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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Edilberto de Oliveira Barbosa A IDEALIZAÇÃO DO HERÓI EM AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR, SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM São Paulo 2015

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Edilberto de Oliveira Barbosa

A IDEALIZAÇÃO DO HERÓI EM AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR,

SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA

LINGUAGEM

São Paulo

2015

Edilberto de Oliveira Barbosa

A IDEALIZAÇÃO DO HERÓI EM AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR,

SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da

Linguagem.

Orientadora: Profa. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda.

São Paulo

2015

Edilberto de Oliveira Barbosa

A IDEALIZAÇÃO DO HERÓI EM AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR,

SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

Banca Examinadora:

Profa. Dra. Sumiko Nishitani Ikeda - Orientadora

__________________________________________

__________________________________________

__________________________________________

São Paulo, ____ de ___________ de 2015.

iii

A Raquel, minha esposa.

“Por cujo amor escalei a muralha”.

A Lívia, minha filha.

“E pareceu-me, então, que ao esplendor

Do dia se juntava um outro dia”.

iv

AGRADECIMENTOS

Àquele com quem estive

Em todas as tempestades,

E fez que eu delas saísse

Mais seu, mais são, e melhor.

À professora Sumiko, minha orientadora, por me aproximar da linguística e pela

confiança no meu trabalho, que tornou possível com a sua doação intelectual.

Ao CNpq, por financiar esta pesquisa.

Ao LAEL PUC, seus professores e funcionários, em especial Maria Lúcia e

Márcia, pela dedicação e apoio constantes.

Aos colegas mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos, em especial Ricardo,

Viviane, Beth e Piedade, pelos ensinamentos e agradável companhia.

Às professoras: Dra. Elizabeth Del Nero Sobrinha Luft e Dra. Flamínia Manzano

Moreira Lodovici, que gentilmente aceitaram participar das Bancas de Qualificação e de

Defesa desta dissertação, pela leitura cuidadosa e comentários valiosos.

A Leila Barbara, de quem serei sempre aluno atento e agradecido, por suas

aulas fundamentais.

A dona Maria Pereira (in memoriam) e sua filha Aldenora, minhas primeiras

professoras, no Externato Nossa Senhora Santana, pelo bem que ficou na memória.

A Antônio Dimas, Flávio Aguiar, João Adolfo Hansen, Alcides Villaça, José

Miguel Wisnik e Jaime Ginzburg, por me aproximarem da literatura do Brasil.

Ao SENAI SP, pelo apoio material e espaço para desenvolver o meu trabalho.

Aos meus alunos e colegas de trabalho no SENAI SP, pelo esforço

compartilhado de melhorar a cada dia.

Aos meus pais, Francisco Onete e Helena, sempre comigo.

À minha família: Neném, Sinsinho, Shirley, Mateus, Samuel, Naldinho, Cláudia,

Laurinha e Lena, pela alegria de sua presença.

v

Prata e luar O mistério que vai se mostrar

(NASCIMENTO, 2012)

vi

RESUMO

O objetivo desta dissertação de mestrado é o exame linguístico, de cunho crítico,

do processo de idealização do herói do romance As Minas de Prata, de José de

Alencar. É reconhecida a importância da língua no processo de construção da obra

literária, mas, na prática, a língua tem recebido um tratamento relativamente pequeno,

justamente em uma área em que tem papel essencial. As Minas de Prata, obra

publicada em meados do século XIX, no contexto da independência política do Brasil,

como parte de um projeto cultural e político, revela esforços do seu autor para construir

um herói que represente valores ideais para a comunidade brasileira nascente. A

idealização diz respeito ao uso de certas escolhas linguísticas culturalmente

contextualizadas, mostrando certos fatos ao mesmo tempo em que se ocultam outros,

como forma de orientar a construção de sentido por parte dos leitores; será examinada

linguisticamente em termos da Avaliatividade, um sistema que trata do posicionamento

do escritor em relação à mensagem e ao interlocutor, em termos de: Afeto, Julgamento

ético de pessoas e Apreciação estética de objetos, proposto pela Gramática Sistêmico-

Funcional (GSF). Essa teoria permite fazer a relação entre a microestrutura linguística

do texto alencariano com a macroestrutura do discurso, em que se encontra a

idealização, e assim o faz apoiando-se nos três significados simultâneos construídos

pela linguagem: a informação, a interação e a construção do texto. A GSF inclui em seu

bojo a Linguística Crítica, para a qual, qualquer aspecto da estrutura linguística carrega

significação ideológica. A pesquisa responde às seguintes perguntas: (a) Como se

realiza a idealização do herói em As Minas de Prata? (b) Que escolhas léxico-

gramaticais são feitas, em termos das Metafunções Ideacional e Interpessoal para

expressar essa idealização? Os resultados mostram a realização da idealização pela

construção, por meio de escolhas léxico-gramaticais, de um herói que personifica

valores ideais: amor, religiosidade e fidalguia de caráter; e pela proposição desses

valores à comunidade, por meio do vínculo que se estabelece entre ela e o herói.

Palavras-chave: Idealização no discurso. Gramática Sistêmico-Funcional. As Minas de Prata. José de Alencar.

vii

ABSTRACT

The main purpose of this work is the critical linguistic examination of the hero

idealization process in the novel As Minas de Prata, written by José de Alencar. The

importance of language in a literary work building process is well recognized but, in

practice, the language has received relatively little treatment in an area that plays an

essential role. As Minas de Prata, work published in mid-nineteenth century, in the

context of the political independence of Brazil, as part of a cultural and political project,

reveals its author's efforts to build a hero that represents optimal values for Brazilian

developing community. The idealization concerns the use of certain culturally

contextualized linguistic choices showing some facts while hiding others in order to

guide the reader’s construction of meaning. It will be linguistically examined in terms of

Appraisal, a system that deals with the writer's position in relation to the message and to

the caller considering: Affection, Ethical Judgment of People and Assessment Aesthetic

of Objects, proposed by Systemic Functional Grammar (SFG). This theory allows the

relationship between linguistic microstructure of Alencar’s text and the macro-structure

of the speech, in which idealization appears, and is supported by the three simultaneous

meanings constructed by language: information, interaction, and text construction. The

SFG includes the Critical Linguistics for which any aspect of linguistic structure carries

ideological significance. The study answers the following questions: (a) how does the

idealization of the hero in As Minas de Prata is carried out? (b) What lexicogrammatical

choices are made in terms of Ideational and Interpersonal Metafunctions to express this

idealization? Results show the idealization by the construction, through lexical and

grammatical choices, of a hero that personifies ideal values: love, piety, and nobility of

character; and the proposition of these values to the community through the bond

established between the community and the hero.

Keywords: Speech idealization. Systemic Functional Grammar. As Minas de Prata.

José de Alencar.

viii

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Relação Processos/Participantes/Circunstâncias ...................................... 26

Quadro 2 – POLARIDADE (sim/não) e MODALIDADE (entre sim e não)......................29

Quadro 3 – Recursos de Avaliatividade (APPRAISAL)............................................... ...31

Quadro 4 – Resumo das teorias que embasam a análise 36

Quadro 5 – Exemplo de análise .................................................................................... 40

ix

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Ocorrência de processos verbais no trecho analisado de “O círculo vicioso

da fortuna adversa” ....................................................................................................... 66

Gráfico 2 – Ocorrência de processos verbais no trecho analisado de “À beira de um

esquife” ...........................................................................................................................82

Gráfico 3 - Ocorrência de processos verbais no trecho analisado de “Epílogo”.............95

x

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................... 20

2.1 A Representação no discurso ................................................................................ 20

2.2 A Gramática Sistêmico-Funcional .......................................................................... 22

2.2.1 A Metafunção Ideacional ..................................................................................... 25

2.2.2 A Metafunção Interpessoal .................................................................................. 28

2.3 A Avaliatividade ...................................................................................................... 29

2.3.1.1 Reconhecendo hierarquias interpessoais ......................................................... 32

2.4 A Linguística Crítica ............................................................................................... 34

2.5 A Análise do Discurso Crítica ................................................................................ 34

3 METODOLOGIA ....................................................................................................... 37

3.1 Dados ....................................................................................................................... 37

3.1.1 O herói de outro mundo ....................................................................................... 37

3.2 Procedimentos de análise ....................................................................................... 39

4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS ......................................................... 41

4.1 Análise das variáveis de Registro de “O círculo vicioso da fortuna adversa” ........... 41

4.2 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade. ................................... 43

4.3 Discussão geral de “O círculo vicioso da fortuna adversa” ....................................... 66

4.4 Análise das variáveis de Registro de “À beira de um esquife”. ................................ 70

4.5 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade. .................................... 73

4.6 Discussão geral de “À beira de um esquife” ............................................................. 81

4.7 Análise das variáveis de Registro do “Epílogo”. ....................................................... 84

4.8 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade. .................................... 85

4.9 Discussão Geral do “Epílogo” ................................................................................... 96

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 99

REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 100

APÊNDICE ................................................................................................................... 104

xi

12

A IDEALIZAÇÃO DO HERÓI EM AS MINAS DE PRATA, DE JOSÉ DE ALENCAR,

SOB O ENFOQUE DA GRAMÁTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

1 INTRODUÇÃO

Os estudos de linguística têm evoluído e trazido novas ferramentas para a

análise dos textos, abrindo assim espaço para a reavaliação de obras já tradicionais na

cultura brasileira. O estudo aqui proposto procura utilizar os recursos da Gramática

Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994, 2004) e da Linguística Crítica (FOWLER, 1991)

para analisar elementos da microestrutura do texto do romance As Minas de Prata, de

José de Alencar, a fim de desvendar a idealização que perpassa essa obra, na

macroestrutura do discurso. O interesse se justifica tanto pela importância do autor -

Alencar ocupa, segundo Alfredo Bosi (2002, p.134), lugar central na história do nosso

Romantismo –, como pela obra em si, o romance As Minas de Prata, texto singular no

conjunto da obra do autor, publicado entre 1862 e 1866, no qual Alencar dá

continuidade ao seu projeto de recriação romanesca do passado colonial brasileiro,

iniciado com a publicação, poucos anos antes, de O Guarani.

Muitas páginas têm sido escritas sobre os romances de José de Alencar, que

são leitura obrigatória no Ensino Médio e constam nas listas de leitura para os exames

de acesso à universidade, bem como nas dos cursos de Letras por todo o país. Não

encontrei, porém, referências a abordagens dos textos alencarianos, em particular As

Minas de Prata, sob a perspectiva sistêmico-funcional.

As Minas de Prata tem sido foco de algumas pesquisas de cunho literário, tais

como a de Peres (2006), que estuda a relação entre o discurso histórico e outros

gêneros, como o folhetim e o picaresco, que compõem As Minas de Prata; a de

Marczyk (2006), que analisa a representação do povo judeu no romance; a de Oliveira

(2001), que estuda a atuação das personagens femininas, com destaque para a judia

Raquel e a mestiça Joaninha, na hierarquia de poder que se estabelece na sociedade

engendrada no romance; e, por fim, a de De Marco (1993), em que analisa os

romances históricos de José de Alencar: O Guarani, As Minas de Prata e Guerra dos

Mascates, concluindo que as três obras, na ordem, apresentam um percurso de

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“dissolução das expectativas heroicas” (DE MARCO, 1993, p. 18), o que poderia ser

atribuído, segundo a autora, às desilusões de José de Alencar em relação tanto à

situação política do país à época, quanto à sua própria situação como intelectual.

Pelo que tenho constatado, a obra de José de Alencar mereceria um exame mais

detido do ponto de vista linguístico. Nesse contexto, decidi-me a estudar a idealização

do herói desse romance, examinando a função da avaliação nesse processo.

A noção de idealização, neste trabalho, está de acordo com o que sugere a obra

de Antonio Candido (1981). Nela, a idealização refere-se não só ao aspecto da fuga da

realidade, vai além, apresentando-se, principalmente, como um processo construtivo

que opera por meio da transfiguração ou da deformação da realidade, podendo, assim,

elevar e glorificar valores, criando, desse modo, a imagem do herói - personificação

desses valores. A constituição linguística dos valores é o aspecto que nos interessa

particularmente neste trabalho, já que à sua construção (no texto) e proposição ao leitor

(pelo texto) vincula-se estreitamente a noção de idealização.

Embora essa constituição de valores se faça, a bem dizer, em todas as páginas

do romance (544), selecionei para análise – tendo em vista a extensão da obra e a

natureza minuciosa do trabalho com a microestrutura do texto - apenas três fragmentos

(153 linhas) que retratam mais detalhadamente a constituição de valores fundamentais

para o processo de idealização do herói. Pretendo, futuramente, ampliando o

conhecimento do ferramental teórico da Gramática Sistêmico-Funcional, empreender

abordagem mais abrangente desse romance.

Há sempre, segundo Chang e Mehan (2006), muitas maneiras possíveis de

representar um evento ou uma situação, mas uma representação específica dá a

eventos, objetos e situações ambíguas um significado específico. Esses sistemas de

representação são frequentemente ligados a um corpo coerente de conhecimentos e

não a porções isoladas de informação. Enquanto representações específicas podem

não ser muito surpreendentes por vezes, em outras vezes eles são altamente originais

e criativos. A propósito, para Lakoff (2004), parte da arte do discurso consiste no uso de

metáforas, modelos e scripts, com apoio no conhecimento prévio da audiência, para

trazer coerência criativa entre os eventos, o que não seria conseguido de outro modo.

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Todos reconhecem a importância da língua no processo de construção da obra

literária, mas, na prática, a língua recebe um tratamento relativamente pequeno,

justamente em uma área em que o seu papel é essencial. Por isso, penso como Fowler

(1991), cujo objetivo, em sua proposta da Linguística Crítica, é dar à língua a devida

importância, não somente como um elemento de análise, mas também como um modo

de expressar uma teoria geral da representação.

Nesse sentido, acato a proposta de Fairclough (1992, p. 28) para quem um

método e uma análise do discurso, para serem úteis, devem preencher algumas

condições mínimas. Primeiro: ser um método para análise multidimensional. Aqui ele

propõe a abordagem tridimensional, que permite avaliar as relações entre mudança

discursiva e social e relacionar sistematicamente propriedades detalhadas de textos às

propriedades sociais de eventos discursivos como instâncias de prática social.

Segundo: ser um método de análise multifuncional. Um bom ponto de partida é

a teoria sistêmica da linguagem (HALLIDAY, 1978), que considera a linguagem como

multifuncional, representando simultaneamente a realidade; ordenando as relações

sociais; e, finalmente, construindo o texto propriamente dito por meio de escolhas

léxico-gramaticais adequadas.

Terceiro: ser um método de análise histórica. Deve focalizar a estruturação ou

os processos “articulatórios” na construção de textos, e na constituição a longo prazo

de “ordens de discurso” (isto é, configurações totais de práticas discursivas em

instituições particulares, ou mesmo em toda uma sociedade).

Quarto: ser um método crítico. “Crítico” implica mostrar conexões e causas que

estão ocultas; implica também intervenção - por exemplo, fornecendo recursos por meio

da mudança para aqueles que possam encontrar-se em desvantagem. As relações

entre a mudança discursiva, social e cultural não são transparentes para as pessoas

envolvidas.

Dito isso, com referência ao segundo requisito, a pesquisa tem o apoio da

Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY; MATTHIESSEN,

2004), que abriga em seu bojo a Linguística Crítica (FOWLER, 1991), bem como a

noção de Avaliatividade (MARTIN, 2000, 2003). A GSF é uma teoria indicada por

analistas críticos do discurso (FOWLER, 1991; FAIRCLOUGH, 1992; CHARTERIS-

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BLACK, 2004) como sendo o melhor recurso analítico para esse tipo de exame. Para

Halliday (1984), a língua como um código (o que a língua é) e a língua como

comportamento (o que as pessoas fazem com a língua) funcionam juntas para uma

explicar a outra, e para interpretar seu lugar na vida das pessoas. A língua é

considerada um recurso para fazer significado: o código como um recurso sistêmico,

um potencial de significado: o comportamento como a realização desse potencial de

significado em situações da vida real. Nesse processo de realização, a língua funciona

para preencher uma série de necessidades humanas, e "a riqueza e a variedade de

suas funções estão refletidas na natureza da própria língua, em sua organização como

um sistema" (HALLIDAY, 1973, p. 20).

O objetivo desta pesquisa é o estudo, à luz da Gramática Sistêmico-Funcional e

da Linguística Crítica, do processo de idealização do herói do romance As Minas de

Prata, de José de Alencar. A pesquisa responde às seguintes perguntas: (a) Como se

realiza a idealização do herói em As Minas de Prata? (b) Que escolhas léxico-

gramaticais são feitas, em termos das Metafunções Ideacional e Interpessoal para

expressar essa idealização?

Justificativa

Tive o primeiro contato com o romance As Minas de Prata já há alguns anos, e

quis, desde então, estudar esse aspecto da idealização, que me pareceu tão importante

quanto obscuro; só recentemente, porém, após entrar em contato com as propostas

teóricas da Gramática Sistêmico-Funcional (GSF), veio-me a ideia de estudá-lo pela

análise da microestrutura do texto, empreendendo uma abordagem linguística.

A escolha da idealização como tema se deve a que representa um modo

particular de posicionar-se perante a vida e o mundo, e, como diz Fowler (1991),

qualquer coisa que é dita ou escrita sobre o mundo é articulada de uma posição

ideologicamente particular; neste caso, como veremos, a idealização é utilizada como

forma de intervenção num processo de mudanças sociais e culturais, o qual, creio,

interessa conhecer melhor, já que se refere à história do Brasil.

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Também motivou a escolha do tema o desafio de analisar as escolhas

linguísticas feitas na elaboração de uma noção que parece, deliberadamente, dar as

costas à realidade – talvez para voltar-se subitamente e encará-la -; acresce que não

tive notícia da existência de estudo do tema pelo viés da linguística, e acredito que este

estudo pode trazer aos estudantes, sobretudo os de nível médio, subsídio à leitura e

interpretação de textos em geral, pois a idealização, creio, não se utiliza apenas em

texto literário, como o que aqui analiso. Não visa este trabalho à avaliação estética da

obra; o que espero é que, sendo análise linguística de uma obra de literatura de ficção,

ou seja, de um gênero artístico, sirva o seu resultado de subsídio à leitura e

compreensão de uma obra importante para o estudo do contexto de formação do país.

Antes de tratar das teorias que apoiam a minha análise, convém trazer alguma

informação sobre José de Alencar e seu romance As Minas de Prata.

José de Alencar: entre política e literatura

José Martiniano de Alencar nasceu em 1º de maio de 1829, no Ceará, filho de

Ana Josefina, de quem diz ter herdado o que, para muitos, é o seu principal atributo, a

inesgotável imaginação (ALENCAR, 1967, vol.1, p. LXIX), e de José Martiniano de

Alencar, que, segundo Luís Viana Filho (2008, p. 29), foi político dos mais influentes

que o país teve naquele período de sua história, articulador da Revolução de 1817 e da

Confederação do Equador, foi também deputado, senador durante a Regência e um

dos articuladores do “Clube Maiorista”, responsável por levar ao trono D. Pedro II, então

perto dos quinze anos de idade.

José de Alencar, o escritor, mudou-se ainda criança para a corte, o Rio de

Janeiro, onde passaria a maior parte de sua vida. Formou-se em Direito em São Paulo

e Olinda (1846 a 1850), e exerceu, de modo intermitente, a advocacia ao longo de toda

a sua vida. Em Olinda leu os cronistas da era colonial, cujas imagens remetiam às que

vira, e voltaria a ver, nas suas viagens pelos sertões rumo ao Ceará, imagens que

influenciariam a construção dos seus principais romances. Também em Olinda

descobriu a doença, tuberculose, que o acompanharia pela vida afora, até o vencer,

cedo demais, em 12 de dezembro de 1877, aos 48 anos.

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Foi jornalista, pode-se dizer, por toda a sua vida (vejam-se os folhetins Ao Correr

da Pena), teatrólogo (vejam-se as peças O Demônio Familiar e Rio de Janeiro: Verso e

Reverso), polemista (vejam-se as Cartas sobre a Confederação dos Tamoios),

panfletista (vejam-se as Cartas Políticas de Erasmo), romancista e político. Toda a

atividade intelectual de José de Alencar tem estreito vínculo com a política: sobre a sua

produção teatral, Luís Viana Filho (2008, p. 115) diz que o teatro, em sua concepção,

era uma escola acessível ao público, onde facilmente se incutiriam ideias sobre a

sociedade, os seus erros, e a forma de consertá-los; nas Cartas sobre a Confederação

dos Tamoios tenta mostrar aos defensores do poema de Gonçalves de Magalhães,

entre os quais o próprio D. Pedro II, o fracasso da obra em sua pretensão de

representar a nascente nacionalidade; e nas Cartas Políticas de Erasmo apresenta

sugestões políticas ao imperador, a membros do governo, ou ao povo em geral.

Segundo Luís Viana Filho, ao escrevê-las, aliás no mesmo ano da publicação da edição

integral de As Minas de Prata, “Alencar parecia atravessar uma dessas fases em que o

homem aspira reformar o mundo” (2008, p. 188).

Em 1861, José de Alencar se elegeu deputado conservador pelo Ceará (VIANA

FILHO, 2008, p. 137); ocupou a pasta do Ministério da Justiça no gabinete conservador

do Visconde de Itaboraí (1868 a 1870), e, ao pleitear o senado (a grande ambição do

homem público ao tempo do Império), foi preterido por D. Pedro II. A decepção teria

sido amarga para o homem discreto, distante, de poucas amizades e temperamento

áspero e suscetível (VIANA FILHO, 2008, p. 225), que, em seu idealismo, chamava a

literatura e a política de “cordas da pátria, gêmea aspiração do belo e do grande”, e que

opunha essa esfera elevada à do “paraíso terrestre”, ou do “homem positivo”, que mede

as suas palavras e ações com o objetivo de alcançar o dinheiro e o “baronato”, que ele

chamava, ironicamente, de “canonização” terrena (ALENCAR, 1967, vol. 6, p. 165). O

projeto político-literário de José de Alencar, todavia, seria perseguido até os seus

últimos dias.

18

As Minas de Prata: parte de um projeto político-literário

Os primeiros 19 capítulos do romance As Minas de Prata apareceram em 1862, no

terceiro e quinto volumes da Biblioteca Brasileira, de Quintino Bocaiuva, em cujo

prospecto ponderava-se que a “civilização do mundo, o progresso das nações não têm

só exigências materiais”, e que a motivação de sua iniciativa era “uma ideia de

progresso, um princípio civilizador, uma força moral” (DE MARCO, 1993, p. 97). Nessa

edição parcial consta um subtítulo: As Minas de Prata: “Continuação do Guarani”, que

não mais será usado a partir da edição integral da obra, publicada em 1865-66.

O Guarani e As Minas de Prata pertencem, no projeto alencariano, ao período

chamado pelo escritor de “histórico”, que “representa o consórcio do povo invasor com

a terra americana” e marca “a gestação lenta do povo americano, que devia sair da

estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor”

(ALENCAR, 1967, vol. 6, p. 166). Convém lembrar um aspecto, a meu ver muito

importante, que diferencia, ao mesmo tempo que associa fortemente, as duas obras no

projeto do escritor: em O Guarani os heróis são índios e portugueses, em As Minas de

Prata o herói é um mestiço, o tipo mais característico do país em formação, que

conquistara a sua independência política poucos anos antes de Alencar começar a

escrever.

A publicação de As Minas de Prata se deu em meados do século XIX, momento

decisivo, segundo Caio Prado Júnior, para quem procura compreender melhor o Brasil,

por apresentar, ao mesmo tempo, o balanço final da obra de colonização e ser chave

preciosa para compreensão do processo histórico posterior à Independência (1994,

p.9). O romance é, em suma, um produto cultural brasileiro, com a especificidade de

texto literário estreitamente ligado à história do país, pois não apenas tematiza o seu

processo de formação, mas também é proposto como instrumento para formação do

povo brasileiro, como “palavra que inventa a multidão”. Estudá-lo é dar um passo,

mesmo que curto, no rumo de uma melhor compreensão do Brasil.

19

Contexto de As Minas de Prata: Independência e Romantismo

Segundo Valéria De Marco (2006, p. 12), José de Alencar “é o primeiro a tematizar

a relação de tensão entre a produção cultural de um país dependente e as diferentes

metrópoles desenvolvidas”. Isso explicaria a adoção da forma literária da estória

romanesca, linguagem própria do Romantismo “para contar o passado de cada nação,

de cada comunidade, do mundo idílico anterior à Revolução Industrial, na Europa, e ao

paraíso do capital comercial dos tempos do Império”, no Brasil.

Na visão de Antonio Candido (1981, vol. 1, p. 26-29), a literatura brasileira sempre

foi uma “literatura empenhada”, no sentido de que os escritores brasileiros, desde o

início, foram animados do desejo de se mostrarem tão capazes quanto os europeus;

“depois da Independência o pendor se acentuou, levando a considerar a atividade

literária como parte do esforço de construção do país livre”. O Romantismo, coincidindo

com a Independência política do país, levou a uma “tomada de consciência” por parte

dos escritores, e a um reforço da “intenção mais ou menos declarada de escrever para

a sua terra”; esse nacionalismo artístico, que surgiu em decorrência da situação

histórica do país, exigiu “em todos os setores da vida mental e artística um esforço de

glorificação dos valores locais”, o que se evidencia no forte sentimento de missão de

escritores como José de Alencar.

Não por acaso, então, Valéria De Marco dirá que o romance As Minas de Prata foi

escrito com um propósito, e que “no caso de Alencar, bem como no de grande parte

dos narradores românticos, o romance não é pausa na vida agitada; ele é proposta de

reflexão e veículo de discussão política” (2006, p. 19). A importância do conhecimento

do contexto para a interpretação do texto explica a intenção de apoiar a minha análise

também em estudos históricos que abordam tanto a sociedade em que viveu e

escreveu José de Alencar, como aquela sociedade que o escritor, em parte, retratou em

seu romance. As obras de Caio Prado Júnior (2001), Gilberto Freyre (2004), Raymundo

Faoro (2012), Celso Furtado (2006) e Sérgio Buarque de Holanda (2002) são

referências importantes nesse sentido.

20

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Passo a tratar das teorias que apoiam a minha pesquisa: a Representação no

discurso; a Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY, 1994; HALLIDAY;

MATTHIESSEN, 2004), que envolve a Avaliatividade (MARTIN, 2000) e a Linguística

Crítica (FOWLER, 1991).

Inicio, a seguir, a apresentação da noção de representação no discurso, que

Chang e Mehan (2006) aplicam na análise do processo de institucionalização na mídia

de massa norte-americana, e que julgo poder aplicar-se à análise da idealização no

romance As Minas de Prata.

2.1 A Representação no discurso

A representação política, dizem Chang e Mehan (2006), é uma competição que

acontece entre indivíduos, agentes institucionais (aqueles que falam em nome de uma

organização ou instituição), ou grupos sobre o significado de eventos, objetos e

situações ambíguas do mundo. Há sempre muitas maneiras possíveis de representar

um evento ou uma situação, mas uma representação específica dá a eventos, objetos e

situações ambíguas um significado específico. Dar uma bofetada em uma pessoa, por

exemplo, é um ato tangível, mas chamar o ato de “defesa” ou “agressão” atribui-lhe um

significado específico. A política da representação produz uma situação em que muitos

significados ambíguos são afunilados em um, em que um único significado estável

prevalece, segundo os autores. Assim, após um processo de competição discursiva,

“ataque agressivo” (ou “tentativa de assassinato”) pode tornar-se uma definição

dominante para “dar uma bofetada”, inscrevendo-se dessa forma no discurso

institucional do momento, na memória coletiva das pessoas, nos livros de história, ou

em registros legais.

Chang e Mehan mostram que a institucionalização, na mídia de massa

americana, de rótulos já aceitos de entidades, eventos e situações históricas e políticas

- tais como “interesse nacional”, “interesse especial”, “defesa”, “terrorismo” e “processo

de paz” - constitui uma forma de propaganda (CHOMSKY, 2002, p. 37-69), mas pode

21

ser analisada efetivamente como exemplo de representação política. Isto é, para as

propagandas serem publicamente legitimadas, nem sempre é suficiente compará-las

com seu oposto: chamar um ataque de defesa, um regime ditatorial de democracia,

terroristas de lutadores pela liberdade, e assim por diante. Sobre assuntos que não

recebem muita atenção do público, a simples linguagem orwelliana dos jogos pode ser

suficiente para manipular as massas. Contudo, quando se trata de itens políticos

controvertidos, os participantes do discurso político público - em especial aqueles de

sociedades democráticas - engajam-se inevitavelmente em competições discursivas

para tornar dominantes alguns conjuntos de significados sobre outros. E, se a história é

um guia, os vitoriosos na política de representação constroem suas reivindicações

sobre um corpo coerente de conhecimento que se alinha com o conhecimento prévio do

público.

A história mostra que as autoridades políticas frequentemente procuram

ativamente convencer o povo sobre um determinado significado referente a certos

eventos para conseguir legitimidade e poder. Por meio de entrevistas na mídia,

discursos políticos ou debates parlamentares, políticos eleitos realizam vários atos de

fala de legitimação e deslegitimação (CHILTON; SCHAFFNER, 1997, p. 213; CHILTON,

2004, p. 110-134), para maximizar a legitimidade e conseguir poder político, incluindo

apelo a presumidos valores morais superiores por trás de suas ações, raciocinando

com o público, usando pesquisa empírica e evidência, ou, em alguns casos, apelando

para os autointeresses da maioria dos eleitores, em detrimento do bem-estar das

minorias (van DIJK, 1980; MEHAN et al., 1990; MEHAN, 1997). Em todas as instâncias,

eles lutam para controlar as representações, limitando assim a expressão de certas

formas de conhecer os eventos e situações políticas.

Esses sistemas de representação são frequentemente ligados a um corpo

coerente de conhecimento e não a porções isoladas de informação. Enquanto

representações específicas podem não ser muito surpreendentes por vezes, em outras

vezes são altamente originais e criativos. Parte da arte do discurso político é o uso de

metáforas, modelos, scripts e esquemas para trazer coerência criativa e forte entre os

eventos, que não seria automaticamente gerada de outro modo (LAKOFF, 2004) - e

ainda ir ao encontro do conhecimento prévio da audiência. O conhecimento e

22

significados ideológicos são transformados em senso comum não ideológico, natural e

universal (FAIRCLOUGH, 1995, p. 28-53).

A propósito, script, em seu significado literal, é um manuscrito para uma peça

teatral, que introduz o enredo, o cenário, as personagens, e assim por diante. Em seu

significado sociológico, script é um sistema de significados culturais que fornece às

pessoas os instrumentos para interpretar e entender eventos (NATHANSON, 1988). Um

script completo, de acordo com a teoria do drama, de Burke (1989, p. 139), explica o

ato (o que se fez), a cena (quando e onde se fez), o agente (quem fez), a agência

(como se fez) e a finalidade (por que se fez) das ações humanas.

A análise do discurso afirma que a representação social em forma de script

cultural, como o "script de um restaurante", ajuda as pessoas a interagirem em

situações não familiares, tal como a ida a um novo restaurante, e a construir

rapidamente significados coerentes dos eventos ambíguos (SCHANK; ABELSON, 1977;

Van DIJK 1980). Coincidentes com esses achados, estudos na sociologia da cultura e

da mídia informam que um script cultural, para ser poderoso, precisa ser facilmente

acessível ao público, para oferecer uma explicação internamente coerente, para ir ao

encontro de opiniões e estruturas já existentes (SCHUDSON, 1989).

A seguir, apresento a Gramática Sistêmico-Funcional, uma proposta teórico-

metodológica, de Halliday (1994) e Halliday e Matthiessen (2004), que serve de base

para as minhas análises de As Minas de Prata.

2.2 A Gramática Sistêmico-Funcional

Uma descrição sistêmica tenta interpretar simultaneamente tanto o código

quanto o comportamento, para especificar os sistemas dos quais se deriva um item

linguístico, isto é, as escolhas incorporadas naquele item (HALLIDAY; MARTIN, 1981).

Portanto, ao analisar instâncias da língua numa conversa, correlacionamos

simultaneamente diversos sistemas da língua para fornecer um tratamento linguístico

compreensível.

As funções da linguagem que preenchem uma série de necessidades humanas

estão categorizadas sob um guarda-chuva de três metafunções, a saber, a ideacional, a

23

interpessoal e a textual1. A metafunção ideacional refere-se à habilidade para construir

experiências humanas, nomeando entidades e construindo categorias e taxonomias; a

metafunção interpessoal incorpora todos os usos da língua para expressar relações

pessoais e sociais, incluindo todas as formas da intromissão do falante na situação de

fala e no ato de fala (HALLIDAY, 1973, p. 41). Essa metafunção é hoje considerada a

mais relevante, envolvendo as demais metafunções. Finalmente, a metafunção textual

refere-se à possibilidade da construção do texto para facilitar as outras duas

metafunções, dando textura ao texto para fazê-lo operacionalmente relevante

(HALLIDAY, 1973; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). A língua pode manipular esses

três tipos de significados simultaneamente, porque possui um nível intermediário de

codificação: a léxico-gramática. As três metafunções entram no texto por meio das

orações mediante escolhas feitas no sistema linguístico.

Importante para a GSF é a noção de escolhas. Assim, quando se faz uma

escolha no sistema linguístico, o que se escreve ou o que se diz adquire significado

contra um fundo em que se encontram as escolhas que poderiam ter sido feitas, mas

que não o foram, fato importante na análise do discurso. Em resumo, a GSF procura

desenvolver uma teoria sobre a língua como um processo social e uma metodologia

que permita uma descrição detalhada e sistemática dos padrões linguísticos.

Subjacente à GSF, existem quatro premissas maiores (EGGINS, 2004, p. 3). O

modelo estabelece:

● que o uso da língua é funcional;

● que sua função é construir significados;

● que os significados são influenciados pelo contexto social e cultural em

que são intercambiados;

● que o processo de uso da língua é um processo semiótico, um processo

de fazer significado por meio de escolhas.

1 A metafunção textual refere-se à possibilidade da construção do texto para facilitar as outras duas

metafunções, dando textura ao texto para fazê-lo operacionalmente relevante (HALLIDAY, 1973; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). Esta metafunção não será examinada em minha análise.

24

É por essas razões que a GSF é descrita como "uma abordagem semântico-

funcional da língua" (EGGINS, 2004, p. 20), uma teoria que procura entender como as

pessoas usam a língua em diferentes contextos sociais. Como Martin e White (2005, p.

7) explicam, "a GSF é um modelo multi-perspectivo, designado a dar aos analistas

lentes complementares para a interpretação da língua em uso".

Os diferentes aspectos de significado das três metafunções estão organizados

em níveis. O nível mais básico (ou o mais concreto) do significado refere-se à

realização fonológica. Indo para uma camada mais abstrata, o nível seguinte é o da

léxico-gramática, em seguida o da semântica, e finalmente o do contexto, como o nível

mais abstrato (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004). As escolhas feitas num nível mais

básico realizam escolhas de um nível superior. Reciprocamente, as escolhas feitas no

nível superior são realizadas por escolhas de nível inferior. A léxico-gramática é

literalmente o contínuo do léxico e da gramática (HALLIDAY et al., 2004). A gramática é

vista como um instrumento linguístico para ligar seleções feitas nos vários subsistemas

da língua, realizando essas seleções em uma forma estrutural unificada (HALLIDAY,

1973). Daí Halliday dizer que a descrição gramatical é essencial à análise textual.

Neste contexto, o termo "logogênese" serve para identificar essa construção

dinâmica do significado conforme o texto se desenvolve (HALLIDAY,1992, 1993;

HALLIDAY; MATTHIESSEN, 1999). Thompson (1998) denomina de "ressonância"

essa harmonia de significados que é produto de uma combinação de escolhas não

identificáveis com quaisquer outras escolhas, se consideradas isoladamente.

Por outro lado, alguns fatos mostram que língua e contexto estão inter-

relacionados, diz Halliday (1994). Mas quais feições desse contexto afetam o uso da

língua? Para responder a essa questão, os sistemicistas lançam mão de dois conceitos:

Registro e Gênero, referentes ao contexto situacional imediato e ao contexto cultural,

respectivamente.

O Registro descreve a influência das dimensões do contexto situacional imediato

sobre a língua. Halliday (1978, 1985) sugere que os elementos do contexto que influem

no uso da língua sejam somente três: (a) Campo (o assunto sobre o qual a língua está

sendo usada); (b) Relação (a interação entre os interlocutores); e (c) Modo (o papel

que a língua exerce na informação e na interação). As três variáveis contextuais de

25

Registro são organizadas, respectivamente, pelas metafunções Ideacional, Interpessoal

e Textual da linguagem (HALLIDAY, 1978).

O Gênero descreve a influência das dimensões do contexto cultural sobre a

língua. Dessa forma, o texto não é utilizado somente para explorar as formas

gramaticais isoladas, mas tem-se o objetivo de analisá-lo como uma dimensão textual-

discursiva, uma concepção sócio-interacionista de linguagem centrada na interlocução.

Na GSF, Martin (1985, p. 25) oferece, para a noção de Gênero, uma definição mais

operacional: "Gênero é uma atividade organizada em estágios, orientada para uma

finalidade na qual os falantes se envolvem como membros de uma determinada

cultura". Diz ele que grande parte do choque cultural é de fato choque de Gêneros.

Menos tecnicamente (MARTIN, 1985, p. 248), ele diz que Gêneros são como as coisas

são feitas, quando a linguagem é usada para efetivá-las.

Além desses dois tipos de contexto, de natureza social, há também o contexto

ideológico, que ocupa um nível superior de contexto e que tem chamado a atenção dos

sistemicistas, na medida em que, em qualquer Registro e em qualquer Gênero, o uso

da língua será sempre influenciado pela nossa posição ideológica, nossos valores,

nossas tendências, nossas perspectivas.

2.2.1 A Metafunção Ideacional

A metafunção Ideacional representa os eventos das orações em termos de fazer,

sentir (processamento simbólico) ou ser, por meio do sistema da Transitividade. Da

perspectiva linguística, a análise da transitividade é uma perspectiva semântica das

ideias expressas por uma oração, uma proposição sobre o mundo em que um evento,

situação, relação ou atributo é predicado a alguns participantes. Dentro da tradição da

GSF, Fowler (1991) sugere que padrões alternativos na língua associam valores

diferentes, com implicações ideológicas. A análise da transitividade pode oferecer

intravisões sobre as percepções do escritor sobre ações, eventos, situações, bem como

os modos pelos quais a interpretação do leitor é orientada em determinada direção. Em

última instância, ela permite ver como as estruturas linguísticas constroem ideologias

específicas.

26

Da perspectiva social, segundo Fairclough (1992), a análise da transitividade

oferece intravisões sobre fatores sociais, culturais e ideológicos, que podem influenciar

o significado de um texto. Consequentemente, essa análise mostra a atribuição, por

exemplo, da agência aos participantes, e, assim, oferece um instrumento útil para

mostrar a construção da realidade pela língua por meio da categorização,

caracterização e da polarização por meio do discurso.

Apresento o Quadro 1, com o sistema da Transitividade, da metafunção

Ideacional, que representa os eventos das orações, envolvendo: Processos,

Participantes e Circunstâncias:

Quadro 1: Relação Processos/Participantes/Circunstâncias

Processos Participantes Circunstâncias

Material O padre deu os diamantes a Estácio Ator Meta Beneficiário O mancebo caminhou pelo vilarejo destruído. Ator Extensão

a pedido de Dulcita.

Comportamental O Brás gemia de cansaço Comportante Comportamento

enquanto seguia.

Mental O herói pensava no destino da sua família. Experienciador Fenômeno

Existencial A pobreza se fazia presente Existente

na Bahia.

Relacional Ele era um herói. (a) Atributivo: Portador Atributo O herói era Estácio. (b) Identificativo: Identificado Identificador

Verbal Joaninha contou para Inês a história de Estácio. Dizente Receptor Verbiagem

Fonte: Halliday (1994)

Os Processos Materiais são processos de fazer, ou seja, envolvem um Ator -

que realiza a ação - mesmo se não mencionado na oração (THOMPSON, 1996, p. 78);

e um Participante, chamado de Meta, o afetado pela ação do Ator. Além desses

participantes, podem ocorrer: o Alcance e o Beneficiário. O Alcance é uma entidade

que existe de forma independente do processo (é um processo intransitivo),

expressando a extensão de atuação do processo (e.g. Estácio subiu a rua da Sé). O

27

Participante Beneficiário ocorre em contextos diversos e pode ser associado ao “objeto

indireto” da gramática tradicional (e.g. Cristóvão fez um favor ao amigo).

Os Processos Mentais são os processos de sentir (HALLIDAY, 1994, p. 112) e

dizem respeito ao que ocorre no mundo interno da mente (THOMPSON, 2004, p. 92).

Os participantes nesse tipo de processo são: o Experienciador, aquele em cuja mente

o processo se realiza; e o Fenômeno, que é o elemento, o fenômeno ou o objeto

realizado pelo processo.

Os Processos Relacionais são os processos de ser, estar e ter. Tais processos

estabelecem uma relação entre dois conceitos e a função do processo é somente

sinalizar a existência da relação, ocorrendo sempre um só participante no “mundo real”.

Exemplos:

(1) Estácio era um espírito observador.

(2) A conquista das minas era sua meta.

O primeiro tipo de Processo Relacional (exemplo 1) é chamado de Processo

Relacional Atributivo e seus dois participantes são o Portador (a entidade que carrega

o atributo) e o Atributo. Já o segundo tipo de Processo Relacional (em 2) é chamado

de Processo Relacional Identificador e sua função é identificar uma entidade em

termos de outra, equivalendo a um sinal de igual (=), o que o torna reversível,

diferentemente do que ocorre com o tipo atributivo.

Os Processos Verbais são “processos de dizer”. O Dizente é o único participante

obrigatório nos processos verbais. Ele é um participante humano ou humanizado, como

em sentenças do tipo: “O livro diz que se procurava um tesouro”. Participantes

opcionais: o Receptor, para quem a mensagem é endereçada; o Alvo, a pessoa,

objeto ou entidade que é atingida pelo processo (aquele de quem se fala); e a

Verbiagem, que consiste num rótulo para a própria linguagem.

Os Processos Comportamentais existem para diferenciar processos puramente

Mentais, daqueles que implicam sinais físicos (THOMPSON, 2004), como por exemplo,

em situações do tipo: “O herói pensou na sua amada” (Processo Mental) e “Ele suspirou

de saudades” (Processo Comportamental), ou seja Ele pensou (Mental) e por isso

suspirou (Material), exteriorizando a saudade que sente. O Processo Comportamental

costuma apresentar apenas um Participante: o Comportante, aquele que realiza o

28

comportamento; pode ocorrer um Participante opcional: o Alcance – que define o

escopo do processo: João Fogaça riu uma alta gargalhada.

Os Processos Existenciais expressam a mera existência de uma entidade, sem

predicá-la ou relacioná-la com qualquer outra coisa. Há somente um Participante nesse

processo: o Existente. Outros detalhes sobre o Existente podem ser dados na oração,

mas somente como elementos Circunstanciais (e.g.: Existem muitos diamantes na

caverna de Abaré).

2.2.2 A Metafunção Interpessoal

Em termos da Metafunção Interpessoal, a oração está organizada como um

evento interativo, envolvendo produtor e receptor da mensagem, e focaliza a interação

como uma troca de bens e serviços ou de informação (HALLIDAY, 1994). Juntamente

com essa distinção básica está uma outra distinção, igualmente fundamental, que se

relaciona com a natureza do produto que está sendo permutado. A função semântica

da oração como permuta de informação caracteriza a proposição; a função semântica

da oração como permuta de bens & serviços caracteriza a proposta.

No nível da léxico-gramática, os principais sistemas gramaticais envolvidos na

Metafunção Interpessoal são Mood, Polaridade e Modalidade. O Sistema de Mood é a

gramaticalização do sistema semântico da função de fala; os termos do Mood são

realizados por propriedades das orações categorizadas como declarativas,

interrogativas e imperativas (e subjuntivas, no caso do português), que realizam

diferentes funções de fala.

(a) MOOD (ou Modo) estabelece relações entre papéis de falante e ouvinte, por

meio de verbos modais ou adjuntos modais, e também o tempo primário e a

modalidade.

(b) MODALIDADE (expressa a avaliação dos interlocutores sobre o conteúdo da

mensagem). Halliday (1985, p.163-164) menciona também os epítetos atitudinais

(que serão estudados em Avaliatividade, de Martin, 2000). Tem função de

29

posicionamento pessoal. A avaliação pode ser expressa categórica (ou SIM ou

NÃO: e.g. Iremos à cidade do Salvador ou Não iremos à cidade do Salvador),

mas pode ser expressa de maneira atenuada, por meio da Modalidade (e.g. Talvez

iremos à cidade do Salvador. Veja os tipos de Modalidade: Modalização e Modulação,

no Quadro 2.

A propósito, autores (e.g., LEMKE 1992, p. 86) notam que essa abordagem

tende a confundir as funções interpessoais e a função do “intrometimento” pessoal.

Assim, Thompson e Thetela (1995) propõem que se faça uma distinção no interior da

Metafunção Interpessoal, e vê-la abrangendo duas funções relacionadas, mas

relativamente independentes: a pessoal e a interacional, além do interativo (este para

guiar o leitor através do texto: em resumo, como dissemos antes, etc.)

Quadro 2- POLARIDADE (sim/não) e MODALIDADE (entre sim e não)

SIM

Proposição Informação

Proposta Bens & Serviços

NÃO MODALIZAÇÃO MODULAÇÃO probabilidade2 frequência obrigação3 inclinação

talvez geralmente deve quero

A Metafunção Interpessoal tem sido alvo de críticas, bem como de contribuições,

que aumentaram o seu poder de análise. Assim é a noção de Avaliatividade (MARTIN,

2000, 2003), que apresento a seguir.

2.3 A Avaliatividade

Martin (2000), referindo-se em especial à Metafunção Interpessoal, da GSF,

argumenta que a interação envolve mais que uma simples troca de bens e serviços ou

de informação, mas, também, afeto, julgamento ou apreciação, isto é, como as pessoas

estão se sentido, como elas julgam o semelhante ou como elas apreciam um objeto.

2 Ou modalidade epistêmica 3 Ou modalidade deôntica

30

Assim, juntamente com modelos “baseados-na-gramática”, diz o autor, precisamos

elaborar sistemas lexicalmente orientados que tratem também desses elementos.

Assim, Martin e seus colaboradores desenvolveram um sistema reticular de

descrições de opções semânticas para avaliar pessoas, coisas e fenômenos, e

adotaram o termo APPRAISAL (doravante: Avaliatividade). O grupo estava interessado

na função social desses recursos, não simplesmente para expressar sentimentos, mas,

em termos de sua habilidade em construir comunidades, para alinhar pessoas na

negociação em curso, na vida em comunidade.

Na essência, a Avaliatividade é um enquadre localizado na Gramática Sistêmico-

Funcional (GSF) que mapeia os recursos que usamos para avaliar a experiência social

(veja MARTIN, 2000; MARTIN; WHITE 2005; WHITE, 2003). Esses recursos podem se

realizar através de várias estruturas gramaticais e lexicais. A análise de Avaliatividade é

um modo de capturar de maneira compreensiva e sistemática os padrões avaliativos

globais que ocorrem num texto, conjunto de textos ou discursos institucionais.

Segundo Martin (2000), a semântica da avaliação (Avaliatividade), envolve três

subsistemas: (1) Atitude, referente ao modo como os interlocutores estão se sentindo

em termos de Afeto, Julgamentos (éticos) que fazem e Apreciação (estética) de

vários fenômenos de sua experiência. Essas avaliações, quando aplicadas ao

agrupamento social, têm sido chamadas de Avaliação Social (COFFIN; O’HALLORAN,

2006). A Atitude pode ser expressa de acordo com o (2) Compromisso, de maneira

sem negociação com o interlocutor (monoglossia) ou com negociação (heteroglossia);

e, finalmente, com (3) Graduação, para aumentar ou diminuir a intensidade da

Avaliatividade.

Com referência ao subsistema do Compromisso, diz White (2003) que, para

examinar e descrever adequadamente a funcionalidade comunicativa desses recursos

léxico-gramaticais, é necessário vê-los como fundamentalmente dialógicos ou

interativos. Em termos amplos, o autor distingue entre enunciados monoglóssicos

(afirmações não dialogizadas e enunciados heteroglóssicos ou dialogísticos (nos

quais se sinaliza algum compromisso com posições alternativas/voz). Além disso, o

termo “compromisso heteroglóssico” envolve duas amplas categorias: dialogicamente

31

expansivos (possibilitam alternativas) ou dialogicamente contráteis (restringem as

possibilidades). O Quadro 3 apresenta um resumo do sistema de Avaliatividade.

Quadro 3 - Recursos de Avaliatividade (APPRAISAL)

AVALIATIVIDADE

COMPROMISSO

Monoglossia [avaliação sem negociação]

Heteroglossia [avaliação com negociação]

ATITUDE

Afeto

Julgamento

Apreciação (inclui: a Avaliação Social)

GRADUAÇÃO

Força

aumenta [completamente devastado]

diminui [um pouco envergonhado]

Foco

aguça [um herói de verdade]

suaviza [cerca de seis pessoas]

Fonte: Martin (2000)

A Avaliatividade pode realizar-se de maneira explícita, mas também pode sê-lo

de maneira implícita, sem o uso de termos geralmente usados para expressar a

avaliação. Nesse caso, Martin propõe a noção de Token de Atitude para denominar o

modo pelo qual o significado ideacional, considerado neutro em termos avaliativos,

pode ser saturado pela Avaliatividade. Assim, Martin distingue entre Avaliatividade

inscrita (explícita) e evocada (implícita). Por outro lado, realizações mais segmentáveis

e localizadas de Avaliatividade, bem como de Modalidade, podem espalhar-se – pelo

processo da prosódia - através de longos trechos de um texto, somando-se

funcionalmente em uma única avaliação no nível do discurso. Esse tipo de persuasão,

que acontece cumulativamente, pode ser extremamente eficaz em certos contextos.

O exame da avaliação contida no texto - que em última instância tem a função de

levar à persuasão – pode conscientizar o leitor de que textos tratados como

monológicos, como é o caso do texto escrito, são na verdade profundamente

“endereçadores” (BAKHTIN, 1935 [1981]), e portam conteúdo de certos valores éticos,

para engajar os leitores no processo da leitura.

32

2.3.1 A Avaliatividade e a Prosódia

Com referência à Avaliatividade, Martin (1992, p. 553-559) e outros sistemicistas

notaram que as realizações de significados interpessoais, incluindo Modalidades e

Atitudes, tendem a ser mais “prosódicas” que as realizações mais segmentáveis e

localizadas dos significados Ideacionais. Para Lemke (1998), componentes

redundantes, qualificadores e amplificadores ou restritivos, daquilo que é

funcionalmente uma única avaliação, espalham-se através da oração ou da oração

complexa ou, mesmo, de longos trechos de um texto. Ficará claro, assim, que as

avaliações de Proposições e Propostas não são independentes, em longos textos, da

avaliação de Participantes, Processos e Circunstâncias incluídos em Proposições e

Propostas.

Lemke (1998) chama de Realização Prosódica a esse significado atitudinal que

se estende pelo texto e que inclui: a coesão avaliativa, a propagação sintática, a

avaliação projetiva, a avaliação prospectiva e retrospectiva, e sugere que esses

significados avaliativos têm um papel importante na análise do discurso da

heteroglossia social e da identidade individual e coletiva. O autor examina um corpus

constituído de editoriais.

Por outro lado, devido à existência de vários tipos de nominalização em certos

registros, uma proposição (p.ex., "a confirmação chocou a população") num ponto do

texto, pode tornar-se “condensada” (p.ex., "confirmação") como um participante em

outro trecho, e, vice-versa, participantes (especialmente nomes abstratos) podem ser

“expandidos” pelo leitor em proposições implícitas através da referência a algum

intertexto, ou ao co-texto imediato (e.g. "O autor confirmou a denúncia") (LEMKE,

1990).

2.3.1.1 Reconhecendo hierarquias interpessoais

Há na narrativa uma distinção entre a relação escritor-leitor, estabelecida pelo

texto, e as relações personagem-personagem no texto. As vozes e avaliações tecidas

33

na narrativa são todas sujeitas ao ambiente condicionador da semiosis da narrativa que

os anima.

Muitos teóricos da narrativa chamaram a atenção para a hierarquia de discursos

que operam nos textos escritos e para a necessidade de distingui-los na análise do

texto. Assim, o ato da narração (também chamado “enunciação”) precisa ser

diferenciado daquilo que é narrado (ou “enunciado”). Um recente trabalho de Cortazzi e

Lixian Jin (2000) destaca a importância de se estar atento a vários níveis e contextos de

avaliação textual. Obviamente, até mesmo narrativas que parecem ratificar as escolhas

de personagens específicos relativizarão essas escolhas, simplesmente devido ao fato

de serem vozeadas. O autor “fala ao” leitor por meio de ventriloquismo semiótico,

garantindo que, mesmo que muitas vozes possam ser ouvidas, poucas serão

sancionadas.

Os leitores também são sensíveis a síndromes ou complexos de significado

atitudinal e aos modos como confirmam, opõem-se ou transformam escolhas de

palavras em outros locais do texto. Essas configurações de escolhas avaliativas

relevantes criam o que Thompson (1998) denomina “ressonância” – uma harmonia de

significados que é produto de uma combinação de escolhas não identificáveis com

quaisquer outras escolhas, consideradas isoladamente. Como veremos na análise da

Avaliatividade, as expressões de Atitude evocadas (implícitas) e inscritas (explícitas)

entram numa espécie de dança através do texto, criando um espaço semântico mais

amplo que, por si, torna-se avaliativo. Outros perceberam esse fenômeno em estudos

de avaliação, vejam-se, por exemplo, Hunston e Thompson (2000) sobre a

complexidade de sua realização em diferentes discursos, e Lemke (1998) sobre a

qualidade “propagativa” da avaliação. A esse respeito – embora algumas partes do

texto possam ser mais ou menos interpessoalmente salientes do que outras -

precisamos ver todo o texto como “aberto para” e criativo de avaliação, seja ela implícita

ou explícita.

A seguir, trato da Linguística Crítica, uma proposta de Fowler (1991), que tem o

amparo da Gramática Sistêmico-Funcional para suas análises.

34

2.4 A Linguística Crítica

A abordagem crítica inclui a Linguística Crítica (LC) de Fowler et al. (1979, 1991)

e o trabalho de Fairclough sobre linguagem e poder (1989, 1992a, 1992b). A LC foi

desenvolvida por um grupo da Universidade de East Anglia, Inglaterra, na década de

1970 (FOWLER et al., 1979; KRESS e HODGE, 1979). Segundo Fairclough (1992a, p.

46): “Eles tentaram casar um método de análise linguística e textual com uma teoria

social da linguagem em processos políticos e ideológicos, recorrendo à Gramática

Sistêmico-Funcional”.

O ponto teórico principal na análise de Fowler é que qualquer aspecto da

estrutura linguística carrega significação ideológica; seleção lexical, opção sintática,

etc., todos têm sua razão de ser. Há sempre modos diferentes de dizer a mesma coisa

e esses modos não são alternativas acidentais. Diferenças em expressão trazem

distinções ideológicas (e assim diferenças de representação).

A análise crítica está interessada no questionamento das relações entre signo,

significado e o contexto sócio-histórico, os quais governam a estrutura semiótica do

discurso, usando um tipo de análise linguística. Ela procura, estudando detalhes da

estrutura linguística à luz da situação social e histórica de um texto, trazer para o nível

da consciência os padrões de crenças e valores codificados na língua – que estão

subjacentes à notícia e que são invisíveis para quem aceita o discurso como algo

“natural”.

2.5 A Análise do Discurso Crítica

Van Dijk (2008a, 2009) sugere que a relação entre discurso e sociedade não é

direta, mas precisa ser mediada pelos chamados modelos de contexto. Ou seja, as

estruturas sociais - organizações, grupos, sexo, raça etc. - são fenômenos que não

podem ser diretamente ligados aos processos mentais de produção do discurso e

compreensão, como era anteriormente considerado pelos sociolinguistas tradicionais.

Para Van Dijk (2002), dentro da estrutura teórica do triângulo discurso-cognição-

sociedade, modelos de contexto servem de mediadores entre as estruturas discursivas

35

e as sociais em todos os níveis de análise. Isso significa que a "sociedade" é entendida

aqui, por um lado, como uma configuração complexa de estruturas situacionais no nível

local (participantes e suas identidades, papéis e relacionamentos envolvidos em

interação espaço-temporal e institucionalmente situada, dirigida-a-objetivos) e, por outro

lado, como estruturas societais (organizações, grupos, classes etc. e suas propriedades

e relações - de, por exemplo, poder).

Assim, o discurso é um fenômeno social multidimensional, segundo o autor. É,

ao mesmo tempo, um objeto (palavras ou frases significativas) linguístico (verbal,

gramatical); uma ação (como uma afirmação ou uma ameaça); uma forma de interação

social (como uma conversa); uma prática social (como uma palestra); uma

representação mental (como um significado, um modelo mental, uma opinião, um

conhecimento); um evento ou uma atividade interacional ou comunicativa (como um

debate parlamentar); um produto cultural (como uma telenovela) ou mesmo um bem

econômico que está sendo vendido e comprado (como um romance). Em outras

palavras, uma "definição" mais ou menos completa da noção de discurso envolveria

muitas dimensões e seria composta de muitas outras noções fundamentais que

precisam de definição, isto é, teoria, como significado, interação e cognição.

Para os Estudos Críticos do Discurso, continua Van Dijk, especialmente

interessante nessa análise da semântica local é o estudo das várias formas de

significados implícitos ou indiretos, tais como implicações, pressupostos, alusões,

imprecisões, e assim por diante. Novamente, tais significados estão relacionados a

crenças subjacentes, mas não abertas, direta ou precisamente afirmadas por várias

razões contextuais, incluindo o bem conhecido objetivo ideológico de desenfatizar as

nossas coisas ruins e as coisas boas deles. Finalmente, entre muitas outras

propriedades semânticas desse tipo de texto, deveríamos mencionar também a

importância do que está sendo deixado de fora do texto.

Assim, os discursos não são tão coerentes porque suas proposições referem-se

a fatos "objetivos" relacionados a algum mundo possível, mas sim devido aos episódios

(eventos e situações), tais como são interpretados, definidos (e considerados como

relacionados) pelos usuários da língua. Tais interpretações subjetivas são

representadas na memória episódica como modelos mentais de eventos e situações.

36

Podemos agora dizer que o discurso será coerente se os usuários da língua forem

capazes de construir um modelo mental para ele.

Semanticamente falando, um discurso é como a ponta de um iceberg: apenas

algumas das proposições necessárias para se compreender um discurso são realmente

expressas; a maioria das outras proposições permanece implícita e precisa ser inferida

a partir das proposições explícitas (dado um conjunto de conhecimento de mundo). É o

modelo que fornece essas "proposições omitidas", segundo Van Dijk. Proposições

implícitas ou subentendidas do discurso são, portanto, simplesmente definidas como

aquelas proposições que fazem parte do modelo mental para aquele discurso, mas não

estão presentes em sua representação semântica. Ou seja, por razões pragmáticas,

como é definido pelo modelo de contexto de um discurso (incluindo as crenças

atribuídas ao destinatário pelo falante), apenas parte das proposições de um modelo

precisa ser expressa - porque o falante acredita que essa informação é irrelevante,

porque o destinatário já conhece essas proposições ou porque pode ser inferida a partir

de outras proposições. Assim, modelos mentais proporcionam, ao mesmo tempo, uma

excelente definição de pressuposições, a saber, como aquelas proposições de modelos

de eventos que estão implícitas, mas não afirmadas no discurso.

A seguir, faço o Quadro 4 para resumir a teoria até aqui apresentada.

Quadro 4 – Resumo das teorias que embasam a análise

A Idealização no Discurso

Um enfoque crítico da Gramática Sistêmico-Funcional

Representação no Discurso Avaliatividade Linguística Crítica

Fonte: Barbosa (2015)

Passo, assim, à análise de As Minas de Prata, caracterizando o romance para, a

seguir, descrever os Procedimentos de Análise.

37

3 METODOLOGIA

A pesquisa recorre a uma metodologia que se apoia na gramática-da-oração

para explicar o modo como os traços léxico-gramaticais da estrutura superficial do texto

comunicam ideologias específicas e identidades no nível profundo do discurso no

enquadre da Gramática Sistêmico-Funcional, de Halliday (2004).

3.1 Dados

O romance As Minas de Prata foi publicado pela primeira vez em 1862 (os dezenove

primeiros capítulos); a edição completa apareceu entre 1865 e 1866. Neste trabalho,

utilizo o texto da coleção Romances Ilustrados de José de Alencar. 5ª ed. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1967. 7 v. O segundo volume é dedicado só para As Minas de

Prata, que se divide em três partes com, respectivamente, 23, 22 e 27 capítulos, mais

um epílogo, que encerra a narrativa. São, portanto, 72 capítulos mais o epílogo,

totalizando 544 páginas.

Serão analisados três trechos, retirados dos seguintes capítulos: (a) “O círculo

vicioso da fortuna adversa”, capítulo XI, terceira parte, da página 405 à 419, trecho com

aproximadamente 96 linhas; (b) “À beira de um esquife”, capítulo XXVII, terceira parte,

da página 537 à 542, trecho de aproximadamente 23 linhas; e, por fim, (c) “Epílogo”, da

página 542 à 544, trecho de aproximadamente 34 linhas. A seleção dos fragmentos a

serem analisados se fez com base na importância dos valores que constroem no

processo de idealização do herói do romance.

3.1.1 O herói de outro mundo

A narrativa de As Minas de Prata se passa em 1609, início do segundo século da

colonização do Brasil, na florescente Salvador, capital da colônia à época, onde

senhores de engenho abastados disputam o poder com a coroa portuguesa (espanhola,

mais precisamente), representada pelo governador local, e com os padres da

Companhia de Jesus. O pano de fundo das aventuras do herói brasileiro Estácio Dias

38

Correia é ainda composto pela gente miúda, onde se encontram pescadores,

alfeloeiras, magarefes, taberneiros, adeleiras, aventureiros, caçadores de escravos;

gente mestiça, negra, índia, branca, escrava ou semiescrava.

Estácio Correia, jovem de 19 anos, vive uma situação ambígua: como

descendente de Diogo Álvares, o Caramuru, primeiro senhor português a conquistar as

terras aos gentios, e de sua esposa índia, Catarina Álvares, chamada de Paraguaçu, e

ainda por ser filho de Robério Dias, o descobridor das lendárias minas de prata,

pertence a uma das poucas famílias ditas ricas e principais. O jovem é pobre, porém. E

não é visto entre os principais da terra.

Poucos anos antes, o seu pai, Robério Dias, de posse de um manuscrito com o

roteiro para se chegar às minas de prata, julgara por bem embarcar-se para as

Espanhas e oferecer o segredo das minas a El-Rei Filipe II. No momento de entregá-lo,

porém, percebeu o nobre Robério que fora roubado. El-Rei não o conhecia e, cheio de

desconfiança e irritação, pois já lhe havia até prometido o título de marquês, condenou-

o por falso e embusteiro. Robério adoeceu e morreu em seguida, e a sentença de

confiscação de seus bens pesou sobre sua família, reduzida subitamente à extrema

pobreza material e à desonra pela acusação de traição.

Estácio logo se tornaria também órfão de mãe, e sua educação ficou a cargo do

advogado português Vaz Caminha, “o mais sábio letrado da cidade do Salvador”, que

educou o herói com a ajuda de Álvaro de Carvalho (o alcaide); este lhe ensinou as

“artes de cavalaria”, aquele as “humanidades”; teve o jovem Estácio ainda a instrução

dos padres no colégio dos jesuítas, que o queriam membro do instituto, com o intuito

secreto de herdarem as minas de prata de seu pai, caso fosse confirmada a sua

existência.

Apaixonado por uma jovem cujo pai, um fidalgo espanhol, o rejeita como

“descendência bastarda de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma

mistura de sangue gentio” (ALENCAR, 1967, vol.2, p.418), Estácio descobre pista da

localização do roteiro das minas, perdido por seu pai, e parte numa aventura fantástica,

repleta de feitos heroicos - inclusive o de salvar o Brasil de uma conspiração

envolvendo judeus holandeses - em busca do tesouro que pode reabilitar o nome do

seu pai, e o seu próprio, tornando-o visível e, assim, lhe dando a possibilidade de ter o

39

seu “santo amor”. Em suas viagens será assediado pela cobiça dos que querem roubar-

lhe o roteiro, dentre esses se destaca um inteligentíssimo e ambicioso jesuíta, o Padre

Gusmão de Molina, o ambíguo vilão do romance.

Por meio de uma espécie de jogo de xadrez que opõe a inteligência do herói (e

seus amigos) à do vilão, o narrador constrói e apresenta ao leitor, fazendo-os emergir a

cada passagem do sinuoso enredo romanesco, os valores que fazem de Estácio

Correia o herói do romance, proposto como referencial moral para os leitores e para a

comunidade do país em processo de construção de sua autonomia política e identidade

cultural.

3.2 Procedimentos de análise

Para responder às perguntas - (a) Como se realiza a idealização do herói em As

Minas de Prata? (b) Que escolhas léxico-gramaticais são feitas, em termos das

Metafunções Ideacional e Interpessoal para expressar essa idealização? -, sigo os

seguintes passos analíticos:

(a) Caracterização do contexto do trecho analisado, por meio das variáveis de

Registro – Campo, Relações e Modo -, para evitar a subjetividade da análise,

conforme sugestão de Goatly (1997).

(b) A seguir, cada linha do trecho selecionado será analisada em termos da

Transitividade e, na linha seguinte, será feita a análise da Avaliatividade e da

Modalidade.

(c) Cada trecho será seguido de uma discussão da análise feita.

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A codificação utilizada é:

Caixa Alta Processos: MATERIAL (Ma), RELACIONAL (Re), MENTAL (Me), COMPORTAMENTAL (Co), VERBAL (Ve) e EXISTENCIAL (Ex).

Sublinhado Participantes e Circunstâncias.

Negrito Avaliatividade e Modalidade.

(+) ou (-) Avaliatividade, positiva ou negativa.

(↑) ou (↓) Graduação, com intensificação ou com atenuação da Avaliatividade.

Veja-se, abaixo, no Quadro 5, um exemplo das análises da Transitividade e da

Avaliatividade / Modalidade.

Quadro 5 – Exemplo de análise

O mancebo DESPEDAÇOU o papel e LANÇOU ao chão os fragmentos.

Ator Ma Meta Ator (Ele) Ma Circunstância Meta

Julgamento (+) Token

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4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A seguir, caracterizo - por meio das variáveis de Registro: Campo, Relações e

Modo - o contexto do primeiro trecho analisado, do capítulo “O círculo vicioso da fortuna

adversa”.

4.1 Análise das variáveis de Registro de “O círculo vicioso da fortuna adversa”

(capítulo XI, terceira parte, da página 405 à 419).

Campo

No capítulo “O círculo vicioso da fortuna adversa”, o narrador mostra mais uma

aparição espetacular do herói Estácio Correia. Tido como morto após uma longa

sequência de aventuras por terra e por mar, em que luta no interesse da pátria e no seu

próprio (a busca do roteiro das minas, que representa a possibilidade de reabilitação do

nome de seu pai, e a sua própria felicidade, pela obtenção de riquezas extraordinárias e

condição de ter o seu amor), eis que surge o herói, com o roteiro em mão, diante do seu

mestre Vaz Caminha. Escondido o roteiro, simbolicamente aos pés de uma cruz, o herói

se dirige à casa de D. Marina de Peña (a Dulcita), esposa abandonada pelo padre vilão

Gusmão de Molina, em troca de sua ambição de ser Geral da Companhia de Jesus, e

talvez papa; aí, ajudado por seus amigos, o herói obtém uma “roupa de gala e um cavalo

ajaezado”, para, cumprindo os rituais necessários para se apresentar a um homem

“principal”, dirigir-se à casa do fidalgo espanhol D. Francisco de Aguilar e pedir-lhe a

mão da filha Inesita, a quem ama, em casamento. A conversa entre o herói e o fidalgo é

a cena principal do capítulo, a qual analisarei.

Relações

Atenho-me à relação do herói com o fidalgo, pai de sua amada. Estácio é jovem

e pobre, filho de uma das famílias principais da terra, a qual perdeu os seus bens

materiais e os seus títulos de nobreza devido a uma condenação real. Recebeu boa

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educação, nas letras como nas armas, sabe se expressar com elegância, e tendo já

provado o seu valor bélico em serviço da pátria, e obtido, à custa de muitas façanhas, o

roteiro das minas de prata, motivo da condenação real que vitimou o seu pai e a si

próprio, chega confiante à casa do fidalgo espanhol, esperando que o seu valor pessoal

e a posse do roteiro sejam suficientes para convencê-lo, já que, em sua concepção, a

posse do roteiro representa a reabilitação moral e material de sua família. Porém, o

fidalgo espanhol, como se verá, vê-se noutro patamar social, é senhor de engenho e

figura entre os homens ditos principais na cidade do Salvador; é estrangeiro, além

disso, em tempos de União Ibérica, o que o coloca, ao menos em sua concepção,

acima de qualquer português. Na conversa, mostrar-se-á hostil aos argumentos de

Estácio, até, por fim, explicitar a verdadeira razão de sua recusa, a qual, veremos, tem

relação direta com os valores principais que o narrador quer construir no processo de

idealização do herói.

Modo

Segundo Eggins (1997), um texto apresenta invariavelmente algumas influências

do contexto em que foi produzido, e esse contexto determina, ao menos em parte, as

palavras e as estruturas que o produtor escolherá. No Pós-Escrito, texto datado de

1865, mesmo ano da publicação da edição integral de As Minas de Prata (ALENCAR,

1967, vol. 7, p. 168), José de Alencar apresenta uma concepção de língua nitidamente

relacionada ao contexto sociopolítico do país em seu tempo: “A língua é a

nacionalidade do pensamento como a pátria é a nacionalidade do povo”. A linguagem

de José de Alencar procura, portanto, uma identidade para o Brasil independente.

A linguagem literária, escolhida, limada e grave, não é por certo a linguagem sediça e comum, que se fala diariamente e basta para a rápida permuta das ideias: a primeira é uma arte, a segunda é um mister; [essa diferença, todavia,] se dá unicamente na forma e na expressão; na substância a linguagem há de ser a mesma, para que o escritor possa exprimir as ideias de seu tempo, e o público possa compreender o livro (ALENCAR, 1967, vol. 7, p. 169).

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Os bons livros teriam o papel de corrigirem “os defeitos da língua”, além de

realçar as suas belezas; e ao grande escritor, “o gênio”, assistiria o direito de “criar uma

língua, uma arte”, cabendo ao público, que exerce uma influência recíproca com o

escritor, fazer a sanção. A ideia é colocada, finalmente, na forma de um símile à

Homero:

A atmosfera atrai os átomos que sobem das águas estagnadas pela evaporação, e depois os esparze sobre a terra em puro e cristalino rocio. São da mesma forma as belezas literárias dos bons livros; o escritor as inspira do público, e as depura de sua vulgaridade (ALENCAR, 1967, vol. 7, p. 170).

4.2 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade (disponho o texto do capítulo na íntegra, para facilitar a compreensão da análise).

O círculo vicioso da fortuna adversa É tarde da noite. Vaz Caminha prolongou mais a costumada vigília; ainda ele rabisca no seu telônio, à luz mortiça

da candeia. Sentia o bom velho que a vida se lhe escapava rapidamente, e esforçava terminar a correção de sua obra para deixá-la concluída por sua morte, legando-a a algum rico patrono, que a fizesse imprimir e a amparasse com seu valimento. Outrora destinava ele essa herança para seu afilhado; mas Deus o tinha chamado primeiro, dando-lhe assim aviso de que se apressasse em reunir-se aos seus que já eram todos idos.

No dia em que fora ao Colégio, três havia, o advogado ao ouvir a narração do P. Molina, tivera realmente um pressentimento de que Estácio ainda era vivo; e mais se fortalecera na esperança observando a tática do jesuíta para tirar dele pormenores acerca do roteiro das minas de prata. Mas aos setenta anos a alma tem perdido o calor, e já não vicejam nela as rosas, senão as pálidas e rápidas anêmonas, que ao menor sopro se desfolham. Assim a esperança murchou no coração do velho com as primeiras sombras da noite.

Continuava o laborioso escritor sua vigília, quando no princípio da escura rua soaram passos ligeiros, acompanhados do tinir da espada ao longo do quadril. A pessoa, que era, tinha elevada estatura, e vinha embuçada em manto de amplas dobras e cores escuras. Dirigiu-se direito à porta do advogado; mas vendo as réstias de luz que filtravam pelos interstícios da janela, bateu de leve nas grades. Vaz Caminha interrompeu o trabalho um tanto surpreso, mas não muito; pois não era a primeira, nem segunda vez que lhe batiam na porta a tais desoras.

- Quem bate? perguntou de dentro da rótula. - Uma pessoa que vem de parte de D. Fernando de Ataíde sobre negócio urgente! respondeu voz

desconhecida, que vibrou uma corda íntima no coração do velho. Ele correu a abrir. O desconhecido entrou rápido, fechou a porta sobre si, e enlaçou o advogado

com os braços, apertando-o ao peito. - Vitória, mestre!... murmurou ele. - Estácio!... Filho!... exclamou o velho trêmulo de comoção. E não pôde dizer mais. Abraçou o mancebo, e calcando a mão ao seio, parecia querer ampará-lo

contra a súbita e tamanha alegria que ameaçava despedaçar as arcas do peito.

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Ao tempo que isto acontecia no corredor da casa do advogado, a rótula quase fronteira se abria, e dois vultos saiam; um partiu de corrida rua acima, o outro se agachou junto à porta do advogado e depois à janela para escutar.

É ocasião de remontar os acontecimentos até o instante em que ficou Estácio desamparado no meio do oceano, exposto às iras de D. Francisco de Souza.

As ilhas dos Abrolhos haviam surgido, e uma centelha brilhara nos olhos de Estácio. - Quando julgais que estaremos fronteiros às ilhas? perguntou o mancebo ao contramestre. - Com este maldito vento que nos atrasa? Lá pelo quarto da prima! - Em quanto tempo pensais que possa uma chalupa fazer a travessia das ilhas à terra firme? - Conforme a maré. - Com o preamar? - É negócio para oito ou dez horas. - Então esperemos ainda. - Bravo! Destas falas gosto eu! Raquel levou do rosto do mancebo ao céu os lindos olhos plenos de graça, e de lá os trouxe

embebidos em eflúvios para ungir a quem amava em silêncio. Estácio afastara-se com o Antão para lhe falar em segredo. - É pena! disse o contramestre com um suspiro porque já queria bem a este diabo de navio! Eram dez horas do dia. O tombadilho transformou-se em uma oficina de carpinteiro, onde toda a

maruja trabalhava com ardor extraordinário. Entretanto as galés se aproximavam rapidamente impelidas pela força dos remos; a cada instante o vulto dos navios crescia sobre as águas como um fantasma. Ao cair da noite já se descobria a olho nu o casco e o movimento compassado dos remos.

Apenas foi escuro bastante, arreou-se pelo flanco esquerdo do bergantim uma grande balsa ou jangada, em que marujos haviam trabalhado todo o dia. Imediatamente transportaram para ela víveres, armamento e munições, e todos quantos objetos de valor pôde ela conter. No centro estava colocada a gaiola de ferro de bordo, que reforçada convenientemente, serviu de prisão aos três judeus. Por prudência foram amordaçados.

- Quisera poupar a vosso pai, disse Estácio a Raquel, essa medida violenta; mas vós mesma me tirastes a confiança em sua palavra.

A donzela abaixou a cabeça, acabrunhada de tristeza. - Fazei o mesmo a mim para que não me fique o remorso do que pratiquei! - Remorso de quê? Se fostes vós que o salvastes! O seu perverso intento fora a sua perdição, e

mais tarde há de ele bendizer a coragem com que arrostastes sua ira. Às onze horas o bergantim estava fronteiro com os três rochedos dos Abrolhos. Foi ordenado o

embarque da gente na balsa, que apartou-se do bergantim, presa porém com uma espia. A chalupa, ao portaló com o resto da maruja, esperava o comandante. Raquel durante todo esse dia não tinha saído de perto do mancebo; no momento do embarque lhe travou ela da mão:

- Eu vos suplico uma graça!... Vós ma deveis em paga da sombra de felicidade, que dissestes, vos dei pouco há.

- Que desejais de mim? - Se eu tive a fortuna de representar ao vosso pensamento, no instante solene do perigo, a

imagem daquela que adorais, reclamo nesta qualidade o direito que lhe coubera, se aqui estivesse, de acompanhar-vos em todos os transes desta noite aziaga.

Estácio achava tudo isto estranho; mas a instância do momento não lhe deixava pausa para demorar o espírito neste incidente. A suavidade daquela voz maviosa, repassada por um hálito perfumado, e a tépida pressão da mão acetinada, influíram docemente em sua alma. Eram as primeiras carícias de amor que libava seu coração; e como para ele Inesita simbolizava o amor, fazia-se em seu espírito uma doce alucinação, pensando que vinham da formosa donzela esses bafejos de ventura.

- Seja como quereis! balbuciou o mancebo. Ficaram eles dois sós a bordo do bergantim. Estácio desceu ao paiol. Raquel viu sem estremecer

o mancebo entrar naquele vulcão de pólvora com uma mecha acesa. Supôs que ele mudara sua primeira resolução de atirar-se ao mar, preferia a explosão do navio, que lhe assegurava a vingança. Nem um músculo de seu rosto contraiu-se; não fez um gesto para conter a mão que ia vibrar o raio; apenas se aproximou do mancebo para que a morte os unisse.

Mas Estácio não nutria esse projeto; colocou a mecha em cima de um barril de pólvora, como uma vela no tocheiro. Outra mecha de estopa fora aplicada ao ouvido do rodízio.

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- Daqui a quatro horas!... disse ele. Sorriu à judia, e tomando-a pela mão, levou-a para a chalupa, que afastou-se rapidamente do navio. Antão, a quem fora confiada a balsa, cortou a espia e mandou remar para os rochedos. Continuou o bergantim, cujo leme fora amarrado para conservar-lhe o rumo, a singrar placidamente no bordo do mar, impelido pelas rajadas da brisa.

A chalupa e a balsa breve se esconderam por detrás dos rochedos. Quando teve lugar a explosão, já iam longe bastante para não serem alcançados pelo grande clarão, e descobertos.

No dia seguinte abicou à costa Estácio com sua gente. Resolveu o prudente mancebo prosseguir a jornada por terra durante alguns dias, dando tempo de afastar-se a frota do governador daquelas paragens. Antão com alguns índios ficaram para conduzir a chalupa e a balsa a fim de continuar a viagem costa a costa.

Na tarde daquele dia chegara Estácio ao Recôncavo da Bahia, no lugar da Sapucaia, assim chamado de uma grande árvore dessa família que ensombrava o terreiro de uma palhoça.

Tomou o bando posse da choupana onde morava uma pobre gente, que se achou bem paga do agasalho com alguns trastes do bergantim. As ordens de Estácio eram positivas e terminantes. Ninguém da companhia devia comunicar com a gente da terra, para se não divulgar quem eram e donde vinham os recém-chegados.

Se acaso, na ausência do mancebo, viesse contra o bando gente armada em força maior, de modo a tornar a resistência impossível, nesse caso deviam meter-se pelo mato e evitar assim o reconhecimento e captura até que Estácio voltasse da cidade.

Em suma, o estudante não queria que os prisioneiros holandeses fossem entregues à gente de El-Rei antes de entender-se ele com D. Diogo de Menezes. Era o meio de obter o perdão de Samuel por ele prometido à linda judia.

Bem recomendado tudo ao zelo de Antão, partiu-se Estácio em canoa acompanhado unicamente de Esteves. Horas havia que chegara à ribeira.

- Esteves, adivinho quanto haveis de estar impaciente por abraçar vossa mãe; é preciso porém que esta noite não vos veja ninguém.

- Ninguém me verá, Estácio; se for preciso, passarei a noite embaixo d’água. - Basta que vos deiteis no fundo da canoa, mas não aqui junto à praia. Amarrai àquela boia que

ali vejo, e dormi tranquilo. Com pouco chegara à casa de Vaz Caminha. Entretanto o velho advogado passara com o estudante ao cartório e daí à câmera de dormir,

aposento interior, servido apenas por uma porta. - Aqui estaremos melhor para conversar! disse o advogado à puridade. Mas falai, como se nos

vissem e escutassem, ao meu ouvido e sem gesto. - O roteiro está enfim em meu poder! - Ainda o trazeis sobre vós? - Tenho-o à cinta. - Grande imprudência, Estácio! É expordes, além do segredo, vossa existência. - Trouxe-o mesmo para confiá-lo à vossa guarda. - Segredos há, filho, que se não confiam, porque eles levam consigo um verme que ataca o

coração, a desconfiança. - Desconfiar eu de vós? É isso jamais possível. - Ninguém sabe que vozes soarão amanhã em sua consciência. Acredito que nunca viésseis a

suspeitar de vosso mestre e padrinho, quaisquer que fossem as coincidências fatais; mas se esse objeto de tanto valor vos fosse roubado estando em minha mão, todo vosso amor e abnegação não bastariam para reprimir este queixume que vossa alma havia de murmurar um dia: “Talvez não me sucedesse essa desgraça se eu mesmo velasse sobre meu tesouro”. Eu não quero que entre o vosso e meu coração se interponha nem essa tênue sombra. Acrescentai que em minha mão mais exposto que em parte alguma estaria o roteiro. Neste momento sem dúvida já vossa chegada à cidade é sabida; amanhã talvez não haverá canto de minha casa que não tenha sido corrido.

- É impossível, mestre; acabo de desembarcar só com Esteves, e da ribeira até aqui não fui encontrado por viva alma.

- Deveis conhecer o tino e previdência dos jesuítas, Estácio; pois lutastes já com um dos mais perigosos!

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- O P. Molina!... Mas lembrais-me que é tempo de vos contar o muito que passei desde o recebimento de vossa carta até este instante!...

- Sacrifico com mágoa à vossa segurança o prazer imenso de ouvir-vos agora, e fartar-me de vossa conversação, da qual tanto há que estou privado. Antes de tudo, Estácio, cumpre por a bom recado o roteiro, de modo que possais zombar da astúcia de vossos perseguidores.

- Esqueci-me dizer-vos que o roteiro já o tenho de cor! Se o tirarem desta cinta, não o tirarão daqui, da memória. Quando o decorava, as ondas rugiam, e eu lembrei-me de Demóstenes ensaiando nas praias de Atenas a sua coragem de orador contra as tempestades populares. Eu preparava o meu espírito contra as emoções da vida!...

- Tivestes uma feliz lembrança, Estácio. O P. Molina acha em vós contendor digno dele. - Oh! não, mestre. Não sou mais que noviço nos trabalhos da existência em que sois professo. Vaz Caminha refletia: - Decorando o roteiro, Estácio, adquiristes grande vantagem sobre vossos adversários; mas não

estais de todo seguro contra suas maquinações. Suponde que vos roubam eles o manuscrito, e se desfazem de vós para legitimar a sua propriedade e evitar que os inquietei?... De que vale o que trazeis na memória? Suponde ainda que apossando-se do roteiro, destroem sobre o terreno certas indicações que assinalam o rumo... Não ficará inutilizado quanto sabeis? É preciso defender vosso segredo, mais que nunca. E na maneira de o fazer não pedi conselho a ninguém...

- Nem de vós, mestre? - De ninguém, senão de vosso engenho, que não vos há de faltar, porque Deus justo o inspira.

Sois portador de um germe, que pode ser o da morte ou o da grandeza. Mostrai-vos digno dessa situação em que a Providência vos colocou.

- Cuidais então, mestre, que meu primeiro cuidado seja pôr em segurança o roteiro? - Quanto antes. Já devíeis ter partido. - Oh! mestre, lembrai-vos que há apenas instantes que vos abracei depois de cerca de dois

meses de ausência!... - E não me lembro mais do que devera! Pois se ouviste minha consciência, antes que meu

coração, já não estaríeis aqui! Cada átomo daquela areia que vaza, é talvez um ano de vossa felicidade a escoar-se! Quem sabe!

- Parto já; mas antes queria falar-vos de uma coisa, que bem sabeis. - De vosso amor? - De meu amor, sim, mestre! Dessa esperança que alimentastes no princípio, e que no momento

de apagar-se para sempre, ressurgistes do desespero onde se afundava! Dessa luz que me guiou todo esse tempo através dos mares revoltos e dos mil perigos que me cercavam! Pela declaração que enviastes de D. Fernando, Inesita é livre!...

- Ainda não é, mas será no instante em que o exigirdes. Assim combinamos para evitar novos compromissos.

- Então rogo-vos seja vosso primeiro cuidado aplainar essa dificuldade, como será o meu, amanhã, decidir do meu destino.

- Parece-me que tendes de vos apresentar ao governador. - Certamente; devo dar-lhe conta do que obrei em seu nome e no serviço d’El-Rei. - Não vos parece que deva essa obrigação proceder ao que vos diz respeito individualmente? - Assim devera ser; mas razões fortes me obrigam a adiar para depois a obrigação. Apesar das

coisas importantes que trabalhei em bem do Estado, não sei como pretende dispor de mim D. Diogo de Menezes. Se tenho de ser novamente sepultado em uma masmorra, que ao menos leve o desengano que me há de matar de uma vez sem penar, ou a esperança viva que outra vez me ressuscite.

Estácio travou das mãos do velho, a impô-las sobre o coração: - Sim, mestre; este coração estua com a sede de felicidade que o devora. Como a desgraça, o

amor foi nele precoce; veio com a infância. Há tanto que ama longe das vistas dela, não tendo para alimento mais que um olhar de ano em ano! Viveu até agora da própria seiva, e sente-se exaurido de tanto afeto dado, e nenhum recebido em volta. Se novas esperanças o não encherem, há de estalar! Sim, pois me sinto como o viajante extenuado pela longa e árdua jornada: quando lhe arrancam dos lábios o licor generoso que lhe deve restituir as forças, desmaia e sucumbe!... Só ela pode dar têmpera a esta alma!

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Estácio dizia a verdade; ele sentia essa ardente sede de amor, e o que ainda mais o excitara foram as palavras e os gestos da linda judia. A beleza amante e sedutora tinha despertado em sua alma o sabor das carícias, como o perfume da manga prure o paladar.

- Tendes o direito a essa felicidade porque almejais. Ide pois em busca dela, Estácio. Amanhã espero que D. Fernando de Ataíde tenha desligado de sua palavra a D. Francisco; logo que isso suceda, podeis apresentar-vos em casa do fidalgo.

- Abreviai o mais possível. - Até lá ocultai-vos, que não saiba o governador de vossa chegada. Não torneis aqui. - Onde vos verei? - Procurai na Rua de Santa Luzia uma casa que ali há de terraço e cercada de um bananal. É a

única. Entrai afoitamente e procurai D. Marina de Peña, de minha parte. Lá me esperareis! - Até lá, mestre! - Deus vos acompanhe! Estácio encaminhou-se à porta; mas o advogado o reteve um instante enquanto com o olhar

sondava a rua. Nada aparecia de suspeito; o mancebo pois subiu a rua com passo seguro e ligeiro. Mal tinha ele andado uma toesa, descobriu um vulto que se movia diante na sombra; tirou a espada da bainha, sobraçou-a por cima da capa, e continuou tranquilo seu caminho. Ao sair no Largo da Sé, ouviu assobios e logo depois o som de muitas pisadas; desviou à direita, porém receosa de que escapasse, a quadrilha correu-lhe sus.

Voltou-se então denodadamente para seus agressores, e encostando-se à parede da igreja, pôs-se em guarda. Os assaltantes, em número de dez, foram-se aproximando; um indivíduo ficara de parte, simples espectador, e Estácio ouvira que fazia em voz baixa uma recomendação aos companheiros.

- Não o matem: firam só quanto baste para segurá-lo! Esse cabo noturno não era outro senão mestre Brás, avisado em tempo por seus espias da

chegada de um vulto suspeito à casa do advogado. Fiel às ordens do visitador, o taberneiro enviara o Anselmo com a gente em busca do corpo de Estácio. Depois de inúteis pesquisas pela costa, voltara a expedição à cidade. Não se fatigou a pertinácia do P. Molina; incumbiu ao Brás de vigiar dia e noite a casa do advogado.

Como diante da bizarra e audaz atitude do mancebo, os assaltantes sofrendo o ascendente que a verdadeira coragem exerce sobre o atrevimento de mercenários ignóbeis, hesitassem no ataque, Estácio, disfarçando a voz, lhes enviou esta intimativa:

- Vamos a isso! Estou com pressa!... - Avancem! Que vergonha!... soprou o Brás. Os bandidos avançaram, e ouviu-se o rangir das espadas. Estácio sempre coberto com uma

parada vigilante e impenetrável, só abria-se quando tinha o golpe infalível. Então caía um corpo. Contudo o número dos assaltantes acabaria por fatigá-lo.

Por esse tempo desembocou no Largo da Sé um vulto, que logo reconhecia, quem uma vez o tivesse visto, pelo passo desgarrado e pelas guinadas do corpo. O tinir do ferro feriu-lhe imediatamente o ouvido; lançou os olhos para o lugar do ruído, e percebeu o grupo de pessoas que se movia desordenadamente na sombra.

- Han! han!... Briga-se por aqui!... João Fogaça saía àquelas horas da casa de Cristóvão, onde estava agasalhado. Depois da ceia

os dois amigos tinham estendido a prática pela noite adiante. Vários e interessantes foram os assuntos. Primeiramente conversaram de Estácio, sobre quem não cessavam de fazer conjeturas. Cristóvão já tinha como Vaz Caminha chorado perdido o irmão d’alma: o capitão-de-mato conservava a fé inabalável de seus caboclos, e julgava-se obrigado a esperar até que aparecesse uma testemunha de vista.

Esgotado este tema, Fogaça puxou a palestra para Elvira, de quem notava que seu amante evitava de falar. A tristeza de Cristóvão, que a recordação de Estácio aumentara, chegou à maior intensidade; seu rosto carregou-se de sombras sinistras. Depois de ter respondido vagamente, mudou por sua vez o assunto, distraindo a atenção do forasteiro com a lembrança da Mariquinhas dos Cachos, cuja história exigiu lhe contasse. Já no tempo de sua convalescença, quando a viúva do tendeiro o velava à cabeceira com tanta solicitude, Cristóvão, interrogando-a, adivinhara a mútua afeição dessas duas almas, que sua própria timidez separava, e jurou que breve as havia de reunir.

João Fogaça contou balbuciando e enrubescendo, como um namorado de quinze anos, os afetos pela formosa Mariquinhas. E tinha razão de corar; porque neste corpo rompido aos trabalhos, neste

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organismo robusto e válido, quando todos os órgãos se tinham desenvolvido, o coração ficara engado. Seu amor era núbil apenas.

Ao terminar, disse-lhe Cristóvão: - Sois um cobarde, João! O capitão-de-mato olhou-o pasmo. - Não percebo! - Pois vós morreis de amores por uma donzela que vos retribui com extremo igual; e quando ela

corre a vós para que a arranqueis a uma união forçada, fugis abandonando-a ao marido, a quem a vendem?

- Que dizeis, Cristóvão?... - A verdade. E ainda mais, a Providência vos envia de novo essa mesma mulher livre dos

primeiros laços e sempre amante e boa, e vós, que ainda lhe quereis como outrora, a deixais consumir na tristeza e solidão os melhores anos da vida?

- Por que não me disse ela que tal era seu gosto? - Se não tivestes a coragem de perguntar-lhe! João Fogaça começou a assobiar entre dentes. Essa alma pachorrenta e preguiçosa tinha raras

e surdas, mas terríveis tormentas; as paixões que acordavam nela eram tempestades impetuosas e medonhas como as que vêm no fim do inverno, depois do frio. As palavras de Cristóvão e o tom severo, com que as proferiu, foram condensando a procela. As chagas deixadas pelo casamento de Mariquinhas e agora magoadas; o remorso e a vergonha de ter causado a infelicidade da moça e a sua própria; o ridículo desse silêncio de quatro anos de um amor partilhado; tudo isto revolveu na vasa daquele coração. Cristóvão o percebeu.

- Muito há que estou para dizer-vos isto, João; chegou o momento. Bem vejo que vos aflijo; mas cedei à razão.

- Eu dera o resto de minha vida para que outro que não vós, Cristóvão, me tivesse dito o que proferistes.

O capitão-de-mato ergueu-se e ganhou a rua. Ele sentia a necessidade de brigar, ou pelo menos de andar dez léguas naquela noite; lamentava não achar-se no sertão em frente de alguma das mais ferozes tribos selvagens. Foi nestas disposições guerreiras que apareceu no Largo da Sé. Apenas percebeu o que passava do outro lado, caminhou direito ao grupo e foi espadeirando de alto a baixo ao som deste singular estribilho:

Larari-tari-tatá Tororu-loru-totu.

O compasso era marcado pela espada na pele dos sicários. Mestre Brás, satisfeito com a

pranchada que lhe administrara o longo braço do capitão-de-mato, disparou a corrida e evaporou-se; atrás dele seguiu a gente do Anselmo, que já conhecia o homem desde a noite de Ano-Bom.

- Corja de poltrões!... gritou João Fogaça vendo-os fugir. Voltou-se então para Estácio que se embuçava cuidadosamente com receio de ser por ele

reconhecido. - Quereis vós brigar comigo, já que os poltrões nos deixaram a ambos com água na boca? - Outra vez! Agora vou apressado! Respondeu uma voz de entre as dobras do manto que lhe

vendavam o rosto. Bem desejos tinha Estácio de lançar-se aos braços do homem a quem devia em grande parte os

sucessos de sua empresa e agora por cima o serviço de livrá-lo da matilha de salteadores; mas a prudência exigia que moderasse os ardentes impulsos de sua gratidão. Continuou pois seu caminho e desceu à praia.

Defronte uma canoa amarrada à boia embalava-se brandamente à arfagem da onda. - Naturalmente Esteves dorme! pensou o estudante. Tirou a roupa da qual fez uma trouxa que amarrou na nuca e deitou-se a nado para a canoa. O

pescador estava de feito adormecido; saltou dentro o nadador tão sutilmente que não o despertou, e ali, sentado à proa, com os olhos derramados pela superfície do mar, afundou-se nas cogitações de seu espírito.

Onde ocultaria seu tesouro que o pusesse a abrigo da ambição dos jesuítas e da cobiça dos governadores?

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- Se o oceano mo restituísse!... Desatou a corda que prendia a canoa e deixou-se vogar mansamente à flor dos mares. Então

seus olhos correndo a alva fita de areias que se desdobrava até o sítio do Bonfim, divisou o negro contorno de um bosque espesso, que demorava a alguma distância da praia, na direção do monte Calvário.

- A cruz da Expiação! balbuciou dentro d’alma. Deixando a canoa boiar à discrição da maré que a impelia docemente para a ribeira, Estácio

nadou para a praia. Aí chegando, buscou um lugar onde havia pedras, para tomar terra e ganhar o gramado, sem que ficasse impresso na areia o vestígio de seus passos. Encaminhou-se direito ao arvoredo sombrio e nele penetrou sem hesitação.

Uma vereda cortava esse bosque ao longo, e servia aos que transitavam do Forte do Rosário para a cidade. Um claro havia a meio dele, onde se erguia sobre um tosco pedestal de alvenaria uma cruz preta de pau-santo, à qual dava o popular o expressivo nome de Cruz da Expiação.

Rezava uma antiga tradição que poucos anos depois da fundação da cidade, ali aparecera certa manhã o corpo de um homem empalado na pele de uma mulher. Muitas versões correram então a respeito desse horrível acontecimento, que indicava uma vingança bárbara; mas não se soube nunca nem o nome do autor nem os das vítimas. Os corpos foram enterrados no mesmo lugar, onde tempos depois apareceu levantada aquela cruz sobre o pedestal de alvenaria.

Como todos os lugares que foram teatro de um acontecimento terrível e misterioso, era aquele cercado do pavor e respeito popular. Durante a noite os mais corajosos evitavam por aí passar, preferindo fazer uma grande volta pela praia. Mesmo com o sol alto o que ali se arriscasse, transpunha o sítio com passo rápido, levando os olhos no chão e o Credo na boca.

Em sua infância muitas vezes Estácio levara até lá suas correrias. Já naquele tempo, impelido pelo seu caráter a afrontar o perigo, ele passava por aí frequentemente, tomado de certo respeito e tristeza pela recordação fúnebre, porém sem vislumbre de temor; ao contrário com alguma curiosidade de sondar o mistério dessas abusões populares.

O mancebo conhecia pois perfeitamente o sítio para onde caminhava. O pedestal da cruz estava carcomido pelo tempo; as escaras do reboco deixavam a descoberto

alguns tijolos já vacilantes pela queda do cimento; com a ponta do punhal Estácio conseguiu arrancar dois deles; cavando no fundo um pequeno vão, introduziu o cossolete onde estavam guardados os papéis, e restituiu os tijolos à sua antiga posição. É escusado dizer para quem lhe conhece a prudência, que antes de efetuar esse trabalho, percorreu os arredores sondando as trevas da noite; e durante ele tinha o ouvido alerta e o olho vigilante.

Terminado o trabalho retirou-se; mas o espaço arenoso que mediava da cruz à beira do bosque, atravessou-o retrocedendo de joelhos, e apagando com as mãos os traços que ali deixara na ida e agora na volta. Tornou pelo mesmo caminho à praia, que foi beirando por dentro d’água até frontear a canoa. Em poucos instantes a alcançou a nado; acordou Esteves e remaram para o lado da Vitória. Ali desembarcara ele para ir amanhecer em casa de D. Dulce, enquanto o pescador ganhava a ribeira.

Estácio ficou então perfeitamente tranquilo em relação a seu tesouro. Vinha rompendo a madrugada. Ele aproveitou as últimas trevas para ganhar a casa de D. Dulce. Prevenida pela criada, a dama se compôs para vir receber a matutina visita que lhe enviava seu

advogado; dando com os olhos em Estácio, estremeceu de surpresa e de contentamento; uma onda de púrpura derramou-se pelo seu belo semblante, roseando até à nascença do colo, enquanto os olhos afogavam em uma lânguida meiguice.

- O Doutor Vaz Caminha enviou-me à vossa casa, senhora, com recomendações de aqui esperá-lo.

- Eu tinha pedido ao meu velho amigo que vos trouxesse a esta vossa casa, logo que fôsseis de volta. Felizmente eis-vos são e salvo. Vossa ausência já nos causava bem cruéis receios!...

- Também a vós, senhora? Pensava não vos ser conhecido. - A primeira vez que deparou-me o acaso ver-vos, as feições lembraram-me a pessoa a quem

mais amei neste mundo... Um filho, que se fosse vivo, teria a vossa idade e vossa gentil presença. Depois soube pelo Dr. Vaz Caminha vosso nome e muitas particularidades da vossa vida; meu interesse aumentou, porque ao primeiro motivo juntou-se outro, o da gratidão.

- Como é isso possível, se agora vos vejo pela primeira vez! - Vosso pai Robério Dias prestou ao meu relevantes serviços; e como sejam ambos falecidos,

nós herdamos seus títulos, vós a minha gratidão, eu a vossa benevolência.

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- Quais serviços foram esses, se vos praz, senhora? É justo que não ignore eu uma nobre ação de meu pai.

- Heis de sabê-lo mais tarde, vos prometo; agora dispensai-me desse dever. Estácio inclinou-se. - Sois órfão de pai e mãe; o Doutor Vaz Caminha, sei eu que pelo seu amor substituiu o primeiro;

mas vossa tia é bastante idosa, e seu pensamento, já todo voltado para o céu, pouco tempo tem para dar-vos. Uma amizade verdadeira me liga hoje a vosso mestre; esse título, junto aos outros de que vos falei, não pensais que me autorizem a pedir-vos a graça de substituir a mãe que perdestes?

- Oh! senhora!... - Não me julgais digna desse encargo? - A mim é que faltam títulos para merecer a vossa solicitude! - Então aceitais?... E eu entro já no exercício de minhas doces atribuições. Sei Estácio que amais

uma donzela, de quem sois retribuído, mas de quem vos trazem afastado. Não posso eu fazer nada para a vossa felicidade?

- Podeis fazer muito com os vossos votos, que Deus não deixará de exalçar! - Esses vos acompanharão sempre. Se vosso amor vos der algum desgosto ou mágoa, prometei

vir desabafar em meu seio. Dizem que o coração da mulher é insondável; mas no meu, que tanto já sofreu e vos está aberto, aprendereis a conhecer esse abismo. Prometeis-me isso?

- De bom grado, senhora; doces devem ser as mágoas tratadas por vossas mãos. - Outra pergunta ainda tenho o direito de fazer-vos. Não vos escandalizeis com ela. A desgraça

de vosso pai deixou-vos na miséria; haveis de carecer de meios para manter-vos como deveis à vossa pessoa?

Estácio empalideceu; sua resposta foi glacial. - De muito careço, senhora; mas nada preciso. - Atendei, antes de dar-vos por ofendido. Meu pai deixou-me rica, imensamente rica; mas houve

tempo em que estivemos na miséria, e quem dela salvou-nos foi Robério. Por que não pagarei agora, que mudaram as sortes, esta dívida sagrada!

- Não herdei nenhum crédito ou escrito de tal dívida, senhora; e pois não me julgo com direito a cobrá-la.

- Mas o título, que me deixastes tomar, dá-me a autoridade... - Supus que o tomava uma pessoa, como eu, privada de bens da fortuna, e só a respeito da

afeição. A uma dama rica não o posso consentir! - Pois serei pobre para vós, pobre como Jó, ouvistes? exclamou Dulce inquieta. Prometo nunca

mais falar de semelhante coisa. - Eu vos renderei graças. - Mas se não posso repartir convosco do meu, posso informar-me de vossas esperanças de

futuro. Que contais fazer?... O segredo de vosso pai ficou realmente perdido? Nunca tivestes notícia dele?

Estas perguntas despertaram a desconfiança no ânimo do mancebo e o tornaram reservado. - Não sei a tal respeito mais do que diz o vulgo; e peço-vos, senhora, desviemos a conversa

deste triste assunto, que me penaliza sempre pelas recordações amargas que desperta. - Desculpai-me se magoei vossa alma, Estácio. É preciso que a mãe saiba onde se dói o filho

para dar-lhe alívio. Chegou Vaz Caminha. Acompanhava-o Gil carregando uma pequena maça com roupa de gala

para Estácio; no quintal, estava um cavalo ajaezado. O pajem atirou-se aos braços do seu cavalheiro chorando de alegria; e jurou que nunca mais se separaria dele.

O advogado pediu vênia à dama pela liberdade de que usava em sua casa. Enquanto em uma câmera próxima Estácio se trajava com apuro para a visita que tinha de fazer, o advogado ficara conversando com sua formosa cliente, e lhe dizia o ato importante que o mancebo ia praticar naquela manhã. Dulce sentiu uma tênue sombra de melancolia toldar-lhe o espírito, e emudeceu pensativa.

O mancebo apareceu galhardo e gentil sob as vestes pretas que trazia no dia de Ano-Bom. Vaz Caminha saiu fora no quintal para fazer chegar o cavalo. Dulce, aproveitando esse momento, arredondou os formosos braços em torno da cabeça do mancebo, e pousou-lhe um beijo na fronte. Ao olhar surpreso e interrogador, respondeu um sorriso meigo: - Vossa mãe vos beijaria neste instante. Ide, e sede feliz, Estácio, como vos eu desejo!...

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Ele beijou as mãos da gentil senhora, e partiu a galope para Nazaré. Levava por cima das roupas a capa escura e com ela rebuçava-se para não ser reconhecido.

Minutos depois apeava à porta do fidalgo. Atravessando os corredores para chegar à sala onde o pajem o conduzia, passou diante de uma porta lateral entreaberta. Inesita, sentada no aposento, ao rumor dos passos ergueu os olhos, e encontrou os do mancebo fitos nela. A alma de ambos no primeiro movimento precipitou-se, uma para a outra, com tal força de atração magnética, e tão grande ímpeto que abandonou o invólucro, deixando os corpos imóveis como estátuas de mármore em atitude de surpresa. Foi depois que essas duas almas se abraçaram longa e estreitamente, que tornando a animar o corpo ermo, lhe imprimiram a ação da vontade.

Os dois amantes deram o primeiro e tímido passo um para o outro, retidos pelo pudor e por um vago receio; suas mãos estendidas iam reunir-se, quando a porta da sala abriu-se no fundo do corredor, e D. Fernando de Ataíde apareceu no limiar acompanhado pelo castelhano.

D. Fernando acabava de renunciar à mão de Inesita, apresentando, como justa e digna escusa, não ser amado pela donzela; e apesar de todas as razões produzidas pelo fidalgo, manteve-se firme e inabalável em sua resolução. O terrível segredo de sua família bradava-lhe na consciência.

Os dois rivais cruzaram um olhar diverso: o de Estácio foi doce e de gratidão, o de Fernando amargo e de rancor.

Inesita, ouvindo a voz de seu pai, deixara-se cair à poltrona, e quentes lágrimas orvalharam o pungente sorriso com que ela se despedia do amante. Estácio, desprendendo-se do seu êxtase, caminhou à presença de D. Francisco, que ficara no limiar da porta, ouvindo o aviso do pajem:

- Que BUSCAIS nesta casa?

Escopo Ator (Vós) Ma Circunstância Afeto (-)

- PRECISANDO FALAR-vos, senhor, PARECEU-me que nela vos DEVIA PROCURAR. Experienciador (Eu) Me Dizente (Eu) Ve Receptor Experienciador (Eu) Me Circunstância Escopo Ator(Eu) Ma Experienciador (Eu) Me

Obrigação Probabilidade Obrigação Julgamento (+) Token

- Para que, se não TENHO negócios convosco?

Circunstância Possuidor (Eu) Re Possuído Circunstância Inclinação Polaridade Afeto (-)

- TENHO-os eu com o Senhor D. Francisco de Aguilar. Re Possuído Possuidor Circunstância Polaridade Graduação Força (↑)

- DIR-me-EIS quais SEJAM?

Dizente (Vós) Receptor Ve Atributo Portador (Eles) Re Verbiagem

Afeto (-) Token

Discussão: As falas do fidalgo, em termos de Avaliatividade, são marcadas por escolhas léxico-gramaticais que comunicam Afeto negativo, e fazem alusão ao lugar social do herói, que não teria os títulos necessários para dirigir-se à casa de um homem principal da cidade. A fala do herói, por sua vez, é marcada por um

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autoJulgamento positivo, com o qual reivindica, implicitamente, o lugar social que lhe é negado. A Graduação de força ascendente, na sua segunda fala, é construída com a repetição da estrutura da fala do fidalgo, num paralelismo sintático em que se sugere ao leitor o desejo do herói de pertencer ao grupo social a que pertence o fidalgo, expressando-se como ele. Merece atenção o uso do Processo Relacional com o verbo “Ter”, numa Polaridade não-sim. Nas Orações Relacionais Possessivas, codificam-se “significados de propriedade ou de posse entre os participantes da oração” (FUZER; CABRAL, 2014, p. 66); o Possuído em torno do qual se trava o primeiro embate entre o herói e o fidalgo é um vago “negócios”, que sugere, na fala do fidalgo, a recusa terminante de estabelecer qualquer relação com o seu interlocutor; e na do herói, a reivindicação do que considera ser um direito seu. Vem à tona, no trecho, a questão dos lugares sociais e do direito à fala. O herói vem reivindicar um lugar social privilegiado, e com isso se insinua um valor importante para entender o seu processo de idealização.

- IDES SABER, Senhor D. Francisco. Uma fatalidade PESOU sobre minha casa, Experienciador (Vós) Me Ator Ma Circunstância

Prontidão Afeto (-) Av. Social (+) Token

que não só ROUBOU a vida de seu chefe, Ator circunstância Ma Meta

Polaridade Graduação Força (↑) Julgamento (-)

como os haveres abastados e as honras ADQUIRIDAS por seus ascendentes. Circunstância Meta Meta Ma Ator Polaridade Graduação Força (↑) Av. Social (+) Token

Uma sentença de El-Rei MANCHOU a memória de meu infeliz pai como traidor. Ator Ma Meta Circunstância Julgamento (-) Afeto (-) Julgamento (-)

Deus porém me INSPIROU a força de REPARAR a injustiça dos homens. Ator Circunstância Beneficiário Ma Escopo Ator (Eu) Ma Meta

Av. Social (+) Julgamento (-)

A minha casa VAI SER RESTAURADA, e TERÁ outro esplendor maior do que nunca TEVE. Ator Ma Possuidor (Ela) Re Possuído Circunstância Circunstância Possuidor (Ela) Re Usualidade Prontidão Av. Social (+) Token Av. Social (+) Av. Social (+) Graduação (↑) Frequência

Suas riquezas SERÃO incalculáveis; Portador Re Atributo

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Av. Social (+) Graduação Força (↑)

nenhuma FRUIRÁ no Brasil tão grandes honras como as que eu SABEREI CONQUISTAR. Ator Ma Circunstância Meta Circunstância Meta Experienciador Me Ator (Eu) Ma Frequência Intensidade Inclinação Graduação Força (↑) Av. Social (+) Av. Social (+)

A memória de meu pai solenemente reabilitada VESTIRÁ novo lustre. Ator Circunstância Atributo Ma Escopo Intensidade Graduação Força (↑) Graduação Força (↑) Av. Social (+)

Isto ainda não ESTÁ FEITO, senhor, mas breve se FARÁ, eu vos JURO. Ator Circunstância Ma Circunstância Ma Dizente Receptor Ve Tempo Polaridade Tempo Polaridade Julgamento (+)

SUPONDE pois que não É o mísero deserdado por uma injusta sentença quem agora vos FALA; Experienciador (Vós) Me Circunstância Re Identificador Dizente Circunstância Receptor Ve Identificado Tempo Polaridade Av. Social (-) Julgamento (-)

mas um cavalheiro rico de haveres e nobreza. Identificador Polaridade Av. Social (+)

Discussão: O herói utiliza, de início, um Processo Mental (“Ides saber”), respondendo à anterior pergunta do fidalgo e, ao mesmo tempo, visando predispô-lo a ouvir. O relato da “injustiça” ou “fatalidade” que vitimou a sua família é exposto em verbos de Processo Material (“pesou”, “roubou”, “manchou”), cuja escolha explicita o Julgamento negativo do herói sobre as condições da mudança por que passou a sua família. Participantes da oração (Circunstância, Ator e Meta) mostram o esforço do herói para colocar-se em igualdade de condições com o fidalgo, elevando-se à posição de dono de uma “casa” (“sobre minha casa”), bem como de uma ascendência laboriosa (“por seus ascendentes”), que adquiriu “os haveres abastados e as honras”. Em termos de Avaliatividade, a passagem é marcada com Avaliação Social positiva implícita, que serve, na relação personagem-personagem, no texto, como um antídoto para neutralizar no espírito do fidalgo o efeito negativo da anterior referência ao caso escabroso em que esteve envolvida a família do herói; na relação escritor-leitor, pelo texto, serve para evidenciar valores do herói, conforme Cortazzi e Lixian Jin (2000). Para “reparar” a injustiça, “restaurar” a sua casa, ou seja, "os haveres abastados e as honras”, o herói se diz inspirado por “Deus”, que lhe infundira “força” para “saber conquistar” – aqui se combinam um Processo Mental, que indica uma mudança na percepção que se tem da realidade, e um Material, que indica uma mudança no fluxo dos eventos (FUZER; CABRAL, 2014, p. 46, 54). No

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pensamento e na ação, o herói coloca-se como instrumento de uma divindade, dando início à construção do valor da religiosidade. Merece atenção a combinação de Processos Relacionais e Graduação de força ascendente de que se vale o herói a fim de restabelecer uma relação ou criar uma identidade entre sua casa e família e as “riquezas incalculáveis” e “grandes honras”. A Avaliação Social positiva permeia essa passagem, em que o herói dá ao fidalgo o vislumbre de seu futuro brilhante. As Circunstâncias “ainda não”, “mas breve”, que trazem novamente a Polaridade não-sim, denunciam a incerteza do futuro do herói, que, todavia, de posse do roteiro das minas de prata, não hesita em penhorar a sua palavra de cavalheiro ao fidalgo, valendo-se de um Processo Verbal (“juro”), acompanhado do que Lemke (1998) chama de Avaliação Projetiva. O autor lembra que a confiabilidade de uma predição aumenta se especificarmos um Dizente confiável para o Processo. A escolha do verbo pelo herói, portanto, denuncia a consciência de que o fidalgo o avalia mal. Por fim, servindo-se novamente de um Processo Mental (“suponde”), o herói pede ao fidalgo que não o identifique com o “mísero deserdado”, mas com “um cavalheiro rico de haveres e nobreza”. Essa troca de identidade do herói se faz por meio do uso dos Processos Relacionais associados à Polaridade não-sim. O trecho é marcado também pela oposição entre Avaliação Social negativa e Avaliação Social positiva, por meio da qual vão-se construindo os valores que dão fisionomia ao herói idealizado de As Minas de Prata.

- COSTUMAM EMBALAR com esses contos de fada as crianças. Ator (Indeterminado) Ma Circunstância Meta Frequência Av. Social (-) Token Av. Social (-) Token

Muito ESTRANHO, pois, que TENHAIS VINDO para tal fim a uma casa respeitável. Circunstância Experienciador (Eu) Me Ator (Vós) Ma Circunstância Circunstância Atributo

Intensidade Inclinação Graduação Força (↑) Julgamento (-) Av. Social (+)

- Não DUVIDAREIS do que vos DIGO, senhor, Circunstância Experienciador (Vós) Me Fenômeno Verbiagem Receptor Dizente (Eu) Ve Polaridade Julgamento (-)

quando SOUBERDES que o segredo das minas de prata, que tão fatal FOI a meu pai, Circunstância Experienciador (Vós) Me Portador Portador Atributo Re Circunstância Tempo Intensidade Graduação Força (↑) Afeto (-)

e que se JULGAVA perdido, ACHA-se em meu poder!...

Fenômeno Experienciador (Indeterminado) Me Atributo Re Atributo Av. Social (+) Token

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- Ah!

Expletivo Afeto (-) Token

- Um miserável o TINHA ROUBADO, mas não CONSEGUIU LOGRÁ-lo. Ator Meta Ma Circunstância Ator (Ele) Ma Meta Julgamento (-) Tempo Polaridade

Depois de mil vicissitudes FOI-me RESTITUÍDO. Brevemente o DEPOSITAREI nas mãos de El-Rei, Circunstância Ator (indeterminado) Beneficiário Ma Meta (Ele) Circunstância Meta Ator (Eu) Ma Circunstância

Tempo Julgamento (+) Token Tempo Julgamento (+)

e o prêmio desse serviço, junto a um nome honrado e a uma mão leal, Meta Meta Julgamento (+) Julgamento (+)

PEÇO-vos permissão, senhor, para DEPOR aos pés de vossa filha, a mui nobre Senhora D. Inês de Aguilar. Dizente (Eu) Ve Receptor Verbiagem Circunstância Ator (Eu) Ma Circunstância Intensidade Afeto (+) Token Graduação Força (↑) Av. Social (+)

O fidalgo SORRIU de compaixão. Comportante Co Circunstância

Afeto (-) Token

Discussão: Marcadas por Avaliação Social negativa implícita, Julgamento e Afeto negativos, as falas do fidalgo mostram a sua reação ao discurso do herói. A Atitude negativa evidencia-se na comparação depreciativa do relato do herói com um “conto de fadas”, com que se iludem as crianças, e também na recriminação por dirigir-se o herói, em tais condições, a uma “casa respeitável”. Essa alusão à “casa” – Circunstância, em termos da Transitividade - traz de volta a questão do lugar social, assim como o seu Atributo, “respeitável”, representa uma Graduação de força ascendente que reforça tanto a Avaliação Social positiva em favor do fidalgo e seu status, como o Julgamento negativo em relação à casa do herói e sua história. Em sua fala, o herói recupera todo o discurso do trecho anterior - por meio da Verbiagem “que”, numa oração de Processo Verbal – para validá-lo, dando como garantia a informação de que o roteiro das minas de prata acha-se em seu poder. O vínculo entre o herói e o roteiro se faz por meio de Processo Relacional. Em sua segunda fala, outros valores do herói são construídos: há o valor da discrição em “Depois de mil vicissitudes foi-me restituído“, pois nesse trecho, o herói esconde do fidalgo – aos olhos do leitor, porém – as suas façanhas heroicas nas aventuras em busca do roteiro. O substantivo “vicissitudes”, de sentido vago, aparece numa estrutura de Circunstância, e a estrutura passiva “foi-me restituído” dissimula o verdadeiro Ator do Processo. Em

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seguida, diz o herói, em Julgamento positivo, que depositará o roteiro “nas mãos de El-Rei”, ostentando os valores da lealdade e do patriotismo. Por fim, num trecho marcado por Afeto positivo implícito, o herói discreto pede permissão ao fidalgo para “depor aos pés” de sua filha (insinua-se o valor do amor romântico) o prêmio do serviço prestado a El-Rei (ou seja, riquezas e prestígio), “um nome honrado” e “uma mão leal”, valores que aparecem, em termos de análise da Transitividade, como Meta de um Processo Material; e em termos de Avaliatividade, como Julgamento ético positivo. A fala final do trecho analisado é do narrador, que, servindo-se do Processo Comportamental, mostra ao leitor a insistente Atitude negativa do fidalgo, que “sorriu de compaixão” perante os argumentos do herói.

- Minha filha ESTÁ prometida! Portador Re Atributo Julgamento (-) Token

- Não ACABA D. Fernando de Ataíde DE vos DESLIGAR de vossa promessa?

Circunstância Ator Meta Ma Polaridade Julgamento (+)

D. Francisco RUGOU o sobrolho: Comportante Co Afeto (-) Token

- Já o SABÍEIS?... HÁ porém engano de vossa parte. Circunstância Fenômeno Experienciador (Vós) Me Ex Circunstância Existente Tempo Julgamento (-) Token Julgamento (-)

D. Fernando de Ataíde SOLICITOU de mim que o DESLIGASSE de sua palavra Dizente Ve Receptor Meta Ator (Eu) Ma Verbiagem Julgamento (+) Token

e eu CONSENTI, porque à minha filha não FALTARÃO os melhores partidos. Experienciador Me Beneficiário Circunstância Ma Ator Polaridade Intensidade Av. Social (+)

HÁ tempo que FOI sua mão PEDIDA por um fidalgo do mais ilustre sangue, o Comendador D. Lopo de Velasco; Escopo Ma Ator Atributo Intensidade Av. Social (+)

e como se PREVISSE o que TINHA DE ACONTECER, Experienciador (Indeterminado) Me Fenômeno Ator Ma Obrigação

OBTEVE de mim uma promessa condicional, que ACABA DE SE TORNAR positiva. Ator (Ele) Ma Escopo Portador Re

57

Atributo Probabilidade Tempo Probabilidade

- Mas D. Inês não o AMA, senhor! Experienciador Circunstância Fenômeno Me Polaridade Julgamento (-)

- Minha filha não CARECE de um estranho para intermediário de seus sentimentos entre mim e ela. Experienciador Circunstância Me Fenômeno Circunstância Polaridade Julgamento (-)

Estácio CONHECEU que pelo coração o fidalgo ERA inabalável. Experienciador Me Circunstância Portador Re Atributo Julgamento (-) Graduação Força (↑) Discussão: Numa Atitude de Julgamento negativo implícito diante da insistência do herói, o fidalgo declara que sua filha está prometida a um “fidalgo do mais ilustre sangue”, e que a ela não faltarão “os melhores partidos”. As duas estruturas aparecem em Orações Materiais como Atores do Processo, o mesmo papel que o fidalgo D. Francisco reivindica ao censurar o herói por usar a frase “Não acaba D. Fernando de Ataíde de vos desligar de vossa promessa?“ (grifo nosso), corrigindo-o e trocando a frase por “D. Fernando de Ataíde solicitou de mim que o desligasse de sua palavra e eu consenti“. Segundo Fairclough (2001), discursos diferentes posicionam as pessoas de diferentes maneiras como sujeitos sociais; com a troca da estrutura linguística, o fidalgo passa de Meta do Processo, na frase formulada pelo herói, a Ator do Processo, na frase que ele próprio propõe. Explicitam-se, portanto, no próprio texto, as “conexões entre relações de poder e recursos linguísticos” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 9). A posse do poder não se vincula apenas às riquezas e honras, mas ao domínio de um discurso; ambos os interlocutores mostram-se ciosos disso. O herói contra-argumenta: “Mas D. Inês não o ama, senhor!“; essa frase traz em si um Julgamento negativo do herói em relação à Atitude do fidalgo; há nela, porém, uma valorização do amor, entrevista na Polaridade não-sim. O segundo elemento da Polaridade, todavia, não aparece, pois a discrição do herói o impede de dizer a quem Inês ama. A fala seguinte do fidalgo repete, em termos de Avaliatividade, a estrutura da fala anterior do herói: “Minha filha não carece de um estranho...”; de novo o Julgamento negativo, e de novo a Polaridade com apenas a negação explicitada. A fala final é do narrador, que utiliza Processo Mental (“conheceu”) para mostrar no herói o surgimento da percepção de que o valor do amor (“pelo coração”) não bastaria para alterar a realidade da rejeição do fidalgo.

- É possível, senhor, que a segunda promessa FIQUE sem efeito como a primeira! PODEREI eu ESPERAR... Re Atributo Portador Re Atributo Circunstância Ator Ma

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Probabilidade Inclinação Av. Social (+) Token Av. Social (+) Token

- EVITEI até agora de RESPONDER-vos diretamente. A vossa insistência FORÇA-me à franqueza. Experienciador (Eu) Me Circunstância Dizente (Eu) Ve Receptor Circunstância Ator Ma Meta Circunstância Inclinação Frequência Admissão Julgamento (-)

E melhor É para ambos que nos ENTENDAMOS de uma vez; Atributo Re Beneficiário Fenômeno Experienciador (Nós) Me Circunstância Opinião Julgamento (+) Inclinação

para vós, porque, desassombrado desta vertigem, PODEREIS CAMINHAR direito e seguro na vida; Beneficiário Circunstância Ator (Vós) Ma Circunstância

Opinião Julgamento (-) Token Probabilidade Julgamento (+)

para mim, porque, APELANDO para a vossa lealdade, Beneficiário Dizente (Eu) Ve Receptor Opinião

talvez CONSIGA RESTABELECER a tranquilidade de minha casa. Circunstância Ator (Eu) Ma Escopo Probabilidade Julgamento (-) Token Av. Social (+)

O fidalgo PÔS os olhos firmes no mancebo. Ator Ma Escopo Atributo Circunstância Afeto (-) Token

- Sr. Estácio Dias, DIGO-vos que em tempo e caso algum OBTEREIS a mão de minha filha! Dizente (Eu) Ve Receptor Circunstância Ator (vós) Ma Meta Verbiagem

Frequência Graduação Força (+) Av. social (-)

Estácio FICOU um instante fulminado sob essa recusa formal e terminante; Portador Re Circunstância Atributo Circunstância

Graduação Força (+) Afeto (-) Graduação Força (+)

mas logo RECOBRANDO a calma: Circunstância Ator (Ele) Ma Escopo

Tempo Julgamento (+) Token

- PODEREI SABER a causa de uma tão dura condenação?

Experienciador (Eu) Me Fenômeno Admissão Intensidade Graduação Força (+) Julgamento (-) Av. Social (+) Token

- Melhor FORA CALAR; mas por ela JULGAREIS de minha sinceridade.

59

Atributo Re Comportante (Eu) Co Circunstância Experienciador (Vós) Me Fenômeno Probabilidade Julgamento (+) Julgamento (+)

D. Inês de Aguilar PERTENCE à melhor nobreza das Espanhas Possuído Re Possuidor Graduação Força (↑) Av. Social (+)

para se ALIAR com a descendência bastarda de um simples cavalheiro português, Meta Ator (Ela) Ma Circunstância Atributo Circunstância

Av. Social (-) Graduação Força (↓)

em cujas veias CORRE uma mistura de sangue gentio. Circunstância Ma Ator Av. Social (-)

Quanto às honras que POSSAM VIR em troca das minas, Ator (Elas) Ma Circunstância

Av. Social (+) Probabilidade

SERÃO, caso se REALIZEM, nobreza de mercador, e não verdadeira fidalguia de linhagem. Portador (Elas) Re Circunstância Ex Atributo Circunstância Atributo

Probabilidade Julgamento (-) Av. Social (-) Polaridade Av. Social (+)

Discussão: A fala inicial do herói traz duas Avaliações Sociais positivas implícitas: ele fala em “esperar”, mostrando firmeza e autocontrole, e fala da possibilidade de o segundo noivado de sua amada ficar “sem efeito”, remetendo o leitor a capítulos anteriores do romance, em que desafiou o primeiro noivo, exibindo toda a sua tenacidade e coragem. São valores do homem prudente no século XVII (MARCZYK, 2006, p. 27), que, em contexto de Romantismo no século XIX, Alencar atribui ao herói que tudo enfrenta e suporta pelo seu amor. O fidalgo decide-se a esclarecer a verdadeira causa de sua rejeição ao projeto do herói. A recusa formal (“em tempo e caso algum obtereis a mão de minha filha!“) é construída, em termos de análise da Transitividade, como Verbiagem de um Processo Verbal (“digo-vos”), cujo Dizente é o fidalgo; e Receptor, o herói. Este indaga do fidalgo a causa do que chama de “tão dura condenação”, fazendo, ao mesmo tempo, um Julgamento negativo da Atitude do fidalgo e, com o reforço da Graduação de força ascendente, uma Avaliação Social positiva do amor, cuja perda equivaleria a uma “condenação”. Uma mesma estrutura pode, portanto, ter diferentes avaliações no texto, conforme seja relacionada a uma ou outra de suas partes. A causa secreta, que “melhor fora calar”, segundo o fidalgo, é que a sua filha “pertence à melhor nobreza das Espanhas para se aliar com a descendência bastarda de um simples cavalheiro português...” (grifo nosso). O trecho exibe, em termos de Avaliatividade, uma oposição frontal entre uma Avaliação Social positiva, reforçada por uma Graduação de força ascendente, e uma Avaliação

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Social negativa, reforçada por uma Graduação de força descendente. O que se avalia são grupos sociais, e o grupo a que pertence o herói padece, na visão do fidalgo, de um outro mal, para cuja cura nem as honras que “possam vir em troca das minas de prata” (novamente o fidalgo põe em dúvida a palavra do herói, num Julgamento negativo) seriam remédio. O mal é que, em suas veias, “corre uma mistura de sangue gentio”. A Avaliação Social põe à mostra o valor negativo que se atribui à mestiçagem, ao passo que a Avaliação Social positiva mostra o valor atribuído à “fidalguia de linhagem”. A mestiçagem do herói é, portanto, a causa da rejeição do fidalgo. Na resposta que ele dará a essa questão, será construído um valor fundamental para a sua idealização.

A altivez de Estácio REVOLTOU-SE: Comportante Co

Julgamento (+) Token

- Essa mistura de sangue gentio que CORRE em minhas veias, Sr. D. Francisco, Identificado Ator Ma Circunstância

É a dos senhores primeiros desta terra, onde VIESTES ENRIQUECER. Re Identificador Ator (Vós) Ma Circunstância Av. Social (+) Graduação Foco (↑) Julgamento (-)

Quem tanto DESPREZA a nobreza dos mercadores, também DEVERA DESPREZAR o seu ouro. Experienciador Me Fenômeno Circunstância Experienciador (Quem) Me Fenômeno

Intensidade Julgamento (-) Obrigação

- E a prova de que o DESPREZO É que RECUSO vossa aliança Portador Fenômeno Experienciador (Eu) Me Re Experienciador(Eu) Me Fenômeno Av. Social (-) Julgamento (+) Julgamento (+) Av. Social (-)

apesar das imensas riquezas que vos ESPERAM. Circunstância Ator Meta Ma Graduação Força (↑)

Demais El-Rei PODE RESTITUIR à vossa casa aquilo de que a PRIVOU; Circunstância Ator Ma Beneficiário Meta Meta Ator (Ele) Ma Intensidade Polaridade Probabilidade Graduação Força (↑)

mas não PODE a sua autoridade DESTRUIR o passado e a lembrança da vergonha Circunstância Ator Ma Meta Polaridade Probabilidade Av. Social (-)

que algum tempo PESOU sobre ela. Ator Circunstância Ma Circunstância

61

Frequência Av. Social (-) Token

- Pois, Sr. D. Francisco de Aguilar, DISSE Estácio lento e grave, Verbiagem Ve Dizente Circunstância Julgamento (+) Token

se a infâmia de um crime de traição É tal, Portador Re Atributo Circunstância Verbiagem Probabilidade Graduação Força (↑)

que ainda mesmo RECONHECIDA a inocência do acusado, Experienciador (Indeterminado) Me Fenômeno Circunstância Verbiagem

Graduação Força (↑)

uma nódoa PESA sobre a sua memória e o nome de sua família, Ator Ma Circunstância Circunstância Verbiagem Julgamento (-)

DEVO DIZER-vos que SOU Estácio Dias Correia, inquinado de bastardia e descendente de gentio, Dizente (Eu) Ve Receptor Identificado (Eu) Re Identificador Atributo Verbiagem Obrigação Av. Social (-)

quem DERROGO de minha nobreza OFERECENDO-vos aliança a vós, D. Francisco de Aguilar, neto de reis godos! Ator Ma Meta Ator (Eu) Ma Beneficiário Escopo Beneficiário Beneficiário Atributo Circunstância Verbiagem Av. Social (+) Av. Social (-) Token

- Que loucas palavras SÃO estas, mancebo?

Atributo Re Portador Julgamento (-) Discussão: Utilizando Processo Relacional em estrutura de Avaliação Social positiva, o herói identifica a “mistura de sangue gentio” que corre em suas veias à dos “senhores primeiros desta terra”, referindo-se ao português Diogo Álvares, o Caramuru, e à sua esposa, a índia Paraguaçu - Catarina Álvares, após o batismo -, seus ascendentes no romance (ALENCAR, 1967, p. 6-252-458, grifo nosso). Em sua fala, o herói mestiço não faz a defesa do valor da mestiçagem, deixa-a num segundo plano e procura identificar a sua linhagem com a posse de riquezas, poder e prestígio. São valores do herói, portanto. Utilizando a Graduação de força ascendente, o fidalgo reforça a sua Avaliação Social negativa

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do grupo a que pertence o herói, ao dizer que, apesar das riquezas que possuirá em virtude da descoberta das minas, recusa a sua aliança, e que, “demais” (nova Graduação de força ascendente), nem a autoridade de El-Rei poderia “destruir o passado e a lembrança da vergonha” que pesou sobre a sua casa. Para o fidalgo, portanto, o valor superior a todos é a fidalguia de linhagem, algo de que a família do herói, a seu ver, é desprovida, e essa carência (por ser “descendência bastarda de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma mistura de sangue gentio”) é grave o suficiente para que deixe de casar a sua filha com o herdeiro de um tesouro ambicionado pelo próprio rei, que age por intermédio de seus governadores (ALENCAR, 1967, p. 395), e pelos padres da Companhia de Jesus (o “terrível poder” daquele século, nas palavras do sábio Vaz Caminha, mestre do herói (ALENCAR, 1967, p. 244). E, não bastasse a carência mencionada, a família do herói ostenta ainda o estigma vergonhoso e indelével de uma condenação por traição. Contra o argumento extremo do fidalgo, que considera incontornável a desonra advinda de uma acusação de traição, independentemente de ser justa ou não, o herói responde utilizando uma estrutura em que forma linguística e função ficam bem à mostra: são cinco verbos, o primeiro (“devo”) introduz a noção de que o herói se sente obrigado a manifestar-se, indignado pela ofensa que lhe foi infligida (Modulação de Obrigação). Esse verbo figura como auxiliar do segundo, um Processo Verbal (“dizer-vos”), que tem o fidalgo como Receptor, e em cuja Verbiagem, contendo três orações, aparece o conteúdo da mensagem. Na primeira oração (“sou”, de Processo Relacional) o herói se identifica com o seu nome completo e Atributos, significando que aceita-se tal como é, “inquinado de bastardia e descendente de gentio”. O adjetivo “inquinado” significa “que tem nódoas; manchado, sujo; que não é puro, honesto; corrompido, poluto” (HOUAISS, 2001, p. 1622). A função desse Atributo, em que o herói aplica àquilo que lhe é próprio uma Avaliação Social negativa, é percebida quando contrastado com o Atributo dado pelo herói ao fidalgo D. Francisco de Aguilar, no final do período: “neto de reis Godos”. Esse Atributo, em que se faz alusão à invasão da Europa pelos chamados povos bárbaros, em princípios da era cristã, aparece como Avaliação Social negativa implícita e tem como função relativizar ou mesmo negar o valor da fidalguia de linhagem, a que tanto se apega o fidalgo. Resta dizer que a estrutura, formalmente, faz um paralelo com a utilizada pelo fidalgo ao fazer ao herói a recusa formal de seu pedido (no trecho anterior), e, funcionalmente, articula, condensando, a posição do herói em relação às duas razões dadas pelo fidalgo ao recusar-lhe a mão da filha (a sua “descendência bastarda” e a desonra de sua família em virtude da acusação de traição). É da articulação do enredo, portanto, que emergem os valores que constroem o herói idealizado.

- LEDE este papel! Ator (Vós) Ma Meta

E APRESENTOU ao fidalgo a obrigação PASSADA por D. José de Aguilar ao judeu Samuel. Ator (Ele) Ma Beneficiário Meta Ma Ator Beneficiário

63

O orgulhoso castelhano RUGIU de cólera SABENDO da infâmia do filho; Comportante Co Circunstância Experienciador (Ele) Me Fenômeno Graduação Força (↑) Julgamento (-)

suas mãos robustas TREMIAM SEGURANDO o papel, Ator Ma Circunstância Graduação Força (↑)

que DESAPARECIA ante a nevoa de seus olhos inflamados. Ator Ma Circunstância Atributo Graduação Força (↑)

- APRESENTANDO ao governador este papel, a condenação de vosso filho não se FARÁ ESPERAR. Ator (Eu) Ma Beneficiário Meta Ator Circunstância Ma Circunstância Probabilidade / Tempo Julgamento (-) Token Polaridade

Vós, altivo fidalgo, não SEREIS pai do mancebo órfão e honrado, Portador Atributo Circunstância Re Atributo Julgamento (-) Token Polaridade Av. Social (+)

mas SEREIS pai do traidor que VENDEU a pátria e seu rei ao estrangeiro. Portador (Vós) Re Atributo Ator Ma Meta Beneficiário Atributo Polaridade Av. Social (-) Julgamento (-)

O fidalgo FICOU imóvel na sua angústia. Estácio o CONTEMPLAVA sobranceiro. Portador Re Atributo Circunstância Experienciador Fenômeno Me Circunstância Graduação Força (↑)

- JULGAIS ainda, senhor, que a minha aliança vos SEJA desonrosa?

Experienciador (Vós) Me Circunstância Portador Circunstância Re Atributo Frequência Julgamento (-) Token

A resposta do fidalgo FOI romana e digna de Fabrício: Identificado Rel Identificador Av. Social (+) Token

- Não me DESLUMBROU HÁ pouco a vossa riqueza; Circunstância Meta Ma Circunstância Ator Polaridade Tempo Av. Social (-)

não me ABALA agora a vossa ameaça. FAZEI desse papel o uso que vos APROUVER; Circunstância Meta Ma Circunstância Ator Ator (Vós) Ma Escopo Ator Beneficiário Ma Polaridade Tempo Julgamento (-)

64

eu SABEREI EVITAR a desonra de uma condenação, PUNINDO eu próprio meu sangue degenerado. Experienciador Me Ator (Eu) Ma Meta Ma Ator Meta Atributo Inclinação Av. social (-) Julgamento (+)

As nossas posições PERMANECEM as mesmas. Portador Rel Atributo

- As mesmas, TENDES razão. Apesar de vosso ódio e desprezo Atributo Possuidor (Vós) Re Possuído Circunstância Julgamento (-)

SEREIS sempre para mim o pai da mulher a quem AMO, Identificado (Vós) Re Circunstância Beneficiário Fenômeno Experienciador (Eu) Me Identificador Frequência Opinião Afeto (+)

e SABEREI RESPEITAR vossa honra, como se minha FORA. Experienciador (Eu) Me Fenômeno Circunstância Atributo Portador (Ela) Re Inclinação Julgamento (+)

O mancebo DESPEDAÇOU o papel e LANÇOU ao chão os fragmentos. Ator Ma Meta Ator (Ele) Ma Circunstância Meta Julgamento (+) Token

- Eis destruída a única prova do erro deplorável; ASSEGURO-vos sobre ele silêncio eterno. Circunstância Atributo Portador Atributo Ator (Eu) Ma Beneficiário Circunstância Escopo Julgamento (+) Token Julgamento (-) Graduação Força (↑) Julgamento (+) Token

PUNI vosso filho, se o JULGAIS necessário, mas POUPAI-lhe a vida. Ator (Vós) Ma Meta Fenômeno Experienciador (Vós) Me Atributo Ator (Vós) Ma Beneficiário Meta Circunstância Circunstância Julgamento (+) Token

A voz de Estácio tremeu. - Poupai-lhe, sim, a vida; senão vítimas ambos de vosso inflexível rigor, nenhum restará para

consolo e companhia de vossa velhice. O fidalgo castelhano, comovido até ao coração, fez com a palavra e com o gesto pressuroso

voltar da porta o mancebo que se retirava. Estácio aproximou-se palpitando de esperança, e precipitou-se com efusão sobre a mão que lhe era estendida. Mas essa mão, em vez de atraí-lo ao peito, parecia ao contrário, pela tensão firme do braço, mantê-lo em distância.

- Acreditai-me, senhor! Disse o castelhano comovido. Neste momento sinto no fundo d’alma não poder aceitar vossa aliança. Ofereço-vos porém minha amizade.

- Eu a recuso, senhor. Não vos quero dever nada, já que me recusais tudo. O que fiz e o que farei ponho-o sob a santa invocação do meu amor; não o profanarei com estranho motivo.

65

Estácio RETIROU-SE dessa casa, DEIXANDO a admiração no ânimo soberbo do inflexível fidalgo. Ator Ma Circunstância Ator (Ele) Ma Escopo Circunstância Atributo Atributo Julgamento (+) Julgamento (-) Julgamento (-) Discussão: O herói entrega ao fidalgo uma prova do crime de traição cometido por seu filho e declara, de modo aparentemente ambivalente, que, “entregando” (ou seja, caso entregue, ou quando entregar) o papel ao governador, a condenação será fará. Em termos de Modalidade e Avaliatividade, a estrutura apresenta as alternativas de Probabilidade e Tempo, com Julgamento negativo implícito. Em seguida, usando o Processo Relacional e contrapondo Atributos, apoiado numa Polaridade não-sim, o herói, dentro ainda do registro ambivalente, declara que o fidalgo não será pai do “mancebo órfão e honrado“, mas, sim, do “traidor que vendeu a pátria e seu rei ao estrangeiro“. Explicita-se aqui o valor da fidalguia de caráter - desenvolvido ao longo de todo o romance, sobretudo no contraste entre ações e valores do herói e dos vilões -, além dos valores da fidelidade ao rei e do culto à pátria. Valendo-se de um Processo Mental, apoiado numa Modalidade de Frequência (“julgais ainda...”), o herói reformula a sua proposta de casar-se com a filha do fidalgo (“... que a minha aliança vos seja desonrosa?”, grifo nosso); o Atributo do Processo Relacional utilizado induz o fidalgo - e o próprio leitor - a comparar a situação da família do herói, vítima de uma acusação de traição injusta, com a do fidalgo, na qual o crime foi realmente cometido. A pergunta vem envolvida num Julgamento negativo implícito pela demora do fidalgo em reconhecer o equívoco de sua posição. O fidalgo, porém, mostra-se inflexível – o narrador o chama de “soberbo”, explicitando o seu Julgamento negativo e o seu posicionamento, para orientar o leitor quanto à construção dos valores -, e, valendo-se de duas orações de Processo Material (“não me deslumbrou há pouco a vossa riqueza; não me abala agora a vossa ameaça.“), num paralelismo sintático em que se destaca a repetição da Circunstância de negação, recusa mais uma vez a proposta do herói, concentrando a Avaliação Social negativa e o Julgamento negativo nos dois Atores dos Processos (“a vossa riqueza” e “a vossa ameaça”). O seu posicionamento final é explicitado numa breve oração de Processo Relacional: “As nossas posições permanecem as mesmas” (grifo nosso). A palavra “posições” sugere opinião, atitude, situação, mas tem também a acepção de “lugar ocupado por um indivíduo no meio em que vive (classe social, situação na hierarquia, na escala funcional, numa classificação etc.)”(HOUAISS, 2001, p. 2269). A sequência do texto mostra, na fala do narrador, o herói destruindo a prova do crime de traição do filho do fidalgo e lhe assegurando “silêncio eterno” sobre o fato. A passagem é marcada por Julgamento positivo implícito do comportamento do herói, pois que é a prova final de sua fidalguia de caráter, a qual, se não basta para obter do fidalgo o consentimento e a mão da filha, é suficiente para conquistar-lhe a “admiração”. O único Julgamento positivo do fidalgo em relação ao herói aparece nessa última fala do narrador, e se refere a uma ação em que se exaltam, também, os valores da honra, do respeito filial e do

66

amor.

Ao chegar à porta de São Bento, caiu em uma emboscada que lhe estava ali armada. Uma esquadra de cavalaria, ao mando do Alferes D. José de Aguilar, o desarmou e conduziu preso.

Duas pessoas assistiram à prisão: Tiburcino e Gil.

4.3 Discussão geral de “O círculo vicioso da fortuna adversa”

A análise da Transitividade – em termos de quantidade – mostra os seguintes

resultados, de acordo com o Gráfico 1.

Há 152 Processos Verbais no trecho, dos quais 68 são Materiais (Ma), 32

Mentais (Me), 33 Relacionais (Re), 12 Verbais (Ve), 5 Comportamentais (Co) e 2

Existenciais (Ex).

Gráfico 1 – Ocorrência de Processos Verbais no trecho analisado de “O círculo

vicioso da fortuna adversa”:

Processos Verbais

45%

21% 22%

3% 1%8%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

Material Mental Relacional Comportamental Existencial Verbal

É possível acompanhar, nas análises feitas a cada movimento significativo do

texto, a construção e hierarquização de diversos valores, sem os quais não se pode

67

entender o processo de idealização do herói de As Minas de Prata. O Sistema de

Transitividade mostra a construção de uma realidade pela língua, e a sua análise

oferece intravisões sobre a natureza das relações estabelecidas entre as personagens,

as percepções do escritor sobre ações, eventos e situações narrados, bem como sobre

os modos pelos quais a interpretação do leitor é orientada em determinada direção.

Pode-se dizer, após essas análises, que o herói busca um lugar social

privilegiado, entendendo-se por isso a posse de riquezas e honras, sintetizada na

palavra “casa”, cuja posse, todavia, é perseguida, ao menos em parte, por ser a

condição para que o herói possa ter o seu amor (o valor fundamental do amor é

construído no decorrer de todo o romance e aparece nos três trechos analisados neste

trabalho). O fidalgo espanhol, pai da jovem com quem o herói deseja casar-se, o qual

tem como valor supremo a fidalguia de linhagem, o rejeita - apesar das fabulosas

riquezas e do poder e prestígio que a posse das minas de prata promete dar à casa do

herói - por ser ele descendente de português com gentio. O herói mestiço não fará a

defesa da mestiçagem - não diretamente -, em vez disso, proporá o valor da fidalguia

de caráter.

Destaco, neste primeiro trecho analisado, os valores do lugar social privilegiado e

da fidalguia de caráter como fundamentais para a compreensão do modelo moral que o

herói representa, e que é proposto à comunidade, no romance de José de Alencar,

como idealização.

A construção do valor do lugar social privilegiado é feita, predominantemente,

com verbos de Processo Material (ex.: “adquiridas”, “saberei conquistar” e “vestirá”),

com Ator representado pelo próprio herói ou por expressão referente à sua ascendência

(ex.: “por seus ascendentes”, “eu”, “a memória de meu pai”) e Meta referindo-se ao

valor almejado (ex.: “os haveres abastados e as honras”, “grandes honras” e “novo

lustre”). Aparecem também, em menor número, verbos de Processo Relacional, que

estabelecem, em termos de Possuidor e Possuído, o vínculo almejado entre a casa do

herói e aquilo que ele tem como valor (“A minha casa terá outro esplendor”), ou, em

termos de Portador e Atributo, realizam o objetivo de atribuir certa característica a uma

entidade (“Suas riquezas serão incalculáveis”), nesse caso, o Atributo tem também, em

termos de Avaliatividade, a função de reforçar a Graduação, ou seja, de aumentar a

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intensidade da avaliação, o que acontece, pontualmente, nos outros exemplos

mencionados, já que o herói necessita persuadir o fidalgo; a esse respeito, Fairclough

(2001) cita Halliday, para quem “a linguagem é como é por causa de sua função na

estrutura social”.

A Avaliatividade, com predomínio da Avaliação Social positiva, ora inscrita, ora

evocada, é essencial à construção do valor do lugar social privilegiado e para guiar o

leitor quanto à atribuição de valor. Segundo Chang e Mehan (2006), as representações

políticas ressoam com o conhecimento de mundo do público ou audiência; neste caso,

possivelmente por se tratar de valor compartilhado pelos interlocutores, o herói e o

fidalgo – e, possivelmente, até pelo leitor -, há uma concentração de avaliações

idênticas, o que não deixa, ao leitor, margem para dúvidas quanto ao seu teor. Deve-se

ter em mente, também, que o fio condutor do enredo do romance As Minas de Prata é a

busca por um tesouro fabuloso, e que aqueles que o procuram, fazem-no por aquilo

que esse tesouro poderia comprar: um lugar social privilegiado.

A proposta de uma fidalguia de caráter como valor surge, no trecho analisado, do

debate sobre a questão da mestiçagem, possivelmente a questão ao largo da qual José

de Alencar não passaria, já que pretendeu propor, em meados do século XIX, um herói

para representar, num plano de idealização, a identidade nacional de um país marcado

pela miscigenação racial. Caio Prado Júnior (2004, p. 274) diz que a “diferença de

raça”, no Brasil-Colônia, “vem, se não provocar, pelo menos agravar uma discriminação

já realizada no terreno social”. Ela “rotula o indivíduo, e contribui assim para elevar e

reforçar as barreiras que separam as classes.” À época de José de Alencar,

começavam a aparecer os discursos – que se tornariam muito populares no Brasil - de

teóricos das raças e darwinistas sociais, como E. Renan (1823-92) e o conde Gobineau

(1816-82): para este, os mestiços representavam uma “sub-raça decadente e

degenerada”; para aquele, os grupos negros, amarelos e miscigenados “seriam povos

inferiores não por serem incivilizados, mas por serem incivilizáveis, não perfectíveis e

não suscetíveis ao progresso” (SCHWARCZ, 2014, p. 82-84). Gilberto Freyre (2004, p.

104), quase um século depois da publicação de As Minas de Prata, proporá as suas

teses contra “os alarmistas da mistura de raças ou da malignidade dos trópicos”, que

69

colocam a sociedade brasileira como exemplo de sua tese de “degeneração do homem

por efeito do clima ou da miscigenação”.

No romance, o fidalgo espanhol recusa a mão da filha ao herói, porque ela

“pertence à melhor nobreza das Espanhas para se aliar com a descendência bastarda

de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma mistura de sangue

gentio”. No argumento do fidalgo, de cunho aristocrático e racista, contrapõem-se

grupos sociais por meio da Avaliação Social (positiva e negativa) e da Graduação de

força (ascendente e descendente). O valor da fidalguia de caráter será construído como

resposta a esse argumento e as escolhas que realizam as Metafunções Ideacional e

Interpessoal constroem essa resposta por diferentes modos: primeiro, pela fala do

herói, que se vale de Atributos tanto ao chamar o fidalgo de “neto de reis Godos”,

questionando, assim, a validade de uma fidalguia de linhagem e, de certo modo,

desqualificando a discussão sobre a mestiçagem, como ao dizer que o fidalgo não será

pai do “mancebo órfão e honrado“, mas, sim, do “traidor que vendeu a pátria e seu rei

ao estrangeiro”, patenteando, por meio da Avaliatividade, a superioridade do valor do

caráter sobre o da linhagem. Segundo, pela ação do herói (“O mancebo despedaçou o

papel e lançou ao chão os fragmentos.”), como ao destruir a prova do crime do filho do

fidalgo, por respeito à honra do pai de sua amada, embora este o rejeite. Na estrutura,

o herói é Ator de um Processo Material e sua ação recebe um Julgamento positivo.

Terceiro, enfim, pela fala do narrador, que para orientar a atribuição de valor por parte

do leitor, faz Julgamentos positivos relacionados ao herói, e o contrário em relação

àquilo que se lhe opõe (“Estácio retirou-se dessa casa, deixando a admiração no ânimo

soberbo do inflexível fidalgo”). Na estrutura, de Processo Material, destacam-se o

Escopo (“admiração”) e os Atributos (“soberbo” e “inflexível”).

Como se dá no trecho analisado, o contraste entre avaliações relativas ao herói e

aos vilões, ao longo de todo o romance, acumula Julgamentos e Avaliações Sociais

positivos a favor do herói. A fidalguia de caráter, proposta como resposta à delicada

questão da mestiçagem, refere-se a algumas das características do herói: discrição,

espírito observador, agilidade mental, capacidade de discernimento, vivacidade de

ânimo, tenacidade, autocontrole, astúcia, habilidade de interrogar, autoridade nata,

coragem, destreza bélica, beleza física, busca de fama e fortuna, lealdade, honradez a

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toda prova, senso moral, respeito à vida, defesa da justiça, culto à pátria, culto à

imagem paterna, cavalheirismo, linguagem polida, gosto requintado, nível cultural

elevado, cultivo da amizade, presteza no servir aos amigos, cultivo do respeito, defesa

da verdade, religiosidade, cultivo do amor romântico. Marczyk (2006, p. 27-9) relaciona

algumas dessas características ao caráter prudente, “conduta pragmática valorizada na

literatura do XVII”, conforme consta na obra de Baltasar Gracián (A arte da prudência,

1647). Creio que também poderiam ser relacionadas às características que o discurso

racial nascente negará ao mestiço, considerado degenerado, física e moralmente;

afinal, Estácio é idealizado como possuidor de beleza física, inteligência incomum e

valores morais sólidos.

Lemke (1998) mostra que as avaliações se propagam ou se ramificam de um

elemento a outro da estrutura textual, podendo, inclusive, mudar de sinal; a avaliação

positiva do lugar social privilegiado será, no segundo trecho que analisarei, relativizada,

com um consequente reforço do valor da fidalguia de caráter. A idealização se relaciona

com a construção de valores no texto, que é dinâmica, por isso se revela aos poucos e

à luz dos contextos cultural e ideológico.

Prossigo com a análise de um segundo trecho do romance, do capítulo “À beira

de um esquife”.

4.4 Análise das variáveis de Registro de “À beira de um esquife” (capítulo XXVII, terceira parte, da página 537 à 542).

Campo

Na cena analisada, o herói já sabe que as minas de prata não existem, fora uma

ilusão de seu avô, o Moribeca, e de seu pai, Robério Dias. Ambos, cegos pela

ignorância e pela ambição de descobrir riquezas imensas, viram, onde de fato só havia

as paredes úmidas de uma caverna erma, banhadas pela luz do luar, filtrada por

frestas, um portentoso palácio todo feito do metal precioso. A epígrafe utilizada neste

trabalho alude a essa passagem do romance, onde José de Alencar parece sugerir que

a riqueza de que o Brasil precisa não é aquela, fácil e material, mas outra, relacionada

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aos valores que o herói representa. Foi o herói, com a sua capacidade de

discernimento - e, significativamente, “no dia em que Pedro Álvares Cabral avistou a

terra brasileira” (ALENCAR, 1967, p. 509) -, quem deu pelo engano, que inocentava o

seu pai da acusação de traição, mas o deixava, a ele, Estácio, na mesma situação de

miséria, e mais distante do seu amor. Ao retornar da expedição frustrada ao sertão,

morrem o seu mestre Vaz Caminha e a sua amada Inesita, que tomara veneno para

não ser esposa de outro. É nesse momento de desespero que o herói finalmente

encontra as imensas riquezas que tanto perseguiu, as quais lhe vêm pelas mãos do

vilão, o Padre Gusmão de Molina.

Relações

No capítulo, é estabelecido um contraste, importante para a compreensão do

processo de idealização do herói, entre os seus valores e os do vilão do romance, cuja

ação fora, pelo menos até esta parte da obra, motivada por ambição e cobiça.

A posse das minas de prata – que representava riqueza, poder e prestígio -

interessava tanto ao herói como ao vilão. Ao descobrir o paradeiro do roteiro perdido, o

herói exclamara, “como acordando de um sonho”: “Assim, eu sou rico!” (ALENCAR,

1967, p. 27); em outra passagem, diante da antiga morada de Diogo Álvares, o

Caramuru, e de sua esposa, Catarina Álvares, tronco de muitas das principais famílias

da Bahia, o herói lamentara que todos tivessem “nobres casarias com muitas alfaias e

trem de criados e cavalos, e engenhos famosos com grandes fábricas ou granjearias

arrendados em mil arrobas de açúcar por ano”, alguns ocupassem “cargos importantes

na governança do Estado”, e vivessem todos “à lei da grandeza”, enquanto ele,

estranho para os de seu sangue, que nem o conheciam, fosse “pobre, decaído,

proscrito da sua casa”, e tivesse como única herança “vergonha e miséria” (ALENCAR,

1967, p. 252). Todavia, a busca do precioso tesouro pelo herói, segundo o seu mestre

Vaz Caminha, deve-se a que “ele representa a reabilitação de vosso pai, a honra de

vosso nome, e a felicidade de vosso amor”, ao que o herói responde: “Três coisas

santas, por uma só das quais dera minha vida”. (ALENCAR, 1967, p. 186).

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Já o Padre Gusmão de Molina, o vilão, é um ambicioso e inteligente espanhol;

órfão, como o herói, porém de família pobre, viveu aventuras picarescas (narradas na

segunda parte do romance) em busca de descobrir “um terceiro mundo” (ALENCAR,

1967, p. 150), como Colombo descobrira um segundo. Torna-se jesuíta ao saber que é

o Geral da Companhia quem “Move o mundo” (ALENCAR, 1967, p. 163), e o “terceiro

mundo” materializa-se ao saber da história das minas de prata, que passa a buscar,

utilizando-se de todos os recursos que a condição de jesuíta lhe dá, e de todos os

meios que a ambição lhe inspira: a manipulação, a falsidade, o roubo, a crueldade – e

quase o assassinato – são usados por Molina para alcançar o seu objetivo, que “era o

segredo das minas de prata, esse pedestal que ele pretendia assentar à sua glória, e

sobre o qual baseava a esperança ao generalato da Ordem, e talvez mais tarde ao

pontificado”. (ALENCAR, 1967, p. 471).

Há, portanto, uma ambição que enobrece, e uma que envilece. O principal centro

de interesse, na cena que analisarei, diz respeito à relação do herói com as riquezas e

com as pessoas do seu círculo afetivo mais próximo. Essas duas relações representam

valores fundamentais para entender a construção da idealização.

Modo

O trecho analisado é composto, à exceção de uma única fala, pela voz do narrador, que

constrói, linguisticamente, a experiência do herói e, em certos momentos, parece

pretender fundir a sua voz e a dele numa só, construindo, diante do leitor, a avaliação

dessa experiência, traduzida na forma de valores.

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4.5 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade (disponho o texto do capítulo na íntegra, para facilitar a compreensão da análise).

Repito a codificação utilizada:

Caixa Alta Processos: MATERIAL (Ma), RELACIONAL (Re), MENTAL (Me), COMPORTAMENTAL (Co), VERBAL (Ve) e EXISTENCIAL (Ex).

Sublinhado Participantes e Circunstâncias

Negrito Avaliatividade e Modalidade

(+) ou de (-) Avaliatividade, positiva ou negativa.

(↑) ou (↓) Graduação, com intensificação ou com atenuação da Avaliatividade.

À beira de um esquife

O fogo lavrava ainda na casa que fora do bom Vaz Caminha. Sem desígnio, trazido por uma espécie de atração, voltara Estácio direito ao lugar sinistro, então

deserto. Perdida a esperança de salvar o advogado e aplacada a curiosidade selvagem da turba, cada um tratara de recolher.

O mancebo entrou pela portinha do quintal, como outrora, durante a infância, nas diurnas visitas que fazia a seu padrinho e mestre. No horto, próximo ao oitão, estava a cacimba, em cuja borda de tijolo o velho doutor, quando saía fora por tarde, costumava sentar-se.

Estas recordações da infância flutuavam entre a dor na alma do mancebo, como as ondulações da sombra no seio de uma treva espessa. Eram raios de mel, tênues e sutis, que mais contrastavam o amargor do presente.

Tempo esquecido esteve ali sentado à beira do poço, já recordando o passado, já contemplando com uma curiosidade incompreensível o jogo das chamas sobre as ruínas do edifício. Essa labareda, a crepitar alegremente, a espreguiçar-se em ondulações voluptuosas, o estava enamorando. Como que a flama lhe abria os braços sensuais; e desfazia-se já em carícias para recebê-lo. Ferviam ali sorrisos em brasa, beijos em combustão para o consumirem num só e rápido afago.

Ainda o mancebo ergueu-se para acudir ao aceno da labareda palpitante; mas o reteve uma lembrança. Desejava contemplar ainda uma vez a beleza material daquela que tanto amara em vida.

Com o movimento, que fizera para erguer-se, caiu um objeto, e produziu rumor. Há no meio das dores acerbas, curiosidades frívolas, sintomas de uma caducidade moral. Estácio foi presa de um impulso igual: ergueu o objeto, que examinou atenta e minuciosamente. O que era? Como ali se achava?

A pouco e pouco as reminiscências espedaçadas se foram reatando; lembrou-se vagamente da imagem encanecida do P. Molina e das palavras que ele proferira entregando-lhe o cofre. No começo a cena se desenhou como um quadro secular despregado dos muros de vetusto castelo; depois avivou-se ao pungir dos recentes golpes. Revistando o cofre, viu o mancebo uma pequena chave pendente; experimentou-a no fecho; deu a volta; abriu a tampa.

Um jorro fulgurante de límpidas centelhas ESGUICHOU de dentro, Ator Atributo Atributo Ma Circunstância

Graduação Força (↑) Apreciação (+) Graduação Força (↑)

e DESLUMBROU a vista de Estácio. O cofre ESTAVA cheio de grandes diamantes; Ator (Ele) Ma Meta Portador Re Atributo Graduação Força (↑) Apreciação (+) Graduação Força (↑)

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HAVIA ali encerrada, naquele estreito vão de algumas polegadas, uma riqueza estupenda. Ex Circunstância Atributo Circunstância Existente Atributo

Graduação Força (↑) Polaridade Polaridade

Mais uma ironia amarga da fortuna, Atributo Atributo Afeto (-)

que o ESBOFETEAVA assim com a opulência, quando dela não CARECIA, Ator Meta Ma Circunstância Fenômeno Circunstância Experienciador (Ele) Me Circunstância Afeto (-) Tempo Polaridade Av. social (-) Token

HAVENDO antes, nos dias da ambição, nas horas de esperança, Ator (Ela) Circunstância Circunstância Tempo Polaridade

ABATIDO seu pundonor com a carranca da indigência! Ma Meta Circunstância Afeto (-) Graduação Força (↑) Av. social (-)

Discussão: As linhas iniciais, em termos de Avaliatividade, mostram, pela repetida utilização do recurso à Graduação de força ascendente, a intenção do narrador de realçar a grandeza da riqueza que chega às mãos do herói. As escolhas feitas na Metafunção Ideacional reforçam essa avaliação: assim, “jorro fulgurante” é Ator dos Processos Materiais “esguichou” e “deslumbrou”; “uma riqueza estupenda” é o Existente do Processo Existencial “havia”; e o Processo Relacional “estava”, que tem como Portador “O cofre”, tem como Atributo “cheio de grandes diamantes”. O herói - fragmentado, reduzido a um olhar (“deslumbrou a vista de Estácio”), e olhar embaciado, turvado, ofuscado pelo fulgor das riquezas – aparece como Meta do Processo, ou seja, como aquele que recebe o impacto da ação. Na sequência do trecho, predomina o Afeto negativo na avaliação, feita pelo narrador, da “fortuna”, sorte ou destino do herói. O encontro com a riqueza é chamado de “ironia amarga” (dois Atributos negativos de um Processo Relacional em elipse, em termos de Transitividade). A ironia é que a “fortuna” (Ator) “esbofeteava” (Processo Material) o herói (Meta) “com a opulência” (Circunstância), “quando dela não carecia”, tendo antes, “nos tempos da ambição” (Circunstância), “abatido” (Processo Material) “o seu pundonor” (o herói, reduzido agora à sua altivez e ao seu sentimento da própria honra e valor, continua a ser Meta do Processo) “com a carranca da indigência” (Circunstância). Os dois verbos de Processo Material (“esbofeteava” e “abatido”) sugerem a violência sofrida pelo herói, Meta desses Processos. As Circunstâncias sintetizam a situação do herói, que aparece como uma “ambição altiva” entre dois extremos

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sociais, a “opulência” e a “indigência”, esta última com Avaliação Social negativa à mostra devido ao seu Atributo, “carranca”, que indica ser ela sombria, feia, ameaçadora. Celso Furtado (2012, p. 76), analisando a economia do Brasil à época em que José de Alencar situa o seu herói, afirma que a atividade econômica principal, estimulada pelo governo metropolitano, concentra-se nas mãos de poucos privilegiados, visa ao mercado externo e é obtida à custa da escravidão dos negros estrangeiros e dos índios nativos. O regime é segregador, violento, cruel, reduzindo a maior parte da população do país à condição de instrumento físico, mercadoria da outra parte, composta pelos senhores. À luz da análise feita em “O círculo vicioso da fortuna adversa”, este trecho parece, até este ponto, reafirmar o valor do lugar social privilegiado. No ponto a seguir, porém, o narrador explicará por que o herói “não carecia” mais de riquezas. A hierarquia dos valores será reproposta.

Estácio já não PERTENCIA à terra, suas núpcias ERAM do túmulo; Possuído Circunstância Re Possuidor Possuído Re Possuidor Tempo Polaridade Av. social (-) Token Polaridade

o himeneu de sua alma com a de Inês DEVIA CELEBRAR-se no céu. Meta Ma Circunstância Probabilidade Av. social (+) Token

Lá HÁ as galas da bem-aventurança e as irradiações da luz divina; Circunstância Ex Existente

Av. social (+) Graduação Força (↑) Av. social (+)

não se CARECEM das chispas e do brilho material. Circunstância Experienciador (Indeterminado) Me Fenômeno

Polaridade Graduação Força (↓) Av. social (-)

Ninguém mais lhe RESTAVA na terra a quem FAZER dom de tamanha riqueza; Ator Beneficiário Ma Circunstância Beneficiário Ator (Ele) Ma (DAR) Meta

Graduação Força (↑) Graduação Força (↑)

todas as suas afeições TINHAM VOADO para o seio do Criador a ESPERÁ-lo; Ator Ma Circunstância Comportante (Elas) Co Av. social (+) Token

e uma, uma das mais queridas, ESTALARA com violência. Ator Ma Circunstância

Afeto (-)

Entretanto MURMURAVAM os lábios do mancebo: Circunstância Ve Dizente

Tempo

– Ímpia sorte!... DEVIAS CONHECER-me, pois desde a infância contigo LUTO!... Experienciador (Tu) Me Fenômeno Circunstância Meta Ma

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Julgamento (-) Token Obrigação Frequência

QUERES DEPRAVAR-me o coração ACENDENDO nele a cobiça!... Ator (Tu) Ma Meta Ator (Tu) Ma Beneficiário Meta Inclinação Julgamento (-) Token Av. Social (-)

PUDESSE eu, que DISPERSARA com um sopro todo este imenso tesouro por ti ACUMULADO!... Ma Ator Ator (Eu) Ma Circunstância Meta Ma Ator Atributo Inclinação Graduação Força (↑) Av. Social (-)

Discussão: O herói não carece mais de riquezas e sua obtenção, neste momento, torna-se uma “ironia”, porque “todas as suas afeições tinham voado para o seio do Criador a esperá-lo”. O Processo Material utilizado (“voado”) e a Circunstância ou o destino das pessoas amadas pelo herói (“para o seio do Criador”) explicitam o valor da religiosidade, componente do herói, e que, certamente, em termos de avaliação, fazia eco na comunidade católica onde o autor de As Minas de Prata encontrava o seu público. Há uma Avaliação Social positiva implícita na frase, já que se avaliam o herói e seus entes queridos como dignos e escolhidos do “Criador”. O Ator do Processo (“todas as suas afeições”) fora antecipado na frase anterior do texto, na forma do pronome “quem”, como Beneficiário do Processo Material “fazer dom de” (equivalente a “dar”), cuja Meta é “tamanha riqueza”. Mortas na terra as suas afeições, o herói deixa de ter esse Beneficiário que justificava e dava sentido à sua luta por riqueza e lugar social privilegiado. Na exprobração que faz à sua “sorte” personificada, o herói, agora inteiro como Ator do Processo Material “luto”, a acusa, num Julgamento negativo, de querer “depravar” (ou seja, degenerar moralmente) o seu coração, “acendendo nele a cobiça”. A riqueza em si, portanto, não tem valor, serviria unicamente para gerar a “cobiça”, que recebe Avaliação Social negativa neste trecho e, pode-se dizer, em todo o romance, quando se contrastam pensamentos, sentimentos e ações do herói e seus amigos e dos vilões. Nas primeiras linhas do trecho analisado, o herói aparece entre a terra (com Avaliação Social negativa) e o céu (com Avaliação Social positiva); é no céu, diz o narrador, que “o himeneu de sua alma com a de Inês devia celebrar-se”. A passagem reforça a hierarquia de valores proposta e mostra, como sugere Pirolla (2002, p. 86), que “a problematização do ideal no plano amoroso é um dos recursos mais utilizados por Alencar para dar a conhecer a superioridade do amor espiritual”. Também no plano das riquezas, o narrador confrontará céu (espírito) e terra (matéria), valendo-se da oposição entre Avaliações Sociais (positivas e negativas) e Graduações de força (ascendente e descendente): assim, referir-se-á às “galas da bem-aventurança e irradiações da luz divina”, em termos de Transitividade, Existente do Processo Existencial “há”, que alude àquilo que se encontra no céu, onde “não se carecem das chispas e do brilho material”, Processo Mental com Experienciador indeterminado – ou seja, referindo-se ao herói, como também ao leitor e a toda comunidade - e Fenômeno, encabeçados pela Circunstância de negação. Entende-se aqui o porquê de o narrador, no início do trecho anterior,

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realçar a grandeza da riqueza que chega às mãos do herói. A Graduação de força ascendente de que faz uso lá repercute aqui na avaliação que se faz da Atitude, tanto do herói como do narrador, diante das riquezas materiais e espirituais. Dá-se, desse modo, uma relativização do valor do lugar social privilegiado.

Uma lembrança atravessou o espírito de Estácio. Ouvira outrora no pátio uma renhida controvérsia sobre a combustão do diamante, então simples conjetura dos sábios que só mais tarde foi verificada por experiências repetidas. O mancebo aproximou-se do edifício incendiado: a parede do oitão, de todo desmoronada, descobria o ladrilho do que fora gabinete de Vaz Caminha.

ENCHEU Estácio a mão de diamantes e ATIROU-os sobre aquele pavimento abrasado; Ma Ator Escopo Ator (Ele) Ma Meta Circunstância

Julgamento (+) Token

umas após outras, lá FORAM as riquezas que ENCERRAVA o misterioso cofre. Circunstância Ma Ator Meta Ma Ator Av. social (-) Token

A todas DEVOROU o incêndio em poucos instantes: Meta Ma Ator Circunstância Av. social (-) Token Av. social (-) Token Tempo

o carbono, que se CRISTALIZARA no seio da terra, VOLATIZOU-se ao fogo e DERRAMOU-se na atmosfera. Ator Ator Ma Circunstância Ma Circunstância Ator (Ele) Ma Circunstância Av. social (-) Token

Naquela noite, os viventes, que HABITAVAM por aí acerca, RESPIRARAM um ar miasmático Circunstância Ator Ator Ma Circunstância Ator (Eles) Ma Escopo Atributo

Tempo Av. Social (-) Token

IMPREGNADO dessas exalações milionárias. Atributo

Av. Social (-) Token

Discussão: O herói, que chamara de fogo a cobiça no trecho anterior, usa contra ela o fogo. Exibindo toda a sua fortaleza moral, ele é Ator do Processo Material “atirou”, cuja Meta é o pronome “os” (referindo-se aos diamantes, que representam as riquezas, instrumentos da cobiça), na oração que tem como Circunstância “sobre aquele pavimento abrasado”. Em termos de Avaliatividade, há um Julgamento positivo implícito da Atitude do herói, que marca a exaltação do valor da fidalguia de caráter. O herói mestiço é dono de um caráter inteiriço.

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No romance, esse valor é avaliado positivamente em diversas passagens. Na primeira parte da obra, o mestre Vaz Caminha diz a Estácio: “Não conheceis um português!”, e justifica dizendo que, com a sede de ouro que traz ao Brasil tantos aventureiros, “os costumes dos nossos maiores se perderam; mas entre estes ainda há cavalheiros que sabem o que devem à sua honra e aos seus brios.” (ALENCAR, 1967, p. 28). Na terceira parte, há os diálogos do terceiro e sétimo capítulos, em que aparece o padrão cavalheiresco ideal na imagem do fidalgo D. Diogo de Mariz (também personagem em O Guarani), que deseja a amizade do herói, ao reconhecer nele “um digno e valente coração” (ALENCAR, 1967, p. 382). Se em O Guarani, o fidalgo português D. Antônio de Mariz diz ser Peri “um cavalheiro português no corpo de um selvagem”, ao louvar-lhe o “caráter, nobreza e sentimento” (ALENCAR, 1967, vol. 1, p. 35-111); em As Minas de Prata, D. Diogo de Mariz, o seu filho, acolhe Estácio Dias Correia - o herói mestiço - como a um igual na fidalguia de caráter. Não se faz referência à raça do herói nesta passagem. O trecho analisado se encerra com o narrador corroborando a Avaliação Social negativa das riquezas materiais, ao dizer que “Naquela noite, os viventes, que habitavam por aí acerca, respiraram um ar miasmático impregnado dessas exalações milionárias.” O Atributo “miasmático” se refere ao vocábulo que, segundo Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 264), “durante tantos séculos servira de espantalho a navegantes e guerreiros”, que atribuíam às exalações pútridas de animais e vegetais em decomposição a contaminação das doenças infecciosas e epidêmicas.

Contaram depois alguns mesteirais, saídos na madrugada para a tenda, que viram Estácio adormecido na relva do horto, com a cabeça sobre o parapeito do poço. Ao sair do sol, porém, lá não era já. Foi essa a última memória que houve na cidade do Salvador do infeliz mancebo. Muita vez pelo tempo adiante deu ele matéria para longas práticas às velhas comadres baianas; muita suposição se fez; certeza de seu fim desgraçado, porém, nunca houve. O seguinte dia foi de tristeza para a cidade do Salvador. A fidalguia naqueles tempos não tinha somente o privilégio da riqueza e fausto, nem somente enfeudava as festas e gozos da vida. Arrogava-se também a tirania fúnebre do luto. Quando se finava alguma existência da nobreza, o nojo não ficava na família, nem mesmo na classe; a plebe devia participar dele, e sentir as penas e mágoas dos grandes. Desde a alvorada que os sinos de todas as igrejas começaram a dobrar por finados e continuaram sem interrupção. Se alguma suave flor de alegria despontava nesse dia algures pela cidade, em casa de pobre, logo a finava o bafejo fúnebre que passava. O som vibrante do bronze traspassava o coração e nele vertia o pesar e o susto. Nesta ocasião, porém, o luto da cidade do Salvador não é uma opressão da fidalguia; rebenta espontâneo d’alma do povo. Não há quem não pranteie com lágrimas sinceras a donzela infeliz, arrebatada na flor de sua idade e beleza. A esta lágrima acrescem as suspeitas sinistras sobre o infausto passamento da noiva, e também o terror pela nova, ainda vaga, mas exagerada, das outras catástrofes dessa noite angustiada. Durante o dia não se viam nas ruas senão grupos de gente merencória, de passo arrastado e vozes soturnas. Praticavam em tom submisso do caso desventurado; uns conjeturando sobre as causas do fato; outros discorrendo sobre a pompa do saimento. Depois se dispersavam cabisbaixos para se formarem além em outra roda. Entanto cruzavam em diversos sentidos oficiais mecânicos , atarefados com a armação do catafalco e essa, assim como da armação da casa de Cristóvão. Caiu enfim a noite. A rua, da Sé chamada, onde era a casa de Cristóvão, estava a não poder de gente. O popular curioso de assistir ao fúnebre saimento, rebentava de uma e outra banda. Vinham chegando as

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confrarias dos Defuntos, da Misericórdia, e outras com seus guiões na frente. Compareceu o governador D. Diogo de Menezes, sua comitiva, e os mais oficiais de El-Rei. Já o préstito se alinhava pela rua além. Nesta ocasião o fluxo e refluxo da multidão aproximou duas pessoas que ali estavam imóveis para assistir ao triste espetáculo. Uma delas deve ser Zana, a feiticeira, envolta em seu longo tabardo vermelho, coberto de figuras cabalísticas. A outra mostra apenas o vulto de um cavalheiro, coberto de negros arneses e viseira caída. A espada lhe bate o flanco; esguia e longa adaga cruza a cinta; apoia o braço esquerdo sobre alto e pesado montante. Quando a bruxa, impelida pela lufa-lufa, bateu contra o ombro do cavalheiro, este abaixou para ela um olhar lento e inerte; enxergando-a, porém, sentiu alguma emoção, que se revelou por ligeiro sobressalto. Seu guante cerrou com ímpeto o braço da mulher. - Bruxa de Satanás!... rugiu uma voz cava. Estais satisfeita! Vinde ao repasto dos mortos, como vampiro que és! A feiticeira estremeceu: - Perdão, cavalheiro, se vos ofendi. Mas Deus me fulmine se foi por meu querer. Nem sequer entendo as vossas falas! A voz, que estas palavras proferiu, era suave como uma dulia; mas sentia-se nela, como em um favo de mel, laivos da dor causada pelo guante. Os dedos do desconhecido afrouxaram; seu tom, sempre amargo, se tornou mais natural: - Já te não lembras do agouro no dia de Ano-Bom, na Praça de Palácio? Zana retorquiu vagarosamente e depois de uma pausa: - Mal me quereis, cavalheiro, porque a sina vossa trouxe-vos a tamanha desventura; e não pensais que possa haver maior? - Impossível! - Nunca amastes, cavalheiro, senão saberíeis qual seja a maior angústia do mundo. Sei-o eu, que amei e amo, e não acabarei enquanto primeiro me não acabar este amor. E ver-se desdenhada, e quem sabe?... curtir o tormento de ser possuído de outra o objeto de seu carinho, por quem se estremece! Esta sim, é angústia, que a de chorar morto o querido de nossa alma chama-se, a par com ela, a bem-aventurança!... Sob a viseira estalou um soluço. A feiticeira unia-se ao flanco do cavalheiro, suspensa na ponta dos pés, para lhe alcançar o ouvido. - A virgem que ali está finada, esta é feliz; já não sofre. Matou-a o remorso, ou o castigo?... Ninguém o sabe. Se ela vivesse, seria esposa de outro, que não o primeiro escolhido de seu coração; trairia as juras de seu amor. Pensais que o esposo seu d’alma desejasse, se aqui estivera agora vê-la ressuscitada? - Não turbai, mulher, o repouso de quem já não é deste mundo. Morto sou, tem-me ainda à terra, mas por minguadas horas, um voto santo. - Nada mais então vos prende ao mundo? perguntou a feiticeira. Nesse momento saiu fora da casa o esquife; era coberto de damasco branco franjado de ouro; conduziam D. Diogo de Menezes e os principais da fidalguia baiana. Na porta estava um alto e suntuoso catafalco, guarnecido de veludo roxo e negro com franjas também douradas e galões de prata. Colocado o esquife sobre a cornija do pedestal, pôs-se o préstito em movimento. Os mordomos alinharam suas confrarias; e as carpideiras entoaram as estrepitosas lamentações. Dirigiu-se o séquito à Igreja de São Bento, onde tinha sepultura a família do Senhor D. Cristóvão de Garcia de Ávila. Dez horas eram dadas quando terminaram na igreja os ofícios fúnebres; o popular derramou-se pelas ruas adjacentes; a família voltou acompanhada dos parentes e amigos; só Cristóvão se demorou na igreja para dizer à sua esposa o extremo adeus. O lugar ficou escuro e ermo. Um vulto se aproximou então da porta lateral do convento, e quedou-se aí à espera. Com pouco abriram de dentro, e outro vulto assomou. Este último apresentou ao primeiro objeto mínimo, e murmurou estas palavras: - Restituo quanto vos pertence. Não era assim que eu esperava. O outro estreitou-o com veemência ao peito: - A dor me fez injusto ontem. Venho do túmulo pedir-vos perdão!

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Por algum tempo sussurraram as palavras do colóquio estranho. Afinal as mãos se travaram uma derradeira vez; e o vulto, que saíra de dentro, sumiu-se longe na escuridão da noite. O que chegara, penetrou no templo; antes porém de entrar arrojou de si as armas que trazia. Chegou à sacristia; estava ali um velho, leigo do convento, que despertou da modorra ao som dos passos nas lajes do corredor. - Podeis recolher, bom velho. Amanhã virão para selar a catacumba; não consenti que levantem a lápida!... No centro da igreja se achava o catafalco rodeado de tocheiros. Um frade estava ajoelhado próximo, que ao rumor de passos se ergueu e sumiu na capela-mor. Hirto e lento subiu o desconhecido os degraus da essa; no último caiu de joelhos. A chave de ouro, que trazia cerrada na destra, rangiu; e as abas do esquife abriram-se em par. Inês parecia adormecida. Nunca a formosa donzela ressumbrara meiga serenidade, como neste sono tumular. Era sua própria e mimosa estátua em vida; mas talhada em frio alabastro. O cavalheiro tomou-lhe a mão gelada: - Nada já nos pode separar, minha Inês. Agora somos um do outro; juntos dormiremos no mesmo jazigo e juntos acordaremos no céu, entre os anjos, que te esperam, esposa minha, para coroar-te de rosas imaculadas. Sentiu o cavalheiro que lhe travava da mão pendente outra mão débil. Voltou o rosto; a feiticeira estava de novo com ele, ajoelhada no degrau inferior, em atitude suplicante. - Que me quereis tu ainda? - Trago-te a vida de tua amada. O cavalheiro ficou transido e estático. - Também eu te amei, porém tarde. Inês já possuía teu coração. Um dia quando a destinaram a outro, quis saber se ela era digna de ti, e achei-a qual eu fora. Jurou que a morte a arrebataria aos pés do altar para restituí-la ao seu escolhido. E eu tive forças de jurar-vos, também em minha alma, que a ressuscitaria para o vosso amor. O capuz do manto escarlate desconcertou-se, deixando ver à luz dos círios um rosto formoso. - Raquel! proferiu o cavalheiro. - A vida de Inês aqui está! exclamou a judia mostrando um frasquinho de ouro. - Dai-me! - Dar-te-ei, Estácio, mas em troca me voltareis um preço. - Quereis meu sangue? - Nem uma gota dele. Reclamo este esquife... - Raquel! - Pertence-me, pois não sou amada. Nos solenes momentos a alma não divaga, mas se incrusta nos vocábulos breves que lhe escapam. Estas frases lapidárias entram no espírito como inscrição buriladas. Proferindo a última palavra, não deu Raquel nem à voz, nem ao gesto, a mínima ênfase; mas Estácio reconheceu ao toque de seu coração a imutabilidade daquela resolução. Braços estringidos no peito e cabeça derrubada, permaneceu algum tempo imóvel. Afinal ergueu-se: - Vivereis ambas, e acabe eu que de nenhuma sou digno!... Atirou-se Raquel aos pés do cavalheiro, abraçando-lhe os joelhos. - Não; não há de ser assim. Tomai; que ela respire e... adeus. Estácio a cingiu ao peito quando já fugia, e pousaram seus lábios na fronte da bela judia. - Vivei, Raquel, eu vos suplico, para doçura da minha felicidade. - Sim, viverei, pois me prendestes à terra. Adeus, sede feliz. Partira a judia. Estácio tímido agora ante a esperança e a decepção, vazou o líquido no lenço que pouco antes cobria o rosto da virgem; e trêmulo deu-lhe a respirar a droga sutil. Uns laivos róseos se derramaram pelas faces da donzela; arfou-lhe o seio. Inês vivia. O mancebo, arrancando-a ao esquife, foi com ela nos braços sentar-se ao estrado da capela. Instantes depois entreabriu Inês as pálpebras e seu primeiro olhar embebeu-se das vistas de Estácio. O sorriso dos anjos lhe orvalhou o semblante : - Graças, meu Deus, por haverdes ouvido minha oração. Encontrei-o no céu, ao esposo de minha alma. Vossa infinita bondade nos uniu!... Falai-me, Estácio!... - Deus nos uniu ainda na terra, onde estamos, Inês minha.

81

- Na terra... Mas eu morri. - Não, pois estais em meus braços. Dormistes desde ontem. - Então, exclamou a donzela com pavor, sou a desposada de... Estácio a atalhou: - A desposada de D. Cristóvão e filha de D. Francisco, a Senhora D. Inês de Aguilar, ali repousa naquele esquife e breve dormirá no jazigo dos seus. Tu és a minha esposa, a minha Inês, que Deus me envia do céu. - É verdade, eu desci do céu, e para ser vossa. Vinde, que Deus nos abençoe. Os dois amantes ajoelharam às abas do altar-mor para orar. De repente uma sombra resvalou; e um sacerdote assomou ante seus olhos surpresos. À débil luz dos círios distantes reconheceram no rosto macerado do monge as feições de D. Fernando de Ataíde. - Deus me envia para abençoar a vossa união, meus filhos. Tomando as mãos dos amantes, uniu-as sob a estola e proferiu as palavras do sacramento. Sentiram os esposos úmida a mão do monge e pensaram fossem gotas de água benta; eram lágrimas silenciosas a furto arredadas. Na manhã seguinte a canoa de Esteves saía barra fora; iam nela uma dama embuçada e um cavalheiro desconhecido. Nessa mesma hora velejava um navio mar em fora; e além, nas ribas alcantiladas, o vulto de um monge transmontava a serra. Levava o navio Raquel e seu pai, que abandonavam para sempre as terras do Brasil. O vulto do ermitão levava ao deserto a grande alma do P. Molina.

4.6 Discussão geral de “À beira de um esquife”

A análise da Transitividade – em termos de quantidade – mostra os seguintes

resultados, de acordo com o Gráfico 2.

Há 34 Processos Verbais no trecho, dos quais 24 são Materiais (Ma), 3 Mentais

(Me), 3 Relacionais (Re), 1 Verbal (Ve), 1 Comportamental (Co) e 2 Existenciais (Ex).

82

Gráfico 2 – Ocorrência de Processos Verbais no trecho analisado de “À beira de

um esquife”:

Processos Verbais

71%

9% 9%3%

6%3%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

Material Mental Relacional Comportamental Existencial Verbal

Constrói-se, no trecho analisado, um discurso contra a ambição e a cobiça. O

Sistema de Transitividade mostra o herói conseguindo, finalmente, as riquezas que

tanto perseguiu (“Um jorro fulgurante de límpidas centelhas esguichou de dentro, e

deslumbrou a vista de Estácio. O cofre estava cheio de grandes diamantes [...]”). As

escolhas léxico-gramaticais, ou seja, as palavras escolhidas para constituir o texto, bem

como a sua função sintática nele, engendram, para o leitor, a informação sobre

quantidade e qualidade da riqueza que chega às mãos do herói, e mostram a sua

primeira reação a ela. Porém, tendo-lhe morrido as principais afeições, a sua amada,

Inesita, e o seu pai espiritual, Vaz Caminha (“Ninguém mais lhe restava na terra a quem

fazer dom de tamanha riqueza”), julga o herói que, em tais circunstâncias (sem um

Beneficiário que a justifique, como revela a análise da microestrutura), a posse de

tamanha riqueza serviria apenas para “depravar [o seu] coração acendendo nele a

cobiça”. Na estrutura, o herói coloca-se como Meta do Processo Material “depravar”

(degenerar moralmente) e Beneficiário negativo do Processo Material “acendendo”, que

tem como Meta “a cobiça”.

83

Para Hunston (1993, p. 57-73), “um aspecto importante da ideologia – o sistema

de valores – pode ser descrito linguisticamente em termos da avaliação presente nos

textos”, avaliação que, segundo Martin (2000), pode se realizar por meio de diversas

estruturas lexicais e gramaticais que usamos como recursos para avaliar a experiência

social. Em “Encheu Estácio a mão de diamantes e atirou-os sobre aquele pavimento

abrasado”, a ação do herói é acompanhada de Julgamento ético positivo implícito; e,

para compreender essa avaliação, é necessário que o leitor esteja atento à cadeia de

avaliações que se vem desenvolvendo no texto. No co-texto anterior e posterior à frase

citada, o narrador usa, ao se referir às riquezas materiais, primeiro a Avaliação Social

negativa e a Graduação de força descendente (“Lá [no céu] não se carecem das

chispas e do brilho material.”); e depois, novamente, avaliação social negativa,

concentrada num Atributo de significado negativo (“Naquela noite, os viventes, que

habitavam por aí acerca, respiraram um ar miasmático impregnado dessas exalações

milionárias.”). A Graduação da avaliação da ação do herói pode ser reforçada também

por informações presentes no co-texto, já que o leitor, ao avaliar, o fará à luz do

conhecimento, engendrado na microestrutura do texto, de que a experiência social do

herói, até aquele momento, fora a de uma “ambição altiva” entre dois extremos sociais:

acossado pela “carranca da indigência”, ele perseguia a “opulência”. Toda a aventura

vivida pelo herói na busca das minas de prata - bem como toda a ação do vilão do

romance, o Padre Gusmão de Molina, movido pela ambição e pela cobiça - é

recuperada pelo leitor nesse momento, para dar sentido à ação presente do herói - que

permitiria, a um público familiarizado com o texto bíblico, aproximações com a ação da

viúva do evangelho, que “deu da sua mesma indigência tudo o que tinha para viver” (Lc

21, 4) - e para fazer a Graduação de sua avaliação.

Queimar diamantes, nesse contexto, longe de ser a prova cabal da loucura,

como ainda hoje repete a sabedoria popular em certas localidades do Brasil, é uma

forma de relativizar o valor das riquezas e do lugar social privilegiado, condenando a

ambição e a cobiça e exaltando o valor da fidalguia de caráter. O Sistema de

Transitividade e os recursos de Avaliatividade possibilitam ao leitor construir essa

interpretação.

84

Por fim, passo à análise do terceiro e último trecho, o “Epílogo” do romance As

Minas de Prata, onde o herói é proposto como referencial moral para a comunidade.

4.7 Análise das variáveis de Registro do “Epílogo” (da página 542 à 544).

Campo

O epílogo é um texto curto (são duas páginas) que encerra a narrativa do

romance histórico As Minas de Prata, de José de Alencar. Nele, o narrador mostra o

casamento de Estácio, o herói do romance, e Inesita, assistido por pequeno grupo de

amigos; fala da visita que fez D. Francisco de Aguilar, o orgulhoso fidalgo espanhol, pai

da noiva, à habitação do herói; e, por fim, mostra o herói e sua esposa a sós, na sua

última aparição no romance. Além disso, merece atenção, como veremos na análise, a

criação, por meio de escolhas linguísticas, do espaço singular onde o herói é visto pela

última vez no romance, aspecto intimamente vinculado à construção da idealização.

Relações

No plano das relações entre os participantes, três pontos merecem atenção: o

epílogo apresenta a suma do conflito entre o herói brasileiro Estácio Dias Correia e o

fidalgo espanhol D. Francisco de Aguilar, cujo início vimos na análise de “O círculo

vicioso da fortuna adversa”. O texto apresenta também uma significativa comparação

entre a relação amorosa de Estácio e Inesita e a de seus amigos, Cristóvão e Elvira;

significativa, como veremos na análise, porque contribui para a construção de um valor

dos mais importantes na construção da idealização do herói, o valor do amor. Por fim, o

texto do epílogo traz elementos para pensarmos a relação do autor-narrador com o

leitor, no sentido da construção e hierarquização de valores no decorrer da narrativa;

valores esses que emergem nos conflitos vivenciados pelo herói, erigido à condição de

ideal moral da comunidade.

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Modo

Segundo Ricupero (2004, p. xx), “o problema da geração romântica é, além do

mais, duplo: é político e cultural.”. Como já vimos, a linguagem literária, na concepção

de José de Alencar, é “escolhida, limada e grave” (ALENCAR, 1967, vol. 7, p. 169), e é

utilizada com finalidade cultural e política, inseparável neste caso. Para Martins (2005,

p. 153), os traços da identidade nacional delineada nas obras de José de Alencar

“podem ser recuperados tanto na concepção da natureza, que, mesmo culturalizada, é

eufórica, como na construção do sujeito brasileiro e na de sua língua”. No texto do

epílogo, há apenas a fala do narrador - compartilhamento monológico, segundo Fuzer e

Cabral (2014, p. 30) -, que constitui o cenário, as personagens, os conflitos, as ideias e

valores por meio de escolhas léxico-gramaticais. O objetivo dessa linguagem é a

criação do herói, ideal moral da comunidade, o que implica que essa linguagem, escrita

literária que utiliza canal gráfico, deve ser capaz de estabelecer um vínculo entre a

personagem do herói e os leitores do romance, em suma, entre o herói e a

comunidade. Veremos, na análise, esforços do autor-narrador nesse sentido.

4.8 Análise da Transitividade e da Avaliatividade / Modalidade (disponho o texto do capítulo na íntegra, para facilitar a compreensão da análise).

Repito a codificação utilizada:

Caixa Alta Processos: MATERIAL (Ma), RELACIONAL (Re), MENTAL (Me), COMPORTAMENTAL (Co), VERBAL (Ve) e EXISTENCIAL (Ex).

Sublinhado Participantes e Circunstâncias

Negrito Avaliatividade e Modalidade

(+) ou de (-) Avaliatividade, positiva ou negativa.

(↑) ou (↓) Graduação, com intensificação ou com atenuação da Avaliatividade.

Epílogo

HÁ bem pouco tempo ainda, VIAM-se nas cercanias da linda Baía de Camamu, Ex Circunstância Ma Circunstância

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Tempo Apreciação (+)

as ruínas de uma capela, que ali EXISTIRA em eras remotas sob a invocação de São Gil. Meta Existente Circunstância Ex Circunstância Circunstância

Tempo

Discussão: Apoiando-se principalmente nas Circunstâncias, o narrador cria um vínculo espaciotemporal entre o herói Estácio e a comunidade de seu tempo, ou seja, o Brasil do século XIX. A presença real do herói é situada em “eras remotas” (pela datação da narrativa, Estácio viveu no século XVII), ao se referir à construção da capela; porém, os vestígios de sua presença - “as ruínas” da capela - existiam “há bem pouco tempo ainda”. Com isso, o herói é inserido na história da comunidade. Reforça esse sentimento de pertencimento à comunidade a referência ao lugar onde teria existido até bem pouco tempo a capela, a “Baía de Camamu”, que, situada nas proximidades da cidade do Salvador, é referência espacial histórica no Brasil, mencionada por Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (1987, p. 75-6), aliás, uma das leituras fundamentais de José de Alencar para construir o seu romance As Minas de Prata. O nome de “São Gil”, com que se refere o narrador à capela, remete a um episódio da narrativa (ALENCAR, 1967, p. 528) envolvendo o menino Gil, pajem de Estácio; neste trecho, porém, é mais uma garantia da presença real do herói no espaço e no tempo da comunidade. A construção de um vínculo espaciotemporal entre o herói e a comunidade parece ser uma condição indispensável para que o herói possa ser erigido como modelo moral para essa comunidade e, sendo assim, exerce uma função ideológica no processo de construção da idealização do herói.

Um ano HAVIA DECORRIDO desde o passamento de D. Inês de Aguilar. Existente Ex Circunstância Tempo

ERAM sete horas de uma bela manhã de primavera; Re Circunstância Circunstância Tempo Apreciação (+) Av. Social (+) Token

árvores em flor, céu em gala, pássaros em alegres descantes, nada FALTAVA à festa da natureza. Beneficiário Ator Ma Apreciação (+) Av. Social (+) Token

O sino da capelinha TANGIA alegremente, e o âmbito do pequeno templo cheio da luz do sol,

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Ator Ma Circunstância Portador Atributo Afeto (+) Graduação Força (↑) Afeto (+) Av. Social (+) Token

que EMBRANQUECIA o clarão dos círios, SEMELHAVA um céu estrelado em noite de esplêndido luar. Ator Ma Meta Re Atributo Circunstância Graduação Força (↑) Apreciação (+)

Graduação Força (↑) Av. Social (+) Token

Discussão: O narrador retorna ao tempo da narrativa e passa a criar o cenário onde o herói será visto pela última vez. A referência à morte de Inesita, a amada do herói, que se havia matado, em nome de seu amor (ALENCAR, 1967, p. 535), e que será vista “ressuscitada” logo a seguir, também em nome de seu amor, ajuda a construir o valor do amor, fundamental na representação idealizada do herói. Os vaivéns do enredo, cheio de quiproquós a surpreenderem o leitor, são um recurso repetido à exaustão na narrativa romanesca que caracteriza As Minas de Prata. A criação do cenário, com avaliações positivas difusas, se faz com dois breves fragmentos descritivos: no primeiro, o narrador descreve o esplendor de uma manhã de primavera em meio à natureza tropical, a expressão “festa da natureza” resume a ideia que quer construir de um lugar de beleza, música e alegria. Poder-se-ia já aqui falar em idealização, uma vez que essa descrição parece tender a isolar a natureza da comunidade que a habita e explora, uma comunidade caracterizada econômica e socialmente pela exploração de mão-de-obra escrava nas grandes lavouras de cana-de-açúcar, que alimentavam engenhos que produziam visando ao mercado externo (FREYRE, 2004, p. 65). Remete ainda a breve descrição – o que será reforçado adiante - aos mitos sobre a existência de um paraíso terreal, os quais, segundo Sérgio Buarque de Holanda (2002, p. 244), influenciaram significativamente a visão de mundo do europeu nos primeiros séculos da colonização do Brasil. Um motivo recorrente nesses mitos era o de um lugar onde reinava uma eterna primavera, com natureza exuberante e clima não frio e não quente. A descrição do interior da capela sugere um lugar de acolhimento, simplicidade e também alegria; o templo é pequeno, porém é comparado a um céu. Neste epílogo do romance, portanto, o narrador constrói para o herói um cenário, a um tempo, natural e sobrenatural, pois embora o leitor possa sem nenhuma dificuldade reconhecer nele uma paisagem tropical do Brasil, com uma ermida católica, o texto sugere – isso será enfatizado na sua sequência - algo como a existência de dois templos, o da religião e o da natureza. O herói parece estar na fronteira de outro mundo. O cenário é, por conseguinte, parte importante no processo de idealização do herói, na medida em que o coloca em relação com o espaço natural de sua comunidade, fortalecendo o seu vínculo com ela, e, ao mesmo tempo, o coloca em relação com um espaço sobrenatural ligado a um valor que o herói representa, o da religião, o qual o autor parece querer reforçar na comunidade.

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Estavam na igreja duas pessoas. Uma era Frei Fernando de Santa Violante, que depois de

acender os círios e vestir o altar, subira ao coro para tanger a campa. A outra era a recolhida, Soror Joana, ocupada em varrer o chão de ladrilho.

A ermida era nova, de fresco concluída. Dizia-se na aldeia vizinha que a manda construir de seu bolsinho a Soror Joana, em virtude de um voto que fizera.

Aos lados viam-se os dois eremitérios isolados, onde viviam em clausura, a devota, servente da casa de Deus, e seu irmão Frei Fernando, capelão da ermida.

Poucos instantes depois, pelo caminho que DESEMBOCAVA em frente, Circunstância Circunstância Ator Ma Circunstância Tempo

APARECEU um grupo de seis pessoas, onde HAVIA pompa de mocidade e formosura, Ma Ator Circunstância Ex Existente Apreciação (+) Av. Social (+) Token

mas simplicidade extrema de traje. Estácio CONDUZIA Inesita e Cristóvão a sua bela esposa, D. Elvira de Ávila. Ex (em elipse) Existente Ator Ma Meta Ator Ma (em elipse) Meta Graduação Força (↑) Apreciação (+) Apreciação (+) Av. social (+) Token

SEGUIA-se Gil, CARREGANDO ao colo uma linda criança, filha deste último par. Ator (Ele) Ma Circunstância Meta Atributo

Apreciação (+) Av. social (+) Token

Ao mesmo tempo, da outra banda, CHEGAVA João Fogaça, que TRAZIA pelo braço a sua Mariquinhas dos Cachos. Circunstância Circunstância Ma Ator Ator Ma Circunstância Meta Tempo Av. social (+) Token

Discussão: Surge, no cenário (sem que se diga de onde exatamente vem - e as omissões e sugestões são significativas para entender a idealização) um grupo de seis pessoas, “pelo caminho que desembocava em frente”. No interior da Circunstância, merece atenção o verbo de Processo Material, o qual tem entre as suas acepções a de “sair de um lugar estreito para outro mais largo” (HOUAISS, 2001, p. 976). O herói Estácio e sua amada Inesita aparecem vivos e acompanhados de seus amigos. Merece atenção a caracterização do grupo de pessoas, onde havia “pompa de mocidade e formosura, mas simplicidade extrema de traje” (em termos de Transitividade, Existente de um Processo Existencial). Essa caracterização traz importante informação sobre a situação social do herói ao fim do romance, além de construir um valor, o da simplicidade e

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desapego às coisas materiais, que não parecia – veja-se o primeiro texto

analisado, “O círculo vicioso da fortuna adversa” – corresponder às expectativas do herói. Esse valor se constrói a partir do segundo trecho que analisamos – “À beira de um esquife” -, quando o herói chega, numa espécie de ascese, à visão de que o bem material nada representa sem pessoas amadas com quem se possa compartilhá-lo. Esse valor, como vimos, se contrapõe no romance à ambição desenfreada do vilão, o padre jesuíta Gusmão de Molina, e, a julgar pelo que se lê em outras obras do autor, Senhora, por exemplo, escrita anos depois de As Minas de Prata, a questão parece ter permanecido como preocupação de José de Alencar, que sem dúvida enxergava na ambição, na corrupção, no roubo um problema sério do Brasil nascente, e contrapunha a isso a intransigente honradez e fidalguia de caráter de seu herói.

No mesmo navio, que LEVARA Raquel, PARTIRA para Europa Fr. Fernando: Circunstância Ator Ma Meta Ma Circunstância Ator

Av. Social (+) Token

IA a Roma CUMPRIR a promessa que FIZERA a Estácio de OBTER do Santo Padre a anulação do casamento de Inesita. Ator (Ele) Circunstância Ma Escopo Escopo Ator (Ele) Ma Beneficiário Ator (Ele) Ma Beneficiário Meta Julgamento (+) Token

CHEGARA, HAVIA apenas um mês, com o breve do Papa. Ator (Ele) Ma Circunstância Circunstância Tempo

Cristóvão e Elvira, unidos desde muito, só então SOUBERAM da existência de Estácio e Inesita, Experienciador Atributo circunstância Me Fenômeno

Julgamento (-) Token Tempo

que SUPUNHAM mortos e sepultos na mesma campa. VIVIAM, noivos irmãos, Fenômeno Experienciador (Eles) Me Atributo Circunstância Experienciador (Eles) Atributo

Av. Social (+) Token Julgamento (+) Token

ESPERANDO a santificação do seu amor.

Me Fenômeno Julgamento (+) Token Av. Social (+)

O monge RATIFICOU os sacramentos anteriormente celebrados, Ator Ma Escopo Circunstância Atributo

Julgamento (+) Token

UNINDO desta vez em legítimo matrimônio os dois casais. Ator (Ele) Ma Circunstância Meta

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Julgamento (+) Av. Social (+) Discussão: Duas informações relevantes são trazidas pelo narrador nessa passagem, a primeira é que Estácio viveu um ano ao lado de Inesita, como “noivos irmãos” (Atributo), enquanto aguardava o cumprimento da promessa que lhe fizera o ex-noivo dela, o agora religioso D. Fernando, de obter do Papa a anulação do seu casamento com Cristóvão de Garcia de Ávila, o grande amigo do herói, o qual, estando ausente Estácio, e tendo-lhe prometido não permitir de nenhuma maneira que o pai da jovem a casasse com qualquer pretendente, viu-se obrigado a casar-se ele próprio com ela (ALENCAR, 1967, p. 504), aproveitando-se de sua condição de fidalgo abastado e de primeiríssima linhagem; fê-lo, porém, como artifício para livrar Inesita dos pretendentes, e do próprio pai, que rejeitava Estácio terminantemente, o que a impedia - pois tinha a obediência ao pai como obrigação e valor supremo - de casar-se com Estácio sem a bênção paterna. O artifício consistia em casar-se com a jovem e, matando-se em seguida – pois o pretendia, tanto por seus conflitos pessoais com a sua amada Elvira, como para ajudar o fiel amigo -, deixá-la aos cuidados de Estácio, que só assim a poderia esposar. Além do valor da amizade, a que alude, e da sujeição incondicional à vontade do pai, o trecho destaca a religiosidade de Estácio, fiel seguidor do preceito católico quanto às condições ideais para a realização do sacramento do matrimônio; a oposição entre Julgamento ético negativo (em “unidos desde muito”, referindo-se a Cristóvão e Elvira) e Julgamento ético positivo (em “esperando a santificação do seu amor”, referindo-se a Estácio e Inesita) reforça a construção desse valor, que será retomada adiante. A construção linguística do valor da religiosidade, entrevista nos dois primeiros textos analisados, e que neste terceiro já se esboçara na descrição da ermida católica, aparece em avaliações positivas disseminadas pelo romance – o culto à imagem paterna remete ao “honra teu pai e tua mãe”, do decálogo (Ex 20, 12); a condenação da cobiça, ao “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24); e, vale lembrar, o herói tem herói em As Minas de Prata: Estácio se envergonha de seu valor e intrepidez ao compará-los “àquele sereno heroísmo do mártir, que sem outro estímulo mais que a fé robusta, se afrontava com o suplício horrível e bárbaro, e buscava a morte obscura e ignorada”. (ALENCAR, 1967, p. 469). A referência é à personagem do Padre Inácio de Louriçal, jesuíta, antigo mestre do herói no Colégio, e cujos valores e feitos, no trabalho de conversão do gentio, são contrapostos, no romance, aos do padre vilão, Gusmão de Molina, como representativos de uma religiosidade ideal -. O conjunto das avaliações, em suma, aponta para uma possível fonte principal dos valores propostos pelo autor, questão que foge, porém, aos objetivos mais diretos desta pesquisa. A segunda informação relevante, neste trecho, para compreender, em termos linguísticos, a construção da idealização do herói, é que Estácio e Inesita, que agora se casam no preceito católico, viveram durante um ano como que fora da comunidade, sem que os amigos mais íntimos soubessem que eram vivos; tinham-nos por mortos (Processos Mentais: “souberam” e “supunham”). Essa questão do espaço habitado pelo herói será retomada, e chamarei a atenção para o seu caráter

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idealizante.

Todo o tempo da cerimônia reinou na ermida profundo silêncio; terminada ela, a Irmã Joana derramou sobre a cabeça dos noivos um açafate de rosas.

Apenas saíram as pessoas, o monge e a recolhida se estreitaram ao peito. Foragidos do mundo, escorjados da desventura, esses dois infelizes se abrigavam no seio um do outro. Desde esse instante foram verdadeiramente irmãos.

Entanto o grupo de amigos se DIRIGIA entre o arvoredo à modesta, Circunstância Ator Ma Circunstância Atributo Circunstância Tempo Av. Social (+) Token

mas graciosa habitação de Estácio SITUADA à margem de um rio, Atributo Ator (Ela) Ma Circunstância Circunstância Atributo Apreciação (+) Av. Social (+) Token

que a ABRAÇAVA carinhosamente FORMANDO uma quase ilha, do feitio de coração. Ator (Ele) Meta Ma Circunstância Ator (Ele) Ma Meta Atributo Afeto (+) Apreciação (+) Av. Social (+)Token

Um poeta do tempo não DEIXARIA ESCAPAR esta circunstância para dela TIRAR um conceito de madrigal. Ator Circunstância Ma Meta Beneficiário Ator (Ele) Ma Meta Circunstância Polaridade Polaridade

Se o amor RESIDE no grande músculo humano, sem dúvida aquela mansão do amor DEVIA TER essa forma. Circunstância Ator Ma Circunstância Circunstância Portador Re Atributo Probabilidade Graduação Força (↑) Probabilidade Av. Social (+) Token

Discussão: O trecho conclui a informação sobre o espaço habitado pelo herói ao final do romance. Refere-se à casa de Estácio, situada “nas cercanias da linda Baía de Camamu”, localizada nos arredores da cidade do Salvador, como já vimos; para se chegar a essa habitação, anda-se por “entre o arvoredo” (temos

92

aqui uma nova referência à natureza exuberante do local). Com base na análise da Transitividade, nota-se que as Circunstâncias de lugar trazem elementos lexicais que colocam o espaço do herói no interior da comunidade ou vinculado a ela, por exemplo, ao mencionar a Baía de Camamu e descrever a natureza característica da região; todavia, outros Participantes trazem também elementos de indefinição, tais como “há bem pouco tempo ainda”, “nas cercanias”, “à margem de um rio” e “uma quase ilha”, que impedem uma localização precisa do lugar e, pelo contrário, criam um efeito de indeterminação em relação à localização da habitação do herói. A casa fica “à margem de um rio, que a abraçava carinhosamente formando uma quase ilha, do feitio de coração”: faz-se aqui nova alusão aos mitos sobre a existência de um paraíso terreal, estudados por Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso; o historiador cita carta de Rui Pereira, de 1560, na qual o autor afirma que “não pode viver senão no Brasil quem quiser viver no paraíso terreal”; menciona também a frequência com que esse paraíso era representado como uma ilha, e até o detalhe de sua representação como um coração (HOLANDA, 2002, p. xx-156). Considerando-se a natureza da linguagem literária e os objetivos de José de Alencar, a frase sugere que a casa-ilha-coração ou “mansão do amor”, habitada pelo herói, jaz à margem do rio-comunidade, que a abraça carinhosamente - como se abraça um ideal, que afinal é o que essa habitação representa. Aliás, ela não é exatamente ilha, mas “quase” ilha, pois embora se localize em lugar indeterminado, guarda afinidades com a geografia da comunidade e representa valores que se deseja criar ou fortalecer nela: o amor, a religião, a fidalguia de caráter. O herói de As Minas de Prata, ao fim da obra, habita um espaço mítico idealizado, portanto. Há ainda dois pontos relevantes a serem mencionados a respeito desse trecho: o primeiro é a referência feita pelo narrador a “um poeta do tempo” (que equivale ao Dizente de um Processo Verbal, embora o autor tenha optado pela construção com Processo Material), o qual teria composto, inspirado na habitação de Estácio e Inesita, um madrigal, que é, segundo Bilac e Passos (1944, p. 131), durante o século XVI, “uma espécie de composição musical e poética”, e, nos séculos seguintes, uma composição em que se exprime, de forma concisa, graciosa e delicada, “um pensamento espirituoso e elegante, um galanteio, um elogio discreto ou discreta confissão de amor”. No texto de As Minas de Prata, a referência tem a função de mostrar o herói tornando-se lenda, mito, ainda em vida, o que fortalece a noção da existência de um vínculo entre ele e a comunidade, que vem sendo desenvolvido neste epílogo, como já vimos. Vale lembrar, esse recurso literário de mostrar as façanhas dos heróis sendo cantadas por poetas da comunidade, ainda durante a vida dos heróis, ou seja, no interior da própria obra, é clássico e aparece na Odisseia, de Homero (2000, p. 161), na Eneida, de Virgílio (2004, p. 24), no Dom Quixote, de Miguel de Cervantes (1984, p. 27), entre outras obras. Uma outra função do recurso, nitidamente sentida em As Minas de Prata, é a de explicitar o papel da obra literária como criadora de mitos, ou de modelos morais para a comunidade, na concepção característica de José de Alencar e de sua escola literária. Por fim, ao dizer que a habitação do herói é “modesta, mas graciosa” (com Avaliação Social e Apreciação estética positivas), o narrador retoma a informação sobre a situação social do herói ao fim do romance; já vimos que pretende construir o valor da simplicidade e do

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desapego às coisas materiais. Essa questão retornará no trecho que segue.

Estácio e Inesita SEPARARAM-SE um instante dos amigos e PENETRARAM no interior da habitação; Ator Ma Circunstância Meta Ator (Eles) Ma Circunstância

Tempo

aí ESTAVAM D. Francisco de Aguilar e sua mulher D. Ismênia, que VIERA carregada em liteira. Circunstância Re Identificado Ator Ma Circunstância

TINHAM VINDO incógnitos para ABENÇOAR a filha ressuscitada. Ator (Eles) Ma Circunstância Dizente (Eles) Ve Alvo Atributo Circunstância Julgamento (-) Token Av. Social (+) Token

FOI tudo quanto a ternura OBTEVE do orgulhoso fidalgo castelhano; Portador (em elipse: Isso) Re Atributo Meta Ator Ma Atributo Atributo Beneficiário Graduação Força (↑) Julgamento (-) Token

para o mundo sua filha ESTAVA realmente finada. Circunstância Portador Re Circunstância Atributo Julgamento (-) Token Probabilidade

Depois da bênção paterna, PARTIU o fidalgo com sua mulher às ocultas, como TINHAM VINDO. Circunstância Ma Ator Circunstância Ator (Eles) Ma Circunstância Tempo Julgamento (-) Token

Discussão: O trecho mostra o reencontro do herói Estácio, agora casado com Inesita, com o fidalgo espanhol D. Francisco de Aguilar, pai da jovem, o qual rejeitou o seu pedido de casamento (vimos na análise de “O círculo vicioso da fortuna adversa”) por ser o herói “descendência bastarda de um simples cavalheiro português, em cujas veias corre uma mistura de sangue gentio”. Chamam a atenção as Circunstâncias desse encontro: o fidalgo e sua esposa vêm “incógnitos” e vão “às ocultas”, porque a sua filha Inês, “ressuscitada” (Atributo) pelo e para o amor de Estácio (veja-se o capítulo “À beira de um esquife”), é morta “para o mundo”, e essa bênção paterna dada à filha no dia do seu casamento foi, segundo o narrador (com Julgamento ético negativo na Avaliatividade), “tudo quanto a ternura obteve do orgulhoso fidalgo”. Disso se

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pode concluir que a rejeição do fidalgo espanhol a Estácio continua a existir, a tal ponto que ele prefere a filha morta a casada com o jovem herói, mestiço de português e índio. Essa passagem é fundamental para que se entenda a questão do lugar social do herói ao fim do romance, e para a compreensão da natureza da idealização, vinculada aos valores construídos. Ao final da narrativa, Estácio e Inesita estão vivos, porém fora do convívio da comunidade, tidos como mortos por ela, com exceção apenas de seu pequeno grupo de amigos. Na análise de “À beira de um esquife” (a segunda deste trabalho), vimos que Estácio queima os diamantes que lhe foram deixados de herança; neste capítulo, fez-se referência à simplicidade do traje, à modesta condição da habitação do herói, e à continuidade da rejeição do fidalgo; não há informação alguma, além dessas, sobre os meios materiais de que se vale o herói para viver em sua casa-ilha-coração. À obsedante busca de riquezas e nobreza (veja-se a análise de “O círculo vicioso da fortuna adversa”) sucede esse estado idealizado de abolição dos principais anseios sociais: riquezas, poder, autoridade, tradição, prestígio. Caio Prado Júnior (2004, p. 289) menciona esses valores como atributos dos senhores na sociedade brasileira colonial, retratada, ao menos em parte, por José de Alencar em seu romance histórico As Minas de Prata. Diz ainda o historiador (2004, p. 281-82), referindo-se à estrutura social do Brasil à época, que “os meios de vida, para os destituídos de recursos materiais, são na colônia escassos. Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e os escravos”. O número desse “elemento indefinido socialmente” teria aumentado significativamente com o tempo, e, devido ao seu status social de gente desclassificada, inútil, inadaptada, de ocupação incerta ou sem ocupação alguma, o francês Louis Couty (já no século XIX) teria dito, identificando o grupo com “o povo brasileiro”, a conhecida frase: “Le Brésil n’a pas de peuple”. Todavia, ao final de As Minas de Prata, o herói brasileiro Estácio Dias Correia, mestiço de português com o gentio da terra, viu frustrarem-se os seus projetos de obtenção de riquezas e de fidalguia, frustrou-se o seu plano de se tornar um senhor da terra, portanto; mas não se tornou um escravo; nem tampouco aceitou o cargo de alferes que lhe dera o governador (ALENCAR, p. 432) em prêmio pelos seus grandes cometimentos de guerreiro; e muito menos pode ser contado entre os membros desse contingente populacional que o francês chamou - com avaliação negativa - de “o povo brasileiro”. O lugar social do herói é idealizado. O valor que prevalece em seu mundo, a um tempo natural e sobrenatural, é aludido ao se falar, neste trecho analisado, da ressurreição de Inesita; e logo a seguir será explicitado nas últimas linhas do romance.

Os primeiros eflúvios do santo amor conjugal DISSIPARAM a sombra melancólica na fronte de Inês. Ator Ma Meta Atributo Circunstâncias Afeto (+) Afeto (-) Av. Social (+)

Elvira também ERA feliz. Mas como a rosa, cujo seio PUNGIU a antena de um

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inseto, Portador circunstância Re Atributo Circunstância Meta Ma Ator Afeto (+) Julgamento (-) Token Av. Social (-) Token

a flor de sua felicidade TINHA uma nódoa que só o tempo DEVIA APAGAR. Portador Re Atributo Meta Circunstância Ator Ma Av. Social (-) Token Probabilidade

Discussão: Nesse pequeno trecho, onde se leem as últimas linhas do romance As Minas de Prata, o narrador retoma a construção do valor do amor, que vinha sendo feita ao longo do capítulo – e o foi, na verdade, ao longo do romance inteiro. Aqui se fala dos “eflúvios do santo amor conjugal” (Ator), que “dissiparam” (Processo Material) “a sombra melancólica” (Meta) “na fronte de Inês” (Circunstância), motivada, certamente, pela teima de seu pai, o orgulhoso fidalgo espanhol, em não aceitar o seu esposo em sua particularidade social e racial. Esse “santo amor conjugal” exaltado, como já vimos, está em perfeito acordo com o preceito da religião católica; nas linhas finais do texto, ele é contrastado, em termos de Avaliatividade, com um amor que cedeu ao pecado ou que não seguiu o preceito religioso e, por isso, tornou-se impuro (ALENCAR, 1967, p. 368). O herói Estácio, fidalgo de caráter, termina modesto e honrado, mas noutro mundo, na sua paradisíaca casa-ilha-coração, à margem do rio-comunidade e da própria vida, onde o valor supremo, onde o próprio alimento da vida parece ser o “santo amor conjugal”. É importante notar que essa condição final do herói, porventura decepcionante para algum leitor, não é lastimada, no texto, por ele ou pelo narrador; pelo contrário, recebe avaliações positivas. Essa condição de homem brasileiro, mestiço, modesto, possuidor dos valores do amor e da religião, e de uma fidalguia ao alcance de todos os homens da comunidade, a de caráter, é, possivelmente, o que se propõe como um ideal, sobretudo numa comunidade de senhores e escravos, de polarização entre opulência e indigência, como foi o Brasil-Colônia, de que fala a obra, e como foi o Brasil-Império - com os seus 84,25% de analfabetos em 1870, segundo Ricupero (2004, p. xxxvi) -, de onde fala o autor. Não se fala, no mundo do herói, de riquezas, fidalguia de linhagem ou privilégios de raça; também não se fala de necessidades materiais e de lugares sociais privilegiados. Porém, no mundo da comunidade, do qual o herói se retira após uma árdua busca cheia de recontros e sofrimentos, riquezas, poder, autoridade, tradição e prestígio persistem como os valores que açulam a ambição e cobiça dos homens.

96

4.9 Discussão Geral do “Epílogo”

A análise da Transitividade – em termos de quantidade – mostra os seguintes

resultados, de acordo com o Gráfico 3.

Há 51 Processos Verbais no trecho, dos quais 35 são Materiais (Ma), 3 Mentais

(Me), 8 Relacionais (Re), 1 Verbal (Ve), nenhum Comportamental (Co) e 4 Existenciais

(Ex).

Gráfico 3 – Ocorrência de Processos Verbais no trecho analisado do “Epílogo”:

Processos Verbais

69%

6%

16%

0%

8%2%

0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

Material Mental Relacional Comportamental Existencial Verbal

No último trecho analisado de As Minas de Prata, vê-se a conclusão da

construção linguística do processo de idealização, com a construção do espaço

extraordinário habitado pelo herói ao fim do romance, e o estabelecimento de um

vínculo entre ele e a comunidade brasileira do século XIX, tempo de José de Alencar. A

natureza do processo de idealização e os valores principais exaltados tornam-se claros.

Segundo Halliday, a língua tem uma função representativa, que serve para

exprimir conteúdos, e o falante ou o escritor a utiliza “para dar forma à sua maneira de

olhar os fenômenos do mundo” (FOWLER, 1994, p. 252). O vínculo entre o herói e a

comunidade é representado, no texto, por meio dessa Metafunção Ideacional, que

possibilita ao narrador fazer o entrelaçamento entre o tempo e espaço da narrativa e o

97

tempo e espaço da comunidade, sugerindo - por meio das Circunstâncias de espaço e

tempo, principalmente, que criam a ilusão de planos espaciotemporais diversos no

interior da obra – uma continuidade entre ficção e realidade, entre o mito do herói e a

história da comunidade, de onde fala o autor-narrador. Expressões como “Há bem

pouco tempo ainda” e “nas cercanias da linda Baía de Camamu” contribuem para a

construção desse vínculo.

De forma mais complexa, a Metafunção Ideacional também constrói o vínculo

entre o herói e a comunidade por intermédio da aura intertextual – a expressão é de

Fairclough – que traspassa As Minas de Prata. A propósito cita Foucault, para quem

“não pode haver enunciado que de uma maneira ou de outra não reatualize outros”

(FAIRCLOUGH, 2008, p. 133). As escolhas feitas por José de Alencar ao estruturar o

enredo do romance em torno de uma caça ao tesouro, e ao esboçar um script de visão

do paraíso, para construir o espaço especial habitado pelo herói no fim da obra, são

sugestivas para um leitor com algum conhecimento da história do Brasil, pois, como diz

Fairclough, citando Kristeva, a intertextualidade implica “a inserção da história

(sociedade) em um texto e deste texto na história” (2008, p. 134).

A caracterização do espaço habitado pelo herói (em termos de Avaliatividade,

toda a descrição é marcada por Afeto, Apreciação e Avaliação Social positivos) é feita

com a justaposição de elementos lexicais mais ou menos precisos semanticamente.

Embora se faça referência a uma localidade próxima à cidade do Salvador (“Baía de

Camamu”) e à natureza típica circundante, a presença de um script de visão do paraíso

(cujos elementos são: natureza vigorosa, clima ameno, canto de pássaros, eterna

primavera, ausência de necessidades materiais, juventude e beleza viçosa dos amigos,

forma da habitação do herói)4, faz desse espaço um lugar mítico idealizado. De fácil

acesso ao leitor, como deve ser um script ou roteiro cultural (CHANG; MEHAN, 2006), a

casa-ilha-coração, às margens do rio-comunidade, a um tempo natural e sobrenatural,

vincula o herói à comunidade e, ao mesmo tempo, coloca-o num outro mundo, onde os

seus valores – que vimos sendo construídos nas duas primeiras análises deste

trabalho, e que são confirmados nesta terceira – se realizam plenamente.

4 Veja-se a respeito Sérgio Buarque de Holanda, “Visão do paraíso”, especialmente as páginas 245-6 da edição referida.

98

Trazendo para outro contexto uma frase de Sérgio Buarque de Holanda (2002, p.

4), que a utiliza ao se referir a pensadores do século XVII (tempo da narrativa de As

Minas de Prata): José de Alencar não pode ser contado entre aqueles que “não hesitam

em ataviar, idealizar ou querer superar a qualquer preço o espetáculo mundano.” O seu

herói não logra mudar as relações sociais existentes no mundo representado na obra:

continuam a existir a fidalguia de linhagem, os privilégios de raça, a cobiça e os lugares

sociais privilegiados. Porém, em sua aventura, constrói valores como o amor, a

religiosidade, a fidalguia de caráter, e, sobretudo, constrói a dignidade para o homem

brasileiro comum, mestiço e modesto. Passando a um outro mundo, à sua edênica

casa-ilha-coração, à margem do rio-comunidade e da própria vida, o herói é proposto

como um modelo moral, um ideal.

O processo de idealização envolve, portanto, a construção do herói,

personificação de valores tidos como ideais, e a sua proposição à comunidade, como

ideal moral. Para Fairclough, o discurso é socialmente construtivo, e constitui sujeitos e

relações sociais, sistemas de conhecimento e crença. (2008, p. 58). Falar de

idealização em As Minas de Prata – considerando os contextos situacional, cultural e

ideológico da obra - é falar de deslocamentos no processo de construção desses

sujeitos e relações sociais, no sentido da tentativa de construção de uma identidade

desejável para o povo de um país que se formava.

O estudo da microestrutura do texto, com a análise das Metafunções Ideacional

(Sistema de Transitividade) e Interpessoal (Avaliatividade), relacionadas à construção

da experiência e da interação, permite ao leitor acompanhar esse processo e formular

um juízo sobre ele, do qual juízo, como diz Fowler (1994, p. 3), pode-se,

eventualmente, discordar, mas, graças ao fato de partir de estruturas objetivas da

língua, torna-se, pelo menos, possível examinar e discutir a sua pretensão em relação

ao texto.

99

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta desta dissertação de mestrado foi empreender uma análise linguística

do processo de idealização do herói do romance As Minas de Prata, publicado pelo

escritor cearense José de Alencar, na década de 1860, no contexto cultural do

Romantismo e da independência política do Brasil. Justificou a pesquisa o interesse,

por parte do seu autor, de estudar a categoria da idealização (potencial reveladora de

aspectos da história do Brasil) a partir do exame da microestrutura do texto. O apoio

teórico-metodológico veio da Gramática Sistêmico-Funcional, da Linguística Crítica e da

Análise do Discurso Crítica; mais precisamente, foram estudadas as Metafunções

Ideacional (Sistema de Transitividade) e Interpessoal (Sistema de Avaliatividade). A

pesquisa deveria responder às seguintes perguntas: (a) Como se realiza a idealização

do herói em As Minas de Prata? (b) Que escolhas léxico-gramaticais são feitas, em

termos das Metafunções Ideacional e Interpessoal para expressar essa idealização?

Os resultados mostram que a idealização, em As Minas de Prata, é um processo

complexo que envolve não só a construção do herói, personificação de valores tidos

como ideais, mas também a sua proposição à comunidade - os brasileiros

contemporâneos do autor, e também os da posteridade, preocupação constante de

José de Alencar - na forma de um ideal moral. As escolhas léxico-gramaticais feitas

para construir a experiência do herói (Metafunção Ideacional) e avaliá-la (Metafunção

Interpessoal) são fundamentais para a construção do processo de idealização pelo

autor, e para a sua compreensão pelo leitor.

Segundo Fowler (1994, p. 22), “o papel que as estruturas linguísticas

desempenham na literatura é uma função das relações entre a construção textual e as

condições sociais, institucionais e ideológicas da sua produção e recepção”. Em seu

desejo de construir uma identidade para os brasileiros no momento da formação do seu

país, José de Alencar, cuja vida “era uma perpétua oficina” (Machado de Assis apud

VIANA FILHO, 2008, p. 399), propõe-se a construir, por meio do seu herói idealizado,

uma dignidade para o brasileiro comum, mestiço e modesto; e, em oposição à fidalguia

de linhagem, aos privilégios de raça, à ambição e à cobiça, propõe os valores da

simplicidade, do amor romântico, da religiosidade e da fidalguia de caráter como ideais.

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104

APÊNDICE

A noção de idealização

Para falar sobre a construção da idealização no romance As Minas de Prata, de

José de Alencar, adoto como ponto de partida a obra de Antonio Candido. O eminente

historiador da literatura brasileira usa em diversas passagens de sua interpretação de

obras do Romantismo brasileiro em geral, e da obra de José de Alencar em particular, o

termo “idealização”, tanto na forma do substantivo mencionado, como na dos verbos

“idealizado” e “idealizar”, ou ainda na do substantivo ou adjetivo “ideal”. Assim,

referindo-se à obra de Alencar, dirá que nela “reponta a aspiração de heroísmo e o

desejo eterno de submeter a realidade ao ideal.” (1981, vol.2, p. 224); que toda ela, “por

vinte anos, será variação e enriquecimento dessas duas posições iniciais: a

complication sentimentale [...] e a idealização heroica d’O Guarani.” (1981, vol.2, p.221);

e por fim, que ela significa, em nosso Romantismo,

“o advento do herói [...] Peri, Ubirajara, Estácio Correia (As Minas de Prata), Manuel Canho (O Gaúcho), Arnaldo Louredo (O Sertanejo) brotam como respostas ao desejo ideal de heroísmo e pureza a que se apegava, a fim de poder acreditar em si mesma, uma sociedade mal ajustada, em presa a lutas recentes de crescimento político.” (1981, vol.2 ,p.223).

A noção de idealização, nos fragmentos citados, aparece primeiramente em

oposição à de realidade; e, na sequência, associada à constituição do herói na obra de

José de Alencar, o que implica uma relação com os valores que esse herói representa.

Na obra de Antonio Candido, o termo idealização aparece a par de outros que a

ele se referem, tais como aspiração, anseio, imaginação, fantasia, sonho e fuga – a

esse respeito, ver principalmente o texto “Os três Alencares” (1981, vol.2, p.221-235) -;

em contraposição aos termos realidade, realismo, documento e documentário. No

entanto, o autor sugere que não se deve, em se tratando de literatura, entender

idealização apenas como fuga ao real, ou como simples oposição à fidelidade realista,

mesmo porque, em sua concepção, “não há literatura sem fuga ao real, e tentativas de

transcendê-lo pela imaginação” (1981, vol.1, p.27). A literatura, que é “uma das

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modalidades mais ricas dessas formas de sistematizar a fantasia” (2002, p.81), constrói

as suas obras nesta tensão: se o romancista “é incapaz de reproduzir a vida, seja na

singularidade dos indivíduos, seja na coletividade dos grupos” (2011, p.67), por sua vez

“a imaginação nunca é livre como se supõe” (2011, p.68).

O sentimento de realidade na obra de literatura não depende da sua adesão ao

real (2011, p.66), mas da coerência interna da obra; da organização dos seus

elementos nasce o sentimento de verossimilhança (o parecer com o real) (2011, p.75).

Assim, o que se chama normalmente de inverossímil – muito frequente no romance

heroico de Alencar – é, segundo Antonio Candido, perfeitamente verossímil, desde que

esteja em acordo com a proposta da obra. Inverossímil de verdade seria a incoerência,

o desajuste de uma parte com a proposta do todo (2011, p.76). A verdade da obra

literária é convencional (1993, p.123) e, sendo assim, a aparente inverossimilhança não

é suficiente para explicar a noção de idealização. Não obstante, para Antonio Candido,

a realidade na obra de literatura pode aparecer “mais ou menos elaborada,

transformada, modificada” (2011, p.69), segundo a concepção, a tendência estética e

as possibilidades criadoras do escritor. No caso de José de Alencar, os seus romances

indianistas “parecem baseados no trabalho livre da fantasia, a partir de dados

genéricos, o que se coaduna com a orientação romântica” (2011, p.70). Nos seus

romances heroicos, entre os quais está As Minas de Prata, “o sonho voa célere sem dar

satisfação à vida, a que se prende pelo fio tênue, embora necessário, da

verossimilhança literária” (1981, vol.2, p.223). A fuga ao real, portanto, pode ser

entendida, quando muito, como um aspecto do que Antonio Candido chama de

idealização, não sendo suficiente para explicar a noção em sua complexidade.

Já ficou dito que a idealização, na visão de Antonio Candido, é feita da matéria

dos sonhos, da aspiração, da fantasia. Espalhadas por sua obra, há uma série de

expressões igualmente relacionadas à noção de idealização, as quais podem ajudar a

entender a já referida relação entre a idealização e o advento do herói na obra de José

de Alencar. Assim, Antonio Candido dirá que José de Alencar concebe o romance como

“uma visão lírica da realidade [...] oferecendo-nos, portanto, uma realidade idealizada”

(1973, p.256-57); que o indianismo é uma “transfiguração do aborígene” (2007, p.50), e

que a sua importância histórica e psicológica se deve ao fato de ter “idealizado com

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arbítrio” (2007, p.50), satisfazendo, dessa maneira, “a necessidade que um país jovem

e em grande parte mestiço tinha de atribuir à sua origem um cunho dignificante” (2007,

p.50): são os românticos do XIX que dão aos índios o “retoque decisivo” (2007, p.50),

“assimilando-os ao cavaleiro medieval, embelezando os seus costumes, emprestando-

lhes comportamento requintado e suprema nobreza de sentimentos” (2007, p.50), em

suma, consolidando o seu papel de “elemento simbólico da pátria” (2007, p.50); por fim,

do nacionalismo artístico que marca a literatura brasileira de meados do século XIX, à

época em que Alencar escreve, dirá que exigiu dos vários setores da vida mental e

artística “um esforço de glorificação dos valores locais” (1981, vol.1, p.27).

A idealização, nos fragmentos citados, aparece como o processo que preside à

construção do romance heroico de Alencar. Consiste em transfigurar ou metamorfosear

(a natureza, os fatos, os conflitos, o cotidiano, a realidade da terra, o real, a vida) -

Antonio Candido usa também, em pelo menos três passagens de sua obra, a ideia de

deformar: assim, dirá que o indianismo operou uma “deformação cavalheiresca” nos

selvagens (2002, p.44), ou que sujeitou a nossa realidade a uma “deformação

bovarista” (1973, p.251); ou ainda que a ideologia do nativismo representou “a

formação do sentimento de apreço pelo país e a tendência para compensar as suas

lacunas por meio da deformação redentora” (2007, p.30). Essa transfiguração, ou

deformação, ocorre numa direção determinada, que pode ser mais bem entendida se

atentarmos às ações referidas nas passagens citadas: assimilar, emprestar, embelezar,

retocar, enobrecer, glorificar; em suma, tornar símbolo, por meio de uma visão lírica da

realidade, num processo de idealização. A resultante do processo é o herói alencariano,

os “admiráveis bonecos da imaginação”, no dizer do Antonio Candido (1981, vol.2,

p.224), que também os chama de “imaculados Parsifais, puros, inteiriços, imobilizados

pelo sonho em meio à mobilidade da vida e das coisas” (1981, vol.2, p.223). Esse herói

é marcado pelo “esquematismo psicológico” (1981, vol.2, p.232), na medida em que

sua moralidade, sua ação e sua presença se reduzem à expressão de certos valores –

no caso de Estácio Correia, o herói de As Minas de Prata, os valores são, entre outros,

beleza física, coragem, destreza bélica, pureza e nobreza de caráter, honradez a toda

prova, lealdade, culto à pátria, religiosidade, culto à imagem paterna, amor, e desejo de

ser grande na sociedade.

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Na obra de Antonio Candido, portanto, a noção de idealização engloba o aspecto

de fuga da realidade, mas vai além, apresentando-se também como processo

construtivo que opera com transfiguração ou deformação da realidade, principalmente

no sentido de elevar e glorificar valores, constituindo, desse modo, a imagem do herói,

personificação desses valores e pretendente a símbolo da comunidade que o gerou. A

idealização, por conseguinte, diz respeito a certas escolhas nas quais se mostram

certas coisas ao mesmo tempo em que se ocultam outras, o que explicita a sua

natureza ideológica; a constituição linguística dos valores é o aspecto que nos interessa

particularmente neste trabalho. Segundo Antonio Candido, “enredo e personagens

exprimem, ligados, os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os

significados e valores que o animam.” (2011, p.53-54); considerando a relação existente

entre idealização e valores no romance heroico de Alencar, nota-se que a idealização é,

ao cabo, um modo de ver a vida, que se propõe ao leitor na linguagem encantatória –

“sistematizadora da fantasia” - do romance. O próprio Antonio Candido lembra que “a

personagem é, basicamente, uma composição verbal, uma síntese de palavras,

sugerindo certo tipo de realidade” (2011, p.78), daí o nosso interesse em analisar a

contribuição de certas estruturas linguísticas - os Processos Verbais e os recursos que

compõem a Avaliatividade – para compreender a construção da idealização em As

Minas de Prata, de José de Alencar.