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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC - SP Jésus de Lisboa Gomes Democracia na era do desencanto: Dispositivos de surveillance da Administração Pública pela sociedade - um estudo de caso das Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo. DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS São Paulo 2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Jésus de Lisboa Gomes

Democracia na era do desencanto:

Dispositivos de surveillance da Administração Pública pela sociedade - um estudo de caso

das Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

São Paulo

2014

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Jésus de Lisboa Gomes

Democracia na era do desencanto:

Dispositivos de surveillance da Administração Pública pela sociedade - um estudo de caso

das Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo.

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para obtenção do título de

Doutor em Ciências Sociais, sob a orientação da

Professora Doutora Noêmia Lazzareschi.

São Paulo

2014

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à professora Noêmia por ter me acolhido como aluno

ouvinte em sua disciplina sobre o pensamento de Max Weber. Mais do que me permitir assistir

as suas aulas, incorporou-me ao grupo de alunos, eliminando qualquer diferença entre mim e os

alunos já efetivados. Foi ela quem me estimulou a tentar ingressar oficialmente no programa,

participando do processo seletivo. Nesses anos de convivência, ela foi bem mais do que uma

orientadora. Ela foi minha inspiradora, sobretudo pela maneira como leu, corrigiu e criticou tudo

que escrevi. A cada seção de orientação, eu saía com muito mais trabalho e, também, com muito

mais energia. Se mais não fiz, isso se deve exclusivamente às minhas muitas limitações. Além de

orientadora, eu encontrei nela um ser humano extraordinário, quem me acompanhou em um dos

momentos mais turbulentos da minha vida profissional, condição na qual ela não se limitou em

torcer, mas se ocupou, também, em me aconselhar.

Agradeço ao grande amor da minha vida, minha mulher, Adriana Aparecida da Costa

Gomes. As longas horas em que passei estudando, em meu escritório, só eram interrompidas pela

sua doce presença para me oferecer afeto e encorajamento. Jamais para reclamar.

Agradeço à PUC (e também, mais uma vez, à Professora Noêmia) por aceitar meu

ingresso no Programa de Doutorado em Ciências Sociais, apesar da minha idade, à época já bem

perto dos cinquenta anos, depois do fato de uma renomada escola especializada em

Administração Pública ter me rejeitado por considerar que eu estava com a idade

demasiadamente avançada.

Agradeço ao CEPAM, empresa do Governo do Estado de São Paulo, onde trabalho

desde 1984. Quando lá cheguei, aos 24 anos, tinha apenas o ensino primário. Ela participou de

todo o meu processo de crescimento, inclusive auxiliando-me financeiramente, com o pagamento

de um percentual razoável das mensalidades.

Agradeço aos participantes da pesquisa, que aceitaram com entusiasmo compartilhar

suas experiências e conhecimentos, concedendo-me generoso tempo de suas disputadas agendas.

Considerando o tempo das entrevistas, as trocas de e-mails e telefonemas, alguns dedicaram a

mim mais de 10 horas. Por isso, como forma de gratidão, nomino-os aqui: Adriana Eugênia

Alvim Barreto (Ouvidora da UNICAMP), José Luiz Silveira (Diretor do Centro para

Manutenção de Equipamentos da UNICAMP), Elza Ferreira Lobo (Ouvidora da Secretaria da

Saúde), Dr. Sérgio Antônio Bastos Sarrubo (Diretor Técnico do Hospital Infantil Darcy Vargas),

Florêncio dos Santos Penteado Sobrinho (Ouvidor da Secretaria da Fazenda), Rúbens Peruzin

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(Diretor do Departamento de Despesa de Pessoal do Estado da Secretaria da Fazenda), José De

Ambrosis Pinheiro Machado (Ouvidor do Poupatempo/PRODESP), Ilídio San Martin Machado

(Superintendente de Novos Projetos do Poupatempo), Vera Melo (Ouvidora do DETRAN) e

Janio Loyola (Diretor de Atendimento do DETRAN).

Agradeço ao advogado Édson Vismona (Presidente do Conselho de Transparência e ex-

Secretário de Justiça do Estado de São Paulo) pela excelente entrevista que me concedeu, na qual

explicou-me as preocupações do ex-Governador Mário Covas quando criou a rede de

Ouvidorias.

Agradeço ao Álvaro Gregório, da área de Inovação em Governo, da Secretaria de

Planejamento e Desenvolvimento Regional, pelas muitas conversas e discussões inspiradoras que

compartilhamos, fornecendo-me excelentes insights para muitas reflexões.

Agradeço ao meu irmão do coração, César Guimarães. Ele esteve tem estado comigo

em todos os momentos da vida e em todas as batalhas. Não foi diferente com este trabalho: leu,

criticou, cutucou, sugeriu, inspirou. Não fosse ele um anarquista convicto, não seria pouco o que

eu teria que lhe pagar.

Agradeço ao Hamilton Apolinário (IBM Brasil) pelas muitas conversas inspiradoras e

aos meus colegas de trabalho, Levi Cardoso da Cruz e Guilherme Conte Jakovac, pelo apoio

incondicional que me deram em todos esses anos.

Agradeço à Nádia (Ouvidora da Secretaria de Gestão Pública), por se colocar sempre à

disposição para me ajudar e à Maria Inês Fornazaro, Ouvidora Geral do Estado, pelas conversas

estimulantes, pela confiança e pelas portas me ajudou a abrir.

Agradeço à professora Danielle Lima pelo cuidadoso trabalho de revisão empreendido e

por ter estado sempre à minha disposição.

Finalmente, agradeço aos professores com os quais convivi durante o Programa de

Doutorado em Ciências Sociais da PUC: Noêmia Lazareschi me desasnou no campo da

Sociologia, fazendo-me, pela primeira vez, compreender o pensamento de Weber. O professor

Miguel Chaia me proporcionou momentos de crescimento inesquecíveis, inspirando-me no seu

curso de Política Básica. Após assistir às suas aulas e discutir alguns dos principais clássicos da

Ciência Política, fiquei ‘excitado’ e, após conversar com a Profa. Noêmia, até o título da minha

tese mudou. Com o professor Wanderley pude discutir a Reforma do Estado no Brasil. Ele

chamou minha atenção para a necessidade de incluir esse assunto no meu trabalho de tese.

A todos, muito obrigado.

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À minha mãe, Ana Luíza Moreira.

Ao meu pai, Antônio de Lisboa Gomes.

Aos meus filhos, Luíza, Lívia, Gabriel e Lucas.

Ao meu grande amor, Adriana Aparecida da Costa Gomes.

À Maria Helena Necchi, no coração de quem eu renasci aos 22 anos.

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“L’État modérne ne peut vivre sans un exécutif fort, mais l’exécutif n’est jamais fort, s’il ne se

plie pas aux exigences du gouvernement d’opinion. L’administration doit donc être sensible aux

aspirations des citoyens, qu’elle ne peut connaître que par une ouverture constante vers

l’extérieur. Il est nécessaire qu’un courant d’air vienne soulever les poussières des bureaux et en

renouveler les horizons”.

André Legrand, L’Ombudsman Scandinave, 1970.

“L’idéal démocratique règne désormais sans partage, mais les régimes qui s’en réclament

suscitent presque partout de vives critiques. C’est le grand problème politique de notre temps.

L’érosion de la confiance des citoyens dans leurs dirigeants et dans les institutions politiques”.

Pierre Rosanvallon, La contre démocratie, 2006.

“Onde não está o governo, entra o crime. Onde o crime não está enraizado na sociedade, entra

o mau político. Governo omisso é escola de maus políticos. E o mau político é o Ouvidor 24

horas, enquanto ele não se elege”.

Álvaro Gregório, da área de Inovação em Governo da Secretaria de Planejamento e

Desenvolvimento Regional, em depoimento ao pesquisador em 2013.

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RESUMO

A soberania popular é a característica definidora da democracia. O princípio de que o

povo é a única fonte legítima de poder no governo democrático, reconhecido como autoevidente

desde as primeiras revoluções liberais, incorporou-se à democracia brasileira com a sua

introdução entre as cláusulas pétreas da Constituição de 1988. Entretanto, a democracia não é

obra acabada. A ascensão e morte contínuas de determinados valores levam a constantes tensões

entre as estruturas de governo e a sociedade, exigindo o aperfeiçoamento e mesmo a invenção de

novos dispositivos de legitimação. Por isso, o processo eleitoral como meio único e suficiente de

legitimação democrática é, hoje, vivamente contestado.

