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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito NÍVIA MÔNICA DA SILVA OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL Belo Horizonte 2010 PDF processed with CutePDF evaluation edition www.CutePDF.com

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Graduação em Direito

NÍVIA MÔNICA DA SILVA

OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA

CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

Belo Horizonte

2010

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NÍVIA MÔNICA DA SILVA

OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA

CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Professor Doutor Álvaro Ricardo de

Souza Cruz

Belo Horizonte

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA

Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Silva, Nívia Mônica da S586ic Os impactos das relações intersistêmicas na concretização dos

direitos fundamentais no Brasil / Nívia Mônica da Silva. – Belo

Horizonte, 2010.

225 f.

Orientador: Álvaro Ricardo de Souza Cruz.

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas

Gerais, Programa de Pós-Graduação em Direito.

Bibliografia.

1. Direitos fundamentais. 2. Teoria dos sistemas. 3. Políticas públicas.

I. Cruz, Álvaro Ricardo de Souza. II. Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título.

CDU: 342.7(100)

Bibliotecária – Valéria Inês da Silva Mancini – CRB-1682

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Nívia Mônica da Silva

OS IMPACTOS JURÍDICOS DAS RELAÇÕES INTERSISTÊMICAS NA

CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais como requisito parcial

para obtenção do título de Mestre em Direito.

_______________________________________________

Álvaro Ricardo de Souza Cruz (Orientador)

_______________________________________________

Giovani Clark

______________________________________________

Marcelo da Costa Pinto Neves

Belo Horizonte, 27 de maio de 2010.

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Dedico este trabalho à Luiza,

que pouco conhece

e tudo sente,

pelas noites que adormeceu à minha espera.

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AGRADECIMENTOS

A execução deste trabalho só se tornou possível pela contribuição direta ou indireta de

muitas pessoas, às quais agradeço, com meu especial reconhecimento:

À minha mãe, pelo amor incondicional e pelo carinho em todas as horas, mesmo

naquelas em que não consegui perceber a imensurável doçura de seus gestos;

Ao meu irmão, pela amizade, pelo exemplo de lealdade e honradez e pela presença na

minha história e no meu ideário;

Ao meu pai, pelo estímulo à leitura e à busca pelo conhecimento;

Às minhas amigas, que tornaram amenos os dias difíceis e descontraídos os momentos

de tensão, especialmente, a Liliann e Mariana pelo apoio abnegado;

Aos amigos da Promotoria de Justiça da Infância e Juventude, pela confiança e por

compartilharem o desejo de contribuir para o aprimoramento da atuação institucional de um

Ministério Público que, atento à realidade social brasileira, seja cada capaz de intervir

efetivamente em prol da concretização dos direitos fundamentais;

Aos Professores Doutores Juliana Neuenschwander Magalhães, Maria Tereza Sadek,

Marcelo Neves e Rafael Lazzarotto Simioni, pela abertura ao diálogo atento e pela

disponibilidade graciosa à partilha do conhecimento.

Por fim, registro minha gratidão ao Professor Doutor Álvaro Ricardo de Souza Cruz,

orientador arguto e dedicado, pela confiança, pela paciência e por me mostrar, pouco a pouco,

que o conhecimento está sempre a se construir, pois, como pensava Wittgenstein: “As

fronteiras da minha linguagem são as fronteiras do meu universo”.

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Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios

e secretos sonhos, que os sonhos são como as pessoas,

acaso parecidos, mas nunca iguais, tão pouco rigoroso

seria dizer Vi um homem, como Sonhei com água a correr, não

chega isto para sabermos que homem era

nem que água corria,

a água que correu no sonho é

água só do sonhador,

não saberemos o que ela significa ao correr

se não soubermos que sonhador é esse,

e assim vamos do sonhador ao sonhado, do sonhado

ao sonhador, perguntando,

Um dia terão lástima de

nós as gentes do futuro por sabermos tão pouco e

tão mal.

José Saramago

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RESUMO

Esta dissertação se propõe a discutir os entraves à concretização dos direitos fundamentais,

sob a perspectiva da teoria dos sistemas, o que implica a consideração das relações que se

estabelecem entre direito, economia e política, como sistemas sociais que são. Após

contextualizar essa vertente teórico-jurídica entre as matrizes teóricas contemporâneas e

distinguir suas peculiaridades, analisa-se a temática dos direitos fundamentais sob a

perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e da teoria discursiva de Jürgen

Habermas, buscando na teoria da cidadania de Marshall um fio condutor para a proposta de

ambos os autores. A diferenciação entre o direito e a política é apresentada a partir da noção

de constituição em sentido moderno, que funciona como acoplamento estrutural entre os

referidos sistemas. Os direitos fundamentais representam o ponto de interseção entre esses

sistemas na sociedade moderna, entretanto o sistema econômico também interfere na

concretização desses direitos, uma vez que a implementação de todo e qualquer direito gera

custos. Em razão disso, a noção de política pública como ponto de interseção entre direito,

economia e política é apresentada e, em seguida, são analisados os momentos de deliberação

dessa política, assim como o papel da esfera pública para que a ordem de prioridade na

concretização dos direitos fundamentais atenda às demandas da população diretamente

interessada. Entretanto, a esfera pública que se propõe seja (re) construída deve ser apta a

representar os interesses de todos os públicos envolvidos e, especialmente, daqueles que mais

reclamam pela cidadania e, apesar disso, mantém-se distantes do debate. Em razão disso,

utilizou-se a noção de esfera pública pluralista, proposta por Marcelo

Neves a partir da releitura das teorias sistêmica e discursiva. Ao final, foi analisada a função

sistêmica dos orçamentos públicos como ponto de interseção entre a deliberação política, a

política pública, a concretização de direitos e a economia. Após breve análise histórica, são

apresentadas as fragilidades do sistema orçamentário brasileiro. Destaca-se, nesse ponto do

trabalho, a importância dos orçamentos como local de consolidação do debate político que

antecede sua formulação. Nesse sentido, a releitura da função do orçamento público poderia

contribuir para a generalização da cidadania no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE: teoria dos sistemas, direitos fundamentais, políticas públicas e

orçamento público.

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ABSTRACT

This work aims at analyzing the hindrances to the effectiveness of the fundamental rights,

within the pragmatic-system perspective based on Niklas Luhmann and Jürgen Habermas.

This legal theory is contextualized within contemporary theories and then the fundamental

rights theme and its effectiveness impediments are analyzed. The Marshall’s citizenship

theory was used as a connection between both authors. The structural couplage between law

and politics as social systems through the modern idea of Constitution is an important point in

this work and the fundamental rights are the intersection point between these systems in the

modern society. However, the economical system also intervenes in the effectiveness of the

fundamental rights because enforcing all kinds of rights means distributing resources.

According to this sense, the meaning of policy as an intersection between law, economy and

politics become important to analyse the stages of politics deliberation and its consequences

for the effectiveness of the rights that are choosen as a priority by the public sphere. The

performance of this public sphere must be able to represent the interests of all kinds of publics

that claim for enforcing the citizenship rights and to performing this work, the public sphere

must be pluralistic. Based on a social and political approach the concept of pluralistic public

sphere was developed by Marcelo Neves for the special conditions of Brazil through a new

interpretation of the systems legal theory and the deliberative theory. Finally the function of

budgetary allocations in the area of rights protection and enforcement is examined in this

work because the public policy decisions are fixed in the state budget. It´s in the budgetary

allocations that becomes possible to perceive the connection between public deliberation,

policy, fundamental rights and economy. Since the brazilian historical perspective, the

hindrances to the effectiveness of the political choices about public investments in policies are

examined. It is distinguished the significant importance of the state budget for the

enforcement of basic rights. This way it could be possible to contribute for the progressive

generalization of citizenship in Brazil.

KEY-WORDS: System theory, fundamental rights, policy and state budget.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...............................................................................................................10

2 A PROPOSTA SISTÊMICA CONTEXTUALIZADA ENTRE AS MATRIZES

DA TEORIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA ..........................................................13

2.1 Teoria geral dos sistemas sociais: a complexidade do mundo moderno ............13

2.1.1 O desenvolvimento da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann ...........................20

2.2 A diferenciação funcional do sistema jurídico.......................................................31

2.2.1 O processo evolutivo de diferenciação sistêmica do direito.................................34

2.3 Matrizes da teoria jurídica contemporânea ............................................................41

2.3.1 O normativismo analítico ..........................................................................................43

2.3.2 A matriz hermenêutica ..............................................................................................47

2.3.3 A matriz pragmático-sistêmica ................................................................................50

2.4 Positividade do direito e positivismo jurídico: duas concepções distintas ..........51

3 DISSENSOS E CONVERGÊNCIAS ENTRE AS VERTENTES TEÓRICAS

DE HABERMAS E LUHMANN...................................................................................61

3.1 A leitura da teoria dos sistemas aplicada ao direito em Jürgen Habermas ........61

3.2 O direito como sistema autopoiético para Niklas Luhmann................................65

3.2.1 A função sistêmica do direito na sociedade contemporânea .................................63

3.2.2 Fechamento operacional e abertura cognitiva: a validade do sistema jurídico ..67

3.3 Reflexividade e direito: a contribuição de Gunther Teubner ..............................79

3.3.1 Autopoiese do direito e enlace hipercíclico ............................................................ 82

3.4 As relações intersistêmicas na perspectiva jurídica... ..........................................86

3.4.1 acoplamento estrutural entre sistemas.....................................................................86

3.4.2 As interferências intersistêmicas e o direito na colisão de discursos.................88

3.4.3 Racionalidade transversal .........................................................................................90

4 CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM

SOB A PERSPECTIVA SISTÊMICO-DISCURSIVA ..............................................93

4.1 A constituição como aquisição evolutiva ..................................................................93

4.1.1 A semântica das constituições modernas ................................................................94

4.1.2 Direito, política e evolução social .............................................................................96

4.2 A gênese dos direitos fundamentais: entre o Estado liberal e o Estado social 103

4.3 Direitos fundamentais sob as perspectivas discursiva e sistêmica.....................114

4.4 O custo da implementação dos direitos fundamentais e as repercussões disso

para os sistemas jurídico, político e econômico .......................................................... 127

4.5 Constituição e esfera pública no Estado Democrático de Direito ..................... 138

4.5.1 Lineamentos históricos e políticos da esfera pública para Jürgen Habermas . 141

4.5.2 Esfera pública pluralista ........................................................................................ 146

4.6 Limites e possibilidades de uma esfera pública pluralista capaz de contribuir

para generalização da cidadania no Brasil ................................................................ 160

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5 POLÍTICAS PÚBLICAS E ORÇAMENTO PÚBLICO ....................................... 174

5.1 Política, política pública e deliberação .................................................................. 178

5.2 Orçamento público ................................................................................................... 188

5.2.1 Apontamentos históricos ........................................................................................ 188

5.2.2 Orçamento público e racionalidade transversal .................................................. 197

6 CONCLUSÃO .............................................................................................................. 209

7 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 213

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho teve como ponto de partida as reflexões da teoria dos sistemas sobre a

função do direito na sociedade contemporânea, marcada pela crescente complexidade,

circunstância que demanda maior especialização das funções desempenhadas por cada

sistema social parcial, como o direito, a política e a economia e, ao mesmo tempo, faz com

que apareçam novos pontos de interseção entre esses sistemas da sociedade em virtude

mesmo do aumento do nível de especialização – ou de diferenciação – funcional.

A primeira parte do capítulo dois, nesse contexto, teve como objetivo apresentar

noções introdutórias da teoria dos sistemas tal qual proposta por Niklas Luhmann, para que se

tornasse possível compreender a ligação entre modernidade e complexidade, assim como as

suas repercussões na aplicação da teoria sistêmica ao direito.

Já na segunda parte desse capítulo, a noção de processo evolutivo da sociedade é

apresentada com as matrizes históricas que integram essa perspectiva, uma vez que a noção de

evolução desvinculada de coloração valorativa ou axiológica é acolhida neste trabalho.

Tornou-se relevante, ainda no capítulo dois, contextualizar a teoria dos sistemas dentre as

teorias jurídicas contemporâneas para, em momento posterior, compará-la com outras duas

matrizes: a normativista e a hermenêutica. Tal necessidade surgiu da opção teórica que

norteou este trabalho, pois se levou em consideração a teoria sistêmica de Luhmann, assim

como a teoria discursiva de Jürgen Habermas. Mais que isso, considerou-se a proposta de

releitura de ambas as teorias de modo a evidenciar o potencial de complementariedade que

delas emerge, como propõem os autores Gunther Teubner e Marcelo Neves. A organização

das matrizes teórico-jurídicas contemporâneas em três grandes grupos – normativista,

hermenêutica e pragmático-sistêmica – viabilizou a indicação dos pontos de confluência entre

as propostas teóricas de Luhmann e de Habermas. A distinção entre os grupos de teorias foi

orientada pela dimensão da linguagem jurídica assimilada em cada formulação teórica. A

vertente normativista limitou-se ao aspecto semântico; a matriz hermenêutica alcançou

também a dimensão sintática; e, por fim, a vertente pragmático-sistêmica levou em

consideração os três níveis ao assumir a dimensão pragmática da linguagem jurídica.

Ao final do capítulo dois, procurou-se destacar as diferenças entre a proposta

kelseniana de positividade e a noção de positividade formulada por Luhmann e Habermas, a

partir dos pressupostos da teoria sistêmica e da teoria discursiva do direito, que foram unidas

na mencionada matriz pragmático-sistêmica. Buscou-se desconstruir, nessa ocasião, as

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interpretações da teoria sistêmica que a tratam como uma releitura da teoria normativista de

Kelsen, anotando os principais pontos de distinção entre uma e outra.

No terceiro capítulo, a diretriz foi aprofundar no exame do debate teórico entre

Luhmann e Habermas, localizando os pontos de dissenso e de convergência entre ambas as

teorias. Foram apresentadas as linhas gerais da teoria do direito reflexivo de Gunther Teubner,

que reúne, numa mesma construção teórica, pressupostos formulados por Habermas e

Luhmann. A noção de racionalidade transversal proposta por Marcelo Neves foi apresentada

em suas linhas gerais como alternativa à noção de acoplamento estrutural capaz de explicar as

relações entre vários sistemas sociais de modo estável e simultâneo. A partir dessa noção é

que se propôs uma concepção de orçamento público capaz de tornar visível sua importância

para a concretização progressiva dos direitos fundamentais e para a generalização da

cidadania no plano fático.

No capítulo quatro, passou-se à análise da constituição como aquisição evolutiva que

possibilitou ao direito diferenciar-se da política, o que se viabilizou pelo sucesso do processo

revolucionário, sobretudo na França e nos Estados Unidos. Com a modernidade, então, surgiu

a semântica constitucional garantidora de direitos e, por isso, capaz de contribuir

definitivamente para a diferenciação funcional entre direito e política.

A teoria dos direitos fundamentais foi apresentada em suas linhas gerais, atribuindo-se

maior destaque à teoria discursiva de Jürgen Habermas dada sua relevância para a introdução

da noção de esfera pública. Esta, por sua vez, revisitada a partir das condições de

complexidade da sociedade moderna. Analisou-se, ao final do capítulo quatro, a condição

periférica do Brasil e as consequências disso para o baixo índice de inclusão dos indivíduos

nos subsistemas sociais, adotando-se a perspectiva de indicar os limites e as possibilidades de

se incrementar o nível de diferenciação funcional entre os sistemas e, gradativamente,

generalizar os direitos da cidadania.

Por fim, o último capítulo foi dedicado à relação entre direito, política e economia,

ocasião em que se buscou indicar meios para que o processo orçamentário cumpra sua função

de viabilizar políticas públicas relevantes e previamente deliberadas no âmbito do sistema

político que contribuam para a implementação gradativa dos direitos fundamentais, já que o

orçamento, como locus de decisão política, que considera as variáveis da economia, tem

repercussão direta no sistema jurídico. Nesse ponto, tornou-se relevante distinguir as esferas

de exigibilidade dos direitos fundamentais para que se vislumbrasse a importância de avalizar

as escolhas políticas que se dão no nível orçamentário e, consequentemente, da

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responsabilidade que deve ter o administrador no sentido de fazer com que tais escolhas sejam

respeitadas no âmbito da gestão de recursos públicos quando da execução orçamentária.

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2 A PROPOSTA SISTÊMICA CONTEXTUALIZADA ENTRE AS MATRIZES DA

TEORIA JURÍDICA CONTEMPORÂNEA

2.1 Teoria geral dos sistemas sociais: a complexidade do mundo moderno

A teoria sistêmica de Niklas Luhmann propõe a descrição da sociedade a partir dos

sistemas parciais ou subsistemas, que adquirem sentido ao desempenharem funções

específicas que repercutem na organização geral do sistema social global. O direito, nessa

perspectiva, é um dos sistemas parciais ou subsistemas dessa sociedade. A construção teórica

do autor tem como problema central de sua análise a complexidade do mundo moderno; a

proposta sistêmico-funcional, portanto, pretende ser capaz de descrever o funcionamento da

sociedade contemporânea.

A preocupação de Luhmann com o crescente nível de indeterminação surge da ruptura

havida no século XX com o paradigma1 da ordem, da certeza, da regularidade e da simetria. O

intelecto humano, que antes era capaz de conhecer o mundo circundante, é destronado pela

provisoriedade do conhecimento e pela percepção de que sua capacidade de assimilação da

realidade é insuficiente diante da variabilidade de possibilidades de comportamento colocadas

à disposição pela complexidade do mundo. No campo científico, a teoria da relatividade de

Einstein e o “princípio da incerteza” de Heisenberg “implodiram a noção de que o cientista

não interferia no objeto de sua experiência, liquidando a possibilidade de uma ciência neutra,

objetiva” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 140). No âmbito filosófico, a própria reflexividade da

forma de pensar cartesiana volta-se para si e reconhece seus limites e fragilidades.

O advento da psicanálise coloca em xeque a noção de razão cognoscente: “Freud

percebe que o processo de cognição vai além da consciência”; a percepção do inconsciente

torna-se uma etapa do conhecimento (SOUZA CRUZ, 2004, p. 142). A crença na capacidade

da consciência humana é colocada à prova e a linguagem, agora reformulada com a dimensão

pragmática de seu uso nas variadas “formas de vida” e seus “jogos de linguagem” nas

Investigações filosóficas de Wittgenstein, deixa de ser mero instrumento de intermediação

comunicativo e passa a ser constitutiva da realidade passível de apreensão.

1 Conforme ensina Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2009a, p.5), a partir de Thomas Kuhn, “o conceito de

paradigma pressupõe uma forma específica de concepção do progresso científico, eis que pretende vê-lo não

mais por meio de uma linha contínua, mas, ao contrário, por saltos propiciados por períodos „revolucionários‟.

[...] Desse modo, mais que um modelo, o paradigma conforma os problemas e as formas de solução de uma

questão dada. Assim, um paradigma é o que os membros de uma comunidade acadêmica compartilham, tal como

suposições teóricas gerais, leis, proposições e técnicas, bem como os instrumentos de aplicação dessas leis e

proposições.”

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Para Luhmann (2004), essa mudança paradigmática encontra na noção de

complexidade do mundo seu ponto de maior relevância para a descrição da sociedade

moderna. Isso porque a complexidade representa um limite extremo para a reduzida

compreensibilidade da consciência humana, que não consegue apreender todas as

possibilidades e circunstâncias relacionais oferecidas pelo mundo moderno. A consciência

humana, assim, é sobrecarregada e demanda que essa complexidade seja reduzida para que se

diminua o nível de exigência de compreensão. Os subsistemas sociais,2 nesse contexto, atuam

de modo a diminuir a lacuna existente entre a extrema complexidade do mundo e a limitada

capacidade humana de lidar com a infindável variabilidade de possibilidades.

Em decorrência da constatação do surgimento de um novo paradigma a partir do qual

devem ser repensados os limites para a própria construção teórica sobre a sociedade,

Luhmann (2004) busca um nível de abstração compatível com tamanha complexidade, para

descrever o funcionamento sistêmico da sociedade. A modernidade trouxe consigo a

contingência ínsita a essa complexidade, que pode ser descrita pela crescente e contínua

existência de mais possibilidades do que se pode realizar, processar e legitimar: “Por

complexo designa-se o conjunto de elementos que em razão de uma limitação imanente de

capacidade de conexão, torna impossível combinar cada elemento ao mesmo tempo com cada

elemento” (LUHMANN, 1996a, p.137) (Tradução livre).3

Além de se tratar de um fenômeno quantitativo, desencadeado por incontáveis

interações e interferências entre um número muito grande de unidades que desafiam as

possibilidades de cálculo ou prognósticos, a complexidade diz respeito a incertezas,

indeterminações, fenômenos aleatórios e, em razão disso, tem sempre relação com o acaso.

Assim observada, a noção de complexidade coincide com a incerteza que advém dos limites

de nosso entendimento ou das contingências dos fenômenos que nos cercam (MORIN, 2007,

p.35).

2 Já de antemão, é necessário esclarecer que o termo “subsistema social” será utilizado sempre que, no contexto,

houver referência expressa à sociedade como sistema social global. Para Luhmann, a sociedade é, por assim

dizer, um emaranhado de subsistemas que se multiplicam a partir da diferença entre eles e o meio circundante

em virtude da crescente complexificação do mundo. Esses subsistemas, quando se tornam o foco da observação,

são havidos, eles mesmos, como sistemas: sistema jurídico, sistema político, sistema econômico, sistema de

saúde etc. Assim, quando observados a partir da sociedade que integram, mantêm-se como subsistemas dessa

sociedade daí a motivação para a alternância semântica ao longo do texto em subsistemas sociais e sistemas sociais para se referir ao direito, à política, à economia, à saúde. 3 “Por complejo se designa, de esta manera, aquella suma de elementos que en razón de una limitación de

capacidad de enlace del sistema, ya no resulta possible que cada elemento quede vinculado em todo momento”.

Por elemento de um sistema, entende-se o que diz respeito aos símbolos da comunicação, às formas de distinção.

No caso do direito, os elementos são todas as formas de sentido que circulam na comunicação jurídica sob a

forma de operações do sistema.

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Nesse “paradigma da complexidade”, a contingência e a margem de risco aí inseridas

são condições da modernidade que despertam o interesse do autor, sobretudo porque

constituem o grande desafio para a descrição do funcionamento de uma sociedade.

Conforme salienta De Giorgi (1998, p.185), a reflexão científica sobre a sociedade

produzida nas últimas décadas não foi suficientemente criativa a ponto de amenizar a

desorientação, a insegurança e o medo da diversidade que imperam nas sociedades tornadas

complexas com o advento da modernidade.4 Isso porque a “metafísica das grandes descrições

se esgotou”, ficando de resto a sensação de que os grandes acontecimentos históricos das

últimas décadas,5 que romperam com a estabilidade da relação entre racionalidade e tempo,

além de perturbarem a “ordem do mundo”, colocaram em xeque a “ordem dos conceitos” (DE

GIORGI, 1998, p. 186). As velhas distinções, como, por exemplo, leste/oeste, na geopolítica,

ou homem/mulher, na antropologia, foram aos poucos perdendo o sentido. Nas palavras de De

Giorgi (1998, p. 187):

A distinção amigo/inimigo na política era tão tranquilizadora quanto a diferença

entre racionalidade formal e racionalidade material, que podia ser assumida até como fator evolutivo da sociedade: o mesmo valia para a distinção entre norte e sul,

leste e oeste, igualdade e desigualdade.

Nada obstante, a dissolução dos valores que tais distinções traziam consigo levou à

constatação de que a provisoriedade em que se vive decorre do risco inerente à atividade

humana, numa sociedade cuja complexidade parece aumentar com o passar das horas. O risco

mantém-se presente porque não se pode mais esperar por uma normalidade; o que ontem era

inimaginável, hoje, é – ou pode se tornar – realidade. E uma realidade que se imagina também

4Embora vários autores optem pela semântica da pós-modernidade, por considerar que a contemporaneidade já

superou as questões postas pela modernidade, na esteira da compreensão compartilhada por Luhmann (2004),

Habermas (1997), Morin (2007) e De Giorgi (1998), optou-se neste estudo pela expressão “modernidade” para

designar o estado de complexidade que, tendo atingido seu ponto crítico no Século XVIII, com a Revolução

Francesa marco político do Iluminismo , tornou-se crescente desde então, a desafiar a reconstrução da razão (possível). O tema será abordado em outras oportunidades ao longo deste estudo; por enquanto, vale anotar o

entendimento de Raffaele De Giorgi, segundo o qual a “instabilidade autoproduzida” pela sociedade

contemporânea – marcada pela multiplicidade de possibilidades e pela observação da contingência de que no

presente tudo poderia ter sido diferente – é o que singulariza a “modernidade da sociedade moderna” (DE

GIORGI, 1998, p.153). 5 De Giorgi (1998, p. 185-189) faz menção genérica a vários acontecimentos que demonstram as mudanças

havidas no mundo desde a década de 1980, como o fim da Guerra Fria, a dissolução da URSS e a reunificação da

Alemanha; o avanço das políticas de igualação de natureza sexista ou étnica, que, por sua vez, são produtoras de

desigualdades; o crescimento das ações terroristas e o ataque às Torres Gêmeas; a crise econômica vivida pelos

países desenvolvidos e a crescente vinculação desses países às bases energéticas – ou consumidoras – de outros

países menos desenvolvidos, levando à construção de blocos econômicos e golpeando de morte a noção de

soberania nacional (e, apesar disso, o recrudescimento das políticas de repressão ao ingresso de imigrantes

vindos de países menos favorecidos economicamente), o que deu azo a uma economia cada vez mais

internacionalizada; e, por fim, as inovações tecnológicas que contribuem para a relativização da dimensão

temporal das comunicações que se sucedem ao longo do globo.

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precária. Se, numa primeira análise, os acontecimentos parecem ocorrer com certa

regularidade e permitem previsões do agir ou mesmo espaços para cálculos racionais, numa

observação mais detida, a normalidade é uma sucessão de indeterminações.

Assim, viver em sociedade é estar sob a constante pressão gerada por essa

complexidade, que não pode ser solucionada, porquanto cabe aos teóricos apenas reduzi-la ou

compartimentá-la, limitando seus danos.

Desde tempos remotos, a sociedade engendra invenções para livrar-se da contingência

imposta pelas indeterminações que obscurecem o tão aspirado padrão de normalidade v. g.,

a adivinhação, o tabu, o pecado e, mais recentemente, o acaso e a probabilidade. Entretanto, é

de se concordar que as condições estruturais da modernidade “tornaram obsoletas as formas

pelas quais a sociedade moderna tinha construído suas autodescrições: estas esgotaram os

pressupostos sobre os quais se mantinham as plausibilidades das distinções que funcionavam

como orientação da observação” (DE GIORGI, 1998, p.195). Nessa observação, emerge o

paradoxo da sociedade contemporânea: a demanda por segurança aumenta conforme aumenta

a insegurança; determinação e indeterminação estão simultaneamente presentes, assim como a

estabilidade e a instabilidade.6

É nesse contexto que, para a sociologia sistêmica de Luhmann, complexidade,

contingência e risco são pressupostos para a observação da modernidade; são condições

ínsitas à autodescrição possível do funcionamento da sociedade e do comportamento de seus

atores.

De acordo com Luhmann (1983, p.45), a contingência descreve algo que não é

necessário nem impossível, algo, então, que é (era ou será) assim como é, mas poderia ser

diferente. Caso se estivesse diante de um estado de coisas ordenado, a contingência seria

simples, como ocorre quando um indivíduo observa a sucessão das fases da lua e espera

seguramente que a lua crescente seguirá à nova. Diversamente, no caso dos sistemas dotados

de sentido,7 como os sistemas sociais e psíquicos, a contingência torna-se dupla porque se

refere a expectativas8 de expectativas, porquanto a “desordem” do ambiente é inevitável. No

6 Essa observação encontra amparo na constatação de que, atualmente, há mais riqueza e mais pobreza; mais

igualdade e mais desigualdade; mais participação e menos participação (DE GIORGI, 1998, p.192). 7 Segundo Luhmann (2009, p. 96-97 e 259), os sistemas de sentido seriam dois: os sistemas sociais, dentre os

quais estão o direito e a política, por exemplo, e os sistemas psíquicos que resultam da conexão (acoplamento

estrutural) entre o sistema fisiológico e a consciência, de sorte que cada ser humano constitui em si um sistema

psíquico. A questão será oportunamente abordada com maior detalhamento. 8 A questão será retomada em momento posterior no que diz respeito especificamente às expectativas referentes

ao sistema jurídico. De toda sorte, é bom que se tenha presente que, em Luhmann (1983, p. 97), expectativa é a

intencionalidade que aponta para o futuro do fluxo da experimentação, que busca sempre conteúdos modificáveis

e que experimenta a realidade por meio de suas mudanças.

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caso do sistema psíquico, por exemplo, as expectativas de “A” são geradas pelas expectativas

que ele imagina serem as de “B”, as quais, a rigor, são inacessíveis ao conhecimento de “A”.9

Isso porque não é dado a um ser humano participar de modo ativo da consciência de outros,

uma vez que cada um, na visão sistêmica luhmanniana, referencia um sistema psíquico

próprio e mantém-se no ambiente dos sistemas sociais.

O problema da dupla contingência transforma-se, portanto, em um dilema travado

entre Ego e Alter: aquele não sabe como este reagirá em resposta a uma dada atuação sua,

uma vez que Alter e Ego dispõem de várias alternativas de atuação (GUIBENTIF, 2005, p.

197). Embora a variedade de possibilidades possa ser vista com maior margem de liberdade

de escolha, no papel de observador de outro indivíduo ou sistema social, a dupla contingência

é fonte de incertezas e surpresas e, ao mesmo tempo, demanda que haja uma confiança no

outro, ainda que mínima, sob pena de se inviabilizar a comunicação entre os sistemas.

Nesse contexto, a dupla contingência impõe uma autolimitação em relação ao objeto

que se observa a partir dele mesmo, a fim de que se obtenham expectativas razoavelmente

seguras de um futuro em aberto. Vale dizer: a contingência abrange também o outro, uma vez

que a seleção das possibilidades não está a cargo de um único ser humano atuando

isoladamente como sistema psíquico, mas também de outros indivíduos que povoam o

ambiente e estimulam o funcionamento de todos os subsistemas sociais, o que gera uma gama

infinita de possibilidades relacionadas às mais variadas experiências.

Com o fito de observar a dupla contingência e enfatizar seu potencial gerador de

maiores possibilidades para sua própria compreensão, torna-se necessário criar meios que

permitam maior qualidade no desenvolvimento do processo seletivo na definição das

escolhas. Isso permitirá a redução dessa complexidade e, por consequência, tornará possível a

estabilização das expectativas, mesmo em face dos desapontamentos que, contingencial

mente, ocorrerão.

O risco, por sua vez, é o modo como se pode relacionar com o futuro, visto que atua

como uma forma de se compreender a indeterminação, orientando-se pela distinção entre

probabilidade/improbabilidade. Segundo De Giorgi (1998, p.198), “[...] o risco é uma

aquisição evolutiva do tratamento das contingências que, se exclui toda a segurança, exclui

9 Um exemplo que auxilia na compreensão da dupla contingência em termos genéricos seria o de duas pessoas –

ego e alter – que estão prestes a se conhecer: cada uma determina suas condutas mediante observações

recíprocas. “A” observa “B” e resolve comportar-se “X”. “B” observa “A” e resolve comportar-se “X”, embora

pudesse comportar-se “Y”, “W” etc; nesse caso, essa suposição é geradora de certeza – mas poderia gerar

incerteza – e, a partir dela, cada um estabelece limite a si mesmo. A sucessão de ações de “A” e de “B” poderá

resultar numa ação compartilhada, como por exemplo, o estabelecimento de uma relação contratual ou jurídica.

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também todo destino. O risco baseia-se na suportabilidade, na aceitação e não na certeza das

próprias expectativas”.

A teoria sistêmica de Luhmann, portanto, pretende descrever como ocorrem as

interações entre os atores sociais numa sociedade complexa e contingente; os atores sociais

são, por assim dizer, sistemas de comunicação que constroem a própria sociedade.

Emerge aqui o dissenso entre a proposta luhmanniana e a teoria sociológica

tradicional, que enfatiza a ação social como construção de sujeitos, sendo esse o ponto

elementar de toda sua análise. Conforme Luhmann (apud MELLO, 2006, [s.p.]): “Pode-se

ainda dizer, naturalmente, que os seres humanos agem. Mas desde que isso sempre ocorre em

situações, a questão que permanece é se e em que extensão a ação deve ser atribuída ao ser

humano individual ou à situação”.

Em outras palavras: se é a comunicação que constrói uma sociedade e se, para que

haja comunicação, é necessária a interação entre dois indivíduos, pelo menos, as questões não

podem ser tratadas a partir de uma perspectiva solipsista. Mais importante que a ação

individual – a conduta humana propriamente dita – é a situação em que essa ação propicia a

comunicação e as condições em que ocorre a interação pressuposta pela comunicação.10

A comunicação, portanto, constitui a sociedade porque funciona como conexão para a

transmissão intersubjetiva de critérios de seleção e só se torna possível como evento que

transcende os limites da consciência humana, “como síntese de algo mais que é o conteúdo de

uma só consciência” (LUHMANN, apud AMADO, 2005, p. 112). Vale dizer: a comunicação,

como ato que envolve uma mensagem contendo uma informação, só se aperfeiçoa no mundo

caso haja a compreensão dessa mensagem e de seu conteúdo pelo outro. Segundo Luhmann,

enquanto a comunicação permanece na dimensão individual, não existe sociedade – quando

muito, existiria uma aglomeração de seres solipsistas.

Na esteira dessa compreensão e refutando a ideia tradicional de que os fenômenos são

constituídos de um todo e suas partes, Luhmann propõe um modelo desenvolvido a partir da

diferenciação entre sistema e ambiente e da relação que se estabelece entre eles. De acordo

com o autor, um sistema diferenciado não é aquele composto por um número extenso de

partes e pela relação entre elas, mas aquele em que são realizadas inúmeras operações que

reproduzem a distinção entre o sistema e o ambiente que o circunda, uma vez que a referência

elementar das investigações funcionais é a diferença entre sistema e ambiente (LUHMANN;

DE GIORGI, 1992, p.16-24).

10

Nesse ponto, Luhmann afasta-se completamente da perspectiva de Max Weber, embora mantenha, em outros

pontos de sua teoria, posições compatíveis com a sociologia weberiana, como será anotado posteriormente.

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A redução de complexidade diz respeito à relação entre o sistema e seu entorno

(ambiente) e à relação do sistema consigo mesmo, em razão de sua potencial característica

para autorreferenciar suas operações internas. Para dar conta da tarefa de compartimentar a

complexidade, os sistemas sociais se valem de um modo de generalização que dispensa a

correspondência, ponto por ponto, entre sistema e ambiente. Isso ocorre porque a

complexidade do entorno tende a ser muito maior que aquela existente no interior do sistema:

O sistema não tem a capacidade de apresentar uma variedade suficiente para

responder pontualmente à imensa possibilidade de estímulos provenientes do

entorno. O sistema, desse modo, demanda que se desenvolva um empenho especial

na direção de ignorar, repelir e criar indiferenças, enclausurando-se em si mesmo

(LUHMANN, 1996a, p. 134).

A diferenciação entre os vários sistemas que constituem a sociedade e entre o sistema

e o ambiente é, portanto, uma estratégia utilizada pela teoria dos sistemas a fim de reduzir – e

enfrentar – a complexidade e a dupla contingência ínsita à arquitetura das sociedades

contemporâneas.

Nessa linha de observação, é relevante notar, desde já, que, para cada subsistema

social, os outros subsistemas não são visualizados como sistemas, mas como parte de seu

meio ambiente;11

um sistema não compreende o outro como tal, mas como algo que o

circunda e que se apresenta desordenado, pois, para os sistemas socieias, o ambiente é opaco.

Desse modo, nenhum sistema dispõe de perspectiva privilegiada sobre a realidade; esta só é

percebida na medida em que se apresenta relevante para o desempenho da função de

determinado sistema e torna-se passível de tradução pelo código próprio do sistema em

questão. Isso decorre da análise de que nenhum sistema pode conhecer o objeto observado (o

outro sistema, no caso) tal como ele é, mas somente como ele é percebido na leitura do

sistema observador. A essa limitação da observação entre os sistemas sociais e o ambiente

refere-se a noção de policontexturalidade. Dito de outro modo, como o sentido de cada objeto

é policontextural, pois imerso num ambiente desordenado, que não pode ser de imediato

reduzido aos códigos e programas do sistema observador, surge a perspectiva segundo a qual

a sociedade organiza-se de modo multicêntrico, pois, como sistema social global, não possui

ápice nem vértice (AMADO, 1999, p. 63-64).

11

Para Luhmann (2004, p. 76 e ss.), o ambiente, como algo que é exterior ao sistema e do qual este depende para

existir – basta lembrar que é a distinção entre sistema e ambiente que possibilita a individualização de um

subsistema social –, pode ser observado tanto como ambiente intrassocial, envolvendo a sociedade – sistema

social global – e os outros subsistemas sociais, quanto como ambiente extrassocial, povoado pelo homem, como

síntese de sistema psíquico e sistema vivo, e o mundo com seus fenômenos físicos e biológicos.

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Assim, os subsistemas da sociedade comunicam-se entre si e, a partir daí, podem

realizar “trocas” necessárias para o desempenho da função para a qual se tornou

especializado. Nesse movimento de interação intersistêmica, o sistema jurídico, por exemplo,

observa o sistema econômico como ambiente, como complexidade desordenada. As

operações econômicas só podem ser observadas pelo direito como realidade ordenada quando

se tornam relevantes para o desenvolvimento das operações jurídicas e se submetem à

filtragem pelo código próprio do sistema jurídico. A análise contábil das receitas e despesas

do orçamento de um ente da Federação pode adquirir especial relevância para o direito

quando seu exame for necessário à produção de decisão jurídica – as decisões jurídicas são as

operações típicas do sistema do direito – sobre a existência ou não de recursos para a

implementação de determinada política pública reivindicada em ação própria, por exemplo.

2.1.1 O desenvolvimento da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann

Sob as condições da complexidade moderna, a construção teórica de Luhmann

apresenta um desenvolvimento relativamente linear, sendo possível identificar um traço de

continuidade nas suas etapas em busca de uma melhor compreensão da sociedade moderna. A

diferenciação funcional entre os sistemas é, para Luhmann, a principal característica da

sociedade moderna.

A despeito disso, é possível identificar pelo menos duas fases do desenvolvimento da

teoria luhmanniana e, conforme a perspectiva de observação, até o esboço de uma terceira

fase. A primeira decorreu da influência direta da teoria funcionalista de Talcott Parsons,12

muito embora tenha sido reconstruída em outras bases, em razão da visão crítica de Luhmann

quanto aos limites do realismo analítico13

que norteou a arquitetura conceitual de Parsons.

12

Talcott Parsons, como pós-weberiano, tem na ação social o elemento central de sua teoria; contudo, tenta

encontrar um denominador comum entre Weber, Durkheim, Marshall e Pareto, propondo que “ação é sistema” e

só pode ser compreendida, portanto, sob a forma sistêmica: não é o indivíduo que age, mas sim o sistema. O

empenho de Parsons se dá no sentido de abranger “realidades de grande escala (macro sociais)”, o que explica o

alto nível de abstração de sua teoria. O sistema da ação torna-se possível em razão de quatro funções essenciais:

adaptação (comportamento organicista), obtenção de fins (personalidade), manutenção de estruturas latentes

(cultura) e integração (sistema social). Um sistema só se constitui se puder desempenhar essas quatro funções. O

sujeito, para Parsons, é aquele a quem se destina a função de controlar as consequências da ação e não visa

apenas a alcançar sua satisfação particular; ele é o único que pode estabelecer uma relação com o exterior e que

pode fazer a mediação entre as referências internas da consciência e as externas do ambiente. É assim, então,

que, para este autor, o ser humano pode ser tratado sob a perspectiva da ação (LUHMANN, 1996a, p.31-41). 13

A crítica de Luhmann à teoria parsoniana dirige-se, principalmente, a seu hermetismo, que impede a discussão

de conceitos como o de cultura, se é coincidente com a tradição antropológica ou se é capaz de passar pela prova

hermenêutica, no sentido de Gadamer. Segundo Luhmann, todo o esforço de Parsons foi no sentido de agregar

fundamento e plausibilidade ao esquema das quatro funções. No entanto, não se pode dizer, conforme explica o

autor, que a teoria de Talcott Parson – conhecida pela expressão semântica “funcionalismo estrutural” – tenha

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Essa fase do pensamento luhmanniano é conhecida como funcional-estruturalista, que

corresponde às obras publicadas ao longo da década de sessenta.14

A diferenciação funcional

era vista como fator que, uma vez explorado, poderia contribuir para um melhor

funcionamento dos sistemas sociais em meio à complexidade circundante. O foco das

atenções do autor, nessa fase, seria descrever como a sociedade mantém a sua ordem

(estrutura), tendo por critério de orientação a função que cada subsistema da sociedade

desempenha.

A segunda fase da construção teórica de Luhmann caracteriza-se pela introdução da

noção de autopoiese aplicada aos sistemas de sentido e pelos desdobramentos teóricos daí

advindos. O que, num primeiro momento da formulação teórica, era absorvido como

interdisciplinaridade foi, aos poucos, alçado ao status de conjuntos teóricos capazes de

sustentar uma nova forma de se ver a reprodução das operações no interior de cada sistema.

Por conseguinte, o ambiente assume a condição de fundamento do sistema, uma vez que “em

relação ao sistema atuam as mais diversas determinações do ambiente, mas elas só são

inseridas no sistema quando esse, de acordo com seus próprios critérios e código-diferença,

atribui-lhes sua forma” (NEVES, 2006, p.81).

Atribuir característica autopoiética aos sistemas foi uma hipótese que motivou as

pesquisas de Luhmann desde a década de 1980, quando se tornou a tônica de suas

publicações, sobretudo em virtude da pronunciada influência exercida pelas formulações de

vários cientistas, de distintas áreas do saber, que, à época, apontavam tendências que

conduziam a um novo modo de pensar a ciência e o conhecimento.

fracassado; ao contrário, a ela deve ser tributado o mérito da construção de uma das arquiteturas conceituais mais

grandiosas da sociologia contemporânea. Consagra-se, em Parsons, um espaço lógico de possibilidades; todavia,

não há a preocupação de conhecer meios que possam garantir que essas possibilidades sejam reais. Ademais,

conforme o entendimento de Luhmann, a teoria parsoniana deixou em aberto as questões relacionadas à

autoimplicação cognitiva, uma vez que postula tão-somente um realismo analítico e assim se restringe a uma

formulação paradoxal dessa autoimplicação, porquanto perdeu de vista que a análise das ações é, em si mesma,

uma ação (LUHMANN, 1996a, p. 42-43). 14

Essa visão é claramente percebida na obra Direitos Fundamentais como Instituição (LUHMANN, 2002): “[...]

uma análise dos direitos fundamentais com os meios da teoria estrutural-funcionalista dos sistemas poderia

fertilizar a dogmática dos direitos fundamentais”. Ao concluir a obra, prossegue o autor: “[...] contraria a

intenção fundadora da nossa pesquisa aceitar aqui qualquer fusão. O aparelho conceptual da investigação

sociológica, orientado para a descoberta e a comparação sistêmica, tem outras tarefas do que o aparelho

conceptual da dogmática, que deve facilitar e tornar previsível a tomada de decisão.” (LUHMAN apud

GUIBENTIF, 2005, p.191-192). Também na conclusão da obra Sociologia do direito (1983), em que há um

capítulo – “Perguntas à teoria do direito” – dedicado à análise do relacionamento entre a dogmática e a teoria

social-funcionalista, pode-se perceber essa visão.

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Nesse contexto, Luhmann (1996a, p. 57-58) destaca quatro cientistas: Heinz Von

Foerster15

com sua “cibernética dos sistemas que observam ou cibernética de segunda

ordem”; Gothard Günther que, especialista em Hegel e seguindo o projeto de pesquisa

iniciado por Foerster, propôs uma lógica polivalente,16

alternativa à bivalência clássica,

“como resultado do contato da dialética com a operação cibernética”; Humberto Maturana

com sua teoria autopoiética aplicada à Biologia, que expressa a autorreprodução da vida; e,

por último, George Spencer Brown matemático inglês que, com suas investigações,

postulou a reconstrução da maneira de se pensar o relacionamento intersistêmico, ou entre

sistema e ambiente, por meio da “forma de dois lados”,17

referência que será recorrente ao

longo deste estudo.

Um terceiro momento teórico poderia ser identificado18

a partir das produções dos

anos noventa, em que Luhmann passou a atribuir especial relevância à distinção meio-forma,

inspirado pelas teorias cibernéticas. A teoria da sociedade aqui é engendrada a partir de um

construtivismo operativo.19

Talvez mais cético com relação ao alcance de sua teoria,

15

Cientista austríaco-americano (1911-2002) que combinou Filosofia com Física na construção de uma teoria

biocibernética, como tentativa de compreender a comunicação; concebe o processo de vida como sistema

fechado para a informação e aberto para a energia, destacando o papel da interação e da auto-organização.

Seguindo a linha de pesquisa desse autor, surgiu a teoria de Maturana e Varela e o conceito de autopoeise. Os

conceitos de segunda ordem, para esse autor, são necessários em razão da inexistência de bases de sustentação

do conhecimento objetivo, uma vez que não se pode separar a realidade interna da realidade externa. Assim, o

importante é pensar sobre o pensar, aprender como aprendemos e, principalmente, conhecer como conhecemos.

Uma das propostas decorrentes da teoria biocibernética de Von Foerster é a de que não existe validação externa;

no lugar disso preponderam as coerências internas entre as operações realizadas capazes de oferecer

autovalidação à maneira de um sistema que se autocorrige. Referindo-se à inaplicação do método

falsificacionista, o autor objeta que: “Não seria, por acaso, mais recomendável renunciar ao critério de Popper e

buscar princípios fundamentais para uma teoria que se confirme na práxis?” (PELLANDA, 2003, p. 1387). 16

A lógica polivalente surge como alternativa à lógica clássica e, no campo da Filosofia, foi pensada a partir da

insatisfação com a imposição tradicional de uma dicotomia absoluta entre o verdadeiro e o falso (HAACK,1998,

p. 269-270). Segundo Luhmann (1996a, p. 58): “la pregunta que lo guia es qué tipo de lógica es necesaria para

representar el hecho de que varios actores cognitivos independientes, llegaram a alcanzar un efecto común”. Não há espaço para um maior aprofundamento dessa questão no âmbito deste estudo, em que se pretende apenas

indicar os apontamentos lógico-científicos presentes na formulação da teoria da sociedade de Luhmann. Com

esse intuito, é suficiente lembrar que a lógica polivalente surge como corolário de uma concepção construtivista,

segundo a qual a observação constrói o conhecimento e, portanto, não se pode pretender uma separação

dicotômica entre objeto e sujeito do conhecimento, como pretende a lógica clássica bivalente. 17

“Forma de dois lados” é um conceito cibernético utilizado por Spencer Brown, do qual Luhmann se vale em

vários pontos de sua teoria e, em especial, para explicar a diferença entre sistema e meio ambiente. Segundo ele,

a forma (de dois lados) corresponde a um processo de constante atualização de sentido e possibilidades

acessíveis. Na forma, ambos os lados estão dados: um na modalidade já atualizada e outro ainda potencializado.

O tempo exerce a função de permitir que se passe de um lado ao outro da forma, pois ele é imprescindível para

que o potencial se atualize. A redução de complexidade, sob esse ponto de vista, não funciona como um modo de

se aniquilar o sentido e os valores; diferentemente disso, atua como um processo recorrente de transformação de

pontencialidades em atualizações. 18

No Brasil, Rafael Simioni (2007) é um dos autores para quem se pode dividir a segunda fase do pensamento

de Luhmann em duas. Ele sugere que esta última fase seja chamada de hologramática. 19

Uma das linhas-mestras para a compreensão do alcance do construtivismo é que toda referência que remeta ao

sistema ou ao ambiente é uma construção da observação. Luhmann (2005, p. 69) explica que a teoria sistêmica

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Luhmann atribui-lhe um viés mais reflexivo, ao pretender que a teoria dos sistemas sociais se

torne “uma das instâncias onde a sociedade contemporânea, radicalmente diferenciada, possa

reencontrar uma visão global de si própria. Mais uma visão entre outras, apenas uma visão, e

cujos efeitos são imprevisíveis” (GUIBENTIF, 2005, p.190).

Ainda na década de noventa, foram publicadas várias obras de Luhmann que versavam

sobre os diversos ramos da atividade humana, compreendidos como sistemas funcionais

específicos das sociedades modernas: a arte, a ciência, a economia, a educação, os meios de

comunicação de massa, entre outros. Em 1993, ele publicou “O direito da sociedade” – Das

Recht der Gedellschaft,20 sedimentando a compreensão do direito como sistema social. Isso

porque, inicialmente, o sistema jurídico era visto como parte da estrutura da sociedade. É essa

fase do pensamento de Luhmann que mais interessa ao objeto deste estudo.

Rocha (2005, p. 96-101) agrupa as linhas de pensamento que nortearam as pesquisas

do autor desde os anos oitenta em três grandes “conjuntos teóricos”. É de se registrar, no

entanto, que os grupos de teorias guardam imbricações entre si, de tal modo que a divisão

atende a fins didáticos tão-somente. O primeiro deles é o conjunto constituído pelas teorias

lógicas que “tentam superar o tipo de racionalidade científica dominante na lógica tradicional,

epistemológica e filosófica ocidental desde Aristóteles até o positivismo do círculo de Viena”

(ROCHA; SCHWARTZ; CLAM, 2005, p.97). Aqui sobressai a lógica de Gotthard Günther e

de G. Spencer Brown, em que o paradoxo e a circularidade21

das formulações teóricas podem

ser explorados e fertilizados de modo criativo.

Essa construção teórica contrasta com a lógica tradicional, que tentou, em diferentes

formulações, ocultar os paradoxos que sempre estiveram presentes na sociedade. Assimila-se,

portanto, o pressuposto construtivista de que não há um único sujeito do conhecimento, mas

da sociedade optou pelo caminho de uma epistemologia construtivista, que inclui não somente os sistemas estritamente cognitivos, mas também os sistemas que “empregam as observações autoproduzidas para regular

sua relação com o entorno”, como o direito, a economia, a religião, a arte etc. A congregação de construções tão

diversas e policontexturais, típicas da modernidade complexa, teoricamente só pode se orientar pela observação

de segunda ordem. Isso implica que as operações de cada sistema podem ser observadas por eles próprios de um

ponto de vista externo ao sistema, mas que lhe faz referência, o que corresponde à tese do fechamento operativo

do sistema. Segundo Luhmann (2005, p.97), isso corresponde, na semântica da teoria do conhecimento, ao que

se poderia chamar de “construtivismo operativo”. 20

O direito da sociedade (Derecho de la socidad ou Law as social system), que funcionará como principal fonte

de pesquisa em torno da teoria luhmanniana no âmbito deste estudo. 21

A circularidade não implica, aqui, aceitação pura de argumentos circulares, uma vez que isso desembocaria

numa mera tautologia. O que se pretende é romper com a ideia de que a circularidade gerada pela reflexão é

problema intelectual decorrente de um erro de pensamento, para que seja interpretada como problema relativo à

própria praxis jurídica. Como pretendemos mostrar neste estudo, a autorreferência, os paradoxos e a

indeterminação fazem parte da realidade dos sistemas sociais, de sorte que a teoria autopoiética do direito tem

por pretensão tornar a circularidade inerente a essas características um “modelo fecundo e heuristicamente

válido: uma tal perspectiva não apenas abre caminhos para a teoria do direito, mas revoluciona de facto todos os

modos de pensar a vida social” (LUHMANN, apud TEUBNER, 1989, p. 19).

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sim uma pluralidade de sujeitos que observam o mesmo mundo com olhares paralelos. Em

decorrência disso, o ser observado também pode se tornar o ser observador; o paradoxo pode

ser observado de vários modos e a circularidade das formulações pode ser produtiva. Logo, a

observação do observador ou observação de segunda ordem proposta por Von Foerster

seria um caminho para a superação da intersubjetividade como algo sui generis, já que a

observação construtora do conhecimento (e da realidade) deixa de ser monocultural e se torna

policontextural. Nessa perspectiva, a lógica deixa de ser linear, baseada na ideia estática de

causa e efeito, e desloca-se para a diferenciação e para o relacionamento entre os sistemas e o

ambiente, assumindo a multiplicidade de valores que o processo infindável de observação

pode produzir. Como explica o próprio Luhmann (2009, p. 150-151):

Na sociedade moderna – e há muitas razões para tal informação , a percepção mais avançada sobre a realidade do mundo passou da consciência da realidade à

observação da observação. Essa forma de percepção, que concentra naquilo que os

outros dizem ou percebem, constitui a forma mais avançada de apreensão do mundo,

em uma diversidade de campos funcionais: a ciência, a arte, a economia, a política...

Só podemos ter acesso às coisas objetivas do mundo pela informação, por meio do

que os outros dizem e, certamente do que nós dizemos. Contudo, na sociedade

moderna, sempre existe o recurso da observação, como uma forma crítica que se

sempre deve se aplicar a si mesma: por que essa política me parece inadequada, enquanto outros a aceitam e ainda consideram-na benéfica...?

Ainda nesse mesmo contexto teórico, surge a noção de sentido,22

que orienta as

comunicações ocorridas no interior da sociedade. O sentido relaciona-se à função do sistema e

serve para atribuir-lhe identidade conforme o tipo de comunicação intrassistêmica. É por isso

que, à medida que um sistema reitera as comunicações específicas relacionadas à função que

exerce na sociedade, ele aumenta o nível de diferenciação entre si e entre outros sistemas e

consegue se autorreferenciar. É na descrição do processo de produção do sentido para as

questões que se revestem de relevância para a operação que se desenvolve no interior do

sistema seja ele econômico, político ou jurídico, cada qual orientado pela racionalidade que

conforma suas comunicações internas – que Luhmann recorre ao conceito de forma, proposto

por Spencer Brown (LUHMANN, 2009, 84-94), conceito esse que surge da percepção de que

indicar é distinguir. Assim, forma é um modo de distinção decorrente da separação entre dois

22

Em Luhmann, sentido é uma estratégia de seleção das possibilidades de atuação em dada situação, em face de

um meio mais complexo. A função de sentido é a estruturação de um campo de possibilidades que pode ser

orientado binariamente: sim/não. Portanto, sistemas de sentido podem se auto-observar e reagir seletivamente

diante da variabilidade de situações que a complexidade apresenta; são capazes, a partir daí, de traçar estratégias

para reduzir a complexidade circundante e, ao mesmo tempo, permitir seu incremento. Como se verá no curso

deste estudo, essa dinâmica de aumento e diminuição da complexidade funciona como motor da evolução social.

Desse modo, os seres humanos, como sistemas psíquicos, assim como a política e o direito, como subsistemas

sociais, são sistemas dotados de sentido (AMADO, 1999, p. 63).

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25

valores, lados ou faces que estabelece limites à compreensão sistêmica daquela questão que

surge do ambiente ou de outro sistema. Vale dizer: forma é uma linha fronteiriça que marca

uma diferença. Portanto, quando se efetua uma distinção, aponta-se uma parte da forma.

Conforme explica Neves (2008a, p.59), como tudo que ocorre diz respeito a um ou a vários

sistemas e ao ambiente de outros sistemas, é necessário que esse “desnível de complexidade”

submeta-se a uma estrutura capaz de orientar o processo de filtragem dessas informações

vindas de outros sistemas ou do ambiente, ocasião em que o sistema – jurídico – as

descodifica a partir da distinção lícito/ilícito.

Desse modo, a internalização desses fatores ou informações heterorreferentes – vindos

do ambiente que é externo ao sistema – é o que se denomina seleção, ou seja, é filtragem da

referência externa ao sistema e que, após a qual, torna-se parte da autorreferência do sistema

que permitiu seu reingresso. Pode-se exemplificar esse processo de reingresso pela

repercussão de questões submetidas à racionalidade do sistema econômico, orientado pelo

código ter/não ter, no sistema jurídico, notadamente no que diz respeito à contretização dos

direitos fundamentais pelo Poder Judiciário em que a disponibilidade orçamentária, como

condição para a implementação desses direitos, irrita (stresses) o sistema jurídico e deve ser,

então, submetida à filtragem. Conforme as características do caso concreto, as informações

poderão ou não ingressar no sistema jurídico por ocasião do exame da questão submetida à

decisão.

O segundo conjunto de teorias compõe-se das teorias cibernéticas generalizadas, com

predominância das propostas de Heinz von Foerster, sobretudo da ideia de “observação de

segunda ordem”23

e da ideia de reflexividade assimilada pela teoria luhmanniana, em que a

realidade é gerada num sistema fechado para informações externas e aberto para a troca de

energia uma realidade complexa que apresenta situações de autonomia e de conectividade

simultâneas.

23

A teoria cibernética, que exerceu larga influência no construtivismo sistêmico, compreende a comunicação e o

controle de máquinas, seres vivos e grupos sociais por meio de analogias com as máquinas cibernéticas. Tais

analogias tornam-se possíveis a partir do estudo da informação no interior de processos como a codificação e

descodificação, retroalimentação e aprendizagem, por exemplo. No contexto dessa teoria, “a observação de

segunda ordem – observar o observador e suas observações – incorpora a constatação de que o observador não

seria mais um agente passivo que pode se esconder sob uma cortina de sua reflexão interior: os mundos

exteriores e interiores invadem-se, remodelam-se e imprimem sentidos sobre regiões supostamente fora de seus

domínios” (KUJAWSKI, Guilherme. A arte cibernética de segunda ordem. Disponível em:

http://www.cibercultura.org.br/ Acesso em: 29.8.2009). Assim, como a observação é uma operação e não pode

observar a si mesma, é necessário que se observe o observador para que se possa perceber aquilo que o

observador de primeira ordem não é capaz de ver. Por isso é que, como se verá em momento posterior deste

estudo, o código binário que orienta as operações jurídicas só pode ser manejado no nível da observação dos

observadores. Somente assim o sistema jurídico (direito) poderia atuar de modo normativamente fechado e, a

partir daí, fundamentar-se a si mesmo (LUHMANN, 2004, 101-102).

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26

A terceira matriz teórica, identificada na construção da autopoiese em Luhmann –

talvez a mais propalada delas –, é representada pelas teorias biológicas, mormente pela

proposta de Maturana e Varela, que não separam os fenômenos da cognição do próprio

processo de viver. Como consequência dessa “fusão”, os autores explicam a circularidade dos

seres vivos, ou seja, processo em que produtor e produto se constituem mutuamente.

Apoiados em rigorosas pesquisas neurofisiológicas, eles concluem que a aprendizagem é

corporificada, isto é, o corpo participa dos atos de linguagem.24

Isso porque, no processo

evolutivo humano, por meio de um contínuo “acoplamento estrutural” – recorrência ou

recursividade entre organismo e meio –, o cérebro, sofrendo mudanças, foi-se modificando

em decorrência da plasticidade estrutural do organismo humano (PELLANDA, 2003).

Segundo Maturana (1994, p.47), “tudo o que nós, os seres humanos, fazemos como

tal, o fazemos nas conversações. E aquilo que não fazemos nas conversações, de fato, não o

fazemos como seres humanos”. Para esse autor, “o humano surge, na história evolutiva dos

primatas bípedes a que pertencemos com a linguagem” (MATURANA, 1994, p.142).

O conceito de autopoiese é, assim, original e essencialmente cibernético na medida em

que concebe o funcionamento do vivo como um circuito fechado de autoprodução, no qual o

conhecedor e o objeto do conhecimento configuram-se circularmente: conhecer e ser são

entendidos como processos inseparáveis. Rompe-se, portanto, com a fragmentação típica do

modelo cartesiano, em que tudo se passa como se o sujeito cognitivo fosse independente de

sua própria ação de cognição.

A substancialização das coisas também é abandonada, porquanto a lógica cibernética

trabalha com todas as dimensões da vida e não-vida, dando ênfase aos processos, e não às

coisas em si mesmas: ser-fazer-conhecer-falar são atividades ou ações sistemicamente

inseparáveis. É por isso que o observador não é mais alguém que está fora do sistema a

analisar suas operações, como se fosse uma realidade da qual ele não faz parte. O sujeito

deixa de ser mecânico para tornar-se epistêmico, pois pensa a si mesmo no ato de viver e

observar; não existe uma realidade previamente estabelecida, senão aquela construída pelas

24

Há um dissenso nesse ponto entre as perspectivas teóricas de Habermas e Luhmann. Porque, para Habermas,

os sistemas não se reproduzem de forma autônoma, uma vez que estão sempre atrelados à moral pós-

convencional. Como o real é inacessível pela linguagem, do ponto de vista científico só se pode falar em

veracidade, que nada mais é que o entendimento recíproco a respeito de algo no mundo. Em Luhmann, a ciência

é compreendida como outro subsistema social, que compartilha o mesmo ambiente que o sistema jurídico.

Contudo, opera a partir do código verdadeiro-falso (LUHMANN, 1996). Sob o ponto de vista moral, verdade,

em Habermas, resolve-se pela pretensão de validade, pois se refere à moral pós-convencional, em constante

reconstrução. As pretensões de validade, em Habermas, afirmam-se ao passarem pelo teste da imputação

recíproca de direitos. O autor abandona, assim, qualquer fundamento último, uma vez que a reconstrução da

moralidade pela razão comunicativa possibilita uma espécie de abertura ao futuro, sem amarras apriorísticas

(eticidade, tradições, o sagrado etc.) (HABERMAS, 2004b*).

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27

ações dos sujeitos em interação com o ser observado (PELLANDA, 2003). No caso do

sistema jurídico, a observação de segunda ordem pode ser exercida pelo Poder Judiciário.

Com efeito, há também uma ruptura com a tradicional concepção de que a

conservação e a evolução das espécies estariam sempre condicionadas por circunstâncias

externas – ambiente. Em sentido oposto, “a conservação dos sistemas vivos (indivíduos) fica

vinculada à sua capacidade de reprodução autopoiética, que os diferencia em um espaço

determinado” (NEVES, 2006, p.80).

A autopoiese, como fruto desses lineamentos teóricos, foi recepcionada pela teoria

luhmanniana, que buscou aplicá-la e ajustá-la às ciências sociais. Segundo Luhmann (1996a,

59):

A partir dos estímulos produzidos por essas propostas teóricas, a teoria dos sistemas

foi se constituindo ela mesma como um sistema de auto-observação, recursivo,

circular e autopoiético; dotado de uma dinâmica intelectual própria e fascinante,

capaz de colocar à altura dos desafios que hoje se anunciam sob a noção de pós-

modernismo (Tradução livre).25

Para aplicar a autopoiese aos sistemas sociais, Luhmann introduziu a distinção entre

os sistemas constituintes de sentido que seriam os sistemas sociais e os sistemas psíquicos

(indivíduos) e os sistemas orgânicos e neurofisiológicos. Enquanto estes demandam uma

concepção radical de fechamento, exigindo uma observação externa, aqueles – o indivíduo,

como sistema psíquico, e o direito, como sistema social – são capazes de se auto-observar.

A auto-observação possibilita que eles mantenham seu caráter autopoiético, referindo-

se simultaneamente ao ambiente e a si mesmos, o que viabiliza uma abertura para o ambiente,

sem prejuízo do fechamento recursivo e autorreferente. Todavia, a autorreferência elementar

decorrente dessa combinação entre fechamento operativo e abertura cognitiva, que possibilita

a autonomia e a unidade do sistema, configura apenas um dos três momentos em que se dá a

autopoiese, pois, tal como modelada por Luhmann, há ainda outros dois momentos: a

reflexividade e a reflexão.

Luhmann (1989, p.143) assim conceitua a expressão semântica “autorreferência”:

[...] designa toda operação que se refere a algo fora de si mesmo e que, por esta via,

volta a si. A pura autorreferência, a qual não toma o desvio do que lhe é externo,

poderia corresponder a uma tautologia. Operações reais ou sistemas reais dependem de um “desdobramento” ou de uma destautologização desta tautologia porque

25

“Tomando pie en los estímulos de estos planteamientos, la teoría de sistemas se fue constituyendo ella misma

en un sistema de autoobservación, recursivo, circular, autopoiético; dotado de una dinámica intelectual propia y

fascinante capaz de estar a la altura de los planteamientos problemáticos que hoy se enuncian bajo la noción de

posmodernismo.”

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28

apenas assim passa-se a compreender que eles (as operações e os sistemas) são

possíveis em um ambiente real somente de um modo limitado e não arbitrário

(Tradução livre).26

A autorreferência, assim, é o fator que possibilita a autorreprodução dos sistemas – e,

via de consequência, a manutenção da diferenciação sistêmica – justamente porque ela não é

“pura”, não é gerada pela mera repetição de operações. Isso ocorre porque há a interveniência

de fatores cognitivos externos ao sistema. Vale dizer, quando o ambiente ou outro sistema

provoca a produção de uma nova operação no interior de um dado sistema, não há mera

reprodução da operação anterior há um “reingresso” de fatores ou informações que eram

externos ao sistema e foram autorreferenciados pelas operações internas desse sistema.

Por outro lado, a nova comunicação gerada no interior do sistema por essa operação

deve se vincular às operações anteriores de modo a atribuir continuidade ao processo

autorreferencial.

No âmbito do direito, esse liame entre as comunicações jurídicas é o que atribui

consistência, como exigência de coerência, às decisões jurídicas – que são as operações

tipicamente produzidas pelo sistema jurídico; são comunicações jurídicas por excelência – e

as torna redundantes, portanto capazes de sequenciar o funcionamento do sistema jurídico e

garantir a manutenção de sua unidade.

A reflexividade é definida pelo próprio Luhmann (apud NEVES, 2007, p.132) como

“autorreferência processual”, uma vez que diz respeito à referência de um processo a si

mesmo – a decisão sobre a tomada de decisão, a normatização da normatização –, de modo

que “o processo referente e o processo referido são estruturados pelo mesmo código binário e

que, em conexão com isso, critérios e programas do primeiro reaparecem em parte no

segundo” (NEVES, 2007, p.131).

Na reflexão, por outro lado, é o próprio sistema – e não mais seus elementos ou

processos sistêmicos – que realiza a operação autorreferencial e possibilita seja questionada a

identidade do sistema.

É relevante, nesse ponto, anotar as ponderações do próprio Luhmann sobre a aplicação

do modelo autopoiético aos sistemas sociais:

O conceito de autopoiese é apenas um ponto de partida que deve ser seguido pelos

outros conceitos de relação que se aproximem mais da complexidade da realidade.

26

“Designates every operation that refers to something beyond itself and through this back to itself. Pure self-

reference that does not take this detour through what is external to itself would amount to a tautology. Real

operations r systems depend on an „unfoulding‟ or de-tautologization of this tautology becauseonly then can they

grasp that they are possible in a real environment only in a restricted, non-arbitrary way.”

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29

Mesmo na biologia chegou-se à conclusão de que a diversidade de espécies e as

diferenças de gênero não podem ser explicadas pelo conceito de autopoiese. O

mesmo sucede no âmbito específico da comunicação: quando já está assegurado um

sistema de signos como a linguagem com todas as suas antecipações e

recursividades, o conceito de autopoiese não é capaz de explicar os diversos níveis

de desenvolvimento das sociedades [...]. (Tradução livre)27

O autor segue explicando que, nesse contexto, a teoria da autopoiese é “uma espécie

de metateoria que não deve ser colocada nas bases metodológicas da investigação empírica,

no sentido de exigir-lhe prognósticos estruturais”, despida de maiores pretensões que não a de

figurar como uma orientação geral, devido ao nível de abstração em que se apresenta:

A autopoiese é, então, o princípio de uma teoria que pretende responder, de uma

maneira muito peculiar, a pergunta sobre o que é a vida, a consciência e o social.

Trata-se de uma refundação da teoria em que o desenvolvimento dos conceitos

complementares demandam muita elaboração. O conceito de autopoeise não oferece informações detalhadas, mantendo-se no plano geral, abstrato. Depende de auxílios

decisivos, como aquele advindo do conceito de acoplamento estrutural (Tradução

livre).28

Deve-se ter presente, ainda, que a autopoiese ingressa na teoria de Luhmann como um

conceito apto a explicar o processo de autorreprodução dos sistemas, porém desprovido de

conteúdo normativo. Assim, ao tratar da autopoiese aplicada ao direito, Neves (2007, p. 153-

154) o faz de forma crítica, como se verá no capítulo quatro, e correlaciona os três momentos

da autorreferência indicados por Luhmann às noções de legalidade, constitucionalidade e

legitimidade no sistema jurídico brasileiro. Segundo ele, à legalidade corresponde a

autorreferência de base ou elementar, já que o relevante nesse ponto é a capacidade de

conexão consistente entre as unidades elementares do sistema jurídico, que são as

comunicações, operações ou, mais especificamente, os atos jurídicos. A autorreferência do

sistema jurídico implica a harmonização da relação entre texto legal e comunicações jurídicas,

funcionando como “expressão jurídico-linguística” da legalidade. A legitimidade, em sentido

27

“O conceito de autopoeiesis es solo un punto de partida al que tienen que seguir otros conceptos de relación

que se acerquen más a la complejidad de la realidad. En la misma biologia se há llegado a la conclusión de que la

diversidad de espécies, las diferencias de gêneros, no pueden ser explicadas com el concepto de autopoeiesis. Lo

mismo sucede en el âmbito específico de la comunicatión: cuando ya está asegurado un sistema de signos como

el linguaje com todas suas antecipaciones y recursividades (y no solo como reacciones primarias al signo que

también tiene los animales), el concepto de autopoeiesis no es capaz de explicar los diversos desarrollos de las

sociedades [...] (LUHMANN, 1996a, p.94). 28

“La autopoeiesis es, entoces, un principio de teoría que de una manera muy peculiar responde a la pergunta de

qué es la vida, qué la conciencia, qué lo soial. Se trata de una refundación de la teoría en la que el desarollo de

los conceptos complementários requierem mucha elaboración. El concepto de autopoeiesis no ofrece ganancia

de informaccion y se mantiene en um plano general, abstracto. Requiere de ayudas decisivas como la del

concepto de acoplamiento estructural” (LUHMANN, 1996a, p.94).

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30

sistêmico, é a capacidade de o sistema orientar e reorientar as expectativas normativas a partir

de sua própria estrutura e de seus critérios.

No comentário de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, a autorreferência de base no direito

sustenta-se na binariedade do código e em sua combinação com o programa. Isso pode se dar

tanto na dimensão em que o sistema jurídico seleciona fatos e situações sociais, tornando-as

afetas ao direito, quanto na perspectiva de possibilitar o exame de conformidade dos atos

jurídicos singularmente considerados e das normas infralegais (portarias, resoluções) à lei. A

constituição, que abriga temas de notória relevância, como o controle de constitucionalidade e

a declaração dos direitos fundamentais, apresenta-se como o mais abrangente mecanismo de

reflexividade no interior do sistema jurídico, uma vez que açambarca a normatização de todos

os processos de normatização do direito positivo.

