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1 PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE ABREU A Experiência Evangelizadora da Igreja Entre os Sena de Moçambique (1992-2002). Uma Opção Pelos Pobres e Pela Paz SÃO PAULO – 2006 PDF Creator - PDF4Free v2.0 http://www.pdf4free.com

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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSASENHORA DA ASSUNÇÃO

PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE ABREU

A Experiência Evangelizadora da Igreja Entre os Sena deMoçambique (1992-2002). Uma Opção Pelos Pobres e Pela Paz

SÃO PAULO – 2006

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PONTIFÍCIA FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSASENHORA DA ASSUNÇÃO

PAULO ROBERTO TEIXEIRA DE ABREU

A Experiência Evangelizadora da Igreja Entre os Sena deMoçambique (1992-2002). Uma Opção Pelos Pobres e Pela Paz

Dissertação para obtenção do título de Mestreem Teologia Sistemática com concentração emMissiologia no Curso de Pós-graduação daPontifícia Faculdade de Teologia NossaSenhora da Assunção sob a orientação do Prof.Dr. Pe. Pedro Kuniharu Iwashita.

SÃO PAULO – 2006

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Dedico este trabalho ao Povo daRepública de Moçambique, de modoparticular a todos os Asenas deste país.Takhuta Maningi. Mulungu Akhali naImwe Wonsene (Muito obrigado. OSenhor esteja com todos vocês).

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Agradecimentos:

Ao Prof. Dr. Pe. Pedro Iwashita, orientador destetrabalho.

Aos Professores e Funcionários da Pontifícia Faculdadede Teologia Nossa Senhora da Assunção.

A ADVENIAT pela ajuda no financiamento do estudoacadêmico.

A Congregação dos Sagrados Corações.

A Faculdade de Filosofia e Teologia Paulo VI – Mogidas Cruzes.

Aos leigos e leigas da Paróquia de Santa Luzia e São PioX por terem proporcionado trabalho, moradia e atençãoneste último ano de estudos e pesquisa.

Ao Pe. Marcelo Álvares Matias pela partilha efraternidade no ministério e no labor acadêmico.

A todos aqueles que participaram de alguma forma naelaboração deste trabalho.

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Siglas e abreviações

AG – Decreto Ad Gentes.

AGP – Acordo Geral de Paz

ANP – Assembléia Nacional de Pastoral

CEM – Conferência Episcopal dos Bispos de Moçambique

CELAM – Conferência do Episcopado Latino Americano

EN – Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi

FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique.

GS – Constituição Pastoral Gaudium et Spes.

HIV/SIDA – Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida.

IMBISA – Associação Inter-regional dos Bispos da África Austral.

ONG – Organização Não Governamental

OSC – Organização Social Comunal

RMi – Encíclica Redemptoris Missio

RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana

UEM – Universidade Eduardo Mondlane

USAREMO – União dos Sacerdotes e Religiosos Moçambicanos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

I. CAPÍTULO: A ETNIA SENA 12

1. Os Diversos Povos e Culturas da África Subsaariana 13

2. Os Bantos e Alguns Valores Fundamentais de Sua Cultura 16

2.1. A língua comum 17

2.2. A tradição oral 18

2.3. A solidariedade vertical e horizontal 20

2.4. A vida comunitária 21

2.5. A concepção religiosa e a concepção de Deus 23

2.6. A antropologia e a cosmovisão banto 25

3. Os Sena de Moçambique no seio da Civilização Banto 27

4. Os Sena do Moçambique atual: Quem é este povo? 33

II. CAPÍTULO: A ETNIA SENA: ENCONTROS COM AEVANGELIZAÇÃO 38

1. A Evangelização em África: Breve Histórico 38

1.1. O Cristianismo na África Subsaariana 39

1.2. O Cristianismo moderno em África 42

1.3. O tempo de implantação de uma Igreja Africana 46

2. O Fragmentado Processo de Evangelização em Moçambique 48

2.1 . As várias etapas do processo 49

2.1.1. Primeira etapa 49

2.1.2. Segunda etapa 50

2.1.3. Terceira etapa 51

2.1.4. Quarta etapa 52

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2.1.5 . Quinta etapa 57

3. Presença Cristã no Território dos Sena 58

4. As Várias Etapas e Modelos de Evangelização 61

5. Assimilados ou Evangelizados: O Desfio da Inculturação 64

5.1. Os conceitos de Assimilação, Evangelização e inculturação 65

5.1.1. O processo de assimilação e os assimilados em Moçambique 66

5.1.2. Uma tentativa de compreensão do conceito de Evangelização 70

5.1.3. A Inculturação como desafio e proposta para a Evangelização 74

III. CAPÍTULO: OS POBRES E A PAZ, OPÇÕES DE UMAEVANGELIZAÇÃO EM PROCESSO DE INCULTURAÇÃO 79

1. O Recomeço de uma Presença Evangelizadora 81

1.1. A situação das zonas pastorais do Zambeze Oeste e Zambeze Este no final da Guerra

Civil Moçambicana 83

2. Retomada das Antigas Opções: 1ª Assembléia Pastoral de 1977 86

2.1 Atitudes e contribuições significativas 87

2.2 As conclusões da 1ª Assembléia Nacional de Pastoral 93

3. O que nos Dizem Nossos Chefes: A palavra dos Bispos de Moçambique nos Dez PrimeirosAnos de Paz 97

4. “A Igreja das Palhotas”: As Comunidades em Busca de Paz 107

5. Na Tradição e nos Costumes. A Proposta dos mais Pobres 110

IV. CAPÍTULO: OPÇÕES E DESAFIOS DE UMA IGREJA ADULTA 114

1. O Sínodo Diocesano 115

1.1. Alguns critérios ou formas de vida baseada nas tradições culturais mencionadas por

algumas comunidades 120

1.2. Alguns critérios, formas de vida ou atitudes vindas do Marxismo que tentou dirigir a

vida durante tantos anos no passado próximo do país 121

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1.3. Alguns critérios, modelos de vida que vêm da Modernidade 122

2. Reabilitar o Antigo ou Ajudar a Construir o Novo: Duas Tendências da

Evangelização 124

3. Os Novos Desafios Para Manter a Paz 129

4. Duas Pedras no Sapato 136

4.1. A poligamia na tradição cultural banto 137

4.2. A postura da Igreja Local 140

4.3. O culto aos espíritos 143

4.3.1. A postura do passado 144

4.3.2. A perspectiva atual 145

5. Duas Florestas Fazem Chover 147

CONCLUSÃO 149

APÊNDICE 154

ANEXO 185

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E BIBLIOGRÁFICA 203

GLOSSÁRIO 209

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INTRODUÇÃO

Na Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Ecclesia In África”, o Santo Padre João Paulo

II, no breve histórico da evangelização no Continente Africano (cf. nº42-45), acena para os

valores positivos da cultura africana e as opções atuais levadas a cabo pelos povos africanos.

Não obstante, a situação de pobreza e extrema miséria e os conflitos e guerras continuam a ser

um grande desafio para o continente e para as Igrejas locais inseridas em meio ao povo

africano.

A Igreja encontra hoje no Continente Africano terreno fértil para o seu agir

missionário. Em meio a estas experiências humanas, ricas em sua expressão, também

marcadas pelas contradições e limites, encontra-se a possibilidade de levar povos e pessoas a

viver a experiência da humanização mais radical: viver em Deus o serviço e a comunhão com

os mais pobres, descobrindo em meio às experiências humanas, como fazer a experiência de

Deus e dos irmãos.

Este trabalho pretende analisar a experiência evangelizadora da Igreja em

Moçambique, mais especificamente entre os povos da etnia Sena, durante a primeira década

do fim da guerra civil, que compreende o período de 1992 a 2002. Durante este período há

todo um esforço de reorganização e formação de comunidades cristãs, reconstrução e

ocupação das áreas de missão e paróquias, reabertura de centros de formação e estruturas de

apoio nas áreas de educação, saúde e desenvolvimento social. Junto a este esforço há também

projetos e planos de ação na área da evangelização de povos e comunidades em vistas ao

fortalecimento da presença da Igreja.

O trabalho quer contribuir para o avanço da tarefa evangelizadora da Igreja em

Moçambique, de maneira mais específica entre as comunidades da etnia Sena, na medida que,

possa apresentar e contextualizar os elementos principais da etnia e da cultura Sena e as ações

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e tarefas na área da evangelização realizadas junto a algumas comunidades desta etnia no

período acima delimitado.

O trabalho foi desenvolvido através de pesquisa bibliográfica de fontes primárias,

secundárias e outras que pudessem enriquecer o conteúdo do trabalho. São utilizados,

materiais recolhidos através de entrevistas, com pessoas e grupos, que tem participado deste

processo de evangelização em meio à etnia Sena. Como referencial teórico são utilizados: o

conceito de evangelização presente na Exortação Apostólica “Evangelii Nuntiandi” do Papa

Paulo VI e nos outros documentos atuais do Magistério que abordam este tema; a história da

evangelização em Moçambique, com particular atenção à evangelização da etnia Sena e

fontes de pesquisa na área da Teologia, História e outras Ciências como a Antropologia,

Etnologia e Sociologia.

No primeiro capítulo deste trabalho, será apresentada a Etnia Sena. Para isso, se

retorna às origens da Civilização Banto, onde estão enraizados os valores e tradições dos Sena

de Moçambique, valores e tradições que ligam este povo ao grande processo de formação e

consolidação das culturas africanas, e os localiza no grande mosaico de culturas e povos do

Moçambique atual. Povos estes marcados por dificuldades oriundas do sistema colonial, da

guerra pela conquista da libertação do regime colonial e da guerra civil que assolou este país

por dezesseis anos, trazendo conseqüências para todos os âmbitos da vida deste povo e

trazendo grandes desafios para a tarefa da evangelização da Igreja.

No segundo capítulo é apresentado o processo de evangelização realizado em

Moçambique, e como este processo também se dá entre as populações Sena. Nesta parte do

trabalho são utilizados os elementos e os dados da história da evangelização do Continente

Africano, desde os seus primórdios, no grande processo de evangelização empreendido pela

Igreja no Norte da África até chegar aos povos da África Subsaariana, no início do século XV,

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quando a evangelização chega atrelada aos interesses de conquista e exploração da empresa

colonial.

É justamente neste período que os primeiros contatos entre a mensagem do Evangelho

e a cultura dos Sena de Moçambique são estabelecidos, através do encontro destes povos com

os colonizadores e missionários que ocuparam a terra em que habitavam, inclusive os

nomearam e forjaram um modelo de presença evangelizadora que durará até às vésperas da

Independência de Moçambique em 1975. Durante este período, as populações Sena sofrem o

impacto da presença de um Cristianismo colonizador, forjando uma relação de assimilação e

resistência, cujas conseqüências ainda não foram totalmente compreendidas e analisadas.

No terceiro capítulo é analisada o recomeço da evangelização da Igreja entre os Sena

de Moçambique, logo após o fim da Guerra Civil Moçambicana, que termina com a assinatura

do Acordo Geral de Paz em outubro de 1992. Para compreender este recomeço e presença, é

preciso retomar alguns acontecimentos como a Independência do país em 1975 e as

conseqüências para a Igreja; o período de guerra e suas implicações para a evangelização; a

mudança na orientação e perspectiva evangelizadora da Igreja, que busca ajudar a construir e

manter a paz, mudança esta, bem expressada nos antecedentes e nas conclusões da 1ª

Assembléia Nacional de Pastoral, realizada em setembro de 1977, bem como a postura dos

Bispos da Conferência Episcopal de Moçambique em seu exercício de magistério neste

período, e principalmente durante os dez primeiros anos de paz em Moçambique, com claras

opções pela promoção da dignidade da pessoa humana, da justiça, das relações de paz e do

exercício da democracia.

No quarto e último capítulo são apresentadas algumas opções e desafios que a

Igreja em Moçambique assume e enfrenta para seguir sua missão de evangelizar, de modo

específico, as opções e desafios da Arquidiocese da Beira, onde se encontra a maior parte das

comunidades de cultura e tradição Sena. Destaca-se a convocação e preparação do Sínodo

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Diocesano, como evento importante de uma Igreja que quer evangelizar, tendo em conta as

atuais exigências e desafios da realidade e contexto onde está presente; as opções e caminhos

que se quer tomar, e as dificuldades e demandas destas mesmas opções; os elementos próprios

da cultura e das tradições das populações Sena, que ainda necessitam de um maior

conhecimento e atenção da parte da Igreja, nomeadamente a poligamia e o culto aos espíritos;

e a proposta de uma evangelização inculturada, que perceba a possibilidade do testemunho e

anúncio da Boa Nova. Preferencialmente, para os mais sofridos e pobres, através do encontro

e diálogo entre estes dois grandes dons de Deus: o Evangelho e as Culturas.

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Capítulo I

A Etnia Sena

Akulu mba nyakabobo wa mbeu(Os mais velhos são o celeiro das sementes)

Provérbio Sena

Para analisar qualquer aspecto da cultura de um povo, é necessário remontar as suas

raízes e origens na grande história da humanidade. O povo Sena, ou etnia Sena, que será

objeto de interesse neste trabalho, tem suas origens nos povos que habitam a África abaixo

do Deserto do Saara desde o período Neolítico, passando pela chamada Idade do Ferro e o

desenvolvimento da agricultura.

Os chamados Sena, ou Asenas, se estruturam em Moçambique num período bastante

posterior ao que os estudiosos chamam de dispersão dos povos Banto,1 num contexto

bastante específico: de disputas internas por melhores territórios; contatos com diferentes

povos em incursões comerciais e busca de riquezas; e a experiência da colonização

através da penetração e ocupação portuguesa em Moçambique.

Ainda que, distantes no tempo, os Sena de Moçambique estão inseridos no grande

grupo dos povos Banto, conservando os elementos de identidade comum entre esses

diversos povos e contribuindo de maneira específica no enriquecimento dos costumes,

valores e tradições da cultura banto.

1 Cf. MOKHTAR, G. (org). L’Africa Antica. Comitato Scientifico Internazionale per la Redazione di una StoriaGenerale dell’Africa (UNESCO). Vol II. Milano: Ed. Jaca Book, 1980.

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1- Os Diversos Povos e Culturas da África Subsaariana

Alguns pesquisadores apresentam uma hipótese de divisão destes povos em dois

grandes grupos, com certas semelhanças e identidade, mas, separados geograficamente

formando a África Ocidental e a África Austral2.

As semelhanças, e ao mesmo tempo, a unidade destes povos são o domínio e

utilização do ferro, busca e ocupação de áreas para o cultivo, e a existência de uma raiz

comum nas diversas línguas faladas até hoje entre estes povos, ainda que seja difícil

determinar exatamente a origem de cada um dos diversos grupos existentes.

Os países da zona equatorial conheceram um desenvolvimento difícil devido às

condições naturais que dificultavam terrivelmente as relações humanas e, portanto, a

difusão das técnicas. No entanto, a dispersão dos Banto conduzira para estas regiões

povos que utilizavam os metais e floresceram coletividades humanas bem

organizadas, em particular na orla da grande floresta. O problema da migração e da

fixação dos povos bantofones não está ainda esclarecido. É um fenômeno histórico

de primeira importância que se desenrolou numa vastíssima escala de espaço e de

tempo. Tendo principiado provavelmente no início da era cristã, ainda não estava

terminado no fim do século XIX.3

Os processos de expansão, migrações e áreas de dispersão foram decisivos para a

formação e consolidação dos diversos povos e culturas da África Subsaariana.4 As

dificuldades de definição e delimitação da formação dos diversos povos levaram os

especialistas a verificarem a formação das diversas línguas e a descoberta dos elementos

comuns entre as línguas faladas na região de África Ocidental e na África Austral ou Oriental.

2 Cf. MOKHTAR, G. (org). Op.cit. p. 448.3 Cf. Ki-ZERBO, J. História da África Negra. Tomo I. 2ª ed. Lisboa: Europa-América. [s.d.], p.231.4 Cf. GIORDANI, M. C. História de África anterior aos descobrimentos. Petrópolis: Vozes, 1985.

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“Uma visão clara da situação lingüística é necessária para conhecer o início da Idade do

Ferro na África Subsaariana”.5

Através deste recurso e elemento comum, foi possível realizar estudos mais

aprofundados e elaborar as hipóteses para a formação dos diversos povos, ficando evidente a

prevalência de dois grupos básicos: o Nígero-congolês e o Banto. Este último será analisado

de forma mais detalhada, pois é o grupo originário dos diversos povos da África Austral, no

qual estão inseridos os Sena de Moçambique.

Um terço da população negro-africana é banto. Não possuem características

antropológicas comuns e definidas. As diferenças são até muito evidentes. Estão

divididos em vários grupos. Uma divisão mais pormenorizada distingue vários

grupos com características geográficas e com traços culturais diferenciados, sempre

acidentais em muitos aspectos: Banto do noroeste, do sudeste, equatorial, do

nordeste, semi-banto dos Camarões, central, dos Grandes Lagos, do sudoeste, do

ciclo zambeziano, do Zambezi médio, banto com traços camitas e banto do Congo

sul.6

Aléxis Kagame opina que o termo “Banto”, como tal, não é aplicado em toda a área da

civilização banto. “O único critério óbvio que marca a unidade cultural de todas as zonas é o

sistema de línguas com classes e a unidade evidente do vocabulário básico”.7 E levanta uma

hipótese explicativa da gênese deste fato. O povoamento inicial fez-se em dois movimentos: o

oriental partiu do Vale do Nilo, ou então, da costa oriental, ou simultaneamente destes dois

pontos, e chegou a atual fronteira do Zimbábue com a África do Sul com um ramo que se

estendeu até ao centro do Zaire, atual República Democrática do Congo; o movimento

5 Cf. MOKHTAR, G. (org). Op.cit p. 449.6 Cf. ALTUNA, R. R. A. Cultura Tradicional Bantu. Luanda-Angola: Edição do Secretariado Arquidiocesanode Pastoral, 1985. p.19.7 Ibidem. p.19.

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ocidental, partiu dos Camarões, espalhou-se pela costa atlântica, chegou ao Congo, passou o

rio Zaire por Kinshasa, estendeu-se até o sudeste e aqui se uniu ao ramo oriental.

As dificuldades em estabelecer, com determinação e precisão, as áreas e limites desta

expansão são atestadas por diversos historiadores e estudiosos dos povos bantos.

Fixar em África limites de áreas de civilização bem determinadas é

tarefa que os acontecimentos históricos [...] nada facilitam. A

insegurança, a pilhagem e a ruína levaram muitas vezes minúsculas

comunidades a fecharem-se sobre si mesmas e se isolarem. Outras

vezes foram aniquiladas sociedades cujos descendentes, integrados

noutros agrupamentos, puderam conservar algumas relíquias de um

passado desaparecido. Daí um extremo particularismo de grupos

humanos, juntamente com a extensão por vezes desmesurada de certos

elementos de civilização.8

No entanto, estas dificuldades não impedem o conhecimento da riqueza e diversidade

que significou para o continente africano o surgimento, a dispersão e migração dos Banto e o

acesso aos valores fundamentais de uma cultura, expressos na unidade e na especificidade de

cada um dos povos resultantes deste processo.

8Cf. PAULME, D. As civilizações africanas. Lisboa: Europa-América, 1977. p. 55.

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2- Os Banto e Alguns Valores Fundamentais de Sua Cultura

Ainda que as origens dos diversos povos africanos não estejam totalmente

identificadas e haja diversas hipóteses e teorias no estudo destas origens, torna-se importante

verificar estes dados para compreender a realidade atual e o passado recente dos povos que

hoje habitam este imenso continente. Em termos de tempo geológico, a multiplicação dos

homens em África – como nos outros lugares – começou apenas ontem. Não caberá a este

estudo uma análise profunda dos aspectos paleontológicos ou arqueológicos que estão

presentes na história do surgimento ou da presença humana neste continente. “Contudo, em

termos de décadas e de milênios, começou já há tanto tempo, que os caminhos que seguiu e as

condições que a promoveram pertencem somente ao caminho da especulação inteligente”.9

Quanto aos Banto, dos quais originaram-se os diversos grupos e as centenas de línguas

faladas na África Subsaariana, é possível, graças ao trabalho daqueles que se dedicaram e

ainda se dedicam ao estudo profundo e sério dos valores e dos elementos constitutivos deste

povo, recuperar algo de sua riqueza vital e de sua unidade cultural, na tentativa de

compreender o hoje de muitos destes povos, que mesmo distantes milhares de anos da

formação, expansão e dispersão dos Banto pela África, guardam e passam através das

gerações, utilizando os meios e veículos de transmissão adquiridos pela tradição e pelos

costumes, esta riqueza vital e os seus valores culturais.

Há, aproximadamente, 500 povos Banto. Assim, não se pode falar de “raça banto”,

mas de “povos banto”, isto é, comunidades culturais com civilização comum e línguas

aparentadas. Depois de tantos séculos em que se realizaram muitos deslocamentos,

9 Cf. DAVIDSON, B. Revelando a Velha África. 2 ed. Lisboa: Prelo Editora, 1977. p.24-25.

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cruzamentos ou guerras e foram tão diversas as influencias recebidas, os grupos banto

conservam ainda raízes de um tronco originário comum.

Destes diversos elementos, optamos por destacar alguns que serão importantes dentro

do contexto de todo o trabalho, pois refletem aquilo que há de mais original e que, de certo

modo está presente no ciclo vital e na produção cultural dos diferentes povos que têm sua

origem na cultura Banto, inclusive os Sena de Moçambique. A conservação destes e de outros

valores através dos tempos, caracterizam e identificam os diversos povos de origem banto,

presentes hoje no continente africano, mas, a modificação e transformação e a criação de

sistemas de referências a partir da constituição e da história de cada povo, não impedem que

estes valores sejam re-interpretados e atualizados.

2.1- A língua comum.

As línguas banto possuem uma unidade real e um grau de semelhança tão forte, que se

conclui que partiram de um tronco primitivo comum e se desenvolveram juntamente com o

processo de expansão e migração formando um mosaico lingüístico variado e rico.

As línguas banto formam o grupo mais maciço e uniforme. São tão semelhantes que

se torna difícil classificar. São faladas na Uganda, Kénia, Tanzânia, Rwanda,

Burundi, Zâmbia, Moçambique, Zimbabwe, África do Sul, Angola, Zaire, Gabão,

Camarões, República do Congo, Malawi, Botswana, Lesotho. Abrangem quase 200

grupos.10

Os prefixos caracterizam as línguas banto e determinam os princípios de classificação

e concordância das palavras. É também muito variado o emprego de prefixos e sufixos. O uso

10 Cf. ALTUNA, R. R. A. Cultura Tradicional Bantu. Op.cit. p.23.

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de afixos permite modificar o sentido, a categoria e a função da palavra sem alterar a unidade

fundamental. A língua adquire assim uma notável flexibilidade. O sistema de classes

nominais é uma característica banto, assim como o emprego de onomatopéias, advérbios

descritivos, ausência de gênero e imagens vocais.

São riquíssimas as formas verbais. “Cada ação, cada atitude tem um verbo próprio,

preciso, pitoresco. É o reflexo da participação constante e variada do indivíduo com o meio

ambiente”.11 É muito importante a modalidade concreta de cada ação, onde os elementos da

vida e do cotidiano recebem significado e consistência e entra no referencial do grupo com

unidade de sentido e realização. O verbo, rico em flexões, por si mesmo exprime

concretamente cada ação, cada comportamento. O caráter sintético das línguas revela a

concepção que o banto tem do universo, de si próprio e das forças invisíveis que regem este

universo e que estão unidas e integradas de maneira harmônica.

Os Banto, além do nítido parentesco lingüístico conservam um fundo de crenças, ritos

e costumes similares, uma cultura com traços específicos e idênticos que os assemelha e

agrupa independentemente da identidade racial.

2.2- A tradição oral

Durante muito tempo se pensou que os povos sem escrita eram povos sem cultura. As

diversas culturas da África Subsaariana não possuem escrita; a chamada África Negra mesmo

sem a escrita, conseguiu conservar o seu passado e tradições e fazer com que os

conhecimentos e a cultura fossem conhecidos e transmitidos. A força da tradição oral é a

fonte e a via pela qual a cultura se mantém e, hoje é conhecida e valorizada como uma das

11 Ibidem, p. 23.

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riquezas do povo banto. Através da tradição oral, um patrimônio lingüístico complexo e

variado foi conservado e é transmitido e modificado através das gerações.

Na realidade, toda a história dos povos africanos, salvo raríssimas exceções, é uma

história oral. Não constitui, entretanto, uma simples parolagem, pois só veicula o

essencial. Cuida apenas das questões que merecem ser tratadas: de onde vem o

homem? Qual é a sua função na terra? Como é que ele morre e, durante sua vida,

que laços aspiram estabelecer com Deus? Em suma, a tradição oral africana é um

sistema de auto-interpretação, pelo qual a sociedade explica-se a si mesma. É

verdade que nem os sistemas cumulativos da história-ciência européia, nem a

tradição oral africana tornam inteligíveis as desprezíveis causalidades do mundo

visível. Em contraposição, a história falada dos africanos se aproxima de uma

verdade ontológica. Ou, mais precisamente, ela atrai o olhar do homem para

questões ontológicas descuradas pela história-ciência das sociedades européias.12

A civilização banto ou a civilização negro-africana está baseada essencialmente na

palavra, e esta está garantida na força da tradição oral. Esta oralidade não está só ou isolada

dos outros elementos culturais, mas é completada por ritos e símbolos, tendo a palavra como

veículo de compreensão e transmissão dos sentidos e significados, para que possam ser

compreendidos e tornarem-se eficazes. A Palavra, por sua vez, está presente nas diversas

manifestações da vida social, desde a arte até a magia, passando pelo religioso e pelo político.

Para além do seu dinamismo e valor vital a palavra torna-se o único meio de conservar e

transmitir o patrimônio cultural entre os povos. A tradição oral desempenha a função de

mantenedora e transmissora, funciona como uma enciclopédia viva, é onde reside toda a

história e formação cultural, variada e rica, pois contém elementos próprios da tradição

ancestral conjugada com os elementos produzidos pelo grupo, que a atualiza através dos

12 Cf. ZIEGLER, J. O poder africano. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1972. p. 163.

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contos, ritos, danças, esculturas, jogos e músicas completando a herança cultural dos povos

banto.13

A palavra, na tradição oral, é a própria pessoa humana, pois nela se encontra o respeito

profundo pelo antepassado que a transmitiu, juntamente com a força vital que perpassa os

indivíduos e todo o grupo. A palavra pronunciada torna-se vida para a comunidade e

desempenha uma função sócio religiosa, é o laço vital que une os vivos aos antepassados. Na

tradição oral, a transmissão da palavra na família através dos adultos e na comunidade através

dos anciãos, recria e fundamenta a vida e a unidade grupal.14

2.3 A solidariedade vertical e horizontal

“A solidariedade banto aparece com características acentuadas, específicas e originais.

É uma exigência natural, e sobretudo, estrutural da sua filosofia e religião”.15Esta

solidariedade esta fundamentada na “unidade de vida”, na relação recíproca entre os

descendentes de um idêntico antepassado, estendendo-se através dos laços familiares e

sangüíneos de forma quase indissolúvel. Em África, esta solidariedade só pode ser

compreendida no universo grupal-familiar e na corrente vital que fundamenta, condiciona e

matiza as instituições familiares, sociais, políticas, éticas e religiosas dos grupos banto.

O banto sabe que, a partir do constitutivo do seu ser, está vitalmente unido, e para

sempre, com a sua comunidade. E que nada nem ninguém o deve separar, individualizar ou

isolar. A solidão, o individualismo, além de repugnarem e serem incompreensíveis acarretar-

lhes-iam o desespero e o aniquilamento. O homem e a mulher “só” não existem nestas

sociedades. A consciência de que é útil e necessário na convivência com o grupo assegura ao

homem e à mulher banto uma relação que exclui qualquer tipo de marginalização ou

13 GIORDANI, M. C. Op.cit. p. 24-26.14 Ibidem.15 Cf. ALTUNA, R. R. A. Cultura Tradicional Bantu. Op.cit. p.197.

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indiferença. A solidão e o individualismo também não encontram lugar, é o que afirma alguns

provérbios do povo Sena: Mphanda nkhukhala miti miwiri (uma forquilha são dois ramos),

Anthu awiri ndi ntombwe (ser dois é um remédio), Nsomba na madzi nkhabe kusiyana tayo (o

peixe e a água não se separam).16

Os povos banto apresentam uma excelente preparação para a vida e para a

convivência. O seu ser estrutura-se a partir da inclusão permanente na corrente vital. Cada

pessoa deve ser integrada no mundo visível e invisível, em harmonia com o cosmos, com a

sociedade e em especial com o grupo de consangüíneos. A solidariedade banto é unilateral no

seu ponto de arranque e bilateral no seu prolongamento e desenvolvimento. O indivíduo é

duplamente solidário: Com os antepassados está ligado vitalmente: é a solidariedade vertical,

de origem, sagrada, constante; com os membros vivos de seu grupo está unido pelo mesmo

sangue: é a solidariedade horizontal.17

2.4 A vida comunitária

A comunidade dá existência, formação, sentido e valoriza o indivíduo que, desde o

nascimento até à morte, se subordina ao grupo, o único que estabelece as diretrizes da vida

social. Somente no seu interior são eficazes os usos e costumes. A solidariedade funda-se num

sentimento de igualdade. É certo que existem a hierarquia e as castas sociais, mas a autoridade

deve estar a serviço da comunidade, que é, sem dúvida a protagonista da vida. A sociedade

estrutura-se à base das comunidades e dos meios de vida. Ainda que aos olhos do mundo

ocidental seja difícil de compreender as relações travadas no interior dos grupos, onde os

conceitos e critérios de convivência social e regulamento da vida sejam por demais distintos

16 Cf. PAMPALK, J. Nzerumbawiri. Provérbios Sena. Maputo-Moçambique: Paulinas, 2003. p.45-46.17 Cf. MULAGO, G. C. La religion traditionelle de les bantus et leur vision du monde. 2e. édition. Kinshasa:Faculte de Theologie Catolique, 1980. p. 124-130.

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do modelo das sociedades modernas, “ a solidariedade é a primeira riqueza do homem

africano e a qualidade cardeal da raça negra”18

Talvez seja este valor da vida comunitária o mais ameaçado atualmente dentro do

horizonte cultural dos povos banto. Contudo, é de se admirar que durante milênios esta

necessidade da vida em conjunto tenha subsistido e permaneça como uma das manifestações

decisivas da cultura banto. As comunidades estão organizadas de tal forma a proteger e

fortalecer este elemento vital. “A vida em comum, a solidariedade, a reciprocidade, o calor, o

amparo, a dedicação, a generosidade, a amizade, e a defesa comunitárias são as manifestações

mais belas e decisivas da cultura banto”.19

A vida em comunidade apresenta-se como um imperativo para o homem e a mulher

banto, não se trata de uma opção ou um sistema de pacto de convivência ou uma decisão

individual ou coletiva, com base em afetos ou interesses. A pertença à comunidade nasce

como a própria vida e sem ela não será possível manter-se, por isso a vida comunitária se

enquadra no esquema vital da cultura banto. Resiste até hoje como uma forma de recusa ao

individualismo e ao egoísmo.

A vida em comunidade proporciona a formação e educação da pessoa e garante a sua

pertença e manutenção. No grupo, em comunidade, encontra-se a segurança e a participação

pessoal na vida dos outros membros, mas também na vida dos antepassados, vitalizadores

permanentes e imprescindíveis. Esta solidariedade reveste-se de um caráter religioso, pois o

empenho do banto na vida comunitária, não é apenas de fundo social ou político, mas está

alicerçada no conceito de vida participada. A própria liberdade banto está sempre relacionada

com este imperativo de vida participada. Os objetivos da vida comunitária superam a vontade

pessoal e obrigam a gestos comunitários contínuos, que modelam e sustentam a relações

pessoais e grupais.

18 Cf. ALTUNA, R. R. A. Op.cit. p.204.19 Ibidem.

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Hoje que o Ocidente, - que nos impôs o seu modelo de educação, - é prisioneiro de

suas próprias contradições internas e procura uma nova via para formar os seus

filhos, - a África, - que fala cada vez mais em descobrir a sua “essência particular”, -

deve sem dúvida orientar todos os seus esforços de investigação para o

redescobrimento do seu sistema de educação pré-colonial: Só ele lhe permitirá

compreender com clareza o seu “real social”, ou por outra, compreender todo um

conjunto lógico em que se entrelaçam normalmente uma série de comunhões:

comunhão com o cosmos...com a terra... com a natureza... com os outros homens

seus semelhantes, sem os quais e fora dos quais se nega a conceber a sua

existência.20

As manifestações mais positivas da vida comunitária expressam-se no gozo de viver

em comum, no prazer de comungar na amizade, alegria, divertimento, sofrimento, alimento,

trabalho, ritos, cultos. Abundam gestos condescendentes de amizade, como a saudação, os

bons votos, a educação, o trato e o respeito pelas pessoas. As suas maneiras são harmoniosas;

não se conhece a brusquidão e a grosseria. Na sua simplicidade, a urbanidade é afetuosa, e na

sua espontaneidade, muito delicada. Chega à finura a hospitalidade, uma vez que nenhum

estranho se lhe nega a comida familiar e a casa, além de outras atenções.21

2.5- A concepção religiosa e a concepção de Deus

O indivíduo, no marco da existência tradicional, está imerso numa participação religiosa

que começa antes do seu nascimento e continua depois de sua morte. Para ele e para a

sociedade a que pertence, viver é tomar parte num drama religioso.

20 Cf. SALIFOU, A. L´Éducation Africaine Traditionelle. Paris: Présence Africaine, 89. 1974. p.4.21 Cf. ALTUNA, R. R. A. Op.cit. p.204

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O banto associa, de uma maneira ou outra, Deus com o céu. Do ponto de vista

ontológico, Deus é transcendente, no sentido de que todas as coisas foram feitas por ele. Sua

posição é estar acima dos seres espirituais, dos homens, dos objetos e dos fenômenos naturais.

Em poder e em conhecimento ele é supremo. Apesar da transcendência, Deus é imanente

porque os homens podem estabelecer e estabelecem realmente um contato com ele. Há

consciência plena de que Deus está totalmente presente na vida de cada pessoa. Deus é o

manancial e a plenitude da vida, por isso cada um tem a responsabilidade de proteger esta

vida e transmiti-la, sem a destruir.22

Os africanos têm um profundo sentido religioso, o sentido do sagrado, o sentido da

existência de Deus criador e de um mundo espiritual. A realidade do pecado, nas

suas formas individuais e sociais é bem percebida pela consciência daqueles povos,

como sentida também a necessidade de ritos de purificação e expiação.23

A religião tradicional constitui um sistema de referência cultural muito importante para o

povo africano, na medida que, as relações com os espíritos promovem as relações entre os

crentes e todo o processo de desenvolvimento é marcado por rituais mágico-religiosos. Há um

sistema de intercâmbio entre vivos e mortos muito significativo: através da religião

tradicional o grupo se mantém coeso diante das dificuldades e adversidades.

Os antepassados possuem uma importância fundamental para o povo banto.24 Tocar em

um antepassado significa tocar em todo o sistema e por isso o sistema religioso funciona

como um sistema de referência para toda a sociedade. Quando se observa e se convive com o

povo africano, nota-se um silêncio acerca de Deus. Apesar desse silêncio, a existência de

22 Cf. MULAGO, G. C. Op.cit. p. 124-130.23 Cf. JOÃO PAULO II. Exortação Apostólica pós Sinodal: Ecclesia in Africa. nº42. São Paulo: Paulinas, 1995.24 Cf. CENTRO DE FORMAÇÃO DE NAZARÉ. Os antepassados e sua veneração. Actas da Segunda SemanaTeológica da Beira. Beira, 1997.

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Deus é afirmada claramente e se manifesta como “presença e ausência”. Há autores que

apelidam de “mística” a idéia africana de Deus, porque seria baseada numa evidência

diretamente descoberta pela pessoa dentro de si mesma. A representação de Deus, quer dizer,

o modo de explicar como Deus é, oferece diferenças notáveis, seja entre os vários povos

africanos, seja entre eles e os outros povos, porque ao falar das mesmas coisas intervém a

diferença de culturas.25

Na realidade a noção de Deus não é de um Deus longínquo nem inativo, mas um Deus

seguro, que não traz problema, que não se zanga, não precisa de conselheiros e de chamadas

de atenção. Seria falta de respeito ou perda de tempo o infortunar, porque ele é livre e

soberano, sabe o que faz e está sempre presente. Deus está longe, mas sem estar fora. Ele está

perto de nós, mas à maneira dele e ao mesmo tempo está extremamente longe, isto é, não está

ao nosso dispor como um talismã ou uma coisa.

2.6- A antropologia e a cosmovisão banto.

Para compreender a cultura banto temos que nos ater necessariamente à dinâmica vital

do povo africano, que está estritamente ligada a terra, à mulher, aos antepassados e a Deus.

Na simbologia dos povos banto, mulher e terra são análogos. Ambas estão ligadas pela

capacidade inerente de fecundar, o que garante a sobrevivência, reprodução e continuidade do

grupo. A mulher imita a terra, que é a grande geradora, daí o surgir de uma forte ligação e

uma solidariedade mística entre a pessoa e sua terra natal. É importante para o africano ser

sepultado na sua terra natal, o mesmo solo onde foram sepultados os antepassados e onde os

25 OLIVEIRA, I.D. Identidade negada e o rosto desfigurado do povo africano. São Paulo: Annablume, 2002. P.103-115.

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antepassados garantem a fecundidade e a vida. Morrer no solo natal tem significado porque o

limiar é único.26

Somente nesse contexto se pode compreender a pessoa humana. Ela só tem valor

enquanto integrada na comunidade dos vivos e dos antepassados e, a sua vida só é garantida a

partir da sua íntima ligação com a terra, que lhe garantirá os bens para sua sobrevivência.27

O nascimento de uma criança é o acontecimento mais importante no seio das

comunidades banto; a criança é vista como hóspede bem-vinda à casa. Os pais, e

principalmente, a mãe, devem assegurar que a criança não seja rejeitada. As etapas de

crescimento são assinaladas por modificações biológicas e através dos ritos de passagem onde

participa todo o grupo, e inserem o novo ser na convivência e no ciclo vital da comunidade.28

O pensamento tradicional é antropocêntrico, isto é, toda a reflexão sobre as forças da

natureza, sobre os espíritos gira à volta do homem. Por exemplo, não se busca nunca a

natureza do espírito, mas procura-se sim, saber aquilo que o espírito é para o homem.

Conhecem-se os espíritos através das relações que têm com o homem. Tal antropocentrismo

exprime-se numa solidariedade com os outros homens, daí que o homem vive para a

comunidade e em comunidade.

O homem no universo visível: O homem não só está em comunhão com os outros, mas

também como o cosmo. Ele não só entra em comunhão com as forças do cosmo, mas percorre

o seu caminho para Deus, acompanhado e ajudado pelas forças desse mesmo cosmo, estando

assim, integrado no mundo.

O homem no universo invisível: Para o africano, o universo invisível é mais

importante que o visível, pois é nele que tudo se joga. Nele se joga o destino do homem no

antagonismo entre as forças boas e más. O mal existe, contudo, a mentalidade africana guarda

26 Cf. OLIVEIRA, I. D. Op.cit. p.109.27 Cf. MUKAGO, G. C. Op.cit. p. 133.28 Cf. OLIVEIRA, I. D. Op.cit. 109.

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a idéia de que Deus é bom. O mal não é de Deus, mas pertence às forças cegas e aos espíritos,

inimigos de Deus.

O mundo visível é, portanto, povoado de forças que exercem a cada momento uma

influência preponderante sobre a vida dos homens e das sociedades. Assim, no concreto da

existência, as preocupações são polarizadas por estes seres, muito mais do que por Deus e

pelo mundo visível. Estes seres, com efeito, contêm em si o poder sobre as forças benéficas e

maléficas. Delas dependem a fertilidade dos campos, a fecundidade das famílias, a doença, a

boa ou a má sorte e mesmo a própria morte.29

Estes elementos fundamentais e vitais marcam e identificam os diversos povos banto,

estão presentes nos atuais sistemas de organização dos grupos populacionais e comunidades

da África Subsaariana. Alguns destes e outros elementos têm sido reformulados e ganham

novo significado nas comunidades atuais, como no caso dos Sena de Moçambique. No

desenvolver do trabalho, os elementos e valores do povo Sena serão apresentados e analisados

a partir deste sistema de referência que é a cultura banto.

3- Os Sena de Moçambique no seio da Civilização Banto

Há grandes lacunas nos estudos feitos acerca dos povos de Moçambique, desde as

hipóteses acerca da expansão e migrações dos bantos até o século passado. Há alguns estudos

etnológicos sobre alguns povos de Moçambique que, de maneira séria e equilibrada nos

oferecem alguns elementos de compreensão, ainda que foram elaborados a partir dos

29 MULAGO, G. C. Op.cit. p.138-139.

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interesses coloniais. Nos últimos tempos tem surgido o interesse pelo estudo dos diversos

grupos e línguas que constituem o Moçambique atual.30

Temos que ter claro que, quando tratamos do chamado “povo moçambicano” estamos

diante de uma diversidade de grupos populacionais ou étnicos diferentes, com características

sócio-culturais próprias, possuindo línguas, costumes, tradições, modos de conviver e

interagir com o ambiente bastante diversificado, de acordo com a região onde se encontram e

conforme a organização e sistema de referencia que têm adquirido através de sua história.31

Estes diversos grupos guardam, no entanto, uma matriz comum. Não se pode negar

que a maioria da população pertencente aos grupos populacionais de Moçambique são de

origem banto. Conservam os valores fundamentais e guardam o arcabouço etnológico, bem

como a língua e os costumes conservados ou modificados de acordo com a produção cultural

de cada grupo. As constantes migrações, as disputas por melhores territórios, as guerras

tribais, o contato com os outros povos e, principalmente a experiência da colonização levou

estes grupos a forjarem uma organização e um sistema complexo para a sua própria

manutenção e reprodução através dos tempos.32 Este sistema, com suas regras e normas,

constituiu-se em importantes valores culturais, conservados e transformados no seio de cada

grupo populacional. Guarda os valores ligados a um passado e ao mesmo tempo favorece o

presente e preserva o futuro destes povos.

Atualmente, uma completa descrição e definição de todos os grupos populacionais de

Moçambique são uma tarefa ainda não realizada. Será possível apresentar aqui alguns

elementos da historiografia33 que possibilitem uma definição do povo Sena de Moçambique,

30 Cf. DUARTE, T. Contribuição para o estudo da Unidade Nacional em Moçambique. Maputo: Departamentode Arqueologia e Antropologia – UEM, 1988, apud OLIVEIRA, I. D. Op.cit p.22-24.31 Ibidem.32 Ibidem.33 Cf. NEWIT, M. História de Moçambique. Lisboa: Publicações Európa-América, 1997. SERRA, C. Históriade Moçambique. Vol. I. Maputo: Livraria Universitária – UEM, 2000.

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na tentativa de descobrir suas origens, constituição e desenvolvimento neste rico mosaico de

populações e culturas.

Num dos estudos sobre os povos de Moçambique realizado no tempo colonial34

encontramos a seguinte referencia sobre os Sena:

Senas (Sena) habitam, sobretudo, as circunscrições de Chemba, Cheringoma e Sena.