Esse é um estudo sobre as transformações essenciais observadas na democracia

brasileira, com o aparecimento de entidades de mediação das relações com a sociedade,

absorvendo no interior das estruturas governamentais a desconfiança, o desentendimento e o

desejo de participação com o propósito de reaproximar a Sociedade e o Estado para um esforço

de diálogo e construção do entendimento democrático. Seu objeto de estudo é a rede de

Ouvidorias Governo do Estado de São Paulo. Por meio de um estudo de casos múltiplos, faz-se a

descrição e a análise dessa rede de proteção e defesa dos direitos dos cidadãos, com o objetivo de

colocar em evidência as suas características típicas e assim propor uma linha de ação estratégica

para a implantação e atuação de Ouvidorias Públicas com foco na valorização da cidadania e

fortalecimento do papel da sociedade no controle social do Estado.

Inicialmente, realiza-se um estudo das principais concepções de Estado, tomando como

base alguns dos mais importantes teóricos clássicos do liberalismo. As iniciativas de reforma do

Estado no Brasil são apresentadas em seus aspectos centrais. Distinguem-se quatro estágios no

processo de desenvolvimento da democracia: direta, representativa, participativa e de

surveillance. Discute-se o conceito de cidadania, dada a sua forte relação com a ação do Estado e

desenvolve-se a compreensão do Ombudsman Scandinave, apreendendo-o em seu contexto de

origem temporal e espacial. Apesar das diferenças entre as duas entidades, a suédoise serviu de

fonte de inspiração à criação do sistema paulista de Ouvidorias. Finalmente, conduziu-se um

estudo de casos múltiplos em cinco organizações públicas do Governo do Estado de São Paulo,

usando na coleta de dados a entrevista com Ouvidores e gestores, a análise de documentos, os

registros em arquivos e a observação direta.

Palavras-chave: Democracia. Surveillance. Estado. Ouvidoria. Transparência. Controle social.

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RÉSUMÉ

La souveraineté populaire c’est la caractéristique essentielle de la démocratie. Le

principe que le peuple soit la seule source légitime du pouvoir dans le gouvernement

démocratique, reconnu comme une évidence depuis les premières révolutions libérales, s’est

incorporé dans la démocratie brésilienne avec son introduction dans les clauses immuables de la

Constitution de 1988. Cependant, la démocratie n'est pas une oeuvre achevée. L'ascencion et la

mort continue de certaines valeurs conduisent à des tensions constantes entre les structures du

gouvernement et de la société, exigent le perfectionnement et même l'invention de nouveaux

dispositifs de légitimation. Par conséquent, le processus électoral comme le moyen unique et

suffisant de légitimité démocratique est aujourd'hui sérieusement contesté.

Il s'agit d'une étude sur les transformations essentielles observées dans la démocratie

brésilienne, avec l'apparition d'entités semi-autonome de médiation des relations avec la société,

en absorbant à l'intérieur des structures gouvernementales la méfiance, la mésentente et le désir

de participer, dans le but de renouer la société et l'État à un effort pour construire le dialogue et

la compréhension démocratique. Leur objet d’étude c’est le réseau de médiateurs du

gouvernement de l'État de São Paulo. Par le moyen d'une étude de cas multiples, on fait la

description et l'analyse de ce réseau de protection et de défense des droits des citoyens, afin de

mettre en évidence ses caractéristiques typiques et proposer un plan d'action pour le déploiement

stratégique et des opérations des médiateurs publics, avec l'objectif de la valorisation de la

citoyenneté et de renforcer le rôle de la société dans le contrôle social de l'État.

Initialement, on a réalisé une étude des principaux concepts d'État, sur la base de

certains des plus importants théoriciens du libéralisme classique. Les initiatives de la réforme de

l'État au Brésil sont présentées par ses aspects centraux. On distingue quatre étapes distinctes

dans le processus de développement de la démocratie: directe, représentative, participative et de

surveillance. On débat la notion de citoyenneté, compte tenu de leur forte relation avec l'action

de l'État et développe une compréhension de l'Ombudsman Scandinave, saisie dans son contexte

d'origine spatiale et temporelle. Malgré les différences entre les deux entités, la suédoise a servi

de source d'inspiration pour la création du système de médiateurs de São Paulo. Enfin, nous

avons mené une étude de cas multiples dans cinq organismes publics du gouvernement de l'État

de São Paulo, en utilisant la collecte de données avec les médiateurs et les gestionnaires, analyse

de documents, des fichiers et des observations directe.

Mots-clés: Démocratie. Surveillance. État. Médiateur. Transparence. Contrôle social.

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ABSTRACT

Popular sovereignty is the defining characteristic of democracy. The principle that

people are the only legitimate source of power in a democratic government, recognized as self-

evident since the first liberal revolutions, was incorporated into Brazilian democracy with its

introduction on the foundation stones of the 1988 Constitution. However, democracy is not a

finished work. The continuous rise and death of certain values has lead to constant tensions

between structures of government and society, requiring improvement and even the invention of

new devices of legitimating. Therefore, the electoral process as the sole and sufficient means of

democratic legitimacy is severely contested today.

This is a study about the essential transformations observed in Brazilian democracy

with the appearance of semi-autonomous entities of relations mediation with society, absorbing

within government structures, mistrust, misunderstanding and desire of participation for the

purpose of reconnecting Society and the State in an effort to build dialogue and democratic

understanding. Its object of study is the network of Ombudsman of the Sao Paulo State. Through

a multiple cases study, a description and analysis of this network of protection and defense of the

citizenship was made in order to put into evidence its typical characteristics as well as to propose

a course of strategic action for the implementing and acting of Public Ombudsman with focus on

the recovery of citizenship and strengthening the role of society in the social control of the State.

Initially there was a study of the major conceptions of the State based on some of the

most important theorists of classical liberalism. The reform initiatives of the State in Brazil are

presented in their central aspects. There are four distinct stages in the development process of

democracy: direct, representative, participatory and surveillance. The concept of citizenship was

discussed due to its strong relationship with the State action and we have developed the

understanding of the Scandinavian Ombudsman, learning about it in its spatial and temporal

context of origin. Despite the differences between the two entities, the suédoise has served as

inspiration for the creation of an Ombudsman system for the state of Sao Paulo. Finally we have

conducted a multiple cases study in five pubic organizations of the Sao Paulo State Government

using as data interviews with Ombudsmen and managers, document analysis, records of files as

well as direct observation.

Key words: Democracy. Surveillance. State. Ombudsman. Transparency. Social control.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO......................................................................................................... 15

Metodologia da pesquisa................................................................................... 23

CAPÍTULO I: OUVIDORIA NO CONTEXTO DE UM ESTADO

DEMOCRÁTICO........................................................................................................ 34

1.1 O papel do Estado na emancipação política da sociedade.......................... 34

1.2 O imperativo de democratizar o sistema de gestão burocrática.................. 49

1.3 Estado e cidadania....................................................................................... 56

1.4 Os novos direitos do homem e o cidadão surveillant.................................. 65

CAPÍTULO II: ESTADO NACIONAL, BUROCRACIA E DEMOCRACIA......... 75

2.1 Weber e o surgimento do estado racional................................................... 75

2.2 Desenvolvimento do fenômeno burocrático............................................... 82

2.3 Os fundamentos da autoridade burocrática................................................. 84

2.4 Principais críticas ao tipo ideal de burocracia............................................. 88

2.5 A formação do Estado brasileiro e a dominação burocrática...................... 97

2.6 A versatilidade da dominação burocrática.................................................. 107

2.7 As variadas formas de democracia: direta, representativa, participativa e

de surveillance................................................................................................... 115

CAPÍTULO III: O OMBUDSMAN E AS OUVIDORIAS PÚBLICAS DO

ESTADO DE SÃO PAULO............................................................................... 129

3.1 O Ombudsman sueco, seu contexto e desenvolvimento............................. 129

3.2 As Ouvidorias Públicas do Estado de São Paulo........................................ 151

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CAPÍTULO IV: A PESQUISA.................................................................................. 160

4.1 Considerações gerais sobre a execução da pesquisa de campo................... 160

4.2 Caracterização dos sujeitos participantes da pesquisa................................ 161

4.3 As entrevistas.............................................................................................. 164

4.3.1 Função das Ouvidorias Públicas....................................................... 164

4.3.2 Motivos pelos quais os cidadãos recorrem às Ouvidorias................ 172

4.3.3 Formas de atuação do Ouvidor e tratamento das manifestações....... 188

4.3.4 Poder e autonomia do Ouvidor ......................................................

4.3.5 Fundamento racional do atendimento nas Ouvidorias......................

4.3.6 A importância estratégica das Ouvidorias........................................

4.3.7 As Ouvidorias e o controle social da administração.........................

4.3.8 Expectativas em relação ao trabalho dos Ouvidores........................

4.3.9 Avaliação da eficácia do trabalho das Ouvidorias.............................

4.3.10 Competências necessárias ao Ouvidor...........................................

197

202

209

215

225

229

234

4.4 Análise das entrevistas................................................................................ 243

CONSIDERAÇÕES GERAIS................................................................................... 249

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 262

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LISTA DE TABELAS.