Por fim, ao momento da reflexão no processo autopoiético do sistema jurídico

corresponderiam a legimitidade do direito e a dogmática jurídica. Nesse caso, Marcelo Neves

(2007, p. 154) explica que a reflexão como referência do sistema à sua própria identidade

vincula-se à legitimação do direito em sentido sistêmico porque atribui ao sistema

“capacidade de orientar e reorientar as expectativas normativas com base em suas próprias

diferenças e critérios”. É por meio da reflexão que o sistema jurídico assume potencial para se

auto-observar e examinar se sua diferenciação em relação ao sistema político ou econômico,

por exemplo, não está sendo colocada em risco em virtude da sobreposição do código binário

desses sistemas (poder/não poder ou ter/não ter) sobre o código próprio do direito

(lícito/ilícito).

A reflexão, portanto, atribui ao sistema capacidade para evitar que se torne alopoiético

e, via de consequência, perca sua legitimidade sistêmica. Enquanto a autorreferência de base

estabelece o que é lícito/ilícito pelo fechamento normativo, a reflexão distingue o que

pertence ou não ao sistema jurídico, distinguindo o jurídico do não jurídico. Há, ainda, outra

perspectiva de observação da reflexão – que talvez anteceda à noção de reflexão vinculada à

legitimidade do direito – que se dá em duas dimensões ou em dois níveis de abstração. Ao

nível mais limitado de reflexão corresponde à dogmática jurídica, na qual assume destaque o

“princípio da inegabilidade dos pontos de partida das cadeias de argumentação”, o que

equivale à “proibição da negação”, com vistas à manutenção da identidade do sistema

(LUHMANN, apud NEVES, 2007, p.154).

Já a teoria do direito, a partir dessa compreensão, encontra correspondência numa

perspectiva mais abrangente da reflexão como “abstração da abstração”, porquanto admite,

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31

inclusive, que se questione a identidade do sistema (LUHMANN, apud NEVES, 2007,

p.154).

2.2 A diferenciação funcional do sistema jurídico

Das diversas correntes de teorias jurídicas, políticas e sociológicas que se dedicam ao

exame das relações entre direito, política e economia29

, a teoria dos sistemas é uma das que se

destaca por oferecer ferramentas que permitem uma observação mais apurada da tênue divisa

entre eles e da necessidade de preservar as diferenças que nos permitem identificar as funções

de cada um desses sistemas. Isso ocorre porque a teoria dos sistemas enfatiza os desafios – ou

os riscos – intrínsecos ao relacionamento intersistêmico, fomentando relevantes reflexões

sobre os limites de atuação do sistema jurídico na sociedade moderna.

Em Luhmann, o processo evolutivo das sociedades conduziu a reiterados processos de

diferenciação. Conforme crescia a complexidade da sociedade moderna, aumentava o nível de

diferenciação social, circunstância que permitiu o surgimento – diferenciação – de vários

sistemas sociais, tais como a ciência, a arte, a economia, a política e o direito.

É por isso que as comunicações são unidades elementares da sociedade, de tal sorte

que cada um de seus subsistemas é constituído por operações especificadas ou, melhor

dizendo, funcionalmente diferenciadas. Tais comunicações são realizadas sob a orientação de

código sistêmico próprio e, assim, torna-se possível o tratamento setorial e simplificado de

parte da complexidade de que o sistema jurídico se ocupa. Esse código é estruturado

binariamente entre um valor negativo e um positivo específico e, por intermédio dele, “as

unidades elementares do sistema são reproduzidas internamente e distinguidas claramente das

comunicações exteriores” (NEVES, 2006, p.82). Os códigos sistêmicos são binários porque

somente assim é possível a diferenciação, pois ao que se atribui valor positivo não pode se

valorar, ao mesmo tempo e pelo mesmo sistema, como negativo, e vice-versa. O sistema

precisa dessa distinção para se autorreproduzir a partir dela; é por isso que os códigos binários

variam de acordo com o tipo de comunicação que ocorre no interior de cada sistema. Assim,

no caso do sistema da Ciência, o código atribui valor de verdadeiro ou falso a uma

29

Como se verá adiante, a intersecção ou – de modo mais apropriado – o acoplamento estrutural entre o sistemas

jurídico e econômico é representado pelos contratos e pela propriedade, assim como a constituição, na teoria

sistêmica, seja fruto do acolpamento esturural entre o direito e a política (LUHMANN, 2004). Entretanto,

proposta aqui formulada observa a relação simultânea entre direito, política e economia que se estabelece no

orçamento público a partir da noção de racionalidade transversal (NEVES, 2009).

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32

determinada teoria; no da arte, belo/feio; no da religião, sacro/secular; no da economia,

ter/não ter – valioso/não valioso; no da política, poder/não poder; e no direito, lícito/ilícito.

O processo comunicativo que é reproduzido no âmbito interno do sistema jurídico pelo

código lícito/ilícito – pertinente ao direito/impertinente ao direito –, é que possibilita a

autonomia sistêmica ao permitir que o sistema se reproduza de modo recursivo. Portanto, o

sistema jurídico não é nem a totalidade dos atos jurídicos estabelecidos, nem um conjunto de

regras – ou princípios –, nem uma hierarquia formal: é a maneira como o direito busca criar-

se e recriar-se orientado pelo próprio direito (LUHMANN, 2004).

O surgimento do direito como sistema social resulta do processo de separação ou, para

se empregar a terminologia sistêmica, de sua diferenciação em relação à política na sociedade

moderna. Em outras palavras, o direito tornou-se um subsistema social em virtude da

especialização de sua função, que se afirmou como diversa daquela desempenhada pelo

sistema político, já que sua atuação volta-se, especificamente, ao controle do código

lícito/ilícito e demanda um sistema funcional para isso especializado (NEVES, 2006, p. 82).

Diferentemente do que apregoam as teorias da justiça em geral, para Luhmann isso

não significa que o lícito é bom e o ilícito é ruim; ou que o lícito é justo e o ilícito é injusto.30

O sistema jurídico opera a partir de um código binário que implica apenas uma distinção: algo

que é codificado como lícito, não pode ser codificado como ilícito, e vice-versa. O

emaranhado de comunicações que precedem – e possibilitam – a existência e a

autorreprodução do sistema jurídico é também a razão de ser da binariedade do código que

direciona tais operações. Isso porque, se em todo código estiver envolvido um terceiro valor e

as comunicações havidas no interior do sistema pudessem existir em graus (meio-lícito), a

tarefa de estabelecer conexões entre elas a fim de gerar novas e variadas comunicações faria

com que o sistema entrasse em colapso (LUHMANN, 2004, p. 92).

30

A pretensão de desvincular o direito dos postulados morais ou éticos rendeu muitas críticas à teoria sistêmica

luhmanniana, ora aproximando-a da matriz normativista – como se verá em tópico específico deste estudo –, ora

questionando, como fez Goyard-Fabre (2007, p.225), sua vulnerabilidade: “De fato, não caberia indagar se o

direito, desprovido de fundamento, que se auto-organiza em sistema, não correria o risco de apresentar-se como

um jogo puramente formal, cujo único critério é o da coerência interna, mas que, em última análise, é puramente

formal, arbitrário e gratuito?” Muitos argumentos poderiam ser alinhados em favor da proposta de Luhmann. Já

de saída, há que se considerar a advertência feita pelo próprio autor no sentido de que nenhuma teoria é capaz de

resolver todos os problemas enfrentados pela sociedade moderna, de sorte que a pretensão da teoria sistêmica é

aprimorar a descrição do funcionamento dessa sociedade. A partir da descrição, a teoria pretende propiciar a

observação construtiva dos fenônemons indesejáveis nela registrados e a visulaização das estratégias possíveis

para solucioná-los ou mitigá-los. Além disso, Luhmann não pretende o total insulamento do direito de modo a

admitir seja ele passível de dominação pela ideologia prevalente. A ética, a moral e até a religião atuam como

instâncias que ao agregarem valores arraigados da sociedade, inevitavelmente, produzem “irritações” no sistema

jurídico. Assim, seus critérios e valores valores podem ingressar no sistema sempre que codificados como lícitos.

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33

Assim, o código binário mostra-se capaz de oferecer dupla estabilidade às operações

que se realizam no âmbito interno do sistema jurídico:

Códigos binários, como o código lícito e ilícito, também surgem na forma de dupla

estabilidade e garantem que o sistema possa guiar suas próprias operações na

direção de encontrar o que é jurídico ou antijurídico apesar da diferença entre positivo e negativo, a qual estabelece que uma posição no sistema somente pode ser

tomada juridicamente e não antijuridicamente. Logicamente, a dupla estabilidade

pressupõe a exclusão de terceiros valores (ou definições) que não podem ser

atribuídas a nenhum dos dois valores. Sob essas circunstâncias ambos os valores são

conversíveis pela mera negação sem a necessidade de uma interpenetração de

valores. (Tradução livre)31

Decerto, um mesmo acontecimento poderá receber codificação positiva, na leitura de

um sistema, e negativa, em outro: um quadro, pintado por um artista desconhecido, pode ser

considerado belo pelo sistema da arte e não valioso pelo sistema da economia, ou vice-versa.

Por outro lado, no modelo sistêmico, quando se trata de atribuir um segundo código,

demonstra-se uma interdependência entre dois sistemas.

Neves (2008a, p.89) explica que “o Estado de Direito pode ser definido, em princípio,

como relevância da distinção lícito/ilícito para o sistema político”. Isso porque “ao lado da

distinção primária „poder-não poder‟, o esquema binário „lícito/ilícito‟ passa a desempenhar,

na perspectiva do observador do sistema político, o papel do segundo código de poder”.

Nessa mesma direção, Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 301) pontua que,

no âmbito do Estado de Direito, há uma recíproca vinculação entre direito e política fundada

pelo acoplamento estrutural entre os dois sistemas, ou seja, pela constituição. Dada a

importância desse tema para os objetivos deste estudo, a questão será retomada em tópico

específico; por ora, é importante ter claro, porém, que o acoplamento entre as estruturas32

de

ambos os sistemas (direito e política) não implica desdiferenciação; ao contrário, pressupõe a

diferenciação entre os sistemas.

31

“Binary codes, such as the code legal and illegal, also come in the form of bi-stability and guarantee that the

system can direct its further operations either towards a finding of what is legal or towards one of what is illegal

– regardless of the difference between positive/ negative which states that a position in the system can only be

taken legally and not illegally. Logically, bi-stability assumes the exclusion of third values (or definitions) that

cannot be attributed to either of two values. Under these circumstances both values are convertible by mere

negation without the need for an „interpenetration‟ of the values” (LUHMANN, 2004, p. 183). 32

Estrutura é a condensação das diversas formas de comunicação por meio dos “meios de comunicação

simbolicamente generalizados”; corresponde ao programa normativo que se conjuga com o código que, no caso

do direito, é o código lícito/ilícito; e da qual resulta a normatividade do sistema. A estrutura é o que mantém a

identidade do sistema no tempo, formando-se pela distinção entre código e programa (LUHMANN, 2009, p.

323-329).

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34

2.2.1 O processo evolutivo de diferenciação sistêmica do direito

A compreensão do processo sistêmico de diferenciação é essencial para que se

entendam as funções e os limites da atuação do sistema jurídico na contemporaneidade, razão

por que, neste estudo, serão dedicadas algumas linhas à evolução social e sua repercussão na

diferenciação funcional-sistêmica do direito.

Desde já, deve-se esclarecer que a teoria sistêmica compreende a evolução social

como o resultado de um processo constante de variação, seleção e reestabilização de

estruturas.

De acordo com Luhmann (2004, p.232), “variação refere-se aos elementos do sistema,

seleção envolve as estruturas desse sistema e a reestabilização diz respeito à unidade do

sistema que é capaz de reproduzir a si mesmo autopoieticamente”.33

Portanto, não há

dimensão valorativa na referência que Luhmann faz ao processo evolutivo da sociedade, uma

vez que a evolução não se dirige a um fim determinado ou à realização de um ideal ou valor;

e, tampouco, pode ser planejada.34

Isso porque a teoria sistêmica rejeita a noção ontológica do

processo histórico como uma unidade na qual se desenvolve o “espírito” até alcançar sua

forma final “absoluta”, tal qual propôs a teoria hegeliana. Afasta-se, também, da perspectiva

marxista, que vê no processo histórico uma unidade em que se sucedem vários níveis de

desenvolvimento social no sentido da superação de formas materialmente determinadas de

dominação (NEVES, 2008b, p.5).

Muito embora o aspecto histórico seja amplamente considerado em sua formulação

teórica, Luhmann preconiza uma visão não historicista, que não desconsidera a aleatoriedade

com que se desenvolvem as comunicações, afastando qualquer perspectiva determinista. Nas

palavras de De Giorgi (1998, p.153):

A percepção da historicidade do tempo enquanto tempo presente significa percepção

da inevitabilidade do que é indisponível. Indisponível são as premissas, isto é, o

passado que não mais existe enquanto é passado, e o futuro, que ainda não existe na

medida em que é futuro. Estas indisponibilidades, porém, são inevitáveis, porque o

passado e o futuro são modalidades do tempo que existem, isto é, só podem ser

construídas no presente. E se, quanto ao passado, não se pode fazer nada, quanto ao

futuro pode-se fazer algo, ou melhor, tudo o que se faz é sempre construção de um

futuro.

33

“This means, in a further abstraction: variation involves the elements, selection involves the structures,

stabilization involves the unity of the system, which reproduces itself autopoietically.” 34

Repudia-se a ideia iluminista de que o aumento constante dos saberes tornaria o mundo proporcionalmente

mais transparente e, em consequência, as decisões tomadas pelos homens, mais acertadas e evidentes. Isso ocorre

porque, segundo Luhmann, tal perspectiva ignorou os efeitos entrópicos, desorientadores, do excesso de

informação a que estão submetidos os sujeitos relativamente isolados e “livres” das sociedades modernas.

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35

A evolução da sociedade – e por consequência dos seus sistemas – nada mais é que a

transformação do improvável em provável, despida de qualquer axiologismo, porquanto o

futuro não é passível de previsão. Segundo Luhmann (1996b, p. 5), o êxito dessa evolução

não pode ser deduzido das condições que a favoreçam e não é previsível precisamente em

razão destas. A situação histórica passa, mas a aquisição, se se convalida, fica. O que, no

entanto, depende de problemas históricos bem mais profundos da sociedade.

Como bem esclarece Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 289), na

modernidade, a diferenciação social ocorreu pari passu com a estruturação de subsistemas da

sociedade que se orientavam para a realização de funções específicas e imprescindíveis ao

funcionamento da sociedade. Em linhas gerais, pode-se dizer que a cada subsistema social

incumbe solucionar um “problema” surgido na sociedade. As funções de subsistema social,

portanto, são tão diferenciadas quanto sejam específicas. Por isso se diz que na modernidade o

direito firmou-se como subsistema social funcionalmente diferenciado.

Na sociedade pré-moderna, organizada em estratos, as funções necessárias ao seu

funcionamento eram diluídas no sistema social globalmente considerado e, além de se

confundirem entre si, deixavam-se ser conduzidas pelo primado da religião. É por isso que,

somente com o advento da modernidade, foram oferecidas condições para que os subsistemas

sociais se liberassem da religião e buscassem estímulos ao processo de especificação dos

“modos de comunicar”, a fim de desempenhar suas próprias funções, diferenciando-se a partir

da necessidade de solucionar problemas sociais diversos.

O conjunto de teorias que fomentou a formulação sistêmica da segunda fase do

pensamento de Luhmann (vide 2.1 supra) possibilitou que a dimensão social do direito fosse

compreendida, a um só tempo, como atividade de reflexão empreendida pelo próprio sistema

jurídico – pela via da dogmática ou da teoria – e como produto da autorreferência do sistema.

A partir dessa concepção, o sistema jurídico tornou-se funcional, capaz de realizar sua

autorreprodução com base em suas próprias operações, ao que Luhmann chamou, como já

visto, de autopoiese do sistema jurídico.

Se ao direito não é dado garantir que algumas expectativas sejam protegidas contra a

frustração, cabe a ele selecionar aquelas que se revestem de normatividade e, portanto, serão

dotadas de capacidade para resistir aos conflitos entre as demais que se prendem ao âmbito

cognitivo porquanto não serão por ele garantidadas.

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36

Por meio dessa atividade de distinção, seleção e proteção de determinadas

expectativas, o direito diferencia-se de seu ambiente e desempenha a função para a qual se

especializou: garantir que as expectativas sociais dotadas de normatividade sejam, no mínimo,

mantidas como tais e tornadas estáveis.

A propósito disso, é necessário distinguir os dois tipos de expectativas sociais. As

expectativas cognitivas são aquelas que se modificam quando postas em xeque, sem que isso

gere qualquer reação no âmbito do sistema jurídico. Assim, por exemplo, se se constatasse

que nem todos os corpos caem com uma aceleração previsível e calculável de acordo com a

lei da gravidade, essa lei deveria ser substituída por outra que levasse em conta essas exceções

como ocorrências previsíveis e que criaria, desse modo, expectativas mais adequadas

(AMADO, 1999, p. 64). A provisoriedade do conhecimento ditada pela modernidade

complexa induz à observação de que as expectativas cognitivas existem para que sejam postas

à prova e substituídas por outras que sejam capazes de melhor descrever a realidade acessível.

Portanto, as expectativas cognitivas, como hipótese de heterorreferência, ingressam no

direito em virtude da abertura cognitiva que o sistema mantém em relação ao ambiente, uma

vez que elas são indispensáveis, como já visto, à autorreferencialidade, à autorreflexão e à

reflexividade do sistema jurídico. Vale dizer: sem a abertura para as informações que

circulam no ambiente – onde estão os outros sistemas sociais – e se apresentam como

expectativas cognitivas, o sistema jurídico não poderá se autorreproduzir, porquanto sua

autonomia só é possível se mantida a relação de dependência com o ambiente. Nada obstante,

é igualmente imprescindível que, no sistema jurídico, as expectativas cognitivas sejam

traduzidas pelo código lícito/ilícito e se submetam à necessária tradução que lhes permitirá o

“reingresso” no interior do sistema, dando azo ao surgimento de expectativas normativas

jurídicas capazes de referenciar o funcionamento do sistema jurídico mediante o fechamento

operacional ou normativo do sistema jurídico. 35

Já as expectativas normativas devem resistir às frustrações; em face delas o sistema

não se adapta às circunstâncias, mas as protege para que sejam mantidas. Vale-se aqui, mais

uma vez, do exemplo de Amado (1999, p.64): ao se observar que alguns motoristas conduzem

35

Como se verá em momento oportuno, o sistema jurídico é cognitivamente aberto e operacionalmente fechado.

Isso significa, grosso modo, que sua diferenciação sistêmica e a funcionalidade de suas operações dependem de

que, no âmbito interno, “a cegueira no plano das operações” atua “como condição de visão” (DE GIORGI, 1998,

p. 155). Vale dizer, o fechamento operacional, ao limitar as operações do sistema jurídico ao código lícito/ilícito,

torna possível a autorreferência, que, a seu turno, é condição para a permeabilidade do sistema jurídico aos

influxos externos que, por meio da abertura cognitiva, fazem nascer novas expectativas normativas que,

doravante, poderão ser objetos de reestabilização. Importante esclarecer, por outro lado, que há dados cognitivos

relevantes para o direito e que não se restringem à abertura cognitiva propriamente dita.

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37

seus veículos pela contramão direcional não se pretende modificar a obrigação de que todos

acatem apenas o sentido permitido ao dirigir seus automóveis; ao contrário, a expectativa é

mantida e reforçada por meio da imposição de uma sanção. Como expectativas que se

estabilizam contrafaticamente, as expectativas normativas são normas que adquirem feição

jurídica quando se desvinculam da interação concreta (intersubjetiva) e alcançam a

estabilização contrafactual. A expectativa normativa se torna norma jurídica quando é

generalizada.

De acordo com Luhmann, a variação evolutiva do sistema jurídico diz respeito à

“comunicação inesperada de expectativas normativas” (NEVES, 2008a, p. 18), ou seja, à

circunstância em que, se um comportamento não é previsto nas estruturas normativas

preexistentes, há um desapontamento das expectativas contrafácticas predominantes numa

dada sociedade. Nesse sentido, as leis podem ser consideradas uma constelação “de

expectativas institucionalizadas que diz como a sociedade pode esperar que os outros se

comportem” (LUHMANN, 1996a, p.66).

Retomando a noção de variação evolutiva que ocorre em torno do modo inesperado

como as expectativas normativas se comunicam, Luhmann explica que tal pode ser observado

pelo sistema como um desvio e, logo, tomado com indiferença. No entanto, esse “desvio”, se

reiterado, pode ser tratado a partir da seleção dessa expectativa como apta a integrar as

estruturas do sistema jurídico, o que ocorre por meio da produção de novas estruturas

normativas capazes de assimilar – codificando em lícito ou ilícito – referido comportamento.

Como a reestabilização refere-se à unidade do sistema jurídico, ela só ocorrerá quando

a nova expectativa tiver sido inserida como norma vigente no ordenamento jurídico. Com

efeito, os três mecanismos de evolução do direito – elemento, estrutura e unidade sistêmica –,

embora sejam conexos, foram diferenciados ao longo do processo evolutivo – de modo

endógeno36

– por eles protagonizado.

Entretanto, não se pode desconsiderar que, além das interferências recíprocas entre

sistemas, é inegável que o sistema jurídico é “funcional-estruturalmente sensível ao ambiente

36

Luhmann faz distinção entre processos de evolução sistêmica endógenos e exógenos, ao passo que Gunther

Teubner objeta que essa distinção só tem sentido na visão sistêmica pré-autopoiética, encontrada no “primeiro”

Luhmann, uma vez que pressupõe sistemas abertos que permitiriam a influência imediata do ambiente sobre o

sistema jurídico (NEVES, 2008a, p.19). Todavia, seguindo-se posicionamento encampado por Neves (2008a),

tem-se que a distinção entre evolução exógena e endógena parece apontar para a noção de coevolução,

consubstanciada na conexão problemática entre mecanismos evolutivos, que são internos ao sistema, à sociedade

e os demais sistemas sociais. Ressalta o autor que não se pode desconsiderar a importância das influências

recíprocas entre os sistemas que se dão pela forma da interpenetração, acoplamento estrutural e interferência,

bem assim o fato de que cada um dos sistemas é sensível ao ambiente social que o circunda.

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38

social” (NEVES, 2008a, p.18) e que essa circunstância exemplifica uma hipótese de evolução

exógena.

Luhmann (2004, p.240) conclui, assim, que “todas as formas de comunicação estão

significativamente relacionadas às formas de diferenciação nas respectivas sociedades”. Para

ilustrar sua conclusão, o autor refere-se à importância do direito Civil Romano na evolução do

direito e põe em relevo o fato de que esse modelo avançado de jurisdição só apareceu em

Roma em virtude de aspectos peculiares do nível de desenvolvimento alcançado pela

sociedade romana; não foi sem razão que lá surgiram o contrato e a propriedade.

A evolução dos subsistemas, nesse cenário, corresponde ao aumento da complexidade

do sistema social, que, por sua vez, organiza-se para fazer face à complexidade quase

imensurável do ambiente. Para tanto, a complexidade de um sistema é regulada por suas

estruturas, às quais incumbe a pré-seleção das possíveis situações que o sistema pode

enfrentar em face de seu ambiente. Quanto maior a complexidade, maior a exigência de

seletividade e, por conseguinte, maior a demanda por diferenciação sistêmica.

A partir dessa visão é que se torna possível correlacionar a evolução do direito ou,

para utilizar a terminologia sistêmica, os níveis de diferenciação pelo qual o sistema jurídico

passou ao longo da história aos diferentes tipos de sociedade que se sucederam

historicamente.

Luhmann distingue três sistemas societários: segmentário,37

estratificado ou

hierárquico38

e funcionalmente diferenciado.39

40

De modo sintético, a distinção desses

37

Na sociedade segmentária, tipicamente arcaica, o nível de diferenciação é praticamente nulo, pois os

subsistemas são iguais entre si, diferenciando-se apenas em razão das desigualdades fortuitas advindas das

condições do ambiente (ALCOVER, 1993). As sociedades tribais seriam exemplos típicos de uma sociedade

segmentária. 38

Nas sociedades estratificadas ou hierárquicas, há um nível pouco maior de complexidade. Vale dizer: há

diversas camadas sociais desiguais entre si e internamente divididas; os subsistemas sociais são organizados hierarquicamente, de sorte que o poder e, por conseguinte, as possibilidades de comunicação estão distribuídos

desigualmente: os membros dos estratos inferiores praticamente não dispõem de meios para se comunicar com

os membros dos estratos superiores; por isso, as lutas sociais acabaram por constituir um meio para que tal

comunicação se viabilizasse. O exemplo que Luhmann utiliza quanto a esse tipo de sociedade são as “culturas

avançadas da pré-modernidade” (ALCOVER, 1993). 39

As sociedades funcionalmente diferenciadas são caracterizadas pela formação de distintos subsistemas a partir

das distintas funções e temáticas tratadas por cada um deles. Isso porque, no modelo de sociedade complexa que

sucedeu à modernidade, cada um dos subsistemas da sociedade se origina em razão das atividades (operações)

que o referenciam e do tipo de comunicação que o constitui: a economia orienta-se pelas questões relativas à

produção de bens e circulação de riquezas; a política pretende viabilizar a tomada de decisões vinculantes para

toda a sociedade, e o direito orienta-se pela função de estabilizar as expectativas normativas congruentes. A

“aquisição evolutiva” explica-se pela inexistência de hierarquia entre os subsistemas sociais, pois nenhum deles

pode se sobrepor ao outro. O grau de importância de cada um dependerá da situação concreta sobre a qual as

operações de um dado subsistema incidirão (ALCOVER, 1993). 40

Como se verá em momento posterior deste estudo, Jürgen Habermas, associa as fases da evolução social aos

níveis de consciência moral. Isso porque o autor explica as mudanças evolutivas dos sistemas sociais levando em

conta a lógica do desenvolvimento relativo às estruturas de consciência prático-morais e à dinâmica do

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39

modelos de sociedade é sustentada no modo como as comunicações eram organizadas em

cada um desses momentos, o que equivale a dizer que os critérios fundamentais na

organização da sociedade, ao longo da história da humanidade, norteiam a distinção. Assim,

as sociedades segmentárias ou primitivas organizavam-se a partir de critérios naturais, como

gênero e idade, por exemplo; as sociedades estratificadas valiam-se de critérios hierárquicos

para se organizarem entre nobres e plebeus, cidadãos ou escravos; e, finalmente, na

modernidade, os critérios que fundamentam a auto-organização das sociedades são

funcionais, em virtude da estabilização de sistemas especializados, que se prestam a

desempenhar funções específicas e exclusivas, como o direito, a política e a economia.

Nesse mesmo passo, à diferenciação segmentária das sociedades antigas corresponde o

direito arcaico; à diferenciação hierárquica da sociedade corresponde o “direito das culturas

avançadas pré-modernas”41

e, à sociedade contemporânea, diferenciada funcionalmente,

corresponde o direito positivo.

Em retrospectiva histórica, Luhmann constatou que, nas sociedades arcaicas, o direito

logrou afirmar-se ao se defrontar com a frustração decorrente do desapontamento das

expectativas, mediante o uso da força voltada à autodefesa da vítima ou de seu clã,

possibilidade incompatível com qualquer procedimento que pretendesse estabelecer uma

regulamentação normativo-jurídica. A aplicação do direito era, por assim dizer, irrefletida,

porquanto assegurada pelo respectivo indivíduo ou grupo ofendido. Como não há

possibilidade de generalizar congruentemente as expectativas normativas desses indivíduos ou

dos grupos a que se vinculam mediante procedimentos, não há distinção entre

desapontamento de expectativa e ofensa a direitos, circunstância que Luhmann (1983) associa

à ausência de uma cultura jurídica escrita. Vale dizer: não há, nessa fase, distinção entre

moral, direito, religião, costumes e convencionalismo social, tampouco é possível estabelecer

qualquer diferença entre expectativas cognitivas e normativas. Em termos de evolução,

portanto, o direito arcaico não assimila o mecanismo da variação, uma vez que se mostra

incapaz de absorver comportamentos que demandem inovação em sua (diminuta) estrutura.

desenvolvimento das sociedades que diz respeito aos processos históricos. Ao conjugar esses dois critérios,

inspirado no estruturalismo genético de Kohlberg, propõe que “a transformação das instituições sociais deve ser

buscada na evolução daquelas estruturas de racionalidade, cada vez mais complexas, que partem de níveis de

consciência moral pré-convencional, avançam para o convencional e, posteriormente, deste para o pós-

convencional” (ARAGÃO, 2002, p.141). Nas sociedades primitivas, em que o nível de consciência moral é pré-

convencional, as ações e seus motivos são avaliados apenas por suas consequências; nas sociedades antigas (ou

feudais), as ações são julgadas pela sua conformidade com um sistema de normas; nas sociedades modernas ou

capitalistas, os sistemas de normas devem ser avaliados a partir de pontos de vistas universalistas. 41

Emprega-se aqui, em razão de sua precisão, a expressão “culturas avançadas pré-modernas”, utilizada pelo

Professor Neves (2006, 2007 e 2008a), muito embora na obra Sociologia do direito, de Niklas Luhmann (1983),

públicada no Brasil pela Editora Tempo, a terminologia escolhida pelo tradutor tenha sido “culturas antigas”.

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40

O “direito das culturas avançadas pré-modernas” já possibilita a formalização de

procedimentos que permitam sua aplicação, uma vez que a sociedade é hierarquicamente

escalonada, submetida à dominação política. A generalização congruente de expectativas

emerge como função do direito e passa a ser viabilizada por procedimentos cujos resultados

são incertos. A limitação do direito, nessa época, consistia na imutabilidade das normas que

norteavam sua aplicação.

Todavia, necessário esclarecer que, nos primórdios dessa fase evolutiva, a

diferenciação do procedimento em relação a outras instâncias da sociedade era precária, uma

vez que, não raro, questões jurídicas eram orientadas por rituais divinatórios. Nesse contexto,

pode-se afirmar que a diferenciação do procedimento de aplicação jurídica foi implementada

pela primeira vez na história evolutiva do direito, com o advento do direito Civil Romano,

que, na Idade Média, recebeu nova sistematização.

Bem antes disso, porém, o advento da escrita contribuiu sobremaneira para a

intensificação da variação, porquanto tornou possível a assimilação de comportamentos não

previstos até então nas estruturas normativas existentes. Contudo, os procedimentos

decisórios ainda eram inaptos para lidar com a crescente variação de expectativas normativas

geradas por operações comunicativas que se proliferavam em progressão geométrica.

Na Sociologia Jurídica, Luhmann (1983) elenca alguns processos históricos relevantes

para a transição das “culturas avançadas pré-modernas‟‟ para a sociedade moderna.

Entre tais processos, merece destaque a ideia de “jurisdição voltada à manutenção da

ordem”, introduzida com a compilação das leis sob a iniciativa dos monarcas que queriam

unificar a prática dos tribunais em seu reinado e preservar os tribunais de influências locais.

Igualmente relevante é a recepção do direito, que possibilitou a discussão de

conteúdos normativos sem referência direta a um contexto social e contribuiu para o

surgimento de uma noção de validade distinta dos costumes. Também os esforços para se

estabelecer hierarquia entre “direito divino, direito natural e direito positivo”, observados

desde a Idade Média até o Iluminismo, conduziram a uma noção abstrata acerca do conceito

de direito válido.

A transição das “culturas avançadas pré-modernas” para a sociedade moderna,

segundo Luhmann (1983), é resultado ainda da oposição, na Idade Média, entre o direito

antigo e o direito novo oposição essa que, conquanto tenha sido introduzida para justificar a

pretensão de perenidade do direito antigo, criou as categorias necessárias para que se

engendrasse o raciocínio inverso, privilegiando o direito novo.

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41

Também impulsionou essa transição o surgimento de processos de decisão política

complexa, quando, além de se fazer cumprir a vontade do soberano, tornou-se necessária a

formulação de objetivos políticos, mudança que foi decisiva para o processo de diferenciação

funcional da política.

Todos esses fatores são de suma importância para a compreensão dessa transição, uma

vez que, por intermédio deles, delimitava-se um universo identificável de leis (compilações,

recepção de codificações romanas), criavam-se condições para que se problematizasse a

noção de validade, por meio do debate sobre as fontes divinas e humanas do direito e, o mais

importante, relativizava-se a noção de imutabilidade do direito. A modernidade, portanto,

abriu caminhos para a positividade do sistema jurídico, que, àquela época, já havia alcançado

um significativo nível de diferenciação funcional.

Em face de tantas contribuições, é inegável a importância da concepção jusnaturalista

para a evolução da positivação do direito. Nada obstante, a positivação aqui referida ainda

tem sua validade atrelada à conformidade com o direito natural inalterável. A positividade do

direito, como conquista da sociedade moderna e nos moldes propostos pela teoria sistêmica,

só surgiu “com a introdução do procedimento legiferante como critério de validação das

normas jurídicas” (NEVES, 2008a, p.23).

A questão da positividade do direito é sobremaneira relevante para a compreensão da

proposta sistêmica para o direito. No entanto, antes de adentrar esse ponto, convém passar em

revista algumas das matrizes da teoria jurídica, formuladas ao longo do século XX, para que a

proposta sistêmica seja contextualizada de forma mais ampla. Em razão da vastidão do tema,

o exame dessas teorias levará em conta questões relacionadas à semiótica. Assim, a reunião

das teorias jurídicas em grupos levará em conta os aspectos da linguagem jurídica que foram

considerados em cada constructo. Para tanto, vale-se aqui da proposta classificatória

engendrada por Leonel Severo da Rocha (2005), a que ele denominou de “três matrizes

teórico-políticas do direito”.

2.3 Matrizes da teoria jurídica contemporânea

O agrupamento das diversas teorias jurídicas conforme a matriz disciplinar que as

orienta, embora possa incorrer em reducionismo – como ocorre com as classificações em

geral –, parece ser de considerável relevância didática para a identificação das referências

teóricas utilizadas neste estudo. Isso porque, em dado momento, a teoria sistêmica proposta

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42

por Luhmann, isolada dos demais modelos teóricos que também conservam traços sistêmicos,

não será suficiente para a análise de algumas questões que se propõe examinar.

A partir de um corte epistemológico que leva em conta critérios de cientificidade

exigidos para a construção do conhecimento jurídico e visa a identificar o campo de

racionalidade em que estão inseridos cada um dos grupos de teorias, Rocha (2005) propõe a

distinção entre três grandes matrizes da teoria jurídica contemporânea: a normativista-

analítica, a hermenêutica e a pragmático-sistêmica.

As dimensões semióticas42

da linguagem – sintaxe, semântica e pragmática –

constituem o critério que orientou a reunião das teorias em cada um dos três grupos que serão

apresentados a seguir, uma vez que à semiótica jurídica incumbe a tormentosa tarefa de

compreender a diversidade dos discursos pertencentes aos complexos gêneros da linguagem

jurídica que emergem no cotidiano da aplicação do direito.

Antes de apresentar cada uma das matrizes teóricas, é relevante esclarecer o que

motiva a distinção das dimensões básicas da semiótica jurídica.

Quando se fala em sintaxe, são especialmente consideradas as interconexões entre os

signos normativos, ou seja, o enunciado da norma. O contexto no qual se inserem os

emissários e destinatários da mensagem contida na norma é desconsiderado, assim como os

significados específicos desse signo normativo e as situações objetivas a que se referem

(NEVES, 1998, p. 21). Privilegia-se a regularidade lógico-formal das proposições em

detrimento do exame conteudístico e relacional dos enunciados da norma.

A dimensão semântica avança no sentido de considerar a relação entre o enunciado da

norma e a significação que traz em si, além de levar em conta a relação entre o signo

normativo e as situações objetivas que o conforma. Autores como Warat (1985, p. 55-56)

propõem a distinção entre duas dimensões semânticas de sentido: o significado, propriamente

dito, que se refere ao aspecto conotativo, e as questões referenciais, que são os objetos ou

situações objetivas a que o enunciado se refere, ao que se denomina de dimensão semântica

denotativa (NEVES, 1998, p. 21).

42

Conforme explica Warat (1995), a partir das proposições de Rudolf Carnap, a semiótica foi desdobrada em

três níveis: a sintaxe tem por objetivo o estudo da estrutura formal da linguagem, por intermédio da análise

lógico-linguística; a semântica, que se destina a averiguar o sentido das proposições, partindo das relações entre

os enunciados e a realidade; e a pragmática, que tem em vista o estudo do uso das preferências discursivas.

Conquanto as concepções acerca do alcance de cada uma dessas dimensões da linguagem tenham sido

transformadas por estudos posteriores, como os de Peirce, Wittgenstein, Searle e John Austin, a já tradicional

divisão proposta pelo filósofo do Círculo de Viena permanece como marco na inclusão da dimensão pragmática

da semiótica na análise da linguagem. Nada obstante, a utilização de todas as dimensões da semiótica só aos

poucos foi sendo explorada pelas teorias jurídicas, ou seja, só na segunda metade do século XX é que a dimensão

pragmática passou a ser considerada na linguagem jurídica, como se pretende esclarecer neste trabalho.

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43

Por último, a pragmática coloca em evidência a relação entre os enunciados da norma

e aqueles que irão dela se valer ou a ela se submeter, como emitentes ou destinatários da

mensagem normativa. É a dimensão pragmática da linguagem jurídica que privilegia a noção

discursiva e dialógica do direito. Sem desconsiderar o aspecto sintático e semântico da

linguagem jurídica, a atenção volta-se para o aspecto comunicacional, porquanto a norma

passa a ser compreendida como “fato linguístico” (FERRAZ JUNIOR, 1997, p.12-14). No

nível pragmático, o discurso é direcionado à aplicação da norma jurídica e à serventia dessa

linguagem normativa no mundo social. Não se trata aqui de uma dimensão que escapa à

lógica e migra para a sociologia, até porque a dimensão pragmática pressupõe a dimensão

semântica e esta, por sua vez, depende da dimensão sintática para existir. Nesse passo, a

dimensão pragmática da linguagem jurídica contempla o enlace entre as três dimensões da

semiótica jurídica: a investigação do texto jurídico parte do exame da regularidade lógico-

formal das proposições jurídicas; isso possibilita que sejam incluídas as considerações

relativas à lógica material quando, no nível semântico, aprecia-se a relação entre o conteúdo e

o alcance desses enunciados e os significados respectivos; e, por último, no âmbito

pragmático da linguagem jurídica, o aspecto dialético da lógica é sopesado, assim como os

elementos ideológicos-finalísticos que integram tal linguagem (NEVES, 1998, p.22).

A seguir, passa-se ao exame de cada um desses grupos teóricos.

2.3.1 O normativismo analítico

Empenhados em construir uma linguagem mais rigorosa para a “ciência jurídica”,

Hans Kelsen e Norberto Bobbio, cada um a seu modo,43

partiram do pressuposto de que as

proposições normativas descreviam sistematicamente o objeto do direito, razão por que tais

autores eram considerados neopositivistas (ROCHA, 2005).

O normativismo analítico inovou ao tentar purificar o discurso jurídico, livrando-o dos

influxos metajurídicos advindos da religião, da ideologia, da moral e mesmo da política. Na

esteira desse raciocínio, ao dissociar a ciência jurídica do direito em si, Kelsen propõe que ao

cientista cabe apenas a construção de um objeto de análise próprio, afastado das influências

que atuam sobre o direito (moral, religião, política etc). A propósito disso, a ciência do direito

– como as ciências em geral – seria meramente descritiva, uma vez que descreveria de forma

43

As obras desses autores que melhor explicam a visão neopositivista, em que se abandona a perspectiva da

tradição do positivismo legalista são: Teoria pura do direito, de Kelsen, e Ciência do direito e Análise da

linguagem, de Bobbio.

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44

neutra a estrutura das normas jurídicas, ao passo que a norma, como esquema de interpretação

do mundo, ostentaria caráter prescritivo, ao emitir imperativos de conduta (SOUZA CRUZ,

2004, p.116).

Hans Kelsen incrementou a visão positivista tradicional (positivismo jurídico-

legalista) ao propor que todo ato jurídico é, concomitantemente, a aplicação de uma norma

superior por meio de mera cognição e a produção de uma norma inferior, que constitui um ato

de volição em que se manifesta a discricionariedade atribuída ao aplicador do direito nos

parâmetros normativistas.

O grande desafio posto para os normativistas era introduzir uma racionalidade

independente de critérios metafísicos ou transcendentais. Para tanto, Kelsen sugere a

pressuposição de uma norma hipotética fundamental – grundnorm – como fruto da

racionalidade humana (SOUZA CRUZ, 2004).44

Ao escrever sobre o normativismo, Bobbio destacou que as regras das quais o jurista

se ocupa em sua análise se expressam em proposições normativas, de maneira que interpretar

uma lei é uma abordagem linguística dessas proposições. Essa conclusão levou o autor a

conceber três fases para o processo interpretativo: a purificação, a integração e a ordenação da

linguagem jurídica das proposições normativas.

Todavia, percebendo a impossibilidade de tamanha objetivação, Bobbio passou a

admitir a existência de antinomias e lacunas no direito (ROCHA, 2005, p.20), o que impôs

outros rumos à sua pesquisa jurídica.

Herbert Hart e Alf Ross também apresentaram propostas para a construção de um

estatuto de cientificidade do direito em bases neopositivistas, contudo de premissas diversas.

Em O conceito de direito, Hart pretendeu extrapolar os limites do normativismo analítico ao

se preocupar com a dimensão pragmática da linguagem em suas investigações hermenêuticas;

Ross, em Direito e justiça, definiu o direito vigente, no sentido de ordenamento jurídico,

como um conjunto de diretrizes que provavelmente os juízes levariam em conta na

fundamentação de suas decisões.

Seguindo uma linha normativista que privilegia a hermenêutica e propõe uma

jurisprudência menos voltada à elucidação da “designação pura do signo direito, como tentara

fazer Bobbio, Hart firmou-se como um dos precursores da hermenêutica jurídica

44

Como bem anota Álvaro Ricardo Souza Cruz (2004, p.116), a idealização de uma norma fundamental

hipotética rendeu inúmeras críticas à teoria kelseniana porque traria em si uma contradição: “se a ciência

kelseniana exercia uma função meramente descritiva, a pressuposição de uma norma hipotética fundamental não

seria um ato de criação do cientista jurídico?” A resposta do teórico foi no sentido de que, embora a norma

fundamental não seja positiva, ela poderia ser inferida a partir de um comportamento descritivo.

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45

contemporânea” (ROCHA, 2005, p.23), apesar de não ter conseguido superar os entraves

próprios da matriza normativa. Sabe-se que Hart iniciou seu trabalho com os olhos voltados

para a crítica ao positivismo de Austin, mas sua obra superou em muitos pontos o

reducionismo da visão normativista analítica ao colocar em relevo a função do intérprete, o

que se traduziu em ganhos para o processo do conhecimento jurídico.

Na prática, o pretendido (e inalcançado) rigor linguístico dos normativistas que

tinham por objetivo estabelecer processos capazes de elucidar o sentido dos textos

terminaria por construir as bases de uma jurisprudência fundada na denotação pura (ROCHA,

2005), que desconsidera os questionamentos postos pelo potencial hermenêutico do intérprete.

Isso porque a crença na possibilidade desse rigor linguístico enquadra-se na moldura

posta desde a Antiguidade Clássica a partir do Crátilo platônico e acatada pela “filosofia

da consciência”, já na Idade Moderna, que via na razão solipsista o âmbito exauriente do

conhecimento moral e científico:

Nesse contexto, a linguagem seria mero mecanismo de padronização/indeterminação

do sujeito com o objeto de sua análise. Assim, os signos/símbolos de uma linguagem

falada ou escrita prestavam-se, exclusivamente, para operacionalizar esse processo

mental (SOUZA CRUZ, 2004, p. 143).

A despeito de sua originalidade e da expressiva contribuição para a dogmática

jurídica, o normativismo “não superou os limites ideológicos de sua época” (SOUZA CRUZ,

2004, p. 113). Isso porque se manteve atrelado ao paradigma liberal no âmbito político e a

vários postulados da filosofia da consciência, no âmbito filosófico. Muito embora Kelsen

tenha formulado sua proposta teórica levando em consideração a dimensão sintática da

linguagem jurídica, ele desconsiderou os avanços decorrentes da reviravolta linguístico-

pragmática iniciada pelas pesquisas de Gottlob Frege,45

seguidas de perto pelas ponderações

45

Habermas (2003, p.27-28), referindo-se às origens da reviravolta linguístico-pragmática a partir das críticas ao

psicologismo que surgiu no fim do século XIX, sustenta que “Frege resume a objeção central na seguinte tese:

„há uma diferença entre nossos pensamentos e nossas representações‟. Representações são sempre minhas ou

tuas representações; elas têm que ser atribuíveis a um sujeito identificável no espaço e no tempo, ao passo que os

pensamentos ultrapassam os limites de uma consciência individual. (...) A análise de proposições predicativas

simples revela, além disso, que os pensamentos possuem uma estrutura mais complexa que os objetos do

pensamento representador. Com o auxílio de nomes, caracterizações e expressões dêicticas, nós nos referimos a

objetos singulares, ao passo que asserções, nas quais tais termos singulares assumem o lugar da expressão do

sujeito, exprimem na sua totalidade uma proposição ou reproduzem um estado de coisas. Quando tal pensamento

é verdadeiro, o enunciado que o reproduz representa um fato. A crítica à opinião segundo a qual o pensamento

não é mais que a consciência representadora repousa nessa consideração simples. Na representação são dados

somente objetos; enquanto que estados de coisas ou fatos são apreendidos em pensamentos. Com essa crítica,

Frege dá o primeiro passo rumo à guinada linguística. A partir de agora, não podemos mais apreender

simplesmente e sem mediação pensamentos e fatos no mundo dos objetos representáveis; eles só são acessíveis

enquanto representados, portanto em estados de coisas expressos através de proposições‟”.

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46

críticas de Charles Peirce.46

Assim, não foi possível aos normativistas reconhecer a dimensão

pragmática da linguagem relacionada ao seu “uso” nos variados “jogos de linguagem” e nas

diversas “formas de vida” – ou mesmo aprofundar no exame dessa dimensão – tal qual propôs

o segundo Wittgenstein,47

limitando suas proposições à dimensão sintática, à coerência

lógico-formal das proposições que constituem a linguagem jurídica.

Ao tratar do giro pragmático linguístico, Manfredo Araújo de Oliveira (2001, p. 139)

esclarece que:

O conceito de jogo de linguagem pretende acentuar que, nos diferentes contextos,

seguem-se diferentes regras, podendo-se a partir daí, determinar o sentido das

expressões linguísticas. Ora, se assim é, então a Semântica só atinge sua finalidade chegando à Pragmática, pois seu problema central, o sentido das palavras e frases, só

pode ser resolvido pela explicitação dos contextos pragmáticos. Uma consideração

linguística que não atinge o contexto pragmático é, nesse sentido, essencialmente

abstrata, como é o caso da teoria da significação do pensamento tradicional, para

quem a linguagem é, em última análise, puro meio de descrição do mundo, sem a

percepção de que a significação de uma palavra resulta das regras de seu uso

seguidas nos diferentes contextos da vida. Saber usar corretamente as palavras

significa comportar-se corretamente.

Do mesmo modo, as propostas de Martin Heidegger e de Hans Georg Gadamer foram

definitivas para a reviravolta hermenêutica. Naquele, “a linguagem não „constitui‟ apenas o

fenômeno objeto/fenômeno, mas „define‟ também o „ser ciente‟, isso se dá por meio da

educação formal ou informal (língua, tradições, cultura) que „constroem‟ a inteireza do

indivíduo em todas as suas possibilidades” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 143).

Assim como Heidegger, na obra Ser e tempo, Gadamer, em Verdade e Método –

ambos citados por Souza Cruz (2004) –, também assume que a compreensão do intérprete

46

Como salienta Habermas (2003, p.31), Peirce dá mais um passo rumo à guinada linguística a partir da

introdução do elemento pragmático, que, a essa época, era exposto pelo uso formal da linguagem: “o status ideal

que empresta aos pensamentos uma estrutura proposicional a salvo da corrente das vivências, garantindo aos

conceitos e aos juízos conteúdos gerais, reconhecíveis intersubjetivamente e, deste modo, idênticos, sugere a ideia de verdade. Porém, a idealidade da validade veritativa não pode ser explicada nos termos que a idealidade

da generalidade do significado lançando mão apenas de invariâncias gramaticais, ou seja, da estrutura da

linguagem em geral, que se configura através de regras. Ora, a semântica formal de Frege opera com um único

conceito semântico de linguagem, que não focaliza os demais aspectos da utilização da linguagem, deixando-os

entregues à análise empírica; por isso, ela não consegue explicar o sentido da verdade no horizonte da

comunicação linguística. Ao invés disso, ela recorre à relação ontológica entre linguagem e mundo, entre

proposição e fato ou entre pensamento e força de pensamento (como capacidade subjetiva de produzir

pensamentos e de avaliá-los). Contrapondo-se a essa linha, Peirce completou a guinada linguística, incluindo na

análise formal o uso da linguagem”. 47

Abandonando a visão de isomorfia entre linguagem e mundo e a consequente dicotomia entre signo e objeto,

Wittgenstein reconstrói os postulados teórico-filosóficos do “Tractatus”, para, na obra “Investigações

filosóficas”, levar em consideração os diversos usos possíveis da linguagem. “A linguagem, nessa nova visão,

não representa apenas fatos, mas diversas ações que dependem de formas de vida estabelecidas para terem seus

significados”. Em razão dessa ruptura com o projeto de buscar critérios de pureza para a linguagem,

transformando-a num ideal repleto de precisão, a ideia de jogo de linguagem passa a ser o conceito-chave da

pragmática, funcionando como elo impreciso entre a linguagem e o mundo, cuja compreensão deve ser suficiente

para se entender o funcionamento da linguagem nos diversos contextos (SIMON, 2006, p. 47, 55-57).

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47

sempre parte de uma pré-compreensão, determinada pela ambiência histórica que o precede e

circunda. Todavia, para o autor, essa pré-compreensão inicial poderia aprimorar-se pela

absorção de novas perspectivas advindas do diálogo entre os intérpretes ou com outros textos.

Portanto, a compreensão terá como pressuposto a fusão entre o horizonte experienciado pelo

intérprete e aquele em que o texto foi escrito, de tal modo que intérprete e texto “modificam-

se no processo, evoluindo numa espiral hermenêutica” (SOUZA CRUZ, 2004, p. 145).

Levando em conta essa renovação paradigmática impulsionada pelo giro linguístico-

pragmático,48

pode-se dizer que, conquanto as tentativas analíticas de encontrar uma

linguagem pura do direito tenham fracassado, é inegável o surgimento, a partir daí, de um

profícuo espaço de reflexão que fomentou a crítica jurídica dos anos 70, trazendo à tona a

necessidade de se revisitar a teoria da argumentação.49

Em razão disso, surgem teorias que

privilegiam uma leitura hermenêutica do direito, como se verá a seguir.

2.3.2 A matriz hermenêutica

A partir da reviravolta linguístico-pragmática agora com os acréscimos de J. L.

Austin e J. Searle,50

que se empenharam em sistematizar uma teoria da linguagem a partir das

proposições de Wittgenstein ,51

autores como Joseph Raz e Ronald Dworkin atribuíram

primazia à interpretação dos textos jurídicos no centro de suas formulações teóricas sobre o

direito, sustentando sua criação pela via hermenêutica.

Embora francamente inspirada pela dimensão pragmática da linguagem, a

hermenêutica jurídica não concentra suas atenções nos procedimentos e nas práticas sociais,

48

A propósito, Franca D´Agostini (2002, p.53) pontua que a virada pragmática da filosofia já estava realizada na

década de sessenta, quando Thomas Kuhn aplica à ciência o “retorno ao solo áspero” que Wittgenstein anunciara, de tal sorte que nem mesmo a ciência poderia deixar de reconhecer sua dependência em relação aos

contextos de relação social, escolhas estéticas e oportunidades pragmáticas. 49

Rocha (2005, p.20) explica que “alguns juristas críticos começaram a propor leituras ideológicas do discurso

jurídico a partir da análise positiva das ambiguidades, vaguezas e indeterminações que Bobbio pretendia afastar.

[...] Isso também facilitou a entrada na cena jurídica da tópica argumentativa de Viehweg e Perelman.” 50

Ambos representantes da Escola de Oxford, tiveram seu mérito ao formularem proposições teóricas que

visavam superar a semântica tradicional, inspirados nas teses expostas de Wittgenstein, na obra Investigações

Filosóficas. Segundo a teoria da linguagem performativa inicialmente formulada por Austin, ”existem três tipos

principais de atos de fala: os atos ilocucionários, que contém o conteúdo das orações; os atos ilocucionários,

onde o emissor realiza uma ação dizendo algo; e os atos perlocucionários, típicos de verbos performativos, como

por exemplo, te prometo, te ordeno” (ROCHA, 2005, p. 22). 51

Manfredo Araujo de Oliveira (2001, p. 127) salienta que, desde a segunda filosofia de Wittgenstein, “nunca

temos o mundo em si, imediatamente, sempre por meio da linguagem”. O autor (OLIVEIRA, 2001, p.149)

aponta Wittgenstein como precursor da reviravolta pragmático-analítica, seguido por Austin e Searle que,

contrapondo-se à semântica tradicional, sistematizaram as proposições de Wittgenstein ao desenvolverem a

teoria dos atos de fala.

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48

optando por atribuir maior relevância à busca da determinação do sentido das proposições

jurídicas.

Na esteira das discussões insufladas pela reviravolta pragmático-analítica, Hart

consegue avançar no sentido de analisar as distinções e usos existentes na linguagem jurídica.

Em decorrência dessa análise e da constatação de que há uma infinidade de aspectos que

jamais poderão ser considerados a priori pelo legislador, Hart aponta para a incompletude do

sistema jurídico, para a textura aberta dos enunciados jurídicos e para o consequente

reconhecimento de uma inevitável margem de discricionariedade judicial, que deve ser

exercida em razão das lacunas do ordenamento, nos chamados hard cases.

No entanto, apesar das divergências com o normativismo kelseniano, Hart (1961)

ainda concebe o ordenamento jurídico como um sistema unitário que identifica a validade das

demais normas por meio de uma “regra de reconhecimento”. Essa norma de pedigree,

portanto, funciona como fundamento último do ordenamento jurídico: conquanto lhe seja

atribuída natureza fática, ela não se subordina a nenhum critério posto de validade. Além

disso, Hart permaneceu atrelado à matriz normativista no que diz respeito ao modo descritivo

como analisa o ordenamento. Nesse particular, sua proposta teórica afasta-se de qualquer

intenção de avaliar ou justificar as normas jurídicas positivadas num determinado tempo e

espaço. Interessa-lhe sobremaneira que a legitimação do sistema jurídico ocorra em razão da

análise da procedência – pedigree – da norma jurídica, ou seja, importa se o procedimento que

levou à positivação da norma deu-se de modo correto (KOZICK, 2006, p. 411).

Não é demais lembrar também que, embora assimilasse as propostas linguísticas que

lhe eram contemporâneas, o autor não aderiu à ruptura necessária para situar sua teoria no

âmbito da filosofia da linguagem. Isso porque do ponto de vista pragmático, é necessário que

se considere a validade da norma e sua imperatividade como conceitos distintos, que não se

limitam um ao outro. O conceito de ordenamento jurídico como sistema, numa perspectiva

pragmática, não deve admitir uma única hierarquia linear que corresponda à unidade do

ordenamento e à validade de todas as normas que daí emanem. Há que se considerar os

destinatários das normas, pois somente a partir daí pode se dizer acerca do alcance coercitivo

das normas.

Tal postura e, em especial, a atribuição de poder discricionário ao juiz nos hard cases

são objeto da implacável crítica que lhe é endereçada por Dworkin, na obra O império do

direito.

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49

Para Dworkin, sucessor de Hart na Chair of jurisprudence da Universidade de Oxford,

sempre existe uma resposta certa, a melhor possível para cada conflito que é submetido à

apreciação jurisdicional, uma vez que o juiz, ao julgar, escreve a continuidade de uma

história, donde surge a metáfora do direito como romance em cadeia. A “boa resposta” seria,

então, a que melhor atendesse “à dupla exigência que se impõe ao juiz, ou seja, fazer com que

a decisão se harmonize o melhor possível com a jurisprudência anterior e ao mesmo tempo a

atualize – justifique – conforme a moral política da comunidade” (ROCHA, 2005, p. 24).

A tese da resposta certa leva a uma leitura principiológica do direito, uma vez que a

resposta a cada pretensão jurídica, assentada na ideia de direitos, deve ser construída com

base em argumentos, já que o juiz não dispõe de discricionariedade, tampouco cria norma ao

julgar um caso. Ao juiz é dado tão-somente interpretar os argumentos que lhe são

apresentados, partindo de suas convicções morais e políticas e considerando as decisões sobre

situações análogas já proferidas no passado, como também os padrões morais da comunidade

envolvida, percurso que o levará ao princípio que solucionará a questão posta para decisão. A

coerência exigida nesse caminhar hermenêutico – ou nessa “cadeia do direito” – determina o

critério de validade do direito e o sustenta “como integridade”. Tal princípio é central na

teoria de Dworkin não só porque orienta a construção do conceito de direito, mas também

porque impõe a exigência de coerência moral no âmbito do legislativo (CHUEIRI, 2006,

p.262).

Conquanto sedutora, a teoria de Dworkin é alvo de muitas críticas. Uma das mais

relevantes talvez seja a que questiona sua matriz ontológica:

Embora seja verdade que, como J. Habermas e O. Appel, Dworkin lance um olhar

muito crítico sobre o objetivismo ingênuo das teorias positivistas e se mostre sempre preocupado em compreender a normatividade do direito, é difícil defender que o fato

de recorrer aos princípios morais naturais nos quais o direito se enraíza a título de

“padrões” ou “modelos” “por trás do direito” seja um procedimento da ordem da

ontologia (GOYARD-FABRE, 2007).

Na visão de Raffaele De Giorgi (apud MAGALHÃES, 2002, p.143), a hermenêutica é

uma teoria jurídica ambígua porque reproduz a ambivalência de um direito que oscila entre

teses jusnaturalistas e positivistas. O autor observa que a hermenêutica fracassa como

epistemologia jurídica porque coloca o intérprete – com todas as suas pré-compreensões –

como alguém capaz de extrair a “resposta correta” do texto:

A compreensão, como processo conclusivo do fazer hermenêutico [...] é o lugar

onde a impotência epistemológica da hermenêutica torna-se evidente. A impotência de um pensamento que não pode se constituir como teoria, porque não possui

hipóteses o objeto, porque produz anulação e sublimação do próprio objeto; de um

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pensamento que exprime o grau mais profundo da involução da razão iluminista,

resolvida como assunto privado da consciência.

Em contraposição ao que pensava Kelsen e em consonância com as proposições de

Hart, nesse particular, na visão de Dworkin, o direito tem necessariamente pontos de contato

com a moral e a justiça. Também diversamente da teoria normativista de Kelsen, a concepção

de Estado da Hermenêutica de Dworkin, inspirada no não contratualismo de Rawls, é mais

democrática, atribuindo espaço às instituições sociais no âmbito de um estado interventor, em

que o direito não contempla tão-somente as normas jurídicas no sentido kelseniano, mas

inclui as regras, os princípios e as diretrizes políticas e viabiliza maior participação da

sociedade.

Entretanto, “a hermenêutica abre importante ponto de preferência para a análise da

sociedade, para a compreensão do direito, mas ela não explica suficientemente o que seja

sociedade” (ROCHA, 2005, p.26).

2.3.3 A matriz pragmático-sistêmica

O que marca a distinção dessa matriz teórica é indubitavelmente o ponto de partida de

suas indagações sistêmicas desencadeadas pelos trabalhos de Talcott Parsons,52

nos anos 60,

bem como pelos questionamentos lançados por Max Weber,53

em razão do advento da

modernidade, que, no âmbito dessa matriz teórica, são revisitados sob a ótica construtivista.

A análise sistêmica aplicada à teoria jurídica foi desenvolvida em duas perspectivas

neoparsonianas. Na primeira delas, a teoria da diferenciação funcional é central. Já na outra

vertente, é a teoria da ação comunicativa que assume maior relevância. Em ambas vertentes, é

evidente o tom neossistêmico em razão da centralidade exercida pelas questões sistêmico-

institucionais. O ponto nodal das discussões desloca-se da interpretação dos textos jurídicos

52

Uma das versões mais importantes da teoria funcionalista foi a formulada por Talcott Parsons. Trata-se de um

estruturalismo-funcionalista, em que a sociedade é entendida como um sistema social caracterizado por um nível

“mais avançado de autossuficiência em relação ao seu ambiente, no qual os indivíduos interagem” (LUHMANN,

apud PARSONS, 1974, p.19-20). A socialização é o fenômeno que possibilita ao sistema encontrar seu ponto de

equilíbrio, pois é por meio dela que são transmitidas aos indivíduos as regras de conduta. O direito, em Parsons

(1974, p.23), é visto como meta social, ao qual incumbe “articular um sistema de normas com uma organização

coletiva que tenha unidade e coesão”. Nesse contexto, as estruturas do sistema jurídico (legislação e tribunal)

têm considerável destaque e devem orientar-se conforme o objetivo a ser alcançado – manter o equilíbrio do

sistema. Nos vários dissensos entre Parsons e Luhmann, encontra-se a concepção antropocêntrica daquele ao

colocar o indivíduo no centro do sistema social, ao passo que, neste, essa posição é ocupada pelas comunicações.

Além disso, é notória a diferença entre ambos em virtude de Luhmann enfatizar a função como elemento

essencial e fator fundamental da estruturação do sistema (AMADO, 1993, p.109). 53

Habermas e Luhmann foram influenciados pela sociologia weberiana, como se verá a seguir, contudo em

sentidos diferentes (ALBERICO, 2008).

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moldada pelo rigor linguístico da semiótica, apregoado pelo normativismo analítico, e do

modelo interpretativo contextualizado – e em certa medida psicologizado –, pretendido pela

matriz hermenêutica.

Nas teorias jurídicas sistêmicas, o que predomina são as discussões acerca das formas

de interpretação propostas pelos meios de comunicação simbolicamente generalizados, das

instituições que desempenham a função de produzir decisões jurídicas e dos modelos de

solução de conflitos.

Jürgen Habermas, Niklas Luhmann e Gunther Teubner são expoentes de teorias

sistêmicas aplicadas ao direito porque enfatizam aspectos filosóficos e sociológicos típicos

dessa matriz o primeiro, na vertente da teoria da ação comunicativa; o segundo, na teoria do

direito como sistema social, a partir da teoria da diferenciação; e o terceiro, com seu modelo

alternativo, em que o direito deixa de ser repressivo e torna-se “responsivo”, a partir de uma

racionalidade reflexiva (1996, p.13-19).

A seguir, serão indicados os traços distintivos entre a noção de positividade para a

matriz pragmático-sistêmica e para a matriz normativista.

2.4 Positividade do direito e positivismo jurídico: duas concepções distintas

Como anotado em tópico anterior, a positividade do direito é consequência da

evolução da sociedade, que passou a demandar procedimentos capazes de funcionar como

fonte de validez das normas jurídicas.

Se se retomar a questão a partir dos mecanismos de evolução do direito identificados

por Luhmann (2004, p.259), será possível afirmar que o processo de positivação tornou-se

viável porque, em face da crescente produção de variedade na sociedade complexa e da

constante abertura ao novo – inerente ao caráter modificável do direito moderno – pôde contar

com a seletividade prévia de possibilidades jurídicas pelo processo legislativo. A produção

legiferante, assim, como filtro seletivo de expectativas sociais que antecede à decisão jurídica,

intensificou-se com o avanço da modernidade e permitiu que a seletividade alcançasse um

nível de diferenciação satisfatório em relação à reestabilização das expectativas, a qual,

segundo Luhmann, concentra-se na reflexão dogmática. Todavia, a par da incapacidade da

“dogmática jurídica em oferecer conceitos socialmente adequados, Luhmann considerou

residir na reestabilização o impasse da evolução do direito positivo (moderno)” (NEVES,

2008, p.24).

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A noção de positividade começou a ser engendrada, ainda na primeira fase da teoria

sistêmica de Luhmann, como decidibilidade e alterabilidade do direito, mormente nas obras

Sociologia do direito (1983) e Legitimação pelo Procedimento (1960). Num segundo

momento, contudo, o autor reformulou esse conceito, de maneira que, a partir do texto “O

direito da sociedade” (2004), a concepção de positividade passou a ser norteada pela

“autodeterminidade”, pela autorreferência e pelo fechamento operacional do sistema jurídico.

Vista sob essa perspectiva, a positividade é o fruto da combinação do fechamento da

autorreprodução recursiva, em termos normativos, com a abertura à heterorreferência

cognitiva em relação ao ambiente. Conforme explica Luhmann (apud NEVES, 1992, p.281):

“A qualidade normativa serve à autopoiese do sistema, à sua autocontinuação diferenciada do

meio ambiente. A qualidade cognitiva serve à concordância desse processo com o meio

ambiente do sistema”. É nesse ponto que o controle do código binário lícito/ilícito pelo

próprio sistema jurídico é tão essencial para que se possa falar em positividade em termos

sistêmicos.

O processo de positivação do direito, como consequência do significativo e crescente

incremento no nível de diferenciação sistêmica imposto pela modernidade, demanda um

controle cada vez mais efetivo do código binário lícito/ilícito pelo próprio sistema jurídico,

como forma de possibilitar sua autodeterminação operacional. Dito de outro modo, a nova

abordagem conceitual da questão da positividade nada mais fez que submeter a decidibilidade

à autonomia operacional do sistema. Portanto, o âmbito semântico do vocábulo “positividade”

traz em si a ilação de que “a decisão, mesmo se vier a alterar radicalmente o direito, receberá

o seu significado normativo do próprio sistema jurídico” (NEVES, 2008, p.80).

Não se pretende, com a noção sistêmica de Luhmann acerca da positividade, a total

independência do direito em relação ao ambiente ou aos outros sistemas, como se se

pretendesse afastar o sistema jurídico dos demais sistemas e transformá-lo numa autarquia. A

propósito, parece ter sido essa a pretensão da vertente da teoria jurídica normativista. Quer-se

tão-somente observar que a autonomia do sistema jurídico deve ser suficiente à

autorreprodução dos valores que ele produz por meio de suas operações ou comunicações –

internas, o que impede que expectativas normativas tenham sua incidência condicionada a

interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas ou mesmo proposições

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53

científicas54

sem que antes sejam depuradas pelo programa e pelos critérios intrínsecos ao

sistema jurídico.55

Os influxos do ambiente e dos outros sistemas devem ser recepcionados pelo sistema

jurídico e, do ponto de vista cognitivo, afiguram-se necessários à oxigenação do direito,

garantindo sua renovação por meio da autoprodução de comunicações jurídicas entrelaçadas

em si. Isso porque a capacidade de o sistema se reciclar corresponde à possibilidade de o

direito se alterar para se adaptar ao meio ambiente, mais complexo e mais veloz que ele

próprio. Por outro lado, para que os influxos do meio não ingressem indistinta e

irrefletidamente no sistema jurídico, sem que o seu programa ou os seus critérios exerçam o

papel seletivo que lhes é peculiar e preservem a primazia do código lícito/ilícito, é necessário

que a referida abertura seja amenizada pelo fechamento operativo do direito que, em última

análise, impede que ele se confunda com o meio ambiente que o circunda.

Embora haja alguns pontos de similitude entre a noção sistêmica de positividade e as

proposições típicas do positivismo jurídico sob a perspectiva do normativismo kelseniano,

deve-se ter presente que são concepções distintas, sustentadas por diferentes compreensões do

direito.56

54

Como exemplo pode-se citar as causas submetidas à decisão judicial que são antecedidas por questões típicas

do sistema da ciência, como o exame de DNA em ações de investigação de paternidade e a viabilidade jurídica

das pesquisas com células-tronco. Na perspectiva luhmanniana da filtragem das informações oriundas do meio

ambiente pelo código binário próprio do direito, as conclusões postas pela ciência – que distingue entre o que é

verdadeiro ou falso em termos estritamente científicos – nem sempre serão assimiladas pelo sistema jurídico.