Um pequeno número encontra-se em Mutarara. O termo pelo qual são conhecidos

não é de origem banto. Junod considera-os Manganjas (portanto oriundos da

margem esquerda do Zambeze e de stokc Marave) cruzados com Barués, Tongas e

Podzos. Não se pode, pois, dizer que exista qualquer grupo ou subgrupo Sena com

entidade étnica: são uma mistura de vários grupos que tomaram a designação dada

por estrangeiros á terra. Os clãs mais freqüentes são: Bande e Marunga (do norte e

oeste); Tembo, Chilendje e Makate (de origem barué e tonga); Thambu, Chawu,

Muwera, Mbadzo (de origem podzo); Nyangombe, Simboti, Duwo (de origem

Teve). O clã é patrilinear e exógamo. Não praticam a circuncisão. O casamento é

virilocal e por compensação, pertencendo os filhos ao pai. A sucessão defere-se no

filho mais velho. Cota considera-os predominantemente patriarcais.35

Em um texto um pouco mais antigo encontramos a seguinte nota acerca das

populações Sena em Moçambique:

O Noroeste da Província e a maior parte do vale do Zambeze são ocupados pelo

grande grupo Nhanja. Na margem direita do médio Zambeze pertencem a este

grande grupo os À-Tongas, Vá-nhungué, À-tandes, etc. Quanto aos Senas, sem

34 Esta expressão poderá aparecer mais vezes no texto. Estará sempre em relação ao período de ocupação ecolonização portuguesa em Moçambique que, de acordo com alguns historiadores, tem seu marco inicial dereferência a partir da Conferencia de Berlim em 1885 e termina em 1975 com a independência do país.35 RITA-FERREIRA, A. Agrupamento e caracterização étnica dos indígenas de Moçambique. Lisboa:Ministério do Ultramar, 1958, p.55-56.

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tradições e assim designados mais pelos antigos portugueses do que por si próprios,

trata-se certamente de uma mescla de Vá-ndaus, Mâ-nganjas e Podzos.36

Em textos mais recentes há tentativas de apresentar os diversos grupos que habitavam,

já há muitos séculos, o chamado Vale do Zambeze, remontando à época do início da ocupação

portuguesa, de onde se originam os nomes dos diversos grupos populacionais conhecidos,

inclusive os Sena. As divisões dos grupos nas diversas regiões foram realizadas pelos

portugueses utilizando uma classificação a partir das línguas comuns utilizadas entre estes

povos.

As primeiras culturas da Idade do Ferro na alta savana do território de Moçambique

datam do século IV. Estes primitivos utilizadores do ferro não possuíam rebanho de gados

nem afastaram totalmente o povo bosquímano que os precedeu. Podem distinguir-se duas

tradições culturais independentes, a dos Ziwa e a dos Urungwe, podendo esta última ter tido

relações com os povos do norte do Zambeze. Os Ziwa, que comerciavam cobre e ouro aluvial

e usavam granito para construir muros e terraços, podem ter sido os antepassados dos

habitantes das terras baixas, conhecidos pelos portugueses por Tongas.37

Nas primeiras descrições que os portugueses fizeram da África Centro-Oriental,

claramente distinguiram três povos africanos. A norte do Zambeze encontravam-se os

Macuas, e o sul era ocupado pelos Carangas e os Tongas.38

O termo tonga aplicava-se aos povos que viviam tanto ao sul quanto Inhambane, bem

como aos que habitavam nas terras interiores de Sofala, no vale do Zambeze e nas terras altas

e de escarpas. Subsistiam dedicando-se ao pastoreio de gado bovino, mas devido às condições

e o clima nas terras baixas, o gado não poderia ocupar um lugar importante na sua economia,

assim estavam privados dos principais meios através dos quais a riqueza era acumulada e

36 BOLÉO, O. Moçambique. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1951. p.240.37 Utilizamos as obras citadas na nota 32 para situar a formação e consolidação dos Senas em Moçambique38 Cf. NEWIT, M. História de Moçambique. Op.cit. p. 46-49.

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redistribuída em África. Esta falta de riqueza pode ser associada e explicar a ausência, dentro

da organização social, de uma classe ou elite dominante, de chefias extensas e poderosas. 39

Os Tongas, de acordo com as descrições da época, não possuíam uma estrutura social

forte e consistente. A base de sua organização política e social era a aldeia governada por um

chefe de linhagem. Faltando os meios para acumular a riqueza pecuária, procuravam

fortalecer-se e expandir as suas linhagens obtendo mulheres pela guerra ou pela compra de

escravos. De fato, a pilhagem de mulheres tornou-se uma importante característica da vida

dos Tongas e de outros povos do Zambeze. Quando os portugueses se estabeleceram no vale

deste rio, cedo descobriram ser fácil recrutar guerreiros tongas caso a derrota do inimigo

pudesse render prisioneiras.40

Havia uma organização de comando e chefia entre os Tongas. Eram governados por

mambos, cujo domínio cobria agrupamentos de aldeias e assentamentos, alguns dos quais

suficientemente grandes para que os portugueses lhes dessem o nome de “reinos”, mas eram o

mais das vezes de dimensões reduzidas e tendiam para a fragmentação segmentaria. Para além

da língua, a unidade cultural entre os Tongas expressava-se através dos santuários das chuvas,

que freqüentemente se estendiam a vastas zonas e congregavam gente de diferentes domínios.

Eram igualmente influentes os espíritos mediúnicos dos chefes falecidos e dos antepassados.

O poder dos espíritos assentava na crença de que os antepassados zelavam pela prosperidade

contínua dos seus descendentes. Tais cultos aos espíritos poderiam associar-se a mambos

poderosos, e mesmo a estrangeiros de prestígio que se haviam introduzido no mundo tonga.

Os guardiões dos santuários das chuvas e os médiuns dos espíritos detinham um poder

político considerável.41

Numa primeira fase, é provável que o povo Tonga-Ziwa tenha ocupado as melhores

zonas das terras altas, mas, a partir do século XIV, acabaram por se deslocar, retirando-se

39 Ibidem.40 Ibidem.41 Cf. SERRA, C. História de Moçambique. Op.cit. p. 38-44.

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gradualmente em direção às terras baixas do vale do Zambeze e da costa marítima, ou se

refugiaram em regiões montanhosas relativamente remotas, como os montes Inyanga, ou em

áreas insalubres para onde se deslocaram a partir dos conflitos e disputas por melhores terras

com os grupos criadores de gado. Quando chegaram os portugueses, a retirada dos Tonga das

terras altas estava longe de ter chegado ao fim. Grupos de populações tonga tinham uma

existência autônoma entre os Caranga até o fim do século XVII, enquanto os terraços e os

muros de pedra que cobrem tantas das encostas dos montes Inyanga apontam para a

sobrevivência de uma população tonga bem organizada, se bem que algo isolada, até o século

XVIII.42

Em finais do século XV, a maior parte das rotas comerciais que descreviam o percurso

entre a costa e o interior eram controladas por chefes tongas. Ao longo do Zambeze, vários

chefes tongas desempenhavam um papel importante no comércio fluvial. O porto fluvial de

Sena43 ficava situado no território do chefe tonga Mpangu, e adquiriu importância como

encruzilhada entre o vale do Shire e as estradas que seguiam para Manica e a alta savana. O

controle destas rotas comerciais permitia ao Tonga aumentar os seus rendimentos cobrando

taxas aos mercadores, recebendo presentes e vendendo os seus serviços como barqueiros e

transportadores.

42 Cf. Cf. NEWIT, M. Op.cit. p. 48.43 A ligação do Povo Sena com a Vila de Sena: Em 1571, Sena era uma “cidade de palhoças”, Mas cerca devinte abastados mercadores muçulmanos ai negociavam.[...] Barreto apoderou-se de Sena depois de os principaiscomerciantes muçulmanos terem sidos massacrados, e a cidade transformou-se no centro administrativo daregião dos Rios. Barreto construiu ai um primeiro forte de pedra, dedicado a São Marçal. Foi estabelecida ai umaguarnição permanente, e , em finais do século XVI, Sena era descrita como uma cidade de dimensõesconsideráveis onde viviam 50 portugueses [...] Para além de funcionar como centro administrativo e eclesiástico,Sena era ainda o ponto de partida para as caravanas cujo destino era o Shire e os campos de ouro de Manica. Ocomércio de Manica dependia da passagem das caravanas de mercadores pelo território barué, o que levava osportugueses a mostrarem-se sempre dispostos a manter relações amigáveis com esta chefia ou, melhor ainda, acontrolá-la. Durante o século XVII, os colonos estacionados em Sena foram aos poucos aumentando o seu poderpolítico à custo dos Quiteves e dos Barués, tratando de anexar muitas chefias tongas situadas à margem sul eacabando por estender o domínio por si exercido a toda uma zona compreendida entre Sena e Sofala. A região doDelta constituía uma dependência da capitania de Sena, e os excedentes agrícolas produzidos nesta zona fértilserviam para fornecer alimentos aos habitantes das cidades junto ao rio e àqueles da Ilha de Moçambique. Àsemelhança de seus pares fixados em torno de Quelimane, também os Tonga, que habitavam a zona baixa doZambeze acabaram por adquirir uma identidade específica derivada da sua associação com os portugueses,tornando-se conhecidos por Asenas. Cf. NEWIT, M. Op.cit. p. 134-135.

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Quando os portugueses começaram as incursões no território moçambicano, as tribos

tongas estavam sendo pressionadas pelos chefes carangas, possuidores de gado, que ganharam

bastante com eles no decorrer do século XVI. Em muitos aspectos, a tentativa portuguesa de

conquistar as terras altas servindo-se de tropas recrutadas entre os Tonga, que começou em

1569 e atingiu seu apogeu em meados do século XVII, se deu no contexto das disputas entre

os Tonga e seus inimigos de longa data, os Caranga. Do mesmo modo que outros grupos

populacionais fixados nos territórios explorados pelos portugueses, os Tonga que habitavam a

zona baixa do Zambeze e que controlavam importantes pontos de passagem de embarcações e

mercadorias através do rio Zambeze, por causa das associações com os portugueses, acabaram

por adquirir uma identidade específica, tornaram-se conhecidos por Asenas.44

4- Os Sena do Moçambique atual: Quem é este povo

As escassas informações sobre os Sena e as imprecisões sobre as suas origens e

formação, nos levam a perguntar: quem é este povo?

Os Sena podem ser considerados como um povo forjado em meio a disputas de terras

e de lugares de pastagens, nas diversas migrações e expansões ocorridas no Vale do Zambeze,

em meio ao contato nem sempre pacífico com os diversos povos que entraram em seus

territórios em busca de riquezas e produtos para o comércio, em meio aos contínuos

deslocamentos, devido às dificuldades próprias da região onde habitam.

O contato com esses diversos povos deve ter, paulatinamente, configurado durante

séculos este povo que hoje ainda habita uma vasta extensão às margens Norte e Sul do rio

44 Cf. NEWIT, M. Op.cit. p. 134-135.

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Zambeze, mas também encontram-se espalhados por várias regiões do país. Devido,

principalmente aos dezesseis anos de guerra, onde foram obrigados a se refugiarem nos países

vizinhos e na periferia dos aglomerados urbanos da Província de Sofala e das províncias

vizinhas. Sem contar um número bastante grande dos que tiveram, que se esconder no mato,

dos que foram raptados - ora pelo exército do governo, FRELIMO, ora pela RENAMO45 -,

dos que foram viver fora de suas aldeias e, em terras distantes, contudo, conseguiram se

organizar e sobreviver à fome, doenças e outras sortes de malefícios, mantendo a unidade

vital, as tradições e os costumes.

As comunidades de hoje podem escrever as páginas desta história. Muitos daqueles

que viveram este tempo, lembram e contam como conseguiram manter-se e viver a comunhão

e solidariedade próprias durante estes anos da guerra. Muitos grupos saíram fortalecidos

justamente pela presença de elementos capazes de integrar as pessoas a partir dos valores da

cultura e da tradição e assim, resistir de maneira invejável a todos estes anos.

Se os Sena foram considerados no passado como um povo sem identidade própria,

fruto de uma mistura de outros grupos; hoje não podemos afirmar o mesmo. Tendo

conhecimento dos elementos básicos da cultura banto e da história da formação dos diversos

grupos e povos, a partir dos movimentos de expansão e migrações sucessivas, podemos dizer

que os Sena se inserem dentro deste contexto como legítimos herdeiros e construtores desta

presença e história da humanidade em África. Colaboram de maneira decisiva e ativa na

manutenção e transformação deste grande mosaico cultural, que é Moçambique.46

É necessário, portanto, conhecer e valorizar os elementos próprios deste povo, desde a

sua língua, que bem expressa esta ligação e unidade básica comum com os demais povos

banto, até um nível mais profundo, que é a sua identidade tradicional alicerçada na

45 Frente de Libertação Moçambicana e Resistência Nacional Moçambicana. Sobre a guerra civil emMoçambique suas causas e conseqüências trataremos nos capítulos seguintes.46 Cf. DOMINGOS, L. T.La Question de L´Identité Ethinoque et la Foramtion de L´Etat-nation au Mozambique.Le cas des Sena de la vallé du Zambeze. Paris: ANTR, 2002.

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solidariedade que os une nos agrupamentos populacionais (dzindza), nos clãs patrilineares

(ntupo), na unidade familiar e econômica (nhkonde), na religiosidade e na visão de mundo e

concepção de pessoa.47

A família, a religiosidade, o respeito, os tabus, a seriedade e a simplicidade são

valores48 que hoje transparecem nas populações Sena. A cordialidade, a hospitalidade, a

paciência e a alegria caracterizam os Sena na grande família dos Banto. Valores como a

facilidade da vida comunitária e o desejo de viverem juntos, a alegria de se encontrar,

apresentam os Sena como um povo que gosta da paz, um povo pacífico por natureza. O Sena

não resolve seus conflitos com a guerra, quer o entendimento entre todos, assim aprendeu a

resolver seus conflitos, não através da violência e das armas, mas a partir da negociação, da

conversa, do entendimento entre todas as partes.

Os massacres das populações, as fugas, massas de refugiados e deslocados, a fome e a

miséria gerada pelos anos de guerra marcaram este povo de forma profunda, mas são capazes

de irem em frente, tentando esquecer muitas coisas, muitas rixas antigas, os sofrimentos, é um

povo forte e capaz, tem coragem apesar de todas as dificuldades.

Há muita coisa que se pode conhecer e também há muitas coisas ocultas, onde nunca

vamos penetrar, é o desafio da cultura frente ao Evangelho e do Evangelho frente à cultura. O

trabalho de evangelização deve centrar-se justamente em ajudar este povo a manter o seu

sistema de vida comunitária, auxilia-los a dar continuidade àquilo que foram capazes de

construir, mesmo durante o tempo da guerra: uma rede de comunidades cristãs, autônomas,

solidárias, irmãs, acolhedoras e, antes de tudo, formadoras de pessoas num tempo de

desolação e violência. O trabalho de evangelização deve centrar-se justamente no apoio ao

47 Ibidem. p. 1448 Acerca dos valores atuais dos Sena as afirmações que seguem são a partir das entrevistas realizadas durante apesquisa. Ver apêndice.

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modo de como este povo conseguiu manter firme a sua cultura e juntamente com esta, a sua fé

em Deus. 49

O resgate da história e da identidade destes povos constitui tarefa urgente e necessária,

pois num mundo onde a globalização de interesses, pulveriza as culturas e impõe modelos

multiculturais como forma de controle e consumo, qualquer tipo de trabalho ou presença junto

a estas populações, do atual Moçambique, deve partir de uma séria busca de conhecimento e

resgate da identidade e dignidade de tais povos.

Sobre esta questão um teólogo e antropólogo moçambicano escreve em uma de suas

obras:

O problema é real e isto preocupa-nos. Se é verdade que o Cristianismo não está

ligado a nenhuma cultura, não é menos verdade que se deve encarnar em cada

cultura. Não admira, pois, certa confusão entre Cristianismo e Ocidente, confusão a

que boa parte de nossos missionários não conseguiram escapar ao evangelizar-nos.

Por isso, insistiram demasiado em convencer-nos de que nada tínhamos de positivo,

nada de bom; que todos os nossos costumes e usos tinham nascido no pecado, eram

fruto de Satanás. Quiseram, depois, destruí-los implacavelmente, num zelo ardente

que terá sua recompensa no Reino dos Céus, é certo. Todo o problema está em que

os nossos missionários estiveram desarmados, quanto ao conhecimento da nossa

mentalidade, pelo menos nos primeiros anos. Hoje em dia cremos que tal atitude não

seria tão compreensível, menos ainda desculpável – porque já é abundante a

investigação dos nossos costumes.50

Com mais razão, a Igreja, na sua proposta evangelizadora, deve estar atenta para esta

necessidade. A busca de um maior conhecimento dos valores culturais e da identidade dos

povos de Moçambique surge como uma primeira tarefa da evangelização junto a estes povos.

49Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Presença evangelizadora da Igreja hoje emMoçambique – Instrumento de trabalho da III Assembléia Nacional de Pastoral. Maputo, 2004.50 Cf. GWEMBE, E. A mulher na sabedoria banto. Maputo: Paulistas, 1989. p. 7.

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Esta atitude pode colaborar para o resgate da dignidade e da história de um povo que durante

séculos foi espoliado de todas as formas, desvalorizado e reprimido, impedido de manifestar-

se no que tinha de melhor. Tanto o processo de colonização como de evangelização

contribuíram para uma depreciação dos elementos básicos e vitais destes povos.51

No atual Moçambique, há uma grande preocupação em quase todos os setores e

segmentos da sociedade acerca da perda dos valores tradicionais da cultura africana e, como

isto tem refletido nas relações entre as diversas gerações. Fala-se de uma ausência de qualquer

valor moral e educacional em enormes parcelas da população, principalmente nas camadas

mais jovens, ocasionando uma grande dificuldade da convivência entre as gerações e na

manutenção do respeito e dignidade entre as pessoas; também, grupos específicos de pessoas

sofrem mais diretamente as conseqüências desta perda: crianças, idosos, mulheres e os

considerados mais fracos e vulneráveis dentro da sociedade.52

No próximo capítulo e nos capítulos seguintes tentaremos resgatar a história deste

encontro entre a evangelização e a cultura em Moçambique, mais especificamente a partir da

experiência do povo Sena. Vamos apresentar alguns marcos de referência importantes: o

processo histórico da evangelização em Moçambique; a guerra civil moçambicana, suas

causas e conseqüências para a sociedade e a postura da Igreja; o Acordo Geral de Paz e a

retomada do processo de evangelização junto às comunidades Sena; as iniciativas na área de

evangelização e promoção humana; as Assembléias de Pastoral da Conferência Episcopal de

Moçambique sua incidência no campo da evangelização nos últimos dez anos; o Sínodo

diocesano da Arquidiocese da Beira e as conseqüências diretas para a evangelização junto às

comunidades Sena num caminho de opção pelos pobres e pela paz.

51 Cf. IMBISA. Inculturação: A fé que cria raízes nas culturas africanas. Documento de estudo. Maputo:Paulistas, 1994. p. 21.52 Cf. SECRETARIADO GERAL DO SÍNODO – ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Igreja que serve – documentode trabalho IV. Beira, 2004. P. 32-33.

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Capítulo II

A Etnia Sena: Encontros com a Evangelização

Pali nyumba ndipo pali munthu(Onde há uma casa, aí há gente)

Provérbio Sena

1- A Evangelização em África: Breve Histórico

O processo de evangelização dos Sena de Moçambique está inserido em um contexto

mais amplo e complexo, que tem se desencadeado no continente africano desde muito tempo.

Atualmente, quando se fala em evangelização em África, há uma tendência de fixar o início

da evangelização com a chegada dos colonizadores e exploradores vindos de distintos países

da Europa, numa tentativa de fazer coincidir o processo de colonização com o processo de

evangelização do continente.

Esta visão está apoiada no desconhecimento de um outro movimento de evangelização

do continente, bem anterior a qualquer empresa de colonização, que marcou e definiu uma

presença do Cristianismo em África. O Cristianismo em África não é um acontecimento

recente, nem muito menos um subproduto do colonialismo, as suas raízes remontam ao

próprio tempo dos Apóstolos, ao tempo do Cristianismo primitivo.53

A Igreja já tinha florescido na margem setentrional daquele continente, durante

seiscentos anos, antes do nascimento do Islã. Naqueles dias, o Egito e o Norte da

53 Cf. ROGIER, L. J. (Dir). Nova História da Igreja. Dos Primórdios a São Gregório Mágno. Vol. I. Petrópolis:Vozes, 1973.

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África, com seus grandes teólogos, como Santo Atanásio e Santo Agostinho, eram

os pilares da Igreja Universal. Desafortunadamente, com a ocupação árabe,

começada em 640, a expansão do Cristianismo recebeu um duro golpe. O

Cristianismo morreu inteiramente no Norte da África, mas sobreviveu no Egito

como minoria oprimida, embora significativa, até aos nossos dias.54

O Cristianismo está presente em África desde os primórdios, ainda que sua penetração

na chamada África Subsaariana tenha acontecido somente a partir do Século XV. A história

dos primeiros quinze séculos do Cristianismo em África é limitada aos países a Norte do

Saara com forte ligação com outros países da bacia do Mediterrâneo nos seis primeiros

séculos.55 A presença cristã neste período foi marcada pela ação missionária e produção

teológica, pelo surgimento e florescimento de comunidades cristãs no interior das sociedades

e culturas existentes, e pela penetração nos diversos reinos conhecidos, mais especificamente:

Egito, Núbia e Etiópia.56

1.1- O Cristianismo na África Subsaariana

O surgimento do Cristianismo na África Subsaariana ou África Negra está marcado

por um conjunto de fatores que determinaram a presença, não só da mensagem cristã no

continente africano, mas de um modelo de Cristianismo fortemente marcado pelo contexto

54 Cf. BAUR, J. 2000 anos de Cristianismo em África. Maputo: Paulinas, 2002. p. 11.55 Para a compreensão deste período de surgimento, expansão e declínio do Cristianismo na África do Norte aobra de John Bauer oferece um material conciso e bem documentado. Nesta primeira parte do segundo capítulovamos seguir preferencialmente a contribuição deste autor para a recuperação da história do Cristianismo emÁfrica.56 Cf BAUER, J. Op.cit. pp. 21-34.

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vivido na Europa, principalmente pelos países, que iniciaram a empresa de conquista e

exploração das terras até então desconhecidas. 57

O termo conquista sempre esteve presente nesta etapa do surgimento do Cristianismo

em África. Portugal e Espanha, os dois países que mais tiveram êxito no domínio da

navegação e no alcance de terras cada vez mais distantes, estavam fortemente marcados pela

determinação de ampliar o comércio e a exploração de produtos conhecidos pelos europeus,

mas não disponíveis em seus mercados. Aliada a este fator estava a mentalidade de

reconquista espiritual manifestada no desejo de dilatar a fé cristã contra o avanço do Islã.

Em 1415, começava a aventura portuguesa dos “descobrimentos”, empreendimento

simultâneo, de expansão e de evangelização. A conquista de Celta, no Norte da África,

inaugura o chamado Padroado Português, em virtude do qual os Papas concediam,

primeiramente aos administradores da “Ordem de Cristo” e, depois, aos reis de Portugal,

direitos, privilégios e deveres destinados a favorecer a “dilatação da fé e do império”. O

Padroado entrava em vigor em todos os territórios que Portugal conquistava ou “descobria”:

na África, na Ásia, na América.58

Em 1452, o Papa Nicolau V deu permissão ao rei de Portugal para conquistar

territórios muçulmanos e pagãos em África, e para reduzir os muçulmanos, os

pagãos e outros inimigos de Cristo a servidão perpétua. Esta permissão para aplicar

uma estrita lei marcial era dada com o fundamento de que o rei tinha empreendido

as expedições para a glória do Rei dos reis, e tencionava induzir aqueles inimigos

da fé cristã a aceitar o Cristianismo. O Papa fazia desta intenção missionária uma

obrigação grave. A permissão foi explicitamente confirmada na bula Romanus

57 Cf. BOSCH, D. J. Missão Transformadora: Mudanças de paradigma na Teologia da Missão. São Leopoldo:Sinodal, 2002. pp. 279-283.58 Cf. FERREIRA. L. C. Igreja Ministerial em Moçambique. Maputo: [s.n.], 1987. p. 71. Sobre o Regime doPadroado cf. CORREIA, F. A. C. O método Missionário dos Jesuítas e Moçambique (1881-1919). Braga:Livraria Apostolado da Imprensa, 1992. pp. 86-101 A autor apresenta como se estabeleceu e como foram asrelações entre a Igreja e o Estado Português e as conseqüências para a evangelização em Moçambique.

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Pontifex (1454), que concedia solenemente a Portugal o direito a todas as futuras

conquistas a sul do Cabo Bojador até às Índias.59

Este espírito de conquista e missão presente na evangelização da África Subsaariana

marcou profundamente a presença cristã no continente até o final do século XVIII,

patrocinada pelo regime do Padroado que inspirou a empresa colonial portuguesa em África

até 1974. Ainda que reações a este regime surgissem em diversos momentos deste período,

como a criação da Propaganda Fide em 1622, é preciso ter presente à natureza do

empreendimento, que consistia em “invadir, conquistar, sitiar, combater e submeter todos os

sarracenos, pagãos e outros inimigos de Cristo, em toda parte onde estejam; apoderar-se de

seus reinos, ducados, principados, senhorios, bens móveis e imóveis e reduziras suas pessoas

a perpétua escravidão”.60

Bauer, na sua avaliação acerca deste período (séc. XVI-XVIII) aborda algumas

dificuldades e deficiências que ajudam a compreender os motivos pelos quais a evangelização

foi deficitária e não possibilitou a implantação de uma Igreja genuinamente Cristã nos antigos

reinos africanos. Os incômodos da navegação e do clima, que não favoreceram a penetração e

permanência de missionários no continente. A articulação do padroado e conquista não

permitia uma clara distinção entre atividade missionária, comércio e política de conquista. A

deficiência na metodologia missionária da época, que não conseguiu adaptar a mensagem

cristã à realidade e ao contexto dos povos africanos e a tragédia do tráfico de escravos.61

59 Cf. BAUER, J. Op. cit. p. 41.60 Cf. FERREIRA, L. C. Op. cit. p. 71.61 Cf. BAUER, J. Op. cit. pp. 90-95.

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1.2- O Cristianismo Moderno em África

No fim do século XVIII e durante o século XIX e XX há novos fatores que garantem

um impulso e dinamismo do Cristianismo na África Subsaariana. A mudança da política dos

países europeus em relação ao continente africano abre uma nova etapa de exploração e

conquista em África. O colonialismo é estabelecido nas diversas regiões já exploradas,

possibilitando uma evolução da presença e da influência das diversas potências européias em

terras africanas, mudando o quadro de ocupação até então conhecido e exercido por Portugal,

Inglaterra e França. Este quadro de mudança está em relação estreita com a perspectiva

imperialista de alguns países europeus que mudam o quadro de ocupação e exploração do

continente africano, configurando o continente africano a partir de seus próprios interesses. A

convocação da Conferência de Berlim (1884) e suas decisões vão provocar a partilha de

África entre sete países europeus. Também se deve mencionar os movimentos e lutas de

libertação que se iniciam na primeira metade do século XX, provocando no decorrer do

mesmo século a independência de quase todos os países da África Negra.

Até o final do século XVIII, para bem dizer, os europeus que freqüentavam as costas

africanas, representavam antes interesses privados que dos Estados. Seus navios

encontraram nas escalas que balizavam essas costas o abastecimento necessário e os

escravos que os chefes lhes conseguiam em troca das mercadorias que desejavam.

Os estrangeiros realizavam suas transações à pressa, e fugiam, logo que possível, do

calor seco ou úmido e das febres de regiões consideradas como o “túmulo dos

homens brancos”.62

A instalação de colônias e a penetração para o interior das terras africanas criaram uma

disputa entre os países europeus, motivados pela possibilidade de exploração de outros

62 Cf. BRUNSCHWIG, H. A partilha de África Negra. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. p 13.

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produtos e riquezas e também pela descoberta de áreas menos insalubres que possibilitassem a

instalação de populações vindas da Europa. Neste período, por primeira vez, as tentativas de

criação de colônias européias na África Negra conseguem obter algum êxito. “Sob a

influência dos humanitaristas, dos missionários ou dos comerciantes, os ingleses foram

conduzidos a criar as colônias da Coroa em Serra Leoa (1807), na Costa do Ouro (1830-

1874) e em Lagos (1871)”.63

Na esteira destes acontecimentos marcados ainda pela lógica da exploração, conquista

e colonização e, muitas vezes na contra corrente, o Cristianismo conhece o seu maior

florescimento e sua implantação definitiva na África Subsaariana neste curto período de

tempo. A implantação e a fundação das colônias permite uma presença missionária mais

consistente. Várias sociedades missionárias fundadas na Grã-Bretanha e no continente

europeu pelas Igrejas Protestantes no final do século XVIII e início do século XIX, que

visavam a evangelização nas colônias em África, estabeleceram missões no continente

centrando sua ação evangelizadora nas populações locais.

Este renascimento religioso de cunho missionário surgido na Europa e a receptividade

religiosa da parte dos africanos colaboraram para a consolidação da presença cristã na África

Negra. Não se pode esquecer que, também neste período se inicia uma luta contra a

escravidão e o tráfego de escravos que impedia o empreendimento de uma verdadeira

evangelização junto aos africanos. Da parte da Igreja Católica, que já havia anteriormente

iniciado uma campanha de evangelização do continente africano através do Regime do

Padroado, surge um novo entusiasmo pela evangelização da África na primeira metade do

século XIX.

Significativamente, o movimento começou nas bases com um novo entusiasmo

popular pelas missões: em 1822, Pauline Jaricot fundou, em Lião, a primeira e a

63 Ibidem. p. 14.

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mais ampla de cerca de 270 organizações de apoio, as quais forneciam contribuições

financeiras e asseguravam orações diárias pela salvação dos pagãos. A

reorganização papal teve lugar sob Gregório XVI (1831-1846) e foi, efetivamente

através da Propaganda Fide ( A Congregação para a Propagação da Fé), que se

tornou o departamento mais importante da Cúria Romana. A fundação de

sociedades missionárias, para levar a luz do Evangelho aos africanos, foi inaugurada

por F. Liberman, em 1841. Seguiu-se na segunda metade do século, a um certo

número de velhas ordens: Beneditinos, Franciscanos, Dominicanos e Jesuítas, das

quais alguns membros se tinham, até então, comprometido, quase sós, em atividades

missionárias e na fundação de novas sociedades, principalmente congregações, que

se dedicavam inteiramente ao trabalho de evangelização.64

Esta nova etapa de evangelização, com um caráter mais missionário e menos ligado à

exploração e a conquista, contudo, ainda atrelado à empresa colonizadora, desenvolvem

novos e variados métodos de evangelização. O enriquecimento e a contribuição da presença

das Igrejas Protestantes é notável, principalmente, por terem iniciado e implantado

comunidades locais com dirigentes africanos, o aprendizado e a utilização das línguas

africanas na tarefa de evangelização, formação de um clero local e a busca de estruturas

próprias para manutenção e coordenação das missões.65

A Igreja Católica, auxiliada pelas associações missionárias e pelas diversas

congregações fundadas para a evangelização do continente africano, amplia sua presença com

novo impulso e novo método missionário. Homens e mulheres dedicados ao trabalho das

missões buscam meios e formas para impulsionar a tarefa de evangelização em África. A

fundação de missões e a abertura de frentes de evangelização nos diversos países da África

Subsaariana refletem o vigor missionário deste período e revelam a contribuição para a

instalação de uma verdadeira Igreja local no continente africano, ainda que a evangelização

64 Cf. BAUER, J. Op. cit. pp. 104-105.65 Ibidem. pp. 109-134.

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estivesse estreitamente ligada aos serviços e obras na área da educação, com a criação de

escolas primárias, escolas de artes e ofícios para a capacitação e na área da saúde com a

construção e manutenção de hospitais e obras sociais em vistas à civilização do homem

africano.66

O interesse pela missão em África e pela “civilização” de seus povos suscita inclusive

a fundação de congregações religiosas exclusivamente para este fim. Cabe aqui lembrar

nomes como Francisco Libermann, Melchior de Marion de Bresillac que com a mentalidade

cristã de sua época e forte intuição pessoal trabalharam de maneira incansável pela

evangelização no continente africano. Outros nomes como Charles Lavigerie, fundador dos

Missionários de África (Padres Brancos) e de Daniel Comboni, fundador do Instituto do

Cairo, projeto inicial para consolidar sua intuição de “regeneração da África por meio da

própria África” , como a única maneira possível de cristianizar o continente, também fazem

parte deste período de evangelização em África. Da parte dos evangelizadores protestantes o

nome que mais se destaca é David Livingstone, ainda que seu trabalho como missionário seja

passível de várias críticas, pois seu envolvimento com o colonialismo e a exploração parecem

suplantar seu comprometimento com a missão, contudo, ao considerar sua contribuição

missionária, tem de se admitir que, em matéria de abertura de caminhos e inspiração, como

Livingstone, não há precedentes. 67

66 O termo civilização está historicamente carregado do etnocentrismo dos impérios e das nações dominantes. Aocrescimento geográfico do poder correspondeu sempre a necessidade de uma homogenização cultural ampla,realizada no interior de uma ideologia do progresso. A civilização universalizante exerce sempre uma pressãointegracionista frente à diversidade cultural. A “vida civilizada” do conquistador, nesta perspectiva, repersentavaum progresso sobre a “vida selvagem” do conquistado. Cf. SUESS, P. Inculturacion. Mysterium Liberationis.Tomo II. Madrid. Editorial Trotta, 1990. p.383.67 Cf. BAUER, J. Op. cit. pp pp. 174-206.

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1.3- O tempo de implantação de uma Igreja Africana

O colonialismo em África, mesmo em seu auge, já dava seus sinais de cansaço e

superação e as transformações em todos os níveis engendravam novas formas de encarar a

missão e a necessidade de mudanças na evangelização e presença da Igreja no continente

africano. As duas grandes guerras mundiais produziram situações que trouxeram dificuldades

e problemas para a presença da Igreja em África, podemos mencionar o retorno de muitos

missionários à Europa durante a Primeira Guerra e o início dos movimentos de libertação

depois da Segunda. As duas dinâmicas que permeavam o trabalho em quase todas as frentes,

a civilizatória e a evangelista, no auge do período de colonização, começam a se orientar em

vistas a uma presença mais eficaz nas sociedades africanas e favorecem o crescimento de

comunidades cristãs formando catequistas e professores, que davam um rosto mais africano à

evangelização.68

O comprometimento dos missionários e da própria Igreja com o sistema

colonial, as mudanças originadas pela independência e necessidade de implantar uma Igreja

verdadeiramente africana são elementos chaves para a compreensão da presença da Igreja e

do trabalho de evangelização no continente na segunda metade do século XX. Os benefícios

que o colonialismo possa ter trazido para a evangelização e presença da Igreja no continente

não suplantam nem descartam os limites e as dificuldades. A falta de adaptação das missões à

realidade africana, o paternalismo presente nas ações e no trato com as populações, a suposta

superioridade da cultura e da civilização européia em relação aos sistemas vitais dos africanos

revela que os missionários, prisioneiros da cultura ocidental, ainda que não fosse o objetivo,

reproduziam o mesmo esquema colonialista na prática da evangelização.

68 Ibidem. pp. 428-436

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Os movimentos anticolonialistas e de libertação surgidos em vários países

africanos neste período, questionam a postura e a prática de uma Igreja atrelada a um sistema

colonial e pouco próxima das culturas africanas. Juntamente com estes movimentos ganha

espaço uma tendência à valorização da cultura e do pensamento africano, com influência

direta na evangelização, pois há um questionamento acerca de um modelo de cristianismo

ocidental, com expressões e conceitos europeus, pouco orientados a valorizar os elementos da

cultura africana. Em vários países africanos, principalmente em Moçambique, este período de

busca e conquista de libertação do regime colonial será uma oportunidade para uma

purificação e re-orientação das Igrejas, em vistas a viver um cristianismo mais comprometido

e inculturado no povo africano.69

Nesta mesma corrente, há o surgimento e estabelecimento de uma teologia

africana, que visa dar à Igreja africana um próprio pensar teológico. Esta perspectiva encontra

apoio nas reflexões e conclusões do Concílio Vaticano II (1962-1965) que “insistiu numa

pluralidade de teologias e na existência de sementes da Divina Verdade nas religiões não

cristãs de tal modo que não podia haver mais razões sérias para a África não tentar

desenvolver sua própria teologia”.70 Entre os anos de 1970 e 1980 os diversos encontros e

congressos e as fundações de associações teológicas atestam este desenvolvimento de um

pensar teológico africano. Várias publicações e escritos nas diversas áreas teológicas

consolidam a presença de uma teologia africana.

A implantação de uma Igreja verdadeiramente africana não foi tarefa fácil e está longe

de ser concluída. Os muitos anos de uma presença majoritária de missionários de fora de

África e as estruturas construídas, que dependiam totalmente dos recursos financeiros vindos

das Igrejas dos países europeus, se apresentam como dificuldades para que esta realidade se

faça presente. Não obstante, de todas as partes há apoio e incentivo para que nasça uma Igreja

69 Cf. FERREIRA, L. C. Op. cit.70 Cf. BAUER, J. Op. cit. p. 461.

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que seja capaz de levar adiante a tarefa evangelizadora em África contanto, em primeiro

lugar, com os próprios africanos.

2- O Fragmentado Processo de Evangelização em Moçambique

A passagem de Vasco da Gama por Moçambique, na sua viagem para a Índia (1498)

marca o início dos contatos missionários. Dominicanos, Agostinianos, Jesuítas

acompanhavam os soldados e marinheiros, a quem prestavam auxílios espirituais e com quem

deviam “fazer muita cristandade”. Mesmo que quase dois séculos depois a Propaganda Fide

vai propor “não fazer esforço algum, nem usar de qualquer argumento que favoreça um povo

mudar seus costumes e tradições, desde que estes não se oponham claramente à religião e à

moralidade”; 71 a distinção teórica entre elementos culturais pertencentes ou não à esfera da

religião e da moralidade resultava tremendamente difícil, já que as culturas estavam

profundamente embebidas de religião e os missionários traziam na bagagem uma proposta de

evangelização monocêntrica e monocultural.72

Mesmo após a criação da “Propaganda Fide”, em 1662, que visava de alguma forma

um controle para que a atividade missionária não fosse realizada com o uso da força e dos

recursos oferecidos pelos conquistadores, todas as terras de missão portuguesa dependiam

diretamente de Lisboa. Vários documentos papais aplicaram a Moçambique o direito e a

doutrina do “Padroado Português”.73

O processo de evangelização em Moçambique, dentro do quadro da evangelização do

continente africano, está inserido no modelo e na mentalidade do regime do padroado e reflete

71 Cf. MIRANDA. M. F. Inculturação da fé. São Paulo: Loyola, 2001. p. 15-39.72 Cf. AZEVEDO. M. Cristianismo, uma experiência multicultural. Como viver e anunciar a fé nas diferentesculturas. In REB 220/55, 1995. pp 771-787.73 Cf. NEWITT, M. História de Moçambique. Lisboa: Publicações Európa-América, 1997. p.119.

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as demandas e as dificuldades para a presença e atuação da Igreja neste país da África

Subsaariana. Assim, a história da evangelização em Moçambique se apresenta estreitamente

ligada à história do Padroado, que durou até à primeira Concordata assinada entre a Santa Sé e

Portugal (1857), apesar de que, até às vésperas da independência de Moçambique que

aconteceu no ano de1975, era ainda essa mentalidade que regia as relações e atividades no

campo da evangelização nesse país.

2.1- As várias etapas do processo

2.1.1- Primeira etapa

Uma primeira etapa de evangelização, em Moçambique, vai de 1514 a 1612. Neste

período, Moçambique, como parte integrante do Regime Padroado, tem a sua sede de

jurisdição, inicialmente na diocese do Funchal e, depois, entre 1532 e 1612 no bispado de

Goa. A primeira expedição para o interior do território partiu de Goa e dela fizeram parte os

padres Gonçalo da Silveira e André Fernandes e o Irmão Fernando André da Costa, que

chegaram a Moçambique, em 1560. Depois de missionar em Inhambane e Tongwe, partiram,

em agosto de 1560 para a região do Zambeze, a caminho da corte do Monomopata. Foram

apresentados ao rei pelo “capitão de portas” Antônio Calado. Apesar da conversão do rei ao

cristianismo, esta primeira tentativa de evangelização constituiu um fracasso. Mais tarde, D.

Francisco Barreto organizou uma Segunda expedição de soldados, a quem acompanhavam

quatro missionários jesuítas. Tanto no aspecto militar como no religioso, também esta

tentativa foi considerada como um novo fracasso.74

74 Cf. NEWITT, M. Op. Cit. p. 72.

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O conhecido professor de Missiologia, A. da Silva Rego, no seu livro “As Missões

Portuguesas” fala das “profundas desilusões” destes primeiros contatos, nos quais o

Pe. Gonçalo da Silveira foi morto e as tentativas de penetração portuguesa repelidas.

Acrescenta que “a floresta virgem não estava preparada para a aceitação pacífica do

Evangelho, dominada que era pelo absolutismo dos chefes e o interesse dos

negreiros”.75

2.1.2- Segunda etapa

Uma Segunda etapa missionária se inicia em janeiro de 1612, quando a Bula In

Supereminenti Militantis Ecclesiae, do Papa Paulo V, eleva Moçambique a “Prelatura nullis”

desmembrando-a da diocese de Goa, da qual ainda fica sufragânea. O desmembramento das

dioceses africanas ou asiáticas da diocese do Funchal ou de Goa dará possibilidade de uma

melhor organização pela descentralização da administração, mas sobre cada uma delas o rei

recebia o direito do Padroado pela própria bula de criação. Neste período, só Portugal e

Espanha tinham condições de assegurar contatos com as terras além mar. Condições não só de

transportes, por causa das frotas que possuíam, mas também de sustento e proteção aos

missionários que se instalavam em lugares perigosos. Esta situação favorece a entrada de

missionários nas terras conquistadas. Desde 1607, os jesuítas tinham centrado a sua atividade

nas atuais terras de Luabo, Quelimane, Tete e Ilha de Moçambique.76

Este período é caracterizado por um inicial e prometedor florescimento de numerosos

postos missionários. Nessa altura, alguns membros da família real do Monomopata foram

levados para estudos eclesiásticos em vistas ao sacerdócio junto aos dominicanos de Goa. Por

volta de 1630, o rei, ameaçado por inimigos vários e rivais, acolhe-se à proteção das forças

portuguesas e celebra um tratado de paz e comércio. Tudo parecia indicar uma fácil expansão

75 Ibidem.76 Cf. CORREIA, F. A. C. Op. cit. p. 85.

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da cristandade. Surgiram Igrejas por toda a região do Zambeze. Era o começo dos “prazos”.77

Além dos jesuítas registra-se também a presença de Agostinianos e Dominicanos. Estes que

penetravam na corte do rei entregavam-se também ao comércio do marfim, do ouro em pó e

mesmo de escravos.78

2.1.3- Terceira etapa.

Numa terceira etapa, no começo do século XVIII, já as tentativas de estabelecer

presença cristã entre os Carangas haviam há muito sido abandonadas. Muitos dos

missionários presente em Moçambique se dedicavam ao trabalho junto às populações das

vilas, participando do mesmo sistema de exploração dos colonizadores, ou seja, gerir os seus

prazos e a administrar as igrejas existentes nas principais cidades e feiras portuguesas. Apesar

de, neste período ser incorreto falar da existência de um trabalho missionário, pelo menos no

vale do Zambeze o catolicismo acabou por se estabelecer enquanto culto religioso dominante

dentro da sociedade afro-portuguesa. A maioria dos detentores de prazos consideraria que

seus escravos pessoais, se bem que não necessariamente todos os seus chicundas (negros

cativos cuja função principal consistia em proteger militarmente os prazos e em depredar as

sociedades vizinhas), eram, pelo menos de nome, cristãos.

As Igrejas paroquiais elaboravam registros estatísticos, sugerindo estes que, no século

XVIII, a comunidade cristã sediada no vale do Zambeze oscilava entre dois e os três mil

indivíduos. Em 1824, os números oficiais indicavam a existência de três mil quinhentos e

quarenta e um cristãos, quase todos inscritos nas paróquias da zona de Ilha de Moçambique. O

controle, remoto, dos assuntos da Igreja pela Inquisição de Goa e as visitas esporádicas de

77 Os prazos eram um sistema estabelecido entre o governo de Portugal e os colonizadores, onde uma porção deterra era arrendada a um senhor ou prazeiro para o domínio e controle do comércio e da produção. Sobre osistema de prazos em Moçambique cf. SERRA, C. História de Moçambique. Op. cit. pp. 248-275. Para esteperíodo da presença cristã em Moçambique, o sistema de prazo significou grande obstáculo à evangelização,ainda que algumas ordens missionárias viram-se obrigadas a entrar no sistema de prazos em vistas ao trabalho deevangelização junto às populações locais. Sobre este aspecto cf. CORREIA, F. A. C. Op. cit. pp. 343-346.78 Cf. NEWITT, M. Op. Cit. p. 119.