Tabela 1 - Solicitações de informações recebidas no SIC/Governo do Estado de

São Paulo ...................................................................................................................

72

Tabela 2 - Solicitações recebidas na Ouvidoria (primeiro semestre 2013) ............... 173

Tabela 3 - Reclamações recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a

30/06/2013) ...............................................................................................................

176

Tabela 4 - Sugestões recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a

30/06/2013) ...............................................................................................................

178

Tabela 5 - Elogios recebidos no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a

30/06/2013) ...............................................................................................................

180

Tabela 6 - Denúncias recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a

30/06/2013) ...............................................................................................................

183

Tabela 7 - Expressões livres recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a

30/06/2013) ...............................................................................................................

185

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LISTA DE QUADROS

Quadro 01 – Roteiro de entrevistas com os Ouvidores ............................................. 32

Quadro 02 – Roteiro de entrevistas com os gestores ................................................ 32

Quadro 03 - Os Quatro Setores do Estado ................................................................ 53

Quadro 04 - Dominação tradicional e moderna ........................................................ 106

Quadro 05 – Categorias de análise dos dados empíricos .......................................... 161

Quadro 06 - Prazos para elaboração e entrega de relatórios gerenciais .................... 196

Quadro 07 – Fundamentos racionais do atendimento nas Ouvidorias...................... 202

Quadro 08 - Órgãos que integram a CCISP .............................................................. 235

Quadro 09 - Principais competências necessárias ao Ouvidor .................................. 236

Quadro 10 - Comparação não exaustiva entre o Ombudsman e a Ouvidoria ........... 253

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15

INTRODUÇÃO

A burocracia se impõe cada vez mais como princípio abstrato de coordenação nos

grandes Estados, ao mesmo tempo em que se fragiliza em sua capacidade de acolher as

demandas do cidadão concreto. Independente dos fundamentos do sistema econômico e da

orientação ideológica dos governantes, a burocracia tem se mostrado eficiente como maquinaria

técnica de dominação. No Brasil, as práticas patrimonialistas, solidamente enraizadas na cultura

de gestão pública, fornecem argumentos para aqueles que a defendem e contribuem para

silenciar grande parte de seus inimigos, que, em geral – e paradoxalmente –, reclamam mais

burocracia para combater a burocracia.

Tanto o volume de regras, quanto o número de agências autorizadas a produzi-las não

cessa de crescer, incluindo-se a cada dia agentes não legitimados em processos eleitorais, mas

investidos de poder para elaborar e aplicar regulamentos. Sob o nobre e irrefutável argumento de

proteger os altos interesses da sociedade, combatendo o fisiologismo, o patrimonialismo, o

clientelismo e o favoritismo, a burocratização avança em todas as áreas da vida moderna.

A regulamentação burocrática se dá, sobretudo, no nível abstrato, mediante a elaboração

de normas gerais. Não é necessário nem possível regulamentar cada caso especial, procurando

compreendê-los nas suas peculiaridades. Dada essa dificuldade, uma norma sempre procura

cobrir a totalidade ou ao menos à maioria dos casos, decorrendo desse desafio o seu caráter

necessariamente genérico. Quanto mais ela se mostra capaz de cumprir esse propósito de

maneira impessoal e no nível macro – o nível da sociedade abstrata –, maior é a sua

possibilidade de entrar em conflito com a realidade do cidadão concreto, cujos problemas podem

ser particulares, específicos e pessoais. Certamente, todo cidadão tem interesse em um governo

que faça grandes coisas pelo seu Estado e pelo seu país, mas ele também se mostra a cada dia

mais interessado em um governo que conserte o buraco da sua rua, que construa uma escola

próxima à sua casa, que faça um hospital no seu bairro, que melhore o transporte público da sua

cidade.

Além de um conjunto de regulamentos formais, caracteriza os sistemas burocráticos

massificados a existência de um quadro administrativo profissional encarregado da interpretação

e da aplicação do aparato de normas. No Brasil esse quadro administrativo é ironicamente

denominado de servidores públicos – designação que pouco explica a condição de dominação

que de fato exerce.

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O principal critério que rege a conduta desse quadro de profissionais é a aplicação dos

regulamentos formais de modo impessoal, classificando os casos particulares de acordo com a

norma abstrata geral. Ao focalizar o geral, a burocracia é levada a concentrar toda sua atenção na

norma, a qual passa ao centro da cena, ocupando o lugar do cidadão. Daí emergem os conflitos

entre as organizações públicas e os cidadãos usuários de serviços públicos.

Max Weber (1982) expressava o temor de que o processo de burocratização crescente

viesse a se tornar no futuro uma forte ameaça às liberdades individuais. Ele, certamente, referia-

se à contradição que se observa entre o indivíduo soberano e as organizações burocráticas, entre

o cidadão concreto, senhor de direitos e a norma burocrática genérica e abstrata.

Os defensores da burocracia dizem – com evidente dose de razão – que na ausência dos

sistemas burocráticos as grandes sociedades de massa tornar-se-iam ingovernáveis. Uma

condição em que se permitisse a cada um a plena liberdade para decidir como agir em cada

situação, sem mecanismos externos de contrainte, possivelmente, tornaria impossível a

coordenação da vida coletiva, obtendo como resultado concreto, provavelmente, algo bem

diverso daquilo que se buscava. Ou seja, em vez de se implantar a liberdade no plano individual,

ao contrário, o que se conseguiria seria a sua destruição no plano coletivo.

Antes mesmo que os sistemas burocráticos mostrassem às modernas sociedades de

massa a sua engenhosidade aparentemente incontornável, a democracia em seu sentido original

desmoronava. Destituída de seu sentido stricto, a democracia renasceria de seus próprios

escombros, então, fazendo-se acompanhar de uma adjetivação: ‘democracia representativa’.

Morta a democracia da voz direta, ela seria, agora, a democracia exercida por meio da voz do

outro, legitimada por meio do escrutínio eleitoral. Lado a lado desenvolveram-se as democracias

representativas e os sistemas burocráticos impessoais. É natural, portanto, que ambas sofram

juntas tantas contestações na sociedade atual. Nada talvez expresse, de maneira mais cabal, uma

característica da sociedade brasileira nesses primeiros anos do século XXI, do que a erosão da

credibilidade nas instituições burocráticas e no sistema democrático representativo.

A democracia se forjou no combate aos privilégios, dando forma aos sistemas

burocráticos impessoais de coordenação, desenvolvendo-se sinergicamente no transcurso dos

séculos XIX e XX, criando a estabilidade requerida para o desenvolvimento da sociedade

industrial, baseada na produção em massa. Onde se requereu a edificação de estruturas

‘desumanizadas’ de coordenação da vida coletiva, a burocracia mostrou sua eficácia como

estratégia de dominação, transcendendo as fronteiras das sociedades capitalistas. Assim, seu

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triunfo não foi menor nos países do leste europeu, no processo de formação do bloco de

economias socialistas.

Na concepção de Weber (2000), tipicamente, no topo da hierarquia do Estado,

dirigindo-o, deveria ser colocado o elemento político. Desse elemento, não se deveria exigir

nenhuma qualificação técnica como critério de admissão. Dele se espera a disposição para a luta

política, o compromisso com o seu sonho e a responsabilidade para tomar decisões e fazer

escolhas. Na base dessa organização, para executar as funções do Estado, deveria ser admitido o

funcionário tecnicamente qualificado e treinado na disciplina da obediência às normas e aos

regulamentos. Entretanto, o próprio Weber nega haver uma completa separação entre os

funcionários que decidem – o elemento político – e os que obedecem. Weber (2000, p. 543)

esclarece:

A diferença reside, apenas em parte, na natureza da atuação esperada. As

capacidades de decisão e de organização, conforme suas próprias ideias, são

qualidades exigidas (...) tanto dos funcionários quanto dos dirigentes. (...) A

diferença reside na natureza da responsabilidade do primeiro e do segundo.

Espera-se que o funcionário execute o seu trabalho de acordo com os regulamentos e a

ordem dada, cumprindo honestamente os seus deveres. O político precisará, muitas vezes,

recorrer a compromissos, decidindo e sacrificando o menos importante. A luta pelo próprio

poder e pela responsabilidade decorrente constitui o elemento vital na natureza das atividades do

dirigente político. Assim, diante da insistência de um superior, cabe ao funcionário executar

mesmo uma ordem equivocada, após ter apresentado ao superior as suas objeções (WEBER,

2000), pois, ante a insistência do superior, é dever e honra do funcionário executar a ordem como

se fosse a sua própria convicção pessoal. No entanto, um líder político que assim se comportasse

mereceria a execração.