Vale dizer, o que é verdadeiro para o sistema da ciência pode não corresponder ao que o sistema jurídico

reconhece como lícito, pela aplicação do código binário. 55

Para Habermas (1997), a preponderância dos argumentos políticos ou econômicos no discurso jurídico, sem a

necessária filtragem, implicaria a colonização do direito pelo poder ou pelo dinheiro, conforme o caso. Em

Luhmann (2004), tratar-se-ia de corrupção sistêmica do direito, uma vez que códigos binários de outros sistemas

seriam introjetados no sistema jurídico sem a necessária depuração. A questão é de suma relevância para os fins

deste trabalho e será retomada em momento oportuno. Embora partam de leituras sistêmicas diversas, ambos percebem os riscos que podem advir para a democracia de um processo de desdiferenciação entre os sistemas

político, econômico e jurídico. 56

Chamon Junior (2005, p.150) associa Luhmann a Kelsen ao afirmar que ambos compreendem a norma a partir

de sua vinculação com a regra, circunstância que teria levado Kelsen a “abrir a porta do decisionismo na medida

em que o juiz poderia decidir fora do quadro das interpretações possíveis e, assim, fora do direito”. Afirma ainda

que Luhmann assumiu tom “derrotista” ao admitir a “impossibilidade de operacionalização racional do sistema

jurídico”, satisfazendo-se com uma “racionalidade limitada”. Ora, a teoria kelseniana, embora sejam conhecidos

seus méritos, fundamenta-se exclusivamente em relações hierárquicas, tendo na norma hipotética fundamental

seu ponto culminante, porquanto reproduz cartesianamente uma visão hierárquica da relação entre poder e

norma. Luhmann empenha-se na construção de uma teoria da sociedade policêntrica, em que o direito é um dos

muitos subsistemas que se coloca ao lado dos outros, com os quais se relaciona em distintos níveis, entre trocas e

interferências recíprocas. Indo além, Luhmann observa os vários pontos de interseção entre os subsistemas

sociais, assim como as variadas possibilidades de que interferências e irritações provenientes do ambiente

ingressem no sistema jurídico, como potenciais fatores de renovação do direito, ao contrário de Kelsen, que

repugnava a ideia de que o direito fosse permeável a influxos externos porque isso retiraria a autonomia da

ciência do direito. Decerto, Luhmann reconhece os limites da racionalidade na modernidade e, bem por isso,

propõe uma racionalidade em termos pós-cartesianos, focada nas comunicações intrassistêmicas e nas relações

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54

Referindo-se ao tema, Luhmann (2005, p.596) explica que:

É necessário, portanto, fazer a distinção entre o caráter positivo do direito e o

positivismo teórico-jurídico como autodescrição ativa do sistema. Um positivismo

dessa natureza oferece uma resposta ao problema da validez valendo-se do conceito de fonte do direito. Certamente a metáfora da fonte tem sua origem, aplicada

também ao direito, na Antiguidade, quando foi utilizada nas referências a conteúdos

jusnaturalistas (Tradução livre). 57

Ao final do tópico, Luhmann esclarece que as duas perspectivas sobre o direito

positivo se afastam porque a visão normativista se mantém no nível semântico (vide 2.3.1

supra), ao passo que a perspectiva sistêmica de positividade considera também os níveis

sintático e pragmático na compreensão do direito. É a partir dessa visão – ou, para se ser mais

específico, da observação de segunda ordem – que o sistema jurídico torna-se capaz de se

autodescrever e de fundamentar a si próprio. Nas palavras do autor:

Nem o Estado, nem a razão, nem a história legitimam o direito, muito embora

sempre tenha havido teorias desse tipo. Todavia, se alguma delas pretender adotar a

descrição como autodescrição, se exige delas uma incursão no modus do observador

de segunda ordem. Tais teorias devem aprender a pensar elas mesmas como

autodescrições, sob pena de se tornarem anacrônicas – um dos maiores méritos da

teoria de Jürgen Habermas é a capacidade de identificar esse anacronismo das

teorias que recorrem à história natural, aos princípios morais ou à razão prática para

encontrar o fundamento do direito. O que fica, então, é o reconhecimento da

inevitável diversidade das perspectivas de observação, inclusive dentro do próprio

sistema. O que nos resta é a generalização constante das contingências como valores

distintos, renovados pela recursividade do sistema jurídico. Sob essas condições gerais se faz necessário encontrar autodescrições capazes de se sustentar nos dias

atuais (Tradução livre).58

A aplicação de conceitos da teoria cibernética ao estudo da sociedade – na qual o

sistema jurídico se insere – marca a diferença entre o ponto de observação de um e de outro

intersistêmicas, até porque o direito precisa contar com as racionalidades dos outros subsistemas, que realizam suas operações a partir de sua lógica própria. 57

Es necesario, por lo tanto, distinguir entre el carácter positivo del derecho y el positivismo teórico-jurídico em

tanto que autodescripción actuante e el sistema. U positivismo de esta índole ofrece uma respuesta al problema

de la validez sirviéndose del concepto de fuente del derecho. Ciertamente, la metáfora de la fuente tiene su

origen, aplicada también al derecho, em la Antigüidad, donde se la utilizó em general em referencia a contenidos

iusnaturalistas. 58

Ni el Estado, ni la razón, ni la história legitiman el derecho. Por supuesto que puede haber teorías de este tipo,

y, de hecho, las ha habido en el pasado y las hay en el presente. Pero si se les describe como autodescripciones,

se exige de ellas uma inserción en el modus del observador de segundo orden. Deben aprender a pensar en ellas

mismas como autodescripciones de um sistema que se describe a si mismo; de otro modo se convierten em algo

ana-crónico – uno de los logros más importantes de la teoria del derecho de Jürgen Habermas es precisamente

haber reconocido este carácter de anacronismo de todo recurso a la história natural, a los principios morales o a

la razón práctica. Lo único que nos queda es, entonces, um reconocimiento de la inevitable diversidad de las

perspectivas observacionales, inclusive dentro del mismo sistema. Lo que nos resta es la generación constante de

constingencias como valores distintivos, renovados por la recursividad del sistema jurídico. Bajo estas

condiciones generales se hace necesario encontrar autodescripciones capaces de sostenerse em nuestros días

(LUHMANN, 2005, p. 612).

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autor. Daí se anuncia a abissal diferença entre as duas concepções, o que torna inadequado

tratar Luhmann como se ele estivesse atrelado às mesmas bases teóricas que nortearam as

variadas vertentes positivistas; como se estivesse preso à noção de que o logos ainda

permanece na consciência. Ao contrário, a ampla gama de possibilidades que circundam os

sistemas e denotam a complexidade do mundo moderno é problematizada pelo autor

justamente porque ele reconhece os limites da consciência humana diante do mundo

contemporâneo, daí que os sistemas são constituídos por comunicações. Dito de outro modo:

a consciência humana não consegue apreender a complexidade circundante, pois não pode

mais considerar todos os possíveis acontecimentos e todas as circunstâncias no mundo.

Assim, a consciência humana é sobrecarregada com tal exigência de compreensão, que dá

margem ao surgimento de um hiato entre ela e a complexidade do ambiente. Isso porque a

principal preocupação da teoria dos sistemas de Luhmann é descrever uma sociedade em que

os sistemas possam exercer a função de reduzir a complexidade do ambiente e torná-la

assimilável.

Tampouco Barbara Freitag (2004, p. 54), na sua perspectiva crítica, sustenta a

vinculação de Luhmann a bases positivistas, veja-se:

Luhmann não pode ser considerado um neopositivista, funcionalista ou teórico

sistêmico ingênuo. Ele está perfeitamente ciente das divergências profundas

existentes entre um sistema biológico (fechado) e um sistema sociocultural (aberto).

Defende a tese de que à medida que abandonamos a dimensão biológica e

avançamos em direção a sistemas socioculturais as alternativas de comportamento

do sistema aumentam impondo-lhe a necessidade de opções.

Nada obstante, o marco diferencial mais pronunciado entre o positivismo jurídico e a

positividade é mesmo o ponto de observação da teoria sistêmica, que, ao substituir as

categorias tradicionais de objeto, sujeito e causalidade por uma racionalidade sistêmica,

calcada em concepções relacionais e operacionais, contribuiu para o surgimento de uma nova

epistéme, que se pode dizer pós-cartesiana.

No âmbito do direito, a repercussão disso é que ele se libera da transcendência moral

ou religiosa, assim como da causalidade natural ou sociopolítica a que esteve atrelado, para

encontrar fundamentação na autorreferencialidade de suas operações (GOYARD-FABRE,

2007, p. 222).

Diversamente, o positivismo jurídico encontra-se preso ao esquema sujeito-objeto, que

pressupõe a existência de um observador objetivamente isolado do objeto observado. Ignora-

se, portanto, a possibilidade de auto-observação e de observação de segundo grau anunciada

pelos padrões da lógica cibernética que orientam a descrição da sociedade em Luhmann.

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É por isso que subjaz à concepção do direito luhmanniana a substituição da velha

racionalidade do sujeito (ou da ação desse sujeito), típica do padrão iluminista, por uma

racionalidade do sistema, afastando-se as “certezas subjetivas”, presentes no positivismo

jurídico. Em vez dessa racionalidade “super poderosa”, a noção de positividade na perspectiva

sistêmica oferece uma racionalidade que dota os sistemas sociais da capacidade de

descreverem59

a si próprios e, com isso, diferenciarem-se do meio, o que reduz a

complexidade que os circunda, aumenta a estabilidade interna aos sistemas e os torna capazes

de assimilar essa complexidade crescente de um mundo em constante mudança.

Com base nessa “nova epistéme” é que se percebem as diferenças na observação da

norma no âmbito do sistema jurídico. O direito, assim, tanto é objeto da observação, como se

auto-observa gerando uma recursividade interna, ao observar que suas normas são derivadas

de outras e suas decisões sustentam-se em decisões que o antecederam –

jurisprudência/redundância – ou em suas próprias normas. Nesse sentido, o sistema jurídico é

um sistema ativo de observação, porquanto ele pode ser observado por um observador e,

concomitantemente, é um sistema que observa a realidade de modo autorreferente porque suas

normas são derivadas de outras normas e suas decisões se socorrem de outras decisões ou

mesmo das normas (LUHMANN, 2004, p.290).

Essa recursividade, como traço distintivo da positividade do direito na matriz

sistêmica, contribui, segundo Teubner (1996), para a unidade do sistema na medida em que a

autorreprodução do direito só se realiza quando as normas jurídicas fundamentam decisões

jurídicas e vice-versa, ou ainda quando as normas procedimentais e teoria do direito se

apresentam de modo imbricado. É por essa razão que o direito funda-se em sua circularidade,

pois é na sua recursividade operativa que reside sua legitimidade. Essa “autodeterminação

implica a exclusão de qualquer supradeterminação direta” advinda do ambiente sem a

mediatização pelos critérios intrassistêmicos. Mais ainda: é afastada a hierarquização proposta

59

Segundo Luhmann, a falta de metodologia adequada para descrever uma sociedade altamente complexa como

a contemporânea decorre de um obstáculo epistemológico que tem como base quatro hipóteses: a sociedade é

composta de seres humanos concretos e da relação entre eles e, por isso, somente pode ser constituída ou

integrada como resultado de um consenso entre os seres humanos, obtido por meio da concordância de suas

opiniões e objetivos; sociedades existem como unidades regionais ou territoriais; sociedades podem, como

grupos, serem observadas de fora. Em virtude dessas considerações, Luhmann apresenta a descrição da

sociedade como sistema social que envolve a totalidade das comunicações os limites das sociedades são os da comunicação. Logo, os seres humanos – entendidos como sistemas psíquicos – não fazem parte da sociedade,

mas, sim, do seu meio. Na sociedade eles estão presentes apenas como pessoas, pontos de endereçamentos para

as operações comunicativas. Para Luhmann, entre a sociedade, como sistema social, e os indivíduos, como

sistemas psíquicos, há necessário acoplamento estrutural, de sorte que um não pode existir sem o outro. A opção

luhmannniana de colocar o indivíduo fora da sociedade é o que possibilita a análise desta sem a necessidade de

interpretá-la por meio de comportamentos desviantes dos indivíduos e de suas influências sobre eles.

(LUHMANN, 2005, p.181-183)

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pelo positivismo jurídico, pois a positividade sistêmica pressupõe uma relação “horizontal-

funcional” entre o direito e os demais subsistemas sociais, inclusive com a política e a moral

(NEVES, 2007, p. 69). Não há que se falar, portanto, em hierarquização como pretende o

positivismo jurídico.

Embora vários autores formulem críticas a essa noção de positividade, em virtude de

sua pretensão de neutralidade moral, aproximando Luhmann de Kelsen, o que se observa é

que o fechamento operacional pretendido pelo primeiro, além de ser entremeado pela abertura

cognitiva, não pressupõe nenhum alheamento ou isolamento do direito em relação aos demais

subsistemas. Conforme Jésus Ignacio Martínez García se expressa na introdução à versão

espanhola de O direito da sociedade (LUHMANN, 2005, p. 19):

[...] apesar da arraigada “imagem kelseniana da pirâmide, o direito não se move, em

última instância por esquemas hierárquicos, nem teleológicos, senão por diferenças e

tensões, que o levam a multiplicar suas próprias distinções. O direito traz consigo

um mundo próprio feito de circuitos ativos, dado seu potencial para a aprendizagem.

O sistema não tem paredes e sim membranas (Tradução livre).60

A par disso, a positivação do direito em Luhmann significa que os destinatários estão

dispostos a aceitar alterações dos conteúdos jurídicos e, assim, aprender novos conteúdos.

Essa a dimensão social da funcionalidade do sistema jurídico é capaz de torná-lo positivo em

termos sistêmicos: posto por decisões e permanentemente alterável (NEVES, 2007, p. 69).

Por tudo o que se expôs, é de se observar que a questão da justiça em Luhmann não se

sustenta na ação de um sujeito moral que decide. Justiça, para Luhmann, expressa-se numa

fórmula de contigência capaz de inspirar as operações do sistema jurídico mas insuficiente

para fundamentá-las. Esse é um ponto relevante de distinção, uma vez que Kelsen, em última

análise, recai num subjetivismo incontrolável, ao admitir que o julgador poderia decidir fora

da “moldura dos possíveis significados semânticos da norma”. Em decorrência dessa postura,

a teoria da interpretação jurídica tornou-se algo inacessível. Dito de outro modo, a metáfora

do direito aplicado como moldura dentro da qual existem várias possibilidades de decisão

parte da ideia de que há vários significados possíveis das normas e, em razão disso, a ciência

do direito só pode traçar esses significados possíveis, mas não pode dizer qual deles seria o

correto. A escolha, portanto, ficaria a cargo do juiz, a quem o ordenamento atribui autoridade

60

“Puede resultar chocante, dado el principio de jerarquía normativa y el arraigo de la imagen kelseniana de la

pirâmide, pero el derecho no se mueve en última instancia por esquemas jerárquicos ni teleológicos, sino por

diferenciales y por tensiones que le llevan a multiplicar sus proprias distinciones. El derecho arrastra consigo un

mundo proprio hecho de circuitos ativos, a la vez que desarrolla uma gran facilidad de aprendizaje. El sistema no

tiene paredes sino membranas.”

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para tanto (KELSEN, 1998, p.230-231). Surge, daí, o caráter decisionista do normativismo

kelseniano. Nas palavras do autor (KELSEN, 1998, p.387 e 395):

A interpretação é, portanto, uma operação mental que acompanha o processo de

aplicação do direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão

superior. [...] A interpretação científica é pura determinação cognoscitiva do sentido

das normas jurídicas. Diferentemente da interpretação feita pelos órgãos jurídicos,

ela não é criação jurídica.

Por detrás dessa postura decisionista, que atribui ao julgador um potencial criativo

quase insindicável, sobressaem os postulados do positivismo lógico que tanto influenciaram a

teoria kelseniana. A desconsideração do contexto que envolve a interpretação jurídica e de

qualquer base empírica para a formulação de suas proposições expressa esses limites que

mantiveram Kelsen adstrito ao aspecto semântico da linguagem. Como explica Juliana

Neuenschwander Magalhães (1999, p. 430):

Para Kelsen, a ciência do direito pode ocupar-se da interpretação jurídica apenas na

medida em que esta se presta a traçar a “moldura” das interpretações possíveis de

uma norma jurídica. [...] Evidente que Kelsen, aqui, não considera o contexto como

algo que deva ser levado em consideração na atribuição de sentido à norma e, muito menos, como doador de sentido a esta. [...] Kelsen fala da e na perspectiva da

Filosofia Analítica, de uma dada concepção de ciência e de linguagem que

desconhece os usos, ou os diferentes contextos em que desta se faz uso. Conhecer,

na perspectiva da Filosofia Analítica, é traduzir numa linguagem rigorosa os dados

do mundo.

É nesse ponto que se faz pertinente a observação de Neves (1988, p.26-27), no sentido

de que, pela perspectiva da semiótica, a unidade do ordenamento jurídico em Kelsen limita-se

ao nível sintático, porquanto decorre da vinculação, direta ou indireta, ao núcleo de produção

normativa, pouco importando qual o conteúdo das mensagens normativas e os objetivos

pretendidos por seus emitentes-destinatários. Isso porque Kelsen percebia a improbabilidade

da unidade semântica em decorrência da plurivocidade que emana da heterogeneidade de

conteúdos normativos. Essa a razão para que a unidade do sistema jurídico se desse apenas no

âmbito sintático – em que predomina a lógica e a compreensão eminentemente formal dos

enunciados – assim como para que o ordenamento jurídico fosse escalonado e hierarquizado,

em que o fundamento imediato de uma norma são as normas superiores até que a Norma

Fundamental, como ultima ratio, pudesse evitar o regresso ao infinito.

A linearidade idealizada por Kelsen na estrutura hierárquica do ordenamento e a

perspectiva da unidade formal do direito a partir da perspectiva do positivismo jurídico, como

se viu, são substituídas em Luhmann pela noção de direito como sistema social que se

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caracteriza pela positividade. A positividade, assim, ao implicar abertura cognitiva do direito

aos influxos do meio o torna incompatível, nesse particular, com a perspectiva normativista.

Pela observação sistêmica, o sistema jurídico não é constituído de modo estático,

como que por uma norma fundamental, por exemplo, mas de modo dinâmico, “pois a sua

construção, desenvolvimento e transformação realizam-se através dos processos de produção

e aplicação normativo-jurídicas. [...] Daí porque não se pode falar em completude (conceito

estático) e sim em completabilidade (conceito dinâmico)” (NEVES, 1988, p.31).

Essa noção de completabilidade é assimilada na teoria da positividade do sistema

jurídico por meio da combinação entre a abertura cognitiva do direito às informações

relevantes do ambiente e o fechamento em nível operacional que submete tudo o que pretende

ingressar no sistema jurídico ao código que lhe é próprio e que assegura sua unidade ou, na

semântica sistêmica, que assegura a manutenção de sua diferenciação em relação ao ambiente.

Tanto a vertente sistêmica de Luhmann quanto a teoria discursiva do direito de

Habermas consideram que os níveis semântico e pragmático da linguagem são inafastáveis

das comunicações que constituem os sistemas sociais. A consequência disso é que fica

inviabilizada qualquer pretensão de fechamento ou isolamento do direito. Ao contrário, a

abordagem que considere, além da sintaxe, as perspectivas dos referentes fáticos, de que trata

a semântica, e dos componentes teleológicos, ideológicos ou contextuais, a que se refere a

pragmática da linguagem jurídica, exige que o sistema mantenha-se aberto. Vale frisar,

entretanto, que a abertura ocorre no âmbito cognitivo e pressupõe um processo de filtragem

pela codificação e pelo programa de cada sistema.

Segundo Neves (1988, p. 32), a abertura do sistema jurídico, ou a sua

completabilidade, é exigida pela perspectiva da semiótica, por vários motivos, a saber:

1) há relações interpessoais que não estão previstas no ordenamento jurídico,

mas que se submetem, muitas vezes, a uma decisão dos órgãos jurisdicionais (aspecto semântico da completabilidade); 2) os emitentes e destinatários das

normas jurídicas têm expectativas que encontram correspondência no interior

do ordenamento jurídico (aspecto pragmático da completabilidade); 3) o

ordenamento jurídico funciona em intercâmbio com os demais subsistemas

sociais (aspecto semântico da abertura); 4) o ordenamento condiciona e é

condicionado pelos fins e ideologias dos emitentes e destinatários, nos atos de

produção, interpretação e aplicação jurídicas (aspecto pragmático da abertura).

Essa visão que encampa os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica

pode ser indicada como um ponto diferencial destacado entre as propostas do positivismo

jurídico e a teoria da positividade do direito de matriz sistêmica.

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60

No capítulo seguinte serão abordados os traços de convergência e de dissensos entre as

vertentes da teoria jurídica pragmático-sistêmica e, ao final, serão expostos os instrumentais

teóricos oferecidos por essa matriz capazes de auxiliar na compreensão sobre o modo como se

dão as relações entre os sistemas sociais. Isso permitirá que, nos capítulos seguintes sejam

avaliadas as repercussões daí decorrentes para a concretização dos direitos fundamentais no

Brasil.

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3 DISSENSOS E CONVERGÊNCIAS ENTRE AS VERTENTES TEÓRICAS DE

HABERMAS E LUHMANN

São vários os pontos de dissenso entre as perspectivas teóricas de Luhmann e de

Habermas. Os pressupostos de que partem são, de fato, divergentes. Entretanto, interessa

neste momento identificar os pontos de convergência entre o pensamento dos dois autores.

Ambos os autores expõem preocupações semelhantes, voltadas à descrição e compreensão das

dinâmicas de organização, constituição e evolução da sociedade contemporânea. Tanto

Habermas quanto Luhmann desenvolveram as respectivas teorias sob a tradição da filosofia

alemã, com significativa influência da sociologia americana.

3.1 A leitura da teoria dos sistemas aplicada ao direito em Jürgen Habermas

A teoria sistêmica é encampada pelo autor, mas, em sua releitura, o ambiente que

contorna os sistemas dispõe de certa autonomia e é redimensionado pela carga filosófica que

dá sustentação à noção de “mundo da vida”, cuja constituição, em seu entendimento, engloba

três componentes estruturais cultura, sociedade e personalidade , trazendo como pano de

fundo o horizonte de consciência individual e da coletividade na qual esse indivíduo se insere.

Vale dizer: no contexto do mundo da vida, a humanidade insere-se de forma

intersubjetivamente compartilhada (SOUZA CRUZ, 2006, p. 94). Na obra Verdade e

justificação, Habermas (2004, p. 320) explicita em que consistem os componentes estruturais

do mundo da vida,61

assim afirmando:

O mundo da vida constitui o horizonte de uma práxis de entendimento mútuo, em

que os sujeitos que agem comunicativamente procuram, em conjunto, chegar a bom

termo com seus problemas cotidianos. Os mundos da vida modernos diferenciam-se

nos domínios da cultura, da sociedade e da pessoa. A cultura articula-se – segundo

os aspectos de validade das questões sobre verdade, justiça e gosto – nas esferas da

ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte e da crítica da arte. As instituições básicas da sociedade (como a família, a igreja e a ordem jurídica) geraram sistemas

funcionais que (como a economia moderna e a administração do Estado)

desenvolvem uma vida própria por meios de comunicação próprios (dinheiro e

poder administrativo). As estruturas de personalidade, por fim, nascem de processos

de socialização que equipam as jovens gerações com a faculdade de orientar-se de

maneira autônoma num mundo tão complexo.

61

Deve-se ressalvar que a construção teórica de Habermas em torno do mundo da vida teve início em

Conhecimento e interesse e foi aprofundado na Teoria da ação comunicativa.

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Ao atenuar a visão sistêmica tradicional – mas sem abrir mão de todos os seus

postulados para não recair numa visão holística da sociedade –, Habermas rompe com o

“modelo de uma totalidade que se compõe de partes” (2003, p. 111), por meio da concepção

de mundo da vida que se constrói sobre uma base de convicções intersubjetivamente

compartilhadas, que serve de ponto de partida para a integração entre todos os sistemas.

Em oposição à noção weberiana de desencantamento do mundo com o advento da

modernidade, Habermas consegue perceber consequências construtivas da modernidade, a

partir da qual lhe atribui outra conotação positiva.

Isso porque Habermas reconstruiu a noção de desencantamento do mundo partindo de

uma releitura da evolução social em Weber. O autor (HABERMAS, 2003) conjuga cada uma

das fases evolutivas do direito com a teoria do aprendizado moral de Lawrence Kohlberg, em

que o conhecimento se dá em estágios. Assim, o direito revelado, fundamentado

imediatamente na onipresença do sagrado, no qual não se cogitava da norma objetiva,

corresponde à fase pré-convencional. Nesta, a ética é guiada pela magia, que determinava

todos os aspectos das condutas individuais, o que ensejava uma integração plena entre direito

e cultura. No estágio seguinte – direito tradicional –, o sagrado e as tradições mediavam a

produção e aplicação das normas, as quais já se diferenciam da ação, pois abstratas e gerais.

Trata-se do estágio convencional, em que as práticas continuadas e tradicionais tornam-se

normativas por força da afirmação de uma autoridade heterônoma incumbida de dizer e

aplicar as normas jurídicas que, todavia, ainda derivavam sua legitimidade do sagrado, não

havendo distinção entre direito, moral e ética. O direito moderno, marcado pelo advento do

capitalismo, insere-se no nível pós-convencional de consciência moral, em que as ações

sociais seriam julgadas à luz de princípios dotados de potencial universalizante. Assim, a

dissolução do sagrado e da tradição, em vez de trazer as trágicas consequências imaginadas

por Weber, faz nascer, em Habermas, espaço para que se frutifique a razão comunicativa

(MATTOS, 2002, p. 136-137).

Ao tratar da positividade, Habermas (2003) sustenta a sua vinculação ao caráter pós-

tradicional do direito. O autor, apesar de criticar essencialmente a concepção weberiana do

direito moderno, aproveita-lhe o ponto de vista relativo à afirmação do direito positivo.

Como a tendência ao dissenso trouxe uma crescente dificuldade de estabelecer padrões

normativos, os imperativos de integração social, antes amalgamados pela tradição, não mais

encontravam, na modernidade, uma base que os conferisse validade. Os questionamentos daí

decorrentes levam Habermas a desenvolver a teoria da ação comunicativa e propor que uma

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linguagem reconhecida e praticada intersubjetivamente, sob critérios públicos de

racionalidade, torna-se-ia apta a promover a integração social (HABERMAS, 1992).

A dificuldade fundamental dessa integração no contexto das sociedades tipicamente

modernas e, portanto, plurais, é a insuficiência dos processos de entendimento para regular as

múltiplas ações estratégicas emergentes com a dissolução da moral única de base religiosa,

mormente aquelas fomentadas pelos sistemas do dinheiro e do poder. Esses dois sistemas,

assim, sem as amarras da tradição e do sagrado, tornam-se autônomos em relação ao mundo

da vida e desenvolvem potencial que os permite, em tese, dominá-lo, ao que o autor chama de

colonização do mundo da vida (HABERMAS, 2003). O direito, embora possa também ser

objeto de colonização ou mesmo se prestar à colonização pretendida pelos outros dois

sistemas, surge para exercer o papel estabilizador antes exercido pelo compartilhamento de

convicções irrefletidas que favorecia o ordenamento das condutas.

Para Habermas a validade do direito não se sustenta em uma liberdade abstrata, tida

como qualidade apriorística de cada indivíduo, como pensava Kant. A validade do direito

surge de procedimentos juridicamente válidos, uma vez que precedidos de um consenso

racionalmente estabelecido. Nesse nível de arranjo institucional, os indivíduos, reconhecem-

se iguais, como seres de linguagem, e atribuem-se reciprocamente direitos de participação, de

modo que os enunciados e decisões resultantes do procedimento tornam-se aceitáveis por

cada participante.

A racionalidade da atribuição recíproca de direitos de participação no espaço público-

político resulta na sujeição de cada um dos participantes aos melhores argumentos aferidos no

debate. Isso garante que os integrantes da sociedade possam se reconhecer como autores e

destinatários do direito. Despido de dimensão axiologizada, os conteúdos, sempre

modificáveis, são traduzidos em enunciados normativos. Uma vez tornados compatíveis com

procedimentos racionais, o direito encontra uma de suas dimensões de validade, pertinente à

legitimidade.

A legitimidade, por sua vez, municia a dimensão da validade social, relativa à eficácia

do direito. Esta é aferida por meio da recepção fática das normas jurídicas pelos destinatários.

Nesse plano, o direito vale-se da possibilidade de sanção, a ser aplicada, sobretudo, pelo

aparato judicial, por meio do monopólio da força. Essa “faticidade artificial” consiste no

sucedâneo de formas de sociabilidade assentadas no sagrado e na tradição. Com a dissolução

das bases pré-modernas não problemáticas de integração social, a legitimidade dos

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procedimentos destinados à produção de normas jurídicas, conjugada com a eficácia garantida

pela atuação do aparato coercitivo, passa a promover a coesão social.

A validade do direito, portanto, não mais se resolve em compreensões comuns

tradicionais. Fundamenta-se, antes, na suposição de legitimidade do ordenamento jurídico, na

medida em que ao destinatário não é dado recusá-la. A estrutura discursiva do procedimento,

em que se pressupõem partícipes voltados para o entendimento, faz dele também autor da

norma (HABERMAS, 2003).

O autor privilegia os aspectos normativos da sociedade e, embora a linguagem

desempenhe papel destacado nas formulações habermasianas, não se pode dizer que a isso

corresponda um enfoque propriamente hermenêutico, uma vez que ele não prioriza a

linguagem como texto, tão marcante na matriz hermenêutica. O que sobressai na teoria

discursiva é a linguagem como comunicação, nota que atribui considerável relevância para a

dimensão pragmática da linguagem jurídica. Ao destacar a constante tensão entre a faticidade

e a validade do direito, Habermas propõe a superação das premissas da filosofia da

consciência e da herança metafísica da moral ou do direito natural que prevalecia sobre o

direito positivo , a partir da compreensão de que “o direito positivo e a moral pós-

convencional desenvolveram-se cooriginariamente a partir das reservas da eticidade

substancial em decomposição” na modernidade. Da mesma forma, a conjugação entre

autonomia pública e privada dos cidadãos – membros sociais típicos de uma comunidade

constituída juridicamente – deve nortear o sistema de direitos que, assim, deve contemplar “os

direitos fundamentais que os cidadãos são obrigados a se atribuir mutuamente, caso queiram

regular sua convivência com os meios legítimos do direito positivo” (HABERMAS, 2003, p.

154).

É nesse ponto que o autor introduz o princípio da democracia que, como forma

institucionalizada do princípio do discurso, aparece como núcleo do sistema de direitos. Sua

incidência inicia-se pelas liberdades subjetivas de ação enfeixadas pela autonomia privada e,

em seguida, alcança a institucionalização jurídica das condições necessárias ao exercício

discursivo da autonomia pública que, por sua vez, retroalimenta a autonomia privada,

revestindo-a de forma jurídica. Esse ponto da teoria discursiva, juntamente com a formulação

dialógica da esfera pública como espaço de formação da opinião e da vontade política dos

cidadãos, será retomado no próximo capítulo.

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65

3.2 O direito como sistema autopoiético para Niklas Luhmann

Como se viu, a teoria jurídica de Luhmann encontra pronunciada inspiração na teoria

dos sistemas de Talcott Parsons. A noção de “meios de comunicação simbolicamente

generalizados”62

tornou-se ainda mais fecunda pela perspectiva da vertente sistêmica

luhmanniana. Por outro lado, numa segunda fase de suas pesquisas, Luhmann abriu-se para as

propostas de um construtivismo abrangente (vide 2.1.1 supra). Nessa proposta, a que

Luhmann chamou de “construtivismo operativo”,63

o sistema é capaz de se auto-observar. Tal

observação é produtora de conhecimento e se dá em segunda ordem porque, ao passo que a

observação de primeira ordem analisa o mundo por meio de distinções, um observador de

segunda ordem percebe as distinções observadas na observação de primeira ordem.

Se é correto afirmar que a observação de primeira ordem agrega “segurança” ao

direito porque “elimina” incertezas e garante sua aplicação “eficaz”, não é menos adequada a

advertência de que o custo a ser pago por essa aparente tranquilidade elementar é a

impossibilidade de ver que tudo pode ser diferente. Isso implica que, em vez de assimilar a

realidade como invariável e determinada, a observação de segunda ordem percebe o real

como construção que se dá a partir de distinções. A realidade é, assim, contingente, dado que

o número de possibilidades de operações é infinitamente superior ao indicado pelo cotidiano

de um sistema.

Como explica Juan Antônio García Amado (1997, p. 188):

Essa maior radicalidade de Luhmann em explicar a realidade social como mera

articulação contingente de possibilidades é acrescida na última fase de sua obra.

Mudança fundamental decorrente da recepção das teorias de Varela e Maturana é a

ideia de que a autorreferência do sistema não se esgota na produção de suas

estruturas ou na circularidade de seus próprios elementos. Estes não são recebidos

pelo meio e “polidos” por estruturas constantes, mas são erigidos pela base

constitutiva dessas mesmas estruturas (Tradução livre).64

62

Essa expressão foi cunhada por Parsons para designar fenômenos como o que decorreu do advento da escrita,

quando a difusão da linguagem permitiu ultrapassar os limites estreitos da comunicação entre presentes. 63

Luhmann (2004, p. 78-79) discorda das teorias que buscam fundamentações para o direito que lhe sejam

exteriores porque “a identidade do direito não é dada por nenhum ideal estável, mas exclusivamente pelas

operações que produzem e reproduzem a especificidade peculiar do direito”, explicando que, para tanto, é

necessário que as operações sempre sejam específicas do próprio sistema jurídico, as quais possam ser

observadas de fora do sistema. Segundo o autor, isso, além de ser, por si só, uma implicação da tese do

fechamento operacional, na terminologia da teoria do conhecimento, é chamado de “construtivismo operativo”. 64

Esa mayor radicalidad de Luhmann a la hora de plantear la realidad social como mera articlación contingente

de possibilidades, se acrescienta en la última fase de su obra. El cambio fundamental que implica su asunción de

las teorias de Varela y Maturana es la idea de que la autorreferencia del sistema no se agora en la prodoucción de

sus estructuras o en la circularidad de sus operaciones, sino que se extiende a la constitución de sus próprios

elementos. Estos ya no son recibidos del médio y “pulidos” por unas estructuras constantes, sino que se erign em

base costitutiva de las mismas estructuras.

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66

Até chegar a essa conclusão, o autor (AMADO, 1997, p.187-188) elenca os principais

pontos de dissenso entre Parsons e Luhmann. Segundo ele, Luhmann propõe nova dimensão

para a função de um sistema, reorientando sua compreensão para um “esquema regulativo de

sentido”, que permitiria inferir os “equivalentes funcionais” para a solução de cada problema

sistêmico. Dada sua pretensão desontologizadora, para Luhmann “os sistemas não existem

como substâncias, mas como seleção contingente e variável de possibilidades” (AMADO,

1997, p.186) incontáveis – de experiências e ações trazidas pela modernidade que superam

em muito a capacidade de assimilação dos sistemas.65

Talvez o dissenso mais relevante entre

Luhmann que também o afasta, nesse particular, da vertente sistêmica proposta por

Habermas e Parsons diga respeito à concepção de indivíduo. Em Parsons, indivíduo é o

agente social por excelência, sendo sua consciência o centro da autorreferência dos sistemas

sociais (AMADO, 1997, p.187). Para a matriz sistêmica luhmanniana, cada indivíduo

constitui um sistema, ao qual ele denomina de psíquico.

Não é certo afirmar que, em Luhmann, os sujeitos desaparecem para dar lugar à

autorreprodução dos sistemas. Na realidade cada sistema será o sujeito de si mesmo e para

si mesmo. O que desaparece é a ideia do sujeito individual, como centro de todo sistema.

Cada indivíduo é sujeito para si mesmo, para o sistema autorreferencial particular e próprio,

em que consiste sua consciência [...]. Mas não há nenhum sistema de sujeitos. Não há,

tampouco, sujeito (como consciência individual ou coletiva) de sistemas sociais (Tradução

livre).66

Com efeito, em Luhmann, a sociedade e seus subsistemas não se compõem de

indivíduos, mas de comunicações. Os indivíduos não fazem parte de um dos sistemas sociais,

mas sim de seu ambiente. Na visão construtivista, a integração total de um indivíduo a um

sistema implicaria prejuízos a sua identidade.

Diferentemente disso, o autor propõe que cada subsistema da sociedade inclua em sua

perspectiva todos os indivíduos, no que diz respeito à dimensão existencial que se

correlaciona à especificidade da função de cada subsistema social.67

Numa sociedade que se

65

Como o número de possibilidades de experiências e ações é infinitamente superior ao que pode ser realizado, a

escolha ou seleção de uma alternativa implica desprezar ou não escolher alternativa diversa. No caso do sistema

jurídico, ao se observar uma norma, deve-se analisar não somente o permitido, mas o proibido, e vice-versa.

Ocorre que a complexidade da modernidade induz à ideia de que campo ilimitado do mundo possível não é um

mundo real (SCHWARTZ, 2005, p. 68-69). 66

Ce n´est pas que chez Luhmann les sujets disparaissent pour laisser leur place à l´auto-déploiement des

systèmes. En réalité chaque système sera le sujet de lui-même et pour soi-même. Ce qui s‟estompe, c´est l idée

du sujet individuel, comme centre de tout système. Chaque individu est sujet pour lui-même, pour le système

auto-référentiel particulier et propre, en quoi consiste sa conscience [...]. Mais il n´y a aucun système de sujets. Il

n´y a pás non plus de sujet (em tant que conscience individuelle ou collective) des systèmes sociaux (AMADO,

1993, p. 126). 67

Por exemplo, o sistema de saúde estrutura suas comunicações a partir das demandas de todos os indivíduos em

relação às funções por ele desenvolvidas; o sistema jurídico deve ter em vista a necessidade de que todos os

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estrutura sobre a base das relações entre sistemas, e não na relação entre indivíduos, cada

pessoa deve ter acesso a todos os subsistemas, pois um mesmo indivíduo é sujeito de direitos,

consumidor, eleitor, aluno, paciente etc. (AMADO, 1993, p.127).

Conforme explica Nafarrate (1998), na teoria sistêmica de Luhmann, a comunicação

ocorre entre sistemas sociais, ao passo que os homens atuam em seu sistema psíquico próprio

e individual. Como se afirmou em momento anterior deste estudo, a comunicação é precedida

de uma interação entre dois sujeitos pelo menos (dois sistemas psíquicos que interagem e

comunicam-se pela linguagem), daí por que a comunicação é intersistêmica.

Vale frisar: o homem não é uma realidade indiferente para o sistema jurídico, visto

que, estando em seu ambiente, é parte da já mencionada forma de dois lados que tem o direito

em seu lado interno. Cada pessoa é um constructo social. Em Luhmann (2004), o direito está

estruturalmente acoplado ao homem, como sistema psíquico, por meio da linguagem, o que

torna incabível a crítica no sentido de que o homem é excluído da sociedade. Ao contrário, se

o outro lado da forma não existir, nem sequer existirá sociedade. Assim, afirma Luhmann

(2004, p. 105):

Nós não cometeríamos o absurdo de propor que o direito exista sem a sociedade,

sem as pessoas, sem as condições físicas e químicas do nosso planeta. De toda

forma, as relações com o ambiente somente se processam na base da atividade interna do sistema, por intermédio da produção de suas próprias operações que se

tornam disponíveis apenas pela via dos elos recursivos os quais temos chamado de

fechamento (Tradução livre).68

Por outro lado, mesmo que se contraponha à ideia de que o ser humano ocupa o centro

da sociedade, conforme pensava Weber, Luhmann mantém o conceito de ação social como

decisão, de forma que os sistemas se movimentam a partir de suas decisões. A questão que se

coloca é que, na opção metodológica de Luhmann para descrever a sociedade, os sistemas é

que agem; os indivíduos, considerados em suas particularidades subjetivas, não os agentes por

excelência da ação social.

indivíduos tenham acesso à jurisdição e, assim, a todos os subsistemas sociais, conforme a função desempenhada

por cada um deles. 68

We are by no means making the absurd claim that Law exists without the society, without people, without the

special physical and chemical conditions on our planet. However, relations with such an environment can only

be established on the basis of the internal activity of the system, through executing its own operations, which

became available only through all those recursive links which we have called closure.

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3.2.1 A função sistêmica do direito na sociedade contemporânea

Na evolução semântica dos conceitos encampada pela teoria sistêmica de Luhmann,

função não corresponde a determinada tarefa que uma parte deve cumprir em relação ao todo,

mas ao que atribui sentido a um sistema social. Assim, a função do sistema jurídico é que

orienta esse subsistema para a resolução de um problema específico da sociedade, a partir da

aplicação programática dos valores de seu código próprio (LUHMANN, 2004, p.193).

A noção de função do sistema jurídico,69

portanto, pode ser descrita sob duas

perspectivas diferentes: como função do subsistema como um todo, considerada em relação a

seu ambiente; como função do subsistema com outros subsistemas, como ocorre, por

exemplo, quando o sistema político elabora as leis que serão manejadas pelo sistema jurídico

no desempenho de sua função de promover a congruente generalização de expectativas

normativas. Assim, ao executar uma prestação que subsidia a atuação do sistema jurídico, o

sistema político funciona como um equivalente funcional do direito (LUHMANN, 1997,

p.93-94).

A partir da visão sistêmica de Luhmann (2004, p.148), o direito moderno deve,

primordialmente, ser capaz de promover a generalização congruente das expectativas

normativas e de assegurar a reestabilização intrassistêmica, ou seja: “Concretamente, ao

direito incumbe a função de estabilização das expectativas normativas pela regulação de como

elas são generalizadas nas suas dimensões temporal, factual e social” (Tradução livre).70

Essa função estabilizadora impõe que as expectativas que estruturam o sistema não

sejam individuais, daí a necessidade de generalização. A fixação normativa, todavia, opera a

generalização apenas na dimensão temporal, motivo por que é necessário que o mecanismo da

institucionalização de expectativas comportamentais seja ativado pelo sistema jurídico, a fim

de que a generalização se dê na dimensão social. Para tanto, o sistema jurídico vale-se do

contrato e do procedimento como formas de institucionalização de expectativas a partir de um

suposto consenso e, o que é mais importante, tendo em conta a necessidade de distribuir os

riscos ou o peso gerados pelas condutas contrárias às expectativas (LUHMANN, 2004,

p.159). Na dimensão factual ou material, o que se leva em conta é o conteúdo das

69

Na verdade, Luhmann (2004, p. 167-172) distingue função (function) de prestação (perfomance) do sistema

jurídico: quando o espectro de suas ações tem por referência os demais subsistemas que compõem o ambiente

intrassocial, o sistema jurídico oferece uma prestação que dele se pode esperar; somente quando atua tendo como

referência a sociedade (sistema social globalmente considerado) é que o sistema jurídico desempenha a função

para a qual se especializou. 70

Concretely, law deals with the function of the stabilization of normative expectations by regulation how they

are generalized in relation their temporal, factual and social dimensions.

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69

expectativas, porquanto, para que haja generalização, é necessário que se alcance um nível de

abstração mínimo que permita a manutenção da constância – estabilidade – pretendida pelo

sistema jurídico. Em outras palavras, a generalização congruente das expectativas normativas

pelo sistema jurídico ocorre na dimensão temporal, por meio de imposição da sanção; na

dimensão social, pelo estabelecimento de procedimentos que possibilitem a tomada de

decisão; na dimensão material, pela utilização de programas condicionais71

de decisão ou

programas normativos. As frustrações, portanto, são absorvidas pelo direito por meio das

sanções; o consenso fictício sobre quais as expectativas serão jurídicas é o mecanismo

utilizado pelo direito para generalizar as expectativas na dimensão social, protegendo-as

contra aqueles que, eventualmente, não concordem. Por fim, as decisões a que os

procedimentos institucionalizados pretendem são obtidas pela aplicação de programas

condicionais que atuam a partir do esquema se/então.

Vale sublinhar que a generalização no âmbito material ou fático relaciona-se à função

imunizatória do sistema jurídico. Nesse caso, Luhmann traça um paralelo entre a função do

sistema imunológico do ser humano e o potencial imunizatório do sistema jurídico, de tal

sorte que ao direito compete impedir a dispersão e a propagação da anomia que lhe é

intrínseca e, assim, possibilitar o funcionamento dos sistemas sociais. A identificação do

sentido material da congruente generalização das expectativas normativas é essencial para que

o direito exerça sua função imunizatória. Para que isso ocorra, é necessária a atuação de um

terceiro observador que identificará o sentido material da expectativa normativa, como ocorre

quando a questão é levada para decisão pelo Poder Judiciário.

Desse modo, as expectativas normativas são fixadas quando dotadas dessa tripla

generalização capaz de delimitar o campo das expectativas normativas que se tornarão

jurídicas. Em outras palavras, as expectativas normativas tornam-se jurídicas quando

selecionadas pela estrutura jurídica, o que ocorre com a institucionalização e submissão

dessas expectativas a programas decisionais.

Para Luhmann, a única função que pode ser vista como típica do sistema jurídico é a

manutenção das expectativas apesar das frustrações. Segundo ele, nenhum outro sistema

pode disputar com o jurídico a primazia no exercício dessa função estabilizadora das

71

Os programas decisionais condicionais ou normativos compõem a estrutura do sistema jurídico e possibilitam

a aplicação do código binário próprio do direito (lícito/ilícito) às situações que lhe são postas. Tais programas

apresentam-se sob a forma de leis, regulamentos, contratos etc.; por isso, podem ser entendidos como

“programas de condicionalidades” que regem a introdução dos estímulos ou informações provenientes do

ambiente no sistema jurídico por meio do esquema se/então (LUHMANN, 2004, p. 111). Assim, eles

possibilitam a combinação entre fechamento operativo (ou normativo) e abertura cognitiva; entre autorreferência

e heterorreferência. A questão será retomada no próximo tópico.

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70

expectativas sociais de comportamento. Tal não ocorre porque as normas jurídicas

posicionam-se mais proximamente à natureza humana que as outras normas; ao contrário, é o

fechamento operacional do direito que permite que as normas se tornem mais consistentes e,

além disso, mais estáveis que num sistema de normas baseado no que possa ser tido como

“normal”, “natural” ou “ético” (LUHMANN, 2004, p.152). Esse aperfeiçoamento sistêmico

conduziu, pela via da evolução da sociedade, à produção de normas complexas e estáveis que

contemplam as operações dos outros sistemas.72

Todavia, para que o direito seja capaz de manter estáveis as expectativas, necessário

haver condições, tanto externas quanto internas, que lhe permitam dar conta de sua função.

Internamente, a habilidade do direito de desenvolver normas complexas e consistentes

demanda que o sistema desenvolva um subsistema “produtor de decisões”, manejado por

juristas, aos quais incumbe a peculiar tarefa de atribuir consistência às expectativas

normativas por meio da prolação de decisões jurídicas. Já os fatores externos incluem a

necessidade de administrar o dissenso, ao que Luhmann associa a dimensão social do sistema

jurídico, que contrasta com sua dimensão temporal. Esta, por sua vez, frise-se, diz respeito à

manutenção do significado comunicacional das expectativas normativas ao longo do tempo. A

dimensão social pode ser compreendida pela generalização das expectativas a serem

protegidas pelo direito, visto que o gerenciamento do dissenso então produzido é função típica

da política ou da ética (LUHMANN, 2004, p.158-159).

Conquanto Luhmann veja significativa relevância na coercibilidade do sistema

jurídico para o exercício de sua habilidade para estabilizar expectativas em face dos

desapontamentos, é na densidade das comunicações jurídicas e na extensa rede que essas

operações abrangem que reside o potencial estabilizador do sistema jurídico em face dos

consideráveis níveis de desapontamento. Como exemplo disso, cita-se a existência de

expectativas no sentido de que ladrões sejam capturados, processados e punidos, o que já

estabiliza expectativas representadas pelo direito, mesmo que nem todos os criminosos sejam

punidos. A exigência mínima é de que as pessoas não se sintam tolas por terem expectativas

baseadas no direito, razão por que este deve ostentar alto nível de imposição. Vale dizer: caso

o direito não demonstre grande capacidade de se impor, as frustrações podem fazer com que

72

Nesse ponto, Luhmann (2004, p.153) enfatiza que é tamanha a superioridade do direito no que diz respeito à

sua habilidade para manter as normas estáveis e consistentes, que, quando se deseja estabilizar normas éticas,

opta-se por inseri-las dentro do sistema jurídico. Teubner (1996, p.51), partindo das ponderações de Luhmann,

direciona severas críticas a esse processo de juridicização do mundo, que deteriora o ambiente pela

burocratização. Segundo ele, o que na Antiguidade era considerado uma busca heroica pela justiça, sintetizada

no brocardo fiat justitia, pereat mundus, transformou-se em “poluição jurídica”, uma espécie de poluição do

mundo pelo direito em decorrência do desenfreado processo de juridicização.

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71

as expectativas normativas tornem-se cognitivas, e a expectativa generalizada de “crença” na

sua funcionalidade poderá se tornar letra morta. Tal entendimento é uma parte da

compreensão geral de que o direito pode orientar o comportamento humano: motivando as

pessoas a obedecerem à lei e fazendo com que aprendam a partir das punições (LUHMANN,

2004, p.137).

Todavia, se o direito contribui para regular condutas e equacionar conflitos, ou ainda,

como entende Habermas (1997, p. 51), se ele exerce o papel de integração social, em

Luhmann (2004, p.100 e p. 143) essa não é a descrição adequada de sua contribuição

funcional específica, mesmo porque orientar condutas é uma prestação que pode ser oferecida

pelos sistemas da religião ou da moral.

Para Luhmann (2004, p. 151), as motivações que levam o indivíduo a agir conforme

as expectativas normativas não são objeto de maiores reflexões teóricas, pois elas pouco

repercutem na função a ser desempenhada pelo direito. Vale frisar: não são essas motivações

que possibilitarão ao direito desempenhar sua função, que é estabilizar as expectativas

mediante mecanismos que possibilitem sua congruente generalização nas três dimensões de

sentido: a sanção (dimensão temporal); os procedimentos (dimensão social) e os programas

normativos de decisão (dimensão factual ou material).

Por outro lado, a negação ou a mitigação da função regulatória do direito como

sistema autopoiético é algo problematizado por outros autores como Jürgen Habermas e

Gunther Teubner. A questão que se coloca é a seguinte: se o sistema jurídico é

autorreferencial, ele não pode regular ou controlar outros subsistemas sociais, da mesma

forma que os outros subsistemas também não podem controlá-lo. A crítica sustenta-se,

portanto, no fato de que a função regulatória do direito, em Luhmann, é exercida de modo

metafórico (HABERMAS, 1997, p.71) ou indireto (TEUBNER, 1996, p.76) porque as

intervenções do sistema jurídico nos outros subsistemas sociais são entendidas por Luhmann

como meras observações. Essas afirmações equivalem a dizer: se o direito pretendesse intervir

na economia, ele construiria internamente uma perspectiva específica para tanto e demandaria

uma programação normativa compatível, uma vez que lhe falta acesso direto ao que seja

economia.

Todavia, a conjugação entre fechamento operacional ou normativo do sistema e

abertura do direito aos aspectos cognitivos do ambiente, na visão de Luhmann, permitiria, na

hipótese dada, que os fatores provenientes do sistema econômico, quando pertinentes,

ingressassem no sistema jurídico depois de traduzidos pela codificação jurídica específica.

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72

Além disso, como os sistemas são ambientes uns para os outros, a questão seria solucionada

pela relação sistema/ambiente, em razão do que Luhmann (1996a, p. 97) utiliza o conceito de

acoplamento estrutural, originalmente formulado por Humberto Maturana, por meio do qual

seria possível compreender como o direito é capaz de se relacionar com os outros sistemas

funcionais.

3.2.2 Fechamento operacional e abertura cognitiva: a validade do sistema jurídico

Para que se compreenda a proposta sistêmica de Luhmann relativamente ao direito, é

imprescindível que se aprofunde no exame do fechamento operacional do sistema jurídico e

de sua consequente abertura cognitiva, para, em seguida, correlacionar essas premissas com a

incidência do código binário e do programa decisional, por meio dos quais são realizadas as

operações no interior do sistema jurídico.

Nas palavras de Luhmann (2004, p. 10):

Todos os sistemas estabelecem códigos para o ambiente e todos os sistemas

estabilizam este código desenvolvendo programas ou estruturas para sua aplicação.

Mas enquanto o código é essencial à existência continuada do sistema [...], o

conteúdo destes programas é contingente (Tradução livre).73

Na concepção sistêmica luhmanniana, o grande equívoco de várias teorias jurídicas da

modernidade é que elas tratam a contingência da programação do direito como algo que lhe é

vinculado substancialmente. Explica o autor que a rejeição da coerção moral na qual pode se

constituir um direito válido é o modo como as teorias jurídicas de matiz positivista pretendem

fundar o direito em contraposição às teorias que encontram sua fundamentação no direito

natural. As teorias inspiradas no positivismo jurídico tentam identificar em estruturas externas

ao sistema premissas que estabilizam aquilo que pode tornar o direito válido: “como o

soberano em Austin, a regra do reconhecimento de Hart e, em Kelsen, a primeira constituição

validada por uma norma fundamental básica” (LUHMANN, 2004, p.10). Segundo o autor,

essas teorias74

nada mais são do que tentativas de dissolver o paradoxo gerado pela

73

All systems code their environment, and all systems stabilize this coding by developing programmes

(structures) for the application of the code. But while the code is essential to the continued existence of the

system […], the content of these programmes is contingent. 74

Juliana Magalhães Neuenschwander (2002, p. 149-150) inclui a teoria hermenêutica, de Dworkin, e a teoria da

argumentação, de Alexy, entre aquelas que tentam, mais uma vez, ocultar o paradoxo fundante do direito, qual

seja: “o direito que o direito tem de dizer o que é e o que não é direito”, a partir da ideia de projetá-lo para o

futuro, de modo que o direito seria orientado por suas consequências. No caso da teoria de Dworkin, sobressai,

ainda, o fato de que o direito encontra sua fundamentação numa principiologia que lhe é extrínseca: algo que não

é direito diz o que é o direito. Guardadas as proporções, esse novo paradoxo equivale a uma reinvenção da

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73

contingência de programas normativos do direito e, ao mesmo tempo, de evitar a circularidade

contingente. A influência do positivismo jurídico nas construções teóricas, desde Austin, fez

com que seus teóricos buscassem em estruturas externas ao direito as premissas para

estabelecer seu conteúdo.75

Os tipos particulares de comunicação são identificados como jurídicos porque têm

algum tipo de relacionamento significativo (lógico, semântico, racional etc.) com

uma estrutura preexistente. Austin confia na aplicação não arbitrária ou consistente

da força política (pelo soberano). A regra do reconhecimento de Hart é uma

estrutura externa para o direito válido: regra que estabelece o que pode ser uma regra

de direito não é, em si, uma regra de direito. A regra do reconhecimento de Hart é

uma não regra do sistema como um todo [...]. A fonte próxima de validez em

Kelsen, a norma fundamental, está fora do sistema jurídico, mas ao mesmo tempo

igualmente ligada a cada norma do sistema como uma ficção pressuposta. A

estabilidade oferecida por estas estruturas mereceu críticas em razão de sua forma

circular76

(Tradução livre).

Juliana Neuenschwander Magalhães (2002, p.141), referindo-se à hermenêutica

jurídica de Dworkin, acrescenta que, ao tentar superar a zona de imprecisão linguística

visualizada por Kelsen e Hart e, via de consequência, propugnar pela resposta correta a ser

encontrada na prática interpretativa, ele desenvolve sua teoria assentada sobre princípios que

são entendidos, a um só tempo, como filosofia do direito e filosofia política. A questão

colocada pela autora (NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2002, p.141) remete à nova

tentativa de ocultação do paradoxo constituinte do direito, que, na observação sistêmica,

inevitavelmente vem à tona:

Os princípios não existem no sistema, porque são criados pelo juiz, mas uma vez

que são criados pelo juiz, existem no sistema. O juiz é o sistema? O sistema é

resultado da interpretação do juiz? Os juízes não criam o direito, porque interpretam

o direito aplicando seus princípios gerais (assim diria Dworkin); mas criam o direito,

quando o aplicam tendo em vista determinadas consequências porque nem todas elas

e, portanto, nem todos os princípios podem ser previstos pelo direito.

norma fundamental de Kelsen ou da regra de reconhecimento em Hart, pois, embora estranhas ao direito, são

capazes de atribuir-lhe fundamentação. 75

O autor explica que essa solução gera dificuldades para a resposta a algumas perguntas elementares para a

contextualização do sistema jurídico nas sociedades modernas: se se aceita que o direito pode ter qualquer

conteúdo substantivo, o que estabelece o que pode ser direito? Ter-se-ia que concluir que o direito decide o que

pode ser direito? Se se admitir essa conclusão, envolve-se no paradoxo? Como pode algo decidir o direito, sendo

ao mesmo tempo o direito? Como pode tal coisa ser interna e exterior ao mesmo tempo? 76

Particular kinds of communications are identified as legal because they have some kind of meaningful (logical,

rational, semantic, etc.) relationship with a pre-existing structure. Austin relies on the consistent (non-arbitrary)

application of political force (by sovereign). Hart´s rule of recognition is a structure that is subtly external to

valid law: the rule that establishes what can be a rule of law cannot itself be a rule of law. Hart´s rule of

recognition is not a rule of the system at all […]. Kelsen´s source of validity, the basic norm, is outside the legal

system in terms of fact, but at the same also linked to each norm of the system as a presupposed fiction. The

stability offered by these structures has been subject to sustained criticism pointing to their circularity (Luhmann,

2004, p. 10).

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74

Mais uma vez, a teoria jurídica furta-se ao enfrentamento do paradoxo do fundamento

de validade do sistema jurídico buscando bases que lhe são externas. É a partir dessa

observação e pelo esforço de evitar a ocultação de paradoxos que o fechamento operacional

do sistema jurídico proposto por Luhmann – e a característica de autopoiese que ele

proporciona – torna-se capaz de oferecer uma base mais científica para a positividade do

direito em virtude da “identidade sob condições de contingência”. A partir das condições de

seu fechamento operacional, o direito adquire condições de per si para identificar o que é

direito e serve de base ao exercício de seu potencial autopoiético que garante sua

autocontinuação diferenciada. Por outro lado, ao se manter cognitivamente aberto aos fatores

do meio, o direito consegue coordenar esse processo com sua relação com o ambiente.

Segundo Luhmann (apud NEVES, 2007, p.136), resulta daí a relação entre conceito e

interesse na reprodução do direito positivo: a autorreferência é assimilada pelo direito a partir

de conceitos, ao passo que a heterorreferência é equacionada pela consideração dos interesses.

Assim:

A vigência das expectativas normativas não é determinada imediatamente por

interesses econômicos, critérios políticos, representações éticas, nem mesmo por

proposições científicas, pois depende de processos seletivos de filtragem conceitual

no interior do sistema jurídico. A capacidade de aprendizagem (dimensão

cognitivamente aberta) do direito positivo possibilita que ele se altere para se

adaptar ao ambiente complexo e “veloz”. O fechamento normativo impede a

confusão entre sistema jurídico e seu ambiente, exige a “digitalização” interna de

informações provenientes do ambiente (NEVES, 2007, p.136-137).

Nesse contexto, os programas normativos organizados condicionalmente (se/então)

compõem a estrutura do sistema jurídico e atribuem significação ao código binário. Isto é, se

o código lícito/ilícito é essencial à individualização do sistema jurídico, cabe à programação

decisional possibilitar ao sistema que seu fechamento operacional ou normativo não impeça a

abertura cognitiva aos fatores ou às “irritações” do ambiente. Dito de outro modo: é o

programa normativo que, a partir da codificação negativa ou positiva, faz com que o sistema

jurídico assimile as informações tomadas do ambiente. Nesse contexto, o programa normativo

funciona como uma forma particular de operação jurídica: uma observação baseada numa

distinção.

Como visto anteriormente, o sistema jurídico se organiza e orienta suas operações

internas a partir do código binário lícito/ilícito, ou seja, o direito se auto-observa somente pelo

seu próprio código. Essa auto-observação, em Luhmann, é estruturada pela necessidade de se

identificar o que está conectado – sobre o que pode se dizer seja igual ou diferente – com o

código anterior. A conjugação entre o código e os programas normativos é o que orienta as

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operações ocorridas no interior do sistema jurídico. Porém, conquanto os programas

promovam estabilização, sua própria existência é contingente no que diz respeito à sua

habilidade para conectar operações (decisões jurídicas) sob um mesmo código (LUHMANN,

2004, p.80-81).

Portanto, diferentemente do que apregoam as teorias normativistas ou hermenêuticas,

não há nada fora do sistema jurídico que possa lhe atribuir validade. Os programas decisionais

do direito são produzidos por ele próprio, pela auto-observação de seu código precedente, em

razão do que se repudia tanto a perspectiva hierárquica – incorporada na norma fundamental

de Kelsen ou na regra do reconhecimento de Hart, que opera no plano gnosiológico como

critério de pedigree para o direito – quanto a perspectiva de uma principiologia que antecede

o próprio direito, como propõe Dworkin. As estruturas não são preexistentes e determinantes

do que possa ser a comunicação jurídica; diversamente, são fatores que possibilitam a

estabilização do sistema, passíveis de modificação e sobre os quais incide a binariedade do

código. Em outras palavras: as estruturas podem ser constituídas pelo que elas estabilizam.

Disso decorre a unidade do sistema, bem como o modo pelo qual o código próprio do direito

contribui para trazer o paradoxo à tona e, ao mesmo tempo, afastar seu efeito paralisante.

Conforme expressa Luhmann (1994, p.17):

A unidade, que há de ser determinada somente mediante uma distinção, não pode

distinguir-se da própria distinção. Isto equivaleria a pedir ao direito (ou não direito) a distinguir entre o que é direito e o que não é. Não obstante, é precisamente neste

paradoxo que se baseiam todos os sistemas autorreferentes, não o convertendo,

porém, em objeto de suas próprias operações. 'Summum ius, summa iniuria',

poder-se-ia exclamar como grito desesperado porém, precisamente no sentido de que este princípio não pode ser introduzido no sistema como diretiva, muito embora

sistema se baseie exatamente nele. O paradoxo não é nenhuma contradição e, por

isso, tampouco a promessa de uma síntese da 'dialética' conduz mais longe. O

paradoxo não afirma: jurídico igual a antijurídico, mas sim, jurídico por causa de

antijurídico Este problema escapa a todo nivelamento lógico. Pode, entretanto, ser

desparadoxalizado por meio da codificação sistêmica.

A premissa do fechamento operacional não é a de que cada comunicação que pode ser

reconhecida como jurídica seja conhecida com absoluta certeza de um momento para outro. A

teoria é proposta sob o enfoque da redução de complexidade: a escala de comunicações que

pode ser conectada a outras comunicações jurídicas a cada momento é limitada pela

necessidade de se estabelecer essa conexão. O direito apenas existe no presente se as

conexões entre seus processos comunicativos internos puderem ser consideradas no momento

de sua aplicação. Com efeito, para que um sistema altamente complexo como o direito

possa existir, milhões de processos comunicativos devem ser reconhecidos como jurídicos

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num determinado momento, num processo de atualização de sua potencialidade. Para

Luhmann (2004), o direito existente é um sistema composto por estruturas de estabilização

capazes de estabelecer conexões entre si (conectar suas próprias comunicações umas às

outras). Dessa perspectiva, a auto-observação do direito, por meio de seus programas

normativos, é, ao mesmo tempo, estável e contingente.

A cadeia de comunicações que as decisões jurídicas constroem no interior do sistema

jurídico é imprescindível para o surgimento daquilo que Luhmann (1994, p. 26) denomina de

mecanismo de consistência. Tal mecanismo permite “calibrar” as operações e manter o

sistema atualizado, unificado e diferenciado de seu entorno. Assim, embora as decisões sejam

diversas e ocorram em momentos diferentes, o sistema repete-se por meio de seu círculo

autorreferencial (LUHMANN, 2004, p.90). É preciso que se reconheçam tais operações como

reiteradas; para tanto, necessário saber identificá-las. Representativo dessa ideia é o

julgamento – observação – de casos jurídicos baseado em outros, já julgados por outros

observadores – que são agora observados.

Além disso, para se autoestabilizar, o direito não apenas gera auto-observação, mas

também autodescrição, uma vez que pode construir referências sobre si mesmo como uma

unidade. Assim, na teoria do delito, é comum encontrarem-se referências à constituição. A

teoria do direito constitucional é uma auto-observação ou, mais especificamente, representa o

momento da reflexão no modelo autopoiético luhmanniano sobre uma estrutura em que se

estabiliza o processo de modificação do direito. Observar essas várias auto-observações leva à

generalização de descrições do sistema jurídico como tal: seus valores, funções, papéis e

limites. Porém, essas autodescrições não fornecem um modo de identificação do que pode ser

jurídico. As possibilidades de conexão dentro do sistema jurídico apenas existem pela via da

evolução daquele sistema e, enquanto ele é estabilizado pela auto-observação e autodescrição,

sua evolução é determinada pelas inúmeras comunicações realizadas a cada momento

(LUHMANN, 2004, p. 195-196).77

Se o direito não se mantém estável em virtude de se ater a alguma ideia ou regra

fundamental, qual é o status dos valores que são encontrados dentro de sua autodescrição?

Justiça, igualdade, estado de direito? Na teoria sistêmica, valores vindos de fora não adentram

o sistema jurídico para estabilizar suas operações. Eles existem internamente, gerados pelas

operações do próprio direito. O primeiro desses valores é a validade, que não se encerra num

77

Essas comunicações não se limitam à instância judicial ou aos atores do sistema jurídico geralmente

considerados. Elas ocorrem onde quer que se dê a operação – ato comunicativo – que se conecte às

comunicações tipicamente jurídicas. Nada obstante, as decisões jurídicas são, a rigor, o cerne da autorreferência

do sistema.

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77

direito que ostenta legitimidade política ou moral, como na teoria do direito natural e na

prática das sociedades menos diferenciadas, onde os sistemas não alcançavam o fechamento

operacional. A validade do sistema jurídico está na conexão entre uma e outra comunicação

jurídica, o que lhe garante a unidade. Assim é que somente as comunicações reconhecidas

como jurídicas pelo sistema jurídico são válidas; caso contrário, não. Não há valor ou teste de

validez fora do próprio sistema. E a validade do sistema como um todo não é nada mais que

sua capacidade de interconectar, no âmbito interno, todos os novos processos comunicativos

do próprio sistema (LUHMANN, 2004, p. 129). É a partir dessas considerações que o autor

chega à concepção de consistência e redundância, que estão no cerne dos processos

decisórios do sistema jurídico.

Com efeito, a norma aplicável ao caso posto para decisão é selecionada a partir de sua

congruência com outras soluções no interior do sistema, ao que Luhmann designa de

consistência. É em razão da observação da consistência das decisões que a continuidade

operativa do sistema torna-se possível e é assegurada por meio da redundância que controla o

nível de variabilidade das decisões, pois é construída com base em argumentos (LUHMANN,

1994, p. 21).

Por ora, entretanto, é suficiente que se tenha claro que, se o código binário é condição

para o fechamento operacional do direito, a abertura cognitiva desse sistema é, igualmente,

imprescindível para que ele dê continuidade aos processos de auto-observação e autodescrição

e, por conseguinte, continue se autorreproduzindo de modo operativamente hermético. É por

meio da abertura cognitiva que o direito “aprende” e se renova. Como o sistema jurídico

opera simultaneamente sob premissas cognitivas e normativas, ora ele está disposto a

aprender, ora se mantém alheio a qualquer aprendizado, mantendo sua diferenciação em

relação ao ambiente.

Assim, conforme Luhmann (1994, p. 18):

O estrito hermetismo recursivo do sistema, que corresponde sociologicamente à

diferenciação social de um sistema funcional para o direito, significa que não pode haver nem input normativo, nem output normativo. O direito não pode importar as

normas jurídicas de um ambiente social (não existe nenhum "direito natural"),

tampouco pode dar normas a este ambiente (as normas jurídicas não podem valer

como direito fora do direito). A normatividade é o modo interno de trabalhar do

direito, e sua função social consiste, precisamente, em que cumpra a missão de

disponibilidade e modificação do direito para a sociedade. Todo contato do sistema

jurídico com o ambiente deve, portanto, utilizar uma forma diversa de expectativa.

Toda orientação do direito com relação ao seu ambiente utiliza a cognição. Quer

dizer, baseia-se em expectativas que se modificam em caso de desilusão. Em total

contraposição com a atividade normativa, a atitude cognoscitiva está disposta a

aprender. [...] Na medida em que semelhantes esquemas de aprendizagem possam

ser desenvolvidos, também o direito poderá aprender e adaptar-se ao seu ambiente.

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78

[...] É um sistema fechado e aberto: é fechado por que é aberto e aberto por que é

fechado.78

Luhmann explica que essa combinação entrelaçada entre “reprodução fechada e

orientação ambiental aberta”, ou seja, entre expectativas normativas e cognitivas, torna -se

possível porque o sistema jurídico dispõe de duas formas de comunicação: decisões e

argumentos.

É nesse ponto da teoria sistêmica de Luhmann que o autor explicita a função dos

programas normativos para o sistema jurídico: o programa decisional, que rege a aplicação do

código lícito/ilícito, é necessário para que a capacidade de aprendizagem do sistema seja

integrada em suas operações. Os programas são estruturas sistêmicas que, no caso do direito,

dão consistência ao valor positivo (lícito) ou negativo (ilícito) do código: como o sistema está

cognitivamente aberto para aprender sobre o ambiente ou sobre operações de outros sistemas;

apenas atribuir valor negativo ou positivo ao que se aprende não é suficiente; é preciso que

esse “valor” extrínseco ao direito seja traduzido para a “linguagem” jurídica. No âmbito do

direito penal, o papel desempenhado pelos programas é facilmente observado: “A” matou “B”

a aplicação do programa condicional que, em regra, será utilizado pelo sistema jurídico

acarretará a seguinte leitura: se “A” matou “B”, então A deve sofrer a pena “C”, que será

aplicada a partir de critérios específicos. Indo um pouco além, nesse mesmo exemplo, o

evento morte pode ter sido produzido mediante pagamento de “D” a “A”; logo, o programa

irá direcionar a aplicação do código para essas circunstâncias, as quais, do ponto de vista

normativo, tornam-se penalmente relevantes, ampliando o âmbito de incidência da norma

penal para alcançar “D” como coautor do crime, assim como para aumentar a pena a ser

aplicada a ambos, uma vez que o evento “pagar ou receber vantagem econômica para matar

alguém” é lido pelo programa como uma qualificadora. Portanto, o programa decisional típico

do sistema jurídico é condicional, pois as consequências de sua aplicação vão decorrer das

circunstâncias para tanto relevantes. Todavia, como adverte Neves (2008, p.94), em razão do

acoplamento estrutural entre direito e política, o sistema jurídico eventualmente vale-se de

programas finalísticos na atividade de controle do poder.

78

Segundo Luhmann (1994), abertura e não abertura não supõem uma contradição, pois não estão definidas

como relação que se exclui mutuamente; diversamente, o paradoxo constituinte do direito é reformulado, em vez

de dissimulado por outras construções teóricas. A questão por ele apontada coloca-se dessa forma: qual o modo

como o sistema pode combinar aprendizagem e não-aprendizagem, no sentido de uma relação de mútuo

incremento e, por meio disto, adaptar-se à evolução social? A resposta, segundo o autor, seria: mediante a

combinação de fechamento operacional e abertura cognitiva.

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79

3.3 Reflexividade e direito: a contribuição de Gunther Teubner

Nesta apresentação das linhas gerais da teoria autopoiética de Gunther Teubner

aplicada ao direito, serão analisados os pontos de convergência entre essa linha de

pensamento e as propostas por Habermas e Luhmann, a fim de se reunirem subsídios teóricos

suficientes à análise das interrelações sistêmicas entre direito, política e economia, que se dará

ao longo deste estudo.

O modelo proposto por Teubner parte de duas perspectivas diversas, uma vez que

conjuga uma proposta de aprofundamento na noção de autopoiese do direito com a

incorporação de elementos sociais e políticos como variáveis historicistas consideradas na

análise do fenômeno jurídico na sociedade, em especial, o crescente processo de

“juridificação” das relações sociais, ao qual o autor dispensa significativa preocupação.

Pode-se dizer que o direito reflexivo proposto por Teubner recorre a fontes teóricas

distintas: a teoria do direito responsivo, formulada por Phillipe Nonet e Philip Selznick,79

segundo a qual as tendências antiformais do direito contemporâneo são explicadas a partir da

crise interna do formalismo jurídico, e as teorias de Jürgen Habermas e Niklas Luhmann, que

fornecem variáveis sociais externas ao sistema jurídico, contribuindo para a compreensão da

crise da racionalidade do direito – entre a formalização e a materialização – conhecida desde

Max Weber (TEUBNER, 1996, p. 4).

O autor segue explicando que, embora sejam modelos teóricos distintos entre si, têm

em comum o fato de buscar respostas às perguntas lançadas por Weber: Como o direito

reagirá à crise de sua racionalidade específica, a racionalidade formal? Quais as repercussões

dessa crise e quais as eventuais possibilidades de mitigá-la ou gerenciá-la?