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alguns eclesiásticos pouco ou nada fizeram para encorajar a expansão do Cristianismo ou

regular a prática religiosa nos assentamentos, tornando este período bastante conturbado por

escândalos e envolvimento dos missionários no mesmo sistema de exploração promovido pela

ocupação portuguesa. 79

A dissolução da Companhia de Jesus em 1759 constituiu a oportunidade para se criar

uma igreja de caráter secular na zona oriental de África, mas só em 1775 se começaram a

nomear padres seculares para as paróquias africanas. Na prática, estes eram quase todos

religiosos de Goa, o que impossibilitava o preenchimento de vagas. Depois de, nos anos de

1830, os dominicanos terem também sido expulsos, a presença da Igreja na África Oriental

viu-se reduzida a meros vestígios. Em 1782, o prelado de Moçambique ascendeu ao estatuto

de bispo, mas regra geral, as nomeações continuavam a recair sobre figuras ausentes e

distantes.80

2.1.4- Quarta etapa.

A quarta etapa, entre o fim do século XVIII até à primeira metade do século XX, um

período de crise e de tensão entre o Estado Português e a Igreja, leva à ruptura de relações e à

expulsão e supressão das Ordens Religiosas de todo o território português e, portanto, de

Moçambique. A atividade missionária enfraquece de tal forma que, em meados do século

XIX, não havia nenhum missionário no interior do atual espaço moçambicano, a exceção de

uns quatro ou cinco padres de Goa, que trabalhavam na zona de Mutarara.

Embora os anos de 1875-1891, com a chegada dos Padres do Real Colégio de

Cernache do Bom Jardim, a admissão, novamente dos jesuítas, no tempo de Paiva de Andrade

e a presença dos Franciscanos, na zona interior da área da Beira, indicasse renovar as

iniciativas missionárias, o certo é que o conjunto das disposições e leis da Primeira República

79 Ibidem.80 Ibidem.

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Portuguesa(1910-1926), reduziu à insignificância a atividade evangelizadora. Nesta fase, tudo

se limita a continuar a ação de algumas missões já fundadas, com uma dedicação especial ao

ensino da língua portuguesa e ao labor educativo das crianças. Este quadro começa a

modificar-se quando o Estado Português vê na Igreja presente em Moçambique uma aliada

para colaborar no processo de colonização e assimilação das populações locais através de um

sistema de controle rígido sobre o ensino e a educação, setores onde as missões católicas

atuavam de maneira intensiva e organizada neste período.

A partir de 1930, o Governo colonial procedeu a modificação no sistema

educacional de Moçambique. Concretamente passou a controlar mais diretamente o

ensino destinado à população negra. O objetivo do Governo colonial era criar um

sistema capaz de habilitar o “indígena” para seu papel específico de trabalhador

barato na economia colonial moçambicana. Este tipo de ensino tinha por fim,

segundo os documentos oficiais, “civilizar e nacionalizar os indígenas da Colônia

difundindo entre eles a língua e os costumes portugueses”, tornando-os “mais úteis à

sociedade e a si próprios”.81

Paralelamente, aumentou o número de missões e escolas católicas. Deve-se realçar

que, neste período, o processo de nacionalização de Moçambique veio a ser cada vez mais

ligado à expansão da religião católica. Pouco depois da inauguração do Estado Novo em

Portugal em 1926, no Estatuto das Missões Católicas Portuguesas, o governo português

manifestou a sua intenção de garantir às missões católicas portuguesas proteção e ajuda do

Estado, sob a forma particular de subsídios para a formação de missionários em Portugal e de

concessão livre de terrenos em Moçambique. A nova Constituição Portuguesa de 1933

reforçou esta política em relação às missões católicas, enquanto que instituições de educação

81 Cf. FERREIRA, L. Op. cit. p. 46.

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e instrumentos de civilização. Com esse apoio a Igreja católica em Moçambique expandiu-se

consideravelmente, como mostram as estatísticas oficiais.82

Da mesma forma, escolas primárias rudimentares das missões católicas expandiram-se

no mesmo período, tal como as escolas rudimentares do Estado, enquanto o número de escola

das missões protestantes diminuiu. Se bem que ainda faltem investigações aprofundadas sobre

o tema, é evidente que a expansão da igreja Católica, apoiada pelo Estado colonial, implicou

na diminuição da influência, e até uma discriminação agressiva contra outras religiões.83

Além disso, a proibição do ensino de moçambicanos nas línguas nacionais, com exceção do

ensino da religião, teve o efeito de discriminar as Igrejas protestantes, que habitualmente

utilizavam as línguas banto nos primeiros anos de escolarização, como meio mais rápido de

atingir a alfabetização básica, e cujos missionários eram, no geral, mais capazes de comunicar

nas línguas nacionais e em inglês do que em português.84

Em 7 de maio de 1940 foram assinados, entre o estado português e o Vaticano, a

Concordata e o Acordo Missionário, consagrando, desta forma, o papel da Igreja e

da sua doutrina como a grande força inspiradora e justificadora do regime colonial

facista português. O Acordo Missionário seria depois regulamentado pelo Estatuto

Missionário, em 1941. A isto chamou Salazar, em 1940, a nacionalização do

apostolado missionário português. A Igreja Católica portuguesa foi, assim, instituída

como instrumento ideológico fundamental da defesa da ordem interna em Portugal e

da preservação do domínio colonial. Estreitamente ligada aos objetivos sócio-

políticos do Estado português, foi investida de grande autoridade, iniciando, a partir

de 1940-41, uma agressiva campanha de expansão, concorrendo, em condições

altamente favoráveis, com as Igrejas protestantes. O regime transferiu a

82 Ibidem. p. 4783 Cf. CAHEN, M. L'État Nouveau et la diversification religieuse au Mozambique, 1930-1974. Cahiers d'étudesafricaines. Paris. 158, 2000.84 Cf. FERREIRA, L. Op. cit. 48

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responsabilidade do ensino rudimentar oficial para a Igreja Católica, estabelecendo

ainda um rigoroso controle sobre toda a atividade da Igreja.85

Neste período o processo de educação de forma segregada para os negros, brancos,

assimilados, tornou-se mais claramente definida. Para enquadrar, principalmente os filhos da

crescente população branca, expandiu-se o regime de educação semelhante ao de Portugal,

que era, predominantemente, oficial ou supervisionado pelo Estado. Esta expansão foi

acompanhada por um conjunto de legislação para garantir a organização interna dos

estabelecimentos de ensino, manter o nível de ensino através do controle das provas, exames

de admissão aos liceus e assegurar auxílio econômico aos alunos, incluindo bolsas e

passagens aéreas. Por outras palavras, o nível de investimento econômico e administrativo,

neste ensino, foi relativamente alto.

Para a maior parte da população africana, existia apenas as escolas das missões

católicas portuguesas e algumas, poucas, escolas do estado e das missões protestantes. A

identificação do estado português com a Igreja católica, aliada à sua pobreza econômica,

impediu esta de tomar um papel progressivo em Moçambique, nem mesmo ao nível da

educação, que manifestou em algumas colônias vizinhas, como a Rodésia do Sul, por

exemplo. Os agentes da igreja, revelando-se mais portugueses que missionários, assumiram a

sua missão de cristianizar as populações locais, assimilando-as à cultura portuguesa, acima de

tudo.86

Durante este período, apenas um reduzido setor da Igreja protestou contra os inúmeros

excessos das ações do governo e dos interesses econômicos coloniais. O Bispo da Beira, D.

Sebastião Soares de Resende, denunciou vigorosamente o trabalho forçado; as condições de

trabalho nas plantações; as fugas para os territórios vizinhos. Fê-lo através do jornal Diário de

Moçambique, criado pela diocese da Beira em 1950, e de várias cartas pastorais e livros,

85 Cf. HEDGES, D. (Coor.). História de Moçambique. Vol. 2. Maputo: Livraria Universitária. 2ª ed. 1999. p. 118.86 Ibidem, p. 176.

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embora sem pôr em causa publicamente os fundamentos da presença colonial portuguesa.

Receando a sua influência, e impulsionado pelos interesses dos colonialistas e da população

colona, o governo colonial viu-se obrigado a retirar ao Bispo da Beira a responsabilidade que

tinha na direção da única escola secundária daquela cidade. Pelas mesmas razões, o Diário de

Moçambique sofreu várias suspensões até 1961.87

Com todos estes entraves na tarefa da evangelização, a presença da Igreja neste

período consegue manter-se de forma organizada e sem interrupção, diferente dos períodos

anteriores. O ano de 1940 é a data da ereção canônica da Província Eclesiástica de

Moçambique, que passa a ter três dioceses: Maputo, Beira e Nampula. Mais tarde, estas

dioceses serão subdivididas: da diocese da Beira, foram desmembradas as de

Quelimane(1954) e a de Tete(1962); da diocese de Nampula, a de Pemba(1957) e a de

Lichinga(1953); por seu lado a diocese de Maputo deu nascimento a Inhambane(1962) e a

Xai-Xai(1970). 88

Até às vésperas da independência de Moçambique, a Igreja Católica conhece uma fase

de expansão estrutural e de evangelização, ainda que sob a tutela da concordata e dos acordos

missionários entre Portugal e o Vaticano. A presença de moçambicanos no clero e na vida

religiosa como tal era ainda muito pequena. A evangelização era conduzida pelas

congregações missionárias e pelo clero diocesano existente. Apesar da estreita relação da

Igreja com o governo colonial, houve vozes diferentes entre as congregações e o clero, que

não concordavam com as ambigüidades desta relação e se manifestaram a favor de mudanças.

Algumas atitudes e posturas tiveram repercussões no interior da própria Igreja e na sociedade,

como a saída dos Padres Brancos em 1971 e a expulsão dos Padres Combonianos em 1974. A

87 Ibidem, p. 177.88 Cf. FERREIRA, L. Op. cit. p. 74.

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postura da Igreja é fortemente abalada nos 10 anos de guerra que se seguiram até à

independência.89

2.1.5- Quinta etapa

Um quinto período da evangelização em Moçambique pode ser situado entre a

Independência do país em 1975 e o fim da guerra civil em 1992; período este marcado por

mudanças profundas no interior da sociedade moçambicana e com grandes repercussões para

a presença e vida da Igreja em Moçambique. Em 1974 a Igreja Católica moçambicana contava

com 578 sacerdotes, dos quais apenas 33 moçambicanos e 1307 irmãs, das quais apenas 185

moçambicanas. Todo o episcopado era branco e português. O primeiro padre negro tinha sido

ordenado em 1952: era Alexandre dos Santos, nomeado Arcebispo de Maputo no fim de 1974

e, em 1988, o primeiro moçambicano a tornar-se cardeal. Com a independência do país em

1975, a Igreja Católica tem que abandonar rapidamente toda a ligação com o quadro colonial.

A nova situação cria dificuldades para maioria do clero e do episcopado que é português e,

atribui responsabilidades à ainda frágil Igreja moçambicana autóctone. No Moçambique novo

a Igreja Católica é considerada pela FRELIMO como um resíduo do colonialismo. Apenas um

restrito grupo da Igreja e muitos missionários se tinham empenhado na luta pela

independência. Tudo o que recordasse o “antigo regime” lusitano tinha que ser arrancado.90

De 1975 a 1981 a hostilidade do governo marxista-leninista da FRELIMO para com a

Igreja manifesta-se não apenas pela nacionalização de todas as estruturas geridas pela Igreja,

mas também por uma série de limitações às atividades do clero. Os missionários abandonam o

país e numerosas missões são obrigadas a fechar. Anuncia-se a liquidação do catolicismo em

Moçambique, através de uma campanha atéia e de descrédito. São postos entraves à admissão

89 Para melhor compreender a situação da Igreja frente ao governo colonial e frente aos movimentos delibertação em Moçambique no fim dos anos 60 e início dos anos 70 cf. SOUZA, J. A. A. ; CORREIA, F. A. C.500 Anos de Evangelização em Moçambique. Maputo: Paulinas/LAI, 1988. pp. 101-153.90 DELLA ROCCA, R. M. Moçambique da guerra à paz. Maputo: Livraria Universitária. 1988. p. 22.

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de candidatos ao clero. No início, vive-se uma situação de pânico e de medo no interior da

Igreja. A Igreja Católica apresenta-se débil frente ao novo regime. Conta, de fato, com mais

de dois milhões de fiéis em doze milhões de moçambicanos; constitui, por isso, a segunda

comunidade religiosa do país, depois de cerca de três milhões de muçulmanos e antes de um

milhão e meio de protestantes.91

A mudança do regime colonial para um regime autônomo em Moçambique leva a

Igreja a passar por uma transformação profunda e necessária. Destituída de seus bens pela lei

de nacionalização imposta pelo regime de governo da FRELIMO, diminuída em sua presença

pela saída ou expulsão dos membros de diversas congregações, busca renovar-se e se

reestruturar para continuar a responder às demandas da evangelização junto a um povo

marcado pelo sofrimento e pela guerra civil que durará dezesseis anos. No terceiro capítulo

deste trabalho vamos analisar de forma mais específica esta etapa e apresentar os desafios e

demandas para a continuação da evangelização da Igreja, de forma mais específica entre os

Sena, que foram de maneira bastante direta afetados por estas mudanças estruturais pela qual

passaram tanto a sociedade quanto a Igreja em Moçambique.

3-Presença Cristã no Território dos Sena

O início da presença cristã entre os Sena de Moçambique pode ser datado, juntamente

com a tentativa de estabelecer algum contato com os povos que habitavam o Alto Zambeze,

através da penetração portuguesa no que é hoje o atual território moçambicano. Esta presença

vai se tornar mais efetiva com o início do sistema de prazos (cf. nota 73) no final do século

XVII. A instalação de vilas e povoações com população constituída de diferentes

procedências, por causa do comércio do ouro e do tráfico de escravos, que são a base de

91 Ibidem.

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estruturação e controle dos prazos, será também a base para o estabelecimento dos primeiros

missionários nestes territórios.

Com as dificuldades encontradas pelos primeiros missionários de cristianizar as

populações dos reinos no Alto Zambeze, a presença se concentra nas vilas existentes no Vale

do Zambeze, onde a atenção se volta para a população portuguesa e para os grupos

populacionais locais que, de alguma forma mantinham contato com ou estavam envolvidos no

sistema de prazos. Alguns historiadores insistem na hipótese de que os missionários deste

período se adaptaram ao sistema de prazos e eles mesmos estiveram como gestores de alguns

prazos, tanto para facilitar a penetração e a evangelização das populações locais como para a

manutenção e sustento da própria evangelização.92 O fato é que o sistema de prazos

implantado neste tempo na zona do Médio Zambeze coincide com a presença dos Sena nesta

região como afirmamos no primeiro capítulo.

A hipótese de que as populações Sena, neste período do início e desenvolvimento dos

prazos, estivessem aliadas aos portugueses para a conquista de terras e a defesa dos prazos

não é descartada, visto que a identificação dos Sena está relacionada à associação destes com

os portugueses. É provável que estas populações, em contato com os primeiros prazos

constituídos no Vale do Zambeze, de alguma maneira tomaram contato com a religião dos

conquistadores através da participação no esquema das vilas e povoações e no contato com os

missionários ali instalados para o trabalho de evangelização.93

Um trabalho de evangelização mais organizado e direcionado às populações Sena será

iniciado somente no final do século XIX com o início da Missão da Zambézia, entregue aos

jesuítas pela Sagrada Congregação da Propaganda Fidei em 1879. A criação e a delimitação

deste território de missão vai possibilitar uma presença cristã e um trabalho de evangelização

que perdura até o início do século XX. Confiada às Províncias Britânica e Portuguesa da

92 Cf. NEWITT, M. Op. cit.93 Cf. SOUZA, J. A. A.; CORREIA, F. A. C. Op. cit. pp. 43-49.

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Companhia de Jesus, esta imensa zona missionária vai ser organizada em diversas missões

onde a educação e o ensino de diversos ofícios, a luta contra a escravatura, o resgate e a

proteção das crianças, e o conhecimento da língua e dos costumes das populações foram

contribuições que marcaram este período.94

Sem dúvida, o estabelecimento da Missão da Zambézia proporcionou à Igreja desenvolver

uma presença junto às populações Sena daquele período, ainda que o trabalho fosse

estabelecido de acordo com a mentalidade e segundo as possibilidades e as estruturas, tanto

eclesiais como sociais, do colonialismo. No contexto geral a opinião dos missionários acerca

dos Sena, sua cultura, religião e costumes não diferia muito da opinião acerca dos outros

povos da África Negra. A maneira de olhar o africano fazia parte do contexto geral da opinião

que no século XIX se tinha dele na Europa e revelava também os danos causados por um

processo colonizador baseado na exploração e conquista.

O filho do povo africano passa da puerilidade à juventude com a alma e o coração

velado à luz da moral e do sentimento e ainda nessas crianças talvez não se

desenvolva tão depressa o gérmen das más paixões, porque foi criada nos hábitos

simples da natureza, mas, se nasce nas povoações urbanas, ou naquelas em que

domina o elemento colonizador, ainda mal que assim acontece, abre os olhos entre

as cadeias da escravidão e à proporção que se lhe acorda a inteligência, vai com o

exemplo caminhando logo instintivamente para o vício e para a corrupção, porque,

infelizmente, nos nossos estabelecimentos de África os costumes são dissolutos e

depravados, fruto da nossa colonização feita por réprobos.95

94 Sobre a fundação da Missão da Zambézia, cf. a obra de CORREIA, F. A. O método missionário dos Jesuítasem Moçambique. Op. cit. O autor nas páginas 26 a 65 narra todo o processo de ereção da Missão. As viagens depenetração através dos territórios e reinos em Moçambique e as dificuldades encontradas como a febre, asdiversas doenças, as dificuldades causadas pelas rivalidades e guerras entre as diversas tribos. A concorrênciacom os protestantes, a falta de preparação e experiência dos missionários são fatores que chamam a atenção noinício desta missão, que mais tarde abrirá as portas para a evangelização de uma grande parcela da população.Até os tempos atuais, as missões fundadas no Vale do Zambeze a partir da missão da Zambézia são importantepara a historia e continuação da evangelização em Moçambique.95 Cf. CORVO, J. A. Estudos sobre as Províncias Ultramarinas. Lisboa. 1883-1887, vol 2. pp. 435-436, apudCORREIA, F. A. Op. cit. p. 339.

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Contudo, são desta época as tentativas de aproximação e conhecimento da cultura, da

língua e dos costumes dos Sena. Com a implantação das missões, alguns missionários tiveram

a oportunidade de conhecer mais de perto as populações locais, isto possibilitou o despertar de

interesse e admiração pelos usos e costumes deste povo. O aprendizado da língua e dos

conhecimentos naturais utilizados pelos Sena e outros povos da região eram elementos

importantes para os missionários deste período. Ainda que não se possa afirmar a tentativa de

uma evangelização inculturada, o sistema de missões foi um primeiro trabalho de

evangelização estruturado que estabeleceu um verdadeiro contato com os Sena de

Moçambique.

4-As Várias Presenças e Modelos de Evangelização.

Iniciado de maneira mais estruturada pelos jesuítas, através da Missão da Zambézia no

final do século XIX, o trabalho de evangelização junto aos Sena de Moçambique teve o seu

ponto de partida ditado pelas circunstâncias. Aqui entram em jogo as duas dinâmicas que

marcam esta primeira presença e o tipo de método e atuação missionária: a organização e o

tipo de sociedade encontrada e a idéia ou concepção que se tinha do africano naquela época.

Sem dúvida, o sistema de prazos influenciou de maneira direta, tanto negativa como

positivamente, o trabalho missionário nas missões do Vale do Zambeze. Desde o início se

constituiu num obstáculo à evangelização e leva os missionários a buscarem soluções frente a

este desafio diretamente relacionado com o tipo de estrutura e sistema colonial em

Moçambique.

Não sem razão, alguns missionários deste período chegam a conclusão que, para

continuarem o trabalho de evangelização nas missões, devessem também adquirir prazos onde

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a população seria tratada de maneira diferente e ficariam livres para participar das atividades

da evangelização nas missões. Esta mentalidade está presente em alguns missionários, como

está relatado na obra de F. Correia ao tratar da tarefa da evangelização neste período.

O P. Courtois viu o problema (dos prazos), mas como tinha um temperamento muito

aberto e amável, toda a gente o apreciava. [...] Quando o P. Hiller que tinha um

temperamento diferente e começou a desbravar apostolicamente, os arredores da

vila, lutando contra as imoralidades, injustiças e maus tratos aos africanos, sentiu

claramente a oposição dos arrendatários dos prazos. Caiu na conta que a aquisição

de prazos era fundamental para a evangelização. 96

Desde o início da Missão da Zambézia os primeiros missionários sentiram a

necessidade de ampliar a presença para além das vilas e dos limites das paróquias já

constituídas. A entrada no sistema de prazos é uma das conseqüências desta opção. Outra

conseqüência é uma evangelização mais direta junto às populações locais, permitindo um

estilo de presença diferenciada do elemento colonizador, principalmente na gestão dos prazos

e no trato com as pessoas. A primeira preocupação residia no fato de proporcionar aos mais

jovens uma educação diferente da que recebiam no ambiente tradicional e orientar o espírito

africano para o trabalho e para os bons costumes morais.

A criação dos internatos, escolas e oficinas refletem esta estrutura do trabalho

missionário. Sem dúvida necessário devido ao contexto, mas com uma dinâmica de adaptação

ao modelo europeu sem qualquer respeito ou preocupação em conhecer os valores da cultura

local em relação ao processo de iniciação e formação das crianças e jovens. O interesse dos

missionários em aprender a língua e conhecer os costumes locais, estava mais orientado a uma

adaptação em vistas a evangelização e menos à busca de compreensão e entendimento destes

valores para levá-los à sua plena realização no ambiente cultural das populações locais.

96 Cf. CORREIA, F. A. Op. cit. p. 344.

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A ótica da missão nesta época é conhecida: aprender primeiro a língua do país,

construir postos centrais de missão, prever postos dependentes no interior, velar pela

educação, dar uma ajuda médica e formar bons catequistas. Mas também dar uma

ajuda pastoral aos portugueses, quer empregados ou comerciantes, que tenham em

algum lugar um emprego ou um pequeno comércio, e que um pouco melhor que em

Portugal, podem manter a cabeça fora d’ água.97

A presença e os métodos utilizados na tarefa de evangelização junto às populações

Sena, estavam alicerçados no modelo do Padroado. Praticava-se, ainda que com boas

intenções, uma pastoral de transplantação de um modelo de cristandade, onde se visava

integrar os povos do Padroado no mundo português através da irradiação da civilização

lusitana e das tradições cristãs. Com algumas variantes, devido à situação local ou a intuição e

temperamento dos missionários, a evangelização segue este modelo até às vésperas da

independência de Moçambique.98

Neste tempo o que ocorre é a passagem de uma tendência em converter e salvar, de

maneira individual, os que estavam nos territórios de missão e, ao alcance da ação

evangelizadora dos missionários, para uma tendência em implantar a Igreja nos territórios de

missão. Uma implantação que segue um esquema direcionado e controlado pelo Estado

Português, que manifesta interesse em ver as populações “domesticadas” e mais aptas a servir

o sistema colonial de forma pacífica e ordeira. Esta dinâmica de evangelização terá uma

conseqüência direta no ciclo vital das populações Sena.

A introdução de um sistema de educação e formação estranhas à cultura local e a

necessidade criada em adaptar-se ao modelo do missionário para poder obter algum benefício

junto ao sistema colonial, será uma das dificuldades criadas por este processo de

97 Cf. BLOMMAERT, E. Moçambique: Mon Périple en Espérance. Breda: Missiecentrum Pater Damiaan, 1988.p. 8.98 Cf. FERREIRA, L. C. Op. cit. p. 79.

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evangelização. O desconhecimento de elementos vitais da cultura Sena impossibilitou os

missionários de perceberem uma riqueza própria na cultura, que já indicava um caminho

evangélico percorrido à medida que os próprios valores culturais revelassem elementos mais

próximos do Evangelho do que do paganismo, como eram chamadas as religiões tradicionais

praticadas pelas populações. “A Igreja vivia em um mundo animado pelo pensamento colonial

e, de fato, a serviço da Administração colonial. Seu papel era converter os pagãos, pois jamais

havia passado pela mente destes que aquela gente fosse talvez mais religiosa que os

portugueses em geral”.99

5-Assimilados ou Evangelizados: O Desafio da Inculturação

Os primeiros contatos entre os evangelizadores e a cultura dos Sena deu-se através da

obra das missões, de maneira específica com a fundação da Missão da Zambézia, onde pela

primeira vez acontece um trabalho de evangelização sistematizado e com um método próprio

em vista a atingir as populações locais. Esta evangelização contribuiu para a criação de um

modelo de Cristianismo vivido em Moçambique até os tempos atuais, onde as fronteiras entre

evangelização e colonização nem sempre são fáceis de demarcar.

O processo de evangelização em Moçambique e a atual situação da evangelização

trazem sérios desafios e questionamentos para a prática evangelizadora da Igreja. Não se pode

negar a íntima relação que a evangelização estabeleceu com o processo de colonização em

Moçambique, de forma especial a partir das concordatas e acordos missionários firmados

entre o governo português e a Igreja Católica. Consciente ou não, a Igreja católica colaborou

99 Cf. BLOMMAERT, E. Op. Cit.

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de maneira direta no processo civilizatório implementado pelo governo português para

assimilar as populações locais e colocá-las a serviço do sistema de domínio e exploração em

que se converteu o sistema colonial português em Moçambique.

A incidência deste processo de assimilação sobre as populações locais vai estar

presente na dinâmica evangelizadora da Igreja até às vésperas da Independência e deixa suas

marcas ainda hoje no modo de vivenciar a fé e de ser Igreja de algumas etnias em

Moçambique. Longe de ser um processo isento da marca colonial, a presença da Igreja junto

às populações vai significar justamente a possibilidade de assimilação do modelo de vida

colonial por parte das populações locais, para poderem ser aceitas neste sistema e participar

dos seus benefícios.

Com base numa certa catequese infantil e escolar, difundia-se, assim, um

Cristianismo sem impacto no meio ambiente e estrutura de vida das populações,

estranho às suas formas e esquemas tradicionais. Ficava aberto largo campo ao

sincretismo religioso e à sobreposição de crenças e ritos, pagãos e cristãos. As

missões tornavam-se, pouco a pouco, grandes centros animados de alunos e

trabalhadores, que também se dedicavam ao cultivo de plantações e “machambas” e

apareciam como uma espécie de empresas que era preciso administrar.

Assoberbados pela atividade esgotante de cada dia, esmagados pela imensidade de

um território, que se afigurava urgente ocupar, os missionários poucas possibilidades

tinham de refletir sobre sua própria atuação.100

5.1- Os conceitos de Assimilação, Evangelização e Inculturação

Os três conceitos acima estão relacionados a partir do objetivo deste trabalho, que visa

uma análise da experiência evangelizadora da Igreja entre os Sena de Moçambique. Este povo

viveu o processo de assimilação da cultura portuguesa e da evangelização como uma só

100 Ibidem. p. 80.

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realidade, pois foram diretamente atingidos pela empresa colonial e pela empresa de

evangelização da Igreja quase que no mesmo período e também pelos mesmos agentes.

5.1.1- O processo de assimilação e os assimilados em Moçambique.

O processo de assimilação em Moçambique remonta ao início da ocupação e

exploração portuguesa, com diferentes concepções ou práticas de assimilação das populações

durante este tempo. No início do período imperialista, a pequena burguesia moçambicana

consistia em famílias e indivíduos de várias origens e posições sociais. Havia, por exemplo,

um reduzido número de comerciantes africanos que abasteciam a Capital com mercadorias.

Por outro lado havia um pequeno grupo de famílias mestiças, descendentes de grandes

caçadores e comerciantes brancos que tinham explorado os recursos do sertão de Lourenço

Marques desde 1820. Estas famílias, ultrapassadas pelo fim do comércio de marfim, entraram

em outros campos econômicos mais apropriados às exigências da nova economia regional.

Em terceiro lugar, havia um pequeno número de mulatos e negros que ocupavam importantes

posições no serviço militar e funcionalismo público.101

A proeminência social dessa pequena burguesia deve-se ao fato de que, no período

pré-imperialista, as condições sócio-econômicas e a atitude do poder colonizador em

relação às famílias mestiças e à assimilação dos negros, eram diferentes do que

viriam a ser no período entre 1885 e 1930. De fato, antes de 1885, isto é, antes da

imigração de grande número de colonos brancos para Moçambique, as famílias

mestiças e os assimilados negros tiveram um papel importante na expansão do

comércio, administração e cultura dos portugueses em Moçambique.102

101 Cf. HEDGES, D. (Cor). História de Moçambique. Vol. 2. Maputo: Livraria Universitária. 2ª ed. 1999. pp13-15.

102 Ibidem.

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Por essa razão, antes de 1885, a teoria de assimilação, segundo a qual os africanos

deveriam ser governados pela mesma lei e condições que se aplicavam a cidadãos

portugueses, teve uma expressão real para uma reduzida minoria em Moçambique. Depois de

1885, este quadro sofreu consideráveis alterações. Uma breve análise da estrutura do

comércio mostra como a emergente estratificação nacional e racial resultou na exclusão da

pequena burguesia moçambicana. A expansão dos principais portos e cidades e a conquista

das zonas rurais resultaram numa onda de migração de colonos brancos à procura de

oportunidades nos vários ramos de comércio. A pequena burguesia branca de origem

portuguesa tentou sempre utilizar os seus privilégios políticos na luta para assegurar as

melhores posições. Além disso, no crescente aparelho estatal, os postos de emprego foram

cada vez mais reservados, na prática, aos brancos, e mesmo aqueles mulatos e assimilados que

já ocupavam lugares de importância, além de sofrerem exclusão na vida social, corriam o

risco de serem discriminados através da reforma antecipada, sendo os seus lugares ocupados

por brancos.103

O Estado Colonial, levado por imperativos de desenvolvimento econômico capitalista

e, em particular, pela necessidade de criar uma força de trabalho muito barata e bastante

controlada, elaborou uma série de leis, regulamentos e instituições discriminatórias que

visavam a definição e identificação da população colonizada como indígenas. No que diz

respeito aos assimilados e mulatos esta legislação foi completada em 1917 por uma medida,

estabelecendo que, teoricamente, estes também teriam de ser portadores de um documento

comprovando o seu direito à cidadania portuguesa e que não eram indígenas.104

Embora revogado em 1921, este documento foi incorporado na consolidação geral da

legislação em 1926, e representava para os mulatos e assimilados a prova final de que o

estado colonial pretendeu legalizar e reforçar a discriminação, na base de raça, entre eles e os

103 Ibidem.104 Ibidem.

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brancos. É de notar que este conjunto de legislação contrariou as idéias de assimilação

apregoada no século XIX e que a assimilação, como termo oficial, tornou-se uma justificação

ideológica do colonialismo, através da qual se pretendia esconder as barreiras raciais.

O conceito de assimilação foi estabelecido durante a primeira República em Portugal

(1910). A sua idéia era conferir aos Africanos os mesmos direitos que os cidadãos

portugueses possuíam. Para obter o estatuto de assimilado, a pessoa devia ser maior

de 18 anos, fluente em português, ter um determinado salário e possuir uma certidão

de nascimento e um atestado médico. Adicionalmente, duas cartas de referência e

um juramento de lealdade tinham que ser apresentados. Uma vez que apenas um

pequeno grupo de Africanos era capaz de preencher estes requisitos, a maioria das

populações permaneceu no grupo dos indígenas. Pertencer a esse grupo significava

trabalho forçado e restrição de movimentos. A pessoa era excluída do sistema de

educação do Estado e tinha que andar com um “passe” específico.105

O processo de assimilação realizado pelo sistema colonial português nas populações

locais de Moçambique resultou numa inversão da própria proposta e do próprio conceito de

assimilação. Longe de integrar verdadeiramente as populações no sistema colonial, com

mesmos direitos e acesso aos bens e meios produzidos por este sistema, a tentativa de

assimilação das populações locais não passava de uma maneira de continuar a mantê-las numa

condição inferior ao colono português, visto que, na impossibilidade de assimilação de uma

grande parte da população local, justamente por não poderem cumprir as exigências, o regime

colonial se fortalece e se cristaliza.

Enquanto que as elites indígenas nas colônias francesas e inglesas tinham acesso à

formação acadêmica nos seus respectivos países e possuíam contatos com valores

105 LALÁ, A. OSTHEIMER, A. Como limpar as nódoas do processo democrático? Os desafios da transiçãoe democratização em Moçambique (1990-2003). Maputo: KAS, 2003. pp. 3-9.

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democráticos, Salazar (1932-1968) e Marcelo Caetano (1968-1974) mantiveram um

regime autocrático e corporativista apoiado pela Igreja católica, Exército e Polícia

Internacional de Defesa do Estado (PIDE). A forte postura anti-comunista e

tratamento violento contra qualquer oposição, constituiu característica essencial do

Estado Novo português sob a dominação de Salazar. Além disto, nas províncias

ultramarinas de Portugal o conceito de assimilação era implementado de modo

contrário ao seu teor semântico, impedindo como tal, a formação adequada da

população indígena, a consolidação das elites locais e a sua possibilidade de

participar nas estruturas sócio-políticas.106

A postura da Igreja durante este tempo será duramente combatida após a

independência do país. A colaboração da Igreja com o sistema colonial na manutenção de um

sistema de assimilação implementado para manter a separação e segregação entre os colonos e

as populações locais se converterá num dos graves erros cometidos no processo de

evangelização das populações de Moçambique. As conseqüências desta estreita relação serão

vivenciadas pela Igreja com o fim do colonialismo e o inicio de um país independente. Mas

será também neste tempo que a Igreja vai perceber a necessidade de rever o seu processo e

método de evangelização se quiser continuar presente em meio às populações locais sem as

amarras e benefícios do sistema colonial português. Um dos autores já citados neste trabalho

sintetiza a situação da evangelização em Moçambique com a seguinte conclusão:

Olhando a historia da evangelização em Moçambique, sabemos como, muitas vezes

o anúncio do Evangelho passou ao lado da vida. É difícil situar-nos em contextos

culturais muito diversos dos nossos. Contudo, se olharmos com objetividade essa

longa história, apesar dos altos e baixos, ela é a história do anúncio de um

acontecimento, de um fato, um fato que se concretiza numa pessoa: Jesus Cristo. E o

anúncio desse acontecimento, desse fato, logo desde os seus começos, não deixa de

106 Ibidem.

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apresentar-se por meio dos sinais que revelam bem a preocupação da Encarnação da

Mensagem: o diálogo, a catequese em línguas nativas, o conhecimento do povo, o

respeito pelas autoridades locais, os escritos em línguas locais, os estudos do

ambiente e cartografia[...] Quando em 1623 descreve o trabalho apostólico das três

freguesias atendidas pelos jesuítas, Chemba, Caia e Quelimane, diz-se que a

catequese às crianças era dada e cantada na língua da terra e o mesmo acontecia com

os adultos, que por vezes, era acompanhada do ensino da música. Nos memoriais

dos jesuítas deixados nos colégios de Sena e Ilha de Moçambique, recomendava-se

aos reitores para recolherem todos os escritos nas línguas locais, vocabulários,

gramáticas e cartilhas da doutrina, tanto dos padres antigos como dos presentes, para

serem impressos em Goa. [...] Adaptar ritos é uma coisa muito boa, mas é

necessário, também, evangelizar toda a cultura nos seus diversos níveis: político,

social, econômico e religioso.107

5.1.2- Uma tentativa de compreensão do conceito de Evangelização

A proposta deste trabalho é a análise da presença evangelizadora da Igreja numa

determina cultura e situação concreta em Moçambique. Definir e compreender o conceito de

evangelização que vamos empregar, daqui por diante, facilitará a nossa tarefa, ainda que

“nenhuma definição parcial e fragmentária, porém, chegará a dar razão da realidade rica,

complexa e dinâmica que é a evangelização, a não ser com o risco de a empobrecer e até

mesmo de a mutilar. É impossível captá-la se não se procurar abranger com uma visão de

conjunto todos os seus elementos essenciais”.108

Missão e evangelização são termos análogos, mas possuem diferentes nuances. A

missão é o ato de enviar, está relacionado diretamente com a ação divina de envio e se realiza

107 Cf. SOUZA, J. A. A. CORREIA, F. A. C. 500 anos de evangelização em Moçambique. Maputo: Paulinas,1998. pp 101-113.108 Cf. PAULO VI. Evangelii Nuntiandi. nº. 17. Documentos de Paulo VI. São Pulo: Paulus, 1997.

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também na ação eclesial. Quando a Igreja envia ou se sente enviada ela o faz em relação com

a missão divina.109

Temos que distinguir entre missão e missões. O primeiro conceito designa

primordialmente a Missio Dei, isto é, a auto revelação de Deus como Aquele que

ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade de

Deus, que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a igreja tem o

privilégio de participar. [...] Missões designa formas particulares, relacionadas com

tempos, lugares ou necessidades específicas da participação na Missio Dei.110

Do conceito de missão se passa ao conceito de evangelização com as mesmas

dimensões ou perspectivas: trinitária, cristológica, pneumatológica, eclesial, antropológica,

escatológica, espiritual, etc. Evangelizar significa anunciar a boa notícia de que Cristo é o

Salvador esperado (Lc. 4, 16-21). É a proclamação da salvação em Cristo às pessoas que não

crêem, é um claro convite à conversão e à participação na comunidade terrena de Cristo e a

começar uma vida de serviço aos outros no poder do Espírito. A ação evangelizadora tem em

conta todas estas dimensões, mas se concentra principalmente na dimensão eclesial como

síntese das demais.

O objetivo ou finalidade da evangelização é o mesmo que aparece na ação

evangelizadora de Jesus e dos apóstolos. Jesus anuncia a boa nova para chamar a

uma orientação de toda a vida segundo a caridade. O homem é chamado a voltar

(converter) e a reorientar a vida segundo os planos salvíficos de Deus em Cristo.

109 No AT o termo enviar se expressa com a palavra salah, no NT com a palavra apostello, apostellein nosSinóticos ou Pempein em João. No NT os termos enviar e evangelizar se empregam como verbos (Lc. 4,18). Osubstantivo (missão, evangelização) não é expressão bíblica. O termo missão se usa com Santo Inácio (séc. XVI)e a partir da fundação da Propaganda Fide (séc. XVII); no século XIX já se utiliza como termo de reflexãoteológica. O substantivo evangelização é do século XIX e tem origem nos teólogos da Reforma; nos documentosdo Magistério conciliares (LG, AG) e pós-conciliares (EM, Rmi) o termo evangelização é de uso freqüente. Cf.ESQUERDA BIFET, J. Teologia de la Evangelizacion. Curso de Missionologia. Madrid: BAC, 1995.110 Cf. BOSCH. D. J. Missão Transformadora. Mudança de Paradigma na Teologia da Missão. Op. cit. P.28.

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72

Esta é a missão que o Senhor confiou a seus discípulos e a toda a Igreja. “A

finalidade da evangelização é uma mudança interior, e se tivéssemos que resumir em

uma palavra, o melhor seria dizer que a Igreja evangeliza quando, somente pela

força divina da mensagem que proclama, trata de converter ao mesmo tempo a

consciência pessoal e coletiva dos homens, a atividade na qual estão comprometidos,

sua vida e ambientes concretos” (EN18).111

Evangelização ou o ato de evangelizar pode também ser compreendido como um

serviço que a Igreja presta aos cristãos e a toda a humanidade. Este caráter acentua também a

própria missão e presença da Igreja no mundo como Sacramento do Reino e Sacramento de

Salvação. Pela ação concreta em favor da humanidade, principalmente daquelas parcelas da

humanidade que se encontram oprimidas, aniquiladas e marginalizadas, é que se concretiza na

Igreja a mesma ação evangelizadora realizada por Jesus e pelos apóstolos. “O empenho em

anunciar o Evangelho aos homens do nosso tempo animados pela esperança, mas ao mesmo

tempo torturados muitas vezes pelo medo e pela angústia, é sem dúvida alguma um serviço

prestado à comunidade dos cristãos, bem como a toda a humanidade”.112

A ação evangelizadora da Igreja visa principalmente atingir as pessoas, nos aspectos

mais profundos do seu ser, deve chegar ao coração de cada pessoa e aos fundamentos de cada

comunidade. Cada vez mais se cria a consciência de que o ato de evangelizar não está

condicionado a lugares e espaços, muito menos a situações isoladas e fora do contexto da vida

total das pessoas e grupos. A ação evangelizadora também traz consigo um elemento

transformador das realidades humanas, na medida em que penetra todos os âmbitos e

dimensões que envolvem a pessoa e a comunidade com a qual se identifica e se integra.

111 Cf. ESQUERDA BIFET, J. Evangelizar Hoy. Animadores de las Comunidades. Madrid: Sociedad deEducacion Atenas, 1987. p. 52.112 PAULO VI. EN nº1.

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73

Estratos da humanidade que se transformam: para a Igreja não se trata tanto de

pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou a populações

maiores em dimensões de massa, mas de chegar atingir e como que a modificar pela

força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de

interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da

humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o

desígnio da salvação.113

Para evangelizar ou exercer a ação evangelizadora é preciso penetrar também na

cultura como o conjunto das relações e significados, das produções e manifestações dos

diversos povos. Uma evangelização que não penetra a cultura de um povo e não assume como

campo privilegiado de sua ação corre o risco de ser apenas decorativa, um verniz na

superfície. Pelo contrário, “importa evangelizar de maneira vital, em profundidade e isto até

às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, no sentido pleno e amplo que estes

termos têm na Constituição Gaudium et Spes (GS 53), a partir sempre da pessoa e fazendo

continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus”.114 Ainda sobre este

aspecto a EN acrescenta:

O Evangelho, e conseqüentemente a evangelização, não se identificam por certo

com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. E, no entanto, o

reino que o evangelho anuncia é vivido por homens profundamente ligados a uma

determinada cultura, e a edificação do reino não pode deixar de servir-se de

elementos da civilização e das culturas humanas.115

5.1.3- A Inculturação como desafio e proposta para a Evangelização

113 Ibidem. nº 19.114 Ibidem. nº 20115 Ibidem.

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O termo Inculturação é relativamente novo na reflexão teológica, ainda que se possa

dizer que a fé cristã, desde suas origens, sempre foi uma fé inculturada. O processo de

encontro entre Evangelho e cultura não é uma novidade dos nossos tempos e foi

compreendido e analisado de diferentes formas e a partir de diferentes enfoques.116 Esta

compreensão da relação entre Evangelho e cultura já recebeu várias definições como:

Adaptação e Acomodação; Encarnação; implantação da Igreja (plantatio Ecclesiae);

Indigenização; Contextualização; Enculturação e Aculturação (termos sócio-antropológicos);

inculturação (termo teológico).117

A expressão Inculturação refere-se a um neologismo específico da linguagem

cristã. Trata-se de um termo típico do linguajar teológico e de recente utilização no discurso

missiológico. Embora tenha uma conotação antropológico-cultural, este termo distingue-se de

outros típicos do léxico antropológico, como é o caso de aculturação, enculturação e

transculturação. Distingue-se também dos conceitos de adaptação e acomodação, vigentes em

âmbito teológico a partir de 1950, com repercussões precisas no Concílio Vaticano II (1962-

1965).118

A proposta de inculturação não é uma situação tática da ocupação forçosa da casa do

outro por pedido de hospedagem. Não é a situação estratégica do discurso autoritário

pelo diálogo. É uma metodologia missionária com estreita vinculação com os

mistérios centrais da fé (encarnação/salvação). A inculturação, antes de ser uma

116 MIRANDA, M. F. Inculturação da Fé. Op. cit. pp. 41-42117 BOSCH, D. J. Missão Transformadora. pp. 535-546. Na sua pesquisa, o autor apresenta uma novaterminologia, a Interculturação, mais abrangente que a Inculturação, pois segundo ele a inculturação jamais podeser um processo acabado, pois a relação entre a cultura e a mensagem cristã é criativa e dinâmica, repleta desurpresas.118 Cf. AZEVEDO, M. C. Comunidades Eclesiais de Base e Inculturação da Fé. São Paulo: Loyola, 1986. pp263-272.

