções abertas à ação política.

Entretanto, é preciso observar que a autora aborda predominantemente a ações

dos principais atores no Congresso Nacional, sugerindo que este fosse o único lugar

possível para o exercício político. Dessa forma, fará uma exposição das possibilidades

que estes atores políticos, atuantes no âmbito parlamentar, tiveram, para conciliar a

concretização das reformas e a manutenção da democracia. Argelina Figueiredo

atribuirá aos grupos reformistas do Congresso Nacional uma maior responsabilidade

pelo fracasso da “possível” conciliação entre um programa razoável de reformas sociais

e a manutenção do regime democrático. Segundo a autora, “a estratégia maximalista

destes grupos, somada à prática de um radicalismo político subsidiado pelo senso

irrealista de poder”, excluía as possibilidades de acordo com a alas conservadoras do

Congresso Nacional.

Acreditamos que o trabalho de Argelina atribui menor importância à busca e a

construção de novos espaços de discussão política e as suas relações com o Congresso

Nacional, entre outros espaços legitimados do fazer político. As tensões causadas pela

politização e mobilização de setores populares insatisfeitos com o sistema

representativo e a utilização de outros canais de discussão com a finalidade de exercer

pressão sobre o parlamento, tais como a imprensa e os comícios públicos, influenciaram

profundamente os acontecimentos políticos internos e externos ao Congresso.

Supervalorizando as atitudes e decisões dos atores “mais relevantes” do Congresso, a

autora também trabalha com uma escala de valor um tanto imprecisa “moderados” e

“radicais”, o que oculta os interesses, as possibilidades e as ameaças contidas nessas

propostas de mudanças.

Mais recentemente e dentro do quadro de chegada da “Nova História Política”, o

historiador Jorge Ferreira enfatizará a questão do trabalhismo no interior da formação de

uma complexa teia de interações com a sociedade. Levará em conta a participação dos

grupos e das classes sociais que atuaram de maneira conflituosa dentro do país e buscará

recuperar as estratégias de diversos grupos sociais e políticos que atuaram no período

imediatamente anterior ao golpe de 1964, num processo de crescente “radicalização”

que teria resultado no colapso da democracia. Jorge Ferreira buscará nas chamadas

“estratégias de confronto perpetradas pelas esquerdas” a prova de que estas, a exemplo

do espectro conservador da sociedade, também não valorizavam o regime instituído pela

Carta de 1946. É nesse sentido que Leonel Brizola ganhará destaque nas análises do

historiador. Por considerar Brizola como o líder e representante das “esquerdas radicais”

daquele período, Jorge Ferreira o conceberá como um dos principais atores do processo

marcado por um “clima de radicalização crescente”, cujo produto fora o golpe civil-

militar.

No Chile, o intelectual mirista Ruy Mauro Marini chegou a atribuir à violência

do golpe e da repressão – “a mais brutal das que se tem notícia na América Latina” -

uma explicação ligada à própria capacidade de resistência que ofereciam os grupos

revolucionários:

“a classe operária com elevado grau de consciência e organização, um movimento de massas em efervescência em pleno desenvolvimento, e uma esquerda ampla e solidamente inserida no povo, e, no seio desta, uma vanguarda revolucionária já cristalizada: o MIR”. (MARINI, Ruy Mauro, 1974)

Na interpretação do cientista social, os erros e as debilidades do reformismo das

esquerdas tradicionais teriam influenciado consideravelmente para impedir que essa

capacidade de resistência fosse eficaz de forma a frustrar a ofensiva “reacionária” que

culminou no golpe de 11 de setembro de 1973. Ele escrevia um ano após os

acontecimentos, impregnado pelo ódio e pela indignação gerados pela derrota política e

pelo exílio. Ainda no México e no mesmo ano, ele diria que:

“Encontramos aqui um problema sobre o qual muito se falou, antes e depois da queda do governo de Allende: a falta de uma direção única do movimento de massas no Chile. Altos dirigentes da Unidade Popular atribuíram este fato a uma disposição subjetiva do MIR e dos setores da UP que se encontravam sob sua influência, a “ultraesquerda”, como os chamava o PC, seria assim a responsável pela divisão do movimento de massas e pelas dificuldades que isto criava ao governo. Depois do golpe militar, não faltaram aqueles que, (como Darcy Ribeiro, entre outros) responsabilizaram a “esquerda desvariada” pelo sucesso de setembro de 73” (MARINI, Ruy Mauro, 1974)

Como lembra a historiadora Maria Paula Araújo, em 1973, quando ocorre o

golpe militar no Chile, a invasão de Praga, a rebelião de Maio de 1968 em Paris, e a

Revolução cultural chinesa “operavam mudanças importantes nas noções de política e

de esquerda” em todo o mundo ocidental; representavam marcos de ruptura e rejeição

em relação às tradições políticas de esquerda. Inserido nesse contexto, para estas

“esquerdas desvariadas” atribuiremos o termo radical e será a partir de seus vestígios

que buscaremos reconstituir uma memória desta natureza para a América Latina.

Em resumo, a radicalidade estará presente toda vez que houver a autoimposição

de uma tarefa de fundação, de estabelecer um novo começo que, enquanto tal, exigirá,

segundo os rastros da Organização Marxista Política Operária – POLOP e do

Movimiento de Izquierda Revolucionaria – MIR, “violência e violação, repetição, por

assim dizer, do velho crime lendário – Rômulo matou Remo, Caim matou Abel – no

início de toda a história”, parafraseando a visão de Hannah Arendt dos acontecimentos

políticos que marcaram a década de 1960.