Enquanto Nonet e Selznick trabalham sob a perspectiva interna do direito, Habermas e

Luhmann buscam perspectivas sociais para enfrentar a questão. Habermas considera que a

racionalidade formal do direito está ligada a uma crise geral de legitimidade do capitalismo

organizado e, para superá-la, deve-se institucionalizar a razão comunicativa da normatividade

79

Segundo Teubner, esses autores propõem um modelo em que a dinâmica interna do direito como instituição

social, antes de chegar ao direito responsivo, passou pelas etapas evolucionárias do direito repressivo e do direito

autônomo. Como etapa de um desenvolvimento mais elementar, o direito repressivo orienta-se pela legitimação

da dominação política e pela manutenção da ordem; o direito autônomo, que ostenta maior diferenciação em

relação à política e, em razão disso, mobiliza-se em torno do controle do poder e pela manutenção de sua própria

integridade. Ocorre que, na visão de Nonet e Selznick, as contradições internas e a crise desse tipo de direito

eminentemente moderno criaram espaço para o surgimento do direito responsivo, mais flexível, dotado de

capacidade de aprendizagem e sensibilidade para responder às necessidades sociais e às aspirações humanas.

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80

e, assim, transformar as estruturas da sociedade em geral. Luhmann, de sua parte, atribui as

tendências de crise do direito formal ao baixo nível de diferenciação funcional da sociedade e

indica que a maior autonomia do direito pode contribuir para gerenciá-la.

Segundo Teubner (1996, p. 40), de um lado, a reflexão dos subsistemas sociais supõe

os processos de democratização e produção das estruturas discursivas e, de outro, a função

primária da democratização não é o crescimento da participação dos indivíduos nos processos

de tomada de decisão, tampouco a neutralização do poder. O que se pretende é a introdução

de mecanismos que incrementem a capacidade de reflexão intrassistêmica sobre a identidade

social. Assim, Teubner encontra um ponto convergente entre os autores referenciados na

distinção entre função, prestação e reflexão, possibilitando que o direito estabeleça limites à

própria projeção de sua juridicidade. A função do direito, então, consiste em colocar à

disposição da sociedade estruturas normativas, assumindo a forma de expectativas

congruentes e generalizáveis. A prestação que se pode esperar dele é que regule os conflitos

surgidos nos outros subsistemas sociais e que não encontrem possibilidade de resolução no

âmbito intrassistêmico.

Todavia, há tensão entre a função do sistema jurídico e a prestação que ele oferece à

sociedade. Isso porque, algumas vezes, a generalização congruente de expectativas

normativas não é suficiente para fornecer as regras que permitem a solução concreta de

conflitos. Ao contrário, ao solucionar os conflitos, o sistema jurídico acaba por desenvolver

regras que escapam à generalização congruente. É justamente nesse ponto – em que há

aparente contradição – que a reflexão desempenha seu papel: na medida em que impõe limites

às capacidades internas do sistema jurídico, a tensão entre a prestação e a função do direito é

atenuada. Em termos mais concretos, Teubner (1996, p.43) propõe que a reflexão leve ao

redimensionamento do papel do direito – tanto em termos de função quanto de prestação a ser

oferecida para a sociedade –, cujos limites foram influenciados pela postura intervencionista

do Estado Social, que lhe atribuiu carga regulatória incompatível com a complexidade do

sistema social global contemporâneo e com a perspectiva da diferenciação funcional trazida

por Luhmann.

Para Teubner, ao direito autolimitado pela reflexividade cabe tão-somente estabelecer,

corrigir e redefinir os mecanismos democráticos da autorregulação. Portanto, o direito deve

afastar de si a assunção de responsabilidades genéricas quanto aos resultados sociais de sua

atuação: “A reflexividade caracterizará de sua parte os meios técnicos de que ela se servirá

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81

para alcançar esse fim. No sistema jurídico, apenas se definirão as premissas da decisão, sem

se apegar à decisão efetivamente” (Tradução livre). 80

Nascido da conjugação dessas vertentes teóricas, o direito reflexivo pretende ser

capaz de contrabalançar e confrontar os limites internos de sua racionalidade formal com as

exigências estruturais e funcionais da sociedade pós-moderna, por meio de uma racionalidade

reflexiva (TEUBNER, 1996, p. 16).

Tal ocorre porque, se a racionalidade formal esteve atrelada à postura do direito

tipicamente liberal e se a racionalidade material surgiu em decorrência das demandas de

materialização do direito típicas do Estado Social, ao “Estado pós-Social” deve corresponder

uma racionalidade reflexiva. Por meio dessa semântica, Teubner propõe uma racionalidade

capaz de apreender os três tipos de racionalidade jurídica da contemporaneidade, que se

apresentam na dimensão interna do direito, na dimensão normativa e na dimensão sistêmica.

No âmbito da racionalidade interna, exige-se que a racionalidade reflexiva seja orientada

procedimentalmente, ou seja, que priorize as regras de organização e de competência. Já na

dimensão normativa, a racionalidade dita reflexiva deve funcionar como facilitadora da

resolução dos conflitos, privilegiando a regulação indireta e abstrata da autorregulação social.

Por fim, na esfera sistêmica, espera-se que a racionalidade reflexiva cumpra uma função que

contribua para a integração entre as premissas jurídicas de procedimentos e as

organizacionais, assim como no que diz respeito aos processos de reflexão desencadeados no

seio de seus sistemas sociais.

Portanto, o direito reflexivo, na formulação de Teubner (1996), propõe o

fortalecimento da institucionalização dos procedimentos, contribuindo para uma integração

descentralizada entre os sistemas jurídico e político e a sociedade, em sentido estrito, de sorte

que as normas jurídicas não emanariam propriamente do Estado, mas de vozes múltiplas, que

representam as mais diversas esferas sociais.

Conforme a perspectiva de Teubner, o sistema jurídico considera a si próprio um

subsistema dentro de um ambiente e admite os limites de sua capacidade de regulação dos

outros subsistemas sociais. Assim (TEUBNER, 1996, p.vii):

O procedimento reflexivo será então o lugar em que ocorrerá a intermediação entre

os diferentes sistemas envolvidos na função normativa: o sistema político, que

define os objetivos, o sistema jurídico, que enuncia as normas, e os sistemas sociais

nos quais se dá a busca pela democratização. Entre esses três tipos de sistemas, que

80

La reflexivité caracterserait por leur part lês moyens techniques dont il se servirait à cette fin. Dans Le systéme

juridique, on ne définirait que lês premisses de la décision, et on ne la préndrait pás effectivement” (TEUBNER,

1996, p.43).

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82

são ambiente uns para os outros, o direito reflexivo cria “acoplamentos estruturais”

capazes de lhes permitir uma integração “descentralizada” (Tradução livre).81

O modelo explicativo de Teubner torna-se mais robusto com o desenvolvimento do

conceito de reflexividade do direito (TEUBNER, 1996), uma vez que seu propósito é aplicar a

teoria sistêmica e a noção de autopoiese às situações concretas relativas ao sistema jurídico

ou, em outras palavras, é atribuir-lhes poder para elucidar as configurações institucionais do

direito, consideradas a partir de um ponto de vista empírico.

Um dos pontos a que dedica atenção é o fenômeno da “materialização” do direito e

suas consequências no processo de “juridificação”, que ganhou expressão desde a adoção do

modelo intervencionista do Estado Social.

3.3.1 Autopoiese do direito e enlace hipercíclico

A contribuição de Teubner à teoria sistêmica de Luhmann guarda estreita pertinência

ao tema aqui tratado, justamente porque o autor enfatiza as condições em que ocorrem as

comunicações entre sistema jurídico e ambiente, com especial atenção aos subsistemas da

economia e da política como parte do ambiente do sistema jurídico. Ao tratar essa questão,

Teubner (1989, p. 169-170) ressalta que a proposta luhmanniana de combinar fechamento

normativo e abertura cognitiva não contribui para a solução da questão relativa ao direito

como fator de regulação, visto que, nesse contexto, a autopoiese pressupõe que o direito só

interage com o ambiente a partir da realidade criada por ele de modo intrassistêmico, por

meio da autorreferência de seus elementos.

Neves (2006, p. 81) objeta, nesse ponto, que Luhmann não reduziu a reprodução

autopoiética à autorreferência de base (ou elementar), tendo apenas afirmado que essa é a

forma mínima de autopoiese, seguindo-se a ela a reflexão e a reflexidade, que dizem respeito

às estruturas do sistema jurídico.

81

Dans le cadre de la théorie systémique, cette procéduralisation signifie que les normes de la droit ne relèvent

plus exclusivement de L‟Etat, mais de voix multiples, representatives des sphères sociales en prèsence. La

procèdure rèflexive sera donc le lieu d‟un arbitrage entre les différents systèmes concernès par la fonction

normative : le système politique, qui définit des objectifs, le système juridique, qui énonce des normes et les

systèmes sociaux dont on recherche la démocratisation. Entre ces trois types de systèmes, qui représentent les

uns pour les autres des environnements, le droit réflexif crée des "couplages structurels" devant aboutir à leur

intégration décentralisée.

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83

Sob esse enfoque, a concepção mais abrangente de autopoiese pensada por Teubner

(1989, p. 36-60), definida como enlace hipercíclico entre os elementos, a estrutura, o

processo e a identidade do sistema jurídico, seria compatível com a proposta luhmanniana.

A reformulação da noção de autopoiese por meio do enlace hipercíclico em Teubner

pretende tornar mais flexível a ideia de autopoiese formulada por Luhmann, mitigando seu

alcance. Teubner (1989, p, 57) insurge-se contra o modo “radical” de autopoiese na

compreensão luhmanniana, regida pelo “tudo ou nada”: ou o direito reproduz a si próprio por

meio de seus elementos e mantém-se como subsistema social funcionalmente diferenciado, ou

não, hipótese em que ele seria incapaz de se autorreproduzir e, consequentemente, de se tornar

autônomo em relação ao meio. A partir dessa compreensão, o autor propõe que a

autorreferência e a autopoiese do direito são conceitos gradativos que se sucedem como

etapas pelas quais passa o sistema jurídico rumo à autonomia (TEUBNER, 1989, p. 57).

Assim, a autonomia do direito seria proveniente de sua crescente capacidade de constituir

seus elementos – ações, normas, processos e identidade – em ciclos autorreferenciais que

também digam respeito às suas estruturas sistêmicas.

Com efeito, Teubner (1996, p. 237) sustenta que os subsistemas sociais adquirem

autonomia na mesma medida em que conseguem constituir seus próprios componentes nos

ciclos autorreferenciais. Entretanto, somente atingem a autonomia autopoiética quando seus

componentes constituídos ciclicamente são entrelaçados entre si num ciclo conglobante, o

qual denomina de hiperciclo.

Essas relações circulares originam nova concepção de autonomia do sistema jurídico,

que, segundo Teubner (1989, p.56), é mais abrangente que a noção de autorreferência e

autopoiese. Ao assumir a existência de interdependências causais entre o sistema jurídico e o

social global, Teubner (1996, p.103)82

propõe uma espécie de redução no alcance da

autopoiese, projetada a partir da distinção entre três momentos intrínsecos ao processo de

aumento cumulativo das relações circulares que compõem o hiperciclo e que a tornam um

processo gradativo: autoprodução, auto-observação e a autoconservação.

Com efeito, para Teubner (1996, p.104), essas três características – que ocorrem

sucessivamente, conforme o grau de autonomia que o sistema jurídico observado tenha

82

Dans le contexte actuel, la différenciation entre divers typers de la « reférénce » est particulièrement

intéressante, car elle permet d´aborder le probléme de « l´autopoiése dans l´autopoiese » aussi bien que la

question de la « gradation de l´autopoiese » dans les systémes autopoiétiques. Le deux problématiques se laissent

éclaircir si l´on les traite à l interiérier d´un cadre conceptuel distinguant clairement trois mécanismes auto-

référentiels : l´auto-production, l´auto-observation, l´auto-conservation. Seule cette distincion conceptuelle claire

permet d´analyser le phénomène de l´autopoiese comme une combinaison spécifique de mécanismes auto-

référentiels de natures différentes

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alcançado – definem um sistema autopoiético. A autoprodução, como condição mínima para

a autopoiese, deve se referir a todos os componentes sistêmicos; a auto-observação, que pode

se referir ao ambiente e aos próprios componentes dos sistemas (elementos, estruturas,

processos e limites), tem por função específica estabelecer a conexão entre as operações

internas, controlando sua autoprodução; e, por fim, a autoconservação, que atua no âmbito da

manutenção do processo de produção das operações intrassistêmicas a partir do enlace entre

os diversos ciclos de produção dessas operações, ou seja, a partir do enlace hipercíclico de

todos os componentes sistêmicos que se constituem cíclica e recursivamente.

Desse modo, é na etapa da autoconservação (ou autorreprodução) da autopoiese que o

enlace hipercíclico se constitui: “pelo cruzamento do primeiro ciclo autoprodutor com um

segundo ciclo global, servindo para tornar possível a produção cíclica garantindo as suas

condições de produção (hiperciclo)"83

(TEUBNER, 1996, p.104). E, assim, continuamente, é

permitida a conservação e a reprodução do sistema.

Teubner (1996, p. 106) distingue em três as etapas em que o direito se torna autônomo

no curso de seu processo de emancipação dos subsistemas sociais. A primeira delas

caracteriza-se pelo surgimento e intensificação de anéis autorreferenciais relativos aos

componentes sistêmicos específicos (elementos, estruturas, processos, limites etc.); num

segundo momento, o processo de se tornar autônomo passa pela variabilidade dos casos, ao

que o autor chama de “plasticidade funcional e estrutural”;84

por último, o autor aponta a

capacidade de reconstituição da autopoiese, que ocorre pelo enlace hipercíclico dos

componentes do sistema. Ou seja: o hiperciclo ou o entrelaçamento cíclico reiterado das

unidades constituídas ciclicamente é, assim, característica essencial da autopoiese

(TEUBNER, 1996, p. 247).

Aplicada ao direito, a construção teórica do hiperciclo sugere que o processo de

autonomização do sistema jurídico em relação aos demais subsistemas dar-se-á em três

etapas. Na fase do “direito socialmente difuso”, os elementos, as estruturas, os processos e a

identidade do discurso jurídico são idênticos aos da comunicação social em geral ou, quando

muito, são definidos de modo heterônomo pela comunicação social, porquanto consistem,

respectivamente, na ação, nas normas sociais, nos conflitos e têm sua identidade baseada na

83

Cette fonction est remplie par le croisement du premier cycle auto-reproducteur avec un second cycle global,

servant à rendre possible la production cyclique en garantissant ses conditions de production (hypercycle)

(TEUBNER, 1996, p. 104). 84

Plasticité fonctionelle et estructurelle (TEUBNER, 1996, p.106).

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85

concepção de mundo predominante. Tratar-se-ia de uma sociedade em que não há

diferenciação sistêmica.

Na segunda etapa, haveria um “direito parcialmente autônomo”, que se abriria

quando o discurso jurídico começasse a definir a si próprio, ou seja, quando o discurso

jurídico fosse guiado pelos componentes do próprio sistema jurídico utilizados

operacionalmente. Nesta fase, os elementos são os atos jurídicos; as estruturas são as normas

jurídicas; o procedimento é jurídico; a identidade sistêmica baseia-se na teoria jurídica. Nesse

momento, já há diferenciação sistêmica, o que possibilita a autorreprodução do direito no

nível operativo.

Por fim, quando se chega ao nível mais elevado de autonomia do direito, pode-se falar

em “direito autopoiético”, em que os componentes do sistema jurídico, já autoconstituídos

circularmente, entrelaçam-se formando um hiperciclo (TEUBNER, 1996, p. 252).

Desse modo, a produção recíproca do ato e da norma, como dupla junção hipercíclica

dos elementos e das estruturas do sistema jurídico, é o que caracteriza o direito moderno, na

visão de Teubner. A positividade do direito assenta-se sobre uma relação circular entre a regra

e a decisão: o direito positivado pelo legislador só se torna válido pelo ato jurisdicional que o

concretiza; por outro lado, a decisão jurídica não pode ter outra base senão a lei. É necessário,

contudo, que o enlace abranja também outros componentes sistêmicos, como a teoria jurídica

e o procedimento jurídico. Apesar disso, a primazia permanece centrada na relação entre a

decisão (operação jurídica) e a norma jurídica, pois o procedimento e a teoria jurídica é que

irão controlar o modo como ocorre a autorreprodução do direito:

Raras vezes as autodescrições e autoconstituições dos componentes sistêmicos

conseguiram realizar os pressupostos necessários ao enlace hipercíclico, que pode dar início à produção efetiva de comunicações jurídicas pelas comunicações

jurídicas, por meio da rede de expectativas jurídicas e sob o controle da doutrina e

do procedimento (Tradução livre).85

É necessário destacar que Teubner não confunde autonomia com autarquia do direito,

haja vista que, para ele, o direito é dependente dos sistemas político e econômico do ponto de

vista causal. A autonomia do sistema jurídico passa pela circularidade na produção e

85

Ce n´est qu´une fois que les auto-descriptions et auto-constitutions des composantes systémiques ont realisé de

la sorte les présupposés nécessaires de l´enchainement hypercyclique, que peut commencer la production

effective de communications juridiques par des communications juridiques, à travers le réseau des attentes

juridiques et sous le controle de la doctrine et de la procédure. (TEUBNER, 1996, p.258)

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86

reprodução do próprio direito e por sua organização interna, as quais, nada obstante,

redimensionam as relações externas do direito.

Seguindo a perspectiva sistêmica de Luhmann, no lugar de uma lógica de causa-efeito,

Teubner (1989, p. 74) propõe o que chama de “lógica da perturbação”, que ocorre entre os

sistemas ou entre o sistema jurídico e os sistemas que lhe servem de ambiente, equivalendo-

se, assim, a dizer que os fatores do ambiente que envolve o direito devem ser descritos como

problema de influência externa sobre processos circulares internos.

No tópico seguinte, será analisado o instrumental teórico engendrado por Luhmann e,

secundariamente, por Teubner e Neves, capaz de auxiliar na compreensão do modo como se

desenvolvem as relações intersistêmicas na sociedade contemporânea.

3.4 As relações intersistêmicas na perspectiva jurídica

3.4.1 O acoplamento estrutural entre sistemas

A ideia de acoplamento estrutural aplicável às ciências sociais foi desenvolvida por

Luhmann a partir do conceito construído para a biologia por Maturana e Varela.

Como conceito, o acoplamento estrutural é um mecanismo que possibilita as

interpenetrações concentradas e duradouras entre sistemas sociais no nível de suas estruturas.

São exemplos disso a assessoria de especialistas no acoplamento entre política e ciência, a

propriedade e o contrato como acoplamento entre direito e economia e o acoplamento

estrutural entre o direito e a política que se dá por meio da constituição (vide 4.1 infra).

Nos próximos capítulos, o tema será novamente abordado por ocasião da análise da

constituição como aquisição evolutiva da sociedade e do orçamento público sob a perspectiva

sistêmica. Neste momento, é importante ter claro que o acoplamento estrutural corresponde ao

compartilhamento de uma mesma estrutura por dois sistemas sociais, que possibilita a

realização de trocas entre os sistemas, por meio de uma interpenetração permanente entre eles.

O acoplamento estrutural, portanto, diz respeito à relação entre o sistema e o ambiente que

está em seu entorno, onde estão os outros sistemas que, eventualmente, se relacionarão entre

si. Isso porque um sistema é opaco aos “olhos” do outro. O ambiente é um estado de coisas

desordenado, incompreensível a partir do código do sistema que o observa; por isso, o

acoplamento é um ponto fundamental na teoria sistêmica luhmanniana. Além disso, o

acoplamento entre as estruturas de dois sistemas é um fator redutor de complexidade, pois

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87

delimita o âmbito de interpenetração entre os sistemas e propicia o incremento da

complexidade interna ao sistema, uma vez que favorece o ingresso de fatores do ambiente no

sistema social (LUHMANN, 2004, p.382).

Esse ingresso de fatores extrassistêmicos é que viabiliza a abertura cognitiva do

sistema ao ambiente que integra seu entorno. Todavia, esses influxos e instigações recíprocas

são filtrados pelo código próprio do sistema que recebe as “informações” ou prestações vindas

do ambiente e as processa conforme sua lógica interna – ou racionalidade, como prefere

Teubner (2002, p.109).

Os acoplamentos estruturais, diferentemente dos acoplamentos operativos, são

permanentes, uma vez que a estrutura de um sistema é algo estável. Se o compartilhamento de

prestações se der no âmbito das operações do sistema, nesse caso, tratar-se-á de acoplamento

momentâneo, em nível meramente operativo (LUHMANN, 2004, p.381). É importante

salientar que, embora os sistemas realizem trocas de prestações, influências e/ou instigações,

não perdem sua autonomia em razão disso. O que ocorre é uma relação simultânea de

dependência e independência entre os sistemas que se acoplam estruturalmente. Isso se dá

porque a prestação fornecida por um sistema torna-se essencial à reprodução das operações do

outro sistema e vice-versa. Veja-se o exemplo do acoplamento estrutural entre o direito e a

economia que ocorre pela propriedade e pelo contrato: o sistema econômico percebe o

contrato e a propriedade como instrumentos para obtenção de lucros, orientando-se pelo

código ter/não ter; por outro lado, o sistema jurídico vale-se do contrato e da propriedade para

orientar critérios quanto à definição entre o lícito e o ilícito. A economia aufere do direito o

respaldo para realizar suas operações financeiras – pois em caso de inadimplência poderá

exigir a coercitividade do pagamento. O direito, por sua vez, pressupõe a velocidade das

trocas e da apropriação econômica de bens e valores para manter e inovar permanentemente

os institutos dos contratos e aqueles relativos à propriedade (NEVES, 2009, p.36).

Mas é a constituição exemplo mais significativo de acoplamento estrutural para os

objetivos deste trabalho, uma vez que ela é fruto do acoplamento estrutural entre o direito e a

política. Nas palavras de Luhmann (1996, [s.p].):

O sistema jurídico, graças a esse acoplamento, tolera um sistema político que tende

para o Estado regulador e que não deixa passar o que possa submeter as suas

próprias operações. Também o sistema político, graças a esse acoplamento, tolera

um sistema jurídico que dá curso continuamente a processos próprios, protegidos da

interferência política logo que a questão direito/não direito, lícito/ilícito, se

apresente.

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88

3.4.2 As Interferências intersistêmicas e o direito na colisão de discursos

Os fatores do ambiente como fonte de aprendizagem do sistema jurídico que deve se

submeter a seu filtro interno são problematizados por Teubner em razão das dificuldades

que o sistema jurídico enfrenta para se tornar autônomo na modernidade complexa.

Segundo Teubner (2002, p. 93), boa parte dessas dificuldades advém da crença

difundida por alguns autores como Richard Posner no sentido de que o direito não

sobreviveria como disciplina autônoma, uma vez que a “racionalidade econômica parece

representar a nova universalidade do direito”. Todavia, como sustenta o autor (TEUBNER,

2002, p. 94), a racionalidade econômica não é a única a pretender a primazia na

institucionalização da sociedade como um todo:

Ao lado da economia estão, acima de tudo, a política, a ciência e tecnologia, o setor

da saúde, a mídia, o direito e, possivelmente, também a moralidade de um mundo da

vida que desenvolveram individualmente suas próprias racionalidades centradas em

si mesmas. [...] De um lado, todos possuem racionalidades claramente parciais. De

outro são todos institucionalizados de fato em toda a sociedade e exigem aceitação

universal.

Sendo assim, se o postulado da relação custo-benefício constitui a racionalidade

econômica, só institucionalizado no âmbito dessas relações – nas transações econômicas –,

não se pode negar que o clamor por eficiência, que decorre dessa racionalidade, também deve

ser observado na aplicação da lei, por exemplo. Na racionalidade política, outra não é a

situação, uma vez que, embora a legitimação democrática só seja institucionalizada no âmbito

das relações políticas, o ideal da democracia perpassa toda a sociedade e, por óbvio, deve

orientar a realização do direito.

Conquanto a busca pela descoberta descomprometida da verdade intersubjetiva só seja

institucionalizada no âmbito do ensino e da pesquisa, os avanços desse sistema impulsionam

toda a sociedade e repercutem diretamente no direito ao demonstrar-lhe a necessidade de uma

abordagem científica de suas pretensões reguladoras.

Quanto aos critérios morais que se desenvolvem por meio da intersubjetividade, tem-

se que, se, num primeiro momento, eles se limitam ao âmbito da estima mútua – ou, como

querem alguns, na base do igual respeito e consideração –, a tendência que os move,

sobretudo na forma acadêmica de sistemas éticos, é no sentido de que reivindiquem para si

poder para regular todas as questões sociais, impondo-se, inclusive, na instância das questões

jurídicas.

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Portanto, Teubner entende que o direito deve exercer seu papel de filtragem dessas

racionalidades extrassistêmicas a fim de torná-las assimiláveis pelo discurso jurídico.

Somente essa postura do direito, que tem por fundamento sua capacidade autorreferencial, é

que pode possibilitar o confronto dessas racionalidades que lhe são extrínsecas, atendo-as, por

outro lado, aos limites do discurso jurídico.

É por meio da estratégia do reenvio ou reingresso que o direito é capaz de absorver

conceitos estrangeiros, orientados por outro código que não o lícito/ilícito regente da

racionalidade jurídica , sem, contudo, corromper-se ou, em outras palavras, sem perder sua

diferenciação funcional em relação a esses outros sistemas que insistem em “perturbar-lhe” no

ambiente envolvente. O exemplo fornecido por Teubner (2002, p. 112) ilustra bem o objetivo

de sua proposta:

No momento exato em que o direito reconstrói internamente os argumentos morais,

eles perdem sua relação com os critérios de universalidade e com o código moral.

Eles, agora, estão sujeitos aos mecanismos do tratamento igual/desigual impresso ao

programa do direito (normas, princípios, doutrinas) e, finalmente, ligados ao código

jurídico binário do lícito/ilícito. O mesmo sucede com a avaliação de custos e de

poder, argumentos políticos e estruturas científicas. Todos tornam-se estranhas

formas híbridas que, no entanto, agora estão sob a responsabilidade construtiva do

discurso jurídico.

Várias são as estratégias da teoria sistêmica para enfrentar a questão. Nada obstante,

Teubner (1989) prefere tratar as relações entre os sistemas como interferências que ocorrem

no nível de suas operações, valendo-se da noção de acoplamento operativo de Luhmann –

expressão que, aliás, era utilizada por este para designar as conexões temporárias entre

sistemas. Também se pode tratar a questão, ainda no plano operativo, no âmbito da colisão

entre discursos típicos de outros sistemas que se dão no âmbito do sistema jurídico. O âmbito

da colisão de discursos é interessante para as decisões do sistema jurídico, por exemplo, que

demandam a análise circunstancial de informações que não são processadas em seu interior.

Entretanto, como a interconexão não se dá no âmbito dos discursos e de modo momentâneo, a

noção de colisão de discursos não atende à compreensão das situações em que a interconexão

entre os sistemas se dá de modo estável. No caso do orçamento público, por exemplo, em que

a troca de experiências entre as diversas racionalidades ali envolvidas ocorre de modo estável,

a colisão de discursos não oferece o instrumental teórico adequado.

Por outro lado, o acoplamento estrutural, embora seja suficiente para a análise do

compartilhamento recíproco de prestações entre a política e o direito, não é suficiente para o

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exame do que ocorre no caso dos orçamentos públicos, uma vez que há mais de dois sistemas

entrelaçados e compartilhando, reciprocamente, suas experiências.

Daí que será pertinente avaliar o aparato teórico relativo à racionalidade transversal

porque se trata de um mecanismo que comporta o entrelaçamento entre mais de duas

racionalidades parciais distintas e, ao mesmo tempo, possibilita que a questão seja tratada no

nível das estruturas de cada sistema envolvido.

Pode-se dizer que as propostas de Teubner e de Neves convergem no sentido de

afastar a autopoiese como pressuposto para a aplicabilidade de parâmetros que norteiam as

comunicações entre os sistemas. Como se verá no próximo capítulo, não se adota neste

trabalho o direito como um sistema estritamente autopoiético, tendo em vista as condições

conjunturais e estruturais da realidade brasileira. Isso porque a autopoiese é uma variável

contingente na teoria de Luhmann, que não desconsidera sua base empírica.

Entretanto, pressupõe-se que a diferenciação funcional entre os sistemas, ainda que em

nível insuficiente para a autorreprodução do direito, pode ser progressivamente ampliada no

Brasil. Daí que a adequada análise do modo como poderão ocorrer as relações entre os

sistemas adquire especial relevância para que a tendência à desdiferenciação sistêmica seja

observada e contida pela preservação da relação de horizontalidade entre os diversos sistemas

sociais.

3.4.3 Racionalidade transversal

A noção de racionalidade transversal, proposta por Neves (2009), tem por objetivo

contribuir para a construção de alternativas teóricas que possibilitem uma melhor

compreensão do compartilhamento de experiências, racionalidades e prestações entre os

sistemas sociais.

Neves (2009, p. 38) formula a noção de “racionalidade transversal entre esferas

autônomas de comunicação” da sociedade, inspirando-se, em grande medida, nas pesquisas de

Wolfgang Welsch.86

A proposta é estruturada sobre bases tais que um sistema poderá oferecer ao outro sua

própria racionalidade parcial, como realidade ordenada, o que facilita a assimilação das

86

Filósofo alemão que, partindo de conceitos da geometria, dá o nome de lógica da transversalidade ou razão

transversal ao tipo de razão que não se organiza linearmente, tampouco segundo esquemas hierárquicos, mas de

modo transversal, como a lógica que viabiliza os hipertextos, a internet e os multimeios.

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informações vindas de outros sistemas pelo sistema receptor sem que se cogite do risco de

desdiferenciação sistêmica. Isso porque a racionalidade parcial oferecida por um sistema não

afetará o desenvolvimento da racionalidade própria do sistema receptor, uma vez que o

entrelaçamento entre as racionalidades parciais só ocorre quando o intercâmbio e o

aprendizado são recíprocos, ou seja, quando há interesse por parte de todos os sistemas

envolvidos.

Nesse caso, a racionalidade transversal importa “a partilha mútua de complexidade

preordenada pelos sistemas envolvidos e, portanto, compreensível para o sistema receptor

(interferência estável e concentrada ao nível das estruturas)” (NEVES, 2009, p.49 -50).

Os acoplamentos estruturais funcionam como “mecanismos de interpenetrações

concentradas e duradouras entre sistemas sociais” (NEVES, 2009, p. 37) por meio dos quais

os sistemas compartilham, de modo bilateral, suas prestações.

No caso da racionalidade transversal, o compartilhamento supera o nível das

prestações. As “pontes de transição” entre as operações realizadas num sistema e fatores de

seu ambiente – em que está o sistema interrelacionado – possibilitam a convivência de

diversas racionalidades parciais no ambiente intrassistêmico sem que isso prejudique a

unidade e a diferenciação funcional do sistema que “acolhe” a racionalidade parcial de outro

para com ela agregar complexidade às suas próprias operações e fazer face à

hipercomplexidade circundante.

Isso ocorre no nível dos entrelaçamentos que servem às racionalidades transversais,

que atuam como pontes entre diferentes aspectos, ou seja, entre racionalidades parciais

heterogêneas pertencentes a sistemas sociais parciais funcionalmente diferenciados (NEVES,

2009, p. 45), atuando no nível das estruturas.

A racionalidade transversal, assim, pressupõe o acomplamento estrutural e amplia seu

alcance com a possibilidade de que a própria “racionalidade processada” no interior de um

dos sistemas seja disponibilizada para o outro. Tal formulação teórica, embora não afaste o

risco de corrupção sistêmica e de desdiferenciação funcional do direito, pode auxiliar em

muito porque dotará de maior agilidade a assimilação de conceitos e experiências vindos de

racionalidades diversas que já se apresentam ordenadas para o sistema receptor.

A alternativa apresentada por Neves (2009) é relevante, inclusive, para que se permita

aos sistemas integrarem entre si, sem se descaracterizarem funcionalmente e, o que importa,

sem que o direito se projete para dentro de si mesmo, desconsiderando a realidade

multifacetada que o cerca.

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Nada obstante, o que mais interessa ao presente trabalho é o exame do orçamento

público como locus de entrelaçamento entre as racionalidades parciais da política, do direito e

da economia. A propósito disso, Neves (2009, p.50) menciona a possibilidade de se aplicar a

noção de racionalidade transversal ao orçamento público, como instituto envolvido

diretamente no direito, na economia e na política:

A respeito da racionalidade transversal, pode-se sugerir que ela implica, em certos

casos, o entrelaçamento de mais de dois sistemas. Se observarmos o regime fiscal,

por exemplo, poderemos verificar que, nele, há um entrelaçamento trilateral entre política, economia e direito. O tributo é um fato econômico, jurídico e político,

assim como o orçamento é um instituto envolvido diretamente na economia, no

direito e na política. A racionalidade transversal importa, então, um grau de

aprendizado e intercâmbio construtivo entre esses três sistemas.

Com efeito, no último capítulo a questão será retomada de modo mais enfático,

quando da análise dos orçamentos públicos propriamente ditos.

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93

4 CONSTITUIÇÃO E DIREITOS FUDAMENTAIS: UMA ABORDAGEM SOB A

PERSPECTIVA SISTÊMICO-DISCURSIVA

4.1 A constituição como aquisição evolutiva

A ideia de Constituição como aquisição evolutiva da sociedade ( LUHMANN, 1996b)

surge como uma forma de dois lados capaz de trazer à tona e explicar o paradoxo que envolve

a fundação do direito e da política. Numa retrospectiva histórica, a constituição, em sentido

moderno, aparece como mecanismo que ofereceu sustentação ao surgimento dos Estados

modernos desde o século XVIII.

A constitucionalização moderna manifestou-se como “uma reação à diferenciação

entre direito e política, ou dito com uma ênfase ainda maior, à total separação de ambos os

sistemas de funções e à consequente necessidade de uma religação entre eles” (LUHMANN,

1996b, p.3). Vale dizer, a evolução social conduziu à especificação dos modos de

comunicação utilizados para a solução dos diferentes problemas de uma sociedade. Em

decorrência disso, formaram-se grandes conjuntos que se utilizavam de tipos comunicacionais

assemelhados que, por outro lado, foram se distinguindo de outros grupos comunicacionais

que se valiam de outro modo de comunicação. Esses grandes conjuntos comunicacionais

transformaram-se, com o passar do tempo e da multiplicação das operações comunicativas

que ocorriam em seu interior, em subsistemas da sociedade, que se distinguiam entre si do

mesmo modo, ou seja, pelo tipo de comunicação reproduzida em seu interior, para que

pudessem solucionar problemas específicos da sociedade. Conquanto os subsistemas sociais

se distinguissem entre si pelas funções que lhe eram peculiares e, assim, tivessem

desenvolvido critérios próprios de seletividade, tornando-se cada vez mais autônomos em

relação aos demais sistemas que estavam no entorno, eles se apoiavam reciprocamente,

mantendo pontos de interconexão. Foi, então, que, pelo caminho sistêmico da diferenciação

funcional, direito e política tiveram suas estruturas acopladas na semântica moderna da

constituição.

Muito embora as origens da noção de constituição remontem a Aristóteles que a

concebia como a ordem da pólis (politéia) 87

, na transição para a sociedade moderna ela

87

“Constituição é a ordem (táxis) dos Estados em relação aos cargos governamentais (arkhé), como eles são de

distribuir-se, e à determinação do poder governamental supremo no Estado, como também do fim (télos) da

respectiva comunidade (koinonía)” (ARISTÓTELES, apud NEVES, 2007, p. 56). Neves explica, no entanto,

que, somente a partir do fim do século XVIII, o termo politéia passou a ser traduzido como “constituição”; até

então, utilizava-se a expressão inglesa “governement” (2007, p.57).

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94

passou a ser entendida como “carta de liberdade” ou “pacto de poder” e, no curso da evolução

da sociedade, abandonando-se esse caráter “modificador do poder” e “casuístico”, surge a

semântica da constituição universal, tanto no sentido da normatividade quanto no da função

“constituinte do poder” (NEVES, 2007, p.57). É a partir dessa concepção moderna de

constituição que o tema proposto será desenvolvido.

4.1.1 A semântica das constituições modernas

Segundo Luhmann (1996b, p.2), a nova constelação semântica88

da constituição surge

das transformações revolucionárias experimentadas no fim do século XVIII, mormente a

partir da Declaração de Independência das Treze Colônias da América, em 1776, que

culminou com a Constituição Americana de 1787. É a partir da necessidade de se constituir a

unidade – no caso dos Estados Unidos da América do Norte – como diferença – da Inglaterra

– que a constituição torna-se uma aquisição tipicamente moderna, capaz de gerar uma

“inovação de origem política no interior do próprio sistema jurídico”. A questão que o autor

pontua como inovadora nessa constituição é o fato de ela ter sido instrumento concebido para

fundar nova ordem jurídica interna nos Estados Unidos, que estavam em franco processo de

independência e necessitavam de autolegitimação para o fortalecimento de seu sistema

político, capaz de libertá-los da sanha regulamentadora do Parlamento inglês. Em certa

medida, a Revolução Americana foi paradoxal: tanto pretendia transformar o sentido da antiga

constitution inglesa quanto partia dessa mesma tradição para inovar o significado do conceito

de “constituição”, passando a tomá-la como “um texto organizado e escrito, conforme a

vontade do constituinte e que, como tal, pode se opor aos governantes que tenham agido

ilegitimamente, ou seja, de modo contrário à constituição” (Tradução livre).89

Surge, assim,

nova dimensão para a concepção de constituição, porquanto o uso semântico inovador – e, por

que não dizer, revolucionário – levado a efeito pelos americanos pressupõe a noção de poder

88

Conforme explica De Giorgi (1998, p. 83), os subsistemas sociais “produzem continuamente artefatos

semânticos, contextos descritivos, mediante os quais a unidade dos sistemas é representada” para impulsionar o

processo evolutivo da sociedade. É nesse sentido que a constituição aqui é apresentada sob o recorte de uma

invenção semântica da modernidade: embora a expressão “constituição” seja conhecida desde a antiguidade, foi

somente na modernidade que adquiriu o status, a descrição e a identidade semântica com qual se apresenta

atualmente. 89

“Un texto orgánico escrito, que el cuerpo constituyente soberano há querido, y que como tal puede ser de

hecho opuesto a los gobernantes que hayan actuado de manera ilegítima, es decir, contraria a la constitución”

(FIORAVANTI, 2003, p. 84-85).

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95

constituinte,90

cuja compreensão é inequivocamente incompatível com a tradição firmada na

Inglaterra, onde constitution relacionava-se com o equilíbrio do Governo.

Talvez por isso, o processo revolucionário americano tenha contribuído tão

expressivamente para a evolução da concepção de constituição como reação ao processo de

diferenciação entre direito e política e, simultaneamente, viabilizado a manutenção dessa

diferença, assegurando unidade a cada um desses sistemas. O sistema jurídico e o político se

autoconstituem como sistemas diferenciados funcionalmente, mantendo-se interdependentes e

interconectados – ou, conforme a terminologia luhmanniana, estruturalmente acoplados –

pelas disposições constitucionais.

Nada obstante, a Constituição da França de 1791, que sucedeu a Revolução Francesa,

também é referenciada como inovadora ao propor uma releitura da relação entre direito e

política como sistemas diferenciados, embora interdependentes. Se, antes da Modernidade, já

havia leis importantes, até mesmo dotadas de fundamentalidade para o funcionamento de uma

sociedade, somente com a constituição é que uma lei fundamental passou a servir de

referência para se aquilatar a conformidade ou desconformidade de todas as outras leis e atos

jurídicos em relação ao direito.91

Nas palavras de Juliana Neuenschwander Magalhães (2009,

p.288):

No século XVIII, a invenção das modernas constituições consistiu na convergência

de uma ideia com uma palavra que não era, tanto na tradição jurídica quanto na tradição do pensamento político, nova. E isso embora os significados numa e outra

tradição fossem não apenas diversos, mas também divergentes. O que refletia,

precisamente, a “indiferença” entre direito e política ao longo da evolução.

Até o advento da concepção moderna de constituição, a falta de diferenciação

funcional entre direito e política resultava que tanto esta quanto aquele não podiam ser

90

Relevante anotar, nesse ponto, que o então nascente significado de “poder constituinte” assume contornos diferentes dependendo do contexto histórico revolucionário em que se inserir. Segundo Maruizio Fioravanti

(2003, p. 90), na tradição fundada pela Constituição Americana, a noção de poder constituinte associa-se ao

fenômeno da rigidez constitucional. Na França, a Revolução vinculou o significado de “poder constituinte” à

noção de soberania. 91

Luhmann (1996b) atribui tal relevância à Declaração de Independência das Colônias porque, segundo ele, “Em

1789, a França recepciona o conceito inglês de constitution conjuntamente com todas as suas imprecisões e,

sobre essa matriz, limita-se simplesmente a discutir as dimensões da redistribuição sempre necessária dos pesos.

Na América, ao contrário, em contraposição à situação jurídica inglesa, acentuava-se a unidade do texto

constitucional redigido de forma escrita, o que requeria uma determinação conceitual que introduzisse uma

distinção entre a constitution e o outro direito, em clara discrepância com uso lingüístico inglês. [...] É de se

acrescentar, ainda, que a ocasião da revolução política conduz à pretensão de se limitar juridicamente as

possibilidades de ação de qualquer órgão do Estado, ou seja, à ruptura da onipotência do próprio Parlamento. O

que, por sua vez, produz efeitos posteriores e leva à conclusão de que a constituição deve ser supraordenada em

relação a todos os demais direitos.” Essa ideia de supremacia constuticional assume relevância central na

“invenção” da semântica constitucional americana e abre espaço para que a constituição se torne um canal para a

noção de autologia sistêmica, ou seja, para a criação de uma “estrutura que se autoinclui no próprio âmbito de

regulamentação”.

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96

observados como subsistemas sociais distintos, especializados em desempenhar diferentes

funções na sociedade. Isto é: as decisões jurídicas não eram dotadas de implicações políticas.

Sendo assim, o direito como instrumento – ou limite – dos atos do governo só pode ser

entendido como uma aquisição típica da sociedade moderna. A política, por sua vez, que se

valia de bases de sustentação alheias ao direito, tais como enunciados religiosos ou morais,

deixou-se democratizar por ele. Com efeito, no estágio da evolução social em que os

subsistemas jurídico e político se diferenciaram funcionalmente, a positividade do direito e a

democratização da política passaram a se sustentar mutuamente e oferecem a base do Estado

de Direito.92

Associando o processo de diferenciação entre direito e política às fases da evolução

social, como propõe Luhmann, pode-se dizer que, na sociedade estratificada (vide nota 39),

ambos se confundiam. Somente na sociedade complexa, surgida na Modernidade, é que houve

a diferenciação funcional entre esses subsistemas sociais. O sentido moderno de constituição

possibilitou a afirmação do direito e da política como subsistemas sociais distintos, embora

interconectados. Trata-se da característica fundamental que, a par de possibilitar o

reconhecimento da autofundação do direito e da política, abrange parte da estrutura de cada

sistema, mas não lhes obsta a autorreferência e a manutenção dos distintos códigos.

4.1.2 Direito, política e evolução social

De acordo com a proposta de Luhmann (vide 2.3 supra), a evolução de um sistema da

sociedade implica a diferenciação entre três funções que lhe são inerentes: variação, seleção e

estabilização. No caso do sistema jurídico, tais mecanismos podem ser assim identificados: a

variação corresponde à multiplicidade de expectativas admitidas como conflitantes; a seleção

surge como processo de decisão das expectativas admitidas – ou protegidas – pelo sistema; e a

estabilização ocorre pela regulamentação e programação condicional das expectativas

normativas válidas.

Não é demais relembrar que evolução aqui é tão-somente acréscimo de complexidade

decorrente da proliferação do número de alternativas de escolha e possibilidades de ação, que

pode ser interno ou externo ao subsistema social. A adaptação do sistema jurídico às novas

condições de complexidade implica limitações de expectativas sociais que se dão pela

92

Nas palavras de Luhmann (2004, p.364): “Overall, the positivization of law and the democratization of politics

support each other reciprocally and they have left a significant mark on both the political system and the legal

system of today”.

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97

codificação jurídica entre lícito e ilícito. Isso só se tornou possível por meio da passagem do

direito das culturas avançadas pré-modernas para a Modernidade, o que, para o sistema

jurídico, significou dotar-lhe de positividade.

Na etapa anterior de evolução da sociedade, já se vislumbrava a necessidade de um

direito que não fosse imutável. Porém, apenas com o advento da Modernidade, seguido das

constituições acima referenciadas, tornou-se possível introduzir o procedimento de produção

normativa como critério de validade das normas jurídicas. O direito, então, passou a

institucionalizar seu próprio processo de mudança. É exatamente nesse ponto que reside a

primeira das interconexões entre direito e política, em razão da qual se tornou possível

identificar um processo de autofundação de ambos e a consequente manutenção da

diferenciação entre eles, muito embora sejam interdependentes porque ambos se valem, para

se autorreproduzir, da legislação e da força coercitiva.

Ao retomar a questão da codificação no sistema jurídico, deve-se ter em mente que o

código binário próprio do direito é manejado de dois modos: separação e recombinação. O

direito é influenciado pelas transformações que ocorrem no sistema social global, haja vista

sua capacidade de aprendizagem, por meio da abertura cognitiva. Então, as operações

ocorridas no interior do sistema jurídico, notadamente as decisórias, separam conteúdos,

segundo sua conformidade, ou não, ao direito. De acordo com as eventuais mudanças

relevantes para o direito, tais operações recombinam a codificação atribuída em uma ou outra

situação. É por isso que é possível a modificação do direito por ele mesmo, haja vista que a

variação das estruturas jurídicas e da codificação atribuída a uma conduta, por exemplo, é

inevitável em face das variações pelas quais passa a sociedade.

Do mesmo modo, a evolução social também acarretou muitas mudanças no interior do

sistema político. Embora lance um olhar crítico sobre o Estado de Bem-Estar, assim como faz

Habermas, Luhmann atribui à inclusão de temas e interesses no interior do sistema político,

ocorrida sob o paradigma do Estado Social, o mérito de ter propiciado o desenvolvimento da

dinâmica que resultou na tridimensionalidade do sistema público, que, por sua vez, passou a

orientar as comunicações ocorridas em seu interior por uma lógica circular e não mais

assimétrica (LUHMANN, 2007, p.64-65). Esse ponto da “teoria política” de Luhmann

mostra-se relevante para o tema aqui discutido e, portanto, demanda maiores explicações.

Como se sabe, na evolução da sociedade, ao se passar de uma sociedade estratificada

para a sociedade moderna, o direito diferenciou-se da política e, durante o processo de

especialização das operações típicas do sistema político, também houve modificações quanto

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à dinâmica interna desse sistema. Se no início do processo de diferenciação funcional interno

ao sistema político pressupunha-se um sistema bidimensional, organizado pelo código

superior/inferior, típico das sociedades estratificadas ou hierarquizadas, na sociedade

moderna, com o incremento da diferenciação funcional, tornou-se possível distinguirem-se

três esferas distintas no interior do sistema político: a política propriamente dita, a

administração e o público (LUHMANN, 2007, p. 62-63). Interessante notar, nessa leitura, que

a política desvincula-se do Estado e das instituições legislativas ou executivas que,

sustentadas em mandatos ou pontos de vista políticos, criam decisões vinculantes, às quais o

autor designa de administração.

Essa tridimensionalidade do sistema político – política, administração e público – faz

com que as operações internas desse sistema abandonem a forma hierarquizada, que distingue

comando e obediência, e passem a ocorrer de modo circular e autorreferencial. Assim é que a

opinião pública influencia a política por meio de eleições, por exemplo, e a política impõe

limites e prioridades às escolhas da administração. Esta, por sua vez, vincula-se por suas

próprias decisões,93

perante si mesma e perante o público: a reação dos cidadãos às decisões,

por meio das eleições, ou outras formas de manifestação, não raro, podem desencadear o

reinício de todo o ciclo de decisões políticas (LUHMANN, 2007, p.64).

Na complexidade moderna, o sistema político trabalha com número muito maior de

destinatários – basta pensar na generalização dos direitos políticos –, o que demanda sejam

dilatados os critérios de seletividade, tornados muito mais abrangentes que aqueles utilizados

pelo sistema jurídico. É na observação dessa diferença que os dois sistemas se interconectam:

de um lado, a seletividade política das premissas que sustentarão as decisões jurídicas – que

se dá predominantemente pela produção legiferante – e, de outro, a exigência de que o sistema

político atenda ao primado da licitude jurídica, condição para que as decisões políticas sejam

dotadas de coercibilidade – prestação específica do sistema jurídico.

Neves (2008a, p.89) explica que “o Estado de Direito pode ser definido, em princípio,

como relevância da distinção lícito/ilícito para o sistema político”. Isso porque, “ao lado da

distinção primária „poder/não poder‟, o esquema binário „lícito/ilícito‟ passa a desempenhar,

na perspectiva do observador do sistema político, o papel do segundo código de poder”. Nessa

mesma direção, Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 301) pontua que, no âmbito do

93

Esse ponto é de fundamental interesse para um dos objetivos deste trabalho: o de agregar subsídios à

compreensão de que, no Estado Democrático de Direito, os orçamentos são escolhas políticas dotadas de

circularidade e autorreferencialidade, capazes de vincular as decisões futuras dos administradores quanto às

políticas públicas necessárias à sua fiel execução, ainda que tal execução seja submetida a fatores advindos de

outros subsistemas sociais, como a economia, por exemplo.

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99

Estado de Direito, há uma recíproca vinculação entre direito e política fundada pelo

acoplamento estrutural entre os dois sistemas, ou seja, pela constituição.

A fórmula moderna da constituição, portanto, surgiu da crescente diferenciação entre a

função exercida pela política e a desempenhada pelo direito, na mesma medida em que houve

o fortalecimento de códigos binários específicos, que passaram a nortear as operações que se

realizavam no interior de cada um desses sistemas sociais. À política coube produzir decisões

coletivamente vinculantes, obtidas por meio da incidência de seu código próprio: poder/não

poder – no âmbito específico da administração, o código seria governo/oposição ou

maioria/minoria, conforme o caso.

A partir dessa concepção funcional do sistema político, tanto seu código binário

quanto o aparato formal demandado pela exigência democrática – garantia de preservação das

minorias, alternância entre governo e oposição, autolimitação do poder, periodicidade das

eleições, entre outras – atuam de modo a aumentar as possibilidades de escolha, o que, em

última análise, possibilita a manutenção da complexidade.94

É por isso que se diz que o

sistema político trabalha em prol da inclusão, em razão da admissão de variados pontos de

vista políticos distintos sobre uma mesma questão, até que se decida, selecionando as

propostas acolhidas; contudo, sabe-se que toda seleção implica, de algum modo, exclusão.95

Assim, para desempenhar sua função de produzir decisões coletivamente vinculantes,

a política vale-se de programas orientados para finalidades específicas e que partem da

tridimensionalidade de sua conformação. Trata-se, portanto, de programas finalísticos ou

teleológicos que levam em consideração o aspecto programante das decisões que serão

proferidas, via de regra, voltadas para o futuro. A implementação dessas decisões, no entanto,

cabe ao aparato estatal ou, na terminologia de Luhmann (2007, p. 63), à administração.

94

De Giorgi (1998, p. 41-45) associa a característica central da democracia à manutenção de um nível elevado de

complexidade. Para ele, o sistema político democrático é submetido à constante tensão entre a manutenção da

alta complexidade do ambiente e a produção contínua de novas possibilidades de decisões, porquanto cabe ao

sistema político oferecer condições para que os pressupostos de incremento da complexidade sejam efetivados e,

ao mesmo tempo, para que ele mantenha sob seu controle seletivo a tematização política das pretensões do

ambiente. A partir dessa compreensão, nas condições estruturais da sociedade contemporânea, a democracia

permanece possível não mais como decorrência dos princípios idealizados pelo Iluminismo, mas pela busca dos

pressupostos democráticos concretos que, segundo De Giorgi, são, basicamente, dois: o maior nível de

positivação do sistema jurídico possível e “a universalização dos meios de comunicação de massa, que

possibilita o reflexo da sociedade através da opinião pública” (1998, p.42). 95

Vale registrar a posição de De Giorgi sobre a inclusão universal de todos na política. Ele alerta para o risco de

que o tratamento exclusivo das diferenças por meio da política implique uma prática de inclusão que produz

exclusão e amplia diferenças. Em suas palavras: “O risco da democracia moderna decorre da possibilidade de

produzir a ampliação das diferenças – e, consequentemente, de produzir novas desigualdades – por meio da

compensação do tratamento de outras desigualdades. Em outros termos: a inclusão universalizante produz,

assim, as formas especificamente modernas de exclusão” (1998, p. 46).

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100

A concepção moderna de constituição, todavia, avoca para si a tarefa de tornar ambos

os paradoxos produtivos ou, melhor dizendo, visa afastar a força paralisante da observação

dos paradoxos fundantes do direito e da política.96

Isso se torna possível porque a moderna

semântica da constituição rompe com o regresso ao infinito da fundação, viabilizando a

prorrogação do paradoxo do direito e da política ao transferir o peso de um sistema para o

outro. Vale dizer: enquanto a atribuição da soberania ao povo repousa sua legitimidade no

vínculo jurídico-constitucional, a legitimação da constituição como texto jurídico é sustentada

pelo ato político do poder constituinte e pela legislação (LUHMANN, 1996b).

Também para Habermas (2003, p.170 e ss) a solução do paradoxo está na relação

interna entre direito e política: o direito se faz impor pela força do aparelho estatal – que

atribui força vinculante às suas decisões; a política, de outro lado, obtém forma jurídica por

intermédio do direito. Daí a explicação para a faticidade do direito. A validade, entretanto,

advém de outra faceta de sua relação com a política que é o processo de produção das normas

e pode ser expressa na tensão entre positividade e legitimidade do direito.

De modo sintético, Habermas (2003, p.171) afirma que o Estado é necessário como

“poder de organização, de sanção e de execução”, uma vez que os direitos devem ser

implementados, a sociedade demanda a atuação da jurisdição organizada e de “uma força

capaz de estabelecer a identidade e porque a formação da vontade política cria programas que

tem que ser implementados”.

Assim, a constituição é, a um só tempo, fruto da diferenciação funcional entre direito

e política e reação a essa tendência de se separarem esses subsistemas da sociedade. Luhmann

(2005, p.548) sustenta que a constituição moderna é uma forma de acoplamento estrutural

entre direito e política, pois permite o aperfeiçoamento da diferenciação funcional, sem

prejuízo da interpenetração constante e permanente entre os dois sistemas, que oscila entre a

independência e a dependência recíprocas e é concretizada por meio de prestações que um

sistema oferece ao outro. O acoplamento estrutural, por meio da constituição, entre direito e

política, aquisição típica da modernidade, resulta em trocas entre os respectivos sistemas.

Cada um desses subsistemas sociais destina-se a uma função específica; porém, um oferece ao

outro prestações que permitem a manutenção da diferenciação entre ambos. O

compartilhamento da mesma estrutura, contudo, impõe a interdependência.

96

Como esclarece Teubner (1989, p. 10-26), a observação das contradições e paradoxos não deve conduzir a

uma desconstrução do direito, mas, em vez disso, deve fomentar a reconstrução dos seus fundamentos. Isto é, se

não se pode eliminar o paradoxo imanente ao direito, deve ser possível, ao menos, que se reconstrua a relação

entre autorreferência, paradoxo, indeterminação e evolução do direito de modo a impedir o bloqueio ou

interrupção das comunicações jurídicas.

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101

A partir dessa noção de constituição como compartilhamento de uma mesma estrutura

pelo direito e pela política, a questão pode ser vista sob dois ângulos distintos. Se observada

pelo ponto de vista interno do sistema jurídico, o ganho é creditado ao inédito nível de

positividade de uma “lei” a que todo direito, legislação e administração farão remissão. É por

isso que, ao agregar sentido político ao jurídico, a constituição passou a ocupar lugar de

reação do direito à sua própria autonomia, de modo a afastar qualquer tipo de fundamentação

que lhe seja externa. Pela observação que parte do sistema político, a constituição exerceu

papel decisivo para sua diferenciação funcional, uma vez que lançou as bases para a

semântica moderna de soberania. Desde então, a noção de soberania se assenta na pretensão

de o Estado exercer, com exclusividade, o poder político num determinado território.

A perspectiva inovadora, sob esse aspecto, consiste na legitimação jurídica oferecida

ao exercício do poder político – que, ao mesmo tempo, limitava o exercício desse poder

conforme as exigências do Estado de Direito. De outro lado, ao viabilizar a comunicação

entre direito e política, a constituição passou a disponibilizar, para o direito, a coercibilidade

da esfera política.97

A invenção98

da constituição e sua leitura como acoplamento estrutural entre direito e

política possibilitaram que a fundamentação desses subsistemas sociais se tornasse intrínseca,

e não mais extrassistêmica. Em outros termos, a manutenção da diferenciação funcional entre

direito e política possibilitada pela constituição viabilizou o abandono de fundamentações

extrassistêmicas para a própria existência legítima desses sistemas, como a moral, o divino, o

natural ou mesmo a razão humana. A partir dessa construção sistêmica é que o Estado de

Direito funda-se, simultaneamente, como organização jurídica e política, resultante do

acoplamento estrutural viabilizado pela constituição.

Embora tenha contribuído para a solução do impasse que acompanha o vínculo entre o

direito e a política, não se pode negar que a constituição, ao positivar direitos e atribuir-lhes

condição de fundamentalidade jurídica, abriu um novo flanco ao projetar os direitos

fundamentais para o futuro.

Ao tratar da questão, Luhmann (1996b) explica que o paradoxo da fundação dos

sistemas político e jurídico, estabelecido em termos de diferenciação funcional, é deslocado

97

A constituição é, mais que um vínculo, um fator de liberdade: o valor político das operações jurídicas e o valor

jurídico das operações políticas concentram-se, apenas, na referência à constituição, que estabelece os critérios

de organização política do poder e os critérios de geração do direito (CORSI, 1997).

98 A expressão “invenção”, na perspectiva sistêmica luhmanniana, não exclui a noção da inovação como

construção social, pelo contrário: a invenção é a descoberta de um mecanismo que se ajusta às necessidades de

uma sociedade em determinado momento de sua evolução.

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temporalmente por meio da semântica constitucional moderna. Isso porque, se era necessário

projetar as aquisições revolucionárias99

para o futuro, era imprescindível, ao mesmo tempo,

evitar o retorno a um passado que deveria servir apenas como aprendizado histórico. A

constituição, sob esse ponto de vista, contribuiu para a solução desse dilema: ela manteve-se

aberta ao passado e ao futuro na construção do presente. Conforme expressa Luhmann

(1996b, p.23):

A abertura ao passado significa que é levado em conta qualquer argumento histórico

mediante o qual seja possível afirmar direitos ou provar que determinada regra

jurídica vale desde tempos imemoriais. A abertura para o futuro significa, ao

contrário, que o direito prevê a sua própria modificabilidade, limitando-a

juridicamente, sobretudo mediante disposições procedimentais, mas também

mediante a abertura da legislação à influência política.

É por isso que a ideia de direitos humanos, assim como a noção de igualdade,

democracia e liberdade, tornou-se essencial para esse deslocamento temporal e para a

posterior positivação da noção de direitos humanos pela semântica constitucional moderna.100

Assim é que a constituição, ao positivar os direitos humanos e introduzi-los no sistema

jurídico, atua como substituto funcional da fundamentação que antes era oferecida pelo direito

natural; para o sistema político, a constituição substitui o poder absoluto do monarca pelo

reconhecimento do direito dos cidadãos como fator que limita o exercício do poder. Essa

dupla perspectiva entre criação de liberdade e limitação do poder político – ou limitação da

liberdade do soberano – é que orientou a distinção entre direitos humanos e direitos

fundamentais (LUHMANN, 1996b). Nesse contexto, a existência das duas expressões estaria

a sugerir que os “direitos humanos” encontram sua origem na própria natureza da existência

humana – daí porque as declarações de direitos do século XVIII apenas se referiam a direitos

que lhes eram pré-existentes, tidos quase como características dos seres humanos, expressas

pelo verbo ser: os homens são livres, são iguais, são proprietários. Já os “direitos

fundamentais”, diferentemente, expressam-se pela semântica utilizada para aqueles direitos de

liberdade (limitadores ou criadores de espaços de liberdade) positivados numa determinada

ordem jurídico-política concreta (NEUNSCHWANDER MAGALHÃES, texto ainda não

publicado).

99

Explica Juliana Neuenschwander Magalhães (2009, p. 296) que: “O problema das revoluções, entre

constitucionalismo e soberania popular, entre direitos fundamentais e a originalidade dos direitos humanos é,

portanto, um problema ligado ao tempo: como pode a sociedade fixar a revolução, isto é, criar vínculos com o

futuro sem, com isso, negar o pressuposto da própria revolução, qual seja, a abertura em relação ao futuro?” 100

“Os direitos humanos, antes pano de fundo do contrato social, transformaram-se num texto de direito positivo

que, por sua vez, encontrou seu fundamento na supralegalidade constitucional” (NEUENSCHWANDER

MAGALHÃES, 2009, p. 297-298).

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4.2 A gênese dos direitos fundamentais: entre o Estado Liberal e o Estado Social

São inúmeras as teorias formuladas para classificar e atribuir conteúdo aos direitos

humanos; a despeito disso, o recorte metodológico aqui escolhido terá em vista as propostas

que se relacionem diretamente com a perspectiva das teorias sistêmico-pragmáticas, na

vertente de Luhmann, Habermas e, eventualmente, no que for pertinente, de Teubner.

Em que pesem as controvérsias em torno das diferentes terminologias, acolhe-se a

sugestão apresentada por Neves (2009, p.252), entre outros autores, segundo a qual tanto os

direitos humanos quanto os direitos fundamentais dizem respeito à inclusão da pessoa e à

diferenciação da sociedade, de tal sorte que a diferença se estabelece quando se observa o

espectro da pretensão de validade: “Os direitos fundamentais valem dentro de uma ordem

constitucional estatalmente determinada. Os direitos humanos pretendem valer para o sistema

jurídico mundial de níveis múltiplos, ou seja, para qualquer ordem jurídica existente na

sociedade mundial”.101

Com efeito, a exposição que se segue pretende partir da noção de

direitos humanos até chegar à especificidade dos direitos fundamentais sociais, na perspectiva

do Estado Democrático de Direito.

De início, convém anotar que a noção embrionária de garantias fundamentais do

indivíduo humano, cujo significado foi assimilado pela semântica dos direitos humanos na

Idade Moderna, já se fazia presente na Antiguidade Clássica. Data dessa época a ideia de

humanidade – humanitas. Entretanto, ela serve à diferenciação entre o cidadão (grego e

romano) dos estrangeiros, atribuindo sentido à diferença entre gregos/bárbaros e, em

momento posterior, entre gregos e romanos/bárbaros.102

A evolução dessa concepção, apesar

de lenta, fez com que se ampliasse o alcance da noção de humanidade: ora para permitir

também às mulheres um tratamento “humano”, ora “para radicalizar na concepção de que

101

Entendimento assemelhado, porém, partindo da perspectiva histórica, Celso Lafer, no texto “A reconstrução

dos direitos humanos” também assinala a dissensão terminológica entre direitos fundamentais e direitos

humanos. Os direitos fundamentais estão diretamente relacionados à concepção de Estado-Nação, porquanto

dizem respeito a uma jurisdição nacional que, por sua vez, está vinculada a uma determinada constituição. Os

direitos humanos, diversamente, têm pretensão de validade em nível internacional e funcionam como

mecanismos de defesa de certas garantias do indivíduo independentemente dos limites territoriais de uma dada

ordem jurídica. 102

Conforme explica Juliana Neuenschwander Magalhães (2000, p.30), a unidade da diferença entre gregos e

bárbaros foi expressa pelo termo humanitas, foi uma criação romana, pois traduzia um aspecto qualitativo: o que

se via de positivo, de valioso, em alguns homens da polis e que os atribuía dignidade e condição de membro

daquela comunidade (civitas). “Por outro lado, Cícero teve o mérito de ter chamado atenção, através de sua

noção de „humanidade‟, para a força criadora dos homens, projetando a humanidade destes como produto de sua

formação ética e intelectual. (...) A qualidade da humanidade é atributo dos homens de alta cultura, ou seja, da

nobreza. Resta evidente que, na República romana, o termo humanitas foi utilizado com uma função

estratificatória. Essa idéia de humanidade, antes vista como patrimônio exclusivo de apenas um grupo reduzido

de homens de alta cultura, passou progressivamente a estender-se a outros âmbitos.”

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104

alguns homens mereciam serem expulsos da ordem e, portanto, ser tratados como não

humanos”. A leitura jurídica dessa compreensão fez com que a identificação ou a negação da

humanidade em um ou outro indivíduo facultasse a clementia ou justificasse a crudelitas

(NEUENSCHWANDER MAGALHÃES, 2000, p. 33). Poder-se-ia, aqui, exemplificar a

clementia como embrião do direito humano à cidadania, com a história bíblica narrada nos

Atos dos Apóstolos, em que Paulo de Tarso, ao ser apresentado para julgamento perante o

Governador da Síria, invocou sua condição de cidadão romano para apelar ao Tribunal de

César, no que foi prontamente atendido pela autoridade romana local.

Entretanto, somente sob a influência do estoicismo e, mais tarde, do neoplatonismo,

que a concepção de direitos vinculados à condição humana, numa perspectiva mais

abrangente, começou a ganhar corpo. O pensamento cristão, já no período do Império, ao

atribuir caráter ético ao senso de humanidade, lançou as bases para a construção do que

atualmente se entende por dignidade humana, cuja repercussão no campo jurídico pode ser

expressa na semântica dos direitos humanos.

Assim, pode-se dizer que a tradição dos direitos humanos, ainda na Antiguidade

Clássica, deita raízes na visão estoicista, que pretendeu universalizar a condição humana e os

direitos daí decorrentes, influenciando em grande medida o direito romano imperial.103

Posteriormente, novas contribuições foram agregadas a essa tradição, notadamente, pela

Escola de Salamanca,104

com Vitória, Las Casas e Suarez, quando se buscou construir uma

referência humanística ao “direito das gentes” o que fez emergir a noção, ainda tímida, do que

viria a se tornar um plano de garantia dos direitos humanos no nível internacional. Em igual

medida, encontra-se a Escola do direito Natural,105

protagonizada por Hugo Grotius e

103

Segundo Moreira Alves (2007, p.111-112): “Desde os fins da República, a tendência de Roma é no sentido de

estender paulatinamente a cidadania romana a todos os súditos do Império. Assim, em 90 a.C, a lex Iulia a concedeu ao habitantes do Latium; um ano depois, a lex Plautia Papiria a atribui aos aliados de Roma; e, em 49

a.C, a lex Rocia faz o mesmo com relação aos habitantes da Gália transpadana. Em 212 d.C, Caracalla, na

célebre Constitutio Antoniniana concedeu a cidadania a quase todos os habitantes do Império. As exceções que

subsistiram desaparecem com Justiniano.” Essa trajetória já reflete uma visão de cidadania em processo de

desvinculação da concepção restrita própria do direito romano arcaico, que atrelava a condição de cidadão ao

indivíduo livre da polis e da civilitas. 104

Também conhecida como neo-escolástica ou escolástica espanhola, a Escola de Salamanca teve como

principal expoente – e provável fundador – o teólogo dominicano Francisco de Vitória (1480-1546) e, sob sua

influência, outros filósofos e teólogos aderiram a essa linha de pensamento, dentre os quais se destacavam o

dominicano Bartolomé Las Casas e os jesuítas Luís de Molina (1535-1600) e Francisco Suarez (1548-1617). Os

integrantes dessa vertente política e jurídica, de fundo teológico, sustentavam uma postura humanitária em

relação aos povos indígenas. Esses autores ganharam notoriedade nos séculos seguintes, principalmente Vitória e

Suarez, como pensadores precursores do direito Internacional. Pode-se dizer que a escola de Salamanca passou a

compor um dos pólos de um debate filosófico, teológico, jurídico e político com significativa relevância no

pensamento europeu à época e, de um modo geral, é considerada a precursora do jusnaturalismo moderno. 105

Considera-se que a escola do direito natural teria sido inaugurada com a obra De iure belli ac pacis, de Hugo

Grócio (1588-1625), publicada no ano de sua morte. Entre os pensadores que mais se destacaram sob a insígnia

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105

Pufendorf, que adotaram a razão como fundamento para a defesa das “prerrogativas”

inerentes à natureza humana.

Antes de o ideário iluminista – Hobbes, Locke e, depois, Rousseau, Montesquieu e

Kant – manifestar-se nas primeiras constituições modernas, antecedentes da declaração de

direitos podem ser constatados, sobretudo na trajetória do povo inglês em reação ao

absolutismo. O sentido que a modernidade atribui aos direitos humanos contém aquisições

dessas experiências embrionárias de positivação: a Magna Carta de 1215; a Petição dos

direitos de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689.

Não se pode desprezar, por outro lado, que os conteúdos dos direitos são construídos

em dados contextos históricos, em que predominam premissas filosóficas, científicas e sociais

típicas. Na linguagem luhmanniana, os fatores do ambiente, no movimento próprio da

abertura cognitiva do sistema jurídico, tornam jurídica esta ou aquela expectativa normativa: a

seletividade dessas expectativas refere-se ao momento histórico de sua produção na

sociedade.

É também por isso que a ideia de evolução social em Luhmann não é incompatível

com a compreensão de que há paradigmas a demarcar o campo do conhecimento a partir do

compartilhamento de premissas vicejantes e, no que se refere ao direito e à sociedade, em

muito auxiliam a compreensão do processo evolucionário dos direitos humanos. Na

compreensão de Habermas (2003, p.131), o paradigma de estudo serve como pano de fundo

que indica os pontos de partida científicos e influencia a tomada de posição.

Ressalve-se, contudo, que o processo histórico – que propiciou a sucessão de modelos

distintos de organização do Estado, ao que se vinculam tais paradigmas, ou, na linguagem

luhmanniana, que possibilitou que a evolução social se desse como se deu – não corresponde

à realização da vontade clarividente dos seus “sujeitos”, como ainda insiste boa parte dos

teóricos que adota uma postura teleológica diante das transformações a que a sociedade se

submeteu ao longo da história.

de jusnaturalistas, ainda que orientados por linhas de pensamento diversas e, por vezes, opostas, destacam-se

Pufendorf, Hobbes, Locke, Rousseau, Leibniz, Kant, Thomasius e Wolff. Sem se olvidar das inúmeras

divergências existentes entre esses teóricos, mas visando a sintetizar as ideias que compõem essa vertente de

pensamento, segundo Bobbio (1979, p. 17), a pretensão jusnaturalista refere-se “à construção de uma ética

racional, separada da teologia e capaz por si mesma, precisamente porque fundada finalmente numa análise e

numa crítica racional dos fundamentos, de garantir – bem mais do que a teologia, envolvida em contrastes de

opiniões insolúveis – a universalidade dos princípios da conduta humana.” Desse modo, os jusnaturalistas ou os

adeptos da Escola do direito Natural unem-se em torno da proposta de construção de uma verdadeira ciência da

moral, apartada da racionalidade teológica o que, para o modelo até então vigente, representou significativo

avanço para a semântica dos direitos fundamentais.