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questão de eficácia e autenticidade missionária, é uma questão antropológica e um

“direito humano” da parte dos povos que acolhem o Evangelho.119

Para a compreensão da Inculturação como o processo de encontro e relação entre

Evangelho e cultura, é necessário ter em conta a complexidade deste encontro. Os vários

autores que tratam o tema acentuam o cuidado nas definições acerca da cultura e na

abordagem sobre o próprio Evangelho.120Levar a mensagem do Evangelho a uma comunidade

humana cultural, social e historicamente estabelecida será sempre um problema e uma questão

aberta. Há uma base comum a todo ser e comunidade humana e há uma pluralidade de

aspectos diferenciados dependentes da psicologia, ambiente sociológico, heranças históricas,

etc.

O encontro entre Evangelho e cultura é apenas um elemento neste complexo

contexto e é influenciado por todos os outros elementos. [...] Enquanto o Evangelho

é elemento de uma dimensão religiosa mais ampla, a cultura é o elemento de um

complexo maior que inclui a economia, a política e a sociedade.121

A afirmação do novo conceito será fruto dos desdobramentos da elaboração de uma

teologia da missão, ocorrida, sobretudo, na Ásia e na África. O Sínodo de 1974, sobre a

evangelização no mundo de hoje, expressa já uma primeira transição, ao reconhecer a

cidadania para expressões como inserção, indigenização e encarnação. As intervenções dos

Padres da Ásia e da África foram incisivas no diagnóstico da falta de aculturação da

mensagem eclesial em outros quadros culturais que não os ocidentais, bem como no apelo em

favor da justa autonomia e criatividade de Igrejas particulares face aos novos desafios da

119 Cf. SUESS, P. Inculturacion. Op. cit. p. 380120 Acerca deste encontro e relação entre Evangelho e Cultura na perspectiva da Inculturação cf. AMALADOS,M. Missão e inculturação. São Paulo: Loyola, 2000. ESQUERDA BIFET, J. Teologia de la Evangelizacion. Op.cit. SUESS, P. Evangelizar a Partir dos Projetos Históricos dos Outros. Ensaios de Missiologia. São Paulo:Paulus, 1995. Idem. Cultura e Religião. REB.49 – 196 dez/1989.121 Cf. AMALADOS, M. Missão e Inculturação. pp. 29-31.

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pluralidade. A partir da XXXII Congregação Geral da Companhia de Jesus, ocorrida nos anos

de 1974-1975, o termo Inculturação passa a fazer parte do repertório usual da teologia e da

pastoral. Uma referência importante foi a carta do então Superior Geral dos jesuítas, Pedro

Arrupe, sobre a Inculturação(1978).122

O Magistério Pontifício acolhe o termo Inculturação pela primeira vez em março de

1979, por ocasião da alocução de João Paulo II aos membros da Pontifícia Comissão Bíblica.

A reflexão será retomada na exortação apostólica Catechesi Tradendae, em outubro de 1979,

tornando-se, em seguida, de uso freqüente nos documentos da Igreja católica. Para João Paulo

II, o termo Inculturação “exprime muito bem uma das componentes do grande mistério da

Encarnação,”123envolvendo igualmente o domínio da catequese.

Vamos encontrar o termo empregado de maneira mais direta na Encíclica Redemptoris

Missio, onde aparece a relação direta entre Evangelização e Inculturação.

Desenvolvendo sua atividade missionária no meio dos povos, a Igreja encontra

várias culturas, vendo-se envolvida no processo de inculturação. Esta constitui uma

exigência que marcou todo o seu caminho histórico, mas hoje é particularmente

aguda e urgente.124

A Inculturação é compreendida como o processo de encarnação da vida e da

mensagem cristã em uma área cultural concreta, de modo que não somente esta experiência se

exprima com os elementos próprios da cultura em questão, mas que esta mesma experiência

se transforme em um princípio de inspiração, norma e força de unificação, que transforma e

recria esta cultura, encontrando-se assim na origem de uma nova criação.

122 Cf. MIRANDA, M. F. Inculturação da Fé. Op. cit.123 JOÃO PAULO II. A catequese hoje – Exortação apostólica Catechesi Tradendae.nº 53 12 ed. São Paulo:Paulinas, 2000.124 Idem. Redemptoris Missio. nº 52. 6ª ed. São Paulo: Paulinas, 1991.

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O processo de inserção da Igreja, nas culturas dos povos, requer, um tempo longo: é

que não se trata de uma mera adaptação exterior, já que a inculturação significa a

íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no

cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas. Trata-se, pois de

um processo profundo e globalizante que integra tanto a mensagem cristã como a

reflexão e a práxis da Igreja. Mas é também um processo difícil, porque não pode

comprometer de modo algum, a especificidade e a integridade da fé cristã. Pela

inculturação, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e, simultaneamente,

introduz os povos, com suas culturas, na sua própria comunidade, transmitindo-lhes

seus próprios valores, assumindo o que de bom nelas existe, e renovando-as a partir

de dentro. Por sua vez, a Igreja, com a inculturação, torna-se um sinal mais

transparente daquilo que realmente ela é, e um instrumento mais apto para a

missão.125

O termo Inculturação e sua compreensão, seja pelos diversos estudiosos do tema ou

pelos documentos do Magistério, abrem uma gama de possibilidades e também de questões

para um processo de evangelização na perspectiva da Inculturação. Sem dúvida este encontro

das culturas com a mensagem do Evangelho será sempre um desafio e, longe de chegar ao seu

termo a discussão e reflexão sobre o assunto, avança-se cada vez mais por este filão

descoberto, na tentativa de fazer deste encontro entre Evangelho e cultura o caminho da

realização da missão da Igreja.

Não se pode separar, como já dissemos, inculturação da fé e comunidade cristã. Pois

é exatamente mediante a vida da comunidade dos fiéis que acontece a inculturação.

É a comunidade que, vivendo situações novas, cria símbolos e práticas que lhe

permite viver em tal contexto como comunidade cristã. Este fato irá provocar nessa

comunidade uma configuração eclesial própria, que a capacitará a se fazer conhecida

125 Ibidem.

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e compreendida em seu contexto sociocultural, potencializando-a, assim, para

proclamar e testemunhar a mensagem evangélica.126

No próximo capítulo deste trabalho vamos analisar a ação evangelizadora da Igreja em

Moçambique, num contexto bastante conturbado, devido à independência do país após

séculos de colonização; devido à guerra civil que durou dezesseis anos, com conseqüências

terríveis para o país; e a presença desta Igreja nos dez primeiros anos de paz, que tem início

em 1992 com a assinatura do Acordo Geral de Paz. Este processo de evangelização, realizado

neste período tem em vista uma opção pelos mais atingidos pelas conseqüências da guerra, e

tem em vista a promoção e manutenção da paz.

126 Cf. MIRANDA, M. F. Op. cit. p. 61.

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Capítulo III

Os Pobres e a Paz, Opções de uma Evangelização em Processo deInculturação

Kulira mulungu nkhulira matope(Quem chora pela chuva, chora também pelo barro)

Provérbio Sena

As conseqüências da guerra civil, associadas com os outros problemas advindos do

colonialismo português e das dificuldades para a implantação de um sistema de governo

autônomo depois da independência, ainda hoje são marcas e entraves para o povo de

Moçambique, de modo especial para as populações das zonas que foram mais atingidas e

estiveram no centro das disputas durante a guerra, como no caso das populações Sena do Vale

do Zambeze. 127

Como um acontecimento histórico recente, alguns trabalhos já foram publicados, na

tentativa de analisar e compreender os fatores que levaram a estourar uma guerra civil em

Moçambique pouco tempo depois da conquista da Independência ante o regime colonialista

português.128 A independência de Moçambique foi conseguida depois de um longo período de

organização, resistência e luta de grupos organizados dentro e fora de Moçambique, através

127 BLOMMAERT, E. Mozambique, Mon Périple en Esperance. Breda: Missiecentrum Pater Damiaan, 1998.128 Alguns textos utilizados neste trabalho para a compreensão da guerra civil moçambicana são: DELLAROCCA, R. M. Moçambique da guerra à paz. Op. cit. LALA, A. Dez anos de paz em Moçambique. EstudosMoçambicanos 20 (200) pp 19-40. MACUACUA, L. O AGP dez anos depois: Novos desafios paraMoçambique. Estudos Moçambicanos 20 (2002) pp 5-18. LALÁ, A. OSTHEIMER, A. Como limpar as nódoasdo processo democrático? Os desafios da transição e democratização em Moçambique (1990-2003). Maputo:KAS, 2003.

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de apoio interno das populações e alguns grupos da sociedade, e do apoio externo de países

interessados em eliminar o colonialismo em África.129

Ainda que não seja objeto de estudo específico deste trabalho, alguns elementos que

levaram o país a uma guerra civil, com duração de dezesseis anos e com conseqüências

terríveis para a população, são aqui apresentados para uma melhor compreensão:

§ O conflito armado moçambicano, descrito por vários estudiosos como uma

guerra de desestabilização levada a cabo pelos regimes-párias em resposta ao

apoio prestado por Moçambique aos movimentos de libertação dos mesmos,

adquiriu, igualmente, uma dimensão interna de revelo, dificultando a sua

caracterização através de categorias binárias e oposicionais tradicionais de um

conflito de natureza inter-estatal ou intra-estatal.

§ O estabelecimento de um regime de partido único, após a independência em

1975, o impedimento da criação de uma alternativa ao programa político da

FRELIMO, assim como de um espaço institucional para uma oposição legal,

criou uma situação de exclusão política extensiva a todos que não

concordavam com as opções dominantes.

§ A transformação da FRELIMO de uma Frente de Libertação Nacional num

Partido Marxista-Leninista (no III Congresso realizado em 1977) resultou no

abandono da prática da democracia participativa no nível das populações, a

qual tinha sido instituída quando da luta de libertação e nos primeiros anos de

independência. Implicou, também, que a base de mobilização do partido,

anteriormente constituída pelos camponeses, passasse a ser formada pelo

quase inexistente proletariado, gerando um sentimento de exclusão nos

primeiros.

129 Cf. HEDGES, D. História de Moçambique. pp 238-249.

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§ A aplicação do processo de recolocação das populações, a quase inexistência

de serviços prestados pelo Estado e a abolição das estruturas tradicionais

desgastaram os alicerces sociais da FRELIMO. Esta situação provocou um

desagrado que foi utilizado pela RENAMO para formar a sua própria base de

apoio no seio da população moçambicana.

§ Ainda as várias denominações religiosas foram antagonizadas, e setores como

o dos pequenos comerciantes e elites camponesas locais foram ostracizados,

tendo-se generalizado o sentimento de que a governação da FRELIMO

pertencia ao Sul.

Estes fatores e, outros, que poderão ser destacados nos estudos e debates acerca do

conflito bélico em Moçambique ajudam a compreender, não só a guerra como tal, nas também

as conseqüências drásticas para a população do país, principalmente as mais pobres e afetadas

já há tempos pelos desmandos e atrocidades do regime colonialista português, pelas

calamidades naturais como as secas e inundações que de forma cíclica assolam várias regiões

do país gerando fome e miséria. Nos relatos de pessoas que vivenciaram o drama deste tempo

e que estiveram junto às populações mais afetadas percebe-se as grandes dificuldades e as

imperiosas necessidades para um processo de evangelização de uma Igreja inserida nesta

realidade.

1- O Recomeço de uma Presença Evangelizadora.

Com o fim da guerra civil em Moçambique, após as negociações e o Acordo de paz

assinado pelos dois grupos beligerantes em outubro de 1992, a situação do país é de

desolação. Várias descrições e relatos deste período podem nos aproximar desta realidade de

sofrimento e penúria para grande parte da população deste país, que desde o início das lutas

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pela independência em 1964 e, principalmente, durante os últimos dezesseis anos não havia

conhecido um tempo de paz e prosperidade.

As conseqüências desta guerra civil foram terríveis para o país e para o povo. Houve

massacres tanto da parte da FRELIMO quanto da RENAMO. Milhares de pessoas se

refugiaram nas cidades ou países vizinhos. A infraestrutura do país foi destruída,

tornando-se impossível assegurar a educação e os serviços de saúde.

Economicamente, o país ficou arruinado. [...] As conseqüências desta completa

desordem social são trágicas: doenças, fome, privação, corrupção, estagnação da

agricultura, da indústria e outros setores, bloqueio do ensino primário e superior.

Todas estas coisas provocam feridas profundas e vivas, que podem, não mais serem

curadas. O número de feridos, mortos, de viúvas e órfãos é imenso. Por causa desta

guerra e desta violência a miséria reina em nosso país. Em todos os setores da vida

social ouve-se lamentações e constata-se um descontentamento geral e falta de

confiança. Enquanto durar esta agonia da guerra e da violência, a paz jamais será

possível em nosso país.130

A situação de guerra, associada às outras dificuldades já existentes, tornou-se grande

desafio para a Igreja e para a tarefa de evangelização em todo o país, ainda mais nas zonas

mais afetadas pela destruição e pelos combates entre os dois grupos beligerantes. Basta

lembrar que pouco tempo depois da Independência, quando o partido no poder assume a

vertente marxista-leninista na sua forma de governar, a maior parte dos bens da Igreja foi

nacionalizada, principalmente as escolas, centros de formação, internatos, hospitais,

residências e mesmo lugares de culto.131

130 BLOMMAERT, E. Op. cit. pp 16-17.131 De fato o processo de nacionalização em Moçambique inicia-se quando em 24 de julho de 1975 foramnacionalizadas todas as instituições de ensino, saúde e promoção. A partir desta decisão do partido no poder aIgreja começa a sofrer uma redução de sua ação pastoral e de evangelização nestas áreas, mas tarde estanacionalização também vai atingir outros bens e propriedades da Igreja, sendo que em alguns lugares isso tornaquase que impossível a presença de missionários e de qualquer atividade de evangelização.

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Esta situação já provocara fortes conseqüências para a evangelização. Com a dinâmica

das nacionalizações, a expulsão ou mesmo fuga de parte dos missionários, a falta de um clero

local que pudesse assumir as demandas da Igreja local e a própria relação com o governo

independente são dificuldades a serem enfrentadas pela Igreja neste tempo pós-independência.

A guerra civil, aliada a estes fatores contribuiu para a impossibilidade de uma presença efetiva

em diversas comunidades e zonas de missão.

1.1- A situação das zonas pastorais do Zambeze Oeste e Zambeze Este no

final da Guerra Civil Moçambicana

Neste tempo, a Arquidiocese da Beira, onde se encontram as maiores concentrações de

população Sena, elaborou um novo projeto de organização interna em Zonas Pastorais

seguindo critérios bastante pertinentes em vistas a uma presença mais de acordo com a

realidade de cada zona e de suas populações. Entre estes critérios destaca-se a língua local da

zona como veículo de evangelização, a maior facilidade de comunicação entre os diferentes

centros de evangelização da zona e as distâncias a percorrer e a facilidade de encontro entre as

comunidades cristãs da zona, para uma maior partilha de vida e mútuo enriquecimento.132

Juntamente com o projeto das Zonas Pastorais, também é elaborado um plano de

criação de novas paróquias, visto que, há um aumento extraordinário e consolador de cristãos

que regressam á prática religiosa; o aumento das comunidades cristãs que reclamam um

melhor serviço sacerdotal; as aglomerações de populações nas vilas e nas cidades, devido à

situação de guerra. Estes e outros fatores encorajam a Igreja a um retorno e uma

evangelização mais significativa em áreas onde a guerra civil praticamente impossibilitou

qualquer tipo de presença.

132 ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Resenha Histórica. Beira, 1988.

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A Zona Pastoral do Zambeze Oeste e do Zambeze Este, consideradas neste tempo

como as duas zonas mais cristianizadas da Diocese da Beira, mas também as que mais

sofreram as conseqüências da guerra civil, são as que possuem as maiores comunidades de

língua e cultura Sena. Por causa da procura de trabalho, alguns grupos da população Sena já

havia se deslocado para outras zonas, mas principalmente no tempo da guerra, muitos grupos

se deslocaram destas duas zonas em busca de refúgio e de melhores condições de vida. Por

terem uma prática cristã solidificada, levam consigo para estas outras regiões uma experiência

e vivência de comunidade, que vão possibilitar a formação de núcleos cristãos Sena nas

paróquias onde se instalam fora de suas zonas de origem.133

A situação das paróquias e comunidades já existentes nestas duas zonas no fim da

guerra civil é de total abandono. Nas cinco paróquias constituídas e nas três em formação é

impossível a assistência regular à população e, os lugares de culto e propriedades da Igreja

estão, em sua maioria, nacionalizados e destruídos. A formação e manutenção das pequenas

comunidades cristãs são sustentadas por cristãos leigos e catequistas, que conseguem, com

muito esforço, reunir a comunidade para o culto e realização de algumas cerimônias e práticas

religiosas.134

Esta é uma das faces da realidade que a Igreja deve enfrentar ao tentar retomar as

atividades de evangelização junto às populações Sena nestas duas Zonas Pastorais da

Arquidiocese da Beira. A situação de guerra abriu abismos difíceis de transpor e transformou

as relações entre as pessoas e mesmo entre os diversos grupos numa mesma região. O

testemunho de um dos primeiros grupos de missionários que chegam a uma das paróquias

abandonadas no tempo da guerra apresenta as dificuldades para este retorno.

133 Ibidem. pp. 80-85134 Ibidem.

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A pequena vila de Inhaminga situada na Província de Sofala em Moçambique

apresentava a característica de ser a única vila do país nas mãos dos rebeldes da

RENAMO nos fins do ano de 1992, logo após o término da guerra civil. Os ferozes

combates ocorridos na conquista da vila provocaram a dispersão de toda a

população, que fugiu para Beira ou para os países vizinhos, ou ainda os que

conseguiram sobreviver escondendo-se na floresta. Quando a paz foi assinada em

Roma, em outubro de 1992, uma grande parte das regiões camponesas estavam sob

o controle da RENAMO, enquanto que as forças governamentais da FRELIMO

tinham o controle das cidades e vilas urbanas. [...] Na mesma época, outro

problema ligado à guerra, a parte central de Moçambique, vivia por três anos

consecutivos uma seca que perdurou por cinco anos. Inhaminga era o ponto de

distribuição de ajuda alimentar que chegava por via aérea com intervalos regulares.

Isso explica o fato de um grande número de pessoas virem de outros distritos na

esperança de obter alimentos.135

Por todas as partes as pessoas estão inseguras, mal nutridas e mal vestidas; as crianças

são as que mais sofrem com a fome e desnutrição. Todos buscam um lugar onde se apoiar,

pois as estruturas básicas estão destruídas, há um ambiente de desconfiança e de medo. Uma

das urgências para a evangelização é ajudar a população a crer na paz e na necessidade de

reconciliação nestes primeiros tempos de uma certa incerteza quanto aos rumos do país depois

do Acordo de Paz. Será necessário ajudar a esta população no seu esforço para se adaptar a

esta nova situação. Ajudar a sair da ignorância e do medo, resquícios do passado, e se

adaptarem às novas possibilidades no âmbito do saber, da paz, da segurança.

Numa situação de enorme abismo entre a classe superior da sociedade, onde grupos

de privilegiados, política e economicamente, se enriquecem às custas da pobre população,

constituindo uma camada superior que praticamente ignora o que o povo tem sofrido. Numa

situação onde em todas as partes em Moçambique falta pessoal profissional de nível médio e

135 AYLWARDS, E. Inhaminga. In: Congregation des Sacrés Coeurs. Cahiers de Spiritualité nº 20. Roma,1999. p.107-114.

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com boa formação para os serviços de saúde, educação, agricultura e realização de projetos.

Agora, no entanto, esta tarefa será realizada por uma “Igreja que saiu da guerra empobrecida,

contudo, enriquecida por sua conversão e pelo fortalecimento da fé de cristãos convictos que,

a partir do evangelho, querem trabalhar pela reconstrução de seu país”.136

2- Retomada das Antigas Opções: 1ª Assembléia Pastoral de 1977

Como uma Igreja que passou séculos, atrelada a um sistema colonial e de exploração

consegue assumir uma nova presença e missão junto à população de um país destroçado pela

guerra e com marcas de uma independência conseguida com lutas e sofrimentos e com alguns

fortes equívocos no direcionamento do poder e no trato com as realidades sócio-culturais

diversas no interior do próprio país? Talvez essa fosse a pergunta de muitos homens e

mulheres de Igreja ao assumirem a tarefa e missão evangelizadora junto a este povo.

O retorno de uma presença de Igreja em algumas regiões supunha um recomeçar do

ponto inicial, um começar das cinzas e destroços de anos de guerra e sofrimento, retornar à

realidade e aprender a viver em tempos novos e distintos, onde os desafios se apresentavam a

cada momento, em cada curva de estrada, em cada ponte a ser atravessada, em cada vila

inteira ou destruída a ser visitada.

O ponto de partida para o retorno a uma presença evangelizadora junto às

comunidades Sena encontrava-se presente já nas opções que a Igreja de Moçambique tomara

com as conseqüências advindas durante o processo e consolidação de independência do país.

Como foi exposto no capítulo anterior, o período de 1975 a 1992 se constituiu para Igreja em

Moçambique um tempo de profundas transformações e mudanças, que trazem grandes e

novos desafios para sua presença e ação no interior desta sociedade. A Igreja vive tempos de

136 Cf. BLOMMAERT, E. Op. cit. p.20.

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verdadeira kenosis e purificação, com repercussões profundas no ser religioso e cristão de

fiéis, comunidades, agentes de pastoral moçambicanos ou estrangeiros.137

A Igreja, enquanto instituição é chamada a responsabilidade pela tarefa de

evangelização a partir da realidade local, ainda que herdeira de modelos e instituições

coloniais, faz deste tempo de revolução e independência um tempo de permanente

discernimento evangélico e atenção à voz do Espírito, falando nos desafios dos homens e no

testemunho de fé dos mais simples e pobres. É um tempo oportuno de clarificação e

descobrimento de caminhos e respostas aos problemas e desafios; um esforço de reflexão,

oração e partilha evangélica, vividas de forma comunitárias. “A tensão entre salvar, guardar e

defender a Igreja ou aceitar ser presença discreta e fraternal, em atitude de serviço humilde,

nos diversos tempos e espaços, vai dominar este período de forte conscientização e

enraizamento eclesiais”.138

2.1- Atitudes e contribuições significativas

Antes mesmo de abordar as conclusões da 1ª Assembléia Nacional de Pastoral

realizada em setembro de 1977, na Cidade da Beira, acontecimento marcante para aquele

tempo e para o futuro da Igreja em Moçambique, cabe aqui destacar alguns acontecimentos

que antecederam e contribuíram para o surgimento de uma nova consciência e presença

evangelizadora da Igreja neste país.

Uma primeira atitude a ser destacada é a do próprio povo moçambicano que assume a

nova realidade de independência e liberdade como um acontecimento fundamental. O

acontecimento da independência foi, antes de tudo, um tomar consciência da própria

dignidade, do próprio direito.

137 Cf. FERREIRA, L. C. Op. cit. p. 111.138 Ibidem. p. 112.

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Fora com o domínio estrangeiro! Era o slogan que passava de boca em boca, que

emergia nos olhares de um povo que se levanta, em cada cidadão, homem ou mulher.

E, mesmo os olhares das crianças, pareciam traduzir o sentimento coletivo de um povo

que rebentara as grilhetas da escravidão rumo ao futuro da liberdade, pátria de todos.

A euforia libertária tomou conta de tudo e de todos. Também nos seus excessos.139

Uma segunda atitude significativa foi a criação da União dos Sacerdotes, Religiosos e

Religiosas de Moçambique – USAREMO. São os filhos e filhas da Igreja local, que apesar do

número reduzido assumem o direito e o dever de colaborar com o povo na novidade e no

contexto de independência e libertação. No encontro realizado em 26 e 27 de agosto de 1974

elaboram um documento onde expressam esta vontade e compromisso que surgem a partir da

tomada de consciência face aos graves problemas criados pela situação sócio-política em

Moçambique. É interessante observar como a tomada de consciência dos vários desafios

trazidos pela Independência à Igreja em Moçambique leva os sacerdotes, religiosas e

religiosos moçambicanos a buscar maior inserção e compromisso com o povo na construção

de um país livre e de uma Igreja inculturada.140

Outra atitude significativa foi tomada por alguns bispos e missionários ainda antes da

independência de Moçambique. No capitulo anterior já mencionamos os conflitos surgidos

entre o governo colonial, já nos seus últimos anos de comando do país, e a postura de alguns

missionários e bispos frente às atrocidades e desmandos deste mesmo governo em relação ao

povo de Moçambique. Vale lembrar a postura dos Padres Brancos – Missionários de África,

que foram expulsos após tomarem a decisão de deixar o país, tendo esgotado todos os meios

para persuadir a Conferência dos Bispos de Moçambique a tomar claras posições de não

139 LUZIA, J. A Igreja das palhotas. Gênese da Igreja em Moçambique entre o colonialismo e a independência.Cadernos de Estudos Africanos. Nº 4/1989 Lisboa: Centro de reflexão Cristã. pp. 29-30.140 Acerca da USAREMO e suas contribuições para o processo de inserção da Igreja na realidade deindependência cf. FERREIRA, L. C. Op. cit. pp 112-116 e LUZIA, J. Op. cit. pp 31-35. Nos anexos destetrabalho está o Comunicado Geral dos Sacerdotes, Religiosos e Religiosas elaborado no fim do encontro de 26 e27 de agosto de 1974 em Guia – Inhambane. Também a nota da USAREMO escrita na seqüência do encontroque manteve com o Cardeal Mazzoni, enviado especial do Papa Paulo VI para fazer o levantamento da situaçãono interior de toda a Igreja no país.

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compromisso com o governo colonial, principalmente no que tangia à guerra e às atrocidades

cometidas pelo exército e demais forças militares. Também se destaca a postura de alguns

bispos da Conferência Episcopal de Moçambique, seja através de atitudes concretas em defesa

dos atingidos pelas atrocidades e violências cometidas pelo regime colonial português e

também através de seus escritos e reflexões junto ao povo e ao clero, no intuito de levar à

Igreja a um maior compromisso e transformação da realidade e das relações entre as pessoas

na perspectiva de um novo Moçambique.141

Outra contribuição vem da própria Conferência Episcopal Moçambicana que desde o

início da década de 1970, acompanhando os acontecimentos referentes ao processo de luta

pela independência de Moçambique e, assumindo a nova realidade de um Moçambique

independente a partir do ano 1974, onde os acordos e as decisões acerca da independência se

tornam mais efetivos; expressa uma postura de apoio a esta mudança e busca, desde seu

interior, passar por transformações que ajudem a responder aos novos apelos da realidade.142

Dois documentos deste período possibilitam compreender esta mudança e reorientação

da Igreja: O Documento Pastoral A Igreja num Moçambique Independente de 30 de agosto de

1974 e a Carta Pastoral Viver a Fé no Moçambique de Hoje de 06 de junho de 1976. O

primeiro documento é uma reflexão sobre a independência, que se concretizará em 25 de

junho de 1975, e sobre a posição da Igreja nas novas estruturas políticas e nos diversos

âmbitos da vida do povo moçambicano, como a educação, cultura e também sobre as atitudes

necessárias para enfrentar, junto com o povo, os desafios deste novo tempo.

141 Aqui se destaca a figura de dois bispos que contribuíram para uma nova tomada de consciência e postura daIgreja em Moçambique, trata-se de D. Sebastião Soares de Rezende e D. Manuel Vieira Pinto. cf. SOUZA, J. A.A. ; CORREIA, F. A. C. Op. cit.142 É clara e presente a influência do Concílio Vaticano II e dos documentos do Magistério Universal na novapostura que a Conferência dos Bispos de Moçambique assume durante esta primeira década dos anos 70. Textose citações das Encíclicas e pronunciamentos de Paulo VI estão presentes nas cartas, comunicações e documentosenviados pelos bispos às comunidades cristãs e ao povo de Moçambique.

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Os Bispos regozijam-se ao ver o povo moçambicano a assumir a responsabilidade

do seu próprio destino e caminhar por si próprio no concerto mundial das nações.

Pela independência chega-se ao termo das estruturas coloniais que, durante séculos,

dirigiram a vida em Moçambique e onde os interesses econômicos de alguns

pairaram acima dos direitos humanos e das aspirações legítimas de muitos.143

Ainda sobre a independência os bispos alertam para as exigências e mudanças que

precisam ocorrer dentro deste processo:

Uma concepção nova de vida exige que lutemos contra todas as desigualdades

sociais e a riqueza egoísta, pondo de lado os sentimentos de ódio, vingança e

violência, que são contrários à liberdade e ao verdadeiro progresso.

Nesta linha, há muitas situações em Moçambique que precisam ser revistas. A

maioria da população vive em estado de pura subsistência, enquanto o grande

potencial da riqueza tem estado, até agora, na mão de poucos [...] A exploração do

subsolo, a produção agrícola, o desenvolvimento industrial, a manufatura das

matérias primas, voltadas para o progresso interno do país e para o bem comum, são

fatores importantes para, num sistema de socialização, fomentar a igualdade e uma

distribuição da riqueza em moldes mais eqüitativos e em razões que tenham em

consideração a dignidade da pessoa humana e a retribuição justa do trabalho.144

A busca de uma nova postura frente à nova situação sócio política dá a tônica central

deste documento de 1974. Os bispos também fazem uma análise da contribuição positiva da

Igreja, mesmo durante o tempo colonial, onde esta, muitas vezes, atuou como colaboradora do

colonialismo, sem capacidade de uma atitude mais crítica e profética. As contribuições na

área da educação e da cultura são destacadas como elementos que fizeram parte da presença

143 CONFERENCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. A Igreja num Moçambique Independente. nº1Lourenço Marques, 1974.144 Ibidem. nº 6-7.

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da Igreja neste período anterior à Independência. Mas está convencida de que deve rever e

mudar sua postura neste novo contexto histórico.

Neste contexto de Moçambique independente surgirão necessariamente grandes

reformas sociais, econômicas, políticas e culturais. Aparecerão outros métodos de

trabalho para a construção deste novo país. [...] A Igreja terá de acompanhar esta

mutação histórica, marcando a sua presença no meio do povo, integrando-se no seu

crescimento, partilhando das suas tarefas em todas as formas de desenvolvimento.

Temos de rever, a breve prazo, os nossos métodos de pastoral, os processos de

trabalho das nossas missões, adaptando-os às circunstâncias e às situações criadas

num Moçambique novo, que desejamos ver crescer na justiça, na paz e no

progresso.145

Será a partir de uma postura de maior respeito pela cultura africana, de um novo tipo

de presença no meio do povo, da busca de um legítimo pluralismo quanto à expressão, à

linguagem e ao modo de exprimir a única fé, que a Igreja se prepara para entrar nesta

dinâmica de independência e transformações. Também uma atitude de disponibilidade e

fidelidade está presente na reflexão dos bispos de Moçambique nesta época.

Para que tal processo de africanização da Igreja se processe com mais brevidade e

para melhor responder aos anseios do povo Moçambicano, nós, Bispos de

Moçambique, estamos dispostos a renunciar às nossas Dioceses, para que as

mesmas sejam ocupadas por outros Bispos principalmente naturais de

Moçambique, se o Sumo Pontífice assim o entender e se for esse o bem da Igreja.

[...] Porém, enquanto a Igreja nos pedir a responsabilidade, de governar e dirigir as

dioceses estamos decididos a prosseguir nossa missão de serviço, unidos a todos os

145 Ibidem. nº 23.

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sacerdotes, religiosos, catequistas e leigos, a fim de podermos implantar

definitivamente, neste país, verdadeiras comunidades de fé, liturgia e caridade.146

O segundo documento, escrito na comemoração do primeiro ano da Independência, já

revela uma Igreja que sofre diretamente as conseqüências advindas com a Independência do

país e pela postura de uma maior inserção e presença junto ao povo moçambicano. Já neste

período vários bispos moçambicanos estavam à frente das dioceses147, há um esvaziamento do

pessoal missionário148, os bens da Igreja são nacionalizados149, muitos líderes são enviados

aos campos de reeducação, as aldeias comunais se tornam um entrave e mesmo um desafio

para a vivência cristã e para a evangelização. Contudo, os bispos fazem um forte apelo aos

cristãos a continuarem sua caminhada, alicerçados nos pilares da fé cristã e contribuindo para

a missão da Igreja.

Vivendo uma nova situação, é-nos exigida uma forma mais espontânea de ser Igreja.

Não nos devemos desencorajar. A fé e a confiança em Jesus Ressuscitado ajudam-

nos a buscar novos caminhos e novas formas de presença. Ajudam-nos a descobrir o

essencial da nossa missão. Independentemente das expressões da fé, dos métodos de

nossos trabalhos e das estruturas da organização, em ordem a uma melhor adaptação

ao caráter e à cultura do país, é o anúncio do Evangelho e a formação da

comunidade de Cristo que constituem para nós um apelo constante. Apelo este que

se funda na missão de Cristo, o Enviado do Pai e na missão da Igreja, que o mesmo

Cristo lhe confiou após a Ressurreição (Mc. 16,15).150

146 Ibidem. nº 26-27.147 A cerimônia de sagração dos primeiros bispos moçambicanos se deu no dia 9 de março de 1975. Foramsagrados D. Alexandre José Maria dos Santos, Arcebispo de Lourenço Marques, atual Maputo e D. JanuárioMachaze Nhamgumbe, Bispo de Porto Amélia, atual Diocese de Pemba. Até o ano de 1976 já haviam sidosagrados mais cinco bispos moçambicanos param ocuparem as demais sedes episcopais da Igreja emMoçambique. Cf. SOUZA, J. A. A. ; CORREIA, F. A. C. Op. cit. pp. 158-171.148 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Viver a fé no Moçambique Hoje. nº 17. Maputo,1976.149 Ibidem. nº 12-15.150 Ibidem. nº 26.

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Nestes dois documentos aparecem as linhas que orientam a reflexão da Igreja em

Moçambique a partir da nova realidade e das novas situações e desafios que surgem para a

evangelização: a necessidade de construir uma Igreja autenticamente inserida na realidade

africana e moçambicana; uma Igreja que se engaje nas tarefas de desenvolvimento integral do

país; uma Igreja que busque uma conversão de mentalidade, atitudes, métodos e estruturas; e

que desenvolva uma pastoral de comunidades cristãs, distanciando-se do modelo colonial, e

em busca de um maior compromisso, tornando-se mais autônoma e livre.151

2.2- As conclusões da 1ª Assembléia Nacional de Pastoral

O próprio acontecimento da 1ª Assembléia Nacional de Pastoral, realizada na Cidade

da Beira em setembro de 1977, já revela uma Igreja em estado de mudança e conversão para

melhor responder aos desafios do tempo presente. Uma Assembléia amplamente

representativa, constituída por todos os bispos e representantes dos demais agentes de

pastoral, padres, leigos, religiosos e religiosas, que conseguiram dizer como Igreja, a palavra

mais expressiva sobre sua natureza e sua missão nos tempos vindouros. 152

Todos os antecedentes, as contribuições, os preparativos, as assembléias que foram

realizadas nos vários níveis e setores, e a convocação para que todos os cristãos pudessem

participar de alguma forma deste evento, culminaram na forte experiência e expressão

eclesial, que forneceu aos agentes de pastoral e às comunidades, pistas de orientação comuns,

para o exercício das suas funções e missão na Igreja e na sociedade atuais.

Dois aspectos se distinguem no processo novo em que bispos, padres, religiosos e

leigos se vêem envolvidos: por um lado a frescura e a espontaneidade da base, das

pequenas comunidades cristãs; por outro, a reflexão organizada através de

encontros, cursos, assembléias. De entre estas um destaque muito especial deve ser

151 Cf. FERREIRA, L. C. Op. cit. p.101.152 Cf. LUZIA, J. Op. cit. p. 56.

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dado à 1ª Assembléia Nacional de Pastoral, como se deduz dos relatórios diocesanos

e pela forte experiência de comunhão eclesial que nos transmitiu e pelas conclusões

ou linhas de orientação que foram decisivas para moldar o “estilo de Igreja” que é

nosso.153

A 1ª ANP foi antes de tudo uma possibilidade para avaliar a caminhada

realizada desde a Independência, principalmente em relação à vida concreta das comunidades

cristãs e dos ministérios. A participação, a libertação da iniciativa no povo cristão, a co-

responsabilidade, a união e comunhão com os irmãos de outras confissões, a pobreza que dá à

Igreja a possibilidade de ser fermento, os esforços para responder às aspirações do povo, a

encarnação da mensagem evangélica nos valores locais, a queda de estruturas que atrofiam o

Espírito, uma maior valorização e conhecimento da Palavra de Deus, a atenção aos sinais dos

tempos, o testemunho de fé das comunidades cristãs, as tensões provenientes de um clima de

abertura e confiança, a experiência da insuficiência e da fraqueza que faz descobrir a

necessidade de colaboração e ajuda mútua são os elementos positivos da avaliação feita pelos

participantes da 1ª ANP.154

A Assembléia também avaliou os aspectos negativos presentes neste tempo de

caminhada e de mudança no interior e exterior da Igreja, dentre eles se destacam: falta de

liberdade de anúncio da Palavra a todos; dificuldades em manifestar livremente a opção de ser

cristão; aceitação apenas teórica das mudanças; demasiada diversidade no exercício dos

ministérios; espírito de monopólio e dominação dos ministros da Igreja; tentativa de divisão

no seio da hierarquia; descuido na formação dos ministros ordenados; clericalização dos

leigos; complexos de inferioridade e superioridade, de frustração e de fuga. 155

Mesmo sendo um acontecimento de capital importância para uma nova

orientação da presença e evangelização da Igreja em Moçambique, não se pode esquecer as

153 Cf. FERREIRA, L. C. Igreja Católica em Moçambique: Que caminho? Maputo: Ed. Paulistas, 1993. p.19.154 O texto das conclusões da 1ª ANP se encontram em anexo neste trabalho.155 Cf. FERREIRA, L. C. Igreja Ministerial em Moçambique. Op. cit. pp. 130-138.

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posições diferentes e as tensões resultantes que surgem antes, durante e depois da realização

da 1ª ANP; cabe lembrar as próprias dificuldades da conjuntura do país e da própria Igreja. Na

sociedade está em jogo o apoio e o engajamento sócio-político após a independência e a

implantação de um regime de revolução e as reticências, desconfianças e forças contrárias que

interagem neste cenário. Da parte da Igreja existe a tensão entre a tendência à organização,

hierárquica e clericalizada, frente a uma tendência mais espontânea, comunitária e laical.

As principais opções ou prioridades que surgem da caminhada da Igreja em

Moçambique nestes primeiros tempos, e de forma específica a partir da realização da 1ª ANP

são:

§ Suscitar e formar pequenas comunidades cristãs, compreendidas como

comunidades ministeriais.

§ Formar os animadores ou responsáveis dos diversos ministérios e serviços

necessários à vida das comunidades.

§ Envolver os sacerdotes, religiosos e religiosas em programas de formação

permanentes e reciclagem, para os tornar capazes de servir esta Igreja e este povo.

§ Cultivar e acompanhar, entre os jovens e nas famílias, a partir das comunidades

e em estreita ligação com elas, vocações sacerdotais e religiosas, sobretudo diocesanas.

§ Tornar viável a Igreja, a partir da base que é a família africana, no seu contexto

cultural e histórico, preparando e revitalizando os lares cristãos e formando desde a juventude

um laicato consciente, responsável e empenhado na transformação de seu ambiente.

§ Encarnar o Evangelho nos valores reais do povo, de modo a atingir os grupos

humanos, a partir de suas raízes culturais, sem esquecer o anúncio do mesmo aos numerosos

não cristãos.

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§ Fomentar e aprofundar, nos diversos níveis, a comunhão eclesial e o sentido de

ajuda mútua e de partilha, comprometendo todas as forças vivas da Igreja local.156

§ Fazer crescer o empenho pelas obras de interesse nacional. Pelo

desenvolvimento integral, profundo e pleno do homem moçambicano; pela sua dignidade e

direitos, assumindo e valorizando a missão profética da Igreja.

§ Abrir caminhos à “civilização do amor” e à reconciliação dos moçambicanos

numa grande família nacional, mediante o empenho, no meio das populações e a outros

níveis, pela justiça e pela paz.

§ Praticar o diálogo – diálogo ecumênico, diálogo inter-religioso, diálogo com as

autoridades, diálogo dentro da Igreja – para promover o maior bem do povo.

Serão, apesar de todas as dificuldades e desafios deste tempo, as grandes

opções da Igreja que se vão clarificando nesta Assembléia e em outros momentos. Estas

opções se tornam fundamentais, para a retomada da presença desta mesma Igreja, após o fim

da guerra civil, junto às comunidades Sena do Vale do Zambeze que viveram esta experiência

de serem pequenas comunidades cristãs no interior do país e fora dos grandes centros urbanos,

com pouco ou quase nenhum contato com os missionários. Comunidades pobres que

aprenderam a se organizar e crescer, ainda que sem contar com a presença de ministros

ordenados e atenção pastoral da Igreja como tal.

156 Cf. para compreender este conceito de Igreja local na ótica moçambicana cf. LANGA, A. A Igreja Local.Coleção Evangelho e Cultura 4. Maputo, s.d.

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3- O Que nos Dizem Nossos Chefes: A Palavra dos Bispos de Moçambique nos Dez

Primeiros Anos da Paz

A Igreja em Moçambique atuou de maneira profética e testemunhal durante os

dezesseis anos de guerra civil e teve uma participação ativa, na pessoa do Arcebispo da Beira,

Dom Jaime Pedro Gonçalves, para se chegar ao Acordo Geral de Paz, assinado em Roma no

dia 04 de outubro de 1992 pelo então Presidente da República de Moçambique Joaquim

Alberto Chissano e pelo Presidente da RENAMO Afonso Dlhakama.157 Quando em 1979 a

guerra em Moçambique parecia já uma realidade muito difícil de ocultar por causa da

insegurança nas estradas e picadas do mato, do ataque a bens e pessoas, dos raptos de

Moçambicanos e estrangeiros, ganhando cada vez mais conotação de uma guerra civil entre

os próprios moçambicanos, ainda que contasse com apoio de grupos externos; a Igreja inicia,

através de seus bispos, um diálogo com o Governo a nível nacional e local pela causa da paz.

Da mesma forma que tenta entrar em diálogo com as estruturas de governo, os

bispos também esclarecem o Povo de Deus através de Cartas, Notas e Comunicados Pastorais,

exortando e orientando à necessidade de diálogo para se chegar a uma verdadeira paz.

Seguindo orientação proposta por Paulo VI na Ecclesiam Suam, os bispos de Moçambique

apostam no propósito de cultivar e aperfeiçoar o diálogo como meio para a causa da paz.158Os

esforços nesta área estão presentes nos documentos escritos e nas diversas atividades

realizadas pela Igreja, juntamente com outras instituições, para que a paz se torne uma

realidade mais próxima no horizonte do povo moçambicano.159

157 Acerca deste assunto cf. DELLA ROCCA, R. M. Moçambique da Guerra à Paz.Op. cit.158 PAULO VI. Encíclica Ecclesiam Suam.nº 59. Documentos de Paulo VI. São Paulo: Paulus, 1997.159 Os principais documentos do Episcopado Moçambicano durante os dezesseis anos de guerra são: Caminhosda Paz (1979), Conversão e Reconciliação (1983), Um Apelo à Paz (1983), A Urgência da Paz (1984), NovoApelo à Paz (1984), A Paz é Possível (1985), Cessem a Guerra, Construamos a Paz (1986), A Paz que o PovoQuer (1987), Justiça e Paz – IMBISA (1988), A Esperança da Paz (1989), Urgir o Diálogo da Paz (1990), A PazExige Reconciliação (1990), Momento Novo (1991), Quando Virá a Paz (1991), Construamos a Paz na Justiça eno Amor (1992).