Pela ditadura do proletariado

Instaurar o poder revolucionário no Brasil. Este era o principal objetivo dos

movimentos de guerrilha que ocorreram no país durante a ditadura civil-militar, de

acordo com Daniel Aarão Reis, ex-militante, historiador e hoje professor da

Universidade Federal Fluminense, e Carlos Eugênio Paz, conhecido também como

Clemente – último comandante da Ação Libertadora Nacional (ALN) brasileira.

A deturpação desta tese endossou durante tempo significativo versões

produzidas pelos militares de que a ditadura teria sido uma resposta aos movimentos

armados de esquerda que envolviam trabalhadores do campo e das cidades em uma

trama comunista. Mas os impasses com os quais se depararam as esquerdas latino

americanas naquele período estão longe de poderem se resumir a explicações como esta.

Através da Polop no Brasil e do MIR no Chile, buscaremos ampliar a dimensão de

ambiguidade das experiências e expressões revolucionárias vividas pela região, abrindo,

conforme seja possível, um campo de discussão mais anárquico sobre o tema, e menos

polarizado por interpretações que posteriormente excluíram a radicalização política de

esquerda e as suas propostas, como uma memória alternativa a um modelo único de

pensamento sobre os anos 60 e 70.

Pensar o desprezo pelas formas tradicionais de fazer política e pelos projetos

nacionais vitoriosos de uma época significará subverter também os limites das

representações mais rígidas que se impuseram ao longo do tempo, dirigindo o olhar,

sobretudo, para o campo das diferenças.

POLOP e MIR surgem em contextos nacionais bastante singulares. O Palácio La

Moneda, no Chile, por exemplo, foi bombardeado com o presidente Salvador Allende

em seu interior de capacete militar e arma em punho, quando golpes e tentativas de

golpe militares já haviam ocorrido em 1952 na Bolívia, um ano depois na Colômbia, em

54 no Paraguai e na Guatemala, em 1962 e 68 no Peru, em Honduras em 1963, no

Brasil em 64, no Equador em 1972 e no Uruguai em junho de 1973.

Criado em 1965, o MIR não surge como movimento contra a ditadura e pela

democracia, mas aparece em tempos democráticos, durante o governo de Eduardo

Nicanor Frei Montalva, do Partido Democrata Cristão, formado em 1957 por dissidentes

de outros partidos tidos como conservadores pelas esquerdas. Acusado de reformista, o

PDC cumpriria papel fundamental nos capítulos seguintes da história do Chile que

culminariam com o golpe de 73. Frei havia vencido Salvador Allende nas eleições de

1964, ao que se seguiu uma multiplicação das cisões e questionamentos entre as

esquerdas, relacionados não apenas ao caminho eleitoral como único legitimo para a

chegada à presidência, mas também no que se refere ao programa comunista de “luta

antiimperialista, antioligárquica e antifeudal”.

Ao mesmo tempo, a vitória de Frei seria ainda pequena demonstração da força

ambígua do cristianismo no Chile. A mesma Igreja Católica que, em grande parte

apoiou o golpe e manteve posição ambivalente durante quase todo o período ditatorial,

forneceu as bases de um ethos de solidariedade presente nas parcelas mais radicais do

MIR. Esta é a versão que nos conta o ex-mirista e historiador, hoje consagrado

internamente, Gabriel Salazar Vergara. Torturado pelo tenente Miguel Krassnoff –

membro da Policia Secreta Direção de Inteligência Nacional (DINA) durante a ditadura

- Salazar recorda que embora tenha deixado de ser católico bastante jovem, guardou

certa “sensibilidade”, e lembra que uma quantidade enorme de católicos fez parte do

MIR ao longo do tempo. “Os mais dedicados eram os que vinham do mundo católico”,

afirma. Desde sua fundação, o grupo Revolucionário teria como pauta o “fim da

conciliação” com a Democracia Cristã, e, a mais radical das suas propostas, a defesa da

revolução socialista continental armada.

Também a POLOP surge em tempos de democracia como um grupo de jovens

intelectuais de esquerda, ainda muito pouco citado na historiografia brasileira.

Retrospectivamente, é possível dizer que em 1961, a Organização iniciou um

movimento de construção, inédito naquela conjuntura, de interpretações da realidade

brasileira de esquerda, porém, alternativas a linha política do Partido Comunista

Brasileiro – PCB, hegemônico até então entre os trabalhadores e classes populares no

país. Estas formulações tiveram grande impacto no debate político da época, e estão

presentes ainda hoje, algumas vezes de maneira anacrônica e equivocada, nas visões da

luta política e ideológica associada ao governo João Goulart.

No seu momento de formação, o grupo reuniu nomes como Moniz Bandeira,

Theotônio dos Santos, Emir Sader, Vânia Bambirra, Erich Sachs, entre outros. Juntos,

estes jovens militantes articularam a interpretação dos acontecimentos internos a uma

perspectiva global de desenvolvimento capitalista que ganhava espaço na América

Latina. A organização exerceu um apoio bastante crítico ao Governo Goulart, e deu

início a um importante racha ideológico no PCB. Embora a POLOP tenha tido um

período curto de existência e atuação, não resistindo, como organização, à conjuntura de

repressão dos anos que seguiram ao golpe 64, suas ideias adquiriram história própria e

integram, de diversas maneiras, as principais teses sobre aquele período ainda hoje.

“Um, dois, três Vietnãs”

Mas grande parte dos termos, nomenclaturas e expressões que marcaram e

naturalmente relacionam-se hoje com o período dos anos de 1960 e 70, foram

introduzidos no léxico político da época a partir de um claro esforço de definição, da

necessidade de transmitir uma interpretação do Brasil coerente com um impasse a que a

história os colocara. Aqueles homens sabiam de sua incapacidade para controlar o curso

dos acontecimentos, sabiam da força que possuía a reação, assim como conheciam,

desde a Revolução cubana, o poder da revolução. Ao mesmo tempo, seus documentos,

atas e versões para os acontecimentos demonstram como estavam profundamente

imbuídos do sentimento de controle sobre seus destinos, pelo menos em relação ao

governo político de suas vidas. É curioso, inclusive, como depoimentos atuais de ex-

militantes barbaramente torturados(as) são taxativos em relação à convicção de que foi

deita a escolha correta, de que estavam “do lado certo” e de que não havia outra

alternativa a não ser o enfrentamento violento da ordem estabelecida.

Em 1967, apenas três anos após o golpe, a esquerda radical produzira da

clandestinidade explicações para a conjuntura econômica e política interna, assim como

deixaram os rastros do que lhes foi possível entender como subdesenvolvimento,

imperialismo e revolução. Mais do que isso, esforçaram-se por mapear as etapas

práticas do processo revolucionário, esvaziando o discurso daqueles que hoje afirmam

que se tratava de uma “utopia”, justamente por carecer de um projeto.

“Vivemos na época do confronto final entre o velho regime capitalista e as forças que lutam pelo socialismo, expressão política da contradição social entre o capital e o trabalho. Iniciada em 1917 com a vitória dos sovietes na Rússia, a chama revolucionária propagou-se, em menos de meio século, sobre a Europa Oriental e a Ásia, atingindo as Américas com a instauração de Cuba socialista. Hoje, um terço da humanidade está libertada da exploração capitalista ou pré-capitalista. Um, entre três seres humanos, vive e trabalha sob sociedades onde se edifica o socialismo”. (Programa Socialista para o Brasil, ORM-POLOP, 1967)

Escreviam a história como espectadores de um quadro irreversível de

propagação socialista pela América Latina.

É importante lembrar que os integrantes da POLOP tiveram acesso à bibliografia que

então a esquerda da região apresentava como “manual”. Entre eles estavam Rosa

Luxemburgo, Vladimir Lênin, Karl Marx, Franz Fanon e Fidel Castro, como atesta o

primeiro volume do Jornal Política Operária, de janeiro de 1962. Nesta edição, justifica-

se a própria existência de um veículo de comunicação que possa dialogar com os

trabalhadores e garantir maior difusão de suas ideias, assim como colaborar para o

recrutamento e a futura formação de “quadros” para o partido. À pergunta “O que é a

Política Operária?”, responde-se, “é a renovação da esquerda no Brasil”. A “velha

esquerda” teria se mostrado incapaz de acompanhar o desenvolvimento desta tradição.

A “Nova esquerda é Revolucionária”. Com todas as letras, surge um grupo que

incorpora de maneira radical o pensamento tradicionalmente conhecido como de

esquerda e o transforma em caráter e natureza, agora voltados explicitamente para a

Revolução Socialista na América Latina, ainda no começo dos anos de 1960. “Essa

nova geração revolucionária”, afirma o jornal logo na primeira página, “toma as

iniciativas de luta anti-imperialista”, “propaga as ideias da Revolução cubana”, e

“defende os precários direitos democráticos quando ameaçados por golpes de direita”. O

movimento operário é apresentado – como em toda a documentação partidária até o fim

da organização – como o ator central da transformação política. Neste momento,

entretanto, seriam as amarras da legislação sindical do Estado Novo e, sobretudo, uma

cultura política ainda muito recente os impedimentos da maturação de uma consciência

de classe voltada para a revolução.

A esquerda Radical no Chile. Rebeldes com causa

Salvador Allende concretizou efetivamente transformações profundas no Chile

como a rápida estatização da economia, e a instauração da participação dos

trabalhadores em todos os âmbitos da sociedade, mediante um acordo com a CUT.

Destacam-se, nesse sentido, os Cordões Industriais, experiência de territorialização e

integração de indústrias de vários ramos produtivos formando literalmente um cordão.

Em agosto de 1973, Eder Sader, militante da Polop exilado em Concepción, escreve

ensaio em que analisa a formação do Cordón Cerrillos, “o primeiro Cordón da mais

importante região industrial chilena”. A experiência é tomada como exemplo da

capacidade de organização popular para transformação de qualquer institucionalidade

política, mesmo aquela que estabelecia marcos reais inéditos de uma via legalista para a

viabilização do Socialismo. Segundo o brasileiro:

“Não se trata aqui de fazer crítica ideológica a essa concepção oportunista do Estado e da revolução mas, sobretudo de verificar concretamente o caminho pelo qual a classe operária e as mais amplas massas de trabalhadores criaram seus organismos de luta para a tomada do poder no Chile. É muito importante ver como as massas populares mobilizadas no âmbito da Unidade Popular conseguem gerar seus organismos fora dos mecanismos previstos pela estratégia original. Os “cordones industriales”, os comitês coordenadores de lutas, os comandos comunais, não somente surgiram fora da institucionalidade em vigor, mas ao mesmo

tempo demonstram uma firme vontade de transformá-la. Não é por acaso que os porta-vozes da burguesia se opõem tão radicalmente a esses organismos, mobilizando contra eles as forças armadas e apelando aos preconceitos mais obscurantistas das classes médias. Isso porque, com os seus primeiros passos no sentido da democracia direta, do controle operário da produção, da organização proletária da distribuição, da formação de uma aliança entre as classes exploradas, esses organismos despertam as mais profundas energias revolucionárias do proletariado e abrem uma perspectiva real para a luta pelo poder no Chile. Os reformistas, ao quererem enquadrar esses organismos no interior das instituições estabelecidas, mostram-se incapazes de dirigir o exército mais poderoso das massas populares no enfrentamento social atual”. (SADER, Eder, 1973)

Durante o governo Allende, entre 1970 e 73, O MIR buscou ressaltar aquilo que

considerava como os limites da estratégia legalista da Unidade Popular, o caráter

“reacionário” de instituições como o Parlamento e os tribunais de justiça, além da

necessidade de desestruturar as bases do capitalismo como medida primeira para

constituição do socialismo. A organização teria se tornado um polo aglutinador de

setores e movimentos operários e camponeses radicalizados em relação ao programa

institucional da UP. Apesar disso, costumava reconhecer as mudanças alcançadas por

Salvador Allende no sentido da maior “socialização das relações de produção”.

O contato direto dos miristas com as questões e os dilemas sociais dos

trabalhadores em seu cotidiano lhe proporcionou um reconhecimento e uma inserção

social muito distinta daquela verificada no Brasil por suas esquerdas radicais, mais

voltadas para a formação de “quadros” que compusessem o partido de vanguarda da

Revolução. Acreditamos que, aos poucos, os valores políticos defendidos pelo MIR

foram sendo identificados por grupos operários como seus, mais em um processo de

formação de uma cultura politica combativa e autônoma de expressão dos seus

interesses, do que como uma doutrina ideológica bem definida sobre o caminho para o

Socialismo. Muitos movimentos populares não se “filiavam” ao Movimiento, nem

tomavam para si o Socialismo como bandeira. Mantinham-se independestes do partido,

muito embora aceitassem a liderança mirista em greves, expropriações de indústrias, e

manifestações contra medidas do governo Allende entendidas como controladoras do

movimento sindical ou de interesse “burguês”. Isso nos ajuda a compreender o

enraizamento social da memória do MIR como experiência histórica de identificação

para as gerações seguintes, como um passado de violência revolucionária de esquerda

que continua produzindo identidade, mesmo que ele seja rejeitado criticamente.

Arriscamo-nos a dizer que se deve ao reconhecimento do terror revolucionário no

passado recente, a manutenção atual dos antagonismos no seio da esquerda chilena, a

corroer determinismos históricos sobre o golpe de 73, e a produzir novas interpretações

sobre a realidade.

Precisamos lembrar também que a memoria radical do MIR está atrelada a

defesa da luta armada como legítima, em circunstâncias chamadas “pré-

revolucionárias”. Diferente do que ocorreu na Polop brasileira, a relação da organização

com a violência foi explícita desde o seu nascimento, conforme demonstram diferentes

ordens de documentos partidários e testemunhais. Em Contribuição a historia do MIR,

Luis Vitale, historiador e militante mirista afirma o seguinte:

“En dicho Congreso Congreso de Fundación del MIR se aprobó una Declaración de Principios, cuyo borrador fue redactado por Luis Vitale, un programa estratégico y coyuntural de lucha, propuesto por Clotario Blest, el PSP y VRM, unas bases de organización y estructura interna del MIR y una Tesis Insurreccional redactada por Miguel y Marco Antonio Enríquez y leída por Miguel, hecho inédito en la historia de los partidos de la izquierda chilena, pues en ninguno de sus Congresos jamás fue aprobada una tesis insurreccional. Esta tesis fue aprobada con una modificación fundamental: que para iniciar la insurrección armada debía haber un ascenso relevante del movimiento popular y que los grupos armados tenían que asentarse en fuertes bases sociales, para no caer en una desviación foquista, como había sucedido en varios países latinoamericanos. [...] Los partidos de la izquierda tradicional -decía la Declaración de Principios del MIR- "engañan a los trabajadores con una danza electoral permanente olvidando la acción directa y la tradición revolucionaria del proletariado chileno. Incluso sostienen que se puede alcanzar el socialismo por la vía pacífica y parlamentaria, como si alguna vez en la historia las clases dominantes hubieran entregado voluntariamente el poder" (p.2). Este diagnóstico tuvo un desenlace trágico porque los partidos de la Unidad Popular, diseñaron su estrategia basados en la "vía pacífica y parlamentaria", adobada con "vino tinto y empanadas". Todos conocemos el resultado: se ganó

electoralmente el gobierno con Allende pero no el poder real. Y después de 17 años de dictadura militar, aquí estamos todavía con Pinochet y con el "poder fáctico" de las Fuerzas Armadas. En tal sentido, la Declaración de Principios del MIR fue profética: "El MIR rechaza la teoría de la `vía pacífica( porque desarma políticamente al proletariado y por resultar inaplicable, ya que la propia burguesía es la que resistirá, incluso con la dictadura totalitaria y la guerra civil, antes de entregar pacíficamente el poder". La prognosis del MIR no pudo haber sido más acertada al señalar que "el único camino para derrocar el régimen capitalista es la insurrección popular armada" (p.3)” . (VITALE, Luis, 1999).

Talvez esta tenha sido a última vez em que teses insurrecionais foram levadas a

sério no continente latino americano. Para entender a constituição dessa memória,

parece importante estabelecer uma visão ao mesmo tempo particular e geral dos

acontecimentos. O trecho de Luis Vitale nos permite observar, por exemplo, a atuação

dessa esquerda nada orgulhosa do ineditismo de uma experiência pacifica de socialismo

na América Latina, a defesa de uma tradição histórica de ação política direta dos

trabalhadores chilenos, pouco discutida ainda hoje, e a ambiguidade do MIR como

partido intelectualizado de efetiva inserção social e atuação política à margem das leis.

Por outro lado, fica evidente uma particularidade que só pode ser comparada ao

processo brasileiro, no qual os grupos radicais também se depararam com um governo

de esquerda e permaneceram durante quase todo o pré-golpe envolvidos pelo dilema

“Reforma ou Revolução?” Sobretudo, há sempre o peso da conjuntura mundial, “cujo

ritmo acaba quase sempre se impondo às outras”.

Em que pese todas essas diferenças citadas e muitas outras que certamente

aparecerão, é o recorte deste dilema que nos leva a colocar Brasil e Chile em

perspectiva na tentativa de encontrar definição e representações de uma memória radical

ampliada para a América Latina nos anos 60 e 70. Acreditamos que uma identidade

imaginária ligada à história colonial e à cultura latina foi levada a sério por grande parte

das esquerdas radicais do período, produzindo-se algo como um projeto político cultural

para a região. Preocupados em destacar a zona de interseção entre os problemas sociais,

os sentimentos coloniais e um republicanismo incipiente, tais militantes construíram

uma memória revolucionária da região menos valorizada pela história construída após

as redemocratizações. Além disso, Brasil e Chile são símbolos expressivos de uma

experiência política radical apontada como semelhante por seus próprios agentes

históricos, o que, em muito estimula essa empreitada.

No Brasil e no Chile, a Polop e o MIR constituíram a memória mais “radical”

produzida ao longo de suas histórias políticas contemporâneas. Verificar como elas se

formaram no campo de batalha, e como foram reconstruídas no campo da memória

social, significa retomar o largo alcance da imaginação política, cada vez mais limitada

pelas necessidades objetivas e individuais do presente, descentrando a perspectiva

nacional de interpretação dos golpes, e relativizando a inevitabilidade dos rumos

tomados pelas novas democracias.

A interpretação histórica da região ligada à colonização e ao

subdesenvolvimento desdobrava-se, muitas vezes, em uma discussão sobre a capacidade

de determinação do futuro que esse estudo poderia fornecer e o ineditismo da

experiência que se procurava alcançar. A despeito de todas as especificidades e das

diferenças dos processos nacionais, uma conjuntura comum marcou a politica de

esquerda mais intelectualizada da América Latina, que se mostrava atenta ao governo

do general Lázaro Cárdenas no México (1934-40), ao peronismo argentino (1945-56),

`a revolução boliviana (1952-64), dirigida pelo MNR, e ao regime reformista na

Guatemala (1944-54), derrubado pela Cia.

Nos casos de Brasil e Chile, entre as décadas de 60 e 70, um vocabulário

comum relacionado à interpretação desses acontecimentos aliava-se a uma expectativa

de americanismo radical compartilhada durante o pré-golpe e ao longo de grande parte

do período de resistência às ditaduras implantadas nos dois países. Não sabemos ao

certo em que momento esse vínculo se perdeu, e isso ocorreu de maneira tal que nos

dois países a própria esquerda radical construiu memórias muito distintas do período

após o retorno do exílio; voltadas no caso brasileiro muito mais para a consolidação da

democracia do que para um projeto alternativo de Estado em relação às proposições das

direitas.

A desqualificação das esquerdas tradicionais, a escolha da luta armada em nome

da Revolução imediata, e a necessidade de juntar-se ao povo aparecem mais uma vez

como opções de resistência politica e transformação social diante de uma historia

entendida como convergente na região latino americana.

Mas essa memoria radical certamente não se compõe apenas de semelhanças.

São as diferenças entre a maneira como foram construídas em cada caso profundamente

responsáveis pela ressignificação que tiveram em períodos posteriores. Além disso, não

pretendemos incorrer nos riscos de pormenorizar a pluralidade e a diversidade que

marcam a historia politica da América Latina em qualquer tempo. Nesse terreno das

diferenças, chamaremos atenção para duas questões. São elas o sentido da radicalização

e a ligação nacional com o sentimento americanista.

Como já vimos, em 11 de setembro de 1973, as Forças Armadas do Chile

derrubaram o governo constitucional de Salvador Allende. O Palácio de La Moneda foi

bombardeado com o presidente em seu interior. A ditadura inaugurou sob o comando do

general Augusto Pinochet, dezessete anos de repressão sobre socialistas, comunistas e

simpatizantes do governo anterior. Iniciou também um período chamado de “milagre

econômico”, ou de “modernização conservadora”, que iria colaborar para o acirramento

das divisões sociais após a democratização, já que parcela importante da população se

sentiu beneficiada economicamente pelas medidas viabilizadas.

A Revista Punto Final de junho de 1967 foi, das edições miristas, uma das mais

emblemáticas do sentido que se estava dando, mesmo antes da eleição de Allende, a

identificação de uma situação de convergência histórica revolucionária na América

Latina.

Neste número 30, a revista trouxe extensa reportagem acompanhada de artigo,

sobre as condições políticas na Bolívia. Também deu espaço a uma discussão sobre o

sentido da guerrilha como estratégia revolucionaria continental, trouxe um artigo

encomendado, uma espécie de chamamento à intervenção dos movimentos radicais

diante da prisão de Regis Debray pelas forças de repressão bolivianas. Divulgou

homenagem reflexiva sobre a importância do pensamento de Mariátegui para os

partidos radicais, e uma discussão das “Perspectivas revolucionarias” no próprio Chile.

De acordo com tais perspectivas:

“Para enfrentar e derrotar o poderio militar das oligarquias nacionais, e do imperialismo, os revolucionários devem recorrer à luta armada. Esta é de alcance continental, de larga duração e tem a forma de guerrilhas. A ação de massas, desligada do combate armado, é uma aberração. Significa expor o povo à violência ou ao massacre. Isto, longe de criar consciência revolucionária, amedronta, provoca sentimentos de frustração e impotência, conduz à submissão e não à rebelião. A luta nas ruas, as greves gerais, a ocupação de prédios e terrenos, a insurreição urbana são o complemento da luta armada em desenvolvimento. (...) Ainda em nosso país, enquanto se mantiverem as formalidades democráticas, as eleições seguirão sendo um terreno do qual a burguesia sabe tirar proveito. A tradição democrática e a estabilidade institucional são respeitadas sempre que não estão em perigo o regime capitalista e a ordem estabelecida. (...) Os Estados Unidos serão hostis e agressivos frente a qualquer governo revolucionário. Por isso, no Chile, como nos demais países da América Latina, a luta armada é inevitável e irrenunciável para a conquista do poder político pelo povo. Fidel Castro haveria dito que no Chile não estão dadas as condições objetivas nem subjetivas para a luta armada. (...) Seria uma maneira de despertar, estimular e desafiar o espírito revolucionário dos chilenos. (...) Enquanto isso, a solidariedade com os guerrilheiros das América Latina, especialmente da Bolívia, é um dever do movimento popular. Mas deve traduzir-se em muito mais do que um respaldo verbal ou moral... Durante a guerra de independência, o Chile não esperou que o viessem libertá-lo, mas que os revolucionários dessa época combatessem a dominação espanhola”. ( Punto Final, 1967)

Nesse momento, e como pretende denunciar a citada reportagem publicada na

edição, a Bolívia estava sob o comando de um governo militar desde o golpe de Estado

em 1964, auto intitulado Frente de La Revolución Boliviana – FRB, em 65. Sabe-se que

o golpe contara com amplo apoio civil e que, em grande medida, refletia desajustes

internos ao Movimento Nacionalista Revolucionário – MNR, que havia tomado o país

em 1952, transformando em Revolução a reação a um golpe militar. Àquela época,

iniciara-se um processo de nacionalização dos recursos naturais que marcaram a história

da colonização espanhola na Bolívia, e que o presidente Evo Morales retomaria mais de

cinqüenta anos depois da única revolução operário-camponesa da América do Sul.

Entre 1952 e 64, o MNR enfrentou graves crises econômicas que acompanharam

a nacionalização da exploração de todos os recursos naturais bolivianos. Em 1961 o

presidente Victor Paz chegou a adotar o Plano Triangular concebido pelo BID (Banco

Interamericano de Desenvolvimento) com capital dos Estados Unidos e da Alemanha

Ocidental para modernização da mineração nacionalizada. E ainda, Victor Paz no

decorrer de seu segundo mandato decidira concorrer à reeleição com apoio militar,

provocando rachas e aprofundando tensões internas que culminaram com o golpe

liderado pelo general Barrientos, vice de Paz. Iniciava-se um período de crescente

fortalecimento e de ampliação das Forças Armadas, incluindo uma onda de forte

repressão aos movimentos sociais, indígenas e guerrilheiros.

Mais `a frente, o pensamento de José Carlos Mariátegui, um dos mais influentes

escritores marxistas da América Latina, aparece para compor o que podemos entender

no conjunto das fontes, como um quadro de experiências capaz de constituir uma

unidade no tempo, na medida em que se ligam por sentidos comuns. Algo que a

historiadora Verena Alberti chamou de vivência: “o especifico da vivência é o fato dela

não ser consciente, ela é o próprio ato. (...) No momento em que estamos conscientes da

vivência, ela se torna algo fixo e deixa de ser vivência”. Ou seja, - ou como a

entendemos para os fins dessa pesquisa - a vivência pode ser esse conjunto de sinais e

de pequenos resquícios de um tempo que permitem a percepção de como a vida, em um

determinado momento, se exprime em obras, textos, documentos e linguagens. No caso

das citações acima, elas parecem ligar-se por sentidos comuns que só agora nos são

permitidos ver a partir da observação ampliada pelo todo, a partir de uma leitura do

conjunto daquelas menores partes de vivência que à época não poderiam ser lidas desta

maneira.

Como já vimos, o elogio da violência como estratégia de luta politica é uma

constante nos documentos produzidos por grupos de esquerda autodenominados

radicais, e cujas propostas de “libertação” passam por uma explicação histórica

alimentada pelo ódio colonialista/imperialista. Esse é um ponto já bem discutido pela

historiografia brasileira e explicado via contextualização dos movimentos de

independência em escala global. Essa valorização da violência teria como influência as

lutas anticoloniais recentes na Argélia e no Vietnam, agora somadas à revolução cubana

como modelos de “libertação nacional”.

Não foi, contudo, a via seguida pelos partidos comunistas ainda muito ligados ao

dogmatismo soviético: os comunistas brasileiros optam pelo caminho pacífico como o

mais adequado naquele momento que o país atravessava, e que se tornara possível

graças à democratização pela qual passava o Brasil, pela mobilização do movimento

operário e a consolidação da frente única nacionalista. Além disso, havia as mudanças

na situação internacional, que estava “decididamente favorável à classe operária e ao

movimento de libertação dos povos...”. O uso da violência revolucionária aparece na

Declaração apenas como resposta, caso fosse necessária, às forças reacionárias. Ainda

assim, não seria explícito no texto, utilizando os termos "solução não pacífica" para

evitar qualquer dúvida quanto aos objetivos do partido: “No caso em que os inimigos do

povo venham a empregar a violência contra as forças progressistas da nação, é

indispensável ter em vista outra possibilidade - a solução não pacífica. Os sofrimentos

que recaírem sobre as massas, em tal caso, serão de inteira responsabilidade dos

inimigos do povo brasileiro...”.

No entanto, no início da década de 1960, por um lado, as teorias do

desenvolvimento acabaram perdendo sua relevância e força pela incapacidade do

capitalismo de reproduzir experiências bem-sucedidas em suas ex-colônias, que

estavam, em sua maioria, em processo de independência desde a Segunda Guerra

Mundial. Mesmo países que apresentavam taxas de crescimento econômico bastante

elevadas, tais como os latino-americanos, cuja independência política tinha sido

alcançada no princípio do século XIX, mostravam-se limitados pela profundidade da

sua dependência econômica e política da economia internacional. Seu crescimento

econômico parecia continuar destinado a acumular miséria, analfabetismo e uma

distribuição de renda cada vez mais desigual. Daí a necessidade de buscar novas

orientações teóricas para pensar as possibilidades de desenvolvimento no Brasil e na

América Latina. Por outro lado, em que pese o esforço do Partido Comunista para

demonstrar que a revolução cubana seguira o roteiro previsto por suas teses, ou seja, que

em sua primeira fase tinha sido democrático-burguesa de libertação nacional, feita a

partir de uma ampla aliança política, com a presença da burguesia nacional, e que tinha

rapidamente avançado para a fase socialista, logo surgiram dúvidas em seu interior

sobre a interpretação e o significado político do processo revolucionário cubano. Na

verdade, aspectos complicados e inéditos deste processo – principalmente no que diz

respeito ao uso da guerra de guerrilhas – passaram a exercer uma influência

considerável nas críticas sofridas pelo PCB antes de 1964.

Desse modo, pode-se afirmar que a Polop surge em um contexto de desilusão

desenvolvimentista e de renovação das esquerdas brasileiras diante do sucesso da

revolução cubana. Seus primeiros dirigentes uniram-se em torno de questões como a

“condenação da política de colaboração de classes dirigida pelo PCB, PSB, e PTB, o

reconhecimento do papel da classe operaria como força aglutinadora de uma frente de

trabalhadores da cidade e do campo, a defesa da construção de um partido

representativo da classe operária, em oposição aos partidos burgueses e reformistas, a

defesa do caráter socialista de qualquer revolução no Brasil, e a crítica às deformações

dos estados do então campo socialista, mas solidariedade a esses países em seus

conflitos com o sistema imperialista”.

Criado em 1965, o Movimiento surge em tempos democráticos, durante o

governo de Eduardo Nicanor Frei Montalva, do Partido Democrata Cristão, formado em

1957 por dissidentes de outros partidos tidos como conservadores pelas esquerdas.

Acusado de reformista, o PDC cumpriria papel fundamental nos capítulos seguintes da

história do Chile que culminariam com o golpe de 73. Frei havia vencido Salvador

Allende nas eleições de 1964, ao que se seguiu uma multiplicação das cisões e

questionamentos entre as esquerdas, relacionados não apenas ao caminho eleitoral como

único legitimo para a chegada à presidência, mas também no que se refere ao programa

comunista de “luta antiimperialista, antioligárquica e antifeudal”. Ao mesmo tempo, a

vitória de Frei seria ainda pequena demonstração da força ambígua do cristianismo no

Chile. A mesma Igreja Católica que, em grande parte apoiou o golpe e manteve posição

ambivalente durante quase todo o período ditatorial, forneceu as bases de um ethos de

solidariedade presente nas parcelas mais radicais do MIR. Esta é a versão que nos conta

o ex-mirista e historiador, hoje consagrado internamente, Gabriel Salazar Vergara.

Torturado pelo tenente Miguel Krassnoff – membro da Policia Secreta Direção de

Inteligência Nacional (DINA) durante a ditadura - Salazar recorda que embora tenha

deixado de ser católico bastante jovem, guardou certa “sensibilidade”, e lembra que uma

quantidade enorme de católicos fez parte do MIR ao longo do tempo. “Os mais

dedicados eram os que vinham do mundo católico”, afirma. Desde sua fundação, o

grupo Revolucionário teria como pauta o “fim da conciliação” com a Democracia

Cristã, e, a mais radical das suas propostas, a defesa da revolução socialista continental.

Quando Allende foi eleito, o MIR aprofundou tanto as suas criticas à esquerda

tradicional, “conciliadora, reformista e eleitoreira”, como já mencionado, quanto à

defesa da revolução socialista pela via armada - “Consciência e fuzil!”, conclamava seu

hino. Em seus documentos oficiais, o Movimiento menciona de forma recorrente a

vitória da revolução cubana, e as experiências de guerrilha na América do Sul como

mostras de uma atmosfera política de questionamento continental da institucionalidade

democrática. Reunindo dissidentes Comunistas e Socialistas, trotkistas e grupos

frustrados com a politica tradicional, o MIR constituiu-se sob a liderança do médico

trotkista Enrique Sepúlveda, e de dirigentes trabalhadores como Andrés Pascal Allende,

Arturo Villabela, Nelson Gutiérrez, e os irmãos Miguel y Edgardo Enríquez.

Miguel Enriquez tornou-se secretário geral do partido em 1967 e hoje empresta

seu nome ao Centro de Estudos cujo site torna acessível grande volume de documentos,

bibliografia e debates historiográficos relacionados à história política recente do Chile.

Em 2004, os historiadores Pedro Naranjo e Mauricio Ahumada publicaram biografia de

Miguel Enriquez na qual contam como “em seus dez últimos anos de existência, muitas

vezes, sua vida se funde com a história do MIR”. Entre 1967, até sua morte, em outubro

de 1974, Enriquez teria exercido uma liderança politica voltada para uma radicalidade

antidogmática da esquerda revolucionária, no sentido de sua independência política e

organizacional diante dos partidos e grupos marxistas e leninistas em geral. Tinha 23

anos quando foi eleito dirigente máximo do MIR, e terminava a faculdade de medicina

em Concepción. Em 1970, após a vitória de Allende teria declarado:

Na Unidade Popular estão aqueles que buscam a conquista do poder pela via eleitoral. Cremos que esse é um caminho equivocado. Mas o fato de diferirmos nos métodos não nos converte em inimigos. (...) A maioria eleitoral da esquerda ou um governo da UP são um excelente ponto de partida para a luta direta pela conquista do poder pelos trabalhadores. Por outro lado, formaliza-se um impasse que será resolvido por um enfrentamento entre os pobres do campo e a cidade com seus donos do poder e

riqueza, e hoje isso está postergado, mas certamente se resolverá pela via mais violenta... (NARANJO, Pedro, 2004).

Inicia-se um período de inserção e mobilização entre estudantes universitários,

camponeses, mapuches, e, sobretudo, entre os “pobladores”, algo como favelados, das

cidades marginais de Santiago entre outras regiões, apoiados pelo MIR. Além disso, o

rechaço a qualquer tipo de negociação com a Democracia Cristã foi evidente durante

quase todo o período de governo da Unidade popular de Allende. Após o golpe em 73,

vivendo na clandestinidade Miguel Enríquez, foi encontrado pela DINA e, em

confronto, morreu atingido por 10 tiros.

O MIR não foi, entretanto, apenas um “partido de quadros”, como se costuma

chamar os movimentos de esquerda produtores de interpretações teóricas, muitas vezes

desconectado da realidade social analisada. Segundo Gabriel Salazar é justamente esta

memória, constituída pela “experiência acumulada pelos chilenos nos últimos 30, 35

anos”, que dá ao processo histórico e à política chilena suas especificidades atuais:

Não são discursos públicos, nem textos escolares ou o aparato educacional

formal. A memória social é formada por recordações individuais que se

entrelaçam através da história oral construindo uma maneira coletiva de

recordar. Isto não é nacional, são grupos e comunidades autônomos.

(SALAZAR, Gabriel, 2002)

Talvez seja exatamente esta memória radical que divide a sociedade chilena, de

fato e ainda hoje, e que marca os esforços oficiais em lidar com este passado desde a

redemocratização. Sobre as memórias da tortura, Salazar lembra que “são recordações

extremas, enriquecedoras, independente do lado que se olhe”. Primeiro, “se conhece

melhor a si mesmo em situações limite. (...) Em princípio, ficaram sequelas, me

arrebentaram os ouvidos, me quebraram as costelas, me deixaram aos ossos, mas tudo

isso se curou...”.

No Brasil, a afirmativa recorrente entre homens com histórias como a de Cid

Benjamin, militante político de esquerda nos anos 1960 e 70, e um dos participantes do

sequestro ao embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick em 1969, consiste na

ideia força de que "sem dúvida vivemos num Estado de Direito. As gerações de hoje

não podem imaginar o que é a vida em meio à ditadura". Cid foi preso, torturado e

passou dez anos exílado.

Por toda a América Latina, ditaduras roubaram os 20 anos de muitos estudantes

e trabalhadores que hoje podem falar publicamente dos traumas sofridos, ajudando a

construir memórias sociais revoltosas e conscientes desse passado autoritário. Desde

então, os anos de 1970 são um marco para a trindade violência, representação e

linguagem. Isso porque a violência revolucionária foi abatida pela repressão da máquina

de investigação e tortura dos regimes militares que, por sua vez, estabeleceram um

padrão de violência policial e de repressão social mantido, em grande parte, até os dias

atuais. A representação saiu vitoriosa, em forma de pacto social legislativamente aceito,

formalmente democrata, minado, porém, em suas bases pela desigualdade social e pela

desproporção de poderes que lhe deu origem durante o processo de redemocratização

tanto no Brasil quanto no Chile.

A linguagem pode ser ironicamente equiparada ao terceiro elemento do lema

revolucionário francês; se liberdade e igualdade se forjaram em projetos políticos

distintos tais como liberalismo e comunismo, a fraternidade acabou se perdendo

enquanto ideia-força capaz de sustentar o funcionamento das sociedades. Nos últimos

quarenta anos, é provável que um dos maiores desafios latino americanos tenha sido o

da expressão popular, com tudo o que o termo “popular” apresenta de complexo e

abrangente.