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106

Antes, então, de retornar às questões relativas aos direitos fundamentais e, partindo-se

das premissas gizadas nos parágrafos supra, melhor que se compreendam, em linhas gerais,

os marcos paradigmáticos dos modelos de Estado que se sucederam desde a instauração da

modernidade, uma vez que em cada paradigma os sistemas político, jurídico e econômico

apresentaram uma conformação distinta. Essa circunstância assume, assim, considerável

relevância para o tratamento dos direitos fundamentais, cuja compreensão levará em conta

alguns aspectos do direito internacional e, em seguida, as dimensões ditas geracionais,

propostas inicialmente por Vlasak. A partir daí, será apresentada uma perspectiva que permita

compreender de modo complementar as propostas sistêmica e discursiva no que diz respeito à

noção de direitos fundamentais na contemporaneidade.

Conforme se pode depreender do que já foi dito sobre a semântica moderna da

constituição, ao paradigma do Estado Liberal corresponderam os direitos burgueses clássicos,

advindos do processo revolucionário que deu ensejo ao surgimento das constituições

americana e francesa. Em sintonia com o ideário iluminista, concebia-se a sociedade civil

emergente – a sociedade estruturada no contrato de direito privado –, como o estado de

natureza reprimido pelas instituições do Antigo Regime, no caso da França, ou pela

dominação inglesa, em se tratando da Revolução Americana.

Entretanto, retomando a crítica ao modo teleológico de se perceber o processo

histórico, há que se rejeitar a ideia de que o curso da história seja passível de ordenação

político-social, pautada intencionalidade estrita de seus “criadores”. Na esteira dessa

compreensão, constata-se que, embora os ideais revolucionários franceses tenham sido

vitoriosos, o estado da natureza “integrado por homens livres, fraternos e iguais” nunca se

estabeleceu. A perspectiva de inspiração iluminista, que via no Estado um mal necessário,

tornou-se apenas parte de uma realidade maior que se consolidou, a despeito das intenções

revolucionárias. Aliás, se assim não fosse, estar-se-ia a usufruir do paraíso criado pelos

burgueses vitoriosos, detentores da „”verdade”, e não discorrendo sobre a temática dos

direitos fundamentais.

Seguindo no elenco dos paradigmas, o Estado Social, a que Luhmann denomina

Estado de bem-estar, surgiu das transformações que ocorreram na relação entre o Estado

(liberal) e a sociedade durante a primeira metade do século XX. Essa transformação deveu-se

à necessidade de se transferir progressivamente para o Estado, sob a pressão de uma demanda

social cada vez mais contundente, o dever de resolver o conjunto de problemas que o ideário

político liberal-burguês não conseguiu solucionar.

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107

O Estado intervencionista ou Estado providência, como também é chamado, voltou-se

num primeiro momento às questões de origem econômica, chamando para si a tarefa de

reorganizar as regras do jogo mercantil a fim de tornar possível a manutenção do próprio

modo de produção capitalista. Explica-se: as oscilações inerentes à economia liberal,

assentada essencialmente no mercado, fizeram crescer a demanda pela estabilização

heterônoma da economia. Pretendia-se, com isso, assegurar o crescimento econômico

orientado ao desenvolvimento, por meio da promoção das transformações indispensáveis à

adaptação do sistema às vicissitudes de sua própria evolução. No sentido luhmanniano, ora

adotado, “evolução” significa que o Estado Social, por meio do intervencionismo, buscou

reduzir a complexidade causada pelo avanço desmesurado da economia de mercado.

No âmbito social, o Estado deveria se incumbir de amenizar os impactos causados

pelas múltiplas tensões e desequilíbrios gerados pelo capitalismo, adotando medidas

corretivas e compensatórias capazes de preservar a coesão social. Desse modo, assegurar o

desenvolvimento econômico e limitar as consequências que daí inexoravelmente surgiriam,

por meio da implementação de políticas públicas estabilizadoras, eram premissas

indissociáveis do Estado Social. Assim agindo, o Estado pretende-se tutor da sociedade, cada

vez mais “legitimado” a intervir na organização própria de segmentos sociais estritamente

privados e a regular a abrangência e as diretrizes da atividade econômica, por meio da

inflação legislativa.106

Com base nesse modelo surgiram as primeiras constituições que atribuíam caráter

fundamental aos direitos sociais, tais como Weimar e a Constituição do México. Todavia, foi

somente a partir dos anos vinte, com os efeitos catastróficos da grande depressão e,

posteriormente, com o traumático desfecho da Segunda Guerra Mundial, que o Estado

intervencionista consolidou-se no cenário mundial.

Quando a questão refere-se à aplicação do direito, o Poder Judiciário não mais se

limita a ser a boca que repete o texto legal como era esperado no modelo liberal. Essa tarefa

mecânica de aplicar a dicção legal ao fato mediante mera subsunção foi substituída pela ideia

de um juiz que funciona como boca do direito. A hermenêutica jurídica oferece, a essa época,

106

A crescente juridificação das relações sociais, expressão que teve origem na Alemanha, durante a República

de Weimar, pela perspicácia de autores como Otto Kirchheimer e Franz Neumann, foi por estes utilizada para

criticar o efeito desagregador e desmobilizador da formalização jurídica das relações trabalhistas sobre os

conflitos de classe. Isso porque, à medida que se concediam direitos, estabeleciam-se deveres e impunham-se

obrigações, de tal modo que o legislador “juridificava” o confronto entre o capital e o trabalho, neutralizando o

caráter essencialmente classista desses conflitos. A questão foi criticada pelos autores citados porque tinha o

condão de substituir as discussões político-ideológicas pelas discussões técnico-jurídicas, o que despolitizou e

cristalizou a atuação dos movimentos operários, prestando um desserviço ao aperfeiçoamento das instituições

democráticas (FARIA, 2004, p.134).

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mecanismos e metodologias que possibilitam o ingresso das perspectivas teleológica,

sistêmica e histórica, “capazes de emancipar o sentido da lei da vontade subjetiva do

legislador na direção da vontade objetiva da própria lei, profundamente inserida nas diretrizes

de materialização do direito que ela mesma prefigura, mergulhada na dinâmica das

necessidades dos programas e tarefas sociais” (CARVALHO NETO, 1999, p. 481). É por isso

que se afirma que no modelo posto pelo paradigma do Estado Social atribui-se ao juiz a tarefa

de concretizar o direito, materializando o princípio da igualdade.

Nada obstante, já nos anos setenta, o modelo tradicional do Estado Social, que veio ao

socorro da insuficiência dos postulados estritamente liberais, estava em franca decadência.

Teve lugar, então, a contrarrevolução neoliberal conservadora que não se contenta com a

interrupção dos avanços do rol de direitos sociais, mas busca ir mais além, pretendendo tirar a

sede constitucional desses direitos. Segundo explicações de matiz econômico-financeira, a

crise seria consequência do déficit orçamentário que o aumento das despesas sociais gerou

nos países centrais do Ocidente, em que o modelo intervencionista e provedor de Estado foi

efetivamente implementado. Esse desequilíbrio entre receitas e gastos deu ensejo ao que se

convencionou chamar de crise fiscal e, por conseguinte, atraiu problemas de governabilidade.

Em síntese, a crise fiscal tornou evidente a necessidade de se impor limites ao endividamento

do Estado, ainda que o aumento desse déficit tenha se dado em razão do aumento das

despesas sociais. Em razão disso, o Estado interventor passa a se assemelhar a uma empresa, e

as sociedades já bastante complexas surgidas da era pós-industrial, que sofria também os

impactos da crescente velocidade com que as informações eram transmitidas, tornavam-se

cada vez mais intrincadas (LEFORT, 1981, p.37-69) e fluidas (BAUMANN, 2001).

Foi em meio a esse processo de complexificação da tessitura social que, nas décadas

de sessenta e setenta, eclodiram movimentos sociais os mais diversos, tais como os

movimentos estudantil, feminista, hippie, pacificista e ecologista. O Estado Constitucional

Democrático ou o Estado Democrático de Direito, como expressa o texto constitucional

brasileiro, surge, nessa esteira de acontecimentos históricos, sociais e econômicos, como uma

alternativa ao modelo eminentemente intervencionista e social. De modo sintético, pode-se

dizer que o Estado Democrático de Direito surge no cenário mundial – ocidental, em regra –

como tentativa de superar a aparente oposição entre o Estado Social e o paradigma anterior,

que consagrava o direito formal burguês (CARVALHO NETO, 1999, p.481). Em vista disso,

postulou-se, por meio do novo modelo, uma nova compreensão constitucional do Estado, em

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109

que ao ideal participativo e democrático amplo é acrescido o estrito formalismo do

liberalismo clássico, o que se dá, mais uma vez, por meio do direito.

Tratando-se do paradigma que norteia o desenvolvimento deste trabalho, os aspectos

relevantes do tema serão retomados posteriormente. Por ora, a colocação de duas questões

torna-se relevante: a primeira delas diz respeito à aparente contradição entre o Estado Liberal

e o Estado Social. Nesse ponto, assinala-se que, na perspectiva aqui adotada, as diferenças

entre o Estado Liberal e o Estado Social não são suficientes para que se constate uma relação

de antagonismo entre os dois modelos, como sugerem muitos autores. Ao revés, o que se vê é

uma relação de complementaridade entre eles. Sob o enfoque do modo de produção

capitalista, o reconhecimento dos direitos sociais mais contribuiu para que as novas condições

da sociedade tornassem-se adaptáveis às novas exigências do capitalismo tardio.

A esse propósito, interessante relembrar que um novo paradigma não se presta a

desconstruir os avanços ou as “invenções” típicas do paradigma anterior, sobretudo quando se

trata dos reflexos dessas mudanças paradigmáticas no âmbito do direito. Há sempre um liame

de continuidade – resquícios daquilo que se incorporou à sociedade e passaram a integrar sua

condição evolucionária – que não pode ser desprezado pelo paradigma que surge em seguida.

Isso, por outro lado, não impede que a ruptura se faça presente em muitos momentos na base

teórica que sustenta um e outro paradigma. Em outro momento, a questão será retomada sob o

enfoque crítico de Jürgen Habermas.

A segunda questão a ser colocada diz respeito às dimensões geracionais dos direitos

que, de algum modo, vinculam-se aos mencionados paradigmas e auxiliam na compreensão

da problemática que envolve os direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito,

sobretudo pela potencialidade didática que essa classificação por gerações traz em si. A

advertência referida no parágrafo anterior aplica-se novamente às dimensões de direitos, uma

vez que houve uma agregação de novos direitos e, por ocasião do Estado Democrático de

Direito, uma releitura do âmbito de abrangência dos direitos surgidos em paradigmas

anteriores.

No plano internacional, em 1951 a Assembleia Geral das Nações Unidas propôs dois

pactos distintos, em que pretendia tratar, separadamente, de duas diferentes categorias de

direitos humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional

de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Cançado Trindade (2003, p.446-447) explica

que, àquela época, pressupunha-se que, ao passo que os direitos civis e políticos poderiam ser

aplicados independentemente de qualquer regulamentação específica no plano interno de cada

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país, os direitos econômicos, sociais e culturais eram passíveis de aplicação progressiva,

porquanto dependiam de uma atuação direta do Estado para se concretizaram. Todavia, o

mesmo autor alerta que essa dicotomia surgiu antes “como um reflexo da profunda divisão

ideológica do mundo no início dos anos cinquenta” que estava polarizado entre o capitalismo

e o socialismo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

O autor segue esclarecendo que já se antevia a fragilidade dessa construção

dicotômica, dado o seu potencial fragmentador dos direitos fundamentais. Segundo ele, uma

leitura atenta das diretrizes consubstanciadas no Pacto Internacional de Direitos Civis e

Políticos é suficiente à conclusão de que alguns desses direitos também serão implementados

progressivamente pelos Estados-Parte. Do mesmo modo, o Pacto de direitos econômicos,

sociais e culturais107

reconhece o caráter fundamental desses direitos – direito ao trabalho em

condições condignas, à cultura, à seguridade social, à saúde física e mental, à educação de

qualidade, que contemple disciplinas relacionadas aos direitos humanos e à importância na

vida social e política do país etc. – e estabelece que os Estados-Parte devam investir o

máximo de recursos de que disponham para, progressivamente, atribuir plena efetividade aos

direitos reconhecidos pelo Pacto.108

Poderia acrescentar-se que a ênfase ao caráter progressivo

da implementação dos direitos sociais e econômicos em parte se justifica pelo fato de eles

terem sido reconhecidos em momento mais recente da história mundial, relativamente aos

direitos civis e políticos.

Essa ideia de que alguns direitos – civis e políticos – têm caráter negativo porque

impõem um não fazer estatal, ao passo que os direitos sociais e econômicos são positivos,

pois demandam uma ação estatal para se efetivarem e a tradição júridica que se consolidou

nesse sentido parecem ter sido estimuladas pela nomenclatura cunhada originalmente por

Isaiah Berlin, no texto “Dois conceitos de liberdade” apresentado em Oxford, em 1958. O

autor distinguiu as liberdades negativas das liberdades positivas, levando em consideração os

107

Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais, de 1966 foi ratificado pelo Brasil em 24 de

janeiro de 1992, quando, na qualidade de Estado-Parte, obrigou-se a desenvolver programas voltados para a

consolidação progressiva de todos os direitos fundamentais ali reconhecidos. O compromisso destina-se tanto à

adoção de políticas públicas especificas, quanto à promoção de ações compatíveis com sua efetivação para todos

os seus cidadãos. O primeiro relatório só foi apresentado em 2001 e a sociedade – esfera pública – teve a

iniciativa de levar ao conhecimento do comitê o nível de engajamento estatal no cumprimento da pactuação.

Recentemente, o comitê emitiu um parecer sobre a situação brasileira no que diz respeito ao “PIDESC”, em que

foram expedidas varias recomendações à administração brasileira. O documento está disponível no site

www.presidencia.gov.br. 108

“Cada uno de los Estados Partes en el presente Pacto se compromete a adoptar medidas, tanto por separado

como mediante la asistencia y la cooperación internacionales, especialmente económicas y técnicas, hasta el

máximo de los recursos de que disponga, para lograr progresivamente, por todos los medios apropiados,

inclusive en particular la adopción de medidas legislativas, la plena efectividad de los derechos aquí

reconocidos.”

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sentidos políticos que o significado do que seja liberdade pode assumir em cada contexto. A

terminologia cunhada por Berlin deu azo a inúmeras releituras que acabaram por aplicá-la, no

plano eminentemente jurídico, como distinção intrínseca aos direitos fundamentais entre os

que representavam liberdades positivas e aqueles que correspondiam às liberdades negativas,

tendo como traço distintivo a interferência ou não do Estado para o processo de concretização.

Contudo, a tipologia elaborada por Berlin, à época, atribuía uma conotação eminentemente

política, em que procurava ressaltar a preponderância da liberdade negativa em desfavor da

positiva, num contexto emoldurado pela Guerra Fria.109

A liberdade positiva seria, portanto,

uma possibilidade de autogoverno e participação, não se restringindo ao caráter prestacional

dos respectivos direitos. Essa questão será retomada (infra 4.4) pela ótica da teoria do custo

dos direitos.

Voltando-se à cronologia histórica proposta, pode-se dizer que a crescente

conscientização a respeito das consequências de uma visão bipartida dos direitos

fundamentais tornou-se mais evidente por ocasião da I Conferência Mundial de direitos

Humanos realizada em Teerã, em 1968. Nessa conferência declarou-se a indivisibilidade dos

direitos humanos fundamentais, firmando-se que a fruição de direitos civis e políticos

demanda, inelutavelmente, a plenitude dos direitos sociais e econômicos e vice-versa

(CANÇADO TRINDADE, 2003, p. 452).

Algum tempo depois, em 1979, Karel Vasak apresentou uma nova proposta para se

classificar as diversas categorias de direitos fundamentais. Conforme expôs em palestra

ministrada no Instituto Internacional de direitos do Homem em Estraburgo, o processo de

evolução dos direitos fundamentais vinculava-se a momentos históricos que atribuíam

contornos ao que deveria ser tido como fundamental, no âmbito jurídico. A cada período

histórico, o autor sugere que tenha existido uma geração de direitos. Para Vasak, cada um dos

três modelos paradigmáticos de Estado está associado a uma geração distinta de direitos

fundamentais.

São três as ondas geracionais de direitos, propostas por Vasak. A primeira geração foi

uma aquisição própria das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, em que

109

O primeiro desses sentidos políticos de liberdade individual ou liberdade institucional (far-se-á uso de ambas

as expressões para dizer a mesma coisa), o qual (com base em muitos precedentes) será chamado de sentido

“negativo”, vem incorporado na resposta à pergunta: “Qual é a área em que o sujeito – uma pessoa ou um grupo

de pessoas – deve ter ou receber para fazer, ou ser o que pode ser, sem que outras pessoas interfiram?” O

segundo, que será chamado de sentido positivo, vem incorporado na resposta à pergunta: “O que ou quem é a

fonte de controle ou de interferência que pode determinar que alguém faça ou seja tal coisa e não outra?” As

duas perguntas são nitidamente distintas, mesmo que se possam sobrepor as respostas a ambas (BERLIN, 1981,

p.136).

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predomina a ideia de direito como liberdade – de ter, de se expressar, de eleger os

governantes etc que corresponde ao paradigma do Estado Liberal. A segunda geração de

direitos estabeleceu-se no paradigma do Estado Social, em virtude dos movimentos social-

democratas e da Revolução Russa, razão por que predominava a ênfase à igualdade.

Finalmente, a terceira geração de direitos, construída sobre os escombros da trágica

experiência que a Segunda Guerra Mundial representou para a humanidade, trouxe destaque

ao valor fraternidade.

A classificação proposta por Vasak é importante para facilitar a compreensão da

evolução aquisitiva dos direitos. Além disso, é acolhida em diversas concepções atuais de

direitos fundamentais, tendo sido amplamente desenvolvida por importantes teóricos do

direito, como Norberto Bobbio, por exemplo. Entretanto, não merece aceitação irrestrita, pois,

a despeito da aparente ruptura entre uma e outra geração de direitos, há importantes liames de

continuidade. A conquista de direitos econômicos e sociais só se fez possível graças ao

reconhecimento anterior de direitos de liberdade. Se a aquisição de direitos tem relação direta

com o processo histórico experimentado pela sociedade, é inegável que esse processo é

dinâmico. Assim, a agregação de novos direitos apenas possibilita uma reinterpretação

daqueles advindos da geração anterior. A visão de Vasak, por tratar linearmente a história,

desconhece essa dinâmica, por meio da qual uma geração absorve, sob outro enfoque,

arcabouços jurídicos precedentes.

A noção de direitos como gerações ou dimensões historicamente referenciadas é

relevante, como se afirmou, sobretudo do ponto de vista didático, quando se percebe que as

ondas geracionais são fruto do modelo paradigmático de Estado que as conformaram.

Assim é que no paradigma do Estado Democrático de Direito são consagrados os

direitos de terceira geração, decorrentes de interesses coletivos e difusos. Os direitos

consagrados nos modelos anteriores, por outro lado, têm sua dimensão revisitada para se

adequarem à moldura do novo paradigma.

Nessa perspectiva, tem lugar uma releitura segundo a qual os direitos de primeira

geração são havidos como direitos de participação no debate público, com carga

procedimental capaz de informar a soberania constitucional do Estado Democrático de

Direito. O princípio da Separação de Poderes adquire novos contornos, em que o Poder

Judiciário amplia sua atuação no processo de concretização dos consectários do novo

paradigma, uma vez que a ele compete viabilizar a legitimação do Estado democrático pelo

procedimento da cidadania.

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A cidadania aqui passa a ser compreendida como participação efetiva no processo

decisório; o indivíduo tornado cidadão abandona a passividade e interage no processo

político. É nesse sentido que a concepção de cidadania vincula-se à noção de procedimento:

ela demanda a institucionalização de mecanismos próprios à otimização da participação

discursiva no processo de formação da opinião e da vontade públicas. A mudança é bem

explicada por Cruz (2001, p. 223):

A luta por dignidade leva a sociedade, de uma postura passiva para uma atitude

francamente ativa. O cliente do Estado-Providência desiste de esperar. Levanta-se e

se organiza. Os limites da vontade institucional/estatal e da vontade informal/privada

desaparecem. Já não há mais uma clara separação entre Estado e Sociedade, uma vez

que seus canais de comunicação mesclam-se de modo atordoante.

Ao adentrar a questão relativa à função de inclusão dos direitos fundamentais e sem

perder de vista a noção de indivisibilidade que os une e os torna igualmente exigíveis,

destaca-se que, nas últimas décadas, a cidadania tem se desenvolvido no sentido de assegurar

e ampliar direitos referentes a interesses coletivos e difusos, entendidos como direitos de

quarta geração.

A importância desses novos direitos está na possibilidade de que eles viabilizem

ações concretas eficazes contra as práticas ilícitas e socialmente danosas das “grandes

organizações impessoais, que se fortificam cada vez mais no mundo de hoje, o que não seria

possível no período individualista dos direitos” (NEVES, 2008, p.177).

A dimensão da estrita relevância social que marca essa nova categoria de direitos pode

ser atribuída à massificação dos conflitos sociais e o desafio de fazer das cidades um habitat

tolerável para o homem, que se pretende seja cidadão. Isso é bem observado por Capelletti

(apud PÉRISSÉ, 2006, p.124-125):

Cada vez mais frequentemente, por causa dos fenômenos da massificação, as ações e

relações humanas assumem caráter coletivo, mais do que individual: elas se referem

preferentemente a grupos, categorias e interesses de pessoas, do que apenas a um ou

poucos indivíduos […]. E, na verdade, cada vez mais frequentemente, a

complexidade das sociedades modernas gera situações nas quais um único ato do

homem pode beneficiar ou prejudicar um grande número de pessoas, com a

consequência, entre outras, de que o esquema tradicional do processo judiciário

como „lide entre duas partes‟ (zweipartelenprozess) e „coisa das partes‟ (sache der

parteien) resulta completamente inadequado.

Equivale a dizer que o reconhecimento da possibilidade da defesa coletiva de direitos,

ou mesmo de novos direitos de natureza difusa ou coletiva, ganha força na medida em que se

verifica que os indivíduos isoladamente não conseguem fazer face às inúmeras violações de

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direito de que são vítimas, tendo como o algoz as grandes organizações (financeiras, políticas

ou até mesmo criminosas), ou até mesmo o Estado como o ente violador.

As mudanças havidas no sistema jurídico em decorrência do advento do Estado

Democrático de Direito são de suma relevância para os objetivos deste trabalho, sobretudo

porque não se pode falar em efetivação de direitos fundamentais sem que se pense na

concepção de cidadania delineada nesse novo paradigma. No entanto, antes que se adentrem

as questões específicas do Estado Democrático de Direito Brasileiro, é importante que sejam

lançadas as bases para a compreensão dos direitos fundamentais sobre o ponto de vista

discursivo e sistêmico que, pelo entendimento aqui encampado, corresponde às demandas

desse paradigma que conforma o sistema jurídico contemporâneo.

4.3 Direitos fundamentais sob as perspectivas discursiva e sistêmica

À guisa de introdução pode-se dizer que a conquista de novos direitos passa por três

momentos jurídico-políticos (NEVES, 1994, p. 260). O primeiro deles já foi apresentado,

sobre outro enfoque, nos itens antecedentes e refere-se à semântica dos direitos humanos. O

segundo momento identifica-se com a perspectiva dos direitos humanos que já foram

incorporados ao texto constitucional sob a forma de direitos fundamentais e será tratado neste

tópico. O último momento jurídico-político dos direitos da cidadania será tratado na parte

final deste capítulo e diz respeito à força normativa das disposições constitucionais relativas

aos direitos fundamentais.

Dito isso, torna-se necessário fazer referência à perspectiva teórica híbrida que se

pretende, quando se estabelece a conexão entre a teoria discursiva – em que predomina o

caráter pragmático – e a teoria dos sistemas – na qual a perspectiva sistêmica é mais

radicalizada – na análise dos direitos fundamentais. Como já se pôde observar na exposição

precedente, há vários traços distintivos e até contraditórios entre ambos os modelos cuja

intensidade varia conforme o ponto de vista da observação. A utilização de uma leitura

aproximativa e complementar dos dois autores, com base na proposta de Neves (1994; 2008),

é motivada pela intenção de destacar a importância de se levar a sério a teoria da cidadania e

os direitos fundamentais que lhe atribuem sentido. Vale dizer: o esforço se dá no sentido de

contribuir para o debate em torno da cidadania de modo a afastá-lo do mero uso estratégico e

da tendência demagógica, típica da retórica política, de empregar a semântica dos direitos do

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cidadão sem considerar as “condições estruturais e conjunturais de sua realização” (NEVES,

1994, p. 254).

Como conquistas evolutivas da modernidade, os direitos fundamentais podem ser

pensados como resultantes da “abertura dos procedimentos jurídicos à evolução da

consciência moral para o nível pós-convencional” ou como resposta à diferenciação funcional

da sociedade e à “exigência de inclusão nos diversos sistemas sociais” (NEVES, 1994, p.260).

A primeira perspectiva coincide com a proposta discursiva de Habermas e a segunda diz

respeito à concepção de direitos fundamentais e teoria da cidadania de Luhmann, como se

verá a seguir.

Ainda em 1965, Luhmann dedicou-se a escrever sobre os direitos fundamentais, época

em que publicou Direitos fundamentais como instituição. Pela primeira vez, o autor vinculou

as modificações pelas quais passou a sociedade ao longo da história ao processo de

diferenciação do direito. A essa época, influenciado pelos indesejáveis desdobramentos da

ascensão do regime nacional-socialista na Alemanha, Luhmann pensava a

institucionalização110

dos direitos fundamentais como um modo de evitar que o direito se

submetesse à política, perdendo sua condição de sistema funcionalmente diferenciado. Na

leitura luhmanniana, o nacional-socialismo foi um processo de desdiferenciação sistêmica em

que o código da política fez-se impor a todos os demais subsistemas, aniquilando qualquer

possibilidade de diferenciação entre os sistemas, inclusive entre os indivíduos.

Nesse contexto, os direitos fundamentais teriam a função precípua de impedir a

desdiferenciação entre os subsistemas sociais, protegendo-os da tendência expansiva e

colonizadora dos outros subsistemas, notadamente, da política. Somente num plano

secundário é que Luhmann considerava os efeitos da institucionalização dos direitos

fundamentais diretamente para os indivíduos. De toda sorte, os direitos fundamentais como

instituição são uma conquista evolutiva tanto do indivíduo quanto do Estado (LUHMANN,

2002, p.17).

Liberdade, igualdade, dignidade como direito à individualização e à

autorrepresentação, direito ao voto, direito a ter acesso mínimo à propriedade que garanta o

suprimento das necessidades básicas do indivíduo, por exemplo, não são meros valores

negociáveis ou renunciáveis no âmbito da decisão jurídica (legislativa ou judicial). Eles são

110

Instituições em Luhmann (2002) são expectativas de comportamento generalizadas no aspecto temporal – em

que se dá a normatização – e material – em que há a generalização de sentido e social, dimensão na qual ocorre o

consenso suposto. As instituições fazem parte da estrutura dos sistemas sociais. Em momento posterior de sua

pesquisa, contudo, Luhmann restringe as instituições ao âmbito da dimensão social, ou seja, do consenso

suposto.

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direitos fundamentais porque constituem premissas para a diferenciação funcional entre os

subsistemas de uma sociedade; atendem à exigência mínima para que o exercício da função

de editar decisões vinculantes mantenha-se legítimo, a despeito da complexidade da sociedade

contemporânea. A liberdade e a igualdade são pressupostos de uma ordem social diferenciada

que estabelecem critérios para a conformação das decisões políticas – vinculantes por

definição – ou, nas palavras do próprio autor (LUHMANN, 2002, p.245):

No momento em que uma ordem social se constitui em um subsistema relativamente

autônomo de decisões vinculantes, daí podem derivar dois tipos de perigo: o

primeiro é que as decisões vinculantes obriguem o cidadão a comportamentos que

não correspondam à "estrutura social diferenciada" – ao que se opõem os direitos de

liberdade; o outro é que as decisões desse mesmo Estado não correspondam às

exigências estruturais de uma "ordem social diferenciada" – ao que se opõem os

direitos de igualdade.111

Como a concepção de ação – até então unidade analítica básica da sociologia

tradicional – é substituída pela noção de comunicação, que se tornou a unidade elementar para

a análise da sociedade em Luhmann, os direitos fundamentais são examinados a partir da

prestação que deles pode se esperar: a potencialização da capacidade comunicativa dos

indivíduos. Explica-se: como a sociedade é constituída por comunicações, os direitos

fundamentais se prestam a viabilizar a fruição dessas comunicações pelas vias sistêmicas.

Tendo em vista que o indivíduo é um sistema de sentido, as comunicações devem,

necessariamente, passar por eles. Daí porque, para que sejam veículos eficientes dessa

comunicação e não bloqueiem o respectivo fluxo comunicativo, os indivíduos devem ter

acesso a todos os subsistemas sociais, como educação, saúde, direito, política, economia e

assim se constituírem como pessoas titulares de direitos inalienáveis. Sabendo-se do nível de

complexidade da sociedade moderna, os direitos fundamentais devem considerar a pluralidade

e a contingência das expectativas e permitir que cada indivíduo se identifique – ao se

diferenciar dos demais – dando vazão à conformação de sua personalidade como algo

singular.

Deve-se observar que a concretização de direitos fundamentais, como é sempre

onerosa e, via de regra, exigida do ente estatal, envolve uma rede de comunicações entre os

sistemas que se pode dizer multissistêmica. É nesse ponto, que adquire relevância o

111

Allorché in un ordine sociale si costituisce un sottosistema relativamente autonomo di decisioni vincolanti, ne

possono derivare due tipi di pericolo: il prime è che le decisioni vincolanti obblighino il cittadino a

comportamenti che non corrispondono alla struttura sociale differenziatta - a ciò si oppongono i diritti di libertà;

l´altro è che le decisioni dello stesso stato non corrispondano alle esigenze strutturali di un ordine sociale

differenziato - a ciò si oppongo i diritti di uguaglianza." (2002, p.245)

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tratamento que será dado às comunicações entre os sistemas envolvidos na efetivação de um

direito fundamental.

Quando se observa o direito à educação, por exemplo, sob a perspectiva sistêmica,

percebe-se que são utilizadas informações e prestações provenientes de vários sistemas. O

sistema da educação oferecerá as bases técnicas para que se considere qual a política

educacional mais adequada; no caso brasileiro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação

Nacional (Lei nº 9394/96), formulada sob a orientação constitucional prevista no art. 205,

decodifica para o direito as informações técnicas que somente o sistema da educação pode

fornecer a partir de sua codificação binária própria. A prestação do sistema da educação,

portanto, é oferecer o ensino e propiciar o aprendizado científico e a formação social e

política dos indivíduos. O sistema político, no caso, seleciona a política pública que será

executada pelo sistema da educação – como fez no plano constitucional e infraconstitucional

– oferecendo como prestação ao sistema da educação o aparelhamento necessário para que

este propicie condições de aprendizado aos alunos. O sistema econômico aqui é representado,

no plano estatal, pelas finanças públicas, uma vez que a educação pública é custeada por

recursos do erário. Nesse caso, o sistema econômico oferece como prestação a fonte de

financiamento da política pública correspondente, por meio de seu código próprio: ter/não ter.

O sistema jurídico, por sua vez, tem como prestação a resolução dos conflitos envolvendo o

direito à educação. Portanto, se a questão for levada ao sistema jurídico para apreciação,

caberá a ele observar as informações e as prestações fornecidas por todos os sistemas

envolvidos e assimilá-las por meio de sua abertura cognitiva mediante a filtragem dessas

comunicações pelo código próprio do direito e, assim, definir o que é lícito e o que é ilícito. A

capacidade do sistema jurídico de filtrar e decodificar essas informações, como se viu, é que

garante o fechamento operativo do sistema jurídico.

Com isso se quer dizer que todos os sistemas envolvidos devem ter o código do

sistema jurídico como código secundário que orienta todas as operações dos sistemas. O

caráter coercitivo ínsito à função do direito de generalizar congruentemente as expectativas

normativas atua como motivação aos demais sistemas a observarem o código lícito/ilícito nas

suas comunicações internas e na relação com os outros sistemas. Como se pretende abordar

no capítulo seguinte, na ambiência do Estado Democrático de Direito, os orçamentos públicos

– aqui considerados sob a perspectiva do enlace transversal entre direito, economia e política

– não pode, por exemplo, deixar de contemplar o investimento mínimo previsto

constitucionalmente para as políticas públicas de saúde, sob pena de o sistema político se

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submeter à revisão e à eventual sanção imposta pelo sistema jurídico. Ademais, até a

disparidade entre os níveis de investimentos nas políticas públicas relativas a direitos

fundamentais e em outros programas deve ser submetido à lógica do lícito e ilícito.

Por outro lado, a necessidade de que os sistemas permaneçam autônomos pela

ininterrupção da cadeia de comunicação que os diferencia e, apesar disso, possam se interligar

a partir do acesso de um mesmo indivíduo a vários subsistemas sociais relaciona-se

diretamente com o conteúdo interdisciplinar que a indivisibilidade dos direitos fundamentais

assegura aos respectivos titulares. Vale dizer, quando um mesmo indivíduo usufrui das

prestações de vários sistemas, estas devem se interrelacionar para que sejam eficientes no

sentido de proporcionar ao indivíduo a efetiva inclusão que o direito fundamental

correspondente lhe assegura. Dessa forma, se um aluno do sistema de educação apresenta uma

moléstia que impede seu aprendizado, é necessário que essa informação proveniente do

sistema de saúde seja processada no interior do sistema da educação para que haja a

integração sistêmica necessária à fruição do direito a aprender. É nesse sentido que as

legislações relativas à saúde, educação e assistência social preveem a necessidade dessa

integração.

Na teoria da cidadania de Thomas Marshall (apud DOMINGUES, 2001, p. 218), para

quem incluir politicamente o indivíduo significa dotá-lo do status de cidadão,112

a definição

de cidadania se assenta em três dimensões: civil, política e social. A dimensão civil é

composta pelos direitos relacionados à liberdade individual, como, por exemplo, o direito de

acesso ao sistema jurídico e ao regular processamento da demanda em condição de igualdade.

A segunda dimensão que integra tal definição de cidadania diz respeito aos direitos de

participação política que possibilitam ao cidadão participar ativamente no processo

democrático da formação da opinião e da vontade. Por fim, o autor alinha o elemento social

da sua teoria da cidadania, que se relaciona diretamente ao tema deste trabalho:

O elemento social se refere a tudo que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, da herança social e

levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na

sociedade. As instituições mais intimamente ligadas a este elemento da cidadania

são o sistema educacional e os serviços de assistência social.113

112

Status é definido pelo autor (MARSHALL, apud DOMINGUES, 2001, p. 219) como algo que abrange todo o

comportamento que a sociedade espera de uma pessoa na sua capacidade de ocupante da posição e, também,

todo o comportamento recíproco adequado dos outros para com ela. 113

“No original, a passagem final é a seguinte: „[…] the right to a modicum of economic welfare and security to

the right to share in the full in the social heritage and to live the life of civilized being according to the Standards

prevailing in the society‟” (Marshall, apud Domingues, 2001, p.219).

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Marshall sustenta que essa sequência de direitos, a partir de uma lógica em que uns se

desdobram em outros, tornou possível assegurar e ampliar gradativamente o status de

cidadãos nas sociedades ocidentais nos últimos dois ou três séculos.

Embora mantenha as restrições inerentes ao modo peculiar da sua concepção de

evolução social,114

Luhmann (2007, p. 48-49) formula sua concepção de Estado de bem-estar

como a realização do princípio da inclusão, de modo a compatibilizá-la com a contribuição de

Marshall. Veja-se:

O homem, como indivíduo, vive fora dos sistemas funcionais, mas cada um deve ter

acesso a cada sistema funcional sempre e na medida em que seu modo de vida lhe

exija recorrer às funções sociais. Na perspectiva do sistema social, esta pretensão se formula como princípio de inclusão. Todo sistema funcional serve a toda a

população, porém somente naqueles aspectos que são funcionalmente relevantes

para seu modo de vida. Todos gozam de capacidade jurídica e proteção legal, todos

podem ter ou gastar dinheiro etc. Por detrás dessas normas de inclusão, a

desigualdade efetiva de possibilidades se torna um problema; precisamente porque

já não se apoia no esquema de diferenciação da sociedade, mas se reproduz de modo

antifuncional. A realização do princípio de inclusão no âmbito funcional da política

tem como consequência o trânsito para o Estado de bem-estar. (Tradução livre).115

Assim, como prestação social oferecida pelas constituições modernas, os direitos

fundamentais servem à inclusão pretendida pelo Estado de bem-estar, que se refere à inserção

de toda a população nas prestações de cada um dos subsistemas da sociedade. A ampliação do

acesso às prestações dos subsistemas sociais, assim, faz com que haja maior participação do

indivíduo na vida social. Por outro lado, a negativa ao acesso gera mais exclusão e tende a

manter os indivíduos na marginalidade. Nesse sentido, os direitos fundamentais sociais

adquirem especial relevância, pois são imprescindíveis à institucionalização efetiva dos

demais direitos fundamentais, sejam de natureza civil ou política. Isso porque a inclusão da

população nos diversos subsistemas sociais é pressuposto para a manutenção da diferenciação

114

Essa ressalva é pertinente porque as perspectivas de sequência histórica de afirmação de direitos, que aparece

de modo mais marcante na teoria das gerações de direitos humanos de Norberto Bobbio, por exemplo, apontam

para uma noção de civilização como progresso; como se a marcha aquisitiva de direitos sempre se dirigisse à

realização teleológica da natureza (indefectível) do homem. Tal construção contraria, como já se viu, a noção de

evolução social que embasa a teoria sistêmica de Luhmann, que vê o futuro como produto aleatório das escolhas

contingentes do presente. 115

El hombre, en tanto que indivíduo, vive fuera de los sistemas funcionales, pero cada uno debe tener acceso a

cada sistema funcional siempre y en tanto que su modo de vida le exija el recurso a las funciones sociales. Desde

la perspectiva del sistema social, esta presensión se formula com el principio de la inclusión. Todo sistema

funcional incorpora a toda la población pero sólo em aquellos aspectos de su modo de vida que posean la

respectiva relevância funcional. Todos gozan de capacidad jurídica y protección legal, todos reciben educación

escolar, todos pueden adquirir o gastar dinero, etc. Sobre el trasfondo de estas normas de inclusión, la

desigualdad efectiva de possibilidades deviene em problema; precisamente porque ya no se apoya sobre el

esquema de diferenciación de la sociedad, sino que se reproduce de modo afuncional. La realización del

principio de inclusión em el âmbito funcional de la política tiene como consecuencia el tránsito al Estado de

Bienestar.

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funcional entre os sistemas, uma vez que se o número de excluídos for crescente, mais difícil

será que os sistemas operem de modo autorreferencial.

Nessa perspectiva, pode-se afirmar que, na sociedade supercomplexa de hoje,

fundada em expectativas e interesses os mais diversos entre si e contraditórios, o

direito só poderá exercer satisfatoriamente sua função de congruente generalização

de expectativas normativas de comportamento enquanto forem institucionalizados os

princípios da inclusão e da diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos

fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberdade civil e à

participação política (NEVES, 2007, p.78).

Em momento posterior de suas reflexões, Luhmann (2000) passa a atribuir maior

importância ao caráter paradoxal da construção social dos direitos fundamentais e apresenta

três formas de desdobramento dos paradoxos que envolvem o conceito de direitos humanos.

O primeiro deles refere-se à noção de contrato social originário e o surgimento dos direitos

humanos. O paradoxo aqui diz respeito ao questionamento sobre quem viria primeiro, o

contrato social ou os indivíduos. O segundo paradoxo apontado pelo autor relaciona-se ao

fenômeno de positivação dos direitos humanos. A pergunta, nesse caso, é se os direitos

humanos são pré-positivos ou se a validade jurídica deles dependeria da respectiva

positivação.

Isso porque, no âmbito do Estado Democrático de Direito, as expectativas normativas

relacionadas à inclusão generalizada só se revestem de validade jurídica quando se submetem

ao procedimento democrático – constituinte ou constitucional – para tanto. Sempre haverá

expectativas normativas com pretensões de ingresso no sistema jurídico, enquanto outras já se

tornaram direitos fundamentais porque passaram pelo procedimento de ingresso no sistema.

Se ainda assim o paradoxo persiste – e pode ser representado pelo paradoxo mesmo do

sistema jurídico que é operativamente fechado e cognitivamente aberto –, há a vantagem de

que pode ser observado por todos, pois não se submete a nenhuma estratégia de ocultação.

Assim, segundo Neves (2008, p.431):

A forma de administrar esse paradoxo, no Estado Democrático de Direito, foi a de tornar a positivação dos direitos humanos como direitos fundamentais dependente de

procedimentos constitucionais, ao mesmo tempo seletivos em face da pluralidade de

expectativas normativas referentes à inclusão jurídica generalizada, quanto abertos e

promotores dessa mesma pluralidade.

Por último, Luhmann destaca o paradoxo da universalização dos direitos humanos,

que é obstada tanto pela negação direta de muitos Estados à garantia dos direitos humanos no

âmbito de seus textos jurídicos de hierarquia constitucional quanto pela mera textualização

constitucional dos direitos humanos sem que disso decorra a força normativa necessária para a

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concretização de tais direitos. A observação paradoxal, nesse caso, é a de que a força dos

direitos humanos não é percebida no seu processo de afirmação; ao contrário, é a violação dos

direitos humanos que repercute estrondosa e negativamente na comunicação social, por meio

de organizações ou movimentos de protesto, e afirma sua validade. Daí, a seguinte afirmação

do autor (2000, p.158):

A forma mais atual de afirmação dos direitos humanos poderia ser assim,

simultaneamente, a mais original (mais natural). Normas são reconhecidas por meio

de suas violações; e os direitos humanos na medida em que são descumpridos.

Vale dizer, é necessário que haja o descumprimento da positividade dos direitos

humanos para que se processe novamente sua readequação semântica e estrutural na

sociedade moderna.

Partindo da compreensão de que os direitos humanos são um paradoxo que decorre do

modo ambíguo como foram estruturados na sociedade moderna, ou seja, pela forma paradoxal

da diferenciação funcional, Juliana Neuenschwander Magalhães propõe um novo

desdobramento para os três paradoxos apresentados por Luhmann (2000).

Inicialmente, propõe que os direitos humanos são mecanismos de reação ao processo

de diferenciação funcional, viabilizados por meio do acoplamento estrutural entre o direito e

os outros sistemas funcionalmente diferenciados. A função dos direitos humanos – assim

como a ideia de soberania popular – seria, portanto, oferecer uma mesma base fundante para

direito e política modernos. No que diz respeito aos subsistemas sociais diferenciados, os

direitos humanos oferecem prestações, pois estabelecem um modo de comunicação entre os

sistemas em geral e o sistema jurídico.

O paradoxo da positivação dos direitos humanos é revisitado e explicado como outra

prestação que a semântica moderna dos direitos humanos ofereceu ao sistema político. Assim,

a noção de revolução agregou-se à semântica dos direitos humanos e, em consequência disso,

seguiu-se o processo de constitucionalização firmando-os como direitos fundamentais e, a um

só tempo, impedindo que se retrocedesse às compreensões e condições pré-revolucionárias.

Já Neves (2008b, p. 430) propõe outra leitura do paradoxo relativo à positivação dos

direitos humanos que aparece “na forma da necessidade da positivação de direitos pré-

positivos”. Segundo ele, um desdobramento desse paradoxo, para além da proposta de

Luhmann, seria estabelecer uma distinção entre a semântica política e social dos direitos

humanos e a semântica jurídico-positiva dos direitos fundamentais. Isso porque, no âmbito do

Estado Constitucional Democrático, as expectativas normativas referentes à inclusão jurídica

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generalizada só adquirem validade jurídica se passam pelo crivo dos procedimentos

democráticos, sejam eles constituintes ou constitucionais.

A questão é que os direitos humanos se situam na zona-limite entre o sistema jurídico

e seu ambiente, ora na parte externa, como expectativas normativas que pretendem ingressar

no sistema e se tornar norma jurídica válida; ora na parte interna da fronteira jurídica, como

direito fundamental assegurado constitucionalmente, constatação que, por si só, é ambígua.

Todavia, a superação dessa ambiguidade é inviabilizada pela constatação da pluralidade e da

diversidade de compreensões acerca do próprio conteúdo dos direitos humanos na sociedade

complexa.

A estabilização ou a gestão desse paradoxo deu origem, então, à exigência de que a

seleção das expectativas normativas emergentes na sociedade pluralística moderna se desse

por meio de procedimentos constitucionais. Os procedimentos constitucionais tanto

selecionam as expectativas que serão tornadas normas jurídicas, quanto possibilitam o

ingresso de novas expectativas por meio de novos processos de seleção, o que contribui para a

preservação da pluralidade.

Os direitos humanos, nesse contexto, são “expectativas normativas orientadas para a

inclusão jurídica em condições de dissenso estrutural” que demandam a institucionalização de

procedimentos democráticos que se destinem a garantir a convivência social e política como

forma de assimilar o dissenso e, ao mesmo tempo, possibilitar o surgimento de novos

dissensos. Assim, a institucionalização dos direitos humanos pressupõe que haja consenso no

que diz respeito ao procedimento democrático em si, de sorte a possibilitar o dissenso sobre o

conteúdo dos direitos humanos (NEVES, 2008, p.427).

A teoria discursiva do direito de Jürgen Habermas, ao se referir ao sistema de direitos

como ponto central no Estado Democrático de Direito, propõe uma perspectiva histórica para

a análise dos direitos fundamentais. Fazendo menção à matriz sistêmica de Talcott Parsons,

Habermas (2003, p. 107) também põe em relevo a referência empírica à expansão dos direitos

dos cidadãos que Thomas Humphrey Marshall havia construído a partir de suas pesquisas no

âmbito do processo de modernização capitalista, com a ressalva de que a ampliação dos

direitos de cidadão não deixa de ser resultado das lutas e movimentos sociais. Segundo

Habermas, é inegável que migrações e guerras, como tipos de movimentos sociais

extraordinários que são, também contribuíram para a ampliação do status de cidadão em

variadas dimensões. Pontua o autor (HABERMAS, 2003, p.108), contudo, que os “fatores que

estimulam a juridificação de novas relações de inclusão têm efeitos distintos também sobre a

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mobilização política da população e, assim, sobre a ativação dos direitos dos cidadãos já

existentes”.

O status de cidadão, entretanto, não pode ser considerado no plano eminentemente

empírico, tampouco reduzido ao aspecto normativo. Os direitos, por outro lado, também

podem ser considerados tanto do ponto de vista moral quanto jurídico. A retroalimentação

entre a autonomia privada e autonomia pública ou a relação de complementaridade entre

ambas é expressa, segundo o autor, pelo sistema de direitos, uma vez que os cidadãos devem

atribuir-se reciprocamente direitos fundamentais “caso queiram regular sua convivência com

os meios legítimos do direito positivo” (HABERMAS, 2003, p.154). É partindo desse

pressuposto que o autor organiza o sistema de direitos em categorias capazes de explicitar a

nota de fundamentalidade que os caracterizam, “uma vez que determinam o status das pessoas

de direito” (HABERMAS, 2003, p. 159).

A primeira delas reconhece a fundamentalidade dos direitos pertinentes ao

reconhecimento recíproco, entre os indivíduos, de iguais liberdades subjetivas de ação. Trata-

se de plano estruturante da comunidade artificial de sujeitos de direito, cuja manifestação é

precedida da especificação de quais direitos podem ser reclamados judicialmente. Já a

segunda categoria refere-se aos direitos fundamentais que se referem à circunscrição artificial

e voluntária promovida pelos sujeitos de direito. Estabelece-se a comunidade jurídica –

associação voluntária de parceiros do direito –, o que permite a distinção entre membros e não

membros. O terceiro grupo é constituído pelos direitos fundamentais relacionados à

possibilidade de o indivíduo, supostamente lesado em suas pretensões, provocar a função

jurisdicional – provida de independência e neutralidade –, para, em última análise, ver-se

garantido pelo aparato coercitivo do Estado. A quarta categoria concerne aos direitos

fundamentais de participação, em iguais proporções, consistentes no exercício da autonomia

pública, por meio da qual os sujeitos, trazendo pretensões de validade aos espaços público-

políticos, criam legitimamente o direito. E a última categoria diz respeito aos direitos

fundamentais de igual acesso a condições mínimas de vida, a fim de viabilizar o exercício dos

direitos precedentes.

As três primeiras categorias desdobram aspectos da autonomia privada, sediando a

discursividade do sistema jurídico, na medida em que garantem o plano horizontal da

sociedade civil – filtro formal à institucionalização do direito. A quarta refere-se a direitos de

participação – autonomia pública (HABERMAS, 2003, p.159).

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A quinta categoria indicada pelo autor é a de maior interesse, levando em conta o tema

e os limites deste trabalho. Isso porque os direitos fundamentais à saúde, à educação e à

assistência social, por exemplo, são essenciais à fruição de todos os direitos que os cidadãos

decidam atribuir-se reciprocamente. Por conseguinte, não há que se falar em autonomia

pública ou em autonomia privada se é obstado ao indivíduo o acesso aos direitos

fundamentais a condições de vida garantidas socialmente.

Assim é que, ao postular a equiprimordialidade entre a autonomia pública e a

autonomia privada dos cidadãos, num contexto em que, entre a declaração de direitos e a

soberania popular, predomina uma relação de cooriginalidade, Habermas atribui

fundamentalidade tanto aos direitos ditos típicos do Estado Liberal quanto àqueles instituídos

com a ascensão do Estado Social, afirmando que “tanto as liberdades subjetivas quanto as

garantias sociais podem ser tidas como uma base jurídica para a autonomia social que torna

possível uma defesa efetiva de direitos políticos” (2003, p.109).

É com base nessas premissas que “não há como se pretender apartar os direi tos

individuais dos direitos sociais” (SOUZA CRUZ, 2007, p.337), uma vez que a visão

sociológica da ampliação gradativa do status de cidadão, trazida por Marshall, assim como a

noção de gerações de direitos concebida originalmente por Vasak, deve funcionar apenas

como instrumentos para reconstrução histórica dos direitos fundamentais.

Da mesma forma, embora se valha da distinção entre os paradigmas do Estado Liberal

e do Estado Social para construir sua teoria crítico-deliberativa acerca do Estado Democrático

de Direito, Habermas nega-lhes a condição essencial de antagonismo. Diversamente disso, em

sua compreensão, ao Estado Liberal seguiu-se o Estado Social, sem que houvesse uma ruptura

no que diz respeito aos direitos atribuídos aos cidadãos em um ou em outro momento

histórico.

Se o Estado Liberal pressupunha uma liberdade já afirmada filosoficamente, nos

termos de uma sociedade fundada por um contrato de iguais, o Estado Social, em que pese a

pretensão crítica de negar as liberdades ditas burguesas, tinha por objetivo torná-las concretas,

agora sob a tônica da igualdade assegurada pela intervenção estatal no âmbito da autonomia

privada. Em suma, a contraposição entre a igualdade formal dos liberais e a igualdade

material pretendida pelos adeptos do Estado Social constitui uma falsa dicotomia, uma vez

que a promoção da igualdade material retoma a ideia, renovada pelas pretensões de

concretude, da igual medida de liberdade para cada um dos indivíduos.

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Relevante, nesse ponto, é a conclusão de que, em Habermas, um direito assume

fundamentalidade conforme seja essencial à afirmação da autonomia privada e pública dos

cidadãos. Somente a partir de sua observância torna-se possível a pressuposição recíproca

entre as esferas de autonomia, unidas pelo mesmo nexo interno que liga os direitos

fundamentais à soberania popular. Assim é que:

O nexo interno da democracia com o Estado de Direito consiste no fato de que, por

um lado, os cidadãos só poderão utilizar condizentemente a sua autonomia pública

se forem suficientemente independentes graças a uma autonomia privada se eles, como cidadãos, fizerem uso adequado da sua autonomia política (HABERMAS.

2001, p.148).

Portanto, a precedência que se atribui aos direitos da matriz liberal deve ser restrita ao

âmbito histórico e, na esteira dessa compreensão, tanto os direitos ditos sociais quanto os

direitos tipicamente liberais serão tidos como fundamentais, uma vez que essenciais ao Estado

Democrático de Direito, na medida em que condicionam e tornam operacionalizável o próprio

regime político.

A propósito dessa distinção, segundo entendimento aqui encampado, a observação que

parte das ciências políticas pode auxiliar na compreensão da problemática que versa sobre os

direitos fundamentais sem, contudo, colocar em xeque a fidelidade à contextualização

eminentemente jurídica desses direitos. Classificar o direito à propriedade como direito de

defesa, o direito ao voto como direito político e o direito à saúde, v.g., como direito social

muitas vezes abre espaço para compreensões equivocadas sobre o que torna um direito

fundamental e quais os limites que, em tese, incidem sobre a respectiva efetivação.

O cientista político Claudio Gonçalves Couto (2005) propõe uma classificação para os

direitos dotados de essencialidade numa sociedade política que, nada obstante, parece útil à

perspectiva jurídica aqui apresentada. Para esse autor, deve-se distinguir entre direitos

fundamentais operacionais e direitos fundamentais condicionantes do regime político. Todas

as espécies de direitos fundamentais hão de ser agrupadas numa ou noutra tipologia, que

considera operacionais os direitos em regra tidos como direitos de liberdade e como direitos

políticos, porque são essenciais à operação do regime; e condicionantes os direitos à

propriedade e à saúde, por exemplo, dado que atuam como condições externas

imprescindíveis à preservação da democracia.

Se, de um lado, subtrair os direitos políticos ou os direitos de expressão dos cidadãos

equivale a anular requisitos básicos para o funcionamento do regime democrático, ou, para

usar uma expressão de Habermas, faria com que os cidadãos perdessem de vista o “sentido

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democrático da auto-organização de uma comunidade política” (1997, p.146) – de outro,

subtrair o acesso dos cidadãos às garantias sociais elementares ameaça a própria existência da

democracia. Isso porque inexistentes as condições materiais e de bem-estar consideradas

indispensáveis à obtenção da adesão dos indivíduos ao ordenamento estatal vigente. Vale

dizer, se o Estado não assegura tais direitos fundamentais aos cidadãos, eles podem optar por

abandonar o jogo democrático, “apostando no conflito aberto como forma de atingir seus

objetivos e preservar seus interesses ou valores fundamentais” (COUTO, 2005, p.106).

A indivisibilidade dos direitos fundamentais, posição adotada pela Organização das

Nações Unidas e o reconhecimento de que há uma cooriginalidade entre todas as categorias

de direitos dotados de fundamentalidade, na expressão de Habermas, ou a observação de que

a impossibilidade de fragmentação desses direitos decorre diretamente da compreensão de que

eles são requisitos indispensáveis ao fluxo das comunicações que, por sua vez, possibilitam a

existência da própria sociedade, como sublinha Luhmann, são posições que reforçam a ideia

de que, numa visão sistêmica, tendo como pano de fundo o paradigma do Estado Democrático

de Direito, todos os direitos dotados de essencialidade, sejam liberais-individuais, políticos ou

sociais, são imprescindíveis à manutenção e ao aperfeiçoamento das instituições

democráticas, sobretudo nas jovens democracias.

Com efeito, na perspectiva teórica acolhida neste trabalho, seja de matriz

eminentemente sistêmica, seja de viés estritamente discursivo, os direitos fundamentais não

podem ser cindidos. A essa conclusão de pode chegar se se analisar o momento histórico em

que surgiram ou mesmo o modo como adquiriram pretensão de efetividade no cotidiano dos

cidadãos. Além do que já se afirmou ao longo deste trabalho, é indiscutível que a fruição de

um direito implica a garantia de outros, porquanto é insustentável que se insista numa visão

meramente analítica e cartesiana dos direitos fundamentais, dissociada de qualquer base

empírica e mesmo pragmática.

No mesmo sentido, Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2007, p.237) explica que não

merece respaldo a pretensão de se apartar os direitos individuais dos direitos sociais, como

acontece na discussão sobre a extensão ou não do disposto no art. 60, § 4º, inciso IV, da

Constituição Brasileira aos últimos. Se ambos os tipos de direitos revestem-se de

fundamentalidade para o regime democrático, por que seria de se pensar tratamento

diferenciado no status constitucional de cada uma das tipologias? Seria como considerar que o

sistema circulatório humano pode existir separadamente do sistema respiratório, para usar a

metáfora sugerida pelo referido autor.

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Apresentadas algumas das classificações mais usuais dos direitos fundamentais, em

seguida será abordada criticamente a classificação “bipolarizada” dos direitos fundamentais,

que os distingue entre negativos e positivos. Antes, contudo, torna-se necessário esclarecer

que, acolhendo a teoria da indivisibilidade dos direitos humanos, optar-se-á, para fins de

uniformização terminológica e para melhor compreensão do tema, pela categorização dos

direitos fundamentais da pessoa humana em quatro grupos: os direitos individuais, os direitos

políticos, os direitos sociais e os direitos econômicos (NEUENSCHWANDER

MAGALHÃES, 2002b, p.22).

4.4 O custo da implementação dos direitos fundamentais e as repercussões disso para os

sistemas jurídico, político e econômico

Na esteira do que se expôs neste trabalho sobre os direitos fundamentais e as

difundidas classificações fragmentadoras de sua própria fundamentalidade, a crítica ora

dirigida às tradicionais subdivisões dos direitos fundamentais centra-se no fato de que, ao

levar em conta a espécie de bem tutelado por tais direitos ou a matriz histórica que os

conceberam, não raro elas geram outras classificações que tendem a limitar a importância e a

efetividade de alguns tipos de direitos fundamentais, como acontece com alguns dos direitos

condicionantes, v.g., direito à saúde, à educação e à assistência social. Ocorre que à clássica

diferenciação entre direitos de liberdade ou de defesa e direitos sociais correlacionou-se a

distinção entre direitos negativos e positivos.

Como se viu, tanto Marshall, ao classificar o desenvolvimento da cidadania nos níveis

civil, político e social, correlacionando-os com os respectivos períodos históricos em que tais

direitos foram reconhecidos, como Vasak, ao apresentar a idéia de direitos subdivididos em

ondas geracionais, que, posteriormente, foi desenvolvida por Norberto Bobbio (1992),

inovaram. Seriam direitos de primeira geração aqueles de natureza eminentemente liberal,

como a liberdade de expressão e de participação política; de segunda geração seriam os

direitos sociais, econômicos e culturais, típicos do estado social; já na terceira onda de direitos

estariam os direitos de solidariedade e fraternidade. Alguns autores, como Paulo Bonavides,

incluem a quarta e a quinta onda geracional de direitos.

Pela tradição que se consolidou no tratamento da questão pelos juristas brasileiros, os

direitos positivados – ou declarados – sob a égide do paradigma liberal, havidos como direitos

de defesa ou de liberdade, são compreendidos como negativos, pois dependeriam apenas de

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uma abstenção do Estado, que deveria tão-somente permitir ao cidadão usufruir de tais

direitos. Os direitos nascidos no paradigma do Estado Social, ao contrário, os chamados

direitos sociais de segunda geração, são assimilados como direitos positivos, uma vez que, no

âmbito dessa classificação, apenas eles demandam um agir estatal para que o cidadão usufrua

o bem conforme lhe assegure o direito correspondente.

A classificação, então, fez incutir na cultura jurídica brasileira que apenas os direitos

fundamentais positivos seriam onerosos, pois o gozo correspondente dependia de uma ação do

Estado. Ao passo que os direitos de liberdade seriam negativos e, por isso, não gerariam ônus

ao Estado, os direitos sociais, de feição positiva, só se efetivariam mediante dispêndio –

inclusive financeiro – do ente estatal que se obrigaria a entregar a prestação devida ao

indivíduo ou à coletividade.

Entretanto, tal conclusão parte de premissas equivocadas e sua aplicabilidade é aqui

questionada, sobretudo pelas consequências nocivas ao desenvolvimento da cidadania no

cenário político-jurídico nacional pós Constituição de 1988. Com efeito, partilha-se o

entendimento de que “o primeiro passo a ser dado pela doutrina é a difusão de que todos os

direitos fundamentais possuem uma dimensão negativa e uma prestacional e que todos, sem

exceção, „custam dinheiro ao erário‟” (SOUZA CRUZ, 2007, p. 335).

Ao comentar a Constituição Brasileira de 1946, Pontes de Miranda abordava a

diferenciação entre direitos fundamentais positivos e negativos. Entretanto, já nessa época o

ilustre jurista advertia que essa classificação só atende à distinção acerca do modo pelo qual a

fruição do bem assegurado pelo direito é viabilizada pelo Estado, uma vez que os direitos em

geral, como os direitos de liberdade, possuem conteúdo positivo que se reflete na

possibilidade da tutela jurídica comum de todas as categorias de direitos. Nas palavras do

autor (PONTES DE MIRANDA, 1963b, p. 277):

A defesa pela negação, a afirmação do dever estatal, ou de todos, quanto às

abstenções, não exaure a tutela jurídica dos direitos fundamentais. Quando se

distinguem direitos fundamentais positivos e direitos fundamentais negativos apenas se alude ao papel do Estado na prestação, sem se fundar qualquer teoria científica do

conteúdo só negativo dos direitos fundamentais.

Conforme rememora Torres (2000, p.170), Georg Jellinek no século XIX já observava

que também os direitos de liberdade ostentam status positivo: a garantia da existência da

jurisdição, por si só, já é suficiente para caracterizar a faceta positiva desses direitos. Não

bastasse a prestação jurisdicional, o Estado deve garantir também positivamente a fruição das

liberdades por meio da polícia, das forças armadas, da diplomacia ou de outro serviço público.

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Em outras palavras, a partir desse exemplo já se observa que disponibilizar a fruição de

direitos implica a existência de ações públicas – políticas públicas – que a viabilizem.

Isso porque como o ente que se obriga a prestar os direitos sociais, via de regra, é o

Estado,116

o dispêndio financeiro para viabilizar o acesso do cidadão às respectivas políticas

públicas para a consecução dos direitos sociais tornou-se o mais corrente óbice à

correspondente efetivação de tais direitos.117

Em razão de serem as demandas ilimitadas e os

recursos escassos, devem ser estabelecidas prioridades na concretização progressiva dos

direitos fundamentais, sejam direitos liberais, sejam direitos sociais, uma vez que a nota de

fundamentalidade os coloca no mesmo nível de essencialidade. Vale ressaltar, nesse

particular, a análise Cruz (2006, p.145) a propósito desse assunto:

A democracia radical exige o direito de todos participarem deliberações que

certamente influenciam seu cotidiano e sua visão de vida digna. Assim, não há como

tolerar que discursos de fundamentação (legislação) e de aplicação (jurisdição) não

sejam necessariamente filtrados pelos direitos fundamentais, nos quais certamente se

insere a perspectiva do conceito de mínimo existencial do indivíduo, os direitos

fundamentais sociais são requisitos procedimentais da democracia.

Entretanto, de tão arraigada e difundida a ideia de que alguns direitos são negativos e

não oneram os cofres públicos, não resta evidente, aos olhos do cidadão, que a concretização

de um direito em detrimento de outro é uma questão de escolha. Tal escolha, como se

pretende expor neste trabalho, se dá no âmbito político, administrativo e orçamentário e pode

ser revista ou exigida judicialmente conforme o caso. Essa é a questão que se problematiza e

que exigiu a exposição da teoria do custo dos direitos (vide 4.3.2 supra). Isso porque a

obscura inferência de que existiriam direitos assegurados independentemente de qualquer

dispêndio financeiro enfraquece a mobilização social em torno da concretização daqueles

direitos ditos positivos por ocasião das escolhas políticas da administração pública.

Cumpre consignar que essa tradicional classificação interessa ao poder público na

medida em que teria o condão de distinguir entre os direitos fundamentais, que seriam de

116

Há propostas teóricas formuladas no sentido de que as ações tendentes a garantir direitos sociais não devem

ser uma primazia do Estado para as parcelas menos favorecidas da população. Teubner (2006) é um dos autores

que trabalha essa visão menos estatista, por assim dizer, sustentando que nas sociedades hipercomplexas da

contemporaneidade o direito – e a garantia dos direitos – devem ser assegurados tanto pelo Estado, quanto pelas

organizações não estatais. A temática não será abordada neste trabalho, em razão dos limites já conhecidos.

Entretanto, é pertinente salientar que, no caso brasileiro, como no de outros países em desenvolvimento, em que

os pressupostos e as prestações do Welfare State não se realizaram, como na Alemanha ou nos Estados Unidos,

por exemplo, não se pode negar que a atuação do Estado Democrático e Social de direito brasileiro, no sentido

de assegurar direitos, é essencial à própria sobrevivência do regime democrático como se pretende sustentar ao

longo deste trabalho. 117

Aqui se contextualiza a ampla utilização, pelos juristas brasileiros, da teoria que se convencionou chamar de

doutrina da reserva do possível.

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pronto exigíveis pelo credor, e os que não admitem essa sindicabilidade imediata, uma vez

que só a omissão do Estado poderia ser sanada de plano, mediante decisão judicial, inclusive,

sem análise prévia das possibilidades reais ou materiais para tanto.

Como se afirmou anteriormente, o reconhecimento de direitos econômicos e sociais

dá-se em complementação aos direitos tipicamente liberais, até porque o reconhecimento

dessa nova categoria de direitos representou uma reação à crise enfrentada pelo modelo

capitalista liberal iniciada no fim do século XIX e intensificada na primeira quinta parte do

século XX. Nesse período, as grandes empresas, os monopólios, o protecionismo e os

sindicatos iniciaram a destruição inapelável do mercado como mecanismo regulador do

sistema econômico; não bastassem tais fatores, as consequências da Primeira Guerra Mundial

tornaram inexorável a instabilidade econômica que deu azo à grave depressão nos anos trinta.

A adaptação do capitalismo aos novos desafios deu-se sob a forma do Estado

intervencionista, nos termos da proposta político-econômico-social elaborada por John

Maynard Keynes que tinha por objetivo reestabilizar o modelo capitalista. Como já se expôs

neste trabalho (4.2 supra), em virtude do contexto social, político e econômico da época, o

liberal-capitalismo via-se ameaçado por sua própria desestabilização – ou estagnação –, assim

como pelo avanço da ideologia marxista, que ganhava terreno com os desdobramentos da

Revolução Russa. O que sobressai em importância na visão keynesiana,118

em termos bastante

objetivos, é a preferência por perder parte da liberdade econômica em prol da manutenção da

liberdade individual ameaçada por um regime coletivista (GIACOMONI, 2007, p.22).

Nessa perspectiva, a assunção de funções econômicas pelo Estado ocorrida na

passagem para o paradigma intervencionista implicava o exercício da função distributiva pelo

próprio Estado e isso, via de consequência, demandou o reconhecimento de direitos

econômicos e sociais, a serem concretizados pelo exercício de outra função econômica do

Estado intervencionista, decorrente de seu potencial de alocar os recursos captados no âmbito

fiscal.

Na semântica habermasiana (1992, p. 453), que tem como ponto de partida a

perspectiva de mundo da vida, as relações de troca entre o indivíduo e a administração pública

que se realizam por meio da transformação dos impostos em prestações – poderia acrescentar-

118

Segundo Faria (2004, p.115-116) as políticas inspiradas em Keynes propiciaram o advento de um círculo

virtuoso entre o aumento de salários reais, elevação da produtividade e redução das distâncias sociais, pois

contrapunham taxas expressivas de crescimento econômico e programas de bem-estar social às incertezas

geradas pelo sucesso temporário das diferentes formas de fascismo e suas deletérias consequências. Além disso,

o caráter redistributivo dessas políticas proporcionou um ambiente fértil à difusão da confiabilidade nessa forma

de estado regulador que perdurou até os anos setenta.

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se: em serviços públicos organizados em políticas públicas voltadas à concretização dos

direitos – consolidam os papéis sociais de “cliente” das burocracias públicas – ao usufruírem

dos serviços prestados pelo Estado – e de cidadão quando lhe são direcionadas decisões

políticas em troca do apoio político-eleitoral, ao que o autor chama de “lealdade do povo”.

Conquanto o comentário do autor se direcione ao Estado Social de direito, o raciocínio ainda

se aplica ao Estado Democrático de Direito, sobretudo nos países em desenvolvimento ou

periféricos, nos quais há um déficit na concretização das promessas do Estado Social.

A propósito disso, é bom que seja ressaltado desde já que o orçamento público, como

meio pelo qual o Estado exerce sua função econômica de alocar os recursos públicos e assim

realizar ações públicas dos mais variados tipos, é um valioso instrumento para a viabilização

das políticas públicas capazes de tornar efetiva a fruição dos bens assegurados pelos direitos

fundamentais. Isso porque na perspectiva aqui apresentada assume-se a assertiva de que a

concretização de direitos fundamentais, sejam eles quais forem, gera custos – sociais e

financeiros – à administração. Pertinentes, neste contexto, alguns esclarecimentos sobre a

teoria dos custos dos direitos e as formulações político-orçamentárias.

Ao propor uma teorização acerca dos “custos dos direitos”, Cass Sunstein e Stephen

Holmes (1999) abstraem os aspectos axiológicos dos direitos e buscam um enfoque

meramente descritivo, preocupando-se com a inquirição acerca de quais interesses uma

sociedade politicamente organizada protege (rights in legal sense).

Os autores, portanto, limitados à perspectiva descritiva dos direitos em geral – até

porque as obrigações morais só terão custos se estes forem reconhecidos em lei –, defendem o

entendimento de que a efetivação de todos os direitos gera dispêndio de recursos materiais,

não havendo como se falar em direitos meramente negativos ou exclusivamente positivos.

Vale dizer, todos os direitos são institucionalizados, justamente por dependerem da atuação

estatal para que sejam verificados no plano fático, até porque, em última análise, a

exigibilidade judicial desses direitos também depende dessa atuação.

Na visão desses autores, os cidadãos só têm seus direitos satisfeitos, ainda que

conferidos pelo ordenamento jurídico num dado contexto sociopolítico, se o governo é capaz

de taxar suficientemente e entregar ao destinatário a prestação correspondente. Os “direitos

positivados” (legal rights) só existem na realidade se e quando o Estado pode custeá-los.

Os direitos havidos pela teoria tradicional como “negativos” também têm custos

sociais, como, por exemplo, aqueles decorrentes da garantia dos direitos do acusado no curso

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do processo penal, que configura um custo indireto e pressupõe dispêndio de recursos

públicos.