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Com o fim da guerra e o início da reconstrução do país, tarefa bastante árdua e

dificultada por vários fatores internos e externos, a Igreja de Moçambique continua a envidar

esforços na promoção e manutenção da paz e se empenha junto ao povo na grande tarefa de

reconstrução em todos os níveis. Já na II Assembléia Nacional de Pastoral, realizada em

dezembro de 1991, antes mesmo do fim da guerra civil, a Igreja já se preparava para os

desafios que ia enfrentar, tendo em vista a realidade daquele momento, marcada por situações

difíceis e dramáticas. Entre os principais desafios da sociedade moçambicana a Igreja destaca

como sendo de maior importância frente à sua ação evangelizadora os seguintes.160

• O homem e a sociedade moçambicanos destruídos pela guerra

• A desintegração das populações e do seu meio ambiente.

• Os refugiados, deslocados, desmobilizados, ex-combatentes, marginalizados.

• A degradação moral da juventude que constitui a maioria da população (55% com

menos de 25 anos).

• Os graves problemas que afetam o ensino, a saúde e os serviços públicos no país.

• A degradação e a corrupção das famílias.

• A influência negativa que os Meios de Comunicação Social exercem, em particular

sobre a juventude e a família.

• A falta de motivação quase geral do povo moçambicano de enfrentar positivamente o

Momento Novo que se deve viver.

A Igreja busca também caminhos e respostas pastorais para estas situações. Entre as

respostas que necessitam ser dadas está a necessidade de uma restauração da pessoa humana

dentro de uma sociedade destruída pela guerra, para isso será necessário reencontrar os

valores essenciais da vida e da cultura das populações. A pacificação das populações, que

reproduzem em suas estruturas de convivência os mecanismos do sistema de guerra, é

160 Cf. CONFÊRENCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Conclusões da II Assembléia Nacional de Pastoral.Maputo, 1992. pp. 15-16.

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também uma das respostas pastorais urgentes neste tempo. A preservação do meio ambiente,

espaço vital para as populações das aldeias e vilas, bem como a reintegração social dos que

estão refugiados e deslocados, dos desmobilizados e ex-combatentes; pois são parcelas da

população que sofrem mais diretamente as conseqüências da guerra e necessitam de atenção

pastoral e de presença evangélica.161

Durante estes primeiros dez anos de paz (1992-2002), a Conferência Episcopal de

Moçambique ciente de que a Igreja deve estar envolvida na recuperação do potencial humano

da Juventude, pois, são juntamente com as mulheres e crianças as maiores vítimas de toda a

desordem e degradação social; ciente de que deve participar na resolução dos graves

problemas que afetam o ensino, a saúde e os serviços públicos; ciente de que deve procurar

soluções necessárias para fazer face à atual degradação da família, procura estar em contato

com as comunidades através dos vários organismos e estruturas eclesiais e também através de

uma comunicação permanente, seja através de comunicados, documentos e principalmente

das cartas pastorais, onde se percebe, de um lado a insistência na consolidação de uma Igreja

local como tarefa necessária e inadiável para todos e cada um dos cristãos, de outro a

insistência de uma Igreja profética e presente na realidade de seu povo, capaz de denunciar as

estruturas que, ainda, impedem o povo de viver um tempo de paz e prosperidade.162

Fazemos um apelo veemente ao Governo e a RENAMO, os grandes responsáveis

deste conflito, que não se deixem dominar pelos interesses pessoais ou de grupo:

retomem corajosamente as conversações e não as interrompam mais sem chegar à

assinatura do cessar fogo. Pela sua insensibilidade ao sofrimento e morte do povo

161 Ibidem.162 Entre os anos de 1992 e 2002 temos uma série de mais de vinte comunicados da Conferência Episcopal deMoçambique, muitas são escritas após as Assembléias Ordinárias da Conferência ou após as reuniões daIMBISA. Não vamos tratar aqui cada um desses documentos, mas preferencialmente as cinco Cartas Pastoraisescritas entre janeiro de 1994 e abril de 2001.

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moçambicano e pela sua lentidão no processo da paz, eles serão implacavelmente

julgados e condenados pela história.163

Dois anos após o AGP os Bispos de Moçambique escrevem a Carta Pastoral

Consolidar a Paz, um documento dirigido a todas as comunidades cristãs e a todos os homens

de boa vontade. Os bispos analisam os frutos obtidos com o processo de paz iniciado em 1992

e apontam as ameaças existentes para que a paz se consolide no país.164 Este documento

também reflete as expectativas acerca das primeiras eleições livres e multipartidárias que

acontecem neste mesmo ano. Este acontecimento vai marcar o início de exercício de

democracia e participação popular ainda não vividas em Moçambique.

De fato, na nossa cultura e tradição já havia um conjunto de valores, tais como: a

solidariedade, reconciliação, diálogo, participação, que nos aproximavam da

democracia que hoje desejamos ver instalada no País. No entanto, há todo um

processo que devemos aprender se queremos votar consciente e livremente nas

próximas eleições e construir uma verdadeira democracia multipartidária.165

Ainda neste mesmo ano a Conferência Episcopal de Moçambique elabora a

Carta Pastoral Solidários Para um Moçambique Melhor, dirigida às comunidades cristãs, aos

dirigentes políticos e a todos os homens e mulheres de boa vontade. O texto, de julho de 1994,

está em sintonia com o Sínodo dos Bispos para África, realizado em Roma de abril a maio

deste mesmo ano. Na mensagem final do Sínodo há um forte apelo e encorajamento para os

cristãos a se engajarem na política e na educação para a democracia, onde a educação para o

163 CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Comunicado dos Bispos às Comunidades Cristãs. nº8.Maputo, Maio de 1992.164 CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Carta Pastoral Consolidar a Paz. nº 5-15, Maputo,1994165 Ibidem. nº17.

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bem comum e o respeito ao pluralismo deve tornar-se uma das tarefas pastorais prioritárias

nos tempos atuais.166

A Carta Pastoral Solidários Para um Moçambique Melhor é uma exortação

para que o povo continue a caminhar na esperança e na oportunidade que se apresenta para

construir um Moçambique melhor. Sem esquecer as sombras e dificuldades que ainda se

apresentam, nomeadamente a corrupção em todos os escalões da vida política, social,

econômica e administrativa; a escalada galopante da violência, a destruição da consciência e

da dignidade ética, o escandaloso abismo que separa cada vez mais uma minoria opulenta e a

grande maioria do povo.167 Os bispos insistem que a participação dos cristãos na vida política

é uma exigência, pois encarada de maneira positiva, a política deve favorecer o bem comum e

ter a pessoa humana como centro das atenções.

A participação política dos cristãos motivados pela fé trará um contributo novo e

diferente dos outros cidadãos animados por outros princípios. Os cristãos, como

bons cidadãos, são movidos por um verdadeiro amor à sua pátria e serviço à pessoa

humana. Assumem uma atitude crítica construtiva, denunciando e rejeitando toda e

qualquer forma de discriminação, ódio, rivalidades e conflitos de motivação racial,

étnica, tribal, lingüística e regional que favoreçam divisões no seio da comunidade

nacional.168

Escrita nas vésperas das primeiras eleições livres e multipartidárias, esta Carta Pastoral

insiste fortemente na participação de todos neste processo, principalmente os cristãos que

guiados pela fidelidade à dignidade da pessoa humana, pela consciência moral da honestidade

e de fidelidade na promoção do bem comum, pela consciência cristã de reconciliação e paz

166 Cf. Mensagem do Sínodo dos Bispos para a África. Nº 32-34.167 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Carta Pastoral: Solidários Para um MoçambiqueMelhor. Nº 6. Maputo, 1994.168 Ibidem. nº 15.

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devem aproveitar este momento propício de transformação e mudanças para darem sua

contribuição ativa neste momento especial da história.169

Em 1996, com os novos rumos que toma a vida política e social no país, marcada pelas

incertezas e restrições na vida econômica, principalmente pela política monetária imposta

pelas super-potências econômicas e a escala da violência e ameaças constantes à situação de

paz, a Carta Pastoral Promover a Cultura da Vida e da Paz é um apelo para que a aliança e o

juramento mútuo de paz não seja rompido, mas que possa renovar a intensidade e o sabor

original com que foi conquistada. Pois se há pessoas que reclamam por justiça é sinal de que a

paz ainda não é uma realidade definitiva no horizonte do povo moçambicano.170

Os bispos insistem em elementos chaves para a compreensão e transformação da

realidade e para a manutenção da paz e da reconciliação, conquistadas com enormes esforços.

O primeiro elemento é uma nova compreensão de pertença do povo moçambicano:

“pertencemos a um grupo com o qual nos identificamos, pertencemos a uma nação que

queremos construir e edificar [...] O nosso grupo já não é só a família ou até a tribo no seio da

qual nascemos e onde temos muitas das nossas raízes culturais”.171Esta nova maneira de

pertencer à nação vai exigir um compromisso maior com as estruturas democráticas de

participação e decisão.

O segundo elemento é a busca de maior justiça social, que possa diminuir a

desigualdade gritante entre os mais pobres e uma pequena classe de ricos e privilegiados, pois

este fator está no centro da degradação e deterioração da vida e cultura do povo.

Sob o ponto de vista social, deparamos por um lado, com os pobres sem maneiras de

sair da miséria humilhante a que estão votados, e por outro lado, com ricos vivendo

cada vez melhor e mais instalados; deparamos com a deterioração ou decadência

169 Ibidem. nº 16-20.170 Cf. CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Carta Pastoral: Promover a Cultura da Vida e daPaz. nº. 8-10. Maputo, 1996.171 Ibidem. nº 17.

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moral que rapidamente atingiu a conduta do povo, a vida familiar – divórcios,

abortos – a vida profissional, desonestidades, desvios de fundos, peculato,

sabotagem, roubos, subornos, corrupção.172

O terceiro elemento é a constituição de instituições políticas e de governo que

realmente favoreçam o exercício da democracia e colaborem para que as pessoas tenham

acesso aos direitos básicos enquanto cidadãos.

Estamos num tempo em que o poder constituído terá de ser exercido dentro das

exigências de uma verdadeira democracia se quiser conservar a dignidade e a

legitimidade de que precisa para continuar como poder constituído. Estamos num

tempo de aprendizagem da democracia ou de uma sociedade em liberdade. O povo

pergunta-se pela democracia que foi anunciada e pelo cumprimento dos programas

que serviram de base à campanha eleitoral. Pergunta-se pelas políticas que foram

anunciadas, as quais permitiriam a todos os cidadãos o acesso à educação, à saúde,

ao emprego, à segurança social, à posse de um conjunto de bens indispensáveis a

uma vida digna e humana.173

No ano de 1999, ocasião da segunda eleição geral, os bispos enviam às

comunidades a Carta Pastoral Votar é Servir a Pátria. Cinco anos depois das primeiras

eleições multipartidárias, os cristãos são convidados a avaliarem o processo democrático do

país e a continuar sua participação ativa, principalmente através do exercício da cidadania,

pois “a Igreja não pode ficar indiferente, mas deve participar na vida social de maneira que a

sociedade se organize à medida do homem criado à “imagem e semelhança de Deus” e

chamado a atingir a estatura de Cristo, Homem perfeito, exercendo sua função específica”.174

172 Ibidem. nº 21.173 Ibidem. nº 24.174 CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Carta Pastoral: Votar é Servir à Pátria. nº. 2. Maputo,1999.

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A preocupação dos bispos não reside somente no fato das eleições e no

exercício da democracia e cidadania, mas também na instalação e avanço de políticas

adequadas que colaborem para desenvolver e promover as populações mais pobres, que

continuam sofrendo as conseqüências da extrema pobreza a que estão sujeitadas.

Todavia, sem negarmos os elogios que se fazem ao crescimento global da economia

moçambicana, na realidade as condições de vida da maioria do povo tem piorado

nestes últimos anos. Com efeito, a pobreza e a miséria aumentaram a ponto de haver

populações morrendo à fome; física e moralmente incapazes de resistir às doenças

endêmicas e às epidemias, como a cólera e a malária, entre outras. Esta situação não

pode apenas ser atribuída à calamidades naturais, mas deve-se também à falta de

uma política adequada e ousada para a criação de estruturas de base e programas

articulados de prevenção, defesa das condições de vida das populações.175

Aqui os bispos abordam uma questão chave para a evangelização inculturada: a

questão da libertação integral da pessoa. Libertação que passa em primeiro lugar pelo respeito

à dignidade e pela promoção integral da pessoa. Para tanto, a promoção e defesa do bem

comum, objetivo principal de qualquer governo, envolvem a criação de todas as condições

biológicas, psicológicas, morais, sociais, econômicas, espirituais e culturais necessárias para a

passagem progressiva de situações menos humanas para situações mais humanas.176

A perspectiva evangélica do pobre não é a riqueza, mas a alegria de viver com

dignidade na diferença do múltiplo articulado. A igualdade participativa e a

solidariedade universal visam, ao mesmo tempo, à superação da assimetria

175 Ibidem. nº. 8.176 Ibidem. nº. 15.

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socioeconômica que gera pobreza e miséria, e o reconhecimento da alteridade

irredutível dos Outros.177

A mudança de lugar social e histórico pela qual passou a Igreja de

Moçambique nos últimos 30 anos, desde a independência do país, leva a perceber também a

presença de novos sujeitos sociais e eclesiais na pessoa dos mais pobres e

marginalizados.178Os bispos expressam e buscam aplicar na prática evangelizadora da Igreja

em Moçambique a compreensão de que:

Entre evangelização e promoção humana, desenvolvimento e libertação, existem, de

fato, laços profundos: laços de ordem antropológica, dado que o homem que deve

ser evangelizado não é um ser abstrato, mas antes um ser condicionado pelo

conjunto dos problemas sociais e econômicos; laços de ordem teológica, porque não

se pode nunca dissociar o plano da Criação do plano da Redenção, onde se apontam,

para além do mais, situações bem concretas de injustiça que hão de ser combatidas,

e de justiça a ser restaurada; laços daquela ordem eminentemente evangélica qual é a

ordem da caridade.179

O quinto e último documento do Episcopado de Moçambique que destacamos

é a Carta Pastoral Diálogo: caminho Para a Democracia. Passados quase dez anos do Acordo

Geral de Paz, a sociedade moçambicana vai sofrendo os desafios e os impasses para alcançar

realmente um tipo de governo, instituições políticas e da sociedade civil que saibam exercer

177 Cf. SUESS, P. Evangelizar a Partir dos Projetos históricos dos Outros. Ensaio de Missiologia. São Paulo:Paulus, 1995. p. 167.178 Esta concepção está presente nas Conclusões de Medellín e trabalhada nas Conclusões de Puebla. Cf.CELAM. Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. nº 1134-1165. São Paulo:Paulinas, 1986. 7ª ed.179 Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia in África. nº 68.

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suas respectivas funções dentro dos parâmetros de uma democracia não só representativa, mas

participada e ativa.180

Os Bispos destinam esta breve Carta Pastoral às autoridades e partidos

políticos, ao governo e ao povo, à Comunidade Internacional e às Comunidades Cristãs

incentivando a continuação do processo de democratização do país, sem dúvida um trabalho

que vai requerer muito tempo, coragem e determinação, mas poderá culminar na criação e

consolidação das instituições democráticas e sociais necessárias para promover o verdadeiro

crescimento e progresso da sociedade.181

Com um processo de paz e reconciliação bastante recentes, as ameaças e

conflitos estão presente no contexto político e social deste período. Aqui se deve mencionar

alguns fatos desta época, como as inundações e cheias ocorridas no fim do ano 2000 e início

do ano 2001 que atingiram fortemente as populações do Sul e Centro do país, causando

mortes e prejuízos incontáveis e revelando de um lado a ineficácia das instituições de ajuda do

governo e do outro a extrema pobreza em que vive a maioria da população do país,

principalmente as que estão nas zonas rurais e longe dos centros urbanos.

Também alguns acontecimentos no cenário político e econômico surgem como

conflitos e ameaças ao processo democrático que o país quer alcançar e revelam a fragilidade

das instituições para a manutenção da paz.

A paz que se vive em Moçambique afirma-se sobre alicerces institucionais frágeis,

com espirais conflituais crescentes, e que se manifestam em localizações

circunscritas de violência como as mortes de Montepuez, de Siba-Siba Macuacua, de

Carlos Cardoso, ou com a carga da Polícia sobre os manifestantes da ex-RDA,

demonstrando as fragilidades institucionais do sistema de governação e a tendência

do Estado de lidar com os problemas de forma superficial e ineficiente, o que, a

180 Cf. MACUACUA, L. O AGP Dez Anos Depois: Novos Desafios Para Moçambique. pp. 5-6.181 CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. Carta Pastoral Diálogo Caminho Para a Democracia.Maputo, 2001.

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continuar, custar-lhe-á o restante de sua já frágil legitimidade. A paz moçambicana é

assim uma paz construída por um caminho difícil e tortuoso, é uma paz possível e

realista, mas não a paz positiva que uma visão normativa preconizaria.182

Os bispos insistem em que o diálogo deve ser uma das vias privilegiadas para a

manutenção da paz e para a continuidade do processo de democratização do país. “O diálogo

é o caminho irrenunciável para a verdadeira e autêntica democracia em Moçambique. Por isso

apelamos e vivamente encorajamos que se continue a dialogar para preservar a paz”. 183

Estas Cartas Pastorais escritas durante estes primeiros dez anos de paz,

demonstram uma Igreja que busca orientar sua prática evangelizadora na direção de uma

evangelização inculturada. Sem dúvida, as populações Sena do Vale do Zambeze, de modo

especial as pequenas comunidades cristãs no seio destas populações, sentiram-se apoiadas e

beneficiadas em sua caminhada por esta postura e estas palavras vindas de seus chefes e

anciãos na fé da mesma Igreja.

4- “A Igreja das Palhotas”: As Comunidades em Busca de Paz

O papel das pequenas comunidades cristãs, que surgiram e proliferaram em

Moçambique após a Independência, como fruto de uma nova consciência de Igreja e novas

opções na área da evangelização, será de grande valor neste tempo de construção e

manutenção da paz no interior das populações em Moçambique. É que a Igreja em

Moçambique independente nasceu, emergiu e penetrou todos os interstícios da sociedade, do

povo que a fez sua. Ela desceu ao coração e daí foi brotando. Fez-se assim Igreja do povo.

182 Cf. LALÁ, A. Dez Anos de Paz em Moçambique: Da Visão Normativa à Perspectiva Realista. p. 37.183 CEM. Diálogo: Caminho Para a Democracia. Nº 24.

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Este lhe deu muito das suas expressões, da sua cultura, das suas línguas, das suas músicas e

danças, da sua alma multifacetada. Mudou-se o lugar de geração de Igreja. Mudou o lugar

físico: das catedrais e missões, passou-se à construção de pau-a-pique. Mas, sobretudo,

mudou o lugar psicológico e sócio-afetivo. Nasceu do coração da gente comum que a fez

sua.184

O povo das comunidades assume o ser Igreja de uma maneira diferenciada e adaptada

às circunstâncias que a realidade oferece. Antes todo o trabalho estava concentrado na mão

dos missionários estrangeiros, eles traziam todo o necessário para o abastecimento e

equipamento das missões. Construíram enormes Igreja, escolas, internatos, hospitais. Criaram

estruturas e desenvolveram um trabalho de presença e serviço a estas populações baseados

num modelo de implantação de uma Igreja que devia servir às populações, principalmente

oferecendo recursos e meios nas áreas de educação e saúde e diretamente na área de catequese

e sacramentos.185

Durante o período da guerra, com a impossibilidade de presença de pessoal

missionário e com a nacionalização e destruição das diversas missões e paróquias nas zonas

das populações Sena do Vale do Zambeze, o modelo de Igreja que subsiste é o modelo

ministerial186, onde os próprios leigos: catequistas, animadores de comunidades, anciãos e

guias é que assumem a tarefa de animação e condução da vida e da fé das comunidades,

enfrentando as conseqüências e os desafios no período da guerra e buscando consolidar a paz

no seio das comunidades, muitas vezes feridas e divididas após tantos anos de sofrimentos e

abandono.

184 Cf. LUZIA, J. A Igreja da Palhotas. p. 9185 Cf. BLOMMAERT, E. Mozambique, Mon Périple en Espérance. pp. 8-10.186 Cf. FERREIRA, L. C. Igreja Católica em Moçambique: Que caminho? pp. 57-64. Cf. também ESQUERDABIFET, J. Evangelizar Hoy. Animadores de las Comunidades. Madrid: Sociedad de Educación Atenas, 1987.

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Como já mencionamos, as diversas missões e as oito paróquias, cinco existente e três

em formação, nas duas zonas pastorais da Diocese da Beira no Vale do Zambeze187, ficaram

totalmente impossibilitadas de uma atenção pastoral e de um trabalho de evangelização sem a

presença do clero, pessoal missionário e religiosos. Com a nacionalização das missões a Igreja

perde grandes pólos de evangelização e desenvolvimento, principalmente nas áreas rurais;

perde-se autênticas energias geradoras de unidade e de paz, perde pontos chaves de referência

de sua ação pastoral, perde meios úteis para a evangelização.

Com a ausência de bens e meios materiais, o que se constata nestes dez anos de

paz, ainda que os desafios sejam imensos, é que a proposta de uma Igreja organizada em

pequenas comunidades, com uma ação concreta no seio das famílias contando com a ação e

responsabilidade dos leigos nas tarefas próprias dentro da Igreja, encontrou eco no interior das

populações Sena do Vale do Zambeze. É interessante perceber que após a retomada de alguns

postos de missões e paróquias, logo depois do AGP do ano de 1992, verifica-se a presença de

um número considerável de pequenas comunidades cristãs em meio às populações e a

presença de catequistas e animadores que continuaram seu trabalho de evangelização, ainda

que, sem contar com a presença e o apoio de nenhuma das estruturas e meios que a Igreja

possuía antes das nacionalizações e da guerra.

Uma das principais tarefas destas comunidades, através de seus líderes e

agentes, é a pacificação e reconciliação entre as pessoas e grupos. A vivência do tempo da

guerra, as dificuldades para se encontrarem, para celebrar a fé, para acesso aos sacramentos e

demais práticas cristãs deram a estas pessoas a capacidade necessária para querer continuar a

experiência de vida cristã nos tempos de paz. A experiência destas pequenas comunidades

187 Todos os dados sobre as nacionalizações dos bens móveis e imóveis da Arquidiocese da Beira com a lista detodas as escolas, Igrejas e capelas, residências, internatos, lares e seminários, centros catequéticos, hospitais ecentros de saúde, oficinas, moagens e machambas encontram-se em ARQUIDIOCESE DA BEIRA. ResenhaHistórica. Beira, 1988. pp. 139-159.

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cristãs pode contribuir muito para as novas urgências e tarefas missionárias que se apresentam

para a Igreja em Moçambique e no seio das populações Sena do Vale do Zambeze.

Das várias pessoas entrevistadas, durante a pesquisa de material para este

trabalho, todas destacaram o papel das pequenas comunidades cristãs na vida da Igreja local e

sua importância na manutenção da paz, no auxílio aos mais pobres, na ajuda para a solução

dos problemas e conflitos deixados pela guerra.

O povo e as comunidades, em si mesmos não querem outra coisa senão a

paz. Eles nos dizem: -Nós queremos trabalhar, queremos que nossos filhos estudem,

não queremos mais ser atrapalhados, ter que fugir para o mato sem saber porque.

Não queremos armas, não queremos brigas, não queremos virar soldados

novamente. – Para além da vontade dos políticos, dos administradores que muitas

vezes se impõem de forma violenta, o povo quer e luta pela paz. O povo Sena é,

como todo povo, pacífico.188

5- Na tradição e nos Costumes. A Proposta dos mais Pobres

As populações Sena do Vale do Zambeze estão inseridas na grande família dos povos

Banto. São, portanto, herdeiras e detentoras de valores e tradições milenares destes povos que

habitam boa parte da chamada África Subsaariana. Estes valores têm sido fundamentais para a

manutenção da unidade e mesmo para a existência destes povos até hoje. Não se pode

esquecer que estes povos estiveram desde de muito tempo em contato com as diversas

culturas que penetravam o território de Moçambique através do Rio Zambeze, uma das

188 Entrevista realizada com Pe. Teodoro van Zoggel ss.cc. Atual pároco da Paróquia de Nossa Senhora doSameiro. Missão de Inhaminga em fevereiro de 2005.

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principais portas de entrada para o interior da África Austral. Este fator ocasionou uma forte

experiência de aculturação destes povos, entretanto, guardam até hoje valores fundamentais

do tronco matricial da família Banto.189

As concepções de parentesco e unidade familiar permitiram a sobrevivência das

populações nos tempos difíceis da guerra. A unidade familiar e econômica, distinta dos

conceitos modernos ou ocidentais, facilita a integração das pessoas no interior dos grupos. A

concepção de família alargada permite um cuidado e proteção de todos os membros de um

mesmo clã ou grupo. Foi, certamente esta unidade familiar que permitiu que muitas pessoas

pudessem sobreviver durante os difíceis anos da guerra e durante este tempo de manutenção

da paz e reconstrução do país. Aqui se deve pensar nos órfãos, viúvas, doentes, idosos e

demais necessitados.(cf. Dt. 24, 17 ; cf.Tg. 1, 27).

Os povos da África respeitam a vida desde que é concebida até o nascimento.

Alegram-se com esta vida. Rejeitam a idéia de que ela possa ser aniquilada, mesmo

quando a isso quereriam induzi-los as chamadas “civilizações avançadas”. E as

práticas contrárias à sua vida são-lhes impostas por meio de sistemas econômicos a

serviço do egoísmo dos ricos. Os africanos demonstram respeito pela vida até o seu

termo natural, e reservam um lugar no seio da família para os anciãos e parentes.

[...] As culturas africanas têm um sentido muito vivo da solidariedade e da vida

comunitária. [...] De fato, a vida comunitária nas sociedades africanas é expressão

da família ampliada.190

O caráter essencialmente religioso do homem e da cultura africana e também do

homem e da cultura Sena, se apresenta como um outro elemento que deve ser destacado,

como meio facilitador nesta tarefa de busca de paz, reconciliação e promoção humana

189 DOMINGOS, L. T. La Question de L´Identité Ethnique et la Formation de L´État-Nation au Mozambique:Le Cas des Sena de la Vallée du Zambeze. Paris: ANRT, 2002.190 Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia in África. nº43.

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empreendida pelas comunidades cristãs. Alguns elementos comuns das diversas

manifestações da grande tradição religiosa africana estão fundamentados em uma idéia básica:

a existência de uma força suprema não criada. Estes elementos são:

• O profundo sentimento de unidade de todas as coisas.

• A crença e a necessidade de manter intactos e permanentes laços entre os vivos e os

mortos.

• A fé na imortalidade da alma. Donde decorre o fato dos Sena chamarem o morto pelo

nome de nhakuenda, ou seja: aquele que viajou.

• O mistério e a força da Palavra, do Verbo.

• O poder do ritmo. A vida é um ritmo, aparente ou oculto. Se o ritmo cessa, a vida para.

• A abstenção de proselitismo e de guerras religiosas.

• A necessidade de ritos e oferendas.

• O respeito rigoroso das hierarquias: sejam elas de nascimento ou função social, de

forma analógica com a ordem hierárquica do Cosmos.191

A religião tradicional Sena não conhece verdadeira distinção entre a comunidade

religiosa e a sociedade política, espiritual e temporal, atividade religiosa e atividade cultural.

A cultura, para os Sena, é a expressão do religioso nos diferentes âmbitos da vida. A religião

penetra, forma e modela todas as atividades do homem, desde a construção de uma habitação

ou de um monumento à celebração de momentos culminantes da vida individual e social.192

Esta maneira integrada, diversa, mas ao mesmo tempo unitária, de conceber o mundo e

de viver as relações pessoais e sociais deve ser a pedra de toque para uma proposta de

evangelização inculturada. A própria cultura Sena, profundamente embebida nos valores

religiosos pode favorecer uma verdadeira e equilibrada inculturação do Evangelho. Estes

elementos comuns da Religião tradicional Africana, presente na vida das populações Sena,

191 Cf. DOMINGOS, L. T. p. 11.192 Ibidem. p. 18.

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113

longe de serem um obstáculo para a evangelização, podem proporcionar uma maior unidade e

coesão para que as comunidades vivam e se organizem para promover a paz e a pessoa

humana nas suas dimensões e totalidade.

Aqui lembramos novamente a proposta do Papa João Paulo II na Homilia realizada em

Lilongue, Capital do Malawi, à 6 de maio de 1989, durante a sexta Visita Pastoral à África:

Proponho-vos hoje um desafio – o desafio de rejeitardes um modo de viver que não

corresponda às vossas melhores tradições locais e à vossa fé cristã. Muitos na

África olham para além da África, para a chamada “liberdade do modo moderno de

viver”. Hoje exorto-vos calorosamente a olhar para vós mesmos. Vedes as riquezas

de vossas tradições, olhai a fé que celebramos nesta Assembléia. Haveis de

encontrar aqui a liberdade genuína; aqui encontrareis Cristo que vos guiará para a

verdade.193

São alguns desafios e também as opções da Igreja de Moçambique, que vamos

apresentar no último capítulo deste trabalho. Opções e desafios assumidos por esta Igreja, na

busca de realizar a sua verdadeira missão, que “nasce da ação evangelizadora de Jesus e dos

doze” (cf.EN 15).

193 Cf. JOÃO PAULO II. Ecclesia in África. nº48.

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114

Capítulo IV

Opções e Desafios de Uma Igreja Adulta

Kulima munda wa thuku ndi uxamwali na kambuma(Cultivar um campo por etapas é fazer amizade com os pássaros pequenos)

Provérbio Sena

Os dez primeiros anos de paz vividos em Moçambique, desde a assinatura do AGP em

outubro de 1992, têm sido para a Igreja deste país um forte tempo de transformação e busca

de novos caminhos para continuar a responder à sua vocação e natureza (cf. AG 2). Sem

sombra de dúvida, todo o passado colonial e os dezesseis anos de guerra marcaram esta

presença da Igreja em Moçambique e a fizeram amadurecer na missão e tarefa de evangelizar.

Nos dois últimos anos (2000-2001), a Arquidiocese da Beira, enquanto Igreja

particular e exercendo a sua comunhão e missão na universalidade de toda a Igreja, tem dado

passos na busca de ser uma presença evangelizadora, de acordo com as atuais exigências e

desafios que se apresentam para esta tarefa, e em profunda sintonia e união com a situação

concreta dos homens e mulheres que, na vivência da fé e do testemunho cristão, compõe o

rosto desta Igreja presente e atuante nesta realidade.

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115

1- O Sínodo Diocesano.

Em carta de 26 de Dezembro de 2000, o Arcebispo da Diocese da Beira anunciava a

Boa Noticia da celebração de um Sínodo. Entre as quatro razões principais que levaram o

Arcebispo a propor à Arquidiocese a realização do Sínodo, a primeira saiu da sociedade

moçambicana e que diz respeito, não só a mesma sociedade, mas a toda a Igreja em

Moçambique nela inserida e, por conseguinte, também a esta Igreja local, a Igreja que está na

Arquidiocese da Beira.

Esta primeira razão está fundada nos seguintes aspectos:

Salta aos olhos de todos que há novos desafios que a sociedade moçambicana nos

apresenta nos mais diversos níveis: na educação, na saúde, na economia, na política,

na paz, na justiça, o problema da corrupção e a lesão dos direitos humanos; na vida

familiar, matrimônios desfeitos, a droga, o aborto, na justa distribuição da terra e na

atenção ao bem comum, na pobreza absoluta em que ainda vive a maioria do Povo

Moçambicano, nas condições indignas de habitação, nos novos problemas surgidos

por causa do HIV/SIDA, nos problemas que nos traz: o desemprego, a insegurança

social, a nova luta contra a globalização e o quase fatalismo de a admitir, sem

qualquer sentido critico, dada à necessidade de alianças e pressões externas, as

assimetrias sociais e regionais e, ainda, os problemas da marginalização crescente do

Continente que também dizem respeito a nós. Diante destes novos desafios, percebe-

se que a nossa Pastoral Diocesana para dar uma resposta cabal a sociedade, tem que

passar por profundas mudanças.194

194 SECRETARIADO GERAL DO SÍNODO – ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Atas da Comissão Preparatóriado Sínodo – O dia-a-dia do Sínodo. Beira, Documentos do Sínodo. 2004.

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116

A Comissão preparatória ao Sínodo motivada por esta primeira e pelas outras três

razões195, quis fazer um levantamento da situação real na qual as Pequenas Comunidades

Cristãs vivem o seu dia a dia. As pequenas Comunidades Cristãs, povo e família de Deus

sofrem e alegram-se com os sofrimentos e alegrias de todos aqueles que, embora não

partilhem a sua fé, estão sujeitos às mesmas necessidades, carências e possibilidades que a

situação lhes oferece. Esta foi uma primeira possibilidade das pessoas e grupos das

comunidades se manifestarem de forma direta acerca da realidade concreta em que vivem e

dos desafios para a inculturação do Evangelho.

Uma das primeiras tarefas dos evangelizadores é levantar o inventário histórico-

cultural do grupo com quem trabalham. De onde veio? O que trabalha? De que vive?

O que come? Onde dorme? Como se locomove? Como descansa, sonha e se diverte?

Como é a relação entre pais, filhos e vizinhos? A quem invocam nos apuros da vida?

Em quem confiam? Quais são suas razões para viver? Destas perguntas surge o

perfil de seu “segundo meio ambiente”, sua cultura, que lhes permite resistir contra o

sofrimento e viver com esperança. Destas perguntas surgem elementos para situar

sua vida no interior da história de salvação, surgem balizas para a celebração dos

195 Ibidem. Segunda razão. No interior da Igreja, temos também razões sérias para a realização do Sínodo: arecepção dos sacramentos, a participação na Eucaristia Dominical, o catecumenato, a inculturação, a relação dafé católica com a Religião Tradicional, com o Islão, com as outras religiões, a catequese encarnada na vida, a fée o compromisso pela justiça, a participação nas Comissões Arquidiocesanas, a promoção das vocações e aatenção à obra dos Seminários, o interesse pelas diferentes missões e paróquias do interior como polos deevangelização e de desenvolvimento no mundo rural, a formação de líderes e dos cristãos em geral para darem arazão da sua fé.-Terceira razão. A Carta Apostólica do Papa João Paulo II: “No Início do Terceiro Milênio”,como sinal dos tempos para imprimirmos um novo vigor à evangelização; o rosto de Cristo a contemplar comocentro da Evangelização; a atualidade do Concílio Vaticano II na pastoral, bem como as Conclusões do SínodoAfricano. Quarta razão. Quarenta anos nos separam da década 60, década da independência duma grandemaioria dos países africanos e 25 da nossa Independência. Estamos, também, a 35 anos da realização do ConcílioVaticano II. Na nossa Igreja Local, houve duas Assembléias Nacionais de Pastoral e o Sínodo especial para aÁfrica. Todas estas mudanças havidas no Continente Africano, no nosso país e na Igreja constituem, certamente,uma das grandes razões da convocação do Sínodo para se fazer uma análise sobre como estes acontecimentostiveram importância para a história da nossa Diocese e como continuam a tê-la.

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mistérios da fé e indicadores para o anúncio da “boa notícia” e a denúncia da “má

notícia”.196

De forma específica, as pessoas, grupos, comunidades e estruturas envolvidas no

processo de evangelização realizado pela Arquidiocese da Beira foram motivadas a participar

deste levantamento da realidade. Uma primeira atitude foi a elaboração de um inquérito a ser

realizado nas três regiões da Arquidiocese como forma de levantamento e conhecimento da

realidade. A novidade é que as questões foram elaboradas, adaptadas e traduzidas nas três

línguas da Arquidiocese ( Sena, Ndau, Português). Isso possibilitou a participação expressiva

das comunidades de população Sena, pois puderam participar deste processo utilizando

expressões e conceitos veiculados pela sua própria cultura e linguagem.

Este primeiro passo do Sínodo Diocesano provocou uma movimentação e articulação

de vários agentes, e serviu como convocação para que as comunidades e os diversos grupos e

organismos que compõem a Arquidiocese, pudessem se animar e participar de forma ativa

deste evento, em vista a um melhor e mais adequado trabalho de evangelização. Na

Arquidiocese responderam ao inquérito 276 comunidades cristãs com a presença de 6223

pessoas. Podemos dizer que a convocação do Sínodo teve um grande impacto, pois envolveu

muita gente, de muitas comunidades, as quais, com muita franqueza e sinceridade,

responderam as perguntas do inquérito.197

Alguns elementos extraídos desta etapa do inquérito respondido pelas comunidades

mostram as dificuldades e as principais necessidades das populações que vivem nas seis zonas

pastorais da Arquidiocese. As duas zonas com maioria da população Sena são as Zonas

Pastorais de Murraça e Inhaminga, anteriormente chamadas Zonas do Zambeze Oeste e

Zambeze Este.

196 SUESS, P. Evangelizar a Partir dos Projetos Históricos dos Outros. Op. cit. pp. 190-191197 SECRETARIADO GERAL DO SÍNODO – ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Atas da Comissão Preparatóriado Sínodo – O dia-a-dia do Sínodo.

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ZONA PASTORAL: NUMERO DECOMUNIDADES

NUMERO DE PESSOAS:

1. BEIRA CENTRO 39 1,1892. MANGA-DONDO 51 1,8713. BUZI 59 2,2614. MURRAÇA 66 Número não calculado5. INHAMINGA 33 Número não calculado6. GORONGOSA 28 902

TOTAL 276 6,223

Nas respostas dadas pelas pessoas e comunidades constata-se que na Arquidiocese os

10 problemas mais mencionados foram:

1. Falta de estruturas e serviços de saúde......... 169 vezes 61% das comunidades

2. Desemprego.................................................. 165 vezes 60% das comunidades

3. Problemas políticos/ relação com poder....... 156 vezes 57% das comunidades

4. Falta de estruturas e serviços de educação... 150 vezes 54% das comunidades

5. Criminalidade, roubos ............................... 113 vezes 41% das comunidades

6. Falta de água potável, fontes, poços...............103 vezes 37% das comunidades

7. Fome, má alimentação................................. 92 vezes 33% das comunidades

8. HIV/SIDA.................................................... 89 vezes 32% das comunidades

9. Corrupção.................................................... 77 vezes 28% das comunidades

10. Custo de vida............................................... 69 vezes 25 % das comunidades

Entre os dez problemas mais mencionados, há dois problemas que são mencionados

muitas vezes em todas as zonas e considerados em todas essas zonas os maiores problemas

presente na vida das populações. Isto revela que são os dois problemas mais comuns na

Arquidiocese.

1. Falta de estruturas de saúde.

2. Falta de estruturas de educação.

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Os três problemas considerados pelas Pequenas Comunidades Cristãs como os mais

importantes são:

1. O desemprego é mencionado 100 vezes (36% das comunidades) entre os três

problemas mais importantes.

2. Os problemas políticos são mencionados 71 vezes (26% das comunidades) entre os

três problemas mais importantes na Arquidiocese.

3. A falta de estruturas e serviços de saúde é mencionada 57 vezes (21% das

comunidades) entre os três problemas mais importantes na Arquidiocese.

Estes dados e outros que são apresentados a partir das diversas questões levantadas

pelo inquérito mostram a diversidade e a multiplicidade dos problemas e das diversas

situações em que estão inseridas as populações e as comunidades. Tanto a nível econômico,

político, social, como também no interior dos grupos, famílias, indivíduos. Na análise dos

dados, também são ressaltados, os problemas e situações advindas a partir das opções e ações

das próprias pessoas e grupos. Mas, a maioria dos problemas mencionados pelas comunidades

tem origem em decisões humanas, que nem sempre estão eticamente corretas e nem sempre

estão de acordo com as opções evangélicas.

São pessoas, instituições, organizações, estruturas políticas, econômicas, sociais,

culturais que tomam decisões que colaboram para empobrecer, destruir, marginalizar. São

decisões que promovem a morte, não a vida. Esta percepção abre um campo importante para o

trabalho de evangelização que quer “modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar,

os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras

e modelos de vida da humanidade que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e

com o desígnio da salvação” (cf. EN 19).

Das análises e conclusões deste trabalho de consulta e envolvimento das comunidades

nesta etapa preparatória do Sínodo, destacamos três conjuntos de critérios ou formas de agir e

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pensar no âmbito da tradição cultural, dos resquícios do sistema de governo adotado logo após

a independência e dos desafios advindos das novas concepções e idéias que também estão

presentes em meio às populações, principalmente entre os mais jovens.198

1.1- Alguns critérios ou formas de vida baseadas nas tradições culturais mencionadas

por algumas comunidades

1. Pita-kufa: entregar uma irmã da esposa morta ao esposo viúvo para a sua consolação

sexual.

2. Poligamia: o homem que tem várias mulheres, como sinal de prestígio, de poder, e

outras razões.

3. Curandeirismo e adivinhos

4. Nos falecimentos, a celebração do sétimo dia acontece como uma festa qualquer, e o

ambiente não se torna digno para esta ocasião.

5. Morte: As cerimônias tradicionais aumentam divisões e inimizades familiares.

6. Feitiçaria é muitas vezes mencionada pelas comunidades e que continua a ter grande

influência na vida desta sociedade da Sofala.

7. Lobolo: meninas de 10 e 11 anos já são entregues ao marido porque este já entregou o

lobolo. Na base de muitas injustiças que hoje se cometem contra as mulheres nesta província,

está essa tradição que contrasta com o Evangelho, pelo menos nas modalidades em que se

praticam em algumas partes. As meninas não podem ir a escola. Muitas comunidades

mencionaram o problema de matrimônios prematuros. Não estará esta forma cultural na fonte

desses matrimônios prematuros. E que dizer dos divórcios?

8. Certos tabus que impedem a formação das pessoas.

198 Esta divisão foi elaborada pela Comissão Preparatória do Sínodo a partir do resultado do Inquérito. Osresultados e as análises se encontram nas Atas da Comissão Preparatória do Sínodo – O dia-a-dia do Sínodo.

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1.2- Alguns critérios, formas de vida ou atitudes vindas do Marxismo que tentou dirigir

a vida durante tantos anos no passado próximo do país

1. O poder não se partilha.

2. A oposição não se tolera.

3. A diversidade não se admite.

4. Materialismo.

5. A luta de classes.

6. Ateísmo.

7. Monopartidarismo.

8. A pessoa não conta. Conta a massa que não pensa.

9. As fontes de informação controladas.

10. Os dirigentes sempre têm a razão.

1.3- Alguns critérios, modelos de vida que vêm da Modernidade:

1. O cultivo das paixões, do prazer.

2. A cultura da irresponsabilidade. Ninguém se responsabiliza pelo que faz.

3. Consumismo. O importante não é produzir, mas consumir.

4. Individualismo. Os outros que se lixem.

5. O ter é muito mais importante do que o ser.

6. O lucro a todo custo.

7. Não precisamos de Deus.Deus é insignificante perante o homem todo poderoso.

8. O homem tudo sabe, tudo pode. A ciência e a técnica fazem o homem todo poderoso.

9. O trabalho, o dinheiro é mais importante que a tua família.

10. Os pobres são culpados da sua pobreza

11. Da riqueza virá a salvação do mundo

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12. A luta das espécies: os mais fortes sobrevivem (os ricos)

Se todos estes elementos apresentados pelas comunidades nesta primeira etapa de

elaboração do Sínodo vão se tornando os critérios de julgar, os valores que contam, os centros

de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da

humanidade e que estão inspirando e motivando muitas das decisões eticamente equivocadas

e que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação, é

missão da Igreja Local evangelizar em profundidade a todas as pessoas e instituições locais,

nacionais e até internacionais, pois “a evangelização a partir das culturas não representa

reivindicações locais isoladas. A atenção evangelizadora ao particular e ao específico não

perde de vista a libertação macroestrutural”. 199

Se queremos que a inculturação seja autêntica e duradoura, é preciso que ela seja

feita em profundidade e não se limite a soluções de problemas cotidianos; de outra

maneira seria um trabalho de subsistência, desencorajador. Sem negligenciar o

presente, a pastoral deve ter os olhos postos e voltados para horizontes mais vastos,

para o futuro e deve ter um plano a longo prazo e permanente, consciente de que a

inculturação não se faz de um dia para o outro nem de uma só vez para sempre. Ela é

permanente. Isto porque a Cultura não é uma coisa estática, mas ela está em

contínua transformação. O que hoje é bom, amanhã pode não sê-lo; o que hoje é tido

como valor inestimável, amanhã poderá vir a aparecer como uma alienação

humilhante e opressora. Disto todos temos consciência e experiência concreta, em

todos os domínios da vida humana.200

A opção por um modelo de evangelização na perspectiva da inculturação e o esforço

de realização de um Sínodo Diocesano, como evento de participação e comunhão, demonstra

ser atitudes de uma Igreja adulta e que está desperta e disposta, mesmo que nem sempre

199 SUESS, P. Op. cit.200 Cf. LANGA, A. Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana. Op. cit. p.223.

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preparada, a assumir sua missão em meio aos povos e culturas onde está inserida. Aqui o

desafio do encontro entre Evangelho e cultura se torna indispensável e necessário,

principalmente para uma Igreja local que conta com uma pluralidade de grupos populacionais,

etnias, tradições, costumes e línguas.