Entretanto, Weber (1999, v. 2) considera falsa a ideia muitas vezes difundida de que o

funcionário se limita a cumprir tarefas subalternas rotineiras e que somente o dirigente realiza os

trabalhos atraentes, que requerem o emprego da capacidade intelectual. Na verdade, quanto mais

um funcionário estiver atuando na base da pirâmide organizacional, próximo às pessoas que

utilizam os serviços da organização, menor tende a ser o seu poder de decisão. Diferente é o que

ocorre com o funcionário que participa da alta burocracia, cuja natureza do trabalho aproxima-se

daquela do trabalho realizado pelo dirigente político, embora jamais possa chegar a constituir a

mesma coisa, dado que os estímulos, critérios de recrutamento, avaliação e de demissão são

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muito distintos. Entretanto, quanto mais o funcionário pertencer ao quadro dirigente

administrativo, mais poder de discricionariedade ele terá, devendo, portanto, dentro de

determinadas diretrizes emanadas do elemento político, tomar certas decisões.

Evidentemente, isso sempre introduz um risco concreto para os objetivos da burocracia

que procura dar um tratamento padronizado a qualquer tarefa, transformando tudo quanto puder

em uma grande linha de produção em massa, buscando o nivelamento. Na base da organização,

dada a natureza supostamente previsível das tarefas, essa padronização e nivelamento são

assegurados pelos regulamentos e pelos procedimentos. Entretanto, dado que a alta burocracia

lida também com questões imprevisíveis, as quais não podem ser previamente estruturadas, em

vez da padronização por meio de normas, o que se procurará padronizar será o elemento

burocrático, selecionando-o de acordo com um conjunto de características e valores desejáveis

para a realização do seu trabalho – desejável, evidentemente, segundo a visão de quem o

seleciona. Essa condição é válida para qualquer alto funcionário burocrático. Mas, variações

específicas na natureza dessas características podem ser encontradas de acordo com a função

desempenhada, a cultura organizacional e os fatores políticos.

A burocracia tornou operacionais as democracias de massa e as democracias de massa

impulsionaram a consolidação da maquinaria burocrática. Difícil seria contestar hoje em dia a

relevância estratégica que essas descobertas tiveram para impulsionar o progresso científico,

social e tecnológico. Entretanto, reconhecer a magnitude desses sistemas no passado e a sua

razoável necessidade ainda no presente, não significa ignorar a desilusão com os sistemas

democráticos representativos nem o desconforto com as estruturas burocráticas na sociedade

contemporânea. Desilusão e desconforto que atualmente adquirem feições de crises agudas.

O enfraquecimento da credibilidade nos sistemas clássicos faz emergir, a cada dia,

pressões sobre os governos pelo estabelecimento de espaços de valorização da cidadania, por

meio dos quais, os cidadãos possam observar o que se passa no interior das estruturas das

organizações do Estado e participar do esforço de construção do bem comum. Em seu conjunto,

essas pressões indicam um forte desejo pela instauração de mecanismos de democracia direta,

como uma busca pela correção dos equívocos trazidos pela democracia representativa.

Aceitando-se como fato incontornável o processo de burocratização das sociedades de

massa, como, então preservar espaços para o exercício da liberdade individual? A resposta

encontrada nas sociedades de tradição democrática parece ter sido a abertura de ‘janelas’ nas

paredes herméticas dos sistemas burocráticos. Nessas sociedades, de um lado, à medida que tais

sistemas ampliaram a sua influência, de outro, a cidadania foi impondo-lhes limites ao exercício

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do seu poder, exigindo que eles se plient à vontade geral, refreando o seu apego ao segredo e

impondo-lhes uma responsável e tempestiva prestação de contas. As Ouvidorias Públicas do

Governo do Estado de São Paulo se inserem nessa perspectiva, sendo uma promessa de criação

de um espaço institucional de diálogo e participação, abrindo uma porta por meio da qual o

cidadão poderá penetrar nas ‘paredes de ferro’ da burocracia, seja para influenciar o seu

funcionamento ou simplesmente ‘espiar’ o que se passa no seu interior, podendo reduzir a

assimetria de informações entre a sociedade e o Estado.

Trata-se de entidades cuja existência justifica-se no contexto de um sistema democrático

liberal, cujo fundamento filosófico é o de que a sociedade deve controlar o Estado, instituição de

coordenação da vida coletiva, fundado com o precípuo objetivo de proteger a todos da mesma

maneira e preservar aquilo que é do interesse comum. Embora possuam características próprias e

nítidas diferenças quanto à estrutura e aos níveis de autonomia do Ombudsman sueco, foi essa

instituição que lhe serviu de inspiração original. O Ombudsman sueco foi criado em 1809, no

curso de um processo revolucionário, em que o Parlamento buscava a implantação de meios para

o exercício de um melhor controle das ações do Rei.

Quais são as características institucionais do sistema de Ouvidorias do Governo do

Estado de São Paulo? Em que contexto elas emergem e como seus processos de trabalho se

relacionam com o sistema de gestão, introduzindo na organização a voz do cidadão, de forma a

estimular o diálogo – e o desentendimento democrático - como imputs para a mudança planejada

de acordo com as expectativas e necessidades da sociedade?

O sistema de Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo constitui o objeto de

estudo desta pesquisa. Inicialmente, far-se-á a descrição e análise desse sistema, apresentando as

características que o tipificam, sua estrutura, processos e valores que norteiam o seu

funcionamento, com o objetivo final de discutir e propor uma estratégia para a implantação e

atuação das Ouvidorias Públicas, cuja racionalidade se baseie na valorização da cidadania e no

fortalecimento do papel da sociedade no controle da Administração Pública.

A Lei n. 10.294/1999 estabeleceu como direitos básicos dos cidadãos usuários de

serviços públicos o acesso à informação, a qualidade na prestação do serviço e o controle

adequado desses serviços. Contudo, mais do que reconhecer direitos, uma verdadeira cidadania

exige que tais direitos sejam eficaz e plenamente assegurados. Por isso, ao lado da definição dos

direitos foram criadas as ouvidorias públicas, que formam o núcleo central do Sistema Estadual

de Defesa do Usuário de Serviços Públicos (SEDUSP). Sabe-se, entretanto, que declarar direitos

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é sempre mais fácil do que realizá-los de fato, mesmo quando se criam estruturas específicas

com esse propósito.

Pensadores de orientações ideológicas tão distintas, como Max Weber e Jacques

Rancière, colocam-se de acordo quando se discute as dificuldades de democratização das

estruturas burocráticas governamentais. Weber (1999, v. 2) as via como estruturas

desumanizadas, que tendiam ao enclausuramento, procurando proteger seus sistemas internos

das influências do ambiente externo. O fechamento como autoproteção é uma condição essencial

para a manutenção do seu funcionamento maquinal rotineiro. Rancière (1995) entende que o

aparelho de Estado sempre tende a procurar refúgio na ordem e na rotina. Para ele, a política é

algo que se desenrola no seio da sociedade, guiada pelo conflito, pelo dissenso e pelo constante

desejo de mudanças, fatores que são perturbadores da ideologia burocrática.

Diante da tendência irrefreável à burocratização, no seu tempo, Weber (1999, v. 2), já

indagava como seria possível resguardar espaços de liberdade para a ação individual, para tornar

possível a democracia, ainda que de forma limitada. Weber pensava em um tipo de funcionário

cuja responsabilidade o fizesse diferente dos demais. Para Weber, no Estado, esse funcionário

era o político eleito. Nessa pesquisa recorre-se à analogia de Weber para qualificar o trabalho do

Ouvidor como algo diferente dos outros funcionários. Trata-se de um funcionário livremente

escolhido pelo dirigente político, que o distingue dos demais membros da burocracia,

incumbindo-o de dialogar com o cidadão, comprometendo-se com a defesa dos seus direitos e

com a identificação proativa de oportunidades de mudanças na organização. Neste sentido,

torna-se possível o paralelo com o pensamento de Weber, dado que a natureza do resultado que

se espera do trabalho do ouvidor não é a mesma esperada dos demais funcionários burocráticos.

Em outras palavras, espera-se que o ouvidor oriente-se por uma lógica oposta à que é

regularmente adotada pelo aparelho burocrático, atuando internamente como um agente de

transformação, abrindo espaços na organização para a absorção de pressões vindas de fora dos

seus sistemas internos, para que ela se torne permeável e reoriente a sua ação a partir dos

estímulos recebidos da sociedade, ou seja, do ambiente externo.

Contudo, inseridas nas estruturas de poder burocrático, as ouvidorias também podem

adotar uma trajetória distinta da que lhe é concebida na legislação, mais condizente com a

tradição burocrática, tornando-se parte absorvida pela cultura maquinal das organizações do

Estado. Por essa perspectiva, as Ouvidorias dedicar-se-iam, primordialmente, à justificar a ação

do Estado perante a sociedade, em vez de atuar como uma entidade que dá impulso interno à

transformação, a partir dos estímulos recebidos da sociedade.

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A democracia se expressa – ensina Rancière (1995) – entre partes que se ouvem como

iguais, instaurando a controvérsia. A ordem e o consenso cedem ao diálogo e ao

desentendimento. As Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo apresentam certas

características singulares que justificam seu estudo no campo das Ciências Sociais. Mas as

Ouvidorias não criaram a si mesmas. Elas surgem em um determinado contexto histórico. Deste

contexto, provavelmente, elas incorporam, ao menos parte de suas ideias principais, absorvendo,

também, os componentes centrais da cultura dominante. Assim, a hipótese estabelecida para esta

pesquisa é que a Ouvidoria constitui uma entidade apenas parcialmente implantada na

administração pública do Estado de São Paulo, com a sua instituição formal realizada, mas ainda

não completamente absorvida pela cultura organizacional, encontrando-se parcialmente mutilada

em seu pleno funcionamento, em decorrência dos traços que caracterizam historicamente a

gestão pública brasileira, como o autoritarismo, o insulamento, o clientelismo, o favoritismo e o

centralismo - conceitos que serão definidos e discutidos ao longo dessa pesquisa. A Ouvidoria,

tal como ela se propõe a ser, constitui, ainda, uma generosa promessa a ser realizada.

Não é necessário ir além de uma breve observação do noticiário cotidiano para constatar

o mal-estar da sociedade com a política. Idêntico mal-estar manifesta-se em relação ao governo e

ao Estado, com forte questionamento da legitimidade – e até mesmo da utilidade e da

necessidade – dos órgãos e entidades que o integram. O caráter predominante das manifestações

negativas não significa, evidentemente, que todos sejam igualmente rejeitados ou que o sejam na

mesma medida e pelas mesmas razões. Tais manifestações evidenciam, no entanto, que em seu

conjunto, essas instituições e organizações governamentais não conseguem mais cumprir

adequadamente a missão que, suposta ou declaradamente, nortearam a sua criação.

A expressão transparência e ética na política e nas relações do Estado com a sociedade,

antes pouco empregada pelo grande público, e mais reservada às discussões acadêmicas, surgiu

com força na linguagem popular cotidiana, senão como exigência prática – à qual as maiorias

recorrem para orientar a escolha dos seus representantes –, seja como um diagnóstico dos

sintomas de uma doença para a qual se considera necessário buscar a cura, ou ao menos tentar

remediar os seus efeitos devastadores sobre o tecido social.

Transcendendo as queixas de ineficiência do aparelho administrativo, de ineficácia das

políticas e projetos públicos, somam-se numerosas denúncias de corrupção. Tais denúncias

atingem não só os três Poderes da República, mas, também, os três níveis da federação. Uma

denúncia, antes mesmo de ser investigada, seus protagonistas identificados e responsabilizados,

é, invariavelmente, esquecida ao ser suplantada por outra ainda mais impactante e ofensiva ao

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senso do cidadão comum.1 Um setor público que ‘devora’ uma grande parcela das riquezas

geradas pela sociedade, e que parece destinar a maior parte desses recursos arrecadados para

custear a manutenção – e a ampliação – do seu próprio poder. Não se trata apenas de um Estado

que gasta muito, mas, principalmente, de um Estado que gasta mal os recursos de que dispõe.

Diante do mal-estar generalizado, algumas iniciativas têm sido tomadas, seja como

efeito da moda - para ‘surfar’ na onda da opinião pública -, ou como terapia com que se procura

a cura da doença. Não constituindo objetivo deste estudo descrevê-las exaustivamente, limita-se

aqui a citar que, além dos instrumentos tradicionais de controle hierárquico, do uso de conselhos

fiscais e de administração, da divisão de poderes e de responsabilidades administrativas, dos

tribunais de contas, dos mecanismos próprios do Poder Legislativo – dos quais o pedido de

instauração de investigação por meio de comissões parlamentares de inquéritos estão entre os

mais utilizados, sobretudo por partidos políticos de oposição –, têm sido instituídos novos

mecanismos de participação e dispositivos de controle, como as audiências públicas, conselhos

comunitários, corregedorias administrativas, além da obrigatoriedade de fornecer informações ao

cidadão. As Ouvidorias Públicas do Estado de São Paulo são parte desse movimento de criação

de novas estruturas de legitimação democrática.

Uma consulta realizada de forma não exaustiva aos sítios do Governo Federal na rede

mundial de computadores encontrou mais de cento e sessenta Ouvidorias em funcionamento2.

No Governo do Estado de São Paulo, por determinação da Lei n. 10.294/99, todos os órgãos e

entidades da Administração Pública as instituíram. De acordo com a Secretaria de Gestão

Pública são cerca de 260 Ouvidorias, a maioria (cerca de 130) instalada em órgãos da área de

saúde.

Embora não se tenha feito a mesma verificação para as outras unidades da federação

brasileira, essa é uma tendência que se mantém, com maior ou menor intensidade, pelo menos na

maioria dos Estados e grandes cidades.

Essa breve apresentação do crescimento da implantação de ouvidorias públicas teve o

propósito de demonstrar o surgimento de uma tendência relevante no contexto da Administração

Pública brasileira: a criação de entidades (ou áreas) às quais se atribuem oficialmente

responsabilidades específicas para atuar na representação, defesa e proteção dos direitos dos

cidadãos usuários de serviços públicos. Em seu sentido genérico de atuação, todas convergem –

1 Em 2013, o país foi classificado na septuagésima segunda posição no Corruption Perceptions Index, um ranking

realizado anualmente pela ONG Transparency International. 2 Segundo a OGU (Ouvidoria Geral da União), órgão ligado à CGU (Controladoria Geral da União), o número de

Ouvidorias ligadas ao Governo Federal passou de 40 em 2010 para 165 em 2011 – informação pessoal fornecida

pelo Ouvidor, Dr. José Eduardo Romão.

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ou deveriam convergir – para a articulação de ações institucionais visando assegurar direitos,

melhorar a transparência da gestão pública, abrir caminhos para a participação do cidadão e

aperfeiçoar os mecanismos de controle social do Estado. Contudo, poucos são ainda os estudos

científicos sobre a atuação dessas entidades. Esta pesquisa pretende contribuir para a

compreensão desse fenômeno ainda recente na estrutura do Estado e na cultura das organizações

públicas. Além de possibilitar um conhecimento dessa entidade, esta pesquisa espera contribuir

com a indicação de sugestões para melhorar a implantação e a atuação dessas entidades com

vistas à valorização da cidadania, a melhoria da transparência pública o reforço do papel da

sociedade no controle social do Estado.

Metodologia da pesquisa.

Essa pesquisa será conduzida de acordo com os pressupostos da sociologia

compreensiva de Max Weber. No entendimento de Weber (1993; 1999, v. 1) o objetivo das

ciências sociais deve ser o exercício da compreensão da realidade social. Ela deve procurar

compreender e explicar o que essa realidade tem de específico e as causas do seu

desenvolvimento, recorrendo à percepção e fazendo uso do levantamento de evidências acerca

do sentido de determinadas ações sociais.

Para Weber (1995) nem todas as ações são sociais. Além de ter um propósito, ou seja,

ser orientada para uma dada finalidade, uma ação poderá ser tipificada como impregnada de um

caráter social se for ao mesmo tempo racionalmente orientada para atingir o outro. Assim, uma

ação social deve possuir um propósito que é construído ou definido levando em conta a conduta

esperada de outras pessoas. Não caracteriza uma ação social quando, por exemplo, diante de uma

chuva forte, muitas pessoas simultaneamente abrem os seus guarda-chuvas para se protegerem.

O comportamento dessas pessoas é um ato com um propósito bem claro, influenciado pela ideia

de um fim, que é o de não se molhar. Trata-se de uma ação que pode ser compreendida no que

tange ao seu significado. Contudo, ainda que idêntica, não constitui uma ação social, na medida

em que uma pessoa, provavelmente, não leva em conta o comportamento das outras para decidir

abrir o próprio guarda-chuva (KRONMAN, 2009).

A sociologia, segundo Weber, preocupa-se somente com as ações sociais. De modo

mais direto, com determinadas ações sociais – e não com todas. Ela se ocupa diretamente

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daquelas ações sociais cuja conduta dos atores é fortemente influenciada externamente. É

preciso, então, analisar a distinção que Weber faz entre as ações que interessam à sociologia de

outros tipos de ações.

Weber classifica as ações sociais em quatro tipos distintos: a ação racional referente ao

fim pretendido, ação racional referente a valores, ação afetiva ou emocional e ação tradicional

(WEBER, 1999, v. 1). A ação racional com relação ao fim pretendido é aquela em que um

sujeito concebe um objetivo claro e organiza os meios que considera necessários para alcançá-lo.

Nessa categoria está o político que tenta conquistar um mandato, o especulador que se esforça

para ganhar dinheiro e o empresário que procura fechar negócios. Segundo Aron (2003), essa

racionalidade referente a um objetivo é definida com base nos conhecimentos do ator e não nos

do observador. Desse modo, uma ação não deixará de ser racional quando o ator reunir meios

inadequados para alcançar o objetivo intencionado devido à insuficiência ou à inexatidão dos

seus conhecimentos.

A ação racional com relação a valores é aquela que se baseia na importância do valor

em si, em que o ator age aceitando todos os riscos, como o capitão que afunda com o navio. O

agente que se comporta dessa maneira não o faz para obter um resultado, mas para se manter

coerente com a sua ideia de honra.

Weber denomina ação afetiva aquela em que a conduta do agente é ditada pelo estado

de consciência ou o humor imediato de quem a pratica, como a cabeçada que o jogador camisa

10 da seleção francesa, Zinedine Zidaine, deu, em 2010, no zagueiro Materazzi da seleção da

Itália, após – segundo afirmou o francês – ter sido ofendido pelo colega italiano.3 Provavelmente,

a ação de Materazzi foi racional em relação a um fim – enfraquecer ou ao menos desestabilizar a

equipe francesa, irritando um jogador importante, de conhecido temperamento ‘explosivo’.

Entretanto, a reação de Zidaine foi afetiva, ditada pela emoção imediata, como a de um motorista

que esbraveja com outro no trânsito, ou o pai e a mãe que, em um momento de descontrole, dão

uma palmada nas nádegas do filho. Todas essas ações têm desdobramentos. São, portanto,

causais, mas, não são racionais no sentido em que Weber concebe a ação racional, na medida em

que suas consequências não faziam parte das intenções do agente no momento em que as

executou. Zidaine foi expulso e a França acabou perdendo o jogo para a Itália. Zidaine foi

responsabilizado pelo échec da equipe francesa, experimentou a ira dos torcedores bleus e

provou o gosto amargo da execração pública na França.

3 Materazzi teria provocado Zidaine com ofensas à sua irmã.

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Finalmente, Weber (1999, v. 1) define a ação tradicional como sendo aquela fundada no

hábito irrefletido. Ela é sancionada pelo costume arraigado que conduz à crença de que, dado que

as coisas sempre foram assim, esse é o jeito adequado de continuar agindo, consistindo por vezes

em uma conduta ‘maquinal’, por obediência inconsciente ao costume (FREUND, 2006).

Segundo Aron (2003), para agir de acordo com a tradição o ator não precisa conceber um

objetivo, nem embasar a conduta em um valor, nem ser impulsionado pelo efeito de uma

emoção. Basta tão somente obedecer aos reflexos enraizados na cultura impregnada pelas

práticas de longa duração.

Evidentemente que as categorias de ações descritas por Weber são tipos ideais.

Dificilmente podem ser encontradas no seu sentido puro. Interessa, no entanto, classificar uma

atividade pela medida em que ela se caracteriza mais tipicamente em uma do que em outra

categoria. Elas podem sobrepor-se em dado momento ou em determinadas atividades. Uma ação

tradicional pode configurar-se, ao menos às vezes e parcialmente, como ação racional em relação

a um valor, como, por exemplo, o da lealdade.

Uma questão central na sociologia compreensiva de Weber é a das formas legítimas de

dominação. Relativamente à identificação das ações sociais, Weber distingue três formas

legítimas de dominação: racional, carismática e tradicional.

O tipo racional de autoridade é colocado em evidência pela aceitação ou crença na

legalidade das normas e dos regulamentos instituídos e do direito que aqueles que exercem a

dominação têm de da ordens. O tipo carismático emerge quando os argumentos dos que

obedecem colocam em relevo a submissão às características ‘sagradas’ de uma determinada

pessoa, à exemplaridade do dominante, às suas virtudes heroicas. Finalmente, o caráter

tradicional repousa na crença da virtuosidade (ou da santidade) das tradições em vigor e na

legitimidade daqueles que são chamados ao exercício do poder em face dos costumes.

Weber (1999, v. 1) distingue quatro tipos de ações sociais e três formas de dominação

legítima. A dominação tradicional corresponde à ação tradicional. A ação afetiva à dominação

carismática. A dominação racional deve, então, corresponder às ações racionais em relação aos

fins e em relação aos valores. Contudo, há autores que acreditam que a ação racional

corresponda somente à racionalidade em relação aos fins, coerente com o tipo puro da

dominação legal encarnada na burocracia. Weber não teria definido o tipo de dominação

correspondente à ação racional em relação a valores.4

4 Ver, por exemplo, Aron (2003); Raynaud (1987); Weber (2001)

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A sociologia interessa-se pelas obras humanas, pela compreensão dos valores e dos

objetivos aos quais seus instituidores aderiram, e pelos valores e resultados que elas foram

capazes de criar. Mas é preciso distinguir a concepção que Weber faz entre juízo de valor e

relação com valor. Quando uma pessoa considera que na democracia o controle do aparelho de

estado pelos cidadãos é uma condição essencial, ela está fazendo um julgamento de valor, que,

provavelmente, é coerente com a sua personalidade, com os seus princípios ou com ambos.

Trata-se de um julgamento subjetivo, com que se pode concordar ou discordar. Não cabe ao

pesquisador das ciências sociais, sob pena de perda da objetividade científica, fazer esse tipo de

julgamento. No estudo da realidade social, o pesquisador científico deve estabelecer juízos de

fato. De tal modo o pesquisador deve estudar a realidade de determinada época estabelecendo

uma relação entre ela e certos valores, definidos objetivamente pelo grau em que se faz presente

ou mesmo pela mais completa ausência.

Na sua singularidade, embora estejam inseridas no interior do aparato administrativo

governamental, as Ouvidorias se propõem à realização de um trabalho de mediação e diálogo, de

modo a articular a visão da sociedade aos processos internos da organização, agindo na proteção

e defesa dos direitos dos cidadãos. As ouvidorias dos seguintes órgãos foram convidadas e

aceitaram participar da pesquisa: Secretaria de Estado da Fazenda, Secretaria de Estado da

Saúde, Departamento Estadual de Trânsito (DETRAN), Poupatempo e Universidade Estadual de

Campinas (UNICAMP).

No ensejo de reforçar e justificar a abordagem metodológica que norteará a execução da

pesquisa de campo faz-se necessário reafirmar, com base em Weber, que as ciências sociais se

preocupam em compreender os fenômenos sociais, interpretando-os à luz dos significados

subjetivos que lhes atribuem os indivíduos que os vivenciam – ou que os vivenciaram. Para

atingir esse objetivo, as ciências sociais dispõem de um grande leque de possibilidades

instrumentais, que pode ser empregado na investigação desses fenômenos. Pode-se utilizar de

abordagens positivistas, que privilegiam a coleta de dados de natureza quantitativa, empregando,

sobretudo, os questionários para a coleta de dados de campo. Contudo, quando a preocupação do

pesquisador é a compreensão dos fenômenos estudados em seu contexto de vida real, ele deve

recorrer – alternativa ou complementarmente – aos métodos fenomenológicos. Entre as

principais técnicas de coleta de dados empregadas nesse tipo de abordagem estão a observação

direta e participante, a análise documental, os registros em arquivos e as entrevistas

(estruturadas, semi-estruturadas e desestruturadas).

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Dado que o propósito das ciências sociais é a compreensão, torna-se necessário, então,

que os fenômenos focalizados sejam examinados, tanto quanto possível, em seu contexto, o mais

próximo possível de sua ocorrência e em sua natural complexidade. Nada deve ser descartado

antes de cuidadosa análise. Tudo que tiver alguma relação com o objeto de estudo deve ser visto

como potencialmente capaz de dar uma contribuição para a compreensão do fato social

investigado.

Nesta abordagem, o estudo dos processos que se desenvolvem, ou que se

desenvolveram, pode ser tão importante quanto o conhecimento dos resultados ou os produtos

históricos nos quais desembocaram, como criação ou a extinção de leis, órgãos e entidades. Só a

compreensão dos processos subjacentes aos produtos permite conhecer, além do que são, aquilo

que poderiam ter sido e aquilo que não se queria que fossem. Dito de outro modo, só o estudo

zeloso dos processos históricos permite aos pesquisadores penetrar nas entranhas dos

sentimentos e justificações dos sujeitos, trazendo à superfície os valores, as crenças, os medos,

os sonhos, os desejos e as angústias dos que edificaram os fatos sociais, quando o fizeram, às

vezes, sem saber claramente que o estavam fazendo.

Nesta perspectiva, admitindo-se que a realidade em sua plena complexidade

dificilmente pode ser antevista, menos ainda descrita, render-se aos dados que se for coletando e

aos fatos que se for descobrindo, tornar-se-á mais importante do que se agarrar cegamente às

hipóteses formuladas, tentando confirmá-las por meio de um enquadramento ‘criativo’ da

realidade revelada pela pesquisa.

A realidade é feita de detalhes, de sutilezas, que na sua completeza quase sempre

escapam aos olhos de seus observadores. Implica, então, envidar esforços estratégicos na

condução de uma pesquisa, sempre que possível, combinando múltiplas fontes de evidências,

entrecruzando instrumentos de coleta e análise de dados, de tal modo que se consiga reduzir os

riscos de vieses e de perda de informação. Yin (2001) considera que três princípios são muito

importantes para a coleta de dados no universo da pesquisa fenomenológica. Em primeiro lugar,

devem ser utilizadas várias fontes de evidências, certificando-se, entretanto, de que todas

convirjam em relação ao mesmo conjunto de fatos ou descobertas. Deve ser criado um banco de

dados para a pesquisa, de modo a reunir evidências distintas em um relatório. Finalmente, devem

ser encadeadas evidências por meio do estabelecimento de ligações explícitas entre as questões

formuladas, os dados coletados e as conclusões a que se chegou (YIN, 2001).

O Estudo de Caso é o principal método empregado pela pesquisa qualitativa. De acordo

com Godoy (1995, p. 25), “o propósito fundamental do Estudo de Caso (como tipo de pesquisa)

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é analisar intensivamente uma dada unidade social”, que pode ser um simples sujeito ou uma

dada situação. Para Yin (2001), o Estudo de caso tem se tornado a abordagem preferida quando

se colocam questões do tipo ‘como’ e ‘por que’, quando o pesquisador tem pouco controle sobre

os eventos e quando o foco da pesquisa está colocado sobre fenômenos contemporâneos

inseridos em seu contexto de vida real. Segundo Bogdan e Biklen (1991) as questões

desenvolvidas para orientar um estudo qualitativo devem ser de natureza mais aberta e devem

revelar maior preocupação com o processo e significado.

Para Godoy (1995), apesar de ter sido desde sempre utilizada pelos sociólogos e

antropólogos, somente nos últimos trinta anos os métodos qualitativos de pesquisa científica

expandiram-se para outras áreas das ciências sociais. Os positivistas, defensores da quantificação

dos fenômenos estudados, veem os estudos de casos como uma pesquisa cuja precisão,

objetividade e rigor são duvidosos. Tais expressões, nesse contexto, significam quantificação.

Mas há diferenças substanciais entre os dois tipos de pesquisas e situações que se ajustam melhor

a uma determinada estratégia. Godoy (1995) explica que em um estudo quantitativo, o

pesquisador conduz seu trabalho a partir de um plano estabelecido a priori. As hipóteses são

claramente especificadas e as variáveis operacionalmente bem definidas. Este tipo de pesquisa se

preocupa, sobretudo, com a medição quantitativa de um dado fenômeno, buscando-se a exatidão

das interpretações em relação às variáveis definidas. Já a pesquisa qualitativa, de maneira

diversa, não procura enumerar ou medir os eventos estudados, nem emprega instrumental

estatístico na análise dos dados. Este tipo de pesquisa parte de questões ou de interesses amplos,

que vão se definindo à medida que a pesquisa se desenvolve.

De fato, o mecanicismo e o reducionismo quantitativo não bastam à pesquisa científica.

Como são insuficientes, também, as descrições pobres e por vezes desconexas, cuja soma das

partes não forma uma unidade de análise e compreensão. Para avançar, a pesquisa científica

precisa lançar um olhar sobre possibilidades alternativas, às vezes concorrentes, às vezes

defendendo pontos de vistas contrários para, posteriormente, explicitar evidências que

corroboram um ponto de vista. Qualquer abordagem – quantitativa ou qualitativa - pode ser

rigorosa, desde que se faça acompanhar de raciocínio lógico, procurando demonstrar como as

partes de uma totalidade estão conectadas. Entretanto, as pesquisas qualitativas apresentam

certas desvantagens, decorrentes do próprio método. A principal limitação consiste na

especificidade de cada estudo, estando ausente nessa modalidade de pesquisa o emprego de

técnicas estatísticas que possibilitem a generalização dos resultados.

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Yin (2001) distingue seis fontes para a coleta de evidências na pesquisa qualitativa: as

entrevistas, a documentação, os registros em arquivos, as observações diretas, as observações

participantes e os artefatos físicos. Todos são considerados úteis, embora todos apresentem

riscos que devem ser tomados em consideração pelos pesquisadores – adverte Yin. As

entrevistas são diretas, focalizando o tópico de interesse do pesquisador e fornecem inferências

causais percebidas pelos sujeitos. As entrevistas podem, entretanto, transmitir uma visão

tendenciosa, sobretudo em função de questões mal formuladas, estarem sujeitas às imprecisões,

em decorrência do esquecimento de detalhes por parte do entrevistado, e sofrerem o efeito

denominado reflexibilidade, em que o sujeito de pesquisa procura responder aquilo que ele

acredita ser o que o pesquisador gostaria de ouvir. Os documentos podem ser estáveis, exatos no

sentido de informar nomes e datas, além de oferecer ampla cobertura. Mas, podem ser

tendenciosos, de difícil recuperação e não se obter autorização para consultá-los. Além de serem

precisos e quantificáveis, os registros em arquivos apresentam as mesmas qualidades e

limitações já mencionadas para os documentos. As observações diretas têm como principais

vantagens a focalização dos eventos no seu contexto e em tempo real. Contudo, consomem

muito tempo, podem sofrer de seletividade e reflexibilidade, além de ter alto custo, devido à

quantidade de horas consumidas nas seções de observação. As observações participantes

apresentam qualidades e fraquezas semelhantes à observação direta. Pode-se acrescentar às suas

forças, possibilidade de percepção de comportamentos e razões interpessoais e entre as suas

fragilidades o risco de levar a uma visão tendenciosa em decorrência da manipulação dos

eventos pelo pesquisador. Embora tenha importância menor para os estudos de casos, os

artefatos físicos podem oferecer informações sobre aspectos culturais e, também, em relação a

operações técnicas, embora estejam sujeitos à seletividade.

Tendo em conta que cada instrumento de coleta de dados possui forças e fraquezas, Yin

(2001) considera que as diversas fontes de coleta de evidências são altamente complementares, e

que um bom estudo de caso deveria utilização de mais de uma fonte de coleta de evidência,

unificando-as na análise, por meio da criação de categorias, dentro das quais as informações são

dispostas. O relatório de pesquisa, por sua vez, ainda de acordo com Yin (2001), não segue

qualquer forma estereotipada e não precisa vir somente na forma escrita.

Justifica-se, com esse argumento, a utilização de quatro instrumentos de coleta de dados

no curso desta pesquisa: entrevistas semiestruturadas, análise documental, registros em arquivos

e observação direta (não participante). As entrevistas, análise de documentos e registros em

arquivos serão os métodos principais de coleta de evidências, complementando-os, quando e

onde necessário e possível, com seções de observação.

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Os registros em arquivos que interessam à pesquisa são os pronunciamentos de

autoridades e informações sobre as pessoas atendidas nas ouvidorias participantes da pesquisa e

não solicitaram sigilo dos seus dados. A classificação das mensagens dos cidadãos em

categorias, considerando-se o tipo de manifestação, o meio utilizado para interagir e a natureza

do assunto abordado poderão ensejar inferências conclusivas ou, ao menos, sugerir caminhos a

serem explorados e aprofundados complementarmente por intermédio das outras fontes de

evidências. Por isso, os registros em arquivos serão os primeiros materiais com os quais se dará

início aos trabalhos com os dados empíricos.

Os documentos que podem ser úteis à pesquisa incluem memorandos, agendas, pautas e

atas de reuniões, minutas de leis e decretos, ofícios, mensagens eletrônicas, relatórios gerenciais,

etc. Esse material – ao menos a sua maior parte – será analisado após se ter trabalhado com os

registros em arquivos, e antes da realização das entrevistas. Além de constituírem importantes

fontes de evidências, os documentos fornecerão insights sobre pontos que deverão ser explorados

com maior profundidade nas entrevistas. Contudo, as entrevistas poderão sugerir outros

documentos cuja análise seja também relevante. Quando isso se mostrar necessário, far-se-á a

complementação.

As entrevistas foram as principais fontes de coleta de evidências para essa pesquisa. Por

essa razão, elas foram realizadas após a análise de documentos e o trabalho com os registros em

arquivos. Foram conduzidas individualmente com os Ouvidores e os gestores das organizações

participantes da pesquisa e realizadas nos locais onde os sujeitos trabalham. Além de considerar

essa estratégia importante para deixar os sujeitos mais à vontade para responder às questões

propostas, o fato de estar no local dos sujeitos facilitou o acesso a documentos e a realização

simultânea de seções de observação (tópico descrito adiante).

Para a aplicação das entrevistas optou-se pela utilização de uma abordagem semi-

estruturada, dada a sua maior flexibilidade – quando comparada com a entrevista estruturada –,

ao mesmo tempo em que possibilitou a obtenção de dados comparáveis, o que seria menos

factível caso se tivesse utilizado técnicas de entrevistas abertas ou desestruturadas. Contudo, nos

casos em que ocorreu a emergência de novas questões no curso das entrevistas, elas foram

adicionadas. Todas as perguntas foram apresentadas a todos os sujeitos membros de um

determinado grupo – todos os ouvidores ou todos os gestores. Quando foi necessário, como nas

situações em que uma questão surgiu após já se ter realizado parte das entrevistas, fez-se a

complementação, apresentando as novas questões aos sujeitos já entrevistados. Nestas condições

e momento, dado o caráter complementar, as entrevistas foram feitas por telefone ou por

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intermédio de mensagem de correio eletrônico. Portanto, os roteiros de questões antes

apresentado foram utilizados como guias gerais, a partir dos quais os sujeitos foram estimulados

a falar. Complementarmente, o entrevistador procurou estimular os sujeitos com indagações do

tipo: porque, explique melhor, como você se sentiu, etc.

As seções de observação direta foram realizadas nas organizações participantes da

pesquisa em duas etapas, buscando fortalecer a compreensão de determinadas evidências. As

primeiras seções foram feitas paralelamente à realização das entrevistas. Dado que as

informações de interesse da pesquisa não são apenas de caráter histórico, a realização das

entrevistas nos locais onde os sujeitos trabalham permitiu ter acesso a muitas evidências

relevantes, tais como comportamentos, recursos físicos, pessoas e outras condições e

características presentes no ambiente. Registros destes artefatos e comportamentos foram feitos

em um caderno de campo. A segunda etapa de observação teve caráter complementar e, por isso,

foi realizada somente quando e onde se considerou necessário fortalecer ou aprofundar a

compreensão de alguma evidência já recolhida por intermédio das outras fontes de evidência

anteriormente descritas. Entre os eventos observados nesta segunda etapa estiveram reuniões,

seminários e cursos para a capacitação de funcionários para trabalhar nas Ouvidorias.

Encerrada a coleta de dados, a preocupação passou a ser a organização do material

coletado e a análise, convertendo os dados em conhecimento. Optou-se por um sistema de

codificação das informações, utilizando a técnica da análise de conteúdo proposta por Bardin

(1977). Desse modo, os dados coletados foram transformados tomando como referência as

proposições iniciais da pesquisa, examinando-se as respostas obtidas para cada questão

formulada. Em seguida, foram criadas categorias de análise, conforme será apresentado adiante,

na introdução da seção sobre análise dos resultados da pesquisa empírica (Parte III).

As categorias, de acordo com Bogdan e Biklen (1991), podem representar contextos ou

códigos de definições. Nesse tipo de código o objetivo é o de organizar conjuntos de dados que

descrevem a forma como os sujeitos definem a situação ou tópicos específicos, relacionados ao

objeto estudado. Interessa-se pela visão dos sujeitos sobre o objeto de estudo e pela forma como

eles veem a si próprios em relação à situação ou tópico em causa, identificando, por exemplo,

como eles definem aquilo que fazem, o que eles procuram alcançar e o que eles consideram

importante para realizar as suas atividades. Os autores comparam, com reconhecida

simplificação – que se credita ao esforço didático - a um espaço com uma grande quantidade de

brinquedos espalhados pelo chão. É preciso organizá-los. Em um primeiro contato, poder-se-ia

caminhar pelo espaço, observando os brinquedos, pegando-os e os examinando. Descobrir-se-ia

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várias maneiras de categorizar os brinquedos, agrupando-os: tamanhos, cores, país de origem,

ano de fabricação, materiais de que são feitos, entre outras. É isso – explica Bogdan e Biklen

(1991) – que fazem os pesquisadores qualitativos ao desenvolverem sistemas de codificação para

organizar os dados e analisá-los, embora a tarefa seja bem mais complexa, pois as categorias não

se mostram assim tão autoevidentes.

Essa análise de evidências nos estudos fenomenológicos é uma atividade

particularmente difícil, dado o caráter difuso e variado das fontes de coleta de dados (YIN,

2001). Contudo, Yin defende ser necessário que essa etapa seja iniciada com o estabelecimento

de uma estrutura analítica geral, por meio da qual se possa orientar a organização dos dados e a

construção de uma explicação em termos lógicos. Na presente pesquisa, os roteiros de entrevistas

foram empregados na estruturação de categorias analíticas dentro das quais as evidências de

campo foram dispostas e classificadas. A seguir, apresentam-se os roteiros de entrevistas. As

categorias de análise são descritas na Parte III da pesquisa.

Quadro 1: Roteiro de entrevista com os Ouvidores.

1. O que o(a) senhor(a) pensa sobre a implantação de Ouvidorias nos órgãos da

Administração Pública? Por quê?

2. Por quais motivos o(a) senhor(a) acredita que os(as) cidadãos(ãs) recorrem à ouvidoria

da(o) [nome do órgão]? Quais são os casos mais comuns?

3. Em quais situações o(a) senhor o(a) acredita que o o(a) cidadão(ã) recorre à Ouvidoria?.

4. Os(as) gestores(as) fazem a análise de todos os casos relativos à sua respectiva área? Eles

tomam medidas (corretivas e, conforme o caso, para evitar a repetição dos problemas)?

5. Na opinião do(a) senhor(a), qual é a função da Ouvidoria Pública? O(a) senhor(a) considera

que ela é um local apropriado para o(a) cidadão(ã) tratar de que tipo de assunto?

6. Na opinião do(a) senhor(a), o(a) cidadão(ã) tem o hábito de fiscalizar a Administração

Pública?

7. O(a) senhor(a) conhece as ferramentas criadas pela lei para melhorar a transparência na

Administração Pública? Qual é a sua opinião sobre esses institutos legais?

8. O(a) senhor(a) considera importante conhecer o nível de satisfação das pessoas com o

trabalho desenvolvido pela ouvidoria? O(a) senhor(a) tem indicadores sobre o nível de

satisfação dos cidadãos(ãs) com o trabalho da Ouvidoria? E dos gestores da organização?

9. Quais são as expectativas que o(a) senhor(a) acredita que as pessoas têm em relação ao seu

comportamento, na condição de Ouvidor(a)?

10. Como Ouvidor, o(a) senhor(a) considera ter poder adequado para tratar dos assuntos de

interesse dos cidadãos? O(a) senhor(a) tem assento nas reuniões do fórum responsável pela

tomada de decisões no(a) [nome do órgão]?

11. No exercício da função de Ouvidor, o(a) senhor(a) considera ter a autonomia e a

independência necessárias em relação à direção do(a) [nome do órgão] para realizar o seu

trabalho?

12. Ao realizar o seu trabalho como Ouvidor e tratar dos assuntos de interesse dos cidadãos, em

quais valores ou preocupações o(a) senhor(a) procura basear a sua conduta?

13. Na opinião do(a) senhor(a), quais características e competências uma pessoa deve ter para

desempenhar a função de Ouvidor(a)?

14. Qual é o significado de democracia para o(a) senhor(a)? Quais as instituições (ou

entidades) o(a) senhor(a) acredita que são importantes para a democracia? Por quê?

15. Como o senhor vê, atualmente, a relação entre o Estado e os(as) cidadãos(ãs)? O que o(a)

senhor(a) acredita que poderia ser feito para aperfeiçoá-la?

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador.

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Quadro 2: Roteiro de entrevista com os gestores.

1. O que O(a) senhor(a) pensa sobre a implantação de Ouvidorias nos órgãos da Administração Pública? Por

quê?

2. Por quais motivos o(a) senhor(a) acredita que os(as) cidadãos(ãs) recorrem à ouvidoria da(o) {nome do

órgão}?

3. Em quais situações o(a) senhor o(a) acredita que o(a)s cidadão(ã)s recorre(m) à Ouvidoria?

4. O(a) senhor(a) faz a análise de todos os casos relativos à sua área? Toma alguma medida? A Ouvidoria

acompanha de alguma forma esses desdobramentos?

5. Na opinião do(a) senhor(a), qual é a função da Ouvidoria Pública? O(a) senhor(a) considera que ela é um

local apropriado para o(a) cidadão(ã) tratar de que tipo de assunto?

6. Na opinião do(a) senhor(a), o(a) cidadão(ã) tem o hábito de fiscalizar a Administração Pública?

7. O(a) senhor(a) conhece as ferramentas criadas pela lei para melhorar a transparência na Administração

Pública? Qual é a sua opinião sobre esses institutos legais?

8. Considerando a qualidade do relacionamento entre a área dirigida pelo(a) senhor(a