Nessa perspectiva, os direitos de liberdade em geral têm custos indiretos, mas de toda

sorte há o dispêndio financeiro para sua implementação. Um exemplo emblemático

apresentado pelos autores é a exigência do uso de capacete aos motociclistas. Conquanto a

regra tenha por fim preservar a segurança dos condutores em geral, sua implementação foi

motivada pelas altas cifras desembolsadas pelo Estado para custear as despesas hospitalares,

assistenciais e previdenciárias daqueles que se acidentavam nas vias de tráfego. Com efeito, a

restrição da liberdade do cidadão em transitar pelas ruas de motocicleta, sem o capacete,

passou a ser bastante razoável em face da economia que a medida gerou aos cofres

públicos.119

A fruição do direito à propriedade, v.g., só é possível em razão da atuação preventiva

ou repressiva do Estado em prover segurança ou mesmo em dispor de aparatos contra

intempéries naturais. Na perspectiva da teoria do custo dos direitos, se os impostos são pagos

por todos – inclusive por aqueles que não dispõem de propriedades cujo gozo será assegurado

pela ação governamental –, o cidadão-contribuinte deve participar da escolha acerca de quais

direitos serão objeto da tutela prioritária do Estado. Para muitos, será preferível um

investimento maior em saúde e educação, por exemplo, a gastos astronômicos com os custos

indiretos de outros direitos de liberdade. Nessa visão liberal crítica do próprio liberalismo, o

fato de todos serem onerados com os custos da proteção ao direito de propriedade quando esse

direito não é usufruído por todos assume quase que o status de um “tabu cultural”, uma vez

que não é objeto de maiores questionamentos pela sociedade. Vale dizer, se isso é tão óbvio,

por que o mito de que existem direitos negativos se mantém? Quais motivos levam as

pessoas, em geral – e a grande maioria dos operadores do sistema jurídico – a acreditar que

existem direitos “que nascem em árvores” e são implementados independentemente de

qualquer atuação estatal?

Algumas razões são apontadas pelos autores. Numa visão conservadora, ignorar o fato

de que as liberdades privadas geram custos ao Estado deixam encobertas as discussões sobre

as opções políticas – e econômicas – levadas a efeito pelo poder público, o que acaba por

garantir a conservação máxima desses direitos que, via de regra, referem-se à liberdade

119

Raciocínio semelhante chegou a ser encampado pela imprensa nacional por ocasião da entrada em vigor da

Lei nº 11.705/2008, que ficou conhecida como “Lei Seca”. Questionamentos quanto à constitucionalidade da

medida à parte, fato é que, na fase inicial de sua vigência, o número de acidentes sofreu considerável redução e

algumas manchetes de periódicos de ampla circulação noticiaram a cifra que o Sistema Único de Saúde havia

deixado de despender em virtude da diminuição do número de acidentes automobilísticos.

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individual e à propriedade privada, em detrimento do avanço na efetivação dos direitos sociais

que beneficiaria, potencialmente, toda uma coletividade. Na análise liberal-progressista, por

outro lado, é interessante que se continue a ignorar o custo indireto das liberdades individuais,

porque há sempre o risco de que, desvelado o mito, as garantias subjacentes aos direitos

humanos em geral sejam vulneradas, uma vez que a própria sociedade poderia se movimentar

em favor da redução do compromisso com a respectiva proteção desses direitos, o que

configuraria um retrocesso.

A conclusão a que conduz o raciocínio proposto pela teoria do custo dos direitos e,

nesse particular, guarda afinidade com os objetivos deste trabalho é a de que não se deve falar

em redução ou minimização da intervenção estatal em prol da efetividade dos direitos

assegurados aos cidadãos desde o Estado Social. A proposta discursiva seria, então, de

redimensionar a extensão da proteção devotada aos direitos eminentemente liberais, tendo

como parâmetro as condições econômicas de cada sociedade e a participação dos cidadãos nas

deliberações correlatas como atores organizados ou não que integram a esfera pública.

É relevante notar, nesse ponto, que aferir custos permite agregar mais qualidade às

escolhas político-orçamentárias sobre quais direitos proteger, a fim de evitar o que a doutrina

italiana nominou de “escolhas trágicas”. Nada obstante, os autores estadunidenses deixam

evidente o repúdio a uma leitura economicista dos direitos fundamentais – assim como a

perspectiva sistêmica aqui adotada como referência – ao afirmar que: “dessas considerações

não se pode concluir que os direitos devem ser misturados com todas as outras coisas dentro

de uma gigantesca máquina capaz de avaliar a relação custo-benefício criada e operada por

economistas” (tradução livre).120

As escolhas sobre onde e como gastar – ou investir – o dinheiro público devem ser

permeadas por um senso ético-valorativo, até porque, no fundo, implicam uma movimentação

das riquezas sociais, que pode caracterizar redistribuição ou reconcentração. A partir dessa

consideração, a dicotomia entre direitos positivos e negativos muitas vezes contribui para

ocultar os fundamentos de justiça fiscal distributiva o país adota no plano concreto. Como o

Estado é indispensável ao reconhecimento e à efetivação dos direitos, e considerando que seu

funcionamento é premido por contingências de recursos econômico-financeiros captados

junto aos indivíduos singularmente considerados, infere-se que os direitos só existem onde há

fluxo orçamentário que viabilize sua concretização. Assim, a asseguração tanto dos direitos

enfeixados pela autonomia privada quanto daqueles relativos à autonomia pública é

120

“Of course, it does not follow that rights must be tossed along with everything else into a gigantic cost-benefit

calculating machine created and operated by economists” ( SUNSTEIN, 1999, p.102).

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sustentada pela ação pública e deve submeter-se à deliberação da coletividade. Nesse ponto,

torna-se relevante a proposta habermasiana relativa aos espaços públicos de deliberação

abertos pela via da esfera pública, tema que será tratado a seguir.

Importante frisar que, como todos os direitos são sempre frutos de uma opção político-

social consolidada nos orçamentos, a efetivação correspondente é antecedida,

necessariamente, por escolhas que, por sua vez, são frutos de negociações havidas no âmbito

do sistema político, sob clima de conflituosidade entre esferas plurais, com interesses

antagônicos, nas quais, lamentavelmente, nem todas as partes encontram-se em situação de

igualdade, o que, não raro, gera distorções significativas.121

Outra conclusão relevante a que nos conduz a “teoria dos custos dos direitos” é de que

não há direitos ou liberdades privadas, sob o ponto de vista de sua efetivação, uma vez que o

exercício de todo e qualquer direito depende fundamentalmente das instituições públicas. Isso,

via de consequência, torna o direito igualmente público e, por isso, nenhum deles pode ser

absoluto, pois as escolhas são inescusáveis e as liberdades ditas privadas geram custos e têm

caráter público.

A par disso, evidencia-se que a opção pela alocação de recursos para uma ou outra

ação pública é o essencial para que o direito correspondente se torne exigível em toda sua

dimensão. Pelo que expuseram os autores – e, por que não dizer, desde Georg Jellinek – é

inegável que assegurar direitos depende da ação pública e gera ônus para o Estado.

A despeito disso, como assinala Cruz (2006):

No debate sobre a efetividade dos direitos sociais, esta tem sempre esbarrado no

argumento da reserva do possível e no princípio da reserva parlamentar em matéria

orçamentária. Em outras palavras, apenas as prestações positivas exigíveis ao Estado

no tocante a direitos sociais e econômicos se submeteriam aos seguintes

condicionamentos: a) gradualidade na sua concretização; b) disponibilidade

121

A propósito disso, relevante registrar a proposta de Neil Komesar, na obra Imperfect alternatives: chosing

institucions in Law, economics anda public policy, que lança um novo olhar para a reconstrução da teoria

processual no âmbito dos interesses coletivos ou coletivizáveis, considerando para tanto aspectos da teoria

política. O ponto nodal da defesa dos bens que constituem os direitos coletivos ou coletivizáveis, segundo o

autor, relaciona-se à questão da respectiva representação, vale dizer: o modo como tais interesses são representados nos vários processos sociais – que compreende três instâncias decisórias de políticas públicas:

econômica, política e judicial. O que move essa preocupação, na obra do autor, é a constatação – empírica,

inclusive – sobre a dificuldade de representação no que diz com os interesses coletivos – e os direitos

fundamentais que daí emanam – porque são dispersos na sociedade, o que diminui a capacidade de mobilização

e representação em cada uma das instâncias decisórias de políticas públicas. Os interesses relacionados ao

mercado, ao contrário, reúnem características que lhes asseguram um nível de concentração muito maior, o que

explica o êxito de tais interesses nas referidas instâncias. A proposta de Neil Komesar guarda significativa

afinidade com o tema aqui discutido, entretanto não será abordada neste trabalho em razão do recorte teórico

escolhido.

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financeira orçamentária prévia; c) liberdade de conformação pelo legislador; d)

insuscetibilidade de controle jurisdicional de programas políticos legislativos.

Cabem aqui duas observações. A primeira é a anotada por Souza Cruz (2006) e diz

respeito à crítica ao raciocínio simplista, quase sempre apresentado de modo genérico, de que

um direito fundamental pode ter sua implementação inviabilizada por questões orçamentárias.

Isso não significa que o espectro do sistema jurídico não seja condicionado por fatores

econômicos; o alcance da observação limita-se ao entendimento de que “a cidadania é

incompatível com ingerências bloqueadoras e destrutivas de particularismos políticos e

econômicos na reprodução do direito. As influências políticas e econômicas no sistema

jurídico subordinam-se aos critérios estabelecidos pelo próprio sistema jurídico” (NEVES,

1994, p.254). Em razão disso é que as relações intersistêmicas que envolvem direito, política

e economia assumem tamanha relevância para a otimização da utilização dos procedimentos e

instrumentos capazes de influenciar na ampliação do nível de concretização dos direitos

fundamentais no Brasil.

A segunda observação decorre parcialmente da primeira. Como já exposto neste

trabalho, o processo de positivação de direitos fundamentais ocorreu de forma gradativa,

conforme o modelo estatal de cada onda de juridificação. É sabido que, num autêntico Estado

Democrático de Direito, quando um direito ingressa no sistema jurídico como expectativa

normativa congruente e generalizável, cabe ao direito desempenhar sua função de estabilizá-

la. Vale dizer: pressupõe-se que já tenha havido o planejamento necessário para prover os

meios necessários para tornar tal direito efetivo e que estejam acessíveis em caso de

violação.122

No entanto, a cidadania, como mero reconhecimento de direitos sociais pelo

sistema político, por vezes funciona como um “termo-questão de política simbólica”

(NEVES, 1994, p.253), não havendo tanto compromisso com a efetiva universalização do

acesso aos direitos que a preenchem de significado. Como se verá oportunamente, nesse caso,

a declaração de direitos no plano constitucional muitas vezes é despida de força normativa no

sentido estrito, em razão das limitações factuais – históricas, políticas, sociais e culturais –

para tanto. Esse fenômeno, portanto, realça a função do sistema jurídico e, mais

especificamente, do Poder Judiciário em intervir na implementação das políticas públicas

direcionadas à concretização de direitos fundamentais. Não se nega que há uma sobrecarga no

sistema jurídico que deve ser aliviada pela maior participação do público nas deliberações e

no controle social das ações públicas correlatas. Nada obstante, não se afasta a necessidade –

122

Exemplo disso são os amplos debates e negociações que estão sendo travadas no cenário político

estadunidense em virtude da proposta do governo de criar um sistema de saúde custeado pelo poder público.

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e licitude – de um controle contramajoritário na seleção e implementação dessas políticas

públicas quando as escolhas da administração desconsideram as deliberações políticas

antecedentes e, em última análise, o código próprio do direito.

Atendo a discussão, neste momento, à primeira questão, observa-se que as objeções

orçamentárias só são utilizadas pelo administrador para justificar sua inércia em promover a

concretização dos direitos sociais. Não bastasse a crítica anotada no parágrafo anterior, nessa

hipótese a opção é ainda mais inadequada. Seria viável acolher o argumento de que os direitos

sociais são onerosos porque são de “natureza” positiva?

É indubitável que garantir aos cidadãos o exercício do direito ao voto, por exemplo,

implica uma ação pública no sentido de viabilizar o curso regular das eleições por meio do

uso de equipamentos tecnológicos, disponibilização dos locais onde os votos serão

depositados, segurança para que os eleitores se locomovam até esses locais, aplicação de

recursos de toda ordem para assegurar a lisura da apuração e, em última análise, a manutenção

de um Tribunal Regional Eleitoral que funciona ininterruptamente para expedir orientações e

dirimir os eventuais conflitos surgidos no decorrer da disputa. Isso sem contar o

financiamento dos partidos políticos registrados no TSE.123

Poderia se objetar que a existência de eleições periódicas é essencial ao funcionamento

do regime democrático. Todavia, é inegável que assegurar ao cidadão – aqui eleitor – acesso

aos recursos necessários a sua subsistência condigna, à educação e à saúde é imprescindível

para que ele, inclusive, desempenhe a contento sua função no sistema político, igualmente,

essencial ao funcionamento do regime democrático. Não há como se sustentar que os

cidadãos estejam sendo estimulados a participar da vida política de um país se não há meios

para exigir que as políticas públicas concretizadoras de direitos sociais sejam implementadas

pelo ente estatal – ainda que progressivamente. O argumento de que a concretização desses

direitos – e apenas desses direitos – oneram os cofres públicos não pode ser aceito sem que,

no mínimo, reflita-se sobre a questão e se analise quais políticas um determinado Estado

optou por tornar concretas.

Sabe-se que a teoria do custo dos direitos, como proposta por Sunstein e Holmes

(1999) – já amplamente difundida em trabalhos publicados no Brasil – deve ser ajustada à

realidade da sociedade a que se pretende aplicá-la, até porque a realidade socioeconômica de

123

Os repasses do Fundo Partidário são gerenciados e distribuídos pelo TSE, a partir do disposto nos artigos 40 e

41 da Lei nº Lei 9.096/95. Conforme dados divulgados pela justiça Eleitoral, a contar do exercício de 2000, por

exemplo, mais de R$ 510 milhões foram distribuídos às tesourarias partidárias.

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um país é determinante na eleição de quais ações públicas serão prioritárias e quais serão

implementadas gradativamente.124

Entretanto, ter claro que todos os direitos pressupõem dispêndio financeiro auxilia na

compreensão de que é necessária maior participação popular na escolhas das prioridades

político-orçamentárias, na transparência das formulações orçamentárias e na

responsabilização do administrador por ocasião da execução desse orçamento público –

questões que serão tratadas oportunamente. É por esse motivo que as proposições da teoria

dos custos dos direitos são potencialmente favoráveis ao fortalecimento do regime

democrático, num contexto em que argumentos de ordem institucional ou pragmático-

econômicos têm inviabilizado, quase que como regra, a efetivação dos direitos sociais. No

âmbito judicial, a maioria dos julgadores reluta, ou mesmo se nega a examinar questões

relacionadas à regularidade das escolhas político-orçamentárias e, diante da alegação genérica

de falta de recursos para concretizar um direito social cuja violação foi levada às barras do

Judiciário, não se sentem abalizados para aferir se há ou não recursos e qual o impacto desse

eventual dispêndio nas finanças do Estado.

Apesar disso, há alguns julgados recentes que levam em conta a teoria dos custos dos

direitos para estabelecer limites para a judicialização dos direitos sociais.125

Entretanto, como

124

Não se desconhece, todavia, que o balanço entre necessidades e preferências é algo tormentoso. Mesmo que a

deliberação pela escolha seja precedida de estudos diagnósticos, por exemplo, como recomendam estudiosos da

ciência política. Mesmo que se defina um conjunto claro de carências a serem sanadas, se estabeleçam

parâmetros de ajuste entre as imposições da acumulação e os reclamos da sociedade, há ampla margem de divergência sobre quanto dessas privações são obrigação do Estado prover e em que condições (ABRANCHES,

1987). Assim, volta-se à ideia de que tais escolhas devam se concretizar no âmbito do sistema político e,

conforme haja desvios constatáveis pelo controle externo, é que se deva viabilizar a sindicabilidade jurisdicional

dessas escolhas, independentemente de se tratar de um direito havido classicamente como negativo ou positivo.

Essa questão será mais bem explicada no próximo capítulo, no qual serão tratados os questões de política

orçamentária e a necesidade de se estabelecer critérios para que o administrador não veja na peça orçamentária

uma simples possibilidade de gastar ou não. Nesse ponto, o Poder Judiciário deve exercer seu papel

contramajoritário para, conforme as peculiaridades de cada caso, fazer valer a deliberação política que atende à

demanda de generalização dos direitos da cidadania. 125 Exemplo relativamente recente é a decisão proferida pelo STF em Pedido de Suspensão de Liminar (SL 228),

em ação proposta pelo Ministério público Federal em litisconsórcio com o Ministério público do Ceará. Nesse

caso, após frustradas as tentativas de composição extrajudicial, todas devidamente documentadas no inquérito

civil que precedeu a propositura da ação civil pública – iniciativas que, inclusive, refletiram na lei orçamentária

do Ceará com a previsão de recursos para a implementação das políticas públicas na macrorregião de Sobral.

Frustrada a exigibilidade do direito à saúde, que, na hipótese sob comento, dizia respeito à construção de unidade

hospitalar para atendimento de pacientes em regime de terapia intensiva na referida macrorregião do Sistema

Único de Saúde, o pedido formulado na ação civil pública foi liminarmente deferido em primeira e segunda

instâncias. O argumento encampado pela decisão do Supremo Tribunal Federal que manteve a concessão da

liminar levou em consideração o argumento de que havia previsão orçamentária para tanto e estava patenteada a

necessidade desse tipo de atendimento, até porque a política pública estava também prevista nos protocolos e

princípios que regem o SUS e não se tornaram ações públicas em razão da negligência do gestor em nível federal

que não se mobilizou para executar os valores destinados à ação. Nas palavras do relator: “Teses, muitas vezes

antagônicas, proliferaram-se em todas as instâncias do Poder Judiciário e na seara acadêmica. Tais teses buscam

definir se, como e em que medida o direito constitucional à saúde se traduz em um direito subjetivo público a

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o enfoque deste trabalho dirige-se predominantemente às condições em que se realizam tais

escolhas político-orçamentárias ocorridas no âmbito do sistema político e à necessidade de se

“levar a sério” os orçamentos públicos, passa-se ao exame da concepção teórica em torno da

esfera pública pluralista e seu âmbito de atuação no cenário político-jurídico democrático.

4.5 Constituição e esfera pública no Estado Democrático de Direito

A constituição como aquisição evolutiva da sociedade moderna forneceu

fundamentação teórica e factual à diferenciação funcional entre os sistemas jurídico e político.

Nada obstante, os níveis de diferenciação alcançados pelos Estados Nacionais variam

conforme as condições sociais, políticas e históricas de cada ente estatal, circunstância que se

torna relevante no caso brasileiro.

prestações positivas do Estado, passível de garantia pela via judicial. As divergências doutrinárias quanto ao

efetivo âmbito de proteção da norma constitucional do direito à saúde decorrem, especialmente, da natureza

prestacional desse direito e da necessidade de compatibilização do que se convencionou denominar de 'mínimo

existencial' e da 'reserva do possível' (Vorbehalt des Möglichen). [...] Nessa dimensão objetiva, também assume

relevo a perspectiva dos direitos à organização e ao procedimento (Recht auf Organization und auf Verfahren),

que são aqueles direitos fundamentais que dependem, na sua realização, de providências estatais com vistas à

criação e conformação de órgãos e procedimentos indispensáveis à sua efetivação. Ressalto, nessa perspectiva,

as contribuições de Stephen Holmes e Cass Sunstein para o reconhecimento de que todas as dimensões dos

direitos fundamentais têm custos públicos, dando significativo relevo ao tema da 'reserva do possível',

especialmente ao evidenciar a 'escassez dos recursos' e a necessidade de se fazer escolhas alocativas, concluindo,

a partir da perspectiva das finanças públicas, que 'levar a sério os direitos significa levar à sério a escassez' [...].

Embora os direitos sociais, assim como os direitos e liberdades individuais, impliquem tanto direitos a prestações

em sentido estrito (positivos), quanto direitos de defesa (negativos), e ambas as dimensões demandem o emprego

de recursos públicos para a sua garantia, é a dimensão prestacional (positiva) dos direitos sociais o principal

argumento contrário à sua judicialização. A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos

de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição

de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis.

Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos poderes e o princípio da reserva do

financeiramente possível. Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação

devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, enquanto o Estado tem

que dispor de um valor determinado para arcar com o aparato capaz de garantir a liberdade dos cidadãos

universalmente, no caso de um direito social como a saúde, por outro lado, deve dispor de valores variáveis em

função das necessidades individuais de cada cidadão. Gastar mais recursos com uns do que com outros envolve,

portanto, a adoção de critérios distributivos para esses recursos. Assim, em razão da inexistência de suportes

financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das

políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente,

escolhas alocativas. Tais escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem

atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem 'escolhas trágicas' pautadas por

critérios de macro-justiça. É dizer, a escolha da destinação de recursos para uma política e não para outra leva

em consideração fatores como o número de cidadãos atingidos pela política eleita, a efetividade e eficácia do

serviço a ser prestado, a maximização dos resultados etc.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SL 228 / CE Publicado em 21.10.2008 no . Disponível em <www.stf.jus.br> Acesso em 20.6.2009).

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Antes de examinar as peculiaridades da situação brasileira, no entanto, há que se

ressaltar ainda outra nota que caracteriza as constituições modernas, cuja relevância é

significativa para o tema ora tratado. Trata-se da função de estabelecer procedimentos capazes

de tornar produtivo o dissenso que emana das formas plurais de vida existentes na

comunidade política contemporânea. Isso ocorre porque, no Estado Democrático de Direito,

cabe aos procedimentos constitucionalmente estabelecidos oferecer condições estruturais para

que os diversos discursos, valores, expectativas e interesses que emergem numa sociedade

caracterizada pela pluralidade possam se expressar nas diversas esferas sociais.

Segundo Neves (2008a, p.132), a expressão das tendências plurais e conflitantes que

existem na sociedade se dá em dois níveis: inicialmente, na linguagem cotidiana do mundo da

vida, tais tendências (valores, expectativas e interesses) adquirem um significado político e

jurídico generalizado; já num segundo nível, em que ocorre a “intermediação procedimental e

a pretensão de generalização desses valores, interesses e expectativas como normas vigentes

ou decisões vinculantes”, surge a noção de “esfera pública pluralista” como “arena do

dissenso”.

Não que o desacordo seja estrutural – mesmo porque se pressupõe um consenso

mínimo quanto aos procedimentos que viabilizarão a expressão do dissenso –, mas há

acentuada tensão em torno dos valores, discursos e interesses que se entrechocam nessa arena

em busca de generalização. Assegurar o dissenso, nesse sentido, é permitir que a pluralidade

dessa esfera seja preservada e que funcione como instrumento de generalização de

expectativas a serviço de um regime democrático. A democracia, numa perspectiva sistêmica

– que não distoa, nesse particular da visão discursiva habermasiana –, pode ser concebida

como valor político essencial que pretende assegurar uma ordem comunicativa e pluralista em

face das constantes ameaças de monopolização provenientes da economia e da política

(VALLESPÍN, 2007, p. 27-28).

A noção de esfera pública tem sido aprimorada desde sua concepção inicial na década

de cinquenta, como se verá a seguir. Neste momento, entretanto, faz-se relevante notar que a

concepção de esfera pública adotada como referência neste trabalho condiz com a proposta de

Habermas (1992, 1995, 2003, 2006). Todavia, adotando a proposta de Neves (2008a), a teoria

discursiva é aproximada da vertente sistêmica luhmanniana, o que permite seja ela tratada

como “arena do dissenso” e, portanto, capaz de conservar o dissenso conteudístico que

caracteriza a sociedade complexa da modernidade. Além disso, são considerados os aportes

da teoria política a fim de que a perspectiva de uma esfera pública pluralista possa assumir

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feição que se amolde à prestação que dela se deveria esperar em países em desenvolvimento

como o Brasil: contribuir para a organização e mobilização de grande parte da população que

ainda tem como principal interesse ou demanda a concretização de seus direitos fundamentais.

Estratégias de fortalecimento da esfera pública, voltadas para a formação de grandes ou

pequenos públicos, são importantíssimas, portanto, para que os interesses relativos à

concretização de direitos sociais, por exemplo, possam ser generalizáveis no plano real.

Agregar o adjetivo pluralista à noção de esfera pública, nesse contexto, é fazer valer a

característica contramajoritária de determinadas opções políticas que poderão ser sustentadas

como pretensão de generalização no âmbito jurídico. Ocorre que os interesses relacionados à

concretização de direitos fundamentais, como educação, saúde e assistência social, são

dispersos, ou seja, ostentam pouca coesão no que diz respeito à organização de seus titulares

em prol da respectiva defesa. Isso se dá porque, em regra, a pretensão de generalização desses

direitos não coincide com os interesses do mercado, que funciona como grande aglutinador de

forças na sociedade moderna; tampouco coincide com os interesses do poder burocrático que,

muitas vezes, negligencia os níveis e a qualidade do investimento nessas áreas. A dispersão

desses interesses reflete-se, inclusive, na potencial limitação da capacidade de organização

dos interessados em torno da respectiva defesa. A realidade circundante evidencia que os

direitos sociais – e as tentativas de sua generalização no âmbito jurídico, por exemplo –

correm o risco de serem interpretados a partir do código ter/não ter, dissimulados pela noção

de custo e benefício ou “filtrados” por um código poder/não poder que não dá a devida

importância aos procedimentos constitucionalmente estabelecidos para viabilizar a

manifestação dos interesses predominantes na comunidade política. Daí que a constituição do

Estado Democrático de Direito, além de continuar dando sustentação para a diferenciação

funcional entre direito e política, deve estabelecer procedimentos nos níveis Judicial,

Executivo e Legislativo que instrumentalizem as comunicações provenientes de subsistemas

sociais, como educação, saúde e economia, direcionadas aos sistemas político e jurídico pela

via da esfera pública pluralista. Esse é um dos desafios do Estado Democrático de Direito

apontados por Neves (2008a) e o que mais interessa aos objetivos deste trabalho. Dito isso,

passa-se ao exame do desenvolvimento teórico da noção de esfera pública em Habermas até o

ponto em que surgiram as críticas ora mencionadas.

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4.5.1 Lineamentos históricos e políticos da esfera pública para Jürgen Habermas

Sob o ponto de vista histórico, o autor (HABERMAS, 2006) identifica o surgimento

da esfera pública com o aparecimento da sociedade burguesa do século XVIII. O fenômeno

social que deu origem à esfera pública, assim, pode ser descrito por intermédio da

transformação havida na organização da sociedade com o advento da modernidade. Uma vez

que, nessa época, os integrantes de grupos sociais da burguesia emergente começaram a

ocupar os espaços de debate político, artístico e cultural, até que conquistarem assento junto à

elite político-intelectual de uma sociedade até então marcadamente aristocrática, muito

embora fossem desprovidos de títulos de nobreza.

Entretanto, o declínio dessa esfera pública politicamente engajada coincidiu com o

expressivo crescimento dos meios de comunicação de massa e com o aumento da demanda

pela propaganda publicitária. Para o autor (HABERMAS, 2006), a difusão dos meios de

comunicação massificados fez com que o cidadão se tornasse um potencial consumidor de

informações. A esfera pública, então, viu-se “colonizada” por um processo de massificação

capaz de formar uma opinião não pública, pois manipulada pelas preferências reproduzidas

pela imprensa.

Nesse contexto, a ideia de reestruturação da esfera pública como espaço de debate e de

formação da opinião e da vontade política dos cidadãos ganha especial relevo no processo de

reconstrução da teoria crítica, assim como para a formulação de propostas alternativas acerca

da teoria da democracia, calcadas na participação dos cidadãos no processo político-

deliberativo do ente estatal, como atores políticos.

Já no início do prefácio à edição alemã de 1990 de A mudança estrutural da esfera

pública, Habermas (2006, p.2) explica a necessidade de rever sua teoria a partir da

constatação de que o “horizonte histórico” em que ela foi produzida não lhe possibilitou um

exame adequado da questão. Naquela época, sob auspícios de uma dita “economia social de

mercado”, a Alemanha Ocidental experimentou altos índices de crescimento econômico. A

prosperidade, todavia, gerou mais desigualdade social e aumento do nível da exploração de

classes, razão por que afloraram os movimentos sociais das minorias (negros, mulheres,

homossexuais, entre outras). A reavaliação desse contexto histórico levou Habermas a refletir

sobre as transformações havidas no conceito de esfera pública, desde o seu surgimento como

espaço de discussão pública e sobre qual o seu papel nas democracias contemporâneas.

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As consequências da ação dos movimentos sociais na Europa, que tiverem início nos

fins dos anos sessenta, acabaram por tornar a tese do autor sobre a esfera pública ainda mais

polêmica. Em razão disso, Habermas retomou sua pesquisa e propôs algumas adaptações à

ideia inicial de esfera pública, enriquecendo-a com a teoria do agir comunicativo e,

posteriormente, com a proposta de um terceiro modelo de democracia, como alternativa ao

modelo liberal e ao modelo republicano. Segundo Habermas (1995), a democracia

deliberativa seria capaz de associar ao processo democrático conotações normativas mais

acentuadas que o modelo liberal, sem recair na intensidade das propostas republicanas.

O que se percebe é que a teoria da ação comunicativa aplicada a um modelo

democrático próprio – e ao sistema jurídico – fez com que a política deliberativa não

concentrasse mais suas forças na ação coletivizada de sujeitos, como na formulação original

da esfera pública. O foco da questão fora, então, transferido para a institucionalização dos

procedimentos e dos pressupostos comunicativos capazes de propiciar ao cidadão expressar

suas preferências em face da administração, inclusive (HABERMAS, 1995).

Na obra A teoria da ação comunicativa, o autor (HABERMAS, 1992, p.451-463)

explica que, à dissolução da moral convencional – que supunha uma homogeneidade de

valores e se impunha de modo hierarquizado numa dada comunidade política – sucedeu, na

modernidade, uma moral pós-convencional, que funciona como uma reserva do saber e

caracteriza-se pela pluralidade de valores e conteúdos. O desafio da moral pós-convencional,

nesse contexto, é reestabelecer comunicativamente os liames solidários que antes eram

garantidos por bases valorativas compartilhadas pelas comunidades pré-modernas – o sagrado

e a tradição –, as quais perdem a sua compreensibilidade em meio à pluralidade das formas de

vida surgidas na modernidade. Isso resultou no “desacoplamento entre sistema e mundo da

vida” e, como efeito disso, uma relação de tensão entre tais esferas da sociedade.

As esferas sociais sistêmicas não estruturadas comunicativamente, que para Habermas

são o poder econômico e o poder burocrático, organizam-se sob a razão instrumental. Essa

razão, orientada a fins, se expressa, do ponto de vista dos indivíduos, como agir estratégico,

ou seja, o agir voltado para o sucesso. Nessa perspectiva da implosão da moral convencional,

o direito assume, no seu modo constitutivo ou de coordenação, uma feição sistêmica

contrafactual. Isso ocorre porque a atuação do direito se volta a impedir ou regular a

colonização do mundo da vida pelos sistemas do dinheiro e do poder burocrático.

Do outro lado do “desacoplamento” estão as esferas sociais que constituem o mundo

da vida. Elas não são estruturadas sistemicamente, mas a partir da linguagem cotidiana. Daí

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que, para Habermas, o mundo da vida é estruturado comunicativamente, mantendo-se aberto a

todas as variáveis que não encontram lugar nos sistemas do dinheiro e do poder burocrático,

os quais apenas fomentam e reproduzem o agir estratégico, inspirado na racionalidade

instrumental.

Para Habermas, com o advento da modernidade – a que corresponde a consolidação

do modo de produção capitalista e a superação da noção de uma eticidade comum a grandes

grupos, capaz de orientar e impor comportamentos –, o mundo da vida permanece sob a

ameaça constante de “colonização” pelo poder econômico e pelo poder burocrático.126

De um

lado, o poder econômico, interessado na ampliação dos mercados e orientado sob a lógica do

lucro, tende a minar a espontaneidade do fluxo comunicacional nas esferas que integram o

mundo da vida. Uma preferência minoritária, não vantajosa economicamente, por exemplo,

não seria passível de expressão política e, via de consequência, seria facilmente preterida em

favor de outra preferência que melhor atenda aos interesses do mercado ou poder.

De outro lado, a hiper-burocratização das relações privadas – das esferas de

intersubjetividade propriamente ditas, por exemplo – concorre para ressaltar o potencial de

abertura do mundo da vida à cultura, uma vez que o poder burocrático se apodera dos espaços

de discussão e mina a eficácia dos processos espontâneos de formação da opinião e da

vontade coletiva, esvaziando-os de conteúdo politicamente aferível.

Interessam aos fins deste trabalho, especialmente, as questões relativas à colonização

do mundo da vida salientadas por Habermas que, na leitura descritiva luhmanniana, se

expressa na semântica da corrupção sistêmica de códigos, como se verá em tópico posterior.

Pretende-se trilhar uma linha reconstrutiva capaz de realçar os aspectos da esfera pública

pluralista, aptos em torná-la um vetor para a gradativa concretização das promessas, ainda não

cumpridas, do Estado Democrático de Direito brasileiro. Isso porque a potencialização da sua

capacidade formadora e transformadora da opinião pública pode funcionar como fator

limitador da “colonização” e/ou da “corrupção sistêmica” pelo “poder” ou pelo “dinheiro”.

No entanto, não se pretende desconsiderar os limites reais – políticos, econômicos e históricos

126

Os sistemas sociais também podem ser alvo da colonização sistêmica, ao que Habermas (1992, p.469 e ss.)

chamou de colonização interna, quando o direito, por exemplo, passa a funcionar pela lógica do sistema

econômico ou quando o poder burocrático – a administração – vale-se do sistema jurídico para regular campos

atribuíveis à autonomia privada. Exemplos vários são encontrados na história mundial recente e, com maior

facilidade, no caso brasileiro. A excessiva regulamentação de aspectos da autonomia levada a efeito no Estado

Social é um fenômeno que Habermas descreveria como resultante da colonização interna em que o direito deixa

de ser um mediador e se propõe atuar como regulador de condutas que, a rigor, extrapolam sua função no regime

democrático.

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– do Estado Brasileiro ente estatal, tampouco as dificuldades para a construção da pluralidade

dentro da esfera pública brasileira.

Retomando o processo “evolucionário” da construção teórica habermasiana, observa-

se que, com a publicação de Direito e democracia em 1992, o autor (HABERMAS, 1997)

enlaça a questão que o levou à construção da teoria da ação comunicativa – como são

formados os agentes comunicativamente competentes e quais as condições de desempenho

desses agentes – com a noção de como se dá a formação e da operacionalização da esfera

pública. Para Habermas (2006), toda a carga de legitimação repousa sobre a democracia, pois

é o processo democrático que se volta, concomitantemente, para as garantias das liberdades

dos cidadãos e para as condições nas quais eles se associam nos processos discursivos

orientadores de ações do sistema político e legitimadores dos seus resultados sempre que eles

sejam racionais, ou seja, sempre que sustentáveis no debate público.

Ao expor sobre a institucionalização da sociedade civil, sob a ótica da tensão existente

entre a positividade e a normatividade do direito, o autor reafirma que a instância geradora de

poder legítimo é a esfera pública, a dimensão da sociedade civil em que se dá o intercâmbio

discursivo capaz de repercutir na formação da opinião e da vontade coletiva, contribuindo

para que o poder comunicativo alcance o poder administrativo e possa influenciar nas

decisões da administração. A propósito disso, o autor (HABERMAS, 2006, p.33) esclarece

que o núcleo institucional da sociedade civil é constituído:

[...] por associações voluntárias que estão fora dos âmbitos do Estado e da

economia, e que – para citar unicamente alguns dos exemplos – estende-se desde igrejas, associações culturais e acadêmicas, passando pelas agremiações

independentes, culturais, desportivas e de lazer, espaços de debate político, fóruns e

iniciativas de cidadãos até associações profissionais, partidos políticos, sindicados e

organizações alternativas. [...] À diferença dos partidos políticos que se fundiram ao

aparato estatal, as associações formadoras de opinião não pertencem ao sistema

administrativo e são capazes de delinear as fronteiras entre o Estado e a sociedade. A

despeito disso, elas conseguem resultados políticos por meio da imprensa, seja

porque fazem parte da mídia diretamente, como o caso dos projetos alternativos;

seja porque contribuem implicitamente para a discussão pública por meio do

exemplo, o objeto em torno do qual mobiliza suas atividades.

A racionalização discursiva da administração pública que, no Estado Democrático de

Direito, tem suas decisões dependentes do exame da licitude jurídica de sua atividade

(HABERMAS, 2006, p.14) dá-se pela via da “autoconcepção procedimental da democracia

constitucional”. Isso porque deve privilegiar os pressupostos comunicativos e as condições

procedimentais da formação democrática da opinião e da vontade como a única fonte de

legitimação. É nesse ponto que se insere a esfera pública discursiva de Habermas, pilar de sua

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concepção critico-deliberativa de democracia, que vê no consenso construído

intersubjetivamente um ideal regulativo.

Esse modelo de esfera pública discursiva é criticado por vários autores, como Fraser

(1992), para quem as relações assimétricas de poder verificadas na sociedade são

reproduzidas pela esfera pública, razão por que não seria viável a constituição de uma esfera

pública nacional única e abrangente. A autora pondera que, na formação da esfera pública, já

se define quem vai ser ouvido e qual será a agenda adotada, o que diminui o âmbito da

deliberação. Com base nesse entendimento, Fraser propõe que os “contrapúblicos

subalternos”, segmentos compostos por minorias étnicas, mulheres e grupos discriminados,

tenham sua importância fortalecida por instrumentos institucionalizados para que não se

reproduza a exclusão.

Para Mouffe (1996), o intento racionalista de uma comunicação que não sofra

distorções e a proposta centrada numa unidade social baseada no consenso racional tem efeito

“antipolítico” na conformação da sociedade, pois ignora o espaço ocupado pelas paixões

humanas vazadas na política. A autora objeta que a política deve ser resgatada no cotidiano

social e não pode ser totalmente racionalizada, pois é ela que impõe os limites para a

racionalidade social possível. Na sua visão (MOUFFE, 1996), a teoria política contemporânea

deve buscar o equilíbrio entre a concepção de democracia como um conjunto de

procedimentos necessários que sirvam para sustentar a dimensão do pluralismo e, por outro

lado, uma perspectiva democrática que leve em conta a adesão a valores que permitam o

mínimo de coesão social entre os que aderem ao jogo democrático.

Já na visão de Honneth (1995), Habermas adota uma postura sistêmica extremista que

o impede de perceber a lógica instrumental que norteia os sistemas e da qual decorrem dos

conflitos sociais. Segundo ele, Habermas, abandonando a tradição da Escola de Frankfurt,

desconsidera a esfera de conflituosidade que marcou a história da humanidade desde sempre.

Em certa medida, tais críticas, assim como a de outros vários autores que dialogaram

com Habermas, coincidem com parte da critica luhmanniana à teoria da ação comunicativa e,

via reflexa, à construção da esfera pública discursiva, sobretudo no que toca ao consenso

como ideal que orienta a comunicação intersubjetiva.

Há ainda outras perspectivas críticas, como as que destacam o tom inespecífico da

teoria no que se refere às possibilidades de ampliação dos mecanismos institucionalizados de

formação da vontade política, ou seja, da omissão teórica quanto ao modo como a esfera

pública discursiva poderá ter sua atuação instrumentalizada e sobre quais os mecanismos

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seriam mais eficientes nesse sentido. Na opinião de Avritzer (2004, [s.p.]), uma vez que não

há propostas claras tendentes a “horizontalizar os processos decisórios” com o objetivo de

“promover processos de alfabetização política, que permitam, no plano local, a vivência da

noção de poder”, é necessário que a ciência política ofereça sua contribuição no sentido da

construção de mecanismos mais adequados às demandas da comunidade política. Essa

questão será abordada adiante, quando se especificar quais os mecanismos e procedimentos

previstos na Constituição de 1988 seriam capazes de atender a esse propósito tendo em vista a

realidade cívica brasileira.

A crítica relativa “à pretensão consensualista” da teoria discursiva de Habermas, por

outro lado, será abordada no tópico seguinte.

4.5.2 Esfera pública pluralista

Neste trabalho optou-se pela leitura das teorias de Luhmann e Habermas a partir de

matriz teórica comum (vide item 2.3.1.3). Isso se deve aos pontos de contato entre a teoria dos

sistemas de Luhmann e a teoria discursiva de Habermas, conforme destacado no capítulo

anterior. Já de saída observou-se que ambas as teorias desenvolveram-se na tradição alemã,

porquanto mantiveram a crítica de Weber à modernidade desencantada como ponto de partida

para suas reflexões teóricas e, nada obstante, ambos foram significativamente influenciados

pela sociologia sistêmica americana de Parsons.

Apesar disso e dos vários pontos de convergência que podem ser observados a partir

daí, não se desconsidera aqui a existência de discrepâncias entre uma e outra teoria, inclusive

quanto aos pressupostos que conduzem a análise das questões relacionadas à esfera pública e

à cidadania. As convergências e dissensos, contudo, serão tratados, pontualmente, na medida

do necessário para a elucidação da opção teórica deste trabalho.

Partindo da concepção de modernidade formulada por cada um desses autores, pode-se

afirmar que, para Luhmann (2004), o desaparecimento de uma moral tradicional e de

conteúdo hierarquizado, com reflexo em todos os âmbitos vida social, propiciou o surgimento

de vários sistemas sociais que foram se diferenciando conforme a função que lhes incumbia e

se reproduzindo conforme códigos e critérios próprios. Luhmann considera que a

fragmentação da moral na sociedade não se deu conforme uma codificação binária específica,

razão por que o código que seria próprio da moral (consideração/desprezo) não se mostrou

capaz de contribuir para a generalização congruente de expectativas de comportamento.

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Apoiado nessa leitura da crítica weberiana, Luhmann considera inviável o consenso na

sociedade no que diz respeito a programas e critérios morais. A moral, para Luhmann, não

constitui um sistema social, tampouco mantém relação de complementaridade com um ou

outro sistema especificamente. A moral mantém-se fragmentada e povoa o ambiente de todos

os sistemas sociais, com sua racionalidade peculiar e multiforme.

Habermas, diferentemente, vê a modernidade como resultado do desenvolvimento das

estruturas da consciência, atribuindo ênfase à ideia de que o indivíduo é capaz de aprender

com seus próprios erros e, nesse sentido, evoluir no nível de compreensão moral (vide 3.1

supra). A modernidade, portanto, traria consigo as condições para o surgimento de um nível

de representação moral pós-convencional que tende a se tornar universal. Na perspectiva da

Teoria da ação comunicativa, Habermas sustenta uma diferenciação entre sistema – como

espaço de intermediação do agir instrumental ou estratégico, uma vez que voltado a fins

específicos – e mundo da vida – onde os indivíduos pretendem o entendimento a partir da

intersubjetividade e atuam como agentes comunicativos. É nesse ponto que o autor introduz a

ideia de que a modernidade impõe a necessidade de se construir uma esfera pública capaz de

canalizar o consenso produzido discursivamente e de impedir que os influxos sistêmicos do

poder e do dinheiro inviabilizem a existência do agir comunicativo nas esferas sociais em

geral (HABERMAS, 1992, p.451-462).

A releitura complementar de ambas as teorias instrumentaliza a construção de um

modelo de Estado Democrático de Direito que, em respeito ao caráter plural da sociedade

contemporânea, torne-se capaz de respaldar a intermediação entre consenso procedimental e

dissenso quanto aos conteúdos das preferências que emergem no mundo da vida (NEVES,

2008a).

Assim, a noção de mundo da vida, como esfera social que se estrutura

comunicativamente e, bem por isso, diferencia-se das esferas sociais estruturadas

sistemicamente, é o ponto de partida habermasiano que servirá à introdução da ideia de esfera

pública na teoria dos sistemas de Luhmann.

Ambas as vertentes teóricas apresentam a preocupação de entender e descrever as

dinâmicas de organização, constituição e evolução da sociedade. Segundo expõe Habermas

(1992), essa dinâmica consiste na tensão entre sistemas funcionais e mundo da vida. Como

esse mundo da vida é compartilhado intersubjetivamente, ele pressupõe o consenso como

categoria fundamental para a coordenação das ações sociais. Para Luhmann, a dinâmica que

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movimenta a sociedade é orientada pela relação complexa entre sistemas autopoiéticos, que

funcionam de modo operativamente fechado e cognitivamente aberto (vide 3.2.2 supra).

Nada obstante, essa peculiaridade da teoria dos sistemas em Luhmann, ou seja, a

característica autopoiética dos sistemas sociais – e particularmente do direito –, cujas linhas

gerais foram expostas no capítulo anterior, não é acolhida como referencial teórico para este

trabalho. Isso porque, como se verá adiante, o nível de diferenciação funcional entre os

sistemas sociais no Brasil é insuficiente para o fechamento operativo e para a

autorrecursividade que o conceito de autopoiese pressupõe. Trabalha-se, entretanto, na

perspectiva de que é possível aumentar o nível de diferenciação entre os sistemas jurídico,

político e econômico e, ao mesmo tempo, possibilitar que as relações entre eles continuem a

ocorrer sem prejuízo à autorreferencialidade que cada sistema possa desenvolver. Isso pode

ser viabilizado, por exemplo, por meio da utilização de procedimentos e mecanismos – muitos

deles já previstos constitucionalmente, mas ainda carentes de efetividade – capazes de

institucionalizar as relações entre esses sistemas, e, assim, permitir que as operações

realizadas no interior de cada um deles possam ser orientadas pelos códigos e programas que

lhe são próprios.

A despeito disso, como salienta Neves (2008a, p. 50), ao radicalizar a teoria dos

sistemas autopoiéticos, Luhmann contraria toda “pretensão teórica de uma esfera de

integração abrangente da sociedade moderna: toda integração da sociedade realiza-se

parcialmente do ponto de vista de cada subsistema social”. A esfera extrassistêmica em que,

segundo Habermas, a sociedade constrói e reflete sua unidade, para Luhmann é, quando

muito, ambiente para um sistema, no qual estão os outros sistemas.

Como a lógica de organização da sociedade luhmanniana pauta-se pela fragmentação

ou, numa terminologia mais precisa, pela policontexturalidade, seria de se questionar o

cabimento, em si, da ideia de esfera pública como potencialidade “integradora” entre os

sistemas e o mundo da vida ou como sistema e ambiente. Entretanto, opta-se aqui por afastar

a pretensão autopoiética em prol da opção de se trabalhar apenas no âmbito da diferenciação

funcional entre os sistemas. Acrescentam-se à perspectiva aqui adotada, a noção luhmanniana

de cidadania como integração dos indivíduos aos variados sistemas sociais e a ideia de

constituição como acoplamento estrutural entre direito e política. Nesse acoplamento, a

propósito, estabelecem-se procedimentos que viabilizarão a expressão do dissenso quanto aos

conteúdos morais. Com tais ajustes teóricos, é defensável a construção da noção de esfera

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pública pluralista, sem desprezar em sua inteireza os postulados da teoria dos sistemas de

Luhmann.

A própria questão do dissenso é descrita de modo interessante por Luhmann quando

ele afasta a possibilidade de se pressupor o consenso intersubjetivo. Em vez disso, à lógica

sistêmica interessa a observação – e produção – da diferença.

Nesse contexto é possível observar que Luhmann atribui destaque ao dissenso que

produz a diferença – fundamental para a manutenção da complexidade sistêmica –, ao passo

que Habermas enfatiza a possibilidade de se construir o consenso. De algum modo, dissenso e

consenso são duas facetas produzidas pela comunicação, como dois lados da mesma forma.

Vale dizer: se não houver possibilidade de consenso, a comunicação perde qualquer sentido;

pelo mesmo motivo, se for inevitável o dissenso, não há motivação para que os indivíduos se

comuniquem, pois já saberão de antemão que nenhuma mensagem será compartilhada entre

eles.

Além disso, como já se afirmou anteriormente, em ambas as abordagens teóricas a

institucionalização de procedimentos aparece como alternativa para viabilizar que o dissenso

acerca dos conteúdos valorativos seja intermediado e se torne produtivo – na visão de

Luhmann – ou controlado – como prefere pensar Habermas – sob o ponto de vista

democrático.

Pode-se dizer, então, que Habermas admite o dissenso porque ele é inevitável,

cabendo ao Estado Democrático encontrar meios para mantê-lo sob controle. O dissenso

apresenta-se como um risco que deve ser coordenado pela própria ação comunicativa, uma

vez que ela se orienta, segundo o autor, para o consenso. Veja-se a seguinte passagem da

Teoria da ação comunicativa (1992, p.375):

[...] a necessidade de se encontrar o consenso e o risco do dissenso aumentam em

cada ação na medida em que os agentes comunicativos já não podem recorrer à

antecipação do consenso que o mundo da vida traz em si. Quanto mais dependem de

suas próprias contribuições interpretativas, tanto mais se desenvolve o potencial de

racionalidade do entendimento linguístico, potencial que se expressa no fato de que

o acordo alcançado comunicativamente (e o dissenso comunicativamente regulado)

dependem do reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez suscetíveis de

crítica.

Assim, o consenso é um ideal regulativo na teoria habermasiana, o que se torna

evidente, inclusive, nas obras posteriores à Teoria da ação comunicativa, como Direito e

democracia. Ainda assim é pertinente, sob perspectiva acolhida neste trabalho, aferir quais as

condições de possibilidade de uma racionalidade comunicativa – de entendimento linguístico

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– em que se pressuponha uma orientação ao consenso nas condições de hipercomplexidade

social do mundo contemporâneo.

As perspectivas da dupla contingência, cada vez mais variadas na modernidade

complexa, tornam cada vez mais problemática a compreensibilidade das mensagens emitidas

na comunicação. O entendimento intersubjetivo – entre alter e ego – que sucederá a

compreensão da informação que se pretendeu transmitir através da mensagem poderá ocorrer,

ou não. Mais que isso, a própria compreensão da mensagem pode não sobrevir à pretensão

comunicacional, em razão das inúmeras possibilidades que se insinuam nas variadas formas

do agir e vivenciar da modernidade hipercomplexa. Vale dizer: é incerto o sucesso da

comunicação num mundo em que inúmeras formas de vida buscam reconhecimento no

ambiente democrático e em que os valores, interesses e discursos, muitas vezes antagônicos

até dentro de grupos específicos, têm sua variabilidade incrementada a cada dia. O consenso,

portanto, como fruto de um processo comunicativo bem sucedido deve ser tido como algo

eventual, cuja ausência não frustra os objetivos da comunicação até porque, ao contrário

disso, a dissensão é necessária para assegurar a pluralidade de preferências na sociedade

contemporânea.

Como já se viu, parte daí a crítica de Neves (2008a, p.127), direcionada à pretensão

consensualista do modelo habermasiano porque, segundo ele, isso gera uma sobrecarga ao

mundo da vida – como horizonte dos agentes comunicativos. Tal sobrecarga torna o mundo

da vida incapaz de dar conta da divergência relacionada aos diversos conteúdos morais e

valorativos que são próprios da sociedade moderna.

É por isso que a perspectiva consensualista de Habermas (apud NEVES, 2008a, p.

128), explicitada na afirmação de que “o entendimento parece ser inerente, como telos, à

linguagem humana”, é incompatível com o que se espera do mundo da vida na complexidade

contemporânea, em que a diversidade das possibilidades de ser e agir impõe o crescimento

incontrolável e contraditório da variedade de valores, interesses e expectativas que emergem

na sociedade.

Na modernidade complexa, o caráter multifacetado e plural da sociedade impede que

se desconsidere a tendência ao dissenso quanto aos conteúdos valorativos e visões de mundo.

Partindo dessa observação, Neves (2008a) propõe a reconstrução da noção de mundo da vida

a partir de uma perspectiva estritamente sistêmica, em que ele passa a funcionar como a base

de construção de todos os sistemas. O mundo da vida, então, como esfera em que as

comunicações ocorrem de modo espontâneo no cotidiano social, não é estruturado

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linguisticamente, pois não se submete à especialização da linguagem tipicamente sistêmica.

Tampouco se pode dizer que o mundo da vida estrutura-se estritamente na ação comunicativa.

Em outras palavras, as comunicações que ocorrem no mundo da vida não se submetem a uma

linguagem estruturada binariamente, como nos subsistemas da sociedade, porque, diante da

gama infindável de possibilidades de comunicação existente na esfera social hipercomplexa,

torna-se inviável à comunicação organizar-se em termos de um código sistêmico (lícito/ilícito,

verdadeiro/falso etc.).

É a partir dessa concepção de um mundo da vida aliviado da sobrecarga

comunicativa/consensualista que se pretende aproximar as propostas teóricas de Luhman e de

Habermas, dando azo à compreensão pluralista da esfera pública. Em meio a esse conjunto de

interações entre os indivíduos e organizações sociais – interações sistêmicas ou

intersubjetivas, conforme a vertente teórica que tenha em vista – é que os estratos sociais

ganham voz e podem se organizar pluralisticamente para defender a generalização de seus

interesses, valores ou discursos. Nesse ponto torna-se relevante a noção de público que

Luhmann (2007, p. 61-66) sustentou.

Conforme já tratado neste trabalho, ao descrever criticamente o funcionamento do

Estado Social, Luhmann destaca a transformação havida na dinâmica interna do sistema

político em razão dos inúmeros “temas e interesses” que passaram a ser compreendidos como

próprios desse sistema. O desenvolvimento decorrente da inclusão dessas questões na agenda

do sistema político, por sua vez, resultou no surgimento de esferas distintas no âmbito interno

desse sistema: a política propriamente dita, a administração e o público (LUHMANN, 2007,

p. 62-63).

A diferença entre a esfera da administração e da política em Luhmann é facilmente

identificada, até porque, na contemporaneidade, é perceptível que ambos constituem esferas

sistêmicas que operam sob condições e influxos distintos, embora ainda permaneçam jungidos

ao sistema político.127

No que diz respeito à distinção entre a política e o público a questão

adquire outros contornos.

Segundo Luhmann (2007, p.63), a democratização do sistema político permitiu que se

estabelecesse a “diferenciação de um público politicamente relevante” capaz de participar das

decisões em torno de ações políticas, não se limitando à participação nas eleições periódicas.

Em razão desse mesmo processo democrático e, notadamente, da consolidação da autonomia

127

Na opinião da autora deste trabalho, na medida em que as subfunções dos sistemas sociais adquirem corpo e

diferenciação suficiente em relação ao sistema ao qual pertenciam, torna-se possível admitir que a administração

constitua um sistema funcional autônomo, orientado pelo código não poder; e a política, propriamente dita,

constitua outro sistema, orientado pelo código maioria-minoria.

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dos partidos políticos como instituições permanentes desde o século XIX, o autor identifica o

surgimento de um âmbito distinto de comunicação política que se estabelece entre o “público”

e o Estado, servindo de mediação entre ambos. Com isso o autor apresenta uma perspectiva

que conecta as esferas do público e do político, num nível que não se confunde com o

espectro estatal:

[...] com tal estrutura, a política não pode ser concebida como esfera de atos de

poder, nem como influência sobre o detentor do poder político; ela constitui um

sistema diferenciado para o âmbito da prática política – considerada de per si – dentro do sistema político; portanto, um sistema social complexo e autônomo que

opera sob limitações estruturais próprias. Essa diferenciação entre público e política

(genuína) necessariamente transforma a dimensão do que antes se entendia como

Estado e se identificava com o sistema político.128

A partir dessa perspectiva, seria, então, viável aproximar a noção de esfera pública ao

espaço em que se produzem as comunicações geradas pela conexão entre a opinião pública e a

vontade política propriamente dita, que se dirigem à generalização de interesses, valores e

discursos no âmbito da administração, por exemplo. Esse é um dos indicativos encontrados na

teoria de Luhmann sobre o sistema político (2007) que possibilita a compatibilização entre a

proposta sistêmica e a construção de uma concepção de esfera pública nos moldes do Estado

Democrático de Direito, desde a proposta habermasiana.

Torna-se oportuno, neste ponto do trabalho, reintroduzir as discussões sobre a teoria

da cidadania, pois, como se viu, ela pode funcionar como um fio condutor que orienta a

releitura complementar da proposta dos dois teóricos.

A compreensão da cidadania como fruto de uma análise jurídica que seja, a um só

tempo, sistêmica e discursiva pode ser sintetizada na explicação de Neves (2008, p.185):

A cidadania flui da esfera pública para os sistemas jurídico e político e reflui destes

para aquela. Assim sendo, de um lado, a pluralidade de direitos que constitui a

cidadania relaciona-se com a diferenciação sistêmico-funcional da sociedade; de

outro, com a heterogeneidade de expectativas, valores e interesses que circulam por

diversas formas discursivas na esfera pública e exigem tratamento equânime nos

procedimentos constitucionais.

A convergência, nesse caso, está em que é imprescindível oferecer aos cidadãos

procedimentos jurídico-políticos que viabilizarão o acesso aos serviços ou prestações de cada

128

“Con tal estructura, la política no puede concebirse ya como preparación de actos de dominio, ni como

influencia sobre eldetentador del poder político; constituye um sistema diferenciado para la política dentro del

sistema político; por tanto, un sistema social complejo, autônomo, que opera y sufre bajo limitaciones

estructurales propias. Esta diferenciación de público y política (genuina) necesariamente transforma aquello que

con anterioridad se entendia como „Estado‟ y se había identificado al sistema político” (LUHMANN, 2007,

p.63).

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sistema social. Com isso não se quer dizer que o procedimento é um fim em si mesmo no

Estado Democrático de Direito, tampouco se pretende uma igualdade meramente formal. Ele

apenas expressa uma das consequências da fragmentação da moral, na visão de Luhmann, ou

da superação da moral convencional, como sustenta Habermas, qual seja, o dissenso quanto

aos conteúdos que, por sua vez, demanda equacionamento pela via dos procedimentos

constitucionais.

Sob a perspectiva estritamente sistêmica, a cidadania implica inclusão nas prestações

de todos os subsistemas sociais, sem excluir o sistema político, em que as decisões políticas

programantes e coletivamente vinculantes são adotadas. Como assinala Neves (1994, p.257):

É inegável que os direitos sociais, enquanto resultantes da interferência do sistema

jurídico na estrutura econômica e nas relações de classe, têm uma função social-

integrativa. Embora lugar comum, é ainda incontestável que sem os direitos sociais como droit creance, os droit-libertés não têm sentido. Portanto, a cidadania,

enquanto integração generalizada nos sistemas sociais, como base no direito,

amplia-se significativamente com a conquista dos direitos sociais.

Ao se transportar a definição luhmanniana de cidadania para o contexto de

complexidade social da modernidade, em que as possibilidades de realização são

infinitamente menores que as possibilidades de ação, o autor identifica significativos limites à

operacionalização da soberania popular.

Pode-se acrescentar ainda, nesse ponto, a questão do dissenso estrutural como a razão

pela qual Luhmann restringe a possibilidade de participação direta dos cidadãos nos processos

político-decisórios. É por isso que a tensão entre complexidade social e soberania popular

acaba por respaldar a representação política como solução (vide 4.2 supra).

Nessa linha de raciocínio, a solução seria ampliar a gama de eleitos a quem se delega a

autoridade para decidir em detrimento das possibilidades de participação direta dos cidadãos

nas decisões políticas. A eleição dos representantes, na visão estritamente sistêmica, serve

para aliviar o sistema político e viabilizar maior flexibilização no exercício do poder. Não se

cogita, assim, da visão democrática tradicional em que a pessoa eleita será um representante

dos interesses daquele que o elegeu, até porque isso é inviabilizado pelas condições postas

pela hipercomplexidade moderna. Luhmann preocupa-se em encontrar um meio que torne

possível filtrar as influências externas ao sistema político; vale dizer: ele se preocupa com o

processo de seleção e autonomia do sistema político cuja resultante será a atuação dos

membros do Legislativo e do Executivo eleitos pelos indivíduos no exercício da soberania

popular (NEVES, 2008, p.189).

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O impasse da representação política, entretanto, pode ser atenuado pela ação da esfera

pública como espaço de intermediação do dissenso e confluência de interesses e valores,

assim como “campo de interferência entre mundo da vida e subsistemas sociais autônomos,

de um lado, e sistema constitucional de outro” a qual incumbe relevante prestação à

legitimação do Estado Democrático de Direito. Em vez de liberar o eleito de qualquer

vinculação aos interesses de seu eleitor pura e simplesmente, opta-se por encarregar à esfera

pública a prestação de atribuir sentido à atuação do eleito “na medida em que passou por um

procedimento ao qual tiveram acesso as diversas correntes de opinião construídas na esfera

pública pluralista” (NEVES, 2008, p.189).

Também se atribui à esfera pública a tarefa de contribuir para a generalização das

expectativas sociais, as quais, uma vez tornadas jurídicas, caberá ao direito generalizar ou, se

direcionadas ao sistema político, caberá ao Legislativo ou ao Executivo torná-las objeto de

decisão coletivamente vinculante. Em relação ao Judiciário, a esfera pública poderá atuar no

sentido de submeter suas demandas à decisão jurídica, o que pode ocorrer, por exemplo, por

meio de ação popular e a ação civil pública.

Por outro lado, é oportuna a análise da teoria discursiva sobre a questão, segundo a

qual a tensão entre soberania popular e direitos fundamentais é equacionada por meio da

noção de cooriginalidade entre esses dois pilares dos regimes democráticos. Por esse motivo,

no Estado Democrático de Direito, a soberania popular – interconectada aos direitos

fundamentais – entrelaça-se com o poder politicamente organizado, ou seja, com a

institucionalização das práticas de autodeterminação dos cidadãos que se dá por meio da

esfera pública.

Isso ocorre porque, na concepção discursiva de Estado Democrático de Direito, a

soberania do povo não se materializa na reunião de indivíduos autônomos e facilmente

identificáveis. Tampouco numa coletividade, caracterizada pela reunião dos indivíduos ou de

seus representantes. Diversamente disso, ela se faz valer da “circulação de consultas e de

decisões estruturadas racionalmente”, capazes de estabelecer uma ligação entre o poder

administrativo estatal e a vontade dos cidadãos. São os “procedimentos e pressupostos

comunicativos de uma formação institucionalmente diferenciada da opinião e da vontade” que

possibilitam o entrelaçamento entre a soberania popular – ligada internamente aos direitos

fundamentais – e o poder politicamente organizado (HABERMAS, 2003, p.173). O que mais

interessa aqui é justamente essa interconexão, esse elo, entre os dois espectros do Estado

Democrático de Direito, que se concretiza na institucionalização da cidadania.

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A cidadania, nesse contexto, é construída a partir da mobilização da sociedade, sejam

os indivíduos isoladamente considerados, seja pela sua associação em grupos – organizações e

movimentos sociais, por exemplo –,129

em torno de questões de interesse comum ao grupo.

Mais uma vez se vê que a esfera pública encontra sua função no seu potencial de mobilização

em torno dos valores, interesses e discursos que circulam em busca de generalização.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 oferece mecanismos que propiciam a

atuação da esfera pública no sentido de aprimorar o controle social sobre os mais diversos

âmbitos de atuação do Estado. É no que concerne às deliberações em torno de políticas

públicas que as iniciativas de estímulo à participação dos pequenos e grandes públicos

adquirem especial relevância porque elas se relacionam diretamente à concretização dos

direitos fundamentais.

No âmbito do Executivo, especialmente na formulação e fiscalização de políticas

públicas, há previsão de participação da comunidade nos setores da seguridade social (art.

194, VII), da saúde (art. 198, III), da assistência social (art. 204, II), da educação (art. 206,

VI), da cultura (art. 216) e da infância e juventude (art. 227, § 1º). No âmbito

infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei de Diretrizes e Bases da

Educação, o Sistema Único de Saúde (Lei nº 8.080/90), o Estatuto das Cidades, entre outros

textos, consagram, igualmente, a participação popular na elaboração e gestão das políticas

129

Ao historiar os movimentos sociais no Brasil no período compreendido entre 1972 e 1997, a cientista política

Maria da Glória Gohn (2007, 379 e ss), opta por agrupá-los em cinco ciclos distintos. Interessa ao tema ora

tratado a institucionalização dos movimentos havida no segundo ciclo, que se inicia em 1985 e se finda em 1989.

Isso porque, como se sabe, vindos da abertura democrática, os movimentos sociais se fortaleceram desde o

término do período ditatorial e, por ocasião da composição da Assembleia Constituinte, exerceram forte

influência nas disposições relativas aos direitos fundamentais e à ordem social. Essa influência pode ser

exemplificada pela atuação decisiva do “Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua” para a

consolidação, em nível constitucional, de uma nova concepção filosófico-político-jurídica no trato com as questões afetas à infância e juventude. Dois anos mais tarde, o mesmo movimento teve a oportunidade de

rediscutir o tema com Parlamentares o que culminou na elaboração da Lei nº 8.069, de 1990. Nada obstante, a

autora (GOHN, 2007, p. 381-382) relaciona número significativo de movimentos que se formaram e/ou

fortaleceram pós-1985, classificando-os em três conjuntos. O primeiro, de âmbito nacional, constitui-se pelo

movimento para redução do número de anos do mandato do presidente e retorno das eleições diretas (1985) e

pelo movimento nacional pró-constituinte (1985-86); o segundo conjunto diz respeito a temas específicos, como

raça, etnia, mulheres, meninos e meninas de rua, reforma da educação, meio ambiente e gênero; por sua vez, o

terceiro grupo abarca os movimentos populares urbanos de âmbito nacional, referindo-se aqui ao Pró-central

movimentos populares, à Confederação Nacional das Associações de Moradores e ao Movimento pela moradia –

que abrange assuntos, como favelas, ocupação de áreas urbanas, renovação de moradias construídas pelo poder

público, inquilinos, autoconstrução e mutirões comunitários, sem-casa, moradores de rua e devedores do Sistema

Nacional de Habitação. Segundo Gohn (2007, p. 290), “Habermas, Claus Offe, Melucci, Adam Przeworski e

Arato passam a ser os autores que, no plano das teorias macros, mais influenciam as análises sobre os

movimentos sociais no Brasil nos anos 90. Habermas (1985) cria a categoria do “agir comunicativo” para o

entendimento das ações presentes nos movimentos; ele vê nessas ações possibilidades de geração de novas

formas de relações de produção, contribuindo para resolver problemas de produtividade ou de impasses em áreas

econômicas em crise”.

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públicas que dizem respeito à concretização dos direitos previstos em cada conjunto

normativo.

Esses conselhos setoriais gestores de políticas públicas são um bom exemplo de

espaço político-deliberativo institucionalizado por disposição constitucional como locus de

deliberação acerca de políticas sociais tematizadas. Contextualizados no debate

contemporâneo em torno da democracia, os conselhos são exemplos de uma nova

institucionalidade pública no país, inaugurada com a Constituição de 1988, o que deu lugar ao

redimensionamento do próprio sentido de cidadania.

Ao que parece, a previsão constitucional de participação da população na elaboração e

gestão das políticas públicas sociais e a consequente criação dos conselhos setoriais gestores

da política pública pretenderam reordenar os processos decisórios pela via da ampliação dos

espaços públicos de deliberação e da reformulação da natureza da decisão política, agora

pautada no debate público e na universalização dos direitos sociais.

Muitas vezes, entretanto, os conselhos – que possuem poder deliberativo sobre o

empenho de valores creditados nos respectivos fundos – funcionam como meros abonadores

da vontade estatal, deixando de exercer as funções que lhe são atribuídas constitucionalmente

e regulamentadas em leis específicas. Isso pode ocorrer pela ação “colonizadora” do poder

burocrático que impõe estratégias para que suas opções políticas sejam reafirmadas pela ação

dos conselheiros. Também pelas estratégias do mercado que tentam sobrepor a lógica do

sistema econômico de otimizar o lucro à lógica de outros sistemas.130

É necessário observar,

todavia, que, nas situações em que houver dissenso, o membro do conselho que tenha sido

vencido pode apresentar a questão para a devida revisão no âmbito do Poder Judiciário, por

exemplo. A demanda pode ser apresentada por meio de ação popular ou ação civil pública.

130

A ação dos segmentos da esfera pública, em alguns casos representa os interesses do mercado, como, por

exemplo, a indústria farmacêutica no âmbito dos Conselhos de Saúde e dos demais órgãos deliberativos dessa

esfera, ligados ao Ministério da Saúde. Embora não possa ser excluída, essa atuação, muitas vezes, pode resultar

numa interferência indevida na formulação da política. No caso específico da composição da lista de

medicamentos de disponibilização obrigatória pelo Sistema Único de Saúde, a inclusão de um fármaco e a

exclusão de outro devem atender aos critérios do sistema de saúde e do sistema jurídico, já que o fornecimento

gratuito de medicamentos integra o direito social de acesso do indivíduo ao sistema de saúde. Como se trata de

uma esfera pública em que todos os interesses podem e devem ser representados, o que se espera é que no

processo deliberativo correspondente haja a devida filtragem dos argumentos de todos os segmentos da esfera

pública cujos interesses estejam em questão. Não se pode afastar de antemão a atuação dos segmentos ligados ao

poder econômico. O que se sustenta neste trabalho é que ao sistema jurídico – num primeiro momento. o

Ministério público, e, em ultima instância, o Judiciário – caberá sustentar, de modo contramajoritário, inclusive,

a observância do código do direito nas deliberações em torno da formatação e escolha das políticas públicas

tendentes à concretização de direitos sociais. Desse modo o sistema jurídico contribui para o “empoderamento”

da esfera da política e para motivar a participação na esfera pública de segmentos mais frágeis em termos de

organização e representação.

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157

A propósito disso, ao Ministério público cabe acompanhar, no âmbito de sua esfera de

atuação, as resoluções dos conselhos para que elas possam ser submetidas ao crivo do sistema

jurídico caso haja necessidade. A irregularidade porventura identificada poderá ser mais bem

apurada por meio do inquérito civil público e, não havendo possibilidade de composição

extrajudicial, poderá ser proposta a ação competente. Há vários julgados que consideram a

deliberação prévia do conselho gestor como uma abertura à intervenção do Judiciário para

sanar ações ou omissões em questões relacionadas às respectivas políticas públicas.131

Relativamente às finanças públicas, ponto relevante para a abordagem que se pretende

fazer no capítulo seguinte sobre orçamento público e concretização de direitos fundamentais,

os espaços de atuação da esfera pública são garantidos com maior nível de detalhamento em

disposições infraconstitucionais, notadamente na Lei Complementar nº 101/00 (Lei de

Responsabilidade Fiscal), que determina o incentivo à participação popular e a realização de

audiências públicas durante os processos de elaboração e de discussão dos planos e leis

orçamentárias (art. 48, parágrafo único).

As audiências públicas, em tese, tornam factível a possibilidade de que o público

possa tomar parte nas decisões, sobretudo no âmbito do Legislativo e do Executivo, expondo

as demandas relevantes para um dado segmento da sociedade com vistas à generalização das

expectativas no nível político.

Entretanto, se o poder público não angariar credibilidade e não se demonstrar

responsivo em relação às demandas de maior relevância social, o espaço criado pelas

audiências públicas pode se desvirtuar de sua finalidade, esvaziando-se de qualquer atuação

política voltada para a generalização da cidadania.

Insere-se aqui a noção de responsividade aplicada à administração que implica a

demonstração da gestão responsável dos recursos públicos. Nesse sentido, tramita no

Legislativo o projeto de lei nº 248/2009 que visa “estabelecer normas gerais de finanças

públicas voltadas para a qualidade na gestão”. Entre os vários dispositivos direcionados à

melhoria da qualidade da participação da população afetada pelas decisões alocativas de

recursos públicos no orçamento, insere-se a criação de conselhos formados por membros da

131

A decisão proferida pela Segunda Turma do Superior Tribunal de justiça, no Recurso Especial nº 493811,

publicada no DJ de 15.3.2004, foi um precedente relevante no tratamento da questão pelo Judiciário, no sentido

de atribuir a devida importância à esfera político-deliberativa dos Conselhos Setoriais, a saber: “Administrativo e

processo civil – ação civil pública – ato administrativo discricionário: nova visão. 1. Na atualidade o império da

lei e o seu controle, a cargo do judiciário autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e

oportunidade do administrador. 2. Legitimidade do Ministério público para exigir do Município a execução de

política específica, a qual se tornou obrigatória por meio da resolução do Conselho Municipal dos direitos da

Criança e do Adolescente. 3. Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fim de

atender a propostas políticas certas e determinadas. 4. Recurso especial provido”.

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sociedade que se destina, especificamente, ao incremento do controle social das políticas

públicas no orçamento municipal.132

Isso seria um estímulo à participação de parte relevante

da esfera pública que, muitas vezes, não se mobiliza para tanto em razão dos ônus do acesso à

informação e dos custos – sociais, pessoais e econômicos – dessa mobilização. Em

consonância com as preocupações correntes na sociedade civil, o referido projeto de lei

estabelece critérios objetivos para aumentar o nível de transparência da gestão dos recursos

públicos o que, em última análise, contribui para a educação política dos cidadãos e pode

aumentar a qualidade da participação do público interessado nas deliberações político-

orçamentárias.

Nesse ponto é importante frisar que, quanto mais transparência há no processo

orçamentário, melhores condições os cidadãos terão para se posicionar e para se mobilizar em

torno das deliberações a eles correlatas. É que o acesso às informações permite aos integrantes

da esfera pública exercer, de modo apropriado, suas funções na comunidade política, assim

como exercê-la em outras datas e ocasiões, que não aquelas das eleições periódicas. O que se

deve notar é que a transparência aqui referida não se limita à mera publicidade, como já

determina o texto constitucional e, no caso dos orçamentos públicos, a própria Lei de

Responsabilidade Fiscal; a expressão transparência abrange a clareza e inteligibilidade das

informações que são disponibilizadas para os cidadãos.133

Apesar dos vários instrumentos e procedimentos constitucionalmente estabelecidos em

prol da atuação de uma esfera pública pluralista, em que os vários pontos de vista sejam

apresentados e debatidos em nível de igualdade, há que se reconhecer que não é essa a

realidade que se constata no Brasil.

132

A criação dos Conselhos Municipais de políticas Públicas vem ao encontro do modelo de descentralização

dos Estados sustentada por estudiosos do tema (CLARK, 2001, p. 56/59; MAGALHÃES, 2000). O argumento é encampado no âmbito deste trabalho no sentido que certamente os interesses da sociedade, sobretudo as

peculiaridades das demandas locais, serão mais bem aferidos e atendidos com mais eficiência, quanto maior for a

proximidade do ente estatal com os cidadãos. Clark explica que isso se deve, no caso brasileiro, à pluralidade da

sociedade, afixada num território de dimensões continentais e à heterogeneidade de seus múltiplos interesses.

Nesse contexto, o autor aponta que soluções genéricas e centralizadas não serão capazes de atender às

peculiaridades das comunidades locais, em virtude do que surge a necessidade de se privilegiar as esferas de

poder dessas comunidades, como alternativa para a melhoria da qualidade de vida e fortalecimento da cidadania.

No entanto, na opinião da autora deste trabalho, o projeto de lei deveria prever também a criação de instrumentos

que facilitem o controle social no âmbito do Estado, como tais conselhos de políticas públicas, uma vez que

muitas políticas públicas têm a competência de sua execução desdobrada nas unidades federativas estatais e

municipais. 133

No caso brasileiro, embora incipientes, há diversos movimentos e organizações sociais, integrantes dessa

esfera pública pluralista de que se falou, que têm como objetivo aumentar o nível de acessibilidade às

informações relativas ao processo orçamentário. Pode-se nominar o Movimento Nossa BH, Rio como vamos,

Nossa São Paulo e o INESC, em Brasília, que trabalha, inclusive, no desenvolvimento de metodologias que

facilitem a compreensão das disposições orçamentárias, assim como na multiplicação de agentes capacitados

para “alfabetizar politicamente” outros agentes e ou grupos.

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Embora se propugne por uma esfera pública pluralista, não é difícil observar que o

pluralismo dos meios de informação é limitado pelos constrangimentos profissionais, pela

pressão uniformizadora da concorrência mercantil ou, o que é ainda mais nocivo à formação

da opinião, pela influência exercida em razão dos interesses comuns dos proprietários das

empresas de comunicação em massa. A ação desses grupos, aliás, forma um mercado cada

vez mais concentrado e coeso na defesa de seus interesses, em detrimento dos interesses

socialmente mais relevantes, cuja dispersão não é evitada pelas “inovações democráticas”. O

baixo nível do interesse pela política é notório e o que mais preocupa é que sua distribuição

entre as esferas sociais que integram a esfera pública ocorre de modo desigual: não raro,

pessoas pertencentes aos grupos de menor poder político, como os trabalhadores, por

exemplo, são também os públicos que revelam menor interesse pela política. Isso indica que o

interesse decorre, ao menos em parte, das oportunidades de participação efetiva abertas pelo

sistema político. Na célebre e mal compreendida frase de Locke, aqueles que “vivem da mão

para a boca”134

não se dedicam à vivência política. Daí a necessidade de se estimular a

participação do público interessado na formulação da política pública, assim como de se

ampliar da pluralidade de vozes e perspectivas presentes nas esferas decisórias e da ampliação

da força política de grupos tradicionalmente marginalizados.

O que se vê com certa frequência é que as iniciativas no sentido de incluir os cidadãos

no sistema político acabam por acarretar, ao contrário, diminuição na autonomia do espaço

público. Isso pode ser atribuído ora à dificuldade de a população desvincular-se da noção de

administração patrimonialista e da prática clientelista, baseada na cultura do favor e das trocas

pessoais, o que esvazia o sentido da participação na vida política da comunidade; ora à

persistente assimetria advinda dos déficits socioeconômicos e organizacionais verificados no

Brasil, o que reflete a baixa normatividade da declaração constitucional de direitos

fundamentais que não se concretizaram na vivência cotidiana dos indivíduos, ou seja, não se

generalizaram.

A propósito disso, o Pacto Internacional de direitos econômicos, sociais e culturais,

como se viu, pretende sejam ampliados os níveis de acesso a esses direitos em países em

desenvolvimento. O último relatório do Comitê incumbido de fiscalizar o desempenho do

134

Segundo pensava Locke, na ambiência do liberalismo clássico, mesmo afastando a tese da inferioridade

natural dos não proprietários, os quais viviam geralmente “da mão para a boca”, reconhecia-se, assim, que a eles

falta tempo e oportunidade para pensar além dos limites da vida cotidiana. Essa condição, fator de desunião,

torna grande parcela da população impotente para formar uma noção de interesse comum e para lutar por ele.

Raramente, levados pela extrema miséria, recorrem à rebelião, menos determinados por algum interesse

compartilhado e refletido do que pela simples avidez de apropriação das fortunas dos ricos (BOBBIO, 1997, p.

221 e ss.).

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Estado brasileiro no cumprimento das metas estabelecidas, além de várias recomendações

específicas, em regra voltadas para o aumento dos investimentos públicos nas políticas

públicas sociais, acrescentou ao final que:

O Comitê solicita ao Estado que dissemine estas observações finais amplamente

entre todos os segmentos da sociedade, particularmente entre os servidores públicos,

o Poder Judiciário e organizações da sociedade civil. [...] Ele [o comitê] encoraja o Estado a continuar envolvendo organizações não governamentais e outros membros

da sociedade civil no processo de discussão, em âmbito nacional.

Com efeito, o que se quer concluir é que a esfera pública pluralista, provida de

expressiva relevância para a legitimação do Estado Democrático de Direito, é retroalimentada

pela promoção dos direitos fundamentais na medida em que exige, pelo menos, a garantia de

um nível mínimo de acesso às prestações de cada sistema, tais como saúde, educação e

assistência social para que se fale propriamente em pluralidade na esfera pública. Logo, para a

promoção dos direitos sociais é de fundamental importância o fortalecimento da esfera

pública pluralista que, assim estruturada, pode contribuir para o aumento dos níveis de

concretização dos direitos sociais. Quanto maior for o nível de inclusão do indivíduo nas

prestações de cada sistema ou, na semântica habermasiana, quanto mais se assegurar ao

indivíduo o exercício concomitante da autonomia pública e da autonomia privada, mais

factível será a pluralização da representação no interior dessa esfera pública. Haveria, assim,

uma relação de circularidade entre concretização de direitos sociais e o empoderamento da

esfera pública pluralista.

Por essa razão, é pertinente a análise das peculiaridades do caso brasileiro, carente de

suficiente diferenciação funcional entre os sistemas e de uma esfera pública pluralista.

4.6 Limites e possibilidades de uma esfera pública pluralista capaz de contribuir para

generalização da cidadania no Brasil

Como se viu nos capítulos anteriores, a sociedade moderna é funcionalmente

diferenciada, o que equivale a dizer que cada subsistema social é especializado para

desempenhar uma função que pretende solucionar um tipo de “problema” do sistema social

global.

Os subsistemas da sociedade global relacionam-se entre si por meio de prestações

recíprocas: a economia necessita das decisões vinculantes da política, assim como dos

programas normativos típicos do sistema jurídico. A economia, por outro lado, oferece o

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suporte econômico para o funcionamento dos demais sistemas. Todavia, tais prestações

recíprocas devem ser limitadas pelas condições exigidas para a manutenção do fechamento

operacional de cada subsistema, sob pena de que ocorra o que Luhmann chama de corrupção

sistêmica. Em outras palavras, se cabe à economia prover suporte monetário para que se

desenvolva uma campanha eleitoral, no âmbito do sistema político, ou o financiamento de

uma investigação científica, no âmbito do sistema da ciência, não lhe pode ser acessível

“comprar” os resultados da disputa política ou da pesquisa científica.

Isso porque para que cada um desses sistemas continue desempenhando, com

exclusividade, a função para a qual se especializou é imprescindível que suas operações

internas observem apenas o seu código binário próprio. No caso de uma disputa eleitoral para

a Câmara dos Deputados, por exemplo, a eleição dos candidatos deve ser norteada pela

escolha do eleitor, orientada por suas preferências e convicções, sobre qual deles reúne

melhores condições para ocupar o cargo.

Como a disputa eleitoral depende de recursos financeiros, provenientes do sistema

econômico, também devem ser observadas as regras que regulam a recepção e utilização

desses recursos. A aplicação dessas regras, entretanto, cabe ao sistema jurídico e segue o

código conforme ou desconforme ao direito.

Logo, no exemplo apontado, os sistemas político, econômico e jurídico estabelecem

comunicações entre si, que lhes faculta a troca de prestações, isto é, as chamadas relações

intersistêmicas. Entretanto, para que estas sejam bem sucedidas, exige-se a observância dos

limites autorreferenciais de cada um dos sistemas.

A possibilidade de se conservar a autorreferencialidade de um sistema pressupõe a

existência de um nível satisfatório de diferenciação entre os sistemas. Assim, nas sociedades

em que essas condições são constatáveis, o resultado que se pode esperar desse processo é a

eleição do candidato que apresentou aos eleitores melhores condições de exercer as funções

legislativas. O financiamento da campanha, como prestação que o sistema econômico oferece

ao sistema político, servirá aos gastos com a divulgação da plataforma política e

especialmente aos projetos que o deputado pretende apoiar em sua legislatura, não se

cogitando da destinação direta de recursos ao eleitor como modo de angariar seu voto, por

exemplo. Vale dizer: a disputa observará ou transcorrerá conforme o regramento previamente

estabelecido pela estrutura normativa correspondente. A diplomação do deputado eleito,

conforme dispuser a respectiva legislação, será uma prestação que o sistema jurídico oferecerá

ao sistema político pela condução lícita do processo de escolha.

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Pois bem. No exemplo descrito acima, a troca de prestações entre os sistemas

jurídico, político e econômico na eleição de um parlamentar corresponde à previsão normativa

aplicável ao tema no Brasil. É ilustrativo para o tema, pois possibilita que se perceba a

necessidade de que os sistemas estabeleçam relações entre si, tendo por orientação o código

binário do direito, como exigência pressuposta pelo Estado Democrático de Direito.

Nada obstante, na prática cotidiana das comunicações entre esses sistemas na

sociedade brasileira, a realidade que se constata muitas vezes não corresponde ao que

prescrevem as disposições legislativas, tampouco, em algumas situações, ao que dispõe a

constituição.

Conforme se expôs no tópico anterior, no Brasil não há uma esfera pública pluralista

consolidada, capaz de funcionar como facilitadora do relacionamento intersistêmico que

interessa à concretização dos direitos fundamentais e assim contribuir para a generalização da

cidadania.

Ao analisar a situação política brasileira nos dias atuais, Santos (2006) anota o

processo de corrupção das forças organizadas que tendiam fazer uso nocivo do direito à

participação das decisões políticas, escondendo-se sob as vestes de uma esfera pública

(ilegítima). Segundo ele, os grupos de interesse no Brasil ambicionaram barrar a tendência à

monopolização decisória do Estado não para torná-lo plural, democrático ou acessível à

diversidade dos grupos sociais. O que movia tal ambição era o interesse de substituir o

monopólio do poder estatal pela oligarquia de um sistema fechado de poderosos grupos de

interesse.

No mesmo sentido, Faoro (2001, p. 834), depois de historiar a construção do

“estamento burocrático” no Brasil desde o período colonial, explica que:

Na peculiaridade histórica brasileira a camada dirigente atua em nome próprio,

servida de instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.

Ao receber o impacto das novas forças sociais, a categoria estamental as amacia,

domestica, embotando-lhes a agressividade transformadora, para incorporá-las a

valores próprios, muitas vezes mediante a adoção de uma ideologia diversa, se

compatível com o esquema de domínio.

Na perspectiva do autor (FAORO, 2001, p. 827-837), o poder político no Brasil

sempre teve “donos” que “não emanam da nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre”, o

“povo, palavra e não realidade dos contestatários” , submete-se à dominação de uma elite –

“sem brasões, vestimentas ornamentais” ou “casacas ostensivas” – que se vale da arraigada

tradição patrimonialista para impor seus interesses sobre quaisquer outros e impedir a

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manifestação genuinamente política dos indivíduos. Daí porque, em sua crítica, “o súdito quer

a proteção, não participar da vontade coletiva, proteção aos desvalidos e aos produtores de

riqueza, na ambiguidade essencial ao tipo de domínio”.

Essa perspectiva política, social e histórica auxilia na compreensão das dificuldades

que o Brasil, como jovem democracia, enfrenta na construção de uma esfera pública

pluralista. Essas observações críticas estariam a apontar indícios de que no processo de

formação do Estado brasileiro não houve a criação de espaços público-políticos para a

construção da vivência democrática entre os governados, em razão do uso abusivo do poder

econômico e do poder burocrático. Isso coincide com a noção habermasiana de “colonização

do mundo da vida” em que as esferas sociais estruturadas comunicativamente são bloqueadas

pela ação estratégica de esferas que não se estruturam em bases comunicativas, mas agem

movidas por interesses não compartilhados.

Para Luhmann, tratar-se-ia de hipótese de corrupção sistêmica estrutural. A corrupção

sistêmica é um fenômeno constatado quando o código de um sistema social sobrepõe-se ao

código do outro e bloqueia o desenvolvimento de suas operações internas. Quando as

condições conjunturais do ambiente não oferecem respaldo à atuação do sistema social que

tem seu código tragado pelo código dominante, corrupção pode deixar de ser eventual e se

tornar estrutural. Isso ocorre porque o sistema corrompido não encontra meios para reagir à

pressão exercida pelo sistema corruptor. A corrupção, nesse caso, pode alcançar as estruturas

do sistema corrompido e atingir o plano da estabilização das expectativas. O grande risco é a

generalização da corrupção sistêmica estrutural, que faz desemcadear um processo de

desdiferenciação sistêmica e o sistema afetado passa a ter suas operações e estruturas

diretamente determinadas pela racionalidade do sistema corruptor (NEVES, 2009, p.44).

Os exemplos de corrupção sistêmica no Brasil ainda são frequentes. Não raro, a mídia

noticia episódios que se amoldam à espécie. Os casos de superfaturamento na aquisição de

bens e produtos pelos entes estatais são hipóteses de corrupção sistêmica que, conforme a

frequência e tendência à generalização, podem atingir as estruturas do sistema político

(administração). Nesse exemplo pode-se dizer que se estabelece uma relação negocial entre a

administração e o sistema econômico, este representado na empresa indicada para fornecer

mercadorias ou serviços que seriam adquiridos pela administração. Essa relação negocial vai

ser orientada pela racionalidade da economia porque a empresa tentará obter o maior lucro

possível na negociação. Nada obstante, pela ótica da administração, a execução das políticas

públicas exige a observância do princípio da eficiência, por exemplo, que lhe obriga a obter o

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maior proveito qualitativo e quantitativo com menor dispêndio de recursos possível. A

licitude da opção do sistema político pode ser aferida, assim, conforme essa lógica da

eficiência seja respeitada. O processo licitatório, nesse caso, funciona como um filtro para a

tendência de sobreposição da racionalidade – e do código – própria da economia sobre a

racionalidade da administração pública. Todavia, quando o processo licitatório é burlado e a

racionalidade da economia, pautada pelo binômio ter/não ter, passa a interessar a ambos os

lados da relação negocial, ocorre uma hipótese de corrupção do código da política, pelo

código da economia. Se uma prática dessa natureza não é adequadamente coibida pela

imposição de sanção pelo sistema jurídico, em razão do desapontamento de uma expectativa

normativa, e ocorre repetidas vezes no âmbito de um mesmo ente estatal, por exemplo, surge

o risco de generalização da corrupção que alcançará, assim, as estruturas do referido sistema

político.

Por outro lado, a situação brasileira também demonstra fragilidade em virtude do

baixo nível de diferenciação funcional entre os sistemas sociais. De acordo com Luhmann, a

diferenciação funcional entre os sistemas é uma aquisição própria da modernidade.

Entretanto, no caso brasileiro, essa diferenciação em níveis baixos impede que os sistemas

consigam referenciar suas operações em si mesmos, ou seja, consigam se autodeterminar

operacionalmente a partir de seu próprio código, porque o fechamento normativo é vulnerado

pela confusão de códigos, programas e racionalidades que se entrecruzam, indistintamente, no

interior dos sistemas.

O próprio Luhmann, em algumas oportunidades, posicionou-se a respeito dos óbices à

autorreferencialidade dos sistemas em países como o Brasil. No texto A constituição como

aquisição evolutiva (1996b, [s.p.]), ao observar a tendência à autolimitação do processo de

juridicização e tutela dos direitos fundamentais nos países desenvolvidos, o autor ressalva que

no Brasil as tendências evolutivas se dão em sentido diverso, uma vez que

[...] favorecem um tipo de limitação que é concretamente diverso, ou seja, a exclusão dos estratos baixos do âmbito de relevância político-estatal mediante

corrupção, inflação ou uma atividade estatal de tal modo capilar que é também

inacessível a esses estratos.

Para compreensão desse fenômeno, recorre-se à explicação de Neves (2007, p. 170-

174), segundo a qual em determinadas regiões, mormente aquelas delimitadas como Estados

Nacionais, o processo de autonomia dos sistemas sociais não se efetivou adequadamente, seja

porque o princípio da diferenciação funcional não acompanhou a evolução social da

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modernidade complexa, seja porque a esfera pública não alcançou um nível minimamente

satisfatório de generalização e institucionalização da cidadania.

A semântica da modernidade periférica mostra-se, portanto, adequada para designar

esses Estados Nacionais que suportaram as consequências da complexificação social sem que

daí resultassem sistemas sociais capazes de estruturar ou determinar adequadamente a

emergente complexidade (NEVES, 2007, p.172). Dito de outro modo, na modernidade

periférica, a complexificação social não se fez acompanhar do avanço no processo de

diferenciação funcional entre os subsistemas sociais, tampouco trouxe consigo impulso ao

fortalecimento de uma esfera pública capaz de tornar os indivíduos, cidadãos, generalizando

as expectativas sociais de acesso às prestações de todos os subsistemas.135

Como uma “forma

de dois lados”, só existe a modernidade central como lado positivo da forma se houver uma

modernidade periférica como lado negativo dessa mesma forma. Vale dizer: só há uma

periferia que se mantém sob as condições negativas de uma modernidade forjada por

fundamentos econômicos que a tornaram carente de desenvolvimento, porque os países

centrais despontaram no ranking mundial com suas economias bélicas e expansionistas bem

sucedidas.

As consequências do baixo nível de diferenciação funcional, combinado com

episódios frequentes de corrupção sistêmica, repercutem diretamente na compreensão do tema

tratado neste trabalho. Com isso se quer dizer que, na modernidade periférica, as conjunturas

estruturais da sociedade são desfavoráveis à realização da cidadania, em razão do que os

direitos fundamentais enfrentam dificuldades de generalização ainda que em níveis mínimos.

Via de consequência, a estruturação de uma esfera pública pluralista enfrenta sérios bloqueios

do ponto de vista sistêmico e, como se supõe haver uma relação direta entre concretização dos

direitos da cidadania e o fortalecimento da cultura de participação na vida política da

comunidade, a desejada circularidade produtiva não encontra lugar para se instalar.

Necessário ponderar que a dicotomia entre países centrais e países periféricos não é

utilizada pelo autor de modo ideologizado, como distinção entre sociedades tradicionais e

sociedades modernas, mas como distinção entre dois lados da mesma forma em que se

apresenta a moderna sociedade mundial. Uma sociedade cujo surgimento se deve, em grande

parte, à “profunda desigualdade econômica no desenvolvimento inter-regional, trazendo

135

É em razão dessa disparidade vivenciada pelos países periféricos que Marcelo Neves cunha a expressão

“modernidade negativa”. Os países da modernidade negativa encontram-se sob as condições da modernidade, no

que importa ao elevado nível de complexidade social por eles suportados, entretanto não auferiram os bônus

adquiridos pelos países centrais relativos aos altos níveis de diferenciação entre os sistemas e à estruturação de

uma esfera pública pluralista.

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consequências significativas na reprodução de todos os sistemas sociais, principalmente no

político e no jurídico, estatalmente organizados” (NEVES, 2007, p.170-1).

Na esteira do que afirma Neves (2008, p.180-181), o desenvolvimento da cidadania

teve significativo impulso sob o paradigma do Estado Democrático de Direito com a

“positivação dos direitos sociais, a intervenção compensatória na estrutura de classes e na

economia, a política social do Estado e a regulamentação jurídica das relações familiares e

educacionais”. No entanto, ainda que seja passível de muitas críticas, a ideia da

constitucionalização desses direitos surge num contexto diverso daquele emoldurado no

Estado Social. Desta feita, assegurar tais direitos equivale a promover a cidadania como

instituto que pretende a “integração jurídico-político generalizada e igualitária na sociedade”,

o que é inquestionavelmente essencial.136

O que sobressai no caso da juridificação simbólica de direitos, ou seja, na utilização da

estratégia de constitucionalizar sem compromisso com a concretização desses direitos, é que a

conquista não alcança todo o percurso necessário para que eles existam, de fato, nos planos

jurídico e político, que se realizam em etapas. A terceira e última dessas etapas diz respeito ao

que Konrad Hesse (1991), chamou de força normativa da constituição perante a sociedade à

qual se dirige. Explica-se: num primeiro momento, o que importa à existência político-

jurídica de um direito é que, em relação a ele, haja uma exigência moral ou valorativa em

torno de seu reconhecimento. É dizer, para que esse momento seja superado, que é necessário

que as expectativas relacionadas à sua normatividade surjam como imprescindíveis às

exigências da integração social. É como se essas expectativas estivessem na fronteira externa

do sistema jurídico constitucional com pretensão de universalização e, consequentemente, de

ingressar no sistema. Na etapa seguinte, o que se considera é a “resposta dos sistemas jurídico

e político às exigências de integração social e sistêmica que culminará com a incorporação da

semântica na forma de direitos fundamentais” (NEVES, 2008, p.182).

Por fim, como última etapa necessária ao efetivo ingresso do direito – agora já

declarado constitucionalmente – no sistema jurídico e político, é imprescindível que ele

adquira a força normativa necessária à sua efetivação, que se dá pelo seu ingresso no

cotidiano dos indivíduos. Somente quando um direito reconhecido como essencial à

integração social e declarado pelo sistema constitucional ingressa no cotidiano de membros de

136

Marcelo Neves indica uma “onda de juridificação” típica do Estado Democrático de Direito que corresponde

aos direitos difusos e coletivos e aos direitos “à discriminação inversa”. Esses direitos visam a assegurar, no

plano jurídico, a integração das minorias aos subsistemas sociais, institucionalizando o direito de ser diferente

(NEVES, 2008, p.182). No contexto brasileiro, pode-se citar como exemplo, a reserva de vagas para pessoas

portadoras de necessidades especiais em concursos públicos.

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uma sociedade política ou, na expressão de Neves (2008, p.182), “ingressa no vivenciar e agir

dos cidadãos e agentes públicos na forma de direitos e deveres recíprocos” é que ele adquire

força normativa na semântica proposta por Hesse (1991).

A cidadania exige a concretização dos direitos fundamentais para que, sendo a

constituição um reflexo da esfera pública pluralista, os mecanismos político-jurídicos sejam

aptos a gerar inclusão social, como acesso generalizado às prestações de todos os sistemas.

Sem inclusão social, menos cidadã e mais enfraquecida se torna a esfera pública, o que acaba

por gerar menos normatividade e agregar cada vez mais simbolismo ao sistema jurídico-

constitucional. O direito, nesse ciclo vicioso, corre o risco de não conseguir desempenhar sua

função de generalizar as expectativas normativas de comportamento e, despido de sua função,

o processo de diferenciação retrocede.

Dito de outro modo, se o processo de concretização da constituição torna-se passível

de bloqueio por fatores que lhe são externos, provenientes da policontexturalidade que

envolve os demais subsistemas e os torna ambiente na observação do sistema jurídico, o

direito deixa de ser capaz de se autorreproduzir. Isso se dá porque o fechamento operacional

do sistema jurídico mostra-se ineficaz e permite o ingresso de influxos da economia, da

política ou da cultura de modo indistinto. O sistema jurídico torna-se incapaz de oferecer a

prestação que dele se espera porque ao seu código próprio – lícito/ilícito – sobrepõe-se o

código de outro sistema sem que haja nenhuma filtragem.

A esse processo que corrói os mecanismos de autorreferência do sistema jurídico e do

próprio Estado, que mitiga o alcance autopoiético do sistema jurídico, corresponde a sua

desdiferenciação do direito em relação a outros sistemas. Não há como negar que, em tempos

de globalização e tendo em conta a posição periférica do Estado brasileiro, os sistemas

político e econômico parecem ostentar melhores condições de adaptabilidade à

hipercomplexidade contemporânea em virtude de suas peculiaridades funcionais, o que

ameaça a relação de coordenação entre esses sistemas sociais no ambiente. Inclusive o próprio

Luhmann, que vê na autopoiese a razão de ser da reprodução da diferenciação funcional do

direito, ao citar a teoria da constitucionalização simbólica de Marcelo Neves admite que, em

países como o Brasil:

O modelo de acoplamento estrutural moderno pode ser reconhecido, muito embora apenas como aparência de verdadeiro ou funcional. O uso meramente simbólico das

constituições se presta a que a política atue como se fosse limitada e irritada pelo

direito enquanto as verdadeiras relações de poder são submetidas às comunicações

internas. No entanto, o significado pleno de constituição como aquisição evolutiva

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se desenvolve apenas sob as condições da diferenciação funcional e fechamento

operativo dos sistemas político e jurídico (Tradução livre).137

Nesse contexto, o processo de concretização e generalização dos direitos fundamentais

é embargado por critérios particularistas, de natureza política, econômica etc. Tais bloqueios

externos comprometem o desenvolvimento da capacidade autorreferencial do sistema

jurídico, que não encontra condições para se reproduzir de modo consistente (NEVES, 2007).

A grande dificuldade, portanto, está em fazer com que o discurso da cidadania deixe o

campo da retórica e adquira materialização no vivenciar e agir dos indivíduos. Isso porque,

como se viu, a constituição não funciona como instância reflexiva de um sistema jurídico que

é dotado de vigência plena e eficácia no plano da concretização da vivência cidadã. Vale

dizer: os bloqueios políticos e econômicos impedem que o processo de concretização

normativo-jurídica do texto constitucional resulte na congruente generalização das

expectativas normativas relacionadas às políticas fundamentais. Em decorrência disso, os

direitos fundamentais não encontram ressonância na práxis dos órgãos estatais, o que implica

a não inclusão generalizada dos indivíduos no sistema jurídico. O processo de concretização e

generalização é embargado por critérios particularistas, de natureza política, econômica etc.

(NEVES, 2007).

Reconhece-se, assim, que há graves e diversos entraves para que o Judiciário

desempenhe sua função de generalizar de modo congruente as expectativas normativas no

âmbito social, temporal e material. A incapacidade de o direito referenciar suas decisões,

única e exclusivamente, na sua própria estrutura – decisões anteriores e normas – impede a

identificação de sentido da função que ele deve exercer na sociedade. Nesse contexto, é no

aspecto material da congruente generalização de expectativas normativas que se encontra a

maior fragilidade. A “invasão”, ou a “colonização”, do direito por outras racionalidades

parciais obstrui o potencial imunizatório que o sistema jurídico deve exercer em relação aos

demais sistemas sociais. A normatividade restrita, no entanto, é denunciada pelo fato de a

concretização dos direitos fundamentais não encontrar ressonância na práxis dos órgãos

estatais de que resulta a não inclusão generalizada dos indivíduos no sistema jurídico.

É em razão dessa discrepância entre a dicção constitucional, que apenas reconhece e

declara os direitos fundamentais essenciais ao reconhecimento da condição de espaço

137

But even there the modern pattern of structural couplage can be seen, if only as true (that is, functioning)

make-believe. The mere symbolic use of constitutions enables politics to pretend to be limited and irritated by

law, while leaving the real power relations to insider communication. However, the full meaning of evolutionary

achievement of constitution is developed only under the conditions of functional differentiation and operative

closure of the political system and the legal system (LUHMANN, 2004, p. 410)

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territorial – pretensamente – organizado sob a forma de Estado Democrático de Direito, e a

realidade cotidiana das dezenas de milhões de (sub)cidadãos138

brasileiros que se veem

privados do acesso a prestações essenciais que lhe deveriam ser oferecidas pelo sistema da

saúde, da educação, assistência social, entre outros, que se não adota neste trabalho a

concepção de autopoiese de Luhmann.

Nada obstante, sustenta-se que existe um nível de diferenciação funcional entre os

sistemas. Apesar de hoje apresentar um nível insatisfatório, a diferenciação funcional do

direito, por exemplo, pode ser progressivamente aumentada conforme se consiga generalizar

os direitos da cidadania. Com o objetivo de fundamentar essa opção teórica e correlacioná-la a

uma base empírica, por assim dizer, entende-se por necessário apresentar uma breve

retrospectiva histórica sobre a evolução político-social do Brasil.

Durante o século XX, na condição de país periférico do sistema capitalista, o Brasil

conseguiu superar o Estado Liberal apenas na década de 30. Mesmo assim, a vivência do

liberalismo sequer tangenciou o exemplo das democracias liberais que já se haviam instalado

no continente europeu, no século anterior. Naquelas, as formas de participação, conquanto

cingidas por um conceito restrito de povo e de representação popular, encontravam

reprodução consistente, na medida em que o conjunto de cidadãos designados pelas

respectivas cartas constitucionais efetivamente inseria-se nos, também restritos, espaços

público-políticos de construção do que se pensava como vontade geral. E, até a emergência da

questão social, no final do século XIX, tais ordens liberais, tomadas empiricamente, chegaram

aparentar o êxito do pleito de igualdade formal do direito burguês, mesmo porque os

respectivos países, havia muito, usufruíam da condição de centralidade próspera do sistema

capitalista.

O ideário liberal no Brasil, longe de se refletir na implementação do já acanhado

arcabouço de direitos de participação, e dos fundamentos pretensamente atemporais da

igualdade aritmética, prestou-se apenas, sob o fraseado republicano da Constituição de 1891,

a garantir a persistência do poder das oligarquias rurais, que, com algumas alterações

138

Neves (2008) utiliza-se da expressão sobreinclusão para identificar uma pequena camada da população dos

países periféricos que estão plenamente integrados aos subsistemas sociais e, portanto, usufruem de todas as

prestações que eles podem oferecer sem, contudo, submeterem-se ao sistema de responsabilização. Logo, estão

excluídos do sistema como um todo porque somente as prestações positivas, diga-se assim, de cada subsistema

os alcança. Por outro lado, grande percentual da população brasileira, que vive em condições de indignidade,

também não está incluído no sistema social porque não tem acesso às prestações dos subsistemas, como saúde,

educação e assistência social, muito embora esteja submetido ao sistema de deveres e aos rigores da legislação

penal, por exemplo. Há nesse caso uma subinclusão. Desse modo, o autor lança um novo olhar sobre a antiga

dicotomia entre exclusão e inclusão social, visto que tanto o abastado financeiramente quanto o miserável estão

excluídos do sistema social. O primeiro sobreintegrado e o segundo subintegrado ao sistema social.

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regionais de hegemonia, já haviam herdado o Estado das cortes portuguesas. Em suma, na

velha República, a seletiva abrangência do conceito de povo do liberalismo clássico reduzia -

se à insignificância, quase caricata, dos currais eleitorais do “café com leite”; e,

consequentemente, o êxito da igualdade formal, sob a égide do direito privado, esbarrava na

associação dos interesses da oligarquia dominante com o atraso da economia rural

concentradora e agroexportadora.

Nos principais países europeus ocidentais (Inglaterra e França) e nos Estados Unidos,

a transição para o Estado Social se deu sob os influxos e pressões de amplos movimentos

populares, a refletir a insuficiência da igualdade formal do Estado Liberal. No Brasil, ao

contrário, em um tardio encerramento do século XIX (a Revolução de 30 e a

Constitucionalista de 32), os setores populares assistiram, em total alheamento, ou como

meros partícipes operacionais, um Estado intervencionista, de viés social, nascer dos

derradeiros embates militares das mesmas elites que dividiam o poder político, na ordem

anterior. Nos anos seguintes, mesmo depois da superação da autocracia do Estado Novo e

com a importante modernização e diversificação da sociedade, cada vez mais urbana e

industrializada, a criação e efetivação dos direitos sociais, além de não atingir seu pretendido

alcance, encontrou meros clientes do assistencialismo estatal. A “participação” política, por

sua vez, era fomentada pela condição de clientela. Significava apenas a ampliação

quantitativa das massas de manobra dos detentores do poder, que se via dividido ou disputado

entre partidos das antigas elites rurais e das elites urbanas, com a variante de partidos

vinculados ao sindicalismo cooptado.

Entretanto, a partir dos últimos momentos do hiato ditatorial de 1964 (1964-1985),

justamente responsabilizado pela interrupção do desenvolvimento de instituições

genuinamente democráticas, a atuação de importantes organizações político-partidárias e da

sociedade civil, ainda que de forma incipiente, vem transformando a apatia clientelista em

participação construtiva. A própria redemocratização se deu por meio da atuação de tais

organizações, relativa ou totalmente dissociadas dos tradicionais interesses hegemônicos e

constituídas sob propósitos autênticos de engendrar uma ordem constitucional (Constituição

de 1988) capaz de aliar o vigor da participação popular à garantia dos direitos fundamentais

dos indivíduos. 139

Consequentemente, apesar do difícil desafio da concretização de direitos

fundamentais, sustenta-se aqui a incorreção da assertiva segundo a qual o texto constitucional

139

Vide nota 129

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é mera dissimulação de antigas formas de exclusão, sem nenhum valor que possa se refletir na

vivência social em geral. A despeito da “realidade constitucional” brasileira, que se apresenta

despida de normatividade generalizada, deve se destacar que as instituições jurídicas previstas

no texto constitucional não perderam a relevância como referências do discurso de poder que

se pretende democrático, conforme admite o próprio Marcelo Neves (2007).

Além disso, como adverte Luhmann, enquanto não há violação do direito de apontar

as violações dos direitos fundamentais, não se pode falar em supressão da possibilidade de

fortalecimento das bases democráticas do Estado de Direito. Daí que se vislumbra a

possibilidade de (re)construção de uma esfera pública que consiga representar os interesses

das categorias subincluídas no sistema jurídico.

Valendo-se de semântica específica, Marcelo Neves também admite que há

possibilidades fáticas para a reconstrução possível da esfera pública. Segundo ele, enquanto as

“regras-do-silêncio” ditatoriais não são impostas, o que implica negar a possibilidade de

crítica generalizada ao sistema de poder, a constitucionalização simbólica não pode ser vista

como um mero “instrumentalismo constitucional”:

[...] enquanto for possível protestar sem constrangimentos institucionalizados pelo

poder político, mesmo sob o contexto de constitucionalização simbólica, existirão condições, ainda que mínimas, para o surgimento de movimentos e organizações

sociais envolvidas criticamente na realização dos valores proclamados solenemente

no texto constitucional e, portanto, integrados na luta política pela ampliação da

cidadania. Assim sendo, é possível a construção de uma esfera pública pluralista

que, embora restrita, tenha capacidade de articular-se com êxito através dos

procedimentos previstos no texto constitucional (NEVES, 1995, p.165).

Decerto merecem ser afastados determinados tipos de abordagem jurídica que,

desavisados dos limites do discurso do direito, sobrecarregam o sistema jurídico com

demandas inalcançáveis de imediato ou, quando alcançáveis, demonstram-se mais geradoras

de exclusão que o contrário. Mas isso não prejudica a conclusão de que as instituições

democráticas não são mais dádivas de um poder heterônomo, como em outros tempos; e,

como construções autônomas, constituídas de baixo para cima, permitem atribuir aos seus

criadores a capacidade de reproduzi-las pelo tempo, aprimorando direitos e criando novas

demandas.

Por outro lado, não se discute que o nível de satisfação das demandas sociais é

relativizado em razão de diversos fatores. Isso porque na medida em que as necessidades

primárias da população são satisfeitas, novas necessidades surgirão como demandas

prioritárias para um dado segmento social. Do mesmo modo, o nível de insatisfação – que

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pode se converter em capacidade de protesto – varia de acordo com o nível de educação

política dos cidadãos que, por sua vez, pressupõe fruição dos direitos fundamentais. Segundo

pesquisa realizada pela World Values Survey, entre 1994 e 1997, 28% da população brasileira

respondeu estar satisfeita com o desempenho do regime. Esse nível de adesão seria até

razoável, uma vez que o Brasil é um país periférico, com pretensão emergente. No entanto,

submetidos ao mesmo questionamento apenas 23% dos finlandeses e australianos se disseram

satisfeitos com o desempenho do regime em seus países, enquanto apenas 12% dos japoneses

responderam positivamente à mesma indagação (SANTOS, 2007, p.38). Portanto, o processo

de valorização ou, para usar um termo das ciências políticas, de empoderamento da esfera

pública, com vistas a torná-la capaz de atuar nos espaços de deliberação política já definidos

no plano normativo, deve levar em conta a concretização progressiva dos direitos

fundamentais por meio de políticas públicas eficientes e executadas no nível máximo

permitido pelo contexto político-econômico brasileiro. Não se vislumbra outra opção, senão a

via que pode ser explorada pela esfera pública. Não é outro o entendimento de Álvaro Ricardo

de Souza Cruz (2007, p 329):

Assim, o que se cobra sobre políticas assistencialistas é um grau de refinamento

sobre sua legitimidade, até então ausentes no paradigma do Estado Social de Direito. Um exemplo candente no nosso ambiente pode ser dado: será que a esfera pública

nacional pode ser mais exigente com relação aos programas sociais do que há

cinquenta anos atrás? Será que podemos ser mais críticos para com o uso

“eleitoreiro” de tais políticas? Se a resposta do leitor for positiva, decerto já

marcamos uma diferença essencial entre os paradigmas em questão.

Em seguida formula sua própria resposta à indagação anterior:

Quanto mais a educação avança, mais essa esfera pública torna exigente a

legitimidade das intervenções estatais. Avançamos porque podemos aprender com

nossos erros. Avançamos mesmo contra a vontade de uma elite que busca

incessantemente preservar seus privilégios. Mas de certo modo não avançamos na

velocidade que desejamos e não o fazemos sem retrocessos: essa é uma contingência

da própria humanidade (SOUZA CRUZ, 2007, p. 332).

Tendo isso em vista, a proposta teórica deste trabalho sugere seja mais bem delimitado

o âmbito de atuação de cada um dos sistemas que interagem na concretização dos direitos

fundamentais, como direitos da cidadania. A relação de horizontalidade entre os sistemas

sociais exige sejam consideradas as influências recíprocas entre eles, dadas as repercussões

disso para o tratamento das questões relacionadas às políticas públicas sociais. É nos

orçamentos públicos que o enlace entre as racionalidades parciais de cada sistema pode ser

identificado, sobretudo com o auxílio do instrumental teórico oferecido pela noção de

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racionalidade transversal. Acredita-se, assim, que aprimorar a análise conceitual, funcional e

crítica dos orçamentos pode contribuir para interromper o círculo vicioso que se instala entre

a baixa generalização dos direitos da cidadania no Brasil e a ausência de uma esfera pública

pluralista, possibilitando que essa circularidade possa se tornar produtiva, por meio da

concretização progressiva daqueles direitos.

Nesse sentido, a proposta de racionalidade transversal formulada por Neves (2009) é

bastante adequada para se observar – e estabelecer limites – as relações intersistêmicas que

ocorrem no nível estrutural, até porque sua aplicação pressupõe apenas que os sistemas

mantenham-se diferenciados funcionalmente, desconsiderando a existência ou não de

condições para a autopoiese do sistema jurídico.

O assunto será tratado no capítulo seguinte, quando se abordará o orçamento e a

política orçamentária, bem como os limites a ela e por ela postos à concretização dos direitos

fundamentais como ponto de interseção entre política, direito e economia na sociedade

contemporânea.

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5 POLÍTICAS PÚBLICAS E ORÇAMENTO PÚBLICO

A diferenciação funcional entre direito e política tornou-se possível por meio das

constituições modernas, conforme se expôs no capítulo anterior. A experiência da França e

dos Estados Unidos foi abordada com maior ênfase, sobretudo em razão do processo de

formação dos respectivos estados nacionais. Como ponto característico das constituições

modernas, a positivação dos direitos fundamentais contribuiu para a autonomia funcional do

direito porque tornou desnecessária a fundamentação que até então vinha do direito natural. O

sistema político, por sua vez, passou a ver no reconhecimento jurídico-constitucional dos

direitos fundamentais uma legítima limitação ao exercício de seu poder, que até então era

absoluto.

Há, assim, um acoplamento estrutural entre direito e política por meio da perspectiva

constitucional moderna que permite o compartilhamento das prestações de cada um desses

sistemas. Segundo Luhmann (2005, p.505), esse acoplamento “permitiu ao direito positivo

converter-se em meio de conformação para a política, de sorte que o direito constitucional

adquire status de instrumento jurídico para a implantação de uma disciplina política”.

A noção de constituição como acoplamento estrutural, portanto, mostrou-se suficiente

à compreensão da distinção funcional havida entre os dois sistemas, com o advento da Idade

Moderna. Assim, ao sistema político incumbe a função de codificar o poder pelo esquema

governo/oposição e, nada obstante, conformá-lo à binariedade do código do direito. Isso

porque, no Estado Democrático de Direito, a política deve editar suas decisões coletivamente

vinculantes observando o código lícito ou ilícito do sistema jurídico, de tal sorte que somente

o poder lícito pode ser estabilizado juridicamente.

Luhmann (2005, p.505) explica que “a democratização do sistema político e a

positivação do sistema jurídico puderam se desenvolver graças à possibilidade de estímulos

recíprocos”. A dimensão desses “estímulos recíprocos”, que implicam trocas recíprocas de

prestações, deu-se por meio da constituição. Daí que a supremacia da constituição e, por

consequência, o controle de constitucionalidade assumem especial relevância no contexto do

Estado Democrático de Direito. Os tribunais constitucionais, portanto, assumem a

responsabilidade de distribuir os códigos de licitude e ilicitude a partir das disposições

constitucionais.

Partindo do ponto de vista da teoria discursiva, outra não é a conclusão. Conforme

adverte Souza Cruz (2006, p.146):

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É preciso compreender que a supremacia da constituição não é um princípio e que

tão pouco pode ser ponderado, visto ser elemento essencial à constituição do código

de funcionamento do direito, um código binário que separa o lícito/constitucional,

ilícito/inconstitucional. Se ele deixa de ser considerado, o que se afastará é o próprio

direito. A corte assume uma decisão de caráter estritamente político.

Na perspectiva da proposta discursiva de Habermas, há uma releitura da teoria da

separação dos poderes, em que a dialogicidade e a observância dos procedimentos

constitucionais passam a funcionar como pressupostos para o exercício de cada uma das

esferas do poder estatal. Para Habermas (2003), a distinção entre direito e política pode ser

observada no tipo de discurso que emana de cada um desses sistemas. Ao sistema jurídico

cabe estabelecer suas decisões por meio de discursos de aplicação, ao passo que no sistema

político trabalha-se com discursos de fundamentação.

A isso corresponderia a diferenciação funcional (embora seja ela mais pronunciada na

teoria sistêmica de Luhmann), uma vez que ao sistema jurídico cabe tornar congruente a

generalização das expectativas e ao sistema político cabe produzir decisões coletivamente

vinculantes.

A perspectiva de Luhmann, no entanto, adquire maior relevância para este ponto do

trabalho porque se empenha com maior vigor na descrição do funcionamento do sistema

político. Além disso, é inegável que as distinções entre os sistemas político e jurídico são

mais enfatizadas pela teoria sistêmica.

Com efeito, a intenção de descrever o funcionamento da sociedade a partir das funções

desempenhadas por cada subsistema no sistema social e das relações que eles estabelecem

entre si dota a teoria sistêmica de melhores condições para que se analise a relação – e a

diferenciação – entre direito e política, conforme se pretende neste trabalho.

É necessário frisar que, no interior do sistema político, emerge a distinção entre as

esferas específicas de sua atuação as quais, com a evolução social, tendem a se constituir

como sistemas específicos. São três as dimensões de atuação do sistema político: a

administração, a política propriamente dita, e o público. Quando foi abordada a construção

habermasiana de esfera pública, anotou-se a distinção que Luhmann (2007) estabelece entre a

política propriamente dita e o público. Neste momento, interessa enfocar a

tridimensionalidade do sistema político sob a perspectiva da distinção entre a política e a

administração.

Conforme propõe Neves (2008a, p.192), é relevante que se distinga entre “política” e

“administração”, sobretudo porque se deve distinguir entre “as metas determinadas pela

cúpula governamental legitimada eleitoralmente e a atividade da burocracia administrativa”.

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Para os objetivos deste trabalho é suficiente que se distinga quando uma decisão está

amparada numa escolha política ou numa decisão administrativa, que se limite à execução dos

atos administrativos conforme a programação estabelecida no âmbito da política. Isso se

torna necessário, inclusive, para que o procedimento cabível seja observado.

A política corresponde, em Luhmann (2005), à esfera de conflituosidade ínsita ao

sistema político que surge em decorrência da disputa entre os variados interesses, valores e

discursos que circulam na sociedade com expectativa de generalização por meio de decisões

políticas vinculantes. Tais procedimentos relacionam-se à produção legislativa, à produção de

decisões coletivamente vinculantes da administração típicas do Poder Executivo, às eleições,

aos instrumentos da democracia direta, assim como aos procedimentos que antecedem às

decisões jurídicas relacionadas ao exercício da função jurisdicional (NEVES, 2008a, p.133).

Retomando a análise sistêmica, tem-se que é por meio do sistema político que ocorre a

seleção das expectativas sociais que serão tornadas jurídicas e dotadas de normatividade.

Utiliza-se, para tanto, um programa finalístico, pois, como na dicção luhmanniana, a atuação

do sistema político é direcionada à solução de problemas específicos. Observada a questão do

ponto de vista interno ao sistema político, vê-se que a política é a esfera intrassistêmica

dotada de atributos e mecanismos próprios à generalização das expectativas sociais que

passam pelo crivo de seletividade e adquirem feição normativa por meio de decisões

coletivamente vinculantes. O código maioria/minoria associado ao programa finalístico

orienta a distinção necessária à seleção das expectativas. Com efeito, a política mostra-se

capaz de definir qual interesse, discurso ou valor existentes no âmbito da esfera pública serão

generalizados como expectativa normativa por meio da aplicação da combinação entre seu

código e programa específicos.

Essa função seletiva e generalizadora de expectativas sociais diz respeito tanto aos

atos típicos da função legislativa do ente estatal quanto aos atos do Executivo editados com

base em escolhas políticas, em sentido estrito. A legislação, assim, funciona como “lugar de

transformação da política em direito e como lugar da delimitação jurídica da política”; no

âmbito da administração, o que, no sistema jurídico, corresponde à aplicação da norma

aparece como “atuação no sentido de resolver problemas” (LUHMANN, 2005, p. 495). O

âmbito da política, por meio dos procedimentos constitucionais estabelecidos para tanto,

apresenta-se capaz de transpor a pluralidade social para as decisões, também coletivamente

vinculantes, da administração. Assim, “a administração é imunizada contra interesses

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concretos e particulares, impondo-se-lhe que atue conforme diretrizes e princípios com

pretensão de generalidade” (NEVES, 2008a, p.193).

Neste trabalho está a se sustentar que à política compete a edição de decisões

coletivamente vinculantes relacionadas à formulação das políticas públicas, assim como a

definição da alocação dos recursos necessários para tanto. À administração, diferentemente,

compete executar a política pública conforme a deliberação antecedente adotada no âmbito da

política, pela via procedimental estabelecida para tanto.

Além disso, sustenta-se que, em ambas as esferas de atuação do sistema político,

impõe-se a observância do código lícito/ilícito, como segunda referência binária a orientar as

decisões do sistema político. Vale frisar: “desde a perspectiva do direito estas decisões

adquirem efeito vinculante sempre e quando sejam conforme o direito e não contrário a

ele”.140

A questão orçamentária torna-se relevante porque, como se viu, a implementação de

todo e qualquer direito pressupõe o dispêndio de recursos financeiros para a execução da

política pública hábil a torná-los concretos. Portanto, a opção pela concretização de um direito

fundamental implica uma escolha que repercute na formulação e na execução do orçamento

público. Surge daí a necessidade de se examinar a relação entre direito, política e economia

externada nos orçamentos públicos.

A propósito disso, Luhmann (2005, p.491) explica que:

O direito é autônomo (faz aquilo que só ele pode fazer) e, juntamente com o

dinheiro do sistema econômico, é a condição de possibilidade mais importante em relação à realização da política. Com isso se quer dizer que decidir politicamente

sobre qual direito deve ser válido corresponde a decidir como se quer gastar o

dinheiro disponibilizado politicamente. Se se eliminar do pensamento esta condição

então a política ruiria como sistema. [...] A política deve a expressiva expansão do

campo de suas possibilidades ao direito e ao dinheiro.

No entanto, antes de examinar como se dão as relações entre esses sistemas na

concretização dos direitos fundamentais, serão estabelecidas algumas distinções que, em certa

medida, corroboram e agregam conteúdo à perspectiva de Luhmann sobre as variadas

conformações da expressão semântica “política”.

140

Desde la perspectiva del derecho estas decisiones tendrán ese efecto vinculante siempre y cuando sean

conforme a derecho y no vayan en contra de él (LUHMANN, 2005, p. 489).

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5.1 Política, política pública e deliberação

A definição usual de política pública, sob o ponto de vista do sistema jurídico, v.g., é

de que se trata de “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à

disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente

relevantes e politicamente determinados” (BUCCI, 2006, p. 241). Muito embora essa

definição seja suficiente à compreensão do tema pela perspectiva do direito, opta-se por

apresentar um panorama mais amplo, a partir do sistema político. Isso porque quando se

pretende relacionar política pública, como ação governamental imprescindível à concretização

de direitos fundamentais, e deliberação, torna-se necessário conhecer e distinguir as várias

dimensões que a expressão “política” pode assumir.

A distinção interna ao sistema político entre política, administração e público,

encontra alguma correspondência nas teorias filosófico-políticas contemporâneas. Parte-se da

distinção entre o político e a política, já tratada por muitos autores. Na contribuição da

filosofia política de Chantal Mouffe (2005, p.8-9), o político constitui o espaço de disputa

pelo poder, em que ocorrem os conflitos e aparecem os antagonismos ínsitos à pluralidade do

coletivo.

A política pode ser representada, nessa linha de raciocínio, pelo conjunto de práticas e

instituições por meio das quais uma ordem é criada. É a vivência da política que possibilita a

organização da coexistência humana no contexto de conflituosidade decorrente do político.

É também possível trabalhar a diferenciação entre a política, o político e as políticas, a

partir do enfoque da ciência política, estritamente. A questão aparenta ser mais complexa em

razão da grafia similar dos vocábulos na língua portuguesa. O equivalente na língua inglesa,

entretanto, distingue a semântica das expressões porque há três expressões semântica e

ortograficamente distintas: policy, politics e polity (COUTO; ARANTES. 2006).

Por polity entende-se o nível mais elevado em generalidade, o que possibilita o

consenso em torno da adesão dos atores políticos às regras do jogo democrático. O Estado de

Direito sustenta-se nessa base, pois foi a partir dela que se deu a elaboração das constituições

modernas. Como se viu, o consenso pode se limitar ao estabelecimento de procedimentos que

possibilitem o dissenso conteudístico e, assim, a reprodução sustentável da pluralidade será

viabilizada.

A política, nesse sentido, é representada pela normatividade da semântica

constitucional. Na leitura luhmanniana, por exemplo, a política (polity) no sentido aqui

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proposto, seria o resultado do acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e o sistema

político (politics). A expressão Carta Política ilustra adequadamente o tempo, pois representa

a união do jurídico e do político em prol da construção de consenso mínimos, essenciais ao

estabelecimento de procedimentos capazes de tornar viável a vida numa sociedade plural.

Politics é o nível da conflituosidade, em que ocorre o jogo político propriamente dito,

que envolve embates entre interesses antagônicos reproduzidos na arena decisória do poder

público. À politics corresponde o espaço da esfera “do político” em Luhmann (2007); tal

espaço caracteriza-se pelo relacionamento dinâmico entre os atores políticos que se revezam

entre posição governo e oposição; entre maioria e minoria, conflito e cooperação.

Policy é o resultado do jogo político, da deliberação alcançada na arena do político; é

conjuntural e representa a opção feita nos espaços de deliberação eminentemente políticos, no

sentido de politics. Esse é o nível mais específico e surge da vitória de um ou outro interesse

no jogo político.

A política pública a que este trabalho refere tem na policy seu equivalente em língua

inglesa. As políticas públicas são tematizadas e específicas porque visam a alcançar um

objetivo cuja definição se dá na esfera do jogo político. Pelo que se sustenta neste trabalho, a

decisão política que emerge na politics deve orientar as decisões do administrador no âmbito

da especificação e execução da política pública (policy).

Daí a importância de que se construa uma esfera pública pluralista no Brasil, apesar

das conhecidas dificuldades. É por meio da atuação de uma esfera social que, de modo

equânime, comporte a representação de todos os segmentos da sociedade, inclusive aqueles

mais vulneráveis, que o jogo político poderá assumir uma feição deliberativa que se aproxime

da proposta do Estado Democrático de Direito. À esfera pública caberá despender esforços

para a generalização das expectativas sociais que se relacionem com uma ou outra linha da

política pública que será adotada e definir quais os objetivos da ação governamental serão

atendidos com a implementação de uma ou outra política.

Pode-se, então, definir a política pública, para os fins deste trabalho, como um

conjunto de intervenções planejadas do poder público com a finalidade de resolver demandas

problemáticas que afloram no sistema político (politics), dada sua relevância social. Não se

pode perder de vista que a relevância social é relativizada conforme a esfera pública seja

pluralista ou não. Vale dizer: conforme sua ação política submeta-se ou não à “colonização”

por interesses estritamente econômicos, por exemplo.

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Numa perspectiva que extrapola os contornos minimalistas, as políticas públicas

podem ser entendidas como resultantes da evolução da sociedade num processo histórico que

se relaciona com o desenvolvimento da cidadania, como teorizou Thomas Marshall.

Para Derani (2004, p. 22), políticas públicas correspondem a “um conjunto de ações

coordenadas pelos entes estatais, em grande parte por eles realizadas, destinadas a alterar as

relações sociais existentes”. Logo, uma política pública tende à realização de objetivos

específicos que se destinam a solucionar problemas que foram apresentados ao ente estatal.

Corroborando o que se tem defendido neste trabalho, a autora (DERANI, 2004, p.22) explica

que a política pública “como pratica estatal, surge e se cristaliza por norma jurídica. A política

pública é composta de ações estatais e decisões administrativas competentes.”

A deliberação política que antecede a conformação da política pública

tradicionalmente é considerada uma modalidade particular de intervenção estatal, baseada em

conhecimentos técnicos da realidade social sob a ótica interna do Estado, ou seja, de sua

burocracia. No entanto, a interação com o público que será atingido diretamente pela ação

pública que se pretenda realizar adquire fundamental importância no contorno do Estado

Democrático de Direito.

No novo paradigma, o processo deliberativo deve ser impulsionado porque a

participação do público na elaboração, formulação e execução das políticas públicas, assim

como na eleição de quais as ações públicas serão realizadas prioritariamente, adquire especial

relevância num contexto de escassez de recursos.

Desde a introdução de um tema na agenda política – um interesse que se pretenda ver

generalizado no âmbito político ou tornado concreto – deve ter início um processo por meio

do qual se elabore a política pública capaz de solucionar o problema. É um procedimento que

se dá em etapas. Inicialmente, o problema é apresentado e, depois de identificado, ingressa na

agenda política do ente estatal, ou seja, é inserido entre as prioridades. Em seguida são

identificadas alternativas que são avaliadas e submetidas à decisão política, da qual o público

pode participar por meio dos mecanismos que lhe são oferecidos constitucionalmente.

Segundo Cristiane Derani (2004, p.22-23), podem ser identificadas três fases

importantes para a construção da política pública e seu desenvolvimento, rumo à realização da

ação correspondente. Na primeira fase há uma decisão político-estatal – adotada por agentes

públicos – com maior ou menor participação do público interessado. Num segundo momento,

promove-se a alteração institucional que correspondem às mudanças organizacionais

decorrentes da decisão sobre qual política seria desenvolvida. Nessa etapa, é definido o modo

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como a política será executada e quais os arranjos institucionais serão mobilizados ou

modificados por tal decisão. Por último, são executadas as ações públicas propriamente ditas e

a deliberação inicial é transformada em realidade.

A força da atuação do público, organizado em movimentos, associações, organizações

ou, em última análise, dos cidadãos individualmente considerados, está em que tanto se pode

incluir a demanda na agenda política quanto se pode incidir na avaliação das alternativas de

solução do problema.

Não se pode esquecer, entretanto, que as ações estatais podem ser voltadas a questões

relacionadas à esfera econômica. Clark (2008, p.68) chama a atenção para isso e explica que,

como espécie do gênero política pública, a “política econômica estatal é um conjunto de

decisões políticas dirigidas a satisfazer as necessidades sociais e individuais, com um menor

esforço, diante de um quadro de carência de recursos”. Em seguida, indica alguns exemplos

de políticas econômicas estatais: ampliação do volume de moeda nacional na economia;

criação de agências reguladoras produtoras de marcos legais para o mercado e a abertura de

empresas estatais fabricantes de bens e prestadora de serviços voltadas ao desenvolvimento

sustentável.

A economia, vista pela teoria sistêmica, é um sistema social e, como tal, mantém sua

unidade a partir da reprodução de seus próprios elementos, ou seja, a diferenciação funcional

da economia como sistema é garantida pelo fato de que o sistema econômico da sociedade

moderna opera sob a lógica do pagamento/não pagamento. Segundo Juliana Neuenschwander

Magalhães, “esse processo de diferenciação da economia, como um sistema social que se

volta para a solução de específicos problemas sociais, mediante a utilização de um código

próprio, tem início já ao final da Idade Média”. Isso ocorreu em virtude do enfraquecimento

econômico do modelo estratificado, ou seja, a diferenciação da economia como sistema foi

uma decorrência da crescente dependência da estratificação social ao dinheiro.141

A autora explica que, diretamente relacionado à riqueza, o conceito de propriedade

ínsito à diferenciação da economia “aponta para uma desigualdade: no Estado de Natureza,

todos são iguais, mas no Estado Civil, em que foi introduzida a propriedade, introduziu-se,

também, a desigualdade.” Esta, segundo Luhmann (2005), explica-se por razões econômicas

141

Conforme esclarece Juliana Neuschwander Magalhães em seu texto A formação do conceito de direitos

humanos (ainda não publicado), na sociedade organizada pelo principio da estratificação social todas as

diferenças sociais eram baseadas na hierarquização, de tal sorte que no topo estavam os nobres, ricos e virtuosos.

Entretanto, na Idade Médica, um nobre que não detivesse tantas posses, ainda era considerado nobre: “a falta de

riqueza não diminuía a virtude que fazia de um nobre, nobre”. Quando surgiu a economia de mercado em

detrimento da economia fundiária, a diferenciação do sistema econômico tornou a distinção entre ricos e pobres

mais relevante que qualquer outra.

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(divisão do trabalho) e políticas (necessidade de uma diferenciação entre governantes e

governados). Como a sociedade passou a se orientar pela diferenciação entre proprietários e

não proprietários, a propriedade extrapola os limites do poder econômico, adquirindo sentido

jurídico e político. Na compreensão de Neuenschwander Magalhães, em seu texto A formação

do conceito de direitos humanos (ainda não publicado):

No século XX, a noção de propriedade, que como “direito humano” traduziu um

mecanismo de acoplamento de direito e política, tornou-se capaz de, também, ligar a

economia à política. A instituição do Banco Central atesta esse fenômeno, tornando possível um condicionamento político (ou seja, não econômico, não lucrativo) para a

moeda circulante, tendo em vista consequências políticas.

De acordo com a autora, o paradoxo da economia como sistema social, embora tenha

por função produzir riquezas, não é capaz de fazê-lo senão produzindo escassez. É sob a

lógica de que a política e o direito podem impor limites à proeminência do código ter/não ter

que muitos Estados de Direito inserem em sua estrutura os procedimentos constitucionais e

dispositivos de direcionamento da política econômica, como é o caso da Constituição

brasileira. Nesse sentido, a constituição pode ser compreendida como acoplamento estrutural

entre direito e política, cujos efeitos estendem-se à economia. Logo, na perspectiva das

diretrizes econômico-politicas que o direito assume em sua estrutura e considerando-se que há

prestações recíprocas entre os três sistemas, pode-se dizer que a constituição dos Estados de

Direito Democráticos funciona como modo de acoplamento entre as estruturas dos sistemas

jurídico, político e econômico.

Uma questão relevante para a análise das opções político-econômicas do Estado

Democrático de Direito é que, considerada a função do sistema político de “condensar a

formação das opiniões de tal maneira que lhe faculte adotar decisões que vinculem

coletivamente” (LUHMANN, 2005, p. 490), o autor adverte quanto a pactos e tratados

internacionais que, segundo ele “tem lugar na prática da administração e com crescente

importância, a prática dos acordos internacionais que obrigam o direito interno dos estados”.

No caso brasileiro, como se viu, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,

Sociais e Culturais (PIDESC) estabelece parâmetros que devem vincular as diretrizes políticas

do Estado no sentido da progressiva concretização desses direitos, sobretudo em decorrência

do contexto social de má distribuição de riquezas e baixa generalização dos direitos

fundamentais, o que exige mais atenção nas deliberações político-orçamentárias. Referindo-se

ao art. 2º, alínea “i”, do referido Pacto, Fábio Konder Comparato (2003, p. 250) explica que:

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Se o Estado não dispõe, como é óbvio, de condições materiais para atender à

totalidade das demandas individuais de bens indispensáveis a uma vida digna, ele

tem, não obstante, inquestionavelmente, o dever constitucional de pôr em prática,

com todos os meios ao seu alcance, as políticas públicas dirigidas à consecução

desse objetivo.

Na concepção de Luhmann, para viabilizar o acesso dos indivíduos às suas prestações,

cada sistema social deve dotar a esfera de atuação intrassistêmica de instrumentos e recursos

específicos. Veja-se o exemplo aplicado ao sistema da educação: a inclusão do indivíduo

depende da disponibilização de espaço físico apropriado, de recursos humanos e,

principalmente, de uma programação técnica sobre qual a proposta pedagógica será acolhida,

quais os conteúdos integrarão a grade curricular, quais os critérios para verificação do nível de

aprendizado e assimilação desses conteúdos etc.

A realização de ações públicas, por meio de políticas próprias, portanto, depende da

conjugação de vários fatores ou, na linguagem sistêmica, de prestações que são oferecidas

simultaneamente por vários sistemas, a fim de que o direito se torne concreto. No exemplo

acima, é necessária a conjugação das prestações da política, da ciência, do direito e da

economia. Surge, por isso, a importância de se examinar como ocorrem as relações

multissistêmicas entre os sistemas na concretização dos direitos fundamentais por meio de

políticas públicas.

Sob o ponto de vista sistêmico, os sistemas sociais interrelacionam-se de modo

coordenado, porquanto não se admite, por exemplo, que a lógica do sistema econômico

sobreponha-se à lógica jurídica. A propósito disso, Luhmann repudia as propostas de leitura

econômica do direito e vê na diferenciação funcional uma teoria capaz de oferecer a

necessária resistência às propostas que privilegiem a posição de um dos sistemas em relação

aos demais (2005, p. 535).

Nesse contexto, o desenvolvimento da cidadania é essencial ao fortalecimento de uma

esfera pública pluralista capaz de intervir no processo de concretização de direitos que sempre

dependem das escolhas políticas, seja no nível político, político-orçamentário ou na execução

da política pública, quando a ação já foi inserida no orçamento, mas pode ser realizada de

várias formas distintas.

A expressão políticas públicas tem sido cada vez mais utilizada pelos meios de

comunicação e, de certo modo, isso tem contribuído para que a população comece a se

interessar pela agenda de prioridades do ente estatal e pela existência de entidades

associativas que agregam cidadãos em torno de demandas comuns. Cada vez mais a

semântica das políticas públicas aparece nos pronunciamentos de políticos e nas pautas de

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movimentos sociais. Embora o Brasil ainda esteja longe do que se espera em termos de

inclusão dos cidadãos no sistema político – muito provavelmente em razão dos baixos índices

de investimento em áreas sociais prioritárias, como é o caso da educação – é inegável que a

esfera pública brasileira pode se tornar cada vez mais pluralística e caminhar no sentido de

alcançar espaço na mídia e junto aos atores político-estatais, o que potencialmente aumentará

o nível de coerência no que diz respeito à implementação das políticas.

Uma breve mirada retrospectiva é suficiente para que se perceba ter sido o Estado

Social o grande propulsor da ampliação do âmbito de abrangência e da valorização do

conteúdo das políticas públicas sociais. O Estado Democrático de Direito, por outro lado,

como Estado pós-social, não pode desconsiderar as aquisições evolutivas do período anterior.

Como se viu, o que se pretende modificar é o nível de democratização das escolhas políticas

em torno dessas políticas. Sob esse aspecto pode-se correlacionar o processo de

reconhecimento, positivação e normatização de direitos fundamentais com o desenvolvimento

das políticas públicas como instrumentos da ação pública para concretizar tais direitos. É

nesse ponto que reside a pertinência do assunto para a proposta temática deste trabalho.

O Estado Democrático de Direito e os novos desenhos institucionais que viabilizam a

participação do cidadão nas escolhas políticas que lhe disserem respeito tem, aos poucos,

contribuído para que os cidadãos comecem a acompanhar a agenda política do ente estatal e a

exigir respostas às demandas não solucionadas ou ainda não submetidas à deliberação. Nasce

aqui a noção de responsividade que, como se viu no capítulo três, tem sido transportada às

raias do direito, inclusive.

Todavia, ainda é no sistema político e na ação de atores políticos, sejam estatais ou

representantes de segmentos da sociedade, que o dever de agir de modo responsivo tem

adquirido maior importância como uma das características que pode assegurar o direito dos

cidadãos à boa administração dos bens e recursos públicos. Isso é mais um indicativo de que,

embora combalida e enfraquecida em face do poder econômico e do poder político, há uma

esfera pública minimamente plural que se apresenta capaz de atuar no sentido de evitar

retrocessos irrefletidos nos processos de aquisição evolutiva de direitos.142

142

O sociólogo Geraldo di Giovani compara dois acontecimentos ocorridos ao longo do século XX, um no

inicio, outro no fim, relatados por Maurizio Ferrera, no livro Modelli di Solidarietà: “Em 1908, o Governo Inglês

atribuiu uma pensão de cinco xelins para pessoas idosas. Era um programa que hoje chamaríamos de

transferência de renda. Semanalmente, os idosos dirigiam-se às agências de correios para retirar seu benefício.

Muitos deles não conseguiam entender aquilo como uma ação do estado. Pensavam ser resultado da

generosidade pessoal do agente postal, a quem retribuíam com cestos de maçã, ovos, patos ou gansos. Na Itália,

em 1993, o governo tentou retirar uma parte dos benefícios para medicamentos aos quais os idosos tinham

direito. Houve uma verdadeira comoção nacional, com a união das centrais sindicais, passeatas, protestos e, por

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As políticas sociais são uma espécie do gênero políticas públicas, pois se referem a

formas de proteção social. É relevante esclarecer que inexiste entre ela e a política econômica

uma relação de oposição. O conteúdo da política social não deve ser delineado de modo

residual; em outras palavras, ele não se limita aos temas não contemplados pela política

econômica, considerando-se as necessidades dos cidadãos. Essa dualidade é facilmente

afastada quando se observam os objetivos pretendidos pelas políticas sociais. Nessa linha de

raciocínio, é fácil perceber que decisões tomadas no espaço econômico não só têm seus

efeitos refletidos nas políticas sociais como podem configurar a própria base de determinada

política social. De igual forma, decisões tradicionalmente pertencentes à área social podem

gerar efeitos econômicos significativos. Exemplo disso são os investimentos na área da

educação (decisão típica do campo social), cujos reflexos inelutavelmente atingem o campo

econômico, na medida em que o aumento da oferta de emprego será uma das medidas

imprescindíveis à consecução dessa política.

A relevância das políticas sociais para a concretização dos direitos da cidadania e a

possibilidade de modulação dessa política pela participação do público interessado

demonstram a necessidade de que os atores políticos participem das deliberações que lhe

digam respeito. Essa incidência participativa e deliberativa pode ocorrer nas três fases de

desenvolvimento das políticas públicas, com maior ou menor ênfase. No primeiro momento,

os fóruns, conselhos gestores ou consultivos, conferências, audiências públicas, reuniões

associativas, reuniões de grupos ou movimentos de protesto, entre outros espaços de

discussão política, podem pautar a agenda do poder público mediante ações que agreguem

visibilidade às demandas havidas como prioritárias. Na segunda fase, em que se delibera, por

exemplo, sobre a definição da política e sobre a alocação dos recursos orçamentários

necessários para sua implementação, de igual maneira, o público interessado dispõe de

instrumentos para participar. A propósito disso:

Por fim, uma política que não leve a sério a participação do interessado não inclui ninguém. Ao contrário, perpetua a condição de exclusão. Normalmente a burocracia

julga saber melhor o que seria bom para os destinatários da política pública e, em

um discurso claro de exclusão, fixa de cima para baixo a forma de aplicação da

política pública. Assim, de uma forma geral, a oitiva à população interessada se faz

pro forma, ou seja, estrategicamente para se transformar em cabedal de marketing

político (SOUZA CRUZ, 2007, p.329)

fim, o apedrejamento, pelos idosos enfurecidos, de alguns líderes sindicais, que foram considerados „frouxos‟ na

negociação com o governo. O que se passou nos 85 anos que separam um episódio do outro? Se concordarmos

com Eric Hobsbawn, devemos aceitar que o século passado foi o século dos direitos sociais” (Disponível em:

<http://geradigiovanni.com/2008/08/polticas-pblicas-e-poltica-social.html>. Acesso em: 19.9.2009).

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Dentre os espaços de discussão política mencionados anteriormente, poder-se-ia

destacar dois deles, para continuar indicando exemplos relacionados aos orçamentos. Seriam

os conselhos gestores da política pública, em que vários aspectos dessas políticas e do

respectivo custeio podem ser definidos em votação da qual participam os representantes da

sociedade civil, e as audiências públicas, nas quais emendas ao projeto orçamentário podem

ser apresentadas pelo público interessado.

Por último, a sociedade pode acompanhar a execução das ações públicas, conforme

deliberado nas etapas antecedentes, por meio, por exemplo, do monitoramento da execução

orçamentária.

Recomendável, portanto, apresentar a noção de deliberação proposta por Adam

Przeworski (2001, p.183): “deliberação política democrática é produzida quando o debate

conduz à decisão por meio do voto”. Há uma ideia marcante na noção de processo

deliberativo que corresponde à intersubjetividade e à discursividade no ambiente democrático.

Vale dizer: numa democracia sempre se quer persuadir aos outros porque se sabe que o que

for deliberado por uns afetará outros; há uma noção de reciprocidade que pode facilitar o

estabelecimento da dialogicidade entre os atores políticos e, quem sabe, viabilizar o consenso.

Bernard Manin (apud NOBRE, 2004, p.34) vê um duplo sentido na deliberação: num

primeiro momento estabelece o processo de discussão das possibilidades de deliberação

existentes para determinada situação que demanda a formulação ou execução de uma política

social específica; em seguida, após apresentados todos os argumentos e opiniões por cada um

dos atores, procede-se à votação. Dentro dessa concepção, pode-se dizer que a previsão

constitucional dos conselhos gestores de políticas públicas setoriais introduziu a perspectiva

da deliberação no sistema político brasileiro.

É aqui que se pode identificar a importância da deliberação para a eleição de políticas

públicas adequadas e, mais que isso, a importância da decisão política que delibera sobre a

política pública a ser realizada prioritariamente, assim como sobre os recursos que serão

alocados para o futuro custeio de outras políticas públicas concretizadoras de direitos. É por

isso que a administração, embora ordene suas operações pelo código maioria/minoria ou

governo/oposição, deve ficar adstrita às deliberações políticas sobre as políticas públicas a

serem executadas.

Para Luhmann (1997, p. 64), é evidente a obrigação de o administrador vincular-se às

decisões havidas no nível político, inclusive àquelas editadas por ele próprio como decisão

coletivamente vinculante. Isso se dá porque no Estado Democrático de Direito o sistema

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político deixa de ser assimétrico e verticalizado. A diferenciação funcional entre os sistemas

jurídico e político exige que haja uma relação de circularidade, inclusive no âmbito interno do

sistema jurídico, como forma de se estabelecer condições para sua autorrecursividade e,

gradativamente, aumentar o nível dessa diferenciação funcional. Como já se afirmou no

capítulo anterior, cabe à política estabelecer prioridades para as decisões da administração

pública. Repita-se: ela se vincula a si mesma e ao público por meio de suas decisões.

Luhmann vai além, conjecturando hipótese em que a administração não se vincula às decisões

tomadas no âmbito político: “o público poderá reagir contra decisões que não levem em conta

a decisão por ele tomada, seja por meio das eleições, seja por outro mecanismo de expressão

de sua opinião” (2007, p. 64).

Nesse caso, caberia aos grupos cujos conflitos não são absorvidos pelos

procedimentos, ou seja, àqueles que não têm expectativas de que a reivindicação seja atendida

e de que haja a consequente generalização política ou jurídica da expectativa normativa, a

alternativa de se organizarem como movimentos de protesto. Em relação ao direito, sobretudo

quando há dificuldade de indicar os direitos imediatamente individualizáveis envolvidos nas

demandas, os movimentos sociais adotam uma semântica de valor e buscam mobilizar

recursos para apresentar desafios contrafactuais à legislação que se pretende influenciar ou

fazer respeitar.

Merece destaque a noção de movimentos de protesto para Luhmann (2004, p.161-

162):143

O direito põe-se à disposição dos indivíduos desse modo: abstrai-se do contexto

social de seus motivos, das pressões às quais eles estão expostos ou, de outra forma,

de suas respectivas motivações. Deste modo, a sociedade fica sujeita ao ônus de

deixar o sistema jurídico desprendido de suas amarras e por reafirmar a

individualidade dos seres humanos. Por outro lado, surgem, em compensação, fortes

expectativas normativas que, contudo, não podem adquirir a forma de leis. Elas

tomarão a forma de demandas políticas e alguns outros casos de movimentos

sociais. A semântica dos movimentos usa o conceito de valor e eventualmente, a

título de se distanciarem da lei, a expressão “ética”. Tudo que pode ser utilizado

como um desafio contrafactual encontra um canal aqui que leva diretamente às arenas de decisão em torno da realização de políticas (Tradução livre).

143

Law puts itself at the disposal of the individual users in this way, abstracting from the social context of their

motives, from the pressures to which they are exposed or, conversely, from their separate motivations. In this

manner society has to pay for cutting the legal system loose from its social moorings and for declaring individual

human beings to be individuals. A compensatory effect for this exists in the development of strong normative

expectations, cannot take the form of law. They take the form of political demands and, in some other cases, the

form of social movements. Their semantics use the concept of value and sometimes, as if to make a point of

distancing themselves from law, the title „ethics‟. Everything that can be mobilized as contra-factual defiance

finds a channel here that leads directly to the centres of political decision-making.

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É por isso que se sustenta neste trabalho que a política orçamentária, consubstanciada

nas leis aprovadas pelos representantes eleitos pelo público e em outros mecanismos de

expressão da vontade do público144

e até da própria administração – quando expressa seus

planejamentos no projeto de lei remetido ao Legislativo –, é formada por decisões

coletivamente vinculantes e, como tal, alcança o gestor público, a quem incumbe colocar em

prática o planejamento de ações previamente deliberado.

É importante deixar claro que, com isso, não se quer engessar a atuação do

administrador, retirando-lhe toda margem de discricionariedade. O que se pretende é

demonstrar que, no Estado Democrático de Direito, o orçamento não é uma peça de ficção ou

uma mera autorização para gastar. Antes, é que a teoria e a prática político-jurídicas possam

conformar-se à noção de orçamento como ponto de intersecção entre, pelo menos, três

sistemas que atuam diretamente quando se trata de concretização dos direitos da cidadania: o

jurídico, o político e o econômico.

Há que se valorizar o emprego dos recursos públicos disponíveis, que se sabe

limitados, em prol da concretização das políticas públicas sociais que atendem as demandas

prioritárias de uma dada coletividade. Isso não pode ser uma decisão do administrador,

adotada de modo dissociado do contexto da politics. Por isso, o empenho no sentido de

revisitar a função dos orçamentos no Estado Moderno.

5.2 Orçamento público

5.2.1 Apontamentos históricos

O art. 12 da Magna Carta outorgada em 1215,145

na Inglaterra, pelo Rei João Sem

Terra é considerado pela doutrina em geral como a primeira referência ao tema do orçamento

público. Conquanto seja indiscutível que, àquela época, não se poderia falar em regulação

orçamentária propriamente dita, esse foi o primeiro dispositivo jurídico a impor parâmetros ao

poder ilimitado do soberano.

144

Como, por exemplo, as audiências públicas realizadas no âmbito do legislativo em momento anterior à

remessa do plano plurianual. Muitas vezes, a população, organizada como parte da esfera pública pluralista,

realiza reuniões prévias com os diversos segmentos, propõe emendas para contemplar as demandas apresentadas

por cada um deles e, mesmo nas hipóteses em que são acolhidas, o que se observa na prática é que quase nunca o

seu objeto é satisfeito; ou a emenda ingressa na Lei Orçamentária e a ação correspondente não é executado ou

ela sequer ultrapassa as discussões do Plano Plurianual. 145

“Nenhum tributo ou auxílio será instituído no Reino, senão pelo seu conselho comum, exceto com o fim de

resgatar a pessoa do Rei, fazer seu primogênito cavaleiro e casar sua filha mais velha uma vez, e os auxílios para

esse fim serão razoáveis em seu montante.”

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189

Pode-se dizer que a noção de orçamento público com alguma pretensão de regulação

remonta a uma fase mais avançada do período absolutista, em que as reivindicações da classe

burguesa passaram a exigir mudanças no modo como os tributos eram instituídos. Nessa

época, a burguesia emergente recusou-se a admitir a arbitrariedade na cobrança de tributos

pela realeza (BALEEIRO, 1994, p. 388).

Constata-se, assim, numa ou noutra formulação, que o surgimento de previsões

orçamentárias sustentadas em dispositivos jurídico-legais vinculou-se à necessidade de limitar

o poder absoluto do soberano. O tempo revelou que, além do tratamento jurídico dispensado

ao poder de tributar, seria necessário regular o modo pelo qual o dinheiro arrecadado seria

aplicado, aferindo-se se seu dispêndio estaria ou não de acordo com as finalidades para as

quais fora autorizado, pelo Parlamento (GIACOMONI, 2007, p. 32).

A Declaração de Direitos da Inglaterra de 1689 constituiu um marco representativo

para essa mudança porque, desde então, passou-se a exigir que o Parlamento consentisse (ou

não) com a instituição de um novo tributo. Com a Bill of Rights, o poder da burguesia é

fortalecido, suas liberdades preservadas e novos direitos lhe são garantidos.

Por ocasião do nascimento do Estado Moderno, as disposições orçamentárias

passaram a servir como um meio de organizar as finanças públicas e oferecer instrumentos

para que se equilibrassem despesas e receitas. Em oposição ao modelo feudalista, o Estado

Nacional146

centraliza em si o exercício do poder político-estatal até então fragmentado entre

os feudos nos quais vigoravam relações verticalizadas de poder entre vassalos e suseranos.

Como se viu no capítulo anterior, o surgimento das constituições modernas acarretou

muitas mudanças no exercício do poder político e, consequentemente, no modo de administrar

os recursos públicos.

O ano de 1822 é considerado um divisor de águas no que diz respeito à forma de tratar

as questões orçamentárias, uma vez que se instituiu a efetiva implantação de um orçamento

formal na Inglaterra. Desde então, o “chanceler do erário” passou a apresentar ao Parlamento

uma exposição que fixava a receita e a despesa de cada exercício; ao Legislativo competia

aprovar, reduzir ou rejeitar as proposições, bem assim exercer o controle da execução do

orçamento. Na Inglaterra, esse ainda é o modelo vigente, tendo apenas as atribuições do

Executivo sido transferidas para o Gabinete.

146

Aqui o foco será o Estado nacional estadunidense e o francês, uma vez que o processo de constituição como

aquisição evolutiva que permitiu a separação entre o sistema jurídico e o sistema político tomou por base a

história da fundação desses dois Estados nacionais.

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Tal como na história inglesa, o sistema orçamentário francês surgiu com as

Revoluções burguesas despontadas em fins do século XVIII. A partir de então, o

consentimento popular pela via parlamentar passou a ser necessário para que novos impostos

fossem instituídos.

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão é emblemática para evidenciar a

finalidade do orçamento para o paradigma do Estado Liberal, veja-se o teor do art. 14: "Todos

os cidadãos têm o direito de constatar, por eles mesmos ou por seus representantes, a

necessidade da contribuição pública, de consenti-la livremente, fiscalizar seu emprego e de

lhe determinar a cota, a base de cálculo, o recolhimento e sua duração".

Nos Estados Unidos, o apelo por imprimir legitimação popular à exigência tributária

representa um marco e, no caso estadunidense, funcionou como princípio móvel para a

revolução que culminou com a independência em relação à Inglaterra (GIACOMONI, 2007,

p. 34).

A trajetória histórica do sistema orçamentário norte-americano é marcada por

inúmeras reformas, sobretudo a partir da virada do século XIX para o XX, quando os

superávits fiscais passaram a ser alternados com os déficits.147

Em 1974, quando o Estado Social começou a dar sinais de declínio, o Congresso

norte-americano retomou para si parte do poder concentrado nas mãos do Executivo desde

1921. A mudança evocou no Legislativo crescente interesse e envolvimento com os temas

orçamentários e com o aperfeiçoamento da gestão dos recursos públicos nos Estados Unidos,

situação que perdurou nas décadas seguintes.

147

No cenário econômico mundial, os sucessivos déficits orçamentários, as exacerbadas subvenções ao capital

privado e o volume de receitas incompatíveis com as despesas a serem despendidas, dentre outros fatores,

conduziram à crise do Estado de bem-estar social a partir dos anos 70. Desde então, adotaram-se modelos que

procuravam superar a crise do Welfare State. Nesse período, o orçamento passou a servir de instrumento hábil a

combater as crises cíclicas do capitalismo e a falta de empregos. Analisando o rompimento da ideia de um

orçamento neutro, Baleeiro (2000, p. 398) afirma que, depois da Segunda Guerra Mundial, o orçamento tende a

se transformar em alavanca de comando da conjuntura econômica. Diante disso, "as ideias e práticas buscam

empregar o orçamento como o aparelho para combater fases de depressão e de desemprego, promover

investimentos, ou para conter os quadros inflacionários. Os velhos princípios de técnica orçamentária

consagrados pelas gerações anteriores vergam ao peso dessa tarefa enorme”. Como resposta a tal política, o

discurso conservador adotou a postura neoliberalista, caracterizada pela redução dos gastos sociais, bem como da

intervenção estatal na ordem econômica – Estado Mínimo. Para concretizar esse propósito, seria necessário

reduzir os excessos provenientes de uma época em que a doutrina Keyneseana dominava a política econômica e

fiscal dos Estados. Assim, uma nova concepção fiscal só seria possível a partir da retomada da preocupação com

a compatibilização entre receitas e despesas, inaugurando um modelo em que a saúde financeira do Estado seria

mantida por suas próprias fontes (BALEEIRO, 2000, p 399-407).

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A partir dessa retrospectiva histórica, o que fica evidenciado é que o orçamento

deixou de ser mero instrumento para limitar o poder do soberano em instituir tributos e, aos

poucos, passou a servir de instrumento para o planejamento estatal.

Na modernidade, os orçamentos tornaram-se ferramentas para que a esfera pública

conhecesse os objetivos do governo, suas metas e programas. Isso equivale a dizer que o

orçamento, além de limitar o nível dos gastos do Executivo, serve ao controle social da

administração dos recursos públicos pelo público a que serão direcionadas as políticas sociais

constantes desse plano de ação pública. Além disso, o orçamento serve ao exame da

responsividade do gestor perante os governados e, de igual modo, pode funcionar como

indicador para a revisão de questões político-administrativas pelo sistema jurídico no âmbito

do controle jurisdicional.

Esse processo de constitucionalização do orçamento, como política orçamentária, é

assim tratado por Torres (2000, p.10):

Na época da derrocada do feudalismo e na fase do Estado Patrimonial e Absolutista

já aparece a necessidade da periódica autorização para lançar tributos. Mas com o advento do liberalismo e das grandes revoluções é que se constitui plenamente o

Estado Orçamentário, pelo aumento das receitas e das despesas públicas e pela

constitucionalização do orçamento na França, nos Estados Unidos e no Brasil, como

vimos.

Assim observado, o orçamento público também pode ser considerado uma aquisição

evolutiva da sociedade. Isso porque sua constitucionalização permitiu que o sistema político

estabelecesse pontos de contato com a economia e com o direito, pelo compartilhamento de

suas prestações. A política econômica do Estado de Direito que se pretenda democrático deve

levar em consideração o primado das escolhas feitas com base na política, considerar o que se

mostra mais vantajoso conforme a conjuntura econômica do momento e, como conditio sine

qua non para sua validade perante o sistema jurídico, deve ter em vista o maior nível de

implementação das políticas concretizadoras de direitos fundamentais.

A Constituição Imperial de 1824 inaugura a história orçamentária brasileira, que já

surge como mecanismo de controle recíproco entre os poderes Executivo e Legislativo. Com

a Constituição de 1891, esse modelo passou por substancial alteração, no que toca à

distribuição de competências. A elaboração do orçamento passou a ser função privativa do

Congresso Nacional, assim como a tomada de contas do Executivo. Também foi criado o

Tribunal de Contas, órgão destinado a auxiliar o Congresso no controle das contas públicas

que apareceu pela primeira vez na história constitucional brasileira.

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192

Ao contrário da época reformadora e questionadora enfrentada pelos Estados Unidos,

o Brasil passou pelas duas primeiras décadas do século XX sem ocorrências marcantes. A

aprovação do Código de Contabilidade da União, no ano de 1922, por ato do Congresso

Nacional, representou uma conquista técnica, porque o orçamento passou, desde então, a ser

visto como instrumento tipicamente contábil. Por ordem dessa mesma norma, o Executivo

passou a ser o responsável por levar ao Legislativo todos os elementos para que esse

exercitasse sua atribuição de iniciar a elaboração da lei orçamentária (PONTES DE

MIRANDA, 1963a).

A revolução de 1930, com sua onda modernizadora, propiciou uma ruptura com o

passado. A autonomia dos Estados e o Federalismo foram substituídos por um processo de

centralização da maior parte das funções públicas na área federal, modelo institucional

finalmente incorporado pela Constituição de 1934 (GIACOMONI, 2007, p. 42). Assim, a

elaboração da proposta orçamentária tendo sido retornada ao âmbito de competência do

Presidente da República, ao Legislativo foi atribuída a competência de votar tal proposta, bem

como julgar as contas públicas, com o auxílio do Tribunal de Contas. A constituição não

impôs limites ao poder de emendas ao orçamento por parte dos legisladores, viabilizando,

assim, a coparticipação dos dois poderes em sua elaboração.

Com a instituição do regime autoritário, em 1937, o sistema orçamentário brasileiro

passou por nova reforma: o orçamento passou a ser elaborado por um departamento

administrativo integrante da Presidência da República e votado pela Câmara dos Deputados e

pelo Conselho Federal.148

Entretanto, “como jamais foram instaladas as casas legislativas no

período, o orçamento federal permaneceu sendo elaborado e executado pelo Executivo, que

passou a intervir diretamente nos orçamentos estaduais e municipais, a partir do início dos

anos 40” (SABBAG, 2007, p. 14).

Com a Constituição de 1946, o orçamento volta a ser resultado da coparticipação dos

poderes: o Executivo elaborava o projeto de lei e o encaminhava para discussão e votação nas

casas legislativas; foram consagrados princípios estruturantes do orçamento, tais como a

unidade, a universalidade, a exclusividade e a especialização. Além disso, houve o

detalhamento das atribuições do Tribunal de Contas.

148

Em 1939, o regime autoritário então vigente acabou, por completo, com a parcela de autonomia que ainda

restava aos Estados e Municípios. Os governadores estaduais (interventores) passaram a ser nomeados pelo

presidente, enquanto aqueles passaram a nomear os prefeitos. Criou-se, em cada Estado, um Departamento

Administrativo, integrado por membros nomeados pelo presidente da República, cujas atribuições, dentre outras,

era aprovar os projetos de orçamento do Estado e dos Municípios, bem como fiscalizar as respectivas execuções.

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193

Os comentários de Pontes de Miranda são ilustrativos ou, mais que isso, servem à

compreensão do orçamento como ponto de confluência entre vários sistemas, que partilham,

reciprocamente, informações e prestações. Evidenciam, também, já naquela época, a

observância do espaço político de deliberação é uma imposição que limita a atuação do

administrador. Veja-se:

O orçamento é ato político, porque se liga à deliberação do Congresso Nacional e à

sanção do Presidente da República, no tocante à seleção dos meios financeiros e das

despesas; é ato jurídico, porque é lei, em sentido formal; é ato econômico-financeiro, por seu conteúdo; é ato administrativo, porque, por ele, se rege,

financeiramente, a administração. Lei no sentido só formal, ainda assim o orçamento

contém exercício de seleção por inclusão ou exclusão, o que obsta a que se considere

simples ato administrativo do Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da

República (PONTES DE MIRANDA, 1963a, p.6).

Interessante notar que o autor demonstra preocupação com a preservação do espaço

político de deliberação que se concentra no Legislativo, o que pode desencadear, inclusive, a

revisão da questão pelo Judiciário. A propósito disso, continua Pontes de Miranda (1963a, p.

6-7):

Daí resulta que a inserção das receitas e despesas no orçamento, se houve lei, que

devesse e precisasse ser inserta, é a líbito do Congresso Nacional, com a sanção do

Presidente da República. O que o orçamento regula são as relações entre os Podêres

Legislativo e Executivo, não entre a União e as pessoas de direito privado, ou

público, que à jurisdição federal estão sujeitas.(...)Se essas leis, do Congresso

Nacional, com a sanção do Presidente da República, foram excluídas do plano da

gestão, isso permite que os interessados exerçam, perante o Poder Judiciário, as suas

pretensões à tutela jurídica. O Poder Executivo não pode exigir ou despender o que

o Congresso Nacional, precisando inserir no orçamento, não inseriu.

A experiência autoritária que se seguiu ao Golpe de 1964 foi traumática sob o ponto

de vista do retrocesso na relação entre os poderes no processo orçamentário.

A década de 80 foi marcada por muitas pressões no campo político, desencadeadas

pela ação de uma esfera pública insatisfeita com o regime autoritário. Data dessa época o

surgimento de muitos movimentos de protesto, os quais despertaram o interesse de milhares

de pessoas que se reuniram em torno de objetivos políticos comuns.

Nesse contexto surgiram protestos pela abertura política, pelo reconhecimento de

direitos de minorias políticas, étnicas e de gênero, assim como pela constitucionalização de

políticas públicas que pudessem fazer face às demandas sociais. Sob a perspectiva

orçamentária, a Assembleia Nacional Constituinte foi influenciada por modernas teorias sobre

a administração pública, que atribuíam ao orçamento um papel de suma importância na

consecução das políticas públicas (SABBAG, 2007, p. 17).

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194

A principal conquista, no campo orçamentário, consistiu no restabelecimento das

prerrogativas parlamentares que haviam sido subtraídas pelo regime autoritário. Destacam-se,

aqui, a possibilidade de propor emendas ao projeto de lei do orçamento e de explicitar o

sentido da universalidade orçamentária. Importa salientar a instituição da Comissão Mista de

Orçamento – órgão permanente ao qual compete examinar os projetos das leis orçamentárias e

as contas do Presidente da República, assim como a relevante tarefa de acompanhar e

fiscalizar a execução do orçamento da União.

Na Constituição Brasileira de 1988, o orçamento relaciona-se ao planejamento estatal

e à operacionalização das políticas públicas adotadas nas formulações orçamentárias

correspondentes à decisões coletivamente vinculantes, quais sejam: o Plano Plurianual (PPA),

a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA).

Conforme já exposto, toda política pública, como programa de ação governamental

financiado com recursos públicos, deve ter seu lugar bem definido nas três modalidades de

orçamento previstas na Constituição Federal: o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e

os orçamentos anuais (COMPARATO, 2003).

Todavia, é bom que se esclareça que não se afasta a possibilidade de o administrador

ser compelido a realizar políticas públicas que não foram previstas no orçamento. É relevante

notar que tal questão deve ser tratada conforme as peculiaridades de cada caso. Sustenta-se,

de toda sorte, que o controle da licitude/ilicitude das decisões coletivamente vinculantes pelo

sistema jurídico não pode ser afastado. Vale dizer: o controle jurisdicional dos orçamentos, da

execução orçamentária ou mesmo da implementação das políticas públicas que asseguram

direitos fundamentais será, em tese, sempre possível porque a eventual correção

contramajoritária das decisões políticas é de crucial importância para o fortalecimento do

processo democrático. Sob a perspectiva sistêmica, tal controle representa tão-somente uma

consequência da diferenciação funcional entre os sistemas. Isso porque ao sistema jurídico é

dado manter-se vigilante quanto à observância do código lícito/ilícito pelas operações de

todos os demais sistemas sociais.

Voltando à previsão constitucional do processo orçamentário, vê-se que o plano

plurianual representa a síntese do conjunto de políticas públicas a cargo de cada unidade

político-administrativa do ente estatal (COMPARATO, 2003). Ao Plano Plurianual atribui-se

a função de impedir que as políticas públicas deixem de ser ações de Estado e se tornem ações

de governo, razão por que sua vigência abrange período entre o segundo ano do mandato do

Executivo e o final do primeiro ano do mandato seguinte.

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A Lei de Diretrizes Orçamentárias deve priorizar as metas já estabelecidas no Plano

Plurianual e orientar a elaboração do orçamento do ente estatal correspondente. O

estabelecimento das diretrizes orçamentárias contribui para que o processo orçamento cresça

em transparência e, por outro lado, possibilita que o Legislativo possa participar de modo

mais ativo no disciplinamento das finanças públicas.

Por fim, a Lei Orçamentária Anual deve contemplar todas as metas e diretrizes

previamente estabelecidas. Como o planejamento das políticas públicas tendentes à

concretização dos direitos fundamentais é imposição constitucional, as eventuais

incompatibilidades entre a Lei Orçamentária e o processo político-orçamentário antecedente

devem ser corrigidas, se necessário, pela atuação do sistema jurídico. Isso quer dizer que os

parâmetros estabelecidos previamente à elaboração da Lei Orçamentária devem ser

observados pelo administrador na formulação do projeto de lei do orçamento anual. Pela

mesma razão, qual seja a de preservar os espaços do político – aquele em que a discussão em

torno das questões de política orçamentária pode ser ampla e coletivizada –, sustenta-se aqui

que as disposições orçamentárias previstas na lei anual devem ser respeitadas pelo

administrador na execução orçamentária correspondente. Como se verá oportunamente, não

se admite que o administrador opte por não empregar os recursos nas ações previstas, que

dispõem de dotação orçamentária específica, sem que haja um relevante e sindicável motivo

para tanto.

A “Constituição Orçamentária”, na expressão de Ricardo Lobo Torres (2000),

recuperou a harmonia e separação entre os poderes, ao balizar as atribuições orçamentárias

concentradas no Poder Executivo, a quem cabe arrecadar a quase totalidade dos recursos que

serão gastos sob a orientação do orçamento. O Executivo, assim, por meio do que se

denomina execução orçamentária, desempenha sua função de administrar os recursos

públicos. Com efeito, compete ao Poder Executivo receber as propostas orçamentárias dos

poderes Legislativo e Judiciário e dos órgãos que possuem autonomia orçamentária; checar o

respeito aos limites previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), para, ao fim,

consolidar os valores e preparar os projetos que serão enviados ao Legislativo. Cabe-lhe,

também, sancionar e publicar o orçamento, bem como transferir aos poderes e órgãos citados

as dotações previstas, mensalmente.

Por outro lado, deveres, como o repasse mensal obrigatório, a teor do que dispõe o art.

168 do texto constitucional; o respeito às propostas orçamentárias apresentadas pelos demais

poderes e órgãos autônomos (iniciativa de suas propostas orçamentárias), além da própria

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autonomia para empregar as dotações que lhe são devidas, garantem a separação e harmonia

entre os poderes estatais.

A redação dada ao art. 62, alínea “d”, da Constituição da República pela Emenda nº

32/01 restringiu a edição de medidas provisórias em matéria orçamentária. Essa medida, em

última análise, visa a resguardar a observância do princípio democrático e da separação entre

os poderes e, portanto, reafirmar que a previsão do gasto de recursos públicos deve ser

submetida ao crivo do Legislativo.149

Essa inovação constitucional representa um avanço na estrutura normativa

orçamentária, na medida em que, a partir dela, vetou-se a possibilidade de empregar recursos

públicos sem a prévia deliberação política, em sentido estrito. A nova disposição

constitucional dá mostras de que é necessário resgatar a importância da participação da

sociedade no processo orçamentário.

Não se desconsidera aqui que, também na elaboração e execução dos orçamentos

públicos há a corrupção sistêmica, assim como não se nega a normatividade estrita das

disposições constitucionais correlatas. No entanto, conforme se sustenta neste trabalho, a

participação do público afetado pelas decisões alocativas de recursos nas discussões que

antecedem tais escolhas é um dos meios para que se garanta a progressiva generalização dos

direitos da cidadania. Por intermédio dos orçamentos, a esfera pública poderá participar das

deliberações e fazer uso dos mecanismos institucionais que lhe permitam incidir na

formulação da política. Em uma palavra: a proibição de se editar medida provisória para

149

O Supremo Tribunal Federal, desde que entrou em vigor a Constituição Federal de 1988, posicionava-se

contrariamente à possibilidade do controle abstrato de constitucionalidade de leis orçamentárias. Esse

entendimento era amparado na concepção de que não se admite controle da constitucionalidade sobre normas

que veiculam atos de efeito concreto, tal como ocorre com as disposições tendentes a viabilizar alterações

orçamentárias no exercício de sua vigência. Nessa linha de raciocínio, a jurisprudência do STF considerava

objeto idôneo do controle abstrato de constitucionalidade apenas atos normativos dotados de generalidade, abstração, normatividade e impessoalidade (ADIn 203-1/DF, por exemplo). Esse posicionamento, todavia, foi

revisto pelo Supremo Tribunal Federal, que no julgamento da MC-ADI n. 4.048/DF ocorrido em 2008,

considerou viável o controle de constitucionalidade dos orçamentos públicos pela via das ações diretas de

inconstitucionalidade. Essa mudança de entendimento representa um importante avanço no processo de

“desmistificação” da intangibilidade da discricionariedade administrativa no tocante ao orçamento público.

Concluiu-se, no caso das leis orçamentárias, que referidas espécies normativas seriam atos estatais de efeitos

concretos apenas aparentemente, tendo em vista que somente a efetiva execução é que dependeria da prática de

atos de efeitos concretos. O controle abstrato sobre atos normativos de natureza orçamentária pode abrir um

importante espaço para a ressignificação do orçamento público, que adquire feição simbólica em virtude da

baixa normatividade das disposições constitucionais. “CONTROLE ABSTRATO DE

CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DEVE EXERCER SUA FUNÇÃO PRECÍPUA DE FISCALIZAÇÃO DA

CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS E DOS ATOS NORMATIVOS QUANDO HOUVER UM TEMA OU

UMA CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SUSCITADA EM ABSTRATO, INDEPENDENTEMENTE

DO CARÁTER GERAL OU ESPECÍFICO, CONCRETO OU ABSTRATO DE SEU OBJETO.

POSSIBILIDADE DE SUBMISSÃO DAS NORMAS ORÇAMENTÁRIAS AO CONTROLE ABSTRATO DE

CONSTITUCIONALIDADE” (Disponível em <www.stf.jus.br>. Acesso em 20.12.2009).

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obtenção de créditos suplementares sinaliza para a revalorização do controle político e social

das despesas públicas. Conforme salientado por Weiss (2006, p. 242): “A tramitação prévia à

aprovação permite que todos tenham ciência dos projetos que justificam as despesas, o que

viabiliza a essencial crítica democrática.”

Outra sinalização relevante no sentido de incrementar os meios de controle social

nessa temática é evidenciada em diversas propostas de reforma política e projetos de lei que

valorizam o espaço de deliberação política que norteia as disposições orçamentárias de modo

geral. O projeto de lei nº 248, intitulado de “Lei de responsabilidade orçamentária”, por

exemplo, contempla instrumentos que oferecem mais transparência aos orçamentos, tanto no

detalhamento das informações – especificação das ações e subações – tanto quanto na clareza

e inteligibilidade destas disposições.150

O projeto de lei valoriza instrumentos de participação

popular já instituídos, como as audiências públicas que têm sua realização disciplinada, entre

outras.151

5.2.2 Orçamento público e racionalidade transversal

Propõe-se neste trabalho a compreensão do orçamento público como mecanismo

essencial ao relacionamento multissistêmico que se dá entre o direito, a política e a economia,

quando se trata da concretização de direitos fundamentais. Isso porque os orçamentos, se

levados a sério por governantes e governados, poderão oferecer prestações que permitam aos

três sistemas relacionarem-se entre si de modo produtivo e sem causar prejuízos à

diferenciação funcional entre eles.

150

A redação proposta é a seguinte: “Art. 99 A transparência constitui instrumento de cidadania e tem por objetivo dar visibilidade ao funcionamento das instituições públicas, visando ao fomento do exercício do

controle social e à racionalização da ação dos órgãos de controle. § 1º A transparência da gestão pública

pressupõe a visibilidade, a acessibilidade e a padronização, na Federação, das informações referentes às finanças

públicas e às matérias que lhes são correlatas direta ou indiretamente. § 2º Para os fins desta Lei Complementar,

são instrumentos de transparência, além dos previstos pelo art. 48 da Lei Complementar nº 101, de 2000, o

Relatório de Gestão Administrativa, as Demonstrações Contábeis e os sistemas de informação pública.” 151

Art. 10. As audiências públicas serão organizadas: I - pelos conselhos representativos das políticas setoriais

dos entes da Federação, para discutir as propostas dos planos nacionais depolíticas setoriais em período anterior

ao encaminhamento dos projetos ao Legislativo; ou II - pelos órgãos centrais e setoriais de planejamento do

Poder Executivo federal, em conjunto com representantes da sociedade civil, caso não tenham sido criados os

conselhos referidos no inciso anterior; e III - pelos órgãos centrais de planejamento e orçamento dos entes da

Federação, em conjunto com representantes da sociedade civil, em período anterior à validação qualitativa e

quantitativa dos projetos lei do ciclo orçamentário, para discutir, pelo menos: a) os programas, ações, resultados

e metas físicas do PPA; b) os critérios para definição de prioridades da LDO; c) os critérios para alocação de

recursos na LOA. IV - pela comissão referida no § 1° do art. 166 da Constituição ou equivalente nas Casas

Legislativas estaduais e municipais, ouvindo autoridades de outros Poderes e representantes da sociedade civil,

para discutir os projetos de lei do ciclo orçamentário.

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Importante frisar, nesse aspecto, que, apesar de se refutar a capacidade autopoiética

dos sistemas sociais no caso brasileiro, em virtude das dificuldades por ele encontradas para

se reproduzir de modo autorreferente, sustenta-se que é possível ao processo de evolução

social oferecer condições para que se aumente o nível de diferenciação funcional. Isso

equivale a dizer que, sob o ponto de vista desta autora, a modernidade periférica pode perder a

feição negativa desde que, com o passar do tempo, seja possível aumentar o nível de

autorreferência dos subsistemas.

Os orçamentos públicos, embora não sejam tratados com a devida seriedade – decerto

porque tragados pela “realidade constitucional” que torna os direitos fundamentais carentes de

normatividade – podem funcionar como um vetor para a concretização progressiva dos

direitos fundamentais. A isso corresponderia aumentar gradativamente a generalização da

inclusão dos indivíduos no sistema jurídico e, consequentemente, aumentar o nível de

diferenciação funcional do direito.

Sob o ponto de vista sistêmico, o orçamento público representa o ponto de confluência

entre vários sistemas sociais. Conforme se expôs linhas atrás, para a formulação e realização

das políticas públicas sociais devem se entrelaçar, pelo menos, os sistemas político, jurídico e

econômico. Com isso não se nega que o orçamento incorpora os programas finalísticos típicos

do sistema político, até porque significativa parte do planejamento estatal e a seleção das

políticas públicas afins deve estar retratado nas proposições orçamentárias encaminhadas para

aprovação do Legislativo. Apenas se enfatiza a função do orçamento na sociedade

contemporânea: possibilitar que o sistema político interconecte suas esferas internas (público,

administração e política), assim como estabeleça relações de intercâmbio simultâneo de

experiências com o sistema jurídico e com o sistema econômico.

É essa a nova perspectiva das interferências intersistêmicas que a noção de

racionalidade transversal aplicada aos orçamentos possibilita compreender: interferências

estáveis e relacionadas às estruturas de cada um dos sistemas envolvidos.

Nesse contexto, com o fito de observar esse fenômeno multissistêmico e dotar-lhe de

potencial eficácia para ampliar os níveis de investimentos nas políticas sociais, optou-se pelo

instrumental teórico oferecido pela noção de racionalidade transversal (NEVES, 2009).

Conforme se expôs no capítulo três, o mecanismo da racionalidade transversal permite

que um sistema disponibilize ao outro sua racionalidade parcial, que corresponde ao modo

como aquele sistema assimila os influxos do meio. Assim, a racionalidade parcial presente em

cada sistema orienta-se de acordo com o modo de compreender a realidade circundante por

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meio de sua racionalidade própria. O entrelaçamento dessas racionalidades, por sua vez,

quando se dá sem sobrecarregar nenhum dos sistemas, propicia o surgimento da racionalidade

transversal.

Diferentemente do que ocorre com o mecanismo do acoplamento estrutural, um

sistema pode oferecer ao outro não somente suas prestações, mas sua própria racionalidade.

Quando se refere à racionalidade parcial, fala-se sobre a “a própria racionalidade processada

por um dos sistemas que é posta à disposição do outro, tornando-se acessível a este enquanto

sistema receptor” (NEVES, 2009, p. 37-38). Como se vê, há uma afinidade entre acoplamento

estrutural e racionalidade transversal, e o que distingue esses mecanismos é a noção de

racionalidades parciais que se entrelaçam transversalmente. Com isso, a racionalidade

transversal vai além dos limites assumidos pelo acoplamento estrutural e pode contribuir para

que as relações intersistêmicas se desenvolvam de modo mais rápido e eficiente.

No caso dos orçamentos, a transversalidade de seu conteúdo multifacetado, como se

viu, envolve saberes e prestações de diversos sistemas sociais. Pretende-se aqui estabelecer

uma correspondência entre o modo como os sistemas envolvidos se organizam para

compartilhar suas prestações e as racionalidades parciais que orientam o seu funcionamento

interno para, então, propor que essas racionalidades se entrelacem no âmbito orçamentário. A

propósito disso:

Os entrelaçamentos promotores da racionalidade transversal servem sobretudo ao

intercâmbio e aprendizado recíprocos entre experiências com racionalidades

diversas, importando a partilha mútua de complexidade preordenada pelos sistemas

envolvidos e, portanto, compreensível para o receptor (interferência estável e

concentrada no plano das estruturas) (NEVES, 2009, p. 49).

Tais entrelaçamentos são viabilizados pelas “pontes de transição” que interligam as

esferas heterogêneas num contexto de aprendizagem e intercâmbio recíproco entre

racionalidades parciais e interferências estruturais (NEVES, 2009, p. 45).

Dito de outro modo, pelo compartilhamento das racionalidades parciais de cada

sistema, surge a possibilidade de um sistema oferecer ao outro acesso a uma realidade

ordenada. Isso porque a linguagem de um sistema é colocada a serviço do outro, de modo

direto. Além disso, o ponto de intersecção entre as funções de cada sistema é estável e não

ocasional, pois a conexão refere-se às estruturas de cada sistema. Acolhe-se a ideia de que

várias “esferas autônomas de comunicação da sociedade” entrecruzam-se na elaboração dos

orçamentos e possibilitam o “intercâmbio construtivo de experiências entre racionalidades

parciais diversas” (NEVES, 2009, p.38). A perspectiva multissistêmica aqui não se torna

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problemática, pois a transversalidade pode alcançar as racionalidades dos sistemas envolvidos

que se interrelacionam na concepção moderno-democrática de orçamento público.

Isso porque, pela via do orçamento, o sistema político realiza, em todas as suas esferas

de atuação, escolhas sobre quais direitos serão garantidos por meio das políticas e ações

públicas realizadas, disponibilizando as informações correlatas para eventuais

questionamentos, na esfera jurídica ou política. O espaço do político, propriamente dito,

poderá ser fortalecido desde que os orçamentos funcionem como mecanismos de transposição

das decisões coletivamente vinculantes para o campo da realização dessas decisões no

cotidiano dos indivíduos. Com isso, o orçamento oferece, como prestação, a

operacionalização viável das expectativas sociais generalizadas no âmbito político sob o

ponto de vista das finanças públicas e as torna passíveis de revisão, seja pelo sistema político,

seja pelo sistema jurídico.

Para o sistema econômico, os orçamentos fornecem subsídios sobre quais as áreas do

setor estatal poderão oferecer melhores opções de investimentos, por exemplo, uma vez que

as opções da política econômica adotada pelo Estado repercutem diretamente nas formulações

orçamentárias desse ente estatal.

Considerando as peculiaridades de cada sistema, a racionalidade transversal só se fará

presente se as influências e irritações recíprocas entre os sistemas sociais envolvidos

contribuírem positivamente para o desenvolvimento dos sistemas.

Todavia, a utilização da racionalidade transversal para construir “pontes de transição”

entre os sistemas também não afasta, por si só, o risco de haver a sobreposição de uma

racionalidade a outra. Nesse caso, ocorre algo assemelhado a uma espécie de “expansão

imperialista” de um dos sistemas sobre os demais (NEVES, 2009, p. 47). Quando se pretende

uma leitura econômica do direito, numa proposta de economização da vida, ou quando o

direito pretende regular áreas da autonomia privada em que não lhe compete intervir, o que

gera a juridicização das relações sociais, ocorre o fenômeno da expansão indevida de uma

racionalidade parcial sobre a outra. No exemplo de Neves (2009, p. 50):

[...] o regime fiscal de receitas e despesas, acoplamento estrutural entre política e economia, pode não levar à racionalidade transversal, desde que a política fiscal seja

prejudicial à economia ou, ao ser superadequada economicamente, atue

negativamente sobre a legitimidade democrática das decisões políticas. O mesmo se

pode dizer da Constituição como acoplamento estrutural entre política e direito:

pode contribuir ou não para a construção de uma racionalidade transversal entre

ambos os sistemas, destacando-se a segunda hipótese nos casos de tendências à

judicialização da política e à politização do direito.

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Em outra perspectiva, a disponibilização de realidade ordenada ao sistema jurídico

sobre as implicações políticas e econômicas contidas no orçamento, por meio das respectivas

racionalidades parciais, pode se referir à possibilidade de correção da política pública ou

mesmo à implementação do direito fundamental violado. A atuação do sistema jurídico, nesse

caso, se dá no sentido de preservar o princípio democrático jurisdicional. Isso ocorre porque a

racionalidade parcial da economia, por exemplo, já processada no interior desse sistema,

disponibiliza informações valiosas para o sistema político, às quais a racionalidade parcial do

direito, por sua vez, poderá dizer se são de pronto assimiláveis ou não. Evita-se, assim, a

expansão da racionalidade econômica sobre a racionalidade política ou, quando muito,

estabelece-se um âmbito de justiciabilidade da questão respectiva, que, igualmente, poderá se

valer das informações oferecidas pelos outros sistemas. Na hipótese mencionada é possível

que se vislumbre a racionalidade transversal porque há prestações recíprocas e benefícios para

os sistemas envolvidos.

Por outro lado, a ingerência indevida do sistema jurídico sobre as funções que o outro

deve desempenhar com exclusividade corresponde ao que se tem chamado de “judicialização

da política” ou “ativismo judicial”,152

conforme explica Cittadino (2002). Outros fenômenos

relacionados à desconsideração das fronteiras entre os sistemas jurídico, político e econômico

também recebem denominações de mesma inspiração, como ocorre com a invasão da política

sobre o direito (politização do Judiciário) ou do direito pela economia (leitura econômica do

direito). Além do ponto de vista exposto no parágrafo anterior, essa problemática pode ser

observada de dois modos distintos. Na leitura habermasiana, isso corresponde ao risco de que

o direito seja “colonizado” pelo poder burocrático ou pelo poder econômico. A

“judicialização da política”, por sua vez, seria uma espécie de “colonização interna” do

mundo da vida pelo direito. Para Luhmann tratar-se-ia de hipótese de corrupção sistêmica

que, como se viu, pode se relacionar à sobreposição do código próprio do direito pelo código

da política ou da economia. Já o ativismo do Judiciário, em sentido contrário, corresponde à

preponderância do código próprio do sistema jurídico sobre o código da política. Em ambas as

perspectivas, a ilação comum é de que tais fenômenos sociais põem em risco a

horizontalização das relações intersistêmicas e obstruem o fluxo adequado das comunicações

152

A expressão foi originalmente utilizada pelo jornalista Arthur Schlesinger em artigo publicado na revista

Fortune em 1947, no qual ele traçava o perfil dos nove ministros da Suprema Corte estadunidense, classificando-

os entre os que optavam por uma interpretação restritiva da atividade jurisdicional e os “ativistas”. A tônica, à

época, referia-se às repercussões do New Deal para a sociedade americana (Disponível em:

<www.constitucional.org/Irev/Kmiec/judicial_activism.htm>. Acesso em: 7.11.2009).

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202

que ocorrem no interior dos sistemas e, assim, torna-se inviável a autorreferência. Nessa

última hipótese, a diferenciação funcional é crescentemente fragilizada.

Nada obstante, num cenário de carência de recursos e demandas básicas irrespondidas

pelo ente estatal, facilmente constatável nos países da modernidade periférica, a noção de

“judicialização da política” ou de “ativismo judicial” deve ser adequadamente identificada,

sob pena de o Poder Judiciário e o Ministério Público tornarem-se parte de um aparelhamento

técnico-burocratizado. A questão determinante para que se identifiquem os limites do

controle, seja social, seja jurisdicional, relativo às políticas públicas, é a compreensão do

modo como se dão as relações intersistêmicas e, para tanto, deve-se avaliar qual o instrumento

teórico pode ajudar nessa análise.

Como se viu, no caso dos orçamentos observa-se que a política contribui com seu

programa finalisticamente orientado e o seu código, orientado pelo poder/não poder; a

economia, orientada para a obtenção do maior benefício mediante o menor dispêndio,

contribui para que se potencialize o alcance da ação política com o mínimo de recursos

públicos; o sistema jurídico, por último, contribui ao disponibilizar as informações sobre qual

escolha pode ser considerada lícita ou ilícita. Isso ocorre, no caso dos orçamentos públicos,

quando se avalia se a formulação e execução das políticas públicas tendentes à concretização

dos direitos fundamentais estão conforme a demanda de consolidação da cidadania.

Assim, se se pensar que a vantagem econômica não é o objetivo da ação estatal e que a

eficiência é um dever do administrador – e aí está embutida a ideia de menores custos e

maiores vantagens –, que, ao mesmo tempo, a ação pública pode gerar boas oportunidades de

ganho para a economia e que a interface entre essas orientações sistêmicas pode ocorrer

mediante a observância do código lícito e ilícito, é, de fato, possível se concluir que a

racionalidade transversal é aplicável ao processo orçamentário.

No entanto, no caso brasileiro, tão importante quanto o compartilhamento de realidade

preordenada entre os sistemas é que se observe o respeito ao código licito/ilícito. Isso porque

só a partir da observância do código lícito/ilícito como segundo código dos demais sistemas

envolvidos é que se poderá garantir que o orçamento público desempenhe sua função

concretizadora de direitos fundamentais por meio da ação pública orientada a tal fim.

Conforme explica Neves (2008, p.89):

Só a partir dessa inserção do código de preferência jurídico no interior do sistema

político este se constitui como circulação dinâmica generalizada de poder,

afirmando-se autonomamente perante as pressões particularistas e os fatores

imediatos de seu ambiente social.

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203

É sob tais perspectivas que os orçamentos poderão ser tratados como vetores para a

promoção da cidadania. Em outras palavras: somente se a lógica dos sistemas envolvidos

puder se relacionar de modo coordenado, sem a preponderância de uma sobre a outra é que se

poderá falar, a rigor, em orçamento público com feição democrática, ou seja, orientado pelo

nível máximo de concretização progressiva dos direitos da cidadania.

Como consequência desse raciocínio, as escolhas deliberadas no âmbito do político,

que se espera tenham sido definidas com a participação expressiva da esfera pública, devem

vincular o administrador sob pena de sua ação ser considerada ilícita pelo sistema jurídico.

Assim, se não houver nenhuma justificativa plausível para a desconsideração da esfera de

deliberação política, não há motivação que possa justificar a ampliação “ilícita” da margem de

discricionariedade do administrador.

Certamente essa prática encontra respaldo na feição meramente autorizativa

assumida pelo orçamento público no Brasil, uma vez que não há previsão constitucional ou

infraconstitucional específica que vincule o administrador ao que dispõe a lei orçamentária.

Em razão disso, a execução dos orçamentos dos entes federativos, via de regra, não reflete as

disposições consubstanciadas na lei orçamentária submetidas à apreciação do legislativo e,

por vezes, a deliberação da esfera pública, pela via dos conselhos gestores, audiências

públicas, entre outros mecanismos de inclusão político-democrática. O argumento que

sustenta essa lógica seria a necessidade de oferecer maior flexibilidade ao administrador na

condução da política econômico-financeira do ente estatal.

A noção de discricionariedade, então, tem sido redimensionada e ampliada de modo a

facultar ao Executivo simplesmente ignorar dotações orçamentárias. Isso quer dizer que,

mesmo quando a receita estimada é alcançada, o administrador v.g não se vê compelido a

empregar os recursos correspondentes da política a que eles se direcionavam inicialmente.

Sequer se fiscaliza, com o necessário rigor, se nessas circunstâncias houve o remanejamento

dos recursos conforme prevê o devido processo orçamentário ou exige-se que seja esclarecida

a motivação para o desatendimento das disposições políticas antecedentes.

A parcela da receita pública não empregada na consecução da política pública

preterida fica paralisada e, não raro, deixa de ser aproveitada para aumentar o nível de

execução de outra política, por exemplo, em razão da necessidade de autorização legislativa

prévia. Quando o administrador deixa de gastar determinado recurso proveniente de uma

dotação financeira, o valor correspondente fica retido sob a forma de contingenciamento.

Logo, se o administrador empenhar mais recursos do que dispõe em uma área e, ao final, as

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receitas não forem suficientes, ele pode não gastar recursos destinados a execução de outras

políticas e programas – muitas vezes de extrema relevância social – e, assim agindo,

reequilibrar suas finanças.

De outro lado, a abertura de créditos suplementares é comum e acaba criando outro

flanco de discricionariedade quase insindicável, já que há previsão legal e comprovar o desvio

é, muitas vezes, impossível.

Conforme anotado no início deste capítulo, sob a perspectiva sistêmica de Estado

Democrático de Direito, o administrador deve se vincular à deliberação que antecedeu a

formulação orçamentária, salvo se comprovado motivo que justifique a não execução de uma

dotação orçamentária realizável. Da mesma forma, a suplementação orçamentária não pode

ser uma prática assim tão corriqueira. Por certo, o ente federativo dispõe de aparato técnico

suficiente para projetar as despesas e receitas, assim como para compatibilizá-las com as

demandas de maior relevância social. Entretanto, não é raro que, ao se analisar a execução

orçamentária do ente estatal, se constate baixíssimo nível de execução para políticas sociais

prioritárias e, na mesma peça, execução até superavitária de programas voltados à divulgação

institucional, por exemplo.153

É neste ponto que o âmbito restrito de normatividade da lei orçamentária, acentuada

pelo caráter meramente autorizativo do orçamento público, demonstra incompatibilidade com

os preceitos do Estado Democrático de Direito. Apesar de não se sustentar a vinculação de

receitas a gastos públicos previamente definidos, até porque isso poderia colocar em risco a

eficiência da administração, é inegável que deve haver maior controle sobre a

153

Como ilustra esse breve quadro comparativo elaborado com base em informações disponibilizadas pelo

SIAFI, durante o ano de 2009, de janeiro a outubro, o Governo do Estado de Minas Gerais autorizou o empenho

de mais de 227% do valor do crédito inicial para gastos com divulgação institucional. O percentual de execução,

até outubro, ultrapassou a casa dos 58%. Por outro lado, a rubrica destinada à construção de unidades

socioeducativas para adolescentes, ação prioritária conforme a Constituição e o disposto na Lei nº 8069/90, só

tinha alcançado 8,18% de execução no mesmo período. A autorização para empenho não chegou a de 7% em

relação à autorização inicial:

Projeto –

Atividade – Descrição

Soma de

Crédito Inicial

Soma de

Crédito Autorizado

Soma de

Despesa Empenhada

Soma de

Despesa Realizada (%) de

execução

(%)

autoriz.

Inicial

Divulgação

Governamen

tal

40.753.933,00 92.853.933,00 70.793.109,47 54.608.209,44 58,81% 227,84%

Construção de

unidades

socioeduca

tivas

21.950.000,00 1.484.951,00 232.687,29 121.480,62 8,18% 6,77%

FONTE: SIAFI/ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE MINAS GERAIS, 30/outubro/2009.

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desconsideração imotivada, pelo administrador público, das deliberações adotadas do âmbito

político que ingressaram nas disposições orçamentárias.

Nesse sentido, o acompanhamento do processo orçamentário, desde a formulação das

diretrizes até a execução orçamentária, é fundamental para que se possa exercer, de modo

eficiente e respeitoso à diferenciação funcional, o necessário controle no âmbito social,

administrativo (pelos Tribunais de Contas, por exemplo) e jurisdicional.

Há ainda outros vários pontos em que as deliberações que antecederam a execução

orçamentária são colocadas a perder sem que haja motivo relevante e acessível ao público

para tanto. Atendo-se o exame à questão do contingenciamento de recursos, entretanto, pode-

se dizer que há várias possibilidades de destinação. Elencam-se aqui algumas das mais

corriqueiras possibilidades de realocação de recursos pelo administrador: a) ao final do

exercício os recursos se converterão em outras dotações, possivelmente para financiar o

aumento em despesas de custeio ou para amortizar a dívida pública; b) servirão para compor o

chamado superávit primário, o que configura “autêntica decisão de não gastar”

(MENDONÇA, 2008, p.236). Em ambas as situações o código binário não foi observado,

uma vez que tal prática não é conforme o direito e, por outro lado, não foi respeitado o espaço

do político no sentido de politics cuja preservação é essencial para o jogo democrático.

Tampouco se poderia falar em racionalidade transversal, uma vez que a racionalidade da

política, por meio da ação da administração, expande-se desmesurada e injustificadamente

sobre a racionalidade parcial do direito.

Nesses casos, pendente qualquer motivação que possa tornar lícita a conduta do

administrador, não se pode dizer que houve gestão democrática dos recursos públicos, o que,

em última análise, desafia a apreciação do sistema jurídico. A teoria sistêmica, nesse ponto,

auxilia bastante no exame da questão. Como já se afirmou, não é uma prática lícita, no âmbito

de um Estado Democrático de Direito, preterir escolhas políticas e, assim, desrespeitar o

princípio democrático.

Por outro lado, o dever de fundamentar as decisões político-administrativas merece

especial atenção quando houver modificação da alocação de recursos no curso da execução

orçamentária, por exemplo. Vale dizer: sempre que a execução orçamentária desconsiderar as

deliberações constantes das disposições do ciclo orçamentário antecedente (PPA, LDO e

LOA), torna-se imprescindível a apresentação dos motivos que determinaram tal decisão. No

entendimento desta autora, essa a racionalidade do sistema político que pode ser oferecida aos

demais sistemas – e notadamente ao sistema jurídico – de modo já processado.

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Com efeito, nas situações em que houver a substituição das escolhas com participação

direta ou indireta do público no âmbito estrito da política por escolhas monocráticas do

administrador, a responsividade do Executivo está em tornar públicos os motivos que

justificaram as mudanças de rumo no que diz respeito à seleção das políticas públicas que

serão respaldadas por investimentos e ações públicas. Caso assim não proceda, não se pode

creditar ao orçamento qualquer valor político ou jurídico. Nessa hipótese, ele mantém-se no

plano interno da administração e pode, quando muito, ser validado como peça de registros

contábeis. Não se poderia, sequer, argumentar acerca da impossibilidade de concretizar

qualquer direito fundamental sob a alegação de que inexistem “reservas orçamentárias” para

tanto.

Deve-se ter claro, por outro lado, que não há justificativa, pela ótica da racionalidade

transversal, inclusive, para que o tratamento dado aos principais componentes da atividade

financeira do Estado seja díspar. Ora, receitas e despesas devem recebem o mesmo tratamento

nos orçamentos: se os tributos são instituídos em respeito às decisões coletivamente

vinculantes do sistema político, o dispêndio dos recursos públicos também deve, em linha de

princípio, ter nas disposições coletivamente vinculantes da política seu manancial de licitude.

A racionalidade parcial que rege ambos os comportamentos da administração – tanto gastar,

quanto arrecadar – deve ser processada sob a mesma orientação finalística e democrática.

É nesse sentido que a feição meramente autorizativa dos orçamentos públicos deve ser

reinterpretada de modo a evitar que as distorções entre as propostas político-orçamentárias e a

efetiva alocação e destinação dos recursos públicos gerem prejuízos ao nível de concretização

dos direitos da cidadania, bem assim ao principio democrático, em si mesmo considerado.

Embora a retrospectiva histórica mostre que o orçamento surgiu para impor limites ao

poder de instituir tributos, com o advento da modernidade, a semântica constitucional fez com

que essa concepção evoluísse no sentido de transformá-lo num mecanismo capaz de tornar

públicos o planejamento estatal e o compromisso político com sua concretização. Essa, que

poderia ser considerada uma aquisição evolucionária na dicção de Luhmann, não deve admitir

retrocessos irrefletidos.

Em vez disso, o desenvolvimento da cidadania exige patamares cada vez mais

elevados de responsividade dos órgãos estatais, sobretudo no que diz respeito à

progressividade da generalização congruente da própria cidadania por meio de políticas

públicas adequadas. Logo, a abstenção do empenho de recursos públicos orçados e realizados

na execução de políticas públicas voltadas à concretização de direitos da cidadania, sem

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qualquer justificativa sindicável é prática dissociada dos propósitos democráticos do Estado

de Direito.

Para que essa prática seja coibida, no entanto, não há alternativa senão o controle

social, administrativo e jurisdicional, se for o caso, das omissões ou dos desvios lesivos

eventualmente identificados na execução orçamentária.

Embora a esfera pública brasileira ainda tenha uma longa caminhada pela frente, é

certo que alguns avanços já podem ser observados quanto às tentativas de mobilização em

torno das questões orçamentárias, sejam relacionadas à alocação de recursos, sejam relativas

ao incremento do nível de inteligibilidade e publicidade das peças orçamentárias. A sociedade

civil tem se organizado para ver seus direitos garantidos e, estabelecida a premissa de que

todos os direitos geram custos, qualquer recurso contingenciado injustificadamente pode

significar a violação de um direito fundamental, uma vez que a política pública que o

realizaria não se tornará uma ação.

O orçamento, como ponto de confluência entre o sistema político, jurídico e

econômico, deve ser capaz de externar a real pretensão do ente estatal no que diz respeito à

realização das políticas públicas que selecionou. Deve-se considerar, aí, a escassez dos

recursos públicos e o poder-dever da administração de tornar públicas as escolhas realizadas

na execução orçamentária e, assim, tornar viável a disponibilização direta entre os sistemas de

suas realidades já ordenadas.

Portanto, para que seja possível aos sistemas sociais envolvidos na realização de

políticas públicas intercambiar as experiências vivenciadas no âmbito de cada racionalidade

parcial e, assim, partilhar reciprocamente da realidade já ordenada no interior desses sistemas,

ou seja, partilhar mutuamente as informações que se apresentam relevantes à decisão política,

econômica ou jurídica, é necessário que os orçamentos sejam levados a sério.

Por fim, conquanto não tenha sido abordada a questão da política econômica

internacional, deve-se dizer algo sobre o assunto. Sabe-se que as condições estabelecidas pelo

mercado mundial muitas vezes incentivam – ou mesmo exigem como condição – a ideia de

que a regularidade das contas do ente estatal seja aferida por critérios meramente técnico-

contábeis. O orçamento, então, pode ser uma boa estratégica para realizar bons negócios no

âmbito internacional – captação de recursos e investimentos em geral –, uma vez que é um

atestado da boa saúde financeira do ente estatal, conforme esteja formalmente de acordo com

padrões postos, verticalmente e de “fora para dentro”. Ocorre, no entanto, que essa

padronização internacional, embora pressuponha seja o Brasil um país periférico, pouco

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considera as condições sociais em que vive grande parte da população brasileira. Como se

isso fosse uma contingência irrelevante para o discurso econômico.

Assim, o esforço da análise sistêmica da sociedade pode contribuir para que as

peculiaridades de cada Estado Nacional sejam consideradas no exame dos orçamentos

públicos e de sua importância, no âmbito interno, para a elevação do nível de generalização da

cidadania e para o fortalecimento das instituições democráticas, a partir da construção de uma

esfera pública pluralista. Essa a única nuança da credibilidade que o Estado Brasileiro pode

pleitear no âmbito do mercado internacional capaz de se sustentar sob o ponto de vista da

sociedade brasileira.

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6 CONCLUSÃO

Este trabalho iniciou-se a partir da investigação do alcance da teoria dos sistemas de

Niklas Luhmann para se analisar a tormentosa temática que envolve a concretização dos

direitos fundamentais no Brasil, considerando as peculiaridades conjunturais aí envolvidas.

Pretendia-se, assim, entender como se dão as relações entre os sistemas político, jurídico e

econômico, especificamente nas questões político-orçamentárias.

Todavia, prosseguindo na investigação teórica, pareceu interessante a conexão da

teoria sistêmica de Luhmman com a perspectiva também sistêmica, mas sobretudo discursiva ,

proposta por Jürgen Habermas. A questão passava pelo conceito de público, em Luhmann, e

esfera pública em Habermas. A noção de esfera pública combinada com a proposta de

enriquecer a democracia com instrumentos deliberativos mostrou-se adequada à temática

relacionada à concretização dos direitos fundamentais. Em razão disso, tornou-se necessário

contextualizar a teoria sistêmica entre as demais teorias jurídicas contemporâneas, pelo que

Habermas, Luhmann e Gunther Teubner uniram-se na mesma matriz, com as ressalvas das

peculiaridades quanto aos pressupostos teóricos adotados por cada autor.

A partir daí, examinou-se a proposta de Marcelo Neves de transplantar para a

realidade brasileira a gramática da teoria dos sistemas e conjugá-la com a semântica de

Habermas, especialmente, no que diz respeito à importância de se viabilizar caminhos para a

construção de uma esfera pública pluralista, capaz de intermediar dissenso conteudístico e

consenso em torno da necessidade de que haja procedimentos, constitucionalmente

estabelecidos, aptos a viabilizar a integração social apesar das diferenças valorativas que

existem entre os membros da sociedade política.

A temática dos direitos fundamentais foi abordada pelo viés pragmático-sistemático,

tendo como fio condutor a teoria da cidadania e seu desenvolvimento desde a formulação por

T. Marshall. Constatou-se, por essa via, a fundamentalidade dos direitos sociais para a

construção de uma esfera pública pluralista, bem assim para que os indivíduos tenham

perspectivas de integração em todos os sistemas e possam se beneficiar da prestação que eles

têm a oferecer. Em seguida buscou-se desmistificar a teoria segundo a qual os direitos liberais

clássicos concretizam-se sem dispêndio financeiro para o Estado, ao contrário dos direitos

sociais, que, portanto, não podem ser exigíveis judicialmente. Identificar que mesmo os

direitos liberais demandam garantia pelo Estado, como o direito de propriedade, por exemplo,

cujo gozo depende de uma série de ações estatais e, em última análise, a manutenção de um

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sistema de justiça para dirimir qualquer conflito relacionado à violação desses direitos foi

circunstância decisiva para se concluir que todos os direitos dispõem de uma dimensão

positiva e outra negativa e, inegavelmente, assegurar direitos implica dispêndio financeiro.

Em razão das dificuldades na eleição das demandas prioritárias para uma dada

sociedade e, de igual modo, pela variada gama de políticas que, eventualmente, possam

atender tais demandas, torna-se necessário o efetivo engajamento dos cidadãos e o

fortalecimento da esfera pública por eles integrada. A concretização, ainda que gradativa, dos

direitos fundamentais sociais, portanto, é fundamental ao fortalecimento da esfera pública,

pois, assegura aos indivíduos a perspectiva de inclusão político-jurídica, o que por sua vez

retroalimenta essa mesma esfera pública. Como meio para o aperfeiçoamento da democracia

brasileira, deve-se buscar a reconstrução dessa esfera pública de modo a torná-la plural, ou

seja, capaz de oferecer lugar aos mais variados interesses, valores ou discursos que emanam

nas diversas formas de vida admitidas na sociedade complexa.

A pluralização da esfera pública é o que permitirá, via reflexa, o aumento dos níveis

de educação política da população brasileira. A partir daí, mais vozes se levantarão em prol da

generalização dos direitos da cidadania.

As condições sociais do Brasil não são favoráveis à autopoiese dos sistemas sociais,

razão por que se refutou a teoria sistêmica de Luhmann nesse particular. Entretanto,

sustentou-se que existe diferenciação funcional entre os sistemas político e jurídico e que esse

nível de diferenciação pode ser gradativamente elevado, caso o nível de concretização dos

direitos fundamentais, como direitos de cidadania, seja, também, progressivamente elevado.

Estabelecidas as premissas de que os direitos sociais são dotados de fundamentalidade

e que a implementação de todos os direitos geram custos, a via que se buscou construir neste

trabalho vinculou-se a uma proposta de releitura dos orçamentos públicos, como local de

entrelaçamento com a perspectiva econômica, jurídica e política. Essa conclusão conduziu à

questão orçamentária, uma vez que só será possível ampliar o nível de concretização de

direitos caso haja maior mobilização em torno da alocação dos recursos tendentes à

concretização das políticas públicas correspondentes. Vale dizer, cabe à ação da esfera

pública pluralista atuar no processo orçamentário, acompanhar sua execução e,

gradativamente, contribuir para que mais indivíduos possam usufruir das prestações

oferecidas por cada sistema.

Em seguida, partindo-se da distinção entre o político e a política, analisou-se a gestão

dos orçamentos no Brasil. Embora se observem avanços, ainda é muito tímida a ação no

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sentido de se fazerem valer as deliberações políticas que antecedem à ação do administrador.

Nada obstante, o instrumental teórico oferecido pela teoria sistêmica de Luhmann, no que diz

respeito à diferenciação dos sistemas sociais a partir da função desempenhada por cada um

deles na modernidade, e a noção de racionalidade transversal que pressupõe essa

diferenciação e pretende tornar mais rápidas e eficientes as relações ou interferências entre

esses sistemas foram de grande auxílio para que a descrição do funcionamento da sociedade

contemporânea atendesse à demanda de compreensão acerca de qual a função capaz de ser

desempenhada pelo sistema jurídico.

Assim, resgatar e preservar as esferas de atuação política (politics) assumiu papel

central numa perspectiva de se diminuir a sobrecarga existente sobre o sistema jurídico na

contemporaneidade. Daí que as opções político-orçamentárias feitas no âmbito do Legislativo

ou mesmo por meio de procedimentos deliberativos devem nortear a gestão dos recursos

públicos e, eventualmente, gerar responsabilização por omissão ou comissão desviante. Para

tanto, o que se sustentou foi que, na modernidade, à política compete a edição de decisões

coletivamente vinculantes relacionadas à formulação das políticas públicas, assim como a

definição da respectiva alocação dos recursos necessários. À administração, diferentemente,

compete executar a política pública conforme a deliberação antecedente, adotada no âmbito

da política, pela via procedimental estabelecida para tanto.

Além disso, mostrou-se relevante considerar que a observância código lícito/ilícito

deve ser considerada como segunda referência binária a orientar a atuação do sistema da

política e da economia, no que diz respeito às questões orçamentárias.

Na modernidade, os orçamentos tornaram-se ferramentas democráticas para que a

esfera pública conheça os objetivos do governo, suas metas e programas e, a partir daí, seja

viabilizado o controle social, administrativo e, eventualmente, jurisdicional dos orçamentos.

Isso constituirá, inclusive, um modo de aferir a responsividade do gestor perante os

governados. Tal perspectiva, portanto, impede que os orçamentos sejam considerados como

peças de matriz meramente contábil e, por vezes, descumpridos; de outro lado, impõe que a

feição autorizativa dos orçamentos seja assimilada pelo administrador na medida mínima

necessária para que ele possa gerir, com eficiência, os recursos públicos no sentido da

máxima concretização progressiva dos direitos fundamentais e, consequentemente, da

generalização da cidadania no Brasil.

No que diz respeito à função dos orçamentos no Estado Democrático de Direito

brasileiro, como ambiente em que as racionalidades parciais dos sistemas jurídico, político e

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econômico podem ser organizar de modo transversal, conclui-se que, respeitados os limites

postos pelas condições sociais e a abertura oferecida pela Constituição de 1988, é possível que

a evolução social possibilite a elevação dos níveis de acesso dos indivíduos aos direitos

fundamentais. Isso, por conseguinte, contribuirá para o paulatino fortalecimento e

pluralização da esfera pública, caminho que, conforme conclusão deste estudo, poderá levar à

interrupção do círculo vicioso que, ao longo da história, tem impedido o fluxo do processo de

aperfeiçoamento das instituições democráticas que dão sustentação à República Federativa do

Brasil.

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