Os últimos dez anos em Moçambique, marcados pela busca da consolidação da paz e

reconstrução das estruturas sociais, políticas e econômicas do país, trazem seus desafios para

a Igreja e para o trabalho de evangelização. A implementação de novas estruturas políticas em

vistas a uma forma de governo mais adequada aos processos da democracia e participação, a

tentativa de integração dos sistemas tradicionais de relações sociais, decisões políticas e

produção econômica às novas exigências do país não se realiza sem dificuldades e obstáculos.

O anseio de mudanças e transformação está em todos os âmbitos e setores da vida

deste povo. Isto é um elemento importante a ser considerado pela Igreja nas suas opções e nas

suas atitudes em vista à evangelização, pois ninguém evangeliza sem se comprometer com a

vida, com as forças produtoras de vida e cultura, com as luzes e as sombras de cada grupo

humano e com suas próprias luzes e sombras.201

2- Reabilitar o Antigo ou Ajudar a Construir o Novo: Duas Tendências daEvangelização.

Ao olhar a evolução da Igreja em Moçambique pode-se constatar uma dupla

tendência: uma direção que vem da parte da autoridade eclesiástica e uma orientação

encaminhada pela base. Os Bispos, muitas vezes sonham com a restauração das antigas

formas de organização e estruturas da Igreja; nas negociações com o governo, eles colocam o

201 Cf. BOFF, L. Evangelizar a Partir das Culturas Oprimidas. REB, Petrópolis, v. 49, n 196, p. 812, [ dez.]1989.

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acento sobre a restituição dos edifícios outrora confiscados, como as escolas, os hospitais,

postos de saúde. Eles suplicam às ordens e congregações na Europa de retomar os locais

desocupados nos antigos “postos de missão”, sem se perguntar se os centros paroquiais de

outrora são ainda adaptados à situação completamente diferente dos tempos atuais. Eles

querem recuperar as escolas, mas de fato, não há um bom acompanhamento nem pessoas

capazes para a tarefa de ensino. Para a reconstrução dos prédios e estruturas, muitas empresas

são trazidas pelas ONGs cristãs, mas sem ligação com as dioceses, paróquias ou

comunidades; certos bispos querem, incorporar estas ONGs à suas dioceses para que este

trabalho seja determinante na reconstrução do país e da Igreja, mas isto ainda é pouco

visível.202

A perspectiva de restauração da Igreja no modelo do passado colonial não se adapta às

diferentes situações no domínio político e menos ainda pode ser adaptado à mudança cultural

que o povo conheceu por causa guerra, do exílio, da pobreza, sobretudo, por causa das novas

formas de vida social advindas da sede de paz e reconciliação, da luta pela justiça. Uma nova

mentalidade surgiu neste período. Esta nova mentalidade que surge nas pessoas e

comunidades deve ser percebida e avaliada pelos agentes de evangelização e ser valorizada e

assumida nesta tarefa de reconstrução.

Os missionários, sobretudo os novos, não desejam entrar nas paróquias e nos postos de

missão tradicional. Eles manifestam outras opções. Dar prioridade à preparação e formação

do clero local, uma formação contínua aos catequistas e agentes pastorais, afim de que eles

possam assumir a liderança nas paróquias e comunidades, priorizar a africanização da Igreja

através da conscientização do papel dos leigos, principalmente as mulheres, afim de que o

país possa conhecer um tempo novo, para que possa seguir de maneira crítica às ações dos

organismos de governo na justa partilha dos bens, que possa estimular a reconciliação após os

202 Cf. BLOMMAERT, E. Mozambique: Mon Périple en Espérance. pp. 42-44.

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anos de guerra e prevenir as oposições tribais, pelo engajamento social dos cristãos na

reconstrução do país.203

Este outro conceito da reconstrução da Igreja difere, portanto, do que a autoridade

eclesiástica possa querer no momento. O futuro mostrará qual será a melhor opção, na medida

que a Igreja de Moçambique se torne mais africana. Esta possibilidade de reconstrução de

uma presença de Igreja que ajude a brotar a novidade e a vida no interior das comunidades

será um dos caminhos viáveis, se a atitude e o olhar não se concentrarem apenas nos aspectos

de estruturas e sinais de desenvolvimento, como é costume na mentalidade de muitos

missionários estrangeiros.

Nesta tarefa de reconstrução que a Igreja local assume junto às comunidades, nem

sempre fica claro que outras forças e outros elementos interagem nesta mesma tarefa. Durante

a viagem a Moçambique para a pesquisa de material junto às comunidades Sena, foi possível

estar em seis das antigas missões que foram novamente assumidas por Congregações

religiosas, que já desenvolviam um trabalho de evangelização antes da guerra. A percepção

destas duas tendências da evangelização pode ser constatada na prática missionária destas

comunidades e também na mentalidade das pessoas e grupos.204

Das seis paróquias ou antigas missões reabilitadas nestes últimos dez anos, o caso da

Paróquia de Marromeu retrata estas duas tendências. Esta paróquia mesmo durante a guerra

conseguiu ser assistida de forma regular por um dos missionários que assumiram aquela zona

pastoral.205 Depois do fim da guerra, a paróquia foi assistida por uma equipe missionária e

chegou a ter um sacerdote fixo e no ano 2002 a Congregação dos Sagrados Corações retomou

a presença nesta paróquia e em acordo com o Bispo e com ajuda de algumas organizações de

203 Ibiden.204 Durante a realização deste trabalho o autor viajou por dois meses a Moçambique para pesquisa de materialbibliográfico, entrevistas com pessoas diretamente envolvidas no processo de evangelização da Igreja junto áscomunidades Sena e esteve nas cinco paróquias e missões das antigas Zona do Zambeze Oeste e Este, a saber:Chemba, Sena, Murraça, Inhaminga, Chupanga e Marromeu.205 ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Resenha Histórica. p. 85.

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ajuda internacional iniciou um trabalho de recuperação dos antigos edifícios pertencentes à

missão. No início de 2004, tendo concluído as obras de recuperação a paróquia foi confiada

ao clero diocesano.

Atualmente, a Paróquia de Marromeu ainda que com uma certa estrutura, não

consegue dar passos no sentido de uma auto-sustentação. Os padres diocesanos não podem

imprimir o mesmo ritmo de trabalho e atenção às comunidades como faziam os missionários

estrangeiros, nem mesmo manter as estruturas de funcionamento, pois o internato e a

moagem, duas estruturas construídas e reabilitadas neste período, apesar de prontos ainda não

estão funcionando; os trabalhadores estão sem receber salários, o carro está avariado e as

lideranças ainda sonham com o retorno dos missionários estrangeiros, como se o passado

fosse sempre melhor que as dificuldades do tempo presente e as incertezas do futuro.

Por outro lado, a comunidade paroquial caminha na sua tarefa de evangelização; a

catequese e outros ministérios estão a ser organizados, os animadores e outros líderes estão

presentes em suas atividades de costume, até conseguiram enviar representantes para a sessão

do Sínodo. A reabilitação das estruturas antigas da missão não influenciou diretamente no

desenvolvimento do trabalho de evangelização realizado por esta comunidade paroquial, mas,

quando estiverem em funcionamento trarão benefícios para a população.

O espaço vital e social onde a paróquia está inserida também passa por transformações

que atingem diretamente as populações e comunidades. A vila de Marromeu sofre um rápido

processo de urbanização ou “modernização”. A movimentação de pessoas é grande, as

expectativas também. Nas escolas, as salas estão repletas em todos os ciclos e turnos. Vê-se

um número crescente de produção e circulação de produtos. A chegada do telefone móvel é

uma grande sensação, pode-se ver as mulheres a comprar e vender produtos no mercado com

o celular preso a capulana. Sinais dos tempos para um povo que esteve por muito tempo

isolado e assolado por calamidades, guerra, fome e doenças.

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127

O Conselho Municipal, agora entregue à responsabilidade da RENAMO, desde as

últimas eleições autárquicas de 2003,206 parece funcionar melhor. Há recolha de lixo na zona

central da vila, melhoria das ruas, construção de novo mercado, melhoria do sistema de águas

públicas, sem contar a energia elétrica constante, coisa que acontece em poucas vilas e

distritos da Província de Sofala. Constata-se que as mudanças e transformações acontecem

em todos os níveis da vida das populações, ainda que de forma bastante lenta e desigual.

Mas há outros aspectos que dão vida e características próprias a estes povos e paragens

à margem sul do rio Zambeze. A vida não pára de nascer e se desenvolver, crianças pululam

por toda parte, trazidas atadas junto ao corpo das mães ou caminhando a seguirem-nas na lida

diária da vida, a buscar água junto ao rio, a lavarem roupas, a pilarem o milho e a mapira, a

irem à moagem para a produção da farinha, no trabalho da machamba na época do plantio e

da colheita. Outras crianças, já por si mesmas, vão para a escola, à caça e à pesca, vigiam as

machambas contra os pássaros, macacos e outros animais, criam jogos e brinquedos, sobem

árvores à procura de frutos, buscam imitar a vida dos adultos na inocência própria da idade e

na busca de conhecer um pouco mais sobre todas as coisas.

As mulheres, esteio e sustento das famílias criam as relações e imprimem ritmo

ao dia-a-dia. Quase não são vistas paradas, sempre estão a movimentar-se, mesmo sentadas à

porta da palhoça ou à sombra de um cajueiro estão a fazer alguma atividade essencial para a

vida da família. Entre si há sempre comunicação, e a vida é o assunto principal. No fundo,

apesar de toda a marginalização e discriminação aparente, elas são as verdadeiras donas de

África. Comungam a cumplicidade do que há de mais essencial para este povo, são como a

terra, sempre pronta a receber a semente, são como as árvores frondosas e frutíferas, são como

os rios de grande caudal a movimentarem-se sempre para mais além de si mesmas.

206 O termo autarquias significa cidades e vilas auto-governadas. Todas as funções de poder no município estãoformalmente sujeitas ao escrutínio eleitoral, tanto direta como indiretamente. O Presidente do Município édiretamente eleito e forma o seu Conselho Municipal, i.e., o governo local. Este funciona de acordo comorientações definidas pela Assembléia Municipal. Metade dos vereadores municipais tem que ser originários daassembléia municipal.

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128

Participam da sociedade e da vida a partir de um outro lugar, decidem os destinos do

mundo de outra forma, do espaço da rua e da casa, das plantações de milho e arroz, do bater e

soar do pilão, dos negócios no mercado da vila, nos segredos femininos, nos feitiços e

mandingas, no gerar e parir novas vidas, no preparo da comida, na água trazida de longe sobre

a cabeça, nas danças e festas, na pele marcada pelas tatuagens e pela dureza da vida elas

trazem a beleza de África no corpo e na alma.

Se a Igreja no passado, atrelada ao sistema colonial buscou evangelizar as

populações Sena a partir de estruturas e meios de evangelização trazidos de fora, a mesma

Igreja no presente, despojada de muitas destas estruturas pode aprender com este mesmo povo

a continuar a sua missão de evangelização com claras opções pelos mais pobres e pela paz.

Contudo, esta última, a opção pela paz, está ainda cercada de desafios e incertezas devido aos

sérios problemas e dificuldades que, tanto a sociedade civil quanto às instituições de governo

enfrentam para manter um sistema de convivência social e política capaz de efetivar e manter

os compromissos assumidos para a consolidação da paz.

3-Os Novos Desafios Para Manter a Paz.

As principais vitórias da sociedade civil, em Moçambique, ao longo da última década,

foram a sua própria emergência e constituição, bem como os esforços para alcançar

reconhecimento dentro da sociedade. Os principais desafios que se lhe afiguram continuam a

ser o fortalecimento da sua credibilidade, através de uma postura mais crítica e

intervencionista no processo de democratização, bem como a redução da sua dependência

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129

relativamente aos doadores, ao governo e aos partidos políticos, por forma a contribuir

genuinamente na procura de soluções para os problemas do país.207

Entretanto, o incremento da diferenciação regional, um fenômeno subseqüente ao

legado histórico das assimetrias regionais, estando subjacente o elevado índice de pobreza que

assola a maioria da população, principalmente a que está estabelecida no meio rural, perfazem

a outra face deste país. Isto revela que a possibilidade e o acesso aos benefícios trazidos pela

paz são realidades distantes de uma grande parcela da população e também não está

totalmente presente no domínio político que quer alcançar um estágio de maior exercício da

democracia e pluralismo. Aliado a este fator está o sentimento de exclusão política e social

nutrido por algumas elites nacionais que não intervém no processo de tomada de decisão ou

que não dispõem de um espaço de afirmação na atual ordem política e econômica nacional

bem como pelas populações estabelecidas no meio rural que não se sentem beneficiárias dos

esforços do governo moçambicano rumo ao desenvolvimento rural.208

É necessário reconhecer que os debates sobre a forma de democracia a ser

construída em Moçambique são marginais e insuficientes. O modo de reprodução do

poder exercido pelas elites moçambicanas, aprisionadas nos limites da identidade

étnica politizada, constituem um obstáculo à democratização. Elas são incapazes de

realmente partilhar o poder com os outros grupos, em particular com a população

rural pobre e pouco educada, e as massas urbanas que cada vez mais ganham

importância. À medida que os recursos do Estado diminuem e que as bases de

recrutamento das elites se ampliam, a competição pelo poder torna-se mais

agressiva. As elites moçambicanas são obrigadas a desenvolver novas estratégias

para a conquista e gestão do poder.209

207 Cf. LALÁ, A.; OSTHEIMER, A. Como Limpar as Nódoas do Processo Democrático. Op. cit. pp. 11-43.208 MACUACUA, L. O AGP Dez Anos Depois: Novos Desafios Para Moçambique. Op. cit. pp. 5-18.209 Cf. DOMINGOS, L. T. La Question de L´identité Ethnique et la Formation de L´État-Nation auMozambique. Op. cit. p. 361.

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O atual quadro político nacional decorrente do Acordo Geral de Paz não resultou na

criação de forças políticas com capacidade suficiente para contrapor-se à força política do

partido no poder, ou pelo menos para influenciar de forma decisiva o processo de definição e

implementação destas políticas. Vários grupos dentro do país se sentem excluídos, as

assimetrias regionais são perceptíveis. Tudo indica que o governo no poder não conseguiu

atingir metas essenciais para uma maior participação da sociedade civil, esta também não se

encontra coesa e madura o suficiente para articular as necessidades e interesses dos diversos

estratos sociais, promover o sentido de inclusão social e criar uma base necessária para o

diálogo permanente e construtivo.210

A questão das diferenças ou assimetrias regionais é um legado do tempo colonial,

onde a administração colonial sempre encontrou dificuldades de prover o território

moçambicano de infraestruturas econômicas e sociais básicas como forma de permitir um

crescimento econômico mais eqüitativo nas diferentes regiões do país. O atual Estado

moçambicano tem encontrado muitas dificuldades para minorar os efeitos deste legado

histórico. Uma das conseqüências imediatas deste fenômeno tem sido a falta de investimentos

de vulto em algumas regiões do país, especialmente as regiões Centro e Norte, apesar do

potencial econômico em termos de recursos para exploração detidos por estas regiões. 211

As atuais abordagens defensoras de um novo modelo de desenvolvimento econômico

que permita uma redução efetiva das desigualdades regionais parecem decorrer da constatação

de que Moçambique não dispõe de um projeto de desenvolvimento que privilegie a satisfação

das necessidades humanas básicas das populações pelos seguintes motivos.

• Uma forte restrição monetária.

• Dificuldades para subsidiar a economia de subsistência.

210 Cf. MACUACUA, L. Op. cit.211 Ibidem.

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131

• Dificuldade de prover o país de infraestruturas de desenvolvimento

rural por forma a permitir a progressão da base de desenvolvimento

do país, nomeadamente a agricultura.

• Falta de capacidade para criar mercado para a produção nacional.

Entretanto, a operacionalização destes desafios deve ser precedida pela definição de

políticas exeqüíveis para o setor, tendo em conta o papel desempenhado pelo setor familiar e a

assistência a ser dada a este setor, para que, gradualmente, o incremento da produção e da

produtividade possa ser uma realidade. A par disto, é urgente a criação de uma rede de

transportes que permita ao meio rural escoar a sua produção agrícola e coloca-la no mercado,

e prover recursos e infraestruturas que permitam a exploração das fontes de capital.212

A ausência deste projeto de desenvolvimento tem afetado diretamente uma grande

parcela da população moçambicana que vive diretamente da agricultura de subsistência, entre

estes se encontram as comunidades Sena. Os Sena do Vale do Zambeze são essencialmente

rurais. A estrutura de organização política, social, econômica, ou seja, o modo de vida das

comunidades Sena tem estado submetida a, uma profunda, e por vezes, violenta

transformação. A falta de estruturas básicas para a população aliada a uma liberalização

econômica tem surtido um efeito dicotômico no sistema vital das populações.

A liberalização econômica teve um efeito dicotômico manifestada pela substituição

dos valores africanos, tal como solidariedade social, por princípios mais

individualistas e egoístas, enquanto que o Programa de Recuperação Econômica e

Social (PRES), sustentava o que Abrahamsson e Nilsson chamam de “economia de

afecção”. O sistema tradicional de redistribuição dos recursos gerados por uma

determinada comunidade caracterizado pela sua estrutura informal, baseada nas

212 Ibidem.

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relações de parentesco, conduziu, num clima liberal, a uma economia que reflete as

estruturas neo-patrimoniais do Estado. 213

Estes desafios nos diversos setores da sociedade civil e do governo permitem

constatar, que as instituições formais parecem fracassar na sua tarefa e nos seus

compromissos de criar e fomentar espaços de maior participação política, maior acesso e

exercício da democracia e uma melhor participação na produção e partilha dos bens

produzidos no país; sem contar o constante esforço para diminuir as diferenças regionais, que

são um dos principais desafios para este país. Com base nas análises dos autores das fontes

consultadas para esta parte do trabalho, pode-se destacar alguns elementos a serem levados

em conta no processo de evangelização da Igreja em Moçambique, de forma específica, na

evangelização das populações Sena do Vale do Zambeze.

• Torna-se cada vez mais necessário considerar outros espaços sociais nos quais

os conflitos são geridos, até que se atinja um ponto de ruptura, ou que as

instituições formais se transformem adequadamente.

• Levar em consideração o trabalho das várias OSCs, ONGs, confissões

religiosas e autoridades tradicionais, as quais se vêm evidenciando na

manutenção de uma posição de conciliação quanto as questões polarizadas,

tanto a nível nacional como local, assim como na prestação de serviços sociais

e alívio da pobreza, especialmente em zonas rurais.

• A valorização do contato e diálogo permanente entre a sociedade civil e o

governo como base de qualquer ação ou medida a ser tomada pelo governo,

além de que um correto relacionamento entre as duas partes constitui um

fortalecimento da democracia, da ética e da boa governabilidade.

213 Cf. LALÁ, A.; OSTHEIMER, A. Op. cit. p.41.

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• Intimamente associada à consolidação democrática está a cultura política, a

qual num processo multidimensional de transição, pode possuir, tanto uma

influência inibidora como promotora. A forte herança do autoritarismo e os

elevados índices de pobreza, analfabetismo e isolamento, contribuíram para

aumentar as lacunas na cultura democrática em Moçambique.

• Certos elementos tradicionais, a corrupção, o “favorecimento” e a etnicidade

politizada, constituem, entre outros, elementos integrantes de uma cultura

política que originam um impacto negativo em qualquer processo de

democratização.

• A constatação de que os jovens se encontram dentre os que apresentam um

maior índice de desinteresse pela política, levando a crer que a criação de uma

camada social interessada no desenvolvimento de uma cultura política

democrática se encontra comprometida, tanto no presente como no futuro.

• Levar em conta a diversidade étnica do país sem polarizar o discurso político a

partir das etnias. Contudo, uma análise simplista, constataria que os

Shanganas predominam no Sul e governam o país, enquanto que os Ndau e

Sena são representados pela RENAMO. A validade de tal análise é, todavia,

colocada em causa, quando se observa a composição dos órgãos superiores

dos partidos e esta apresenta uma ampla diversidade étnica. A generalização

poderá, contudo, ser considerada em termos da conexão entre o partido e o

respectivo eleitorado.

Acerca do risco de um novo conflito armado em Moçambique, devido às dificuldades

em resolver ou solucionar todos estes problemas temos a seguinte análise:

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A eclosão de um eventual conflito violento em larga escala em Moçambique,

parece-nos improvável, especialmente porque as memórias e as marcas da guerra

civil continuam ainda frescas para a maioria dos cidadãos. Uma vez que se tratou de

uma guerra de índole ideológica, instigada pela elite política de ambos os

contendores e em grande medida efetuada por militares recrutados à força,

atualmente, a capacidade de mobilização de pessoas em número significativo

afigura-se duvidosa. Os Moçambicanos estão hoje mais interessados na luta pela

sobrevivência do que com a política, à qual têm vindo a atribuir importância

secundária. Todavia, isto não poderá impedir o eclodir de confrontos violentos, tais

como o de Montepuez, particularmente nos casos em que as pessoas se sentem

continuamente ignoradas e marginalizadas pelo Governo. 214

A Igreja de Moçambique tendo participado e colaborado de maneira decisiva na

obtenção da paz, através das mediações e dos acordos firmados no ano de 1992, é chamada a

seguir contribuindo, para que esta paz obtida seja uma certeza constante, e venha

acompanhada de todos os outros elementos necessários para a consolidação do país, onde o

povo possa viver de maneira mais digna e justa (cf. Sl 85, 10; cf. 1Pd 3, 11). Mesmo com

todas estas dificuldades e desafios a análise final é de que o processo de paz, ainda que

marcado pelas desigualdades sociais e assimetrias regionais e pela falta de maior participação

da sociedade civil e de um projeto consistente de governo, tende a se manter e se consolidar

no horizonte da vida das pessoas deste país.

214 Ibidem. p. 65.

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4-Duas Pedras no Sapato

Duas expressões culturais presentes na cultura de vários povos africanos, também

presente na cultura Sena têm sido assunto de debates e reflexões nos diversos âmbitos da

sociedade e no interior das diversas religiões e Igrejas. Para a Igreja Católica estas duas

expressões da cultura e da tradição religiosa africana geram desafios e apresentam

dificuldades para a tarefa de evangelização, pois estão em relação direta com os elementos

essenciais da fé cristã. Estas duas expressões são a Poligamia e o Culto aos Espíritos. Vamos

tratar de forma breve estas duas expressões da cultura e religião africana, apresentando alguns

desafios e perspectivas para a evangelização, pois cada uma delas pode ser tema de um outro

trabalho devido à amplitude e complexidade.

4.1- A poligamia na tradição cultural banto

A poligamia brotou em época tardia, quando a evolução das técnicas possibilitou a

acumulação de bens, a venda ou intercâmbio de excedentes e as especializações de indivíduos

destacados socialmente. A princípio, era exclusiva destas castas. Só mais tarde se generalizou.

Os fatores sociais, econômicos, demográficos, fisiológicos e as crenças mágicas

entrecruzadas, ajudam decidir e explicar o fator da poligamia. Uma das mais profundas

motivações brota do desejo de uma prole numerosa. Nestas sociedades a mortalidade infantil

pode atingir os 70 a 80% de crianças. Por isso é preciso gerar muitos filhos para que algum

sobreviva. Além disso, a prole numerosa eleva o status social do homem, solidifica o seu

prestígio e autoridade, a sua família espalha-se pelo espaço e dilata-se no tempo. As

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conseqüências lógicas de alguns princípios sócio-religiosos da cultura banto parecem que

fundamentam esta instituição.215

A poligamia não é um fenômeno individual, mas social e coletivo e pode ser

considerado como uma expressão da personalidade cultural africana. Segundo esta concepção,

as mulheres e os filhos outorgam prestígio ao homem, porque são símbolos tangíveis deste

poder de vida, que deve ser respeitado e continuado na vida do grupo familiar. A poligamia

aumenta o número de relações sociais de uma família e contribui para a sua integração na

sociedade. Cria múltiplas alianças matrimoniais e, pela prole numerosa, colabora no

enriquecimento comunitário. O homem da sociedade tradicional estará – para se realizar

pessoalmente – a serviço da comunidade, do equilíbrio e da unidade do grupo, da vida dos

membros, da sobrevivência da linhagem.216

A poligamia prestigia o homem porque aumenta o seu prestígio social. Os filhos

numerosos outorgam autoridade, influência, respeito, admiração, inveja e veneração

patriarcal. Os chefes devem ser polígamos. Além disso, como o trabalho não pode ser

assalariado, os notáveis precisam de mais de uma mulher para manter a sua posição e cumprir

os deveres comunitários anexos à sua posição, como a hospitalidade e a generosidade. Os

chefes consolidam seu poder por meio de alianças matrimoniais com outros grupos ou com

membros do seu grupo, que assim ficam incluídos no círculo estreito da sua amizade e

influência. Nasce a poligamia com finalidade política.217

A poligamia é praticada desde muitos séculos em diversas regiões e culturas do

mundo. Em Moçambique é atestada como um fator cultural, herança dos antepassados e que,

tanto hoje como outrora corresponde a fatores sócio-culturais com incidência no econômico e

na manutenção e preservação da vida, segundo os usos e costumes locais. A poligamia é

aceita como um elemento de integração e preservação do tecido social, pois o número de

215 Cf. ALTUNA, R. R. A Cultura Tradicional Banto. Op. cit. pp. 336-352.216 Ibidem.217 Ibidem.

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mulheres sempre foi superior ao dos homens, isso permitia que um homem pudesse desposar

mais de uma mulher, para que estas pudessem cumprir o seu papel social, gerar filhos e cuidar

da manutenção básica da família; as guerras, escravidão e outros conflitos, antes e durante o

processo de colonização também reforçaram esta prática.218

Neste contexto se deve apreciar o fenômeno da poligamia: imagem da fertilidade de

vida, de continuidade da linhagem, de realização do grupo, também de riqueza, de

autoridade, de encarnação de um conjunto de costumes, regras de vida. O polígamo

concretiza, na sociedade tradicional, a figura do “ideal humano”. Ele encarna na sua

pessoa as tendências do grupo. Concretiza, na sua pessoa, a comunidade, o

equilíbrio, a continuação da vida, os laços com os outros, a riqueza, a defesa dos

bens a autoridade religiosa e física. É, aos olhos dos outros, a imagem do dom de si

mesmo à comunidade.219

A estrutura familiar patrilocal em algumas regiões exigia que as mulheres viúvas

fossem assumidas pelo irmão ou parente masculino mais próximo, para que esta pudesse

continuar protegida e gerando filhos, deste modo também se evitava a orfandade entre as

famílias de uma mesma tribo ou aldeia. A estrutura social e a cosmovisão de algumas tribos e

grupos étnicos que colocam o eixo das relações humanas e sociais no homem, varão, facilita a

prática e aceitação da poligamia sem maiores questionamentos. Visto por este prisma, da

preservação do tecido social e da vida, a poligamia pode ser encarada como uma prática

positiva, ainda que algumas questões sejam levantadas acerca dos benefícios da poligamia

para todas as pessoas que compõem o tecido social no interior das famílias e comunidades.

218 CHIZIANE, P. Niketche:Uma história de poligamia. 2ª ed. Maputo: Editorial Caminho/ Ndjira, 2002.219 ALTUNA, R. R. A. p. 347

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Nas sociedades em regime tradicional estrito e com economia de

subsistência, ainda se encontram algumas justificações. Mas com a

monetarização, que vai se impondo por toda parte, a mulher torna-se

instrumento de prazer, de produção, de reprodução e mão de obra

submissa e barata. E os novos potentados políticos, militares, altos

funcionários, donos de fazendas e comerciantes, proletarizam a

mulher. Origina, sem remédio, constantes divórcios e adultérios das

mulheres insatisfeitas. Em muitos casos, os polígamos chegam a

oferecer as suas mulheres a um homem que lhes dá um tanto. Os

solteiros podem utilizá-las com a condição de trabalhar nos campos do

marido ou de lhe entregarem uma gratificação, e os filhos dessas

uniões clandestinas irem para os seus lares. A poligamia originou um

tipo de prostituição velada. A educação dos filhos e o amor familiar

ficam muito diminuídos ao faltar a influência e atenção do pai, e

perante a impossibilidade de criar no lar um ambiente de comunidade

de amor e de relações.220

4.2- A Postura da Igreja Local

Em relação à poligamia a Igreja Local procura manter um respeito e reconhecimento

dos valores inerentes a esta prática cultural no seio das populações, mas faz um convite a uma

reflexão mais profunda, balizada pelos valores do Evangelho e pela dignidade e igualdade

essencial entre homem e mulher.

220 Ibidem. pp. 350-352.

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A poligamia é ainda uma forma de casamento aceita em algumas

partes da nossa região. Apesar de sabermos que uma família

tradicionalmente polígama pode viver em paz e harmonia, o

Evangelho desafia o nosso povo com uma nova visão. O homem é

chamado a dar todo o seu amor a uma só mulher; e a mulher deve ser

amada por ser quem é e não apenas como uma portadora de filhos (cf.

Ef 5,25). Neste aspecto, é preservada a igualdade básica do homem e

da mulher aos olhos de Deus, como amados filhos e filhas. 221

A Igreja, não aprova o casamento poligâmico. No diretório da Arquidiocese da Beira

há um capítulo específico com as diversas proibições para os homens que praticam a

poligamia. Entre estas, não podem receber o batismo e se já forem batizados ficam

automaticamente excomungados, não podem pedir o batismo para os filhos menores e nem

participar em qualquer função de responsabilidade na comunidade cristã.222

Para as mulheres há outras indicações: a primeira mulher de um polígamo pode ser

batizada, se assim o desejar e participar da catequese, mas não poderá contrair matrimônio

com o marido por causa da proibição que pesa sobre o mesmo. Somente se um dia ele

dispensar a(s) outra(s) mulher(es) e converter-se ao cristianismo e receber o batismo, fato que

raramente acontece. A segunda ou demais mulheres, como o marido, ficam privadas de

receberam qualquer sacramento enquanto viverem no regime poligâmico. Aos filhos

pequenos deve-se negar o batismo, depois de jovens e por própria vontade podem participar

da comunidade cristã e receber os sacramentos de iniciação.223

221 Cf. IMBISA. Inculturação: A fé que cria raízes nas culturas africanas. Documento de estudo. Maputo:Paulistas, 1994. p.32.222 ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Diretório Pastoral da Arquidiocese. Beira, 1997.223 Ibidem.

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O Estado como tal, não assume a poligamia como um regime de casamento

legalmente válido, mas também não a proíbe, pois esta prática é considerada dentro da

tradição ancestral e cultural do povo. Ainda nas cidades e aglomerações urbanas a incidência

é menor, mas a poligamia é amplamente praticada no país, principalmente nas pequenas vilas

e aldeias.

Recentemente, a Assembléia da República de Moçambique estuda um documento

sobre este assunto, em vista a levar o Estado a tomar uma posição clara sobre a poligamia,

pois esta, segundo alguns deputados e principalmente todas as deputadas, fere um artigo

constitucional que diz que em Moçambique deve haver uma liberdade de direito igualitário

sem discriminação de raça, cor, sexo e religião.224 Neste sentido, com o regime poligâmico, as

mulheres ficam discriminadas e excluídas, pois o direito à poligamia está conferido somente

ao homem, segundo a tradição ancestral e cultural moçambicana. A poligamia ainda é uma

pedra no sapato da Igreja católica, das demais Igrejas, denominações religiosas e do Estado,

em Moçambique e na África em geral.

A poligamia também levanta outros questionamentos ligados diretamente à questão do

casamento. O grande problema do casamento cristão africano é o seguinte: por causa das

situações matrimoniais canonicamente irregulares, milhares de homens e mulheres estão

impedidos de participar da vida sacramental da Igreja. Por que razão? Poderá ser catequese

insuficiente? Ou será que os esposos, principalmente os homens, se afastam timidamente do

compromisso total do casamento sacramental? Ou ainda, poderá acontecer que a lei canônica

não seja adequada à situação dos casamentos africanos?225

Na tradição africana, o casamento é essencialmente aliança entre duas famílias,

incluindo os antepassados, ou seja, dois grupos diferentes ligados por um homem e uma

mulher. O casamento não pode ser um assunto privado porque, em África, todas as Alianças

224 Cf.CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE MOÇAMBIQUE. 1990. Parte II. Direitos fundamentais, deverese liberdades. Capítulo 1 Princípios gerais, artigos 66 e 67.225 Cf. IMBISSA. Op. cit. p.31.

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criam laços de fraternidade. A dimensão comunitária é essencial; por isso, a Igreja deve

construir insistentemente sobre esta realidade.226

A Igreja espera que o homem e a mulher se comprometam um com o outro completa e

incondicionalmente, antes de irem viver juntos, como marido e mulher. A cultura africana

considera o casamento como um processo gradual e é difícil avaliar até que ponto o

casamento se torna um casamento no sentido ocidental. No entanto, na tradição africana, o

casamento não é reversível. É um processo gradual com um objetivo definido; e, neste

processo, devem ser preenchidas certas condições: a saúde da noiva, o nascimento de um

filho. A comunidade católica deve refletir sobre estes problemas na sua própria localidade e

sugerir a melhor altura do processo para celebrar os casamentos cristãos.227

4.3- O culto aos espíritos.

O significado dos espíritos na religião Africana é o mesmo de todas as outras forças

vitais. A sua presença e relação com as pessoas significam que são parte da humanidade pela

interconexão dos poderes vitais e que, portanto, não podem ser evitados. Uma característica

própria deles e que conferem ainda um significado mais profundo na consciência ética da

religião são os seus poderes para bem ou para mal, não podendo ser facilmente distinguidos

nos assuntos humanos até o momento em que causam dano. Por isso, eles devem ser

apaziguados quase diariamente, por meio de pequenos templos, oferecendo algo aos espíritos

antes de comer, beber cerveja ou água ou os invocando durante qualquer acontecimento

importante. Desta maneira assegura-se de que os espíritos estejam contentes e não façam o

mal.228

226 Ibidem.227 Ibidem.228 Cf. CENTRO DE FORMAÇÃO NAZARÉ. Atas da 7º Semana Teológica. Introdução – Os Espíritos:Aspectos Pastorais Beira: Junho/2002.

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142

Pode parecer fácil para os evangelizadores cristãos pretenderem suprimir a

veneração dos espíritos dos antepassados. Mas a tarefa não é tão simples como pode

parecer. O culto dos espíritos é um pivô na religião tradicional e na cultura africana,

porque é uma parte essencial da visão do mundo. Não pode, portanto, ser mudado

facilmente, a não ser que a visão do mundo mude. Tudo parece indicar que, mesmo

com a chegada da modernidade, a visão do mundo da nossa gente não tem mudado

de maneira substancial. A tensão ressentida pela nossa gente mesmo depois de se ter

convertido sinceramente ao Cristianismo, é que eles tentam ser fiéis à religião

apresentada como baseada numa visão do mundo totalmente diferente a aquela que

eles, no fundo, não tinham abandonado.229

4.3.1- A postura do passado.

Quando os primeiros evangelizadores cristãos se encontraram com as práticas

referentes ao relacionamento com os espíritos dos mortos, rapidamente concluíram que esta

prática era “idolatria”. Isto aconteceu porque perceberam que os efeitos desses rituais e

práticas eram contrários ao Reino de Deus e conseqüentemente era obra do maligno. Embora

essa condenação absoluta fosse demasiado forte e impedisse um conhecimento mais

aprofundado da Religião tradicional, a sua conclusão era funcionalmente correta. O aspecto

escuro da religião era mais visível do que o lado positivo.230

Os primeiros catecismos foram formulados num tempo em que os evangelizadores

davam por certo, sem qualquer questionamento, que a forma e a formulação da religião cristã

que eles traziam pertencia à essência da fé cristã. Noutras palavras, tinham dificuldade em

distinguir entre propriamente fé e as formas culturais em que se exprimia a fé. Uma tal

229 Cf. KALILOMBE, P. Os Cristãos Africanos em Relação com Espírito na Tradição. In Atas da 7º SemanaTeológica – Os Espíritos: Aspectos Pastorais. Beira: Centro de formação Nazaré, Junho/2002. p. 51.230 Ibidem.

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condenação total mostra que, para os autores desses catecismos, o juízo sobres esse assunto

era bastante simples e direto.231

Portanto, as diretrizes de simplesmente renunciar às práticas tradicionais, eram vistas

como não sendo um grande problema para os fiéis. Somente tinham que tomar consciência

desses maus costumes e parar de seguí-los, e para o resto continuar com a vida normal. Mas

isto era ignorar a maneira como a cultura humana está estruturada e como realmente funciona.

A maneira de viver de um povo não é um conjunto desorganizado de costumes e crenças

pontuais, das quais alguém pode facilmente selecionar alguns elementos e suprimi-los, e

conservar os outros. Estas constatações acerca de como foi encarado o culto aos espíritos na

cultura e religião dos povos africanos exige reflexões mais profundas e sérias a respeito do

culto aos espíritos e convidam a uma nova postura e busca de caminhos de compreensão e

conhecimento destes elementos vitais no interior da cultura e da religião africana.

4.3.2- A perspectiva atual

Acerca do culto aos espíritos, que é uma das expressões mais significativas da

Religião Tradicional, tomada aqui como um sistema de referência vital para os diversos povos

e culturas africanas, muito se têm produzido nos últimos tempos. A ampliação da pesquisa e

discussão desta expressão cultural e religiosa possibilita uma aproximação mais dialógica e

menos preconceituosa.232

As expressões, crenças, práticas e costumes tradicionais não são coisas que devem

simplesmente ser deixadas fora ou desprezadas, como se fossem diabólicas e

“primitivas”. Pelo contrário, visto que são o produto de longos e sérios diálogos

231 Ibidem.232 Dentre os trabalhos realizados em Moçambique acerca deste tema destacamos as pesquisas de LANGA, A.Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana. Op. cit. Cf. também as Atas das Semanas Teológicas doCENTRO DE FORMAÇÃO NAZARÉ, que por três vezes já se debruçaram sobre este tema em seus váriosaspectos.

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entre as gerações passadas e o Espírito Santo de Deus, deve haver nelas elementos

que são válidos e positivos (resultado do sucesso de Deus), mesmo se outros

elementos são negativos e cheios de pecado (resultado do fracasso humano e da

resistência). 233

O Cristianismo pode muito bem dialogar com a cultura que acredita nos espíritos, ou

mesmo com outras culturas que não acreditam (cf. At. 10, 34-35). De modo geral, a maneira

de viver dos povos africanos era vista como uma misteriosa mistura de costumes primitivos,

enquanto que suas práticas religiosas eram descartadas como superstições. Havia um

consenso de que era preciso converter estes povos, mudando o seu modo de viver fazendo-os

renunciar às práticas pagãs. Ao verificar que no passado o valor da cultura tradicional e da

religião era raramente reconhecido, o novo modo de entender as realidades da cultura leva

consigo uma mudança radical da maneira como a evangelização deve ser concebida e

realizada.

O encontro entre a Religião Tradicional Africana e o Cristianismo deve ser um

diálogo de interpelação mútua e não uma comparação entre duas religiões. Este

diálogo mais do que um simples encontro de duas religiões é um encontro de duas

Culturas que assentam sobre categorias e visões do mundo diferentes. Por isso a

Religião Tradicional e cada um dos seus elementos não devem ser tomados

separadamente, isolados do conjunto do sistema cultural ao qual eles pertencem e

encontram a sua significação completa.234

Uma autêntica evangelização deve levar consigo uma compreensão da cultura dos

povos e especialmente da sua fé religiosa tradicional. O caminho é, portanto, claro para a fé

cristã, ou seja, confrontar a cultura por meio da crítica da fé religiosa dando-lhe forma. Isto é

233 Cf. KALILOMBE, P. Op. cit. p. 56.234 Cf. LANGA, A. Questões Cristãs à Religião Tradicional Africana. Op. cit. p.249.

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145

a tarefa do diálogo entre fé e cultura. Neste diálogo, dá-se atenção primeiramente à visão

básica do mundo na cultura, e depois à fé religiosa e à prática que dela depende.

A religião tradicional dos povos africanos e dos Sena de Moçambique não conhece

distinção verdadeira entre a comunidade religiosa e a sociedade política, espiritual e temporal,

atividade religiosa e atividade cultural. A cultura é somente a expressão do religioso nos

diferentes domínios da vida. A religião penetra, dá forma e modela todas as atividades do

homem, desde a construção de uma habitação ou de um monumento, até a celebração dos

momentos culminantes da vida individual e social. Frente a esta realidade, a perspectiva de

evangelização junto a estes povos e comunidades poderá ser mais eficaz se levar em

consideração todos os aspectos da vida deste povo.

5- Duas Florestas Fazem Chover.

Existe um provérbio Sena que afirma que uma só floresta não basta para atrair a chuva

das nuvens, é preciso a união de duas florestas para que a chuva caia sobre a terra e regue as

plantações para uma colheita farta (Misito miwiri ndiyo inabvumbisa). Aplicado à vida das

comunidades, o provérbio chama a atenção de que sozinhas, as pessoas não conseguem fazer

coisas de valor, mas organizando-se nas aldeias ou nos bairros a gente consegue um avanço

incrível no desenvolvimento comunitário e nas relações entre as pessoas.235Outro provérbio

Sena diz que o bom juízo é o de duas pessoas (Nzerumbawiri), uma pessoa sozinha corre o

risco de se enganar. É preciso contrastar opiniões, consultar, ouvir os outros, pois a palavra e

a sabedoria de várias pessoas merece respeito, ao contrário da palavra daquele que sozinho

235 Cf. PAMPALK, J. Nzerumbawiri, Provérbios Sena. Maputo: Paulinas, 2003.

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pensa que sabe tudo.236 A sabedoria popular, presente na cultura deste povo pode colaborar

para que a Igreja fortaleça suas opções e vença os desafios encontrados na tarefa de

evangelização.

É preciso se aproximar dos valores deste povo. Valores como a cordialidade, a

hospitalidade, a paciência e a alegria. Os Sena são um povo pacífico, gostam de se relacionar

entre si. A evangelização pode aproveitar valores como a facilidade da vida comunitária, o

desejo de viverem juntos, a alegria de se encontrar. Há também contra valores que são

expressos, a questão de como é trabalhado o senso de justiça, onde a misericórdia e o perdão

encontram pouco espaço, vale mais o olho por olho; a situação da mulher também é um ponto

a ser modificado, na maioria das vezes o trabalho maior recai sobre as mulheres, gerando

discriminação, desigualdade e injustiça. A poligamia também aparece como um grande

desafio, pois não cria um ambiente de igualdade entre homem e mulher; também a questão do

medo e dos feitiços aprisiona as pessoas.

. É um povo que gosta da paz, um povo pacífico por natureza, o Sena não resolve seus

conflitos com a guerra, quer o entendimento entre todos, assim aprenderam a resolver seus

conflitos, não através da violência e das armas, mas a partir da negociação, da conversa, do

entendimento entre todas as partes. Os dezesseis anos de guerra vividos por este povo, podem

ser entendidos como conseqüência de um regime ideológico que quis se impor, eliminando ou

ignorando aspectos essenciais da vida do povo. Os massacres das populações, as fugas, as

massas de refugiados e deslocados, a fome e a miséria gerada pelos anos de guerra marcaram

este povo de forma profunda, mas são capazes de irem em frente, tentando esquecer muitas

coisas, muitas rixas antigas, os sofrimentos, é um povo forte e capaz, tem coragem apesar de

todas as dificuldades.

236 Ibidem.

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Há muita coisa que se pode conhecer e também há muitas coisas ocultas, onde nunca

vamos penetrar, é o desafio da cultura frente ao Evangelho e do Evangelho frente à cultura. O

trabalho de evangelização centra-se justamente em ajudar este povo a manter o seu sistema

vital, auxiliá-los a dar continuidade àquilo que foram capazes de construir, mesmo durante o

tempo da guerra, uma rede de comunidades cristãs, autônomas, solidárias, irmãs, acolhedoras

e antes de tudo, formadoras de pessoas num tempo de desolação e violência. O trabalho de

evangelização centra-se justamente no apoio ao modo de como este povo conseguiu manter

firme a sua cultura e juntamente com esta a sua fé em Deus.

Em uma das fontes de pesquisa para este trabalho, o autor apresenta uma síntese

interessante para esta questão do encontro entre cultura e evangelho, do encontro destas duas

grandes florestas, que juntas podem fazer chover.

O campo próprio do Evangelho, como palavra de Deus, é de ordem transcendental e

teológica; o da cultura, como criação humana, de ordem antropológica. A história é

o caminho onde o Evangelho encontra as culturas e pede carona. Quem pede carona

– se não for assaltante – não tem a intenção de apropriar-se do carro do outro. O

outro, em nosso caso, a cultura, pode viajar sozinho, sem o Evangelho [...] Portanto,

o Evangelho é hospede nas culturas. Pode dar dicas sobre caminhos alternativos e,

eventualmente, ajudar a trocar um pneu furado. Para isso precisa conhecer o carro e

precisa saber comunicar-se com o seu motorista. A arte da comunicação do

“Evangelho nas culturas” ou de uma “evangelização inculturada”, da parte dos

evangelizadores, consiste:237

• No reconhecimento da gratuidade (não necessidade) da própria presença do

Evangelho.

237 SUESS, P. Evangelizar a Partir dos Projetos Históricos dos Outros. Op. cit. p.149.

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• Na demonstração da relevância sociocultural e histórica do Evangelho para as

culturas.

• No respeito mútuo da diferença e da autonomia das duas ordens, da teológica e

da antropológica.

• Na descoberta da complementaridade entre ambos.

• Na possibilidade de sua articulação.

A Arquidiocese da Beira, enquanto Igreja Local, exercendo sua missão de evangelizar,

propõem para esta ação evangelizadora quatro atitudes: ser uma Igreja que vive e se

compromete com a vida do povo; ser uma Igreja que serve e se coloca junto a este povo,

principalmente junto aos mais pobres e sofridos; ser uma Igreja que celebra a vida e a fé; ser

uma Igreja que evangeliza, na opção fundamental do seu “primeiro evangelizador”, Jesus

Cristo (cf. EN 7).

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CONCLUSÃO

Este trabalho foi realizado na perspectiva de verificar se a experiência de

evangelização realizada pela Igreja entre as comunidades Sena de Moçambique, no período de

1992 a 2002, se constituiu evento importante para o resgate da cultura e da tradição destas

comunidades, favorecendo a luta pela dignidade e pela superação dos conflitos do pós-guerra

e a manutenção da paz, paz obtida depois de múltiplos sofrimentos e dificuldades em todos os

níveis da vida destas populações e de todo o povo moçambicano.

O trabalho também se propunha a verificar se a experiência missionária ajudou a

formar, no próprio continente africano, homens e mulheres que a partir de sua vocação

batismal pudessem assumir, como dom e dever, a tarefa evangelizadora, e a partir de sua

pertença às etnias e povos do Continente pudessem ser sal, luz e fermento, assumindo sua

própria sociedade, cultura e costumes como primeiro campo de evangelização.

Recuperar a memória histórica das populações Sena, foi um exercício necessário para

situar este povo no quadro dos povos e culturas do Continente Africano. A pertença a uma

família cultural maior, com elementos e valores culturais que perpassam os séculos e se

mantêm vivos e presentes, nos usos e costumes destes povos, conservados ou transformados

pelas diversas gerações, aparecem como matéria prima e espaço aberto para a compreensão,

respeito e diálogo com este povo.

O conhecimento histórico da presença da mensagem do Evangelho, através da

presença e missão que a Igreja realizou e tem realizado no Continente Africano, possibilitou a

compreensão e o alcance desta união e encontro; sem dúvida marcados pelas vicissitudes e

debilidades dos homens e mulheres, que empreenderam esta aventura. A marca do espírito de

conquista e expansão do período de colonização dos povos africanos, bem como a tentativa de

“civilização” e “progresso” destes povos, realizada pelos colonizadores, por vezes eclipsou a

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possibilidade de um verdadeiro processo de evangelização e de formação de uma Igreja viva e

comprometida com os povos do Continente Africano. No caso de Moçambique, fica evidente

a dificuldade de construir e consolidar uma Igreja local, que assumisse a realidade e os

desafios de seu tempo, quando as estruturas e a mentalidade que forjavam esta Igreja, estavam

totalmente atreladas ao sistema colonial português.

A análise dos grandes acontecimentos acorridos em Moçambique, como a luta e a

conquista da independência frente ao poder colonial (1964-1975); a tentativa de implantação

de um regime político orientado pela ideologia científica do marxismo-leninismo (1977-

1987); os dezesseis anos de guerra e suas conseqüências destrutivas para o povo do país

(1976-1992) e os dez primeiros anos de conquista e manutenção da paz (1992-2002) ajudam a

compreender melhor esta nação, sua gente e suas instituições e as demandas e desafios para

seguir em frente no quadro das nações e povos do mundo atual.

Conhecer e compreender as atitudes e ações da Igreja Local, através de seus sujeitos

principais (leigos, leigas, bispos, sacerdotes, religiosos e religiosas) a partir da situação que

esta Igreja vive e se encontra, logo após a independência do país e, principalmente durante o

tempo da guerra civil e durante os dez primeiros anos de paz, possibilitou a identificação das

linhas de ação, das opções e das propostas concretas que esta Igreja assume, para dar

continuidade à sua missão evangelizadora em Moçambique.

Uma Igreja que deixa de ser triunfalista e atrelada aos poderes constituídos, e quer

torna-se Igreja despojada e pobre, separada do Estado, liberta de falsas seguranças,

preocupada com a sua renovação interna; uma Igreja que nasce da base e da comunhão; uma

Igreja família, de serviços recíprocos, livremente oferecidos; uma Igreja no coração do povo

que a faz sua, inserida nas realidades humanas e fermento da sociedade. Esta atitude leva a

um novo impulso, ao trabalho de suscitar, animar e incrementar a vida de pequenas

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comunidades para que essa vida cresça cada vez mais, de modo a favorecer a iniciativa e

responsabilidade de todo o povo de Deus na edificação da Igreja Local.

São estas as atitudes e propostas que a Igreja assume ao retomar sua presença entre as

comunidades cristãs no seio das populações Sena. Uma população terrivelmente marcada

pelas conseqüências dos séculos do colonialismo português; marcada pelas lutas e conquista

da Independência; marcada pelos dezesseis anos de guerra; marcada pela extrema pobreza e

por um grande sonho e anseio de paz.

Sem dúvida, papel das comunidades cristãs em meios às populações Sena, através da

ação dos seus agentes, foi e continua a ser de singular importância para a vivência dos valores

da cultura, vivência dos valores evangélicos e para a reconstrução das relações entre pessoas e

grupos, através do trabalho de reconciliação e paz no seio de uma sociedade dividida pelo

conflito armado e assolada pelos seus efeitos e conseqüências.

As opções desta Igreja, na sua tarefa e missão, em vista a vencer os desafios atuais, no

interior da sociedade moçambicana e no interior das populações Sena, são encaminhadas e

concretizadas, não sem dificuldades e limitações. O sonho do passado, as “cebolas do Egito”

(cf. Nm. 11, 4-6) ainda são tendências ou tentações no interior das comunidades cristãs e no

agir da autoridade eclesiástica. A perspectiva de evangelização atual, ainda está marcada pela

necessidade das estruturas e meios utilizados no tempo colonial, que sem dúvida

proporcionaram um trabalho e presença de Igreja, através das diversas missões e dos

numerosos missionários e missionárias que dedicaram esforços, e até mesmo a vida nesta

missão e presença.

Alguns valores e costumes presentes nas populações Sena, que se destacam e

permitem maior aproximação e diálogo com a mensagem do Evangelho e, com certeza podem

contribuir para que esta evangelização realizada pela Igreja, realmente produza seus frutos,

foram percebidos e analisados. Contudo, o trabalho de maior conhecimento; respeito; diálogo

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com elementos desta cultura é uma tarefa ainda não realizada. Nos deparamos com um povo

onde a esperança e paciência são incríveis. Eles foram capazes de passar os maiores

sofrimentos nestes últimos trinta anos, sem contar todo os sofrimentos nos tempos passados;

ainda assim estão à espera de uma vaga na escola; de uma colocação num posto de trabalho;

uma consulta no hospital; um sacramento na Igreja.

Os desafios e as demandas que a realidade apresenta, para Igreja continuar sua tarefa

evangelizadora em Moçambique junto às populações Sena, parecem suplantar suas forças e

capacidades. No entanto, as opções tomadas por esta mesma Igreja, com base no seu

fundamento e vocação (cf.AG 2) e assumindo as exigências inerentes à própria tarefa de

anúncio do Evangelho (cf.EN 17-18), têm possibilitado uma experiência de evangelização em

perspectiva de inculturação, ou seja, na opção de evangelizar os mais pobres, vai descobrindo

o próprio rosto do Filho de Deus, no rosto dos homens e mulheres, muitas vezes sofridos e

crucificados, assim, ela mesma se deixa evangelizar por Ele.

Os novos sujeitos, que se apresentam para realizar esta tarefa, seja no interior das

comunidades cristãs; novos missionários vindos de outros países; o clero local e a vida

religiosa presente em Moçambique; eles têm o compromisso e a responsabilidade de imprimir

um novo ritmo de presença e trabalho junto ao povo, isso poderá ajudar a responder às

necessidades e aos verdadeiros anseios da Igreja e da sociedade. De algum modo, o fato de

não terem participado do processo de evangelização no tempo colonial, os deixam mais livres

e com mais possibilidades de arriscar um projeto de evangelização, que venha responder

melhor a esta mesma realidade.

A Igreja, na tarefa de evangelização em Moçambique percebe que cada dia há uma

nova questão a ser levantada; há uma nova situação e ser enfrentada; há um novo desafio a se

responder, e a vida tem que continuar, apesar dos muitos entraves de todo o tipo e natureza,

que se interpõe no caminho da vida. A velhice vem acompanhada de doenças e sofrimentos.

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Em Moçambique ainda é mais grave a situação destas pessoas, pela falta de condições; pelos

costumes e tradições em relação ao mais velhos; a falta de hospitais e outros recursos. A

juventude, que busca desprender-se de todas estas limitações que a cerca, muitas vezes sem

outras referências e modelos que ajude a suportar as dificuldades e vislumbrar um futuro

melhor. O grave problema das doenças, e de modo particular, o HIV/SIDA, pois é muito

grande o número de infectados e poucos os recursos de prevenção e tratamento. A difícil

realidade da mortalidade infantil e os diversos problemas e desafios que pode viver a

população de um país, que há pouco conseguiu reaver a paz e luta para reconstruir seus

caminhos e sua gente.

Fazer opções claras, pelos mais pobres e pela paz, tornam-se atitudes imperativas de

uma Igreja que quer estar presente nesta realidade, de maneira encarnada e comprometida;

atenta a todos os desafios e demandas; articulada e conectada com todos os outros sujeitos e

agentes que interagem neste processo; em diálogo constante e aberto com as instituições e

organismos constituídos para a promoção do bem comum e da justiça. Deste modo, ela

continua empenhada em anunciar o Evangelho aos homens e mulheres do nosso tempo,

animados pela esperança, mas ao mesmo tempo torturados pelo medo e pela angústia, como

um serviço prestado à comunidade cristã e a toda a humanidade (cf.EN 1).

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APÊNDICE

Entrevista I

Entrevista realizada com Dom Jaime Pereira Gonçalves, Arcebispo da Beira – Moçambique

no dia 1 de março de 2005 no Paço Episcopal da Beira

Padre Paulo Roberto Teixeira de Abreu: Dom Jaime o senhor participou de

maneira bastante ativa em todo o processo de elaboração do acordo geral de paz

de 1992. Qual é o significado desse acordo, pessoalmente para o senhor e, para a

nossa igreja local aqui da Beira?

Dom Jaime Pereira Gonçalves: Bem para mim pessoalmente a motivação para

trabalhar pela paz foi a experiência muito negativa na pastoral da igreja naquele

tempo, que começou nos anos 75, com a nossa independência nacional.

Tínhamos experimentado de lá até os anos 1983, 1984. Experimentamos os

grandes obstáculos da revolução à pastoral da Igreja em Moçambique. Com as

nacionalizações tinham sido ocupadas muitas missões. E isso dificultou-nos

muito Muitos cristãos foram para as cadeias, muitos bispos também

experimentaram cadeias, havia a teoria de que tínhamos que ter licença de

celebrar o culto, e por aí a fora. Então isso é uma experiência que pessoalmente

foi muito desagradável para um bispo novo em 1976 encontrar-se com isto. A

seguir, para agravar a situação, pessoalmente, vi que com a guerra também não

se podia fazer melhor. A guerra com o princípio de que se morre ou mata, então

nós não podíamos deslocar-nos por diversos lugares. E como bispo então eu vi

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pessoalmente que a minha missão não estava sendo cumprida enquanto houver

tanto aquela revolução como também a guerra civil. Por isso pessoalmente eu

quis acabar: achei melhor trabalhar para acabar com a guerra para eu também

poder fazer visitas pastorais como os outros bispos no mundo fazem. É isto

pessoalmente que me motivou, como bispo, é claro que perante morte e desgraça

há outros sentimentos humanos, também, que estão ali, porque não tinha muita

graça ouvir tantos massacres feitos por uns e feitos por outros, viver-nos numa

sociedade que cada um só procurava matar o outro. Também isso não era

humano, não era humano. No nível da Igreja de Moçambique, de fato

comumente, na Conferencia Episcopal, nós discordamos tanto com certos

comportamentos da revolução como também com a guerra, a violência. Por isso

na Conferencia Episcopal tomamos a decisão de trabalhar para acabar com a

guerra, nessa altura, e naturalmente com a revolução também. Porque há guerra

lá, a revolução tá dentro, isso é triste.

Pe. Paulo: E quais foram assim os benefícios imediatos desse acordo de paz

para a Igreja, a partir de 1992, quando se celebrou aquele Acordo Geral de Paz,

como que a Igreja viveu isso de uma maneira mais imediata?

D. Jaime: Com o Acordo Geral de Paz tivemos a boa sorte de resolver num só,

vamos dizer assim, dois grandes graves problemas do povo moçambicano.

Como já disse o primeiro problema tínhamos a revolução, com todo sistema

próprio repressivo e antidemocrático, unipartidário, com todas essas fórmulas

que a história nos apresenta de regimes marxistas , e não havia forma ainda

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porque os atores dessas políticas ainda estavam no poder, mas o povo precisava

disso. Por outro lado tínhamos, como já se descreveu, já a violência estava no

país e tinha quase coberto todo o país. Com o Acordo Geral de Paz o primeiro

efeito positivo foi acabar com a revolução e acabar com a violência. Este foi o

primeiro grande respiro do povo Moçambicano perante a assinatura do Acordo

Geral de Paz. Para a Igreja, naturalmente foi uma grande alegria ver estes

problemas resolvidos e também foi uma grande alegria saber que a Igreja

Católica muito criticada pela revolução tinha contribuído para a solução destes

grandes problemas. Então a Igreja ficou contente, satisfeita, tanto assim que

continuou no processo de preparação para as primeiras eleições gerais, que

ocorreram em 1994, tanto a Igreja continua a acompanhar este processo, tanto,

posso dizer, em benefício do povo, e grande benefício da própria igreja, que

acabou por ser apreciada pelo seu trabalho em favor da paz.

Pe. Paulo: Então a Igreja ganhou muito mais confiança e também credibilidade

tanto da parte do governo, da parte da Renamo e também da parte da população

por essa ação concreta em benefício da paz?

D. Jaime: Depois do Acordo Geral de Paz decorreram mais de 10 anos, e até

celebrarmos no país com certo esplendor os 10 anos do Acordo Geral de Paz.

Que Moçambique sirva de exemplo para muitos países em conflito encontrarem

um caminho e solução, concordo que sim. Moçambique é exemplo porque ou na

mesma altura que nós fizemos as conversações ou um pouco antes, tinha havido

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em África muitos acordos que não funcionaram. Então perante a esses países

assim em África, Moçambique ficou um país moderno. Resolveu o problema e a

solução ficou e o acordo foi-se cumprido. Mas não podemos excluir que ao lado

da página da concórdia que nós tivemos também existem os problemas políticos.

O Acordo Geral de Paz fala de democracia, e até ele deu critérios de como pode

ser formado um partido num país que era só de um partido. Formação de

partidos, modificações no exército, as forças armadas, tudo isso. Desde de 1992

para cá o país tem tentado implementar a democracia e com a democracia uma

linha política. Nesse campo nós somos modernos. Mas ainda há muito que

avançar. Nem sempre a democracia é respeitada, nem sempre temos sido livres

para escolher e decidir os rumos deste país.

Pe. Paulo: Então nesse caso, qual é a contribuição ou o papel da igreja, ainda

nesse contexto. Porque então o processo ainda não se consolidou. Qual o papel

da igreja hoje para a manutenção dessa paz, para que esses conflitos vão se

resolvendo e realmente se chegue a uma democracia mais plena mais estável?

D. Jaime: Até agora, nós, nas nossas reflexões, no nível da conferência, mesmo

do clero, que está mais dentro desses problemas, vemos que um dos caminhos é

a educação cívica e democrática. De fato o povo é bom, nós os eleitores somos

bons, nós ao menos vamos lá votar, os que vamos votar, somos bons, mas não

sabemos exigir nossos direitos. Por isso é preciso toda uma reflexão e análise da

realidade para sabermos como devemos nos posicionar enquanto Igreja, frente a

todos estes acontecimentos e desafios.

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Pe. Paulo: Aproveitando esse assunto, a Arquidiocese está para realizar o seu

primeiro Sínodo Diocesano. Está já em vias de realização. Quais são os

objetivos desse Sínodo? O que seria esse evento aqui na Arquidiocese?

D. Jaime: O Primeiro objetivo que aqui temos é de fato rever a pastoral que

estamos a fazer, para ver se acertamos com essa pastoral. Segundo objetivo é

vermos onde estamos como Igreja? Onde estamos como presença da Igreja nesta

província? Terceiro objetivo é melhorar esta presença e melhorar as linhas

pastorais da diocese.

Pe. Paulo: A realização desse sínodo demonstra uma maturidade dessa Igreja

local. Quer dizer que essa Igreja já está madura que é capaz de refletir sobre si

mesmo e também sobre a sociedade.

D. Jaime: Sim. Acho que sim. Se olharmos a história, dede o tempo da

colonização podemos verificar que nesses anos, diversos grupos de missionários

realmente se dedicaram à obra de construir a Igreja nesta província. Muitas

congregações trabalharam, portanto, temos razões de dizer que é uma Igreja que

cresceu, que está madura que já pode refletir sobre si mesma.

Pe. Paulo: Mas a Igreja da Beira também, ela é uma igreja bastante

diversificada tanto pela estrutura social, como também pela estrutura cultural ou

linguística. Como isso tudo é colocado aí na evangelização? É muito difícil?

Essa diversificação é uma dificuldade ou ela se apresenta como uma riqueza

para a evangelização?

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D. Jaime: Em princípio, para a evangelização a diversidade de línguas não é

uma dificuldade A diversidade como dificuldade seria entender que a gente não

se encontra, porque cada um está no seu grupo. Mas já temos, no nível da Igreja

o problema da língua nacional. Então aqui é o português. Saímos da nossa

língua particular para outra língua através do português. Portanto o português

tem um papel importante nestes grupos como unificador isso não podemos

negar. Mas sempre pode haver o perigo de divisão, de utilização das diversas

etnias e línguas pelo poder político, para manipular ou rivalizar. Para a Igreja

será sempre importante trabalhar com esta diversidade.

Pe. Paulo: Agora já para terminarmos, gostaria de saber como é a relação da

igreja local da Beira com as outras igrejas cristãs, e as outras religiões que estão

presentes aqui. Há algum tipo trabalho? Há alguma aproximação? Como tem

sido essa relação? .

D. Jaime: Em princípio aqui na Beira não temos provocações mútuas. Exceto

no tempo colonial, os protestantes destas igrejas separadas, essas tinham

problemas com o regime. Eram perseguidos, não respondiam aos problemas,

alguns foram mandados para São Tomé, como ilha penitenciária. Era porque o

regime era católico, deste modo, não pôde favorecer outras igrejas. Os

muçulmanos deixaram-nos assim quietos, com suas mesquitas. Não os

provocavam porque, eles já os tinham provocado lá, na guerra do Marrocos e os

deixaram ficar. Portanto certa animosidade poderia haver nessa altura. Uma vez

que passamos para nós agora aqui na cidade da Beira, já não houve o mesmo

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conflito. De fato então aqui na Beira aconteceu temos preocupações mútuas.

Temos alguns atos comuns, os muçulmanos, católicos e protestantes. E um

pequeno grupo de Hindus. Temos encontrado momentos difíceis para fazer a

oração comum. O que não temos feito e talvez seja muito difícil de fazer seria

um trabalho de cunho teológico com os protestantes. A busca da Igreja como

Igreja, o conceito de Igreja. Depois qual é a relação desta igreja deles com a

Igreja de Cristo. Mas em termos de entendimento, de respeito mútuo, estarmos

juntos, de pensarmos juntos, no caso de SIDA e tudo mais, estamos com os

muçulmanos que têm a mesma ética do que nós. Lutam e falam, estamos nisso

também. Depois em geral a ética, essa coisa de corrupção não sei que mais, as

igrejas protestantes também não concordam. Por isso estamos neste pé assim.

Pe. Paulo: Uma última pergunta, o senhor celebrou há pouco tempo atrás, seus

25 anos de episcopado, a Arquidiocese está aí a celebrar o seu Sínodo. Como

Bispo esses últimos anos quais são as alegrias dessa Igreja? Que essa Igreja tem

trazido assim, como realmente alegria, e que pode gerar esperança aí para

continuar a caminhada?

D. Jaime: De fato, as alegrias são essas, de fato, alguns desafios da Igreja na

Beira já foram tocados, e até certo ponto até já foram, digamos, vencidos. Estou

feliz de fato em ver que já temos clero diocesano. Que ficou um desafio muito

grande no nosso episcopado. Porque com a revolução fecharam-se os

seminários, então claro fica a dificuldade de como formar o clero. É uma coisa

que claudica. Depois veio o tempo da paz, de fato, não tínhamos instituições,

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para recuperar os seminários, foi um processo, reabilitar os seminários foi outro.

Encontrar formadores ainda desses seminários, por todos os problemas que

vieram depois do tratado de Paz. Mas agora, neste momento, posso dizer na

Beira, que já temos um clero diocesano, com vinte e dois jovens todos ainda.

Então já um desafio meio vencido. Agora é questão de haver uma certa

regularidade de ordenações. Um ano sim, um ano não. Depois uma grande

alegria é que toda as missões que no passado tiveram dificuldades estão

reagrupadas. Isso é uma grande satisfação, que a gente experimenta, ao saber

que aquilo que os missionários fizeram nos anos 1945, 1946 pra cá voltou outra

vez para eles. Isso é uma grande satisfação e nesta fase que não tivemos o clero

diocesano o que valeram foi os missionários que nos regressaram, reforçaram as

suas congregações até mesmo entraram novas congregações. Tudo isso, que tem

obra feita, que te dá satisfação. Hoje temos o aspecto de vida consagrado se era

muito difícil de haver as vocações sacerdotais, mais difícil ainda a vida

consagrada. Então se trabalhou nessa linha, e muitas dioceses,- vamos falar

assim um pouco de Moçambique-, muitas dioceses criaram congregações,

grupos novos de vocações religiosas na diocese. Importante também nesse caso,

a gente experimenta uma certa satisfação, apesar de muita instabilidade.

Experimento a alegria aqui, de fato na diocese, de fato por ter ficado mais tempo

que pensava poderia ficar como Bispo. Eu nunca me dei 10 anos de Bispo, mas

assim de surpresa, vi-me com 25. É uma graça de fato. Embora também seja

uma responsabilidade. Tantos anos de Bispo, o que foi feito? Essa é outra coisa.

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Outra resposta. Tanto essas alegrias. Os desafios como acabamos de falar, o

Sínodo Diocesano, de fato, vem mexer um pouco a nossa vida, a nossa presença,

a nossa pastoral, e creio que para o futuro é isso que vamos fazer.

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Entrevista II

Entrevista realizada com Pe. Fernando Peres Pietro, Pároco da Paróquia

Nossa Senhora de Fátima de Murraça. Diocese da Beira – Moçambique –

fevereiro de 2005.

Padre Paulo Roberto de Abreu: Padre Fernando quanto tempo trabalha e vive entre as

comunidades Sena?

Padre Fernando Peres Pietro: Eu cheguei aqui em 1967, mês de julho e sempre estive cá, e

ou cá na Beira, mas sempre entre os Senas, exceto quatro anos que passei no Maputo, no

seminário meu. O resto sempre cá nesta região.

Pe. Paulo: Então, conhecendo bem este povo, quais os valores deste povo que chamam mais

a vossa atenção?

Pe. Fernando: Valores! Sempre é o acolhimento o que mais chama a atenção de todos. E a

paciência que a gente tem de ter um com outro que é mais pobre, mais desgraçado, ou mais

bêbado talvez, paciência que nós não temos. Também paciência com o hóspede. Muita

paciência mesmo. Também pensamos uma coisa que tem sua parte negativa, essa paciência

também é agüentar demais as correções, agüenta muito demais. Essa é a parte negativa que

tem. Mas é muito paciente. Mas não quer dizer que não é um povo que não se tornava

rebelde. Sim, os Sena são muito rebeldes, porque andam muito. Porque gostavam sempre de

andar de um lado para o outro. Todo tempo a andar, e de fato, temos a experiência da Igreja

de Munhava, da comunidade de Munhava que fará uma grande posição ao governo. Que

passarão grandes lutas, por causa de que o Sena é muito combativo. Mas também a pobreza lá

tem valores. A pessoa que anda a depender da chuva e do sol, portanto, de Deus. Ele é pobre

porque depende daquilo. E então isso tem muitos valores humanos, que a gente que está com

vencimento seguro já os perdeu.

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Pe. Paulo: De que maneira esses valores contribuem para a tarefa de evangelização realizada

aqui entre os Sena? Qual seria a relação desses valores com a tarefa de evangelização?

Pe. Fernando: Pois, o evangelho é um ensaio muito humano e, portanto tem muito

acolhimento, com toda a facilidade. Outra coisa será mudar os costumes. Os costumes que

aqui estão, para mudar é muito difícil, mas acolher a evangelização, acolher o pensamento de

Jesus, isso sim é muito fácil para eles. Sem problema nenhum em acolhe-lo, ao contrário

sentem-se contentes com o evangelho. Há muitas coisas que estão em contradição e também

muitas outras que não estão em contradição. Temos dito que a andar a mudar tudo isso é

muito difícil. E se algumas coisas que estão em contradição, não é contradição com a

doutrina, é em contradição com uma prática cristã, que não é universal, completamente

universal. Como, por exemplo, a poligamia. Tem que pratica a monogamia, é uma pratica

praticamente cristã. A poligamia está em contradição com a cultura extraída hoje, do ponto de

vista prático. A pessoa que segue isto como prática, não vai abandonar a poligamia. E não vai

se sentir longe de Deus por ser polígamo. Nunca vai se sentir longe dos evangelhos por ser

polígamo.

Pe. Paulo: Então de alguma maneira esse processo de evangelização ele também pode

contribuir para a valorização dos aspectos culturais desse povo.

Pe. Fernando: Sim, por exemplo, as questões familiares, o evangelho apoia a quase todos

eles. Porque há valores familiares da tradição familiar que ficaram. Muitos deles estão bem de

acordo com o evangelho.

Pe. Paulo: E quais são os principais desafios que tem encontrado nesse tempo de trabalho,

nesse tempo de evangelização, aqui entre os Sena?

Pe. Fernando: O desafio principal é fazer a passar a prática da mensagem. A mensagem

passa facilmente, mas a prática da mensagem daquilo e o que é tradição é bastante diferente.

Esse é muito difícil. Por exemplo, a compreensão do trabalho do curandeiro, que é um

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trabalho bom, porque é um homem ou uma mulher que cura a gente. Mas essa mistura que faz

com tudo o que são espíritos e com todos que são mortos, e coisas assim, para evitar que o

mal volte, isso dá sempre uma confusão muito grande. E a pessoa não consegue distinguir

entre o que é remédio ou medicamento ou bebida ou comida, o que for, e remédio de amuletos

coisas para proteger-se. Porque na realidade esses espíritos, essas coisas estão aí. Agora, o

importante é quando a pessoa chega a compreender diz: Está bem, tudo isto está aí, mas eu

confio em Deus. E é o caso da velha, que vai lá, vai batizar-se, e passa a última unção, e é

claro, vou a ver se sabe distinguir bem sobre uma coisa e outra, mandamentos, sacramentos,

se são mandamentos da igreja, sacramentos da igreja, e Deus, e São José, e Virgem Maria, e

São Pedro e toda essa companhia, e depois faço a pergunta: Vovó, você desde que foi

batizado, gostou? E diz: sim, gostei. E pergunto: o que mudou em esta sua vida? E ela diz: “A

bom, isso sim, eu antes ia a muitos templos, eu antes sempre tinha medo de ir à casa de minha

filha, o campo, ou abrigo, ou passar perto do cemitério, sempre havia gente que me queria

mal, porque dizem que sou velha e que sou curandeira, sempre tinha medo. Sempre tive medo

dos espíritos que estão por aqui. Pelo mal que me podem fazer ou aos outros. Mas agora não.

Agora ando, vou à casa de minha filha, ao rio, ao campo, onde for e vou rezando e vou

falando com Deus, com Nossa Senhora, e o dia que Ele me querer levar, há de me levar e não

terá problema nenhum. Eu sei que os espíritos estão por aí, estão a minha espera, mas já não

tenho medo, passo pra lá e confio neles”. É isso uma evangelização bem feita, bem aceita.

Pe. Paulo: Então esse já é um dos indicativos de que de alguma maneira o povo nesses

últimos 10 anos está a ser beneficiado por esse processo de evangelização?

Pe. Fernando: Bom, sim. Não há nada especial assim digamos, nestes últimos 10 anos do

tempo anterior. Dizer que há especial coisa, não. Há valorização diferente de comunidades, de

ministérios, e tudo isso. O núcleo da evangelização, a compreensão que o povo tem da

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evangelização e as dificuldades que se encontra para evangelizar podiam ser as mesmas. Mas

temos outros meios já para se comunicarem e para apoiar-nos.

Pe. Paulo: E agora vamos falar de outro assunto, sobre a guerra. Quais foram os principais

danos causados a vida e a cultura desse povo nesses tempos principalmente da guerra civil?

Pe. Fernando: Bem ainda vamos fazer uma volta atrás. Há uma coisa importante que eu

ainda não disse. Uma das coisas boas da cultura apta para a evangelização, é a vida em

comunidade, em família. Isso é muito importante. Mas sim desde o princípio, só que agora se

organizou pequenas comunidades com ministérios e tudo. Mas antes, em que o catequista era

ao mesmo tempo professor e tinha voz e vez para ajudar na organização da vida comunitária

com ministérios, com comissões, vivia-se em comunidade. Por isso, quando chegou aqui a

independência e a Igreja marcou a linha de seguir, porque nas comunidades do interior não

houve mudança quase nenhuma, senão introduzir ministérios na medida que era necessário,

não se compreendia o cristianismo sem essa vida comunitária, não tinha sentido. Até que

quando chegava alguém que tinha sido influenciado pela cidade, pelo espírito português, e

queria viver sozinho a vida cristã, se olhava pra esse homem e se dizia: Este homem em que

país está? Não é nosso irmão? Mas ele não compreende que isto é comunidade? Mas isso era,

sobretudo, para mostrar-se similar, então, vinha à missa com estilo como a um português.

Então ele queria ser como um português. Mas não é porque estivesse no coração dele.

Pe. Paulo: Mais uma assimilação...

Pe. Fernando: Sim, mais uma assimilação, em querer se mostrar como português, ou superior

aos outros.

Pe. Paulo: E sobre a guerra, quais os danos causados a vida e a cultura do povo nesse período

de guerra civil?

Pe. Fernando: Aí está uma coisa que não está dito aqui e é muito importante pra você saber,

porque você está aqui. A guerra não foi especialmente o que afetou, o que afetou foi a

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revolução. A guerra foi conseqüência da revolução, sim, mas a revolução é que mudou tudo.

O que fez muito mal a cultura e a evangelização foi a revolução. Os valores revolucionários

que deram lá. E o tipo de revolução que castigou, e o tipo de controle do povo. Enfim tudo

que veio com a revolução. Tudo isso, fez muito mal. Estragou tudo. Destruiu a família,

destruiu a lavoura, destruía já as comunidades porque já se tentava fazer um tipo de

comunidade política, invés de ser uma comunidade humana. Transformou as comunidades.

As comunidades ao fim de um tempo era política tudo. Tudo político, tudo ideológico. No

entanto que a comunidade Moçambicana, ou a comunidade em África, não é nada política,

não é nada ideológica. É uma comunidade de vida. Agora esta veio a transformar tudo,

absolutamente tudo. As crianças já não eram filhos, eram continuadores da revolução.

Pequenos, grandes, continuadores da revolução. A mulher e o homem, já não havia grande

diferença. Os tabus que separavam a mulher do homem para manter a estrutura familiar que

então existia, tanto na comunidade também que existia, tudo mudou. E os jovens sentem-se

perdidos, o adulto sente-se perdido porque esse contato homem-mulher é completamente

diferente. Para o qual não estava preparado. Porque a revolução chegou como um rolo de

fazer estrada, compressor assim, passando a cem por hora. Não deixou nada preparados, só

partiu cabeças. Não chegou a fazer estrada, porque traziam valores completamente opostos

aos valores tradicionais.

Pe. Paulo: É lá então que surgiu uma reação contrária e a única solução foi começar uma

outra guerra.

Pe. Fernando: Aqui há uma conclusão necessária, ir contra a revolução. É uma reação direita

contra a revolução. Não podem dizer que é uma reação direita porque político que não estava

contente, ou estavam descontentes. Porque foram os outros que apoiaram os outros. Apoiaram

porque já vir a reação. E então eles foram procurar o apoio dos socialistas. Então foi isso. A

revolução é que estragou tudo. E depois para reconstruir é que foi o difícil também com na

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economia. A própria economia a revolução estragou tudo. Porque a revolução queria deitar

tudo a baixo e recomeçar de novo como iniciativa vinha agora do povo. Então toda a

economia veio para baixo. Técnicos se assustaram assim que viram. A economia veio para

baixo. O pleno emprego, como disse o socialismo, tinha emprego, mas não fazia nada. Agora

como ter o empregado sem fazer nada? E tudo foi à ruína e então todos os valores sofrem.

Agora o fruto disso, de deitar tudo no chão para recomeçar de novo, e depois, de fato não

conseguir recomeçar, porque a pessoa não conseguia responder a essa ideologia. Porque não

entrava no coração dela essa ideologia. Impossível. É a pessoa que tem de recomeçar de novo.

Não são as fábricas que vão refazer a economia, são as pessoas que fazem funcionar as

fábricas e as empresas. A ideologia não entrou na cabeça deles, portanto estavam lá esperando

o vencimento. Como a fábrica já não produzia mais, não tinha vencimento. As fábricas

ficaram limpinhas. Tudo da ideologia marxista deu cabo a sociedade moçambicana.

Pe. Paulo: Então essa guerra que terminou em 1992, ela foi como uma conseqüência, uma

conclusão de um processo de luta entre dos grupos e duas tendências.

Pe. Fernando: E estes poderiam ajudar os países capitalistas, como os outros poderiam ajudar

os países socialistas. É natural. Isso é lógico.

Pe. Paulo: Isso como um reflexo aqui da guerra fria que acontecia naquela época lá na

Europa e na América do Norte.

Pe. Fernando: A guerrilha moçambicana era contra os portugueses porque deviam ajudar os

países socialistas porque os capitalistas estavam com Portugal. Agora, a guerrilha

moçambicana contra o partido no poder, que era socialista, não vai pedir ajuda aos países

socialistas, vai pedir aos países capitalistas, que não gostavam deles. Isso é natural, cada um

tem que arrumar dinheiro por seus meios. Agora acusar aqueles de que eram capitalistas, isso

não, só foram pedir ajuda. Porque eram contra a revolução, não. Porque estava o povo de

joelhos, diante do governo desde de manhã até de noite.

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Pe. Paulo: Logo isso, que quando chegou o tempo de se fazer o Acordo de Paz, parece que

isso foi também bem assimilado e acolhido pelo povo.

Pe. Fernando: Ah. O povo sim. Duas coisas: primeiro que a guerra acabou porque o povo

não agüentava mais. Nós já não agüentávamos mais. “Mais guerra ainda?” “Mas quando vai

acabar esta guerra?” O povo já não agüentava mais. Então dizer que a guerra acabou e que a

gente podia andar de um lado para outro, porque o socialismo não te deixava andar. Podias

andar de um lado para outro como quiseres. Ninguém te vinha perguntar por documentos, por

nada. E podias visitar a família e saber se estavam vivos ou se não estavam vivos, como pai,

mãe e irmãos.

Pe. Paulo: E também, de alguma maneira, o processo de evangelização ajudou para se chegar

a essa paz e para manter essa paz.

Pe. Fernando: Bem, digamos que os esforços que fez a Igreja foram muitos e deram muito

resultado. Bom, não só a evangelização. Não como em processo como tal, é fruto duma

evangelização feita da capacidade que a Igreja moçambicana tinha. Porque a Igreja

moçambicana, uma das coisas importantes é que era adulta e mostrou um processo de paz que

está a virar adulto porque ela é que levou o processo a frente. É ela, sobretudo que evitou as

ciladas que queriam continuamente acabar com o processo de paz. Lanças do exílio queriam

sempre a andar com temas e a querer a virar o mundo. E a Igreja tem de estar sempre atenta a

isto, para se ter uma paz justa. A Igreja participou muito ativamente do processo de paz e não

tivesse sido ela, não teria sido, talvez de outra forma melhor. Isso é muito encorajador.

Pe. Paulo: Vamos entrar agora na questão da inculturação. O processo de evangelização que

tem sido feito de alguma forma ele é inculturado?

Pe. Fernando: Nós estamos aqui desde 1946, e esta missão especialmente, é das primeiras

missões que fez sempre a nós como um processo não nas coisas doutrinais. Na prática, nas

coisas concretas. Para a gente se sentir mais à vontade dentro da comunidade. Cânticos,

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batuque. O batuque primeiro começou aqui. O Sebastião era um bom pastor, e toda vez que

nós queríamos uma inovação ele pensava em cânticos, batuques palmas, e outras coisas mais,

levava a autorização, e então dizia: Vamos pensar. E depois de 15 dias vinha, dizia isto pode

ser assim desde que se faça assim, desta maneira, isto pode, isto não pode. Quando de outra

vez, vinha de novo, se consultava e pode, nestas condições e assim, sempre. Era a

inculturação não em profundidade. Era porque também não se compreendia, ainda de 1946

pra cá. Saí daqui em 1966. Mas muitas coisas assim para a comunidade se sentir à vontade ele

fez muito. E daqui levou para outras missões, serviu para as nossas e depois para as outras.

Agora um processo em profundidade ainda não se tem feito. Só o processo, por exemplo, nós

os padres estamos a aprender a língua. Todos visitamos as comunidades que falam a língua

local. E conhecer o povo em bastante profundidade por causa da língua. Mas daí dizer que

isto é feito em profundidade, não. Mesmo para os padres moçambicanos é difícil um processo

em profundidade.

Pe. Paulo: Mas é uma Igreja que vai ganhando um rosto próprio?

Pe. Fernando: Sim. Digamos que nós nos obrigamos a inculturar mais. Por exemplo, nas

comunidades, nós não trazemos, já os encontramos aqui, aprendemos aqui, e apoiamos aqui.

Depois a Igreja deu mais a estruturação própria de uma comunidade que não era daqui. Os

ministérios, missões, tudo isso veio de outros lugares e aqui encontrou acolhida perfeita. No

campo foi mais fácil, na cidade custou mais. Eu me lembro da assembléia de 77, Assembléia

Nacional que foi na Beira, e então eu estava na Beira naquele tempo, e pra meter as

comunidades em certas paróquias, foi difícil. Não queriam. Padres que nunca tinham estado

no interior e que não conheciam nenhuma língua. Não compreendiam também. Custou muito

organizar as comunidades paroquiais da cidade. Compreenderam em seguida, pois vinham de

comunidades do interior. Aquelas pessoas da cidade compreendiam, pois estavam vendo que

era uma comunidade, porque tinham vivido mesmo no interior, mas os padres não. Acho que

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a Igreja foi mais inculturada, fomos mais influenciados pela cultura, do que a própria Igreja

influenciar a cultura.

Pe. Paulo: A evangelização no sentido mais específico e a promoção humana. Como é que a

missão aqui tem conseguido equacionar essas duas dinâmicas? Evangelização e promoção

humana?

Pe. Fernando: Se falas aqui de Murraça, promoção humana tem sido uma ponta grande, aqui

nesta região toda. Desde o princípio, maternidade, hospital, escolas e internatos, desde o

princípio e houve um tempo em que moçambicanos queriam estruturar mais de quarta classe,

só tinha São Benedito na Beira e em Murraça. Aqui vinham alunos e alunas de 300Km ao

redor para estudar o primeiro e segundo ano, de quinta e sexta classe. De tudo quanto lugar,

vinham para cá estudar, pois não havia outro lugar para estudar. Depois também, na selva

tínhamos escola agrícola. Mas esse esforço de promoção, esforço, sobretudo de instrução. E

também de apoio as necessidades, como é a maternidade e o hospital, a saúde. Esses dois

pólos houve desde o princípio. Os primeiros professores que houve aqui foram rapazes

grandes que preparavam os pais para serem professores. Preparando por cerca de um ano e

depois no ano seguinte: vamos educar os pequenos. Quando acabavam com pequenos o

segundo ano que era a escola rudimentar, foram fazer as provas juntos os professores e os

alunos. E havia professores que reprovavam, e diz isso mesmo, pois são crianças que

aprendem com muito mais rapidez.

Pe. Paulo: e, atualmente, na missão assim, há algumas linhas de ação que vocês querem

tomar? Princípios de ação.

Pe. Fernando: Nós aqui o que temos é primeiro é a assistência as comunidades, a

evangelização aos não cristãos. Porque não pode ser só assistência a comunidade. Assistência

à comunidade, que seja ela a evangelizadora. Tenha catecumenato, vá para frente com o

apostolado dos jovens, vai com o apostolado da caridade, isso é a comunidade. Que tem de ser

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evangelizadora, e nós somos o apoio as comunidades na evangelização. Agora na linha de

evangelização como um todo nós continuamos com a educação. Há 1400 alunos aqui na

missão. Que vêm todos os dias a pé. Aqui há a maioria das crianças já escolarizadas. Além do

hospital e maternidade continuamos com infantário para recuperar as crianças que estavam

em perigo. Durante um ano ou dois, estão aqui até que fiquem fortes, depois voltam a família.

Também a construção de diferentes postos sanitários no interior, colocando enfermeiro em

cada um, temos cinco postos sanitários. Temos o projeto de internato para fazer também

escolas agrícolas, e temos também as artes e ofícios e vamos avançando aos poucos.

Pe. Paulo: Agora, resumindo, como é a presença da Igreja nos últimos dez anos? Como é que

está essa presença? A retomada da presença?

Pe. Fernando: A gente quando chegou aqui, depois da guerra, encontramos uma debilidade

muito grande, que nós não tínhamos deixado. Nós aqui tínhamos dezesseis comunidades,

quase todas ao longo do rio, onde estava a população. No interior quase não havia

comunidades. Depois encontramos aqui que havia muitas comunidades novas, de gente que

rezava na Igreja Católica, embora muitas não tinham nenhum batizado. Tinham comunidade

aberta, catequista e tudo, mas não tinha batizado. Quer dizer que durante a guerra toda a gente

rezava. Sim, o que havia era uma Igreja Batista. E então todo mundo rezava, muita gente que

nunca rezou agora rezava. Então encontramos essa realidade. E nos dois primeiros anos

depois da guerra é que começamos a caminhar. Surgiram como cogumelos, comunidades

pequenas, às vezes com quatro ou cinco cristãos e uma turma de catecúmenos. Então tivemos

que ir lá dar uma atenção. Ver se precisavam disto, daquilo, dar apoio e isto. Pouco a pouco

organizando de dezesseis que havia em todo o distrito. Agora deste lado de Sena umas

quarenta e o outro lado umas trinta e tal. Incrível, em poucos anos. E continuam a surgir

comunidades, às vezes num braço de outras comunidades. Agora que já algumas sejam

independentes quando já no seio delas estejam os ministérios principais. Então gora o

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problema atual é: as comunidades cresceram sem formação boa. Deus é igual para todas,

então há muita mudança de religião. Estão nesta e vão pra outra, e depois outra e assim. Há a

necessidade de melhor formação dos catequistas. Uma das principais prioridades agora seria

um grupo de formação, formação de valores para acompanhar os catequistas, porque elas é

que estão a ensinar. Depois do celebrante, da formação dominical, pois o padre só pode ir de

vez em quando. Então quem preside a homilia, esta palavra formadora, está a formar valores,

então de ser uma palavra de valor, se não vai a gerar confusão. Esse é o desafio maior. O

desafio maior é a formação dos animadores, catequistas e outros.

Pe. Paulo: Então esse crescimento das comunidades também demonstra que a proposta de

evangelização tem sido bem acolhida nesses últimos tempos.

Pe. Fernando: Sim.Veja que toda a evangelização, não só católica está na linha da gente.

Toda a gente no momento de dificuldade rezava, com quem quer que seja.

Pe. Paulo: Qual é o meio de evangelização que melhor se adapta nesse processo de

evangelização aqui em Murraça? Digo tem assim a liturgia, os sacramentos, o contato pessoal,

o ensinamento da palavra, a catequese, comunicação, meios de comunicação social, qual seria

o meio assim mais eficaz?

Pe. Fernando: Mais a liturgia e a catequese, são mais. A liturgia, por exemplo, é muito

importante, não como propriamente liturgia, mas como encontro da comunidade. Motivos de

celebração, quando acontece alguma coisa vamos fazer uma comemoração. Nasceu uma

criança, ou assim, mas não tem um encontro semanal. Então quando se tem os irmão que vão

juntos a rezar e cantam e isso, chama muita atenção isto. Claro que a base dessa união está,

sobretudo no domingo, na liturgia e na palavra liturgia que se destaca no domingo. Depois

tem outros momentos em que a comunidade se encontra. , mas o importante é esse encontro

semanal. E por que vão lá? Porque precisam. Por isso que às vezes andam a mudar de religião

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de cá pra lá, pois ali podem encontrar uma assistência melhor, funerária, e tal. Há aí então o

trabalho dos catequistas, dos formadores.

Pe. Paulo: Agora uma última pergunta, nós temos sempre, mulheres, crianças, homens,

adultos, jovens e velhos. Sabemos que todos são importantes no processo de evangelização.

Mas aqui há algum grupo deste que precisa de mais atenção?

Pe. Fernando: Sim, precisa muita atenção às mulheres e as crianças. As mulheres de Sena

estão muito atrasadas e vítima de muitos complexos de histórias delas. Aqui no campo elas

estão muito atrasadas. Dá pena dessas mulheres com tantas cargas, e apesar de tudo são muito

alegres. Elas agüentam tudo, as cargas, a religião, os filhos que adoecem e precisam de

médicos, de tratamentos que não têm, e não têm também consolação. Essas mulheres sofrem

muito. Elas precisam muito de instrução, mais do que evangelização. A evangelização seria

ter confiança em Deus como meio de consolação, pois os sofrimentos são muitos, então com

os sofrimentos é mais difícil confiar em Deus. E depois as crianças, é claro. Como as crianças

dependem das mulheres, e se elas estão atrasadas, então pra mim elas são prioridade, as

mulheres. Sendo que 75% do trabalho deste país é feito pelas mulheres desde a infância até a

velhice.

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Entrevista III

Entrevista realizada com o Sr. Joaquim Manuel Catequista e Assessor do

Centro de Formação Nazaré da Arquidiocese da Beira em fevereiro de

2005.

Pe. Paulo: Nós vamos conversar um pouco sobre essa questão da cultura tradicional em

Moçambique. O que significa?

Sr. Joaquim: Bem, sobre a cultura tradicional é aquilo que os nossos antepassados viviam e

também pela tradição havia também os valores que mais apreciados na cultura tradicional.

Pe. Paulo: Mas quais seriam esses valores que estariam presentes na cultura tradicional?

Sr. Joaquim: Bem, aí eu vou ter que mencionar alguns valores mais apreciados na cultura

como tal. Como princípio seria a família, a religiosidade, o respeito, os tabus, a solidariedade,

a simplicidade. Tá aí é mais ou menos isso que na tradição é um valor mais apreciado.

Pe. Paulo: Mas você disse que receberam estes valores dos antepassados. O que é exatamente

o antepassado na cultura tradicional?

Sr. Joaquim: Na cultura tradicional o antepassado é todo aquele homem que teve uma vida

digna neste mundo.

Pe. Paulo: Então significa que um antepassado significa já era alguém que viveu aqui e já

faleceu. Então era conhecido como antepassado?

Sr. Joaquim: Portanto, é exatamente isso. Já está no mundo dos mortos, e os que ficam no

mundo dos vivos, intercedem também por essa pessoa.

Pe. Paulo: Passam a admirá-lo pela vida que teve aqui?

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Sr. Joaquim: Sim, isto consoante o respeito com a sua vida, que fosse uma vida legal,

portanto é a partir daí que essa pessoa era chamada de antepassado.

Pe. Paulo: Agora esses valores tradicionais eles valem é para cada tribo, é pra cada região, ou

esses valores são assim para todo Moçambique?

Sr. Joaquim: Os valores exatamente eram abrangentes. Então assim quando se fala do

respeito é porque é também no sul como no norte, e assim, toda a família se estreitava. Assim

como também na parte da religião, como dizia, também não havia nenhum povo que tivesse a

própria religião, embora pudesse ser um pouco diferente na maneira de adoração, das

cerimônias, mas tudo tem a religião por lá.

Pe. Paulo: E como a Igreja vê esses valores da outra religião tradicional ou da cultura

tradicional aqui em Moçambique?

Sr. Joaquim: Bem, eu posso dizer que a Igreja neste momento já iniciou esse trabalho, digo

isso quando falam de inculturação, Segundo o Vaticano II, pois alguns valores na Igreja e

assim é um trabalho que se está sendo feito já. Por exemplo, antigamente ninguém podia tocar

um batuque na igreja, assim como também a maneira de rezar, era diferente, por exemplo

ninguém podia estar a dançar. Agora estamos a ver na igreja as crianças a dançar, num

momento de alegria. São coisas que estão sendo introduzidas poucos ao poucos, que não é

fácil. Estamos tendo dificuldade com os antigos cristãos que é tão difícil de assimilarem esse

trabalho assim de imediato. Portanto, como tal a Igreja Romana como um passo de camaleão,

por isso e tal, é mais difícil para introduzir as coisas assim de um momento para outro. Mas eu

sei de antemão que a Igreja devia de ter sentado com algumas pessoas de mais capacitadas,

com mais experiência e começarem já a fazer esse tipo de trabalho, como já iniciamos aqui no

Centro Pastoral de Nazaré.

Pe. Paulo: Mas como é que se faz com aqueles valores, que são valores da cultura, são

práticas da cultura, mas que não estão de acordo, eu não diria com o evangelho, mas não estão

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de acordo com a questão da Igreja como tal, da legislação. Como, por exemplo o caso da

poligamia, para algumas sociedades a poligamia chega a ser um valor que é ainda praticado e

tal, mas para a Igreja já não é um valor, já está contra. Como é que fica essa questão? É

complicado isso? A Igreja não fala nada? Como se faz?

Sr. Joaquim: A Igreja sempre tem falado, como agora com Sínodo, com esse avanço que

temos tido agora com o Sínodo, sempre se fala mesmo nas comunidades, mesmo a nível aqui

do centro. Só que antigamente, de certeza, na tradição era um grande valor, porque a uma

pessoa a ser chamado de polígamo, não significava que era um abuso na família. Era um valor

digno, era um valor pretendido, ninguém podia levar a outra mulher, sem nenhum

consentimento da primeira mulher, mesmo que fosse a segunda, como a terceira ou a quarta,

mas sempre teria que ter essa particularidade do consentimento das primeiras mulheres, e por

isso que na tradição isso era um valor. É fato que na Igreja já ocorreu outro, como a Igreja, ou

como a bíblia diz que sempre pode ser um homem e uma mulher, essas duas pessoas. É uma

dificuldade para Igreja essa tese.

Pe. Paulo: Mesma coisa do outro lado quando se vê aqui algumas dificuldades de algumas

famílias a tradição de aceitar, por exemplo, o caso dos sacerdotes que não se casam. Porque o

matrimônio, o casamento também é um grande valor dentro da cultura tradicional.

Sr. Joaquim: Sim, é por isso um também não mencionei quando estava a falar sobre a

apreciação de alguns valores na tradição. Porque de certeza se pergunta muito por que os

padres não casam. Porque para nós os africanos, a grande riqueza é ter filhos. Querem

herança, que fique alguma coisa. Eu posso dar meu exemplo, quando eu estive para ir ao

seminário, com um padre a apoiar a minha vocação, nos anos de 67. Meu pai disse: “Isto não

dá, não, não, eu quero herança! Sobrinhos, netos!” Portanto, perdi, mas mesmo assim eu não

esqueci, hoje sou catequista formado, através disso.

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Pe. Paulo: Bom, a esses valores que para a cultura são muito importantes, até mesmo dentro

do evangelho, esses valores encontram aí uma presença, mas a história da Igreja, a

organização da Igreja como tal esses valores não se encaixam.

Sr. Joaquim: Até agora sim, é a grande luta que estamos a ter dentro da nossa Igreja, até

porque num caso das catequistas. Para um catequista falar da catequese, falar de Deus, ou de

Cristo depende mais de saber também a sua raiz, a sua origem, a ver que identifique a própria

pessoa. Isso é que é importante para transmitir com aquela fluência o ensinamento. O que não

acontece com a Igreja aqui hoje. Porque a pessoa é batizada, é crismada ou às vezes, até

recebe o sacramento do matrimônio, mas aquela pessoa não está formada humanamente. Não

está preparada, não tem nenhuma formação. E por isso dentro da nossa Igreja estamos a

encarar essa grande dificuldade e não temos tido saída. Devia haver no nível de Diocese, dos

bispos, sentarem e ver como enfrentar esse problema de formação humana.

Pe. Paulo: Aqui na diocese da Beira, já se caminhou muito na questão da formação das

comunidades, principalmente depois da I Assembléia de Pastoral, mesmo durante o tempo da

guerra, e agora também depois do tempo da guerra a Igreja está voltada a ter uma vivência

mais ativa, então nós podemos dizer que essa Igreja aqui da Beira já é uma Igreja madura,

forte, adulta ou o que é que falta ainda para essa Igreja caminhar com os próprios pés aí?

Sr. Joaquim: Eu digo de certeza essa Diocese da Beira está muito avançada, desde da

primeira reunião feita em 1977, quando pela primeira vez, a Igreja falou sobre as

comunidades. E antes se falou das pequenas comunidades domésticas que se partia da família,

da casa. Portanto muitas coisas estão a avançar, mas como dizia, quanto a formação, mesmo

humana, essa parte devia ser uma parte muito importante. Eu costumo frisar muitas vezes

mesmo isso nos encontros, porque, tempo esse que antigamente não havia ninguém que fosse

a escola, ou a igreja, antes que não tomasse a formação em casa, o que hoje não acontece.

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Pe. Paulo: Por que essa formação para ser introduzida na cultura local, na cultura tradicional,

não é algo que vai se aprender de maneira formal na escola, é algo que tem de ser dado pela

família como antigamente havia todos os ritos de iniciação de passagem. Isso hoje também

está muito perdido aqui nessa cidade.

Sr. Joaquim: Isso já se perdeu. Por isso costumo dizer que depois da Proclamação da

Independência, nós os moçambicanos é que perdemos nosso tesouro, o enterramos a nossa

cultura assim como os nossos frutos ficaram totalmente perdidos. E é por isso, aqui graças a

alguns padres, mas esquecemos a base, que é a base essencial, se parte da família, eu se falei

da escola é que na escola também havia moral, então aquilo também ajudava as crianças.

Apanhava a moral em casa, apanhava moral na escola, e na igreja e as coisas se completavam.

Então a criança crescia com essa sabedoria e ajudava muito às crianças. Hoje em dia está

perdido.

Pe. Paulo: É, mas como o senhor disse, muitas outras coisas que eu tenho conversado, essa

coisa, isto é, veio junto com a Independência. Moçambique se tornou independente do

colonialismo do governo de Portugal, mas com essa independência, várias coisas que era

importante para o povo, parece que, no início, o modelo que se implantou aqui de organização

tentou jogar fora toda essa tradição como algo que não servia, e hoje a sociedade está a ver

como isso faz falta.

Sr. Joaquim: Sim, por isso eu digo geralmente as pessoas costumam aprender através dos

erros. Então, muita gente agora já está a abrir os olhos, que a final das contas, aquilo que

fizemos já não conseguimos fazer voltar. Portanto é a crise que estamos a nos deparar hoje.

Certeza, não digo que tudo é mal ou foi mal, sempre se aprende dessa maneira, mas que a

coisa deveríamos a ver agora de certeza. Porque não digo: a Independência foi mal; mas é que

também deu-nos uma visão de muitas coisas boas. Primeiro se falava que a modernidade era

boa, mas depois se vê a modernidade de uma outra maneira, diferente torna-se má

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modernidade. Isso de passou depois da Independência porque não foram capazes de ver que

aquilo que se vivia e aquilo que a pessoa é. E por isso agora estamos a atravessar uma crise

que depende mais de nós mesmos, os moçambicanos a viver isso. Só assim podemos sair

dessa situação. O que não é fácil. Então requer um esforço mesmo.

Pe. Paulo: Está a se completar quantos anos da Independência? Trinta anos?

Sr. Joaquim: É, estamos já há trinta anos.

Pe. Paulo: Quanto tempo vai ser mais preciso para que se construa uma nova identidade?

Juntando por exemplo àquilo que se tinha antes, que se perdeu um pouco, e esses valores

modernos que têm entrado na sociedade que é quase impossível de negar.

Sr. Joaquim: Eu geralmente sei que a modernidade não pode voltar para trás sempre vai pra

frente, porque o homem sempre tem sonhos de futuro. Mas mesmo assim não podemos ficar

de mãos cruzadas. Temos que fazer algo. Agora dizer quando, depende mais também das

pessoas que se pode entregar para o tal trabalho digo isso no sentido de que a Igreja deve

fazer muito embora que é difícil, mas segundo iniciamos por dizer que devia haver uma

comissão, com pessoas qualificadas ou preparadas para dar serviço e partindo das

comunidades.

Pe. Paulo: Uma formação para os valores tradicionais, para recuperar esses valores

tradicionais. A Igreja tem de que forjar, tem que tirar das próprias comunidades, não vai ser

alguém de fora, ou padres, ou religiosos que vão chegar aí e fazer recuperar esses valores? Aí

tem que ser a própria comunidade?

Sr. Joaquim: Digo a própria comunidade porque se for uma pessoa de fora não conhece a

tradição daqui, não conhece a cultura daqui, não conhece os costumes daqui, portanto não vai

ser fácil. Tem de ser as pessoas que conhecem. Por isso agora vamos perdendo os mais

velhos, porque cada vez estão a morrer. E uma vez que aquele velho pare, então estamos a

perder aquele povo, estamos a perder aquele tesouro, estamos a perder aqueles todos. Então

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seria primordial, antes de tudo reunimos esses anciãos que conhecem que têm experiência e

que também possam dar alguma coisa aos recém chegados padres e assim então os padres

também juntando um pouco da Bíblia, da modernidade então, caminhavam, assim já

possibilitava o trabalho dessa atividade.

Pe. Paulo: Mas achas, que essas comunidades estão de acordo com isso, estão preparadas,

querem esse tipo de trabalho ou as comunidades estão ainda num modelo de Igreja assim,

mais do tempo colonial, em que virão os padres, os brancos, de fora a trazer coisas, então

como que é essas duas igrejas ainda estão presentes aí?

Sr. Joaquim: Dentro do coração de cada cristão, os que os cristãos mais têm é o medo. Digo

o medo no sentido de que antigamente tudo era pecado, mesmo a invocação do seu

antepassado era pecado. Aqueles que estavam a falar de tradição, significava que estavam a

pecar. Estavam falando daquilo que os padres proibiam. E então os cristãos agora ficam com

medo. Devia de então haver pessoas a explicar essas coisas. A partir do primeiro momento

que a Igreja reconheceu a importância desses valores então devemos ter pessoas para guiar

esse povo.

Pe. Paulo: Quer dizer que há essa possibilidade de juntar mensagem do evangelho e tradição?

Sr. Joaquim: É isso que está a faltar, e precisa de pessoas qualificadas para tal. Então uma

vez que vamos obter essa gente, vamos ter de também aqui fazer uma formação geral. A nível

global. Então só assim que podemos superar essa parte do medo. E tirar o cristão desse medo,

e porque até agora ainda não estavam a ver essa maneira de unir-se a cultura com Jesus

Cristo. Só até aí, quando a pessoa perceber isso então está livre. Por isso agora todo cristão

está amarrado.

Pe. Paulo: Os novos sacerdotes estão sendo formados para essa nova Igreja? Eles também

estão sendo formados para fazer essa união entre cultura tradicional e o evangelho?

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Sr. Joaquim: Eu não quero falar mal dos meus irmãos, só o que posso dizer é o seguinte: que

geralmente os nossos padres diocesanos quando eles saem de suas casas para o seminário

também não tiveram essa formação enquanto que antigamente como era um trabalho

constante da família, depois dos jantares estavam na grande escola da areia onde se estudava

através da convivência, dos medos, das histórias, das adivinhas, portanto, então acontece que

esse seminarista sai da casa, não apanhou, quer dizer, não teve essa sorte de aprender essas

coisas todas, vai para o seminário e quando lá chegar no seminário, embora estudem

antropologia, mas nem tudo apanha lá. No livro não se apanha nada. Portanto ele não tem

aquela vida, da origem das raízes. Não se identificou com ela. Então quando sai do seminário,

sai na mesma. Eu iniciei a dizer que não queria falar mal dos meus irmãos, porque como é

uma Igreja que está a começar a iniciar a Igreja local, portanto, eu acho que futuramente, vão

ter de encaixar segundo também o desejo dele, também teriam de ter um tempo de investigar

os mais velhos, ter também um ponto de partida, como por exemplo ter um finalista, o

Figueiredo, e a última vez que estivemos a dar o curso de boas maneiras, ele esteve lá, a partir

do primeiro dia até o último dia, pois ele estava interessado. Portanto para o padre estar bem

nesse programa ele tem de se abrir, quer dizer, entregar-se totalmente ao interesse, ao desejo e

só a partir daí, se pode considerar já padre consagrado, e estar junto de nossos padres

diocesanos.

Pe. Paulo: E nas comunidades, essa formação a cultura tradicional, há uma boa aceitação da

parte dos jovens? Esses retiros que vocês fazem, esses encontros, os jovens percebem isso já

como um valor que eles também devem adquirir na vida ou há uma resistência quanto a isso?

Sr. Joaquim: Recebem com todo gosto, com toda satisfação, digo isso porque muitos dos

jovens depois dos cursos e retiros que temos feito aqui em Nazaré, há muitos jovens que às

vezes têm vindo ainda a aprofundar mais pessoalmente, ou as vezes em grupo, esta questão

dos valores tradicionais e os valores atuais da sociedade.

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Pe. Paulo: Então toda essa tarefa, não de recuperar, mas de atualizar os valores da cultura

tradicional seria como quase que uma primeira tarefa dessa Igreja?

Sr. Joaquim: Dessa Igreja em primeiro lugar. Digo isso porque há uma grande necessidade

mesmo, um grande interesse dos jovens. Eu trabalhei com jovem há mais de vinte anos, desde

quando estava a trabalhar como catequista na paróquia, caminhava até no prédio, mas sempre,

geralmente, lidei com os jovens. Por isso eu vejo muita tendência, tipo hoje, eu tive aí, atrás

da porta a chorar, porque muitas meninas, muitos rapazes, às vezes no final do curso ou da

sessão, vêm falar comigo pessoalmente. Há meninas hoje que costumam chorar dizendo: se

soubesse, se disto soubesse... É porque um dos rapazes lhe enganou e tirou-lhe a virgindade

inconscientemente. E então quando falamos que antigamente a virgindade era um valor na

tradição, então finalmente começaram a mudar.

Pe. Paulo: Porque havia o momento exato de fazer a passagem para outra etapa.

Sr. Joaquim: Aí está. Porque o homem tinha as etapas de vida marcadas a partir do

nascimento, a adolescência, a puberdade, o namoro, o casamento, a morte e até os sacrifícios.

Pe. Paulo: Talvez seja esse o momento oportuno da Igreja através da evangelização para

poder continuar esse trabalho de formação?.

Sr. Joaquim: Portanto a minha idéia seira essa, através dos encontros que as zonas têm tido

então deviam também focar muito nessa parte. Como uma parte muito importante partindo da

cidade, da zona rural. Eu lembro dos anos de 98, em conversa com o primeiro diretor, que já

está morto, falamos muito disso, que até essa parte de iniciação devia ter até a nível

paroquiais. Que em cada paróquia tinha de haver o mestre, o formador, dando alguns

padrinhos e madrinhas por paróquias e então acho que, como as paróquias já estão mais perto

das missões, seria um trabalho mais apropriado porque abrangia toda a diocese.

Pe. Paulo: Seria um modo de atingir não só os que podem aqui chegar?

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Sr. Joaquim: Por isso já começamos, desde o ano passado a termos uma saída. Já saímos,

fomos dar cursos. E também esses cursos têm o seu valor, porque ali também falavam muito

de tradição, até o mais tempo que se fala nesses cursos de boas maneiras, é a tradição, a

modernidade e a bíblia. Então para um menino, criança, discernir essas coisas para apanhar

uma única coisa, está a ajudar muita gente. Até dessa vez que estivemos lá, mesmo as mamães

da zona vieram assistir, e estavam contentes porque saborearam aquilo que elas vivem,

aqueles pais e mães.

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ANEXOS

Anexo I

COMUNICADO GERAL DOS SACERDOTES, RELIGIOSOS E

RELIGIOSAS REUNIDOS EM GUIUA _ INHAMBANE

“Vós tendes o dever e o direito de precedência na obra da construção da Igreja Nova em

Moçambique” – Cardeal Mazzoni, Enviado especial do Santo Padre Paulo VI, aos

Missionários Negros Moçambicanos.

Face aos graves problemas criados pela atual situação sócio-político em Moçambique;

sentindo-nos moçambicanos de nascimento, mas infelizmente, não de mentalidade; e, outrora,

condicionado pelo regime político; descobrindo que na nossa atuação pastoral nem sempre

estivemos à altura de corresponder às aspirações e esperanças que a Santa Igreja deposita no

clero local; não querendo viver mais alheios aos problemas reais da nossa terra e desejando

despirmo-nos dos velhos esquemas mentais de tipo ocidental que nos impediam de

compreender cabalmente o nosso povo; e apesar de pressentir as vozes discordantes, num

gesto de coragem, nós _ sacerdotes,religiosos e religiosas negros moçambicanos_ sentimos o

dever de consciência de nos encontrarmos para, em união de forças, readquirir a nossa

verdadeira identidade e lançarmo-nos em cheio à tarefa de africanização do Cristianismo, aqui

e hoje.

Refletimos sobre a “Responsabilidade Coletiva do Padre e Religioso Moçambicano no

campo Pastoral em Moçambique Independente”, “Complexos de Padre e Religiosos

Moçambicanos na Ação Pastoral”, e em seguida, ouvimos a “Comunicação” dos dois

Sacerdotes nossos enviados a Dar-Es-Salaam, Tanzânia.

Finalmente, repensamos os métodos e planos de atuação e ousamos tomar uma

posição definida em ordem a uma pastoral de encarnação.

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1-Pedimos desculpas ao Povo Moçambicano, principalmente aos pobres, os “sem-voz”, pelo

silêncio e covardia que tristemente contribuíram para a desfiguração e atraso no processo de

africanização da Igreja em Moçambique.

2-Depois de termos analisado a nossa figura na Igreja Velha, decidimos despojar-nos

de certas heranças ocidentais que nos afastaram do Povo, para, sem complexos de medo, de

inferioridade e de incapacidade, nos comprometermos seriamente na construção de uma Igreja

autenticamente africana. Tentamos descobrir o contributivo que a Igreja, em Moçambique

livre, poderá e deverá prestar nas atividades sociais, para a formação integral do homem

moçambicano.

3-Analisamos, demoradamente, a situação dos Seminários e das casas de formação

religiosa e constamos que a sua estrutura e funcionamento estão ultrapassados e que

necessitam, hoje, de uma profunda renovação e adaptação.

Para uma séria solução deste problema, sugerimos aos Bispos e Superiores Religiosos

que possibilitem a certos Sacerdotes e Religiosos Negros a continuação de estudos em Cursos

superiores de Especialização, dando preferência às Universidades Africanas.

Sugerimos também aos Bispos que, nesta hora de crise de vocação e tendo em conta o

processo de africanização, convidem, sem medo, a vir para Moçambique, alguns Missionários

dos países vizinhos e independentes.

Pela mesma causa, se apresse a hora de admissão ao Diaconato de Leigos mais

conscientes e mais responsáveis que, livremente, aceitem uma colaboração mais direta na

edificação desta Igreja.

4-Para que o rosto da Igreja em Moçambique apareça, de fato, africano e reconhecendo o

direito de precedência das Religiosas Negras na africanização desta Igreja (Cardeal Mazzoni),

apelamos às congregações Religiosas para que comecem, desde já, a confiar a essas Irmãs

Nativas, cargos de responsabilidade, na linha de São João Batista (Jo. 3,30).

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5-Atentos à situação política atual, tentamos descobrir e analisar as suas possíveis implicações

na pastoral. Sem nos comprometermos com a política (G.S.76), achamos nosso dever

informar e formar o povo sobre a sua responsabilidade na construção de Moçambique Livre,

esclarecê-lo sem ambigüidades e iluminar os acontecimentos à luz de Cristo Libertador. Para

isso, decidimos organizar reuniões de reflexão, aproveitando todos os contatos com o Povo.

6-Analisamos as nossas relações com os Missionários portugueses e não portugueses.

Exprimimos a nossa gratidão por aquilo que fizeram de válido em prol desta Igreja,

cumprindo, aliás, o seu dever missionário. Sentimos, ainda, a importância e urgência da sua

presença na nossa terra. Pedimos a todos uma sincera conversão de atitudes, porventura, ainda

eivadas de colonialismo e de neocolonialismo.

Com o esforço e boa vontade de todos, esperamos que, em breve, surja

e cresça em Moçambique uma Igreja-Sinal de Salvação para este POVO.

Guiua, Inhambane, 26/27 de Agosto de 1974.

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Anexo IIENCONTRO COM O CARDEAL MAZZONI, ENVIADO ESPECIAL DO SANTO

PADRE PAPA PAULO VI

INHAMBANE, 26-8-1974O Clero e Religiosos Negros de Moçambique, reunidos hoje am assembléia Magna;

_Cientes da situação caótica em que a Igreja em Moçambique se vem arrastando

durante quinhentos anos de colonialismo religioso português;

_Considerando que são eles os legítimos representantes do povo cristão moçambicano;

_ Sabendo que são eles os mais responsáveis para dar uma resposta atual aos

problemas da Igreja em Moçambique, condizendo com os momentos históricos que

atravessamos:

_ E interpelados, em consciência, pelos sinais dos tempos a dar uma resposta válida e

sem subterfúgios à sua vocação;

_Declararam ao Sr. Cardeal os pontos a seguir, para uma solução superior e

satisfatória, evitando qualquer burocracia e diplomacia inúteis que, pela sua morosidade,

só contribuem para aniquilar todas as tentativas tendentes a construí uma verdadeira Igreja

em Moçambique, hora em que ainda se pode salvar o que há de bom, salvar e aproveitar.

Posto isto, pedimos:

1- Que sejam aconselhados a pedir a sua demissão imediata aqueles Bispos

comprometidos com o Governo anterior ao 25 de Abril e que hoje não oferecem

garantias porá uma honesta africanização da Igreja em Moçambique

2- Nomeação em breve dos primeiros Bispos negros moçambicanos, rejeitando por

agora, qualquer hipótese de Bispos coadjutores ou auxiliares.

3- Que seja ouvida, na nomeação dos Bispos e na tomada de decisões mais importantes

para a Igreja de Moçambique, a maioria do clero e religiosos negros e alguns Leigos

mais ligados à causa da Igreja pelas responsabilidades assumidas.

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4- Que a Direção dos Seminários e conventos seja formada por membros capazes de

fazer encarnar Cristo hoje, aqui e neste povo.

5- Contando com a graça operante do Divino Espírito Santo, assina todo o clero e

religiosos negros moçambicanos reunidos,

NA ASSEMBLÉIA MAGNA, EM INHAMBANE.

Anexo IIIAssembléia Nacional de Pastoral (Moçambique)

Beira, 8-13 de Setembro de 1977

CONCLUSÕESIntrodução

Bispos, Presbíteros, Religiosos e Leigos da Igreja em Moçambique, reunidos em

Assembléia Nacional, na cidade da Beira, de 8 a 13 de setembro 1977, para procurar

pistas comuns de orientação pastoral da comunidade cristã e seus ministérios, a partir da

experiência vivida e partilhada, interpelados pela força do Espírito e pelas rápidas e

profundas mudanças em curso no nosso País, chegaram às seguintes conclusões:

1 – COMUNIDADE.

1. Saídos duma Igreja triunfalista, demasiado ligada aos poderes constituídos, para

uma Igreja despojada e pobre separada do Estado, liberta de falsas seguranças,

preocupada com a sua renovação interna, nos sentimos a caminho duma Igreja de

base e comunhão, uma Igreja família, de serviços recíprocos, livremente

oferecidos, uma Igreja no coração do povo que a faz sua, inserida nas realidades

humanas e fermento da sociedade.

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2. Tal fato leva-nos a dar novo impulso ao trabalho de suscitar, animar e incrementar

a vida de pequenas comunidades para que essa vida cresça cada vez mais, de modo

a favorecer a iniciativa e responsabilidade de todo o povo de Deus na edificação da

Igreja Local.

3. O caminho que fomos chamados a percorrer compromete-nos na construção de

comunidades em que se manifeste:

• a comum dignidade na diversidade de serviços (Cf. LG.32)

• o empenhamento e co-responsabilidade de todos os membros;

• a visão da fé, o otimismo da esperança e o dinamismo da caridade;

• a atenção ao Espírito e a revisão constante da vida à luz da Palavra de

Deus;

• a Eucaristia, como centro e fonte de vida da comunidade;

• a encarnação nos valores reais do povo

• a abertura a todos os homens, sem discriminação;

• a abertura às realidades temporais.

4. No esforço a empreender para alcançar estas metas é fundamental desenvolver

uma comunhão eclesial concreta de comunidades, no nível diocesano e nacional e

da Igreja Universal.

Esta comunhão deve manifestar-se na partilha dos bens e experiências, na abertura

às necessidades das outras comunidades e dioceses, e na ajuda mútua,

nomeadamente quanto a pessoal missionário, cursos de formação de responsáveis,

estudo e organização da liturgia local e a elaboração de material catequético.

5. Neste sentido, reveste-se de particular interesse o intercâmbio de notícias sobre

quanto ocorre nas comunidades e dioceses.

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Para isso, requer-se maior difusão dos diversos órgãos de informação existentes,

no nível de comunidades e dioceses, bem como a criação de um órgão a nível

nacional.

6. Certos de que o Espírito fala à Igreja através das situações históricas em que nos

encontramos, merece-nos particular atenção o desenvolvimento que no nosso País

alcançaram já as relações ecumênicas com as outras Igrejas cristãs.

Apesar das dificuldades a superar, cremos que a unidade desejada por Cristo é um

imperativo lançado a toda a consciência cristã. Por isso, propomo-nos seguir no

esforço ecumênico iniciado.

II – MINISTÉRIOS7. As forças do mundo atual, que rejeitam a passividade e se caracterizam pela co-

responsabilidade, participação e iniciativa, são um convite do Espírito à Igreja que

é chamada a entrar neste movimento.

O crescimento das comunidades na espontaneidade e no discernimento do que lhes

é necessário, leva-as à descoberta do valor dos ministérios, ajudando-as a

compreender a novidade do Capítulo 12 da 1a. Carta aos Coríntios e a sua

importância na edificação da comunidade cristã.

Assim nos encaminhamos para uma Igreja ministerial, cujo fundamento é Cristo,

Enviado e Servo, onde cada membro assume a própria responsabilidade, numa

comunidade de servos.

8. Uma tal comunidade suscitará os ministérios indispensáveis à sua vida, tais como

os relacionados com:

- a animação da comunidade;

- a celebração da Palavra;

- a evangelização (Catecumenato, Catequese, preparação aos Sacramentos);

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- o serviços da caridade;

- a celebração da Eucaristia e dos demais Sacramentos;

9. Na atual fase de crescimento das comunidades, é oportuno que se dêem os passos

necessários para que se possam confiar a Animadores leigos capazes os ministérios

para a distribuição da Eucaristia, a celebração solene do Batismo, da Santa Unção

e o de testemunhar oficialmente o Matrimonio.

10. O caminho a seguir para a confirmação dos ministérios dependerá da experiência

de cada comunidade e da natureza de cada ministério.

11. O crescimento normal dos ministérios implica que cada comunidade promova

vocações sacerdotais no seu próprio meio.

III – FORMAÇÃO DE RESPONSÁVEIS12. A preparação de responsáveis é fundamental para a vida das comunidades, o que

nos leva a emprenhar-nos, seriamente, na sua formação.

13. Ela deverá ser gradual e permanente, de forma que o seu principal objeto não seja

o ministrar vastos conhecimentos, como maior inserção no seio da comunidade a

que pertencem e à qual devem servir. Nesta perspectiva, as comunidades, as

comunidades são também formadoras dos seus responsáveis.

14. A formação dever incidir sobre: Bíblia, Liturgia, Organização da Comunidade,

Formação Humana, Atualização Política e Conhecimento da Cultura Africana.

15. Propõe-se que este trabalho se faça no nível de cada uma das regiões (Norte,

Centro e Sul) e inclua na equipe de formadores elementos de cada uma das

Dioceses. Procure-se constituir uma equipe móvel integrada de padres, religiosas e

leigos.

16. Quanto à programação, é importante que haja uma planificação conjunta, a nível

nacional, no que diz respeito a temas, conteúdo e métodos.

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17. Considera-se oportuno que se utilizem e valorizem os centros de formação

existentes.

IV – A COMUNIDADE NO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO18. A independência e o processo da Revolução marca profundamente a nossa maneira

de viver e também o modo de ser cristão e exprimir a fé.

19. Convencidos de que o processo revolucionário em curso no País, inclui valores

positivos, de raiz evangélica, os cristãos, como cidadãos de pleno direito, devem

empenhar-se nas diversas tarefas de reconstrução nacional (Cf. GS11) tais como a

luta contra a fome, a doença, a ignorância, a miséria, etc., assumindo a

responsabilidade que lhes é própria, na criação duma sociedade sem desigualdades.

20. A descoberta de viver e testemunhar a fé, na atual situação mostra que o

sobrenatural e a abertura ao Absoluto não só não alienam a pessoa como

contribuem para o seu desenvolvimento integral.

21. Ao mesmo tempo, esta atitude cria problemas em cuja solução em cuja solução

toda a comunidade deve participar.

- Todo o cristão, a vários níveis, deve manter relações de diálogo com as

autoridades, num clima de confiança.

- A toda a comunidade compete acompanhar os seus irmãos que se

empenham na transformação da sociedade, sem limitar o seu espaço de

liberdade, de modo que cada um possa fazer a sua opção, de acordo com a

sua consciência.

- Os Bispos e Presbitérios orientam a comunidade com a sua palavra

oportuna, assumindo, quando necessário, a sua voz, para a fazer ouvir, em

defesa do Homem e da Justiça.

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- O cristão – a família – terá que aprofundar constantemente a sua fé,

mantendo contato permanente com a comunidade e esclarecendo-se

politicamente, lendo e participando nas reuniões.

22. O fato de o Estado ter chamado a si toda a responsabilidade do ensino, não exime

as comunidades e nem as famílias, de se preocuparem com a formação humana e

cristã dos seus filhos.

Os pais cristãos têm o grave dever e direto de educar na fé da Igreja os seus filhos

(Declaração sobre a Ed. C., nº 6, §1).

A educação que lhes é dada nos centros escolares, embora tenha aspectos positivos,

como o desenvolvimento da iniciativa e a preparação para a vida coletiva, de modo

nenhum se pode julgar uma formação completa, por excluir totalmente a referência ao

sobrenatural, cortar, na prática, a liberdade religiosa e prescindir do direito dos pais na

educação dos filhos (Cf. Dec. Univ. dos direitos do Homem, art. 26,§3).

23. As aldeias Comunais vão provocar o aparecimento de um tipo muito original de

comunidade cristã, cuja vida e orientação dependerão, fundamentalmente, de si

mesma.

Recomenda-se a quantos já lá vivem que cultivem a sua fé, pela leitura da Palavra de

Deus e oração em família, e quanto possível com a comunidade. Recorram à leitura,

sozinhos ou em grupo, <de tal modo que estejam sempre prontos a responder a todo

aquele que os interrogar sobre o motivo da sua esperança> (1ª Ped., 3, 15).

Não hesitem os cristão em reclamar o direito que lhes assiste da liberdade da prática

religiosa.

24. Debruçando-nos sobre a situação de quantos se encontram nas zonas libertadas, tão

provados pelos longos anos de guerra, e pelas privações a que estão sujeitos,

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sentimo-nos solidários com o seu sofrimento e as suas justas aspirações a melhores

condições de vida.

Aos cristãos dessas zonas, impedidos da liberdade de viver e testemunhar a sua fé,

queremos expressar a nossa esperança de que a sua dor se venha a converter em fonte

de energia na procura de novos modos de se exprimir a fé cristã. A sua experiência

constitui para todos nas um incentivo a aprofundar o alcance da comunhão eclesial de

modo que, formando um só corpo, a Igreja se manifeste, em todas as circunstâncias,

como sinal e fermento de salvação para todos os homens.

25. Os Centros de Reeducação e as cadeias constituem um apelo lançado a toda a

consciência humana.

Como Cristãos não podendo alhear-nos de quanto aí se passa e afeta tantos dos nossos

irmãos, elevando a nossa voz para que se procure encontrar os caminhos que

conduzem à justiça e à defesa dos direitos do homem.

A exigência do amor cristão leva-nos a devotar particular solicitude não só pelos que

lá se encontram, como também pelos seus familiares partilhando o seu sofrimento e

acorrendo as necessidades.

Beira, 13 de setembro de 1977.

Jaime, Bispo da Beira ePresidente da Conferencia Episcopal de Moçambique

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Anexo IV

Fotos e mapas.

Foto 1 Crianças de Marromeu

Foto 2 Lideres de comunidade

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Foto 3 Portal da Antiga Vila de Sena

Foto 4 e 5 Presente e futuro do povo Sena

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Foto 6 e 7 Água e terra, sempre presentes na vida do povo Sena

Foto 8 Homem e Mulher: convidados à igualdade e dignidade de vida

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Foto 9 Crianças de Luka Makuere

Foto 10 Comunidade Salone Ermoke

Foto 11 A juventude celebra a vida

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Foto 12 Casamento cristão

Foto 13 A juventude Sena

Foto 14 Família alargada Sena

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Mapa da diocese da Beira – 1985

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Mapa da República de Moçambique

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E BIBLIOGRÁFICA

I - Fontes Primárias

ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Resenha Histórica. Beira, 1988.

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CONFERÊNCIA EPISCOPAL DE MOÇAMBIQUE. A Igreja num MoçambiqueIndependente. Lourenço Marques, 1974.

___. Viver a fé no Moçambique hoje. Maputo, 1976.

___. Conclusões da I Assembléia Nacional de Pastoral. Beira, 1977.

___. Comunicado dos Bispos às Comunidades Cristãs. Maputo, maio de 1992.

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___. Presença evangelizadora da Igreja hoje em Moçambique. III Assembléia Nacional dePastoral – Instrumento de trabalho. Maputo. 2004.

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SECRETARIADO GERAL DO SÍNODO – ARQUIDIOCESE DA BEIRA. Atas daComissão Preparatória do Sínodo – O dia-a-dia do Sínodo. Beira: Documento do Sínodo,2004.___ Igreja que vive. Documento de trabalho I. Beira, 2004.___Igreja que Evangeliza. Documento de Trabalho II. Beira, 2004.___Igreja que Celebra. Documento de Trabalho III. Beira, 2004.___Igreja que Serve. Documento de Trabalho IV. Beira, 2004.

II - Documentos do Magistério

COMPÊNDIO DO VATICANO II. Constituição Dogmática Lumen Gentium. 29 ed.Petrópolis: Vozes, 2000.

___.Constituição Pastoral Gaudium et Spes. 29 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

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JOÃO PAULO II. Carta encíclica: RedemptorisMissio. In Encíclicas de João Paulo II. SãoPaulo: Paulus, 1997.

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___. A catequese Hoje – Exortação apostólica Catechesi Tradendae. 12ª ed. São Paulo:Paulinas, 2000.PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi. Documentos de Paulo VI. São Paulo:Paulus, 1997.___. Encíclica Ecclesiam Suam. Documentos de Paulo VI. São Paulo: Paulus, 1997.IMBISA. Inculturação: A fé que cria raízes nas culturas africanas. Documento de estudo.Maputo: Paulistas, 1994.CELAM. Conclusões da III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. 7ª ed. SãoPaulo: Paulinas, 1986.

III - Livros

ALVES, A. Dicionário e gramática da língua Sena.Beira: Tipografia da Escola de Artes eofícios, 1957.

ALTUNA, R. R. A. Cultura Tradicional Bantu. Luanda: Secretariado Arquidiocesano dePastoral, 1985.

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AMORIM, G. África, essa mãe quase desconhecida. Recife: Horizontes, 1996.

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GLOSSÁRIO

Capulana: Tecido multicolor utilizado, principalmente pelas mulheres, para diversas

finalidades.

Inhaminga: Vila capital do Distrito de Cheringoma ao norte da Província de Sofala em

Moçambique.

Murraça: é uma pequena Vila do Distrito de Caia onde os Missionários de África (Padres

Brancos) estão presentes a serviço da Missão de Murraça.

Lóbulo: Aquilo que é oferecido pela família do noivo à família da noiva no contrato de

casamento.

Machamba: Espaço de terra utilizado pelas famílias para o cultivo de cereais e outros

alimentos.

Mapira: É o cereal sorgo.

Maputo: Cidade Capital de Moçambique

Masena: Pessoa que pertence à cultura dos Sena, no plural é Asena.

Matope: Barro ou lama.

Miúdo(a): Menino ou menina.

Naturais: Os nascidos no lugar de onde se fala.

Paragem ou paragens: Lugar onde param os transportes de passageiros e/ou qualquer lugar

sem denominação precisa.

Samora: Como é chamado o primeiro presidente de Moçambique depois da libertação do

colonialismo português. Seu nome completo é Samora Moisés Machel.

Vale do Zambeze: é a região que se estende desde a desembocadura do Rio Zambeze no

oceano Índico até Zumbo, na Província de Tete. Constitui aproximadamente 13 700 k² do

território moçambicano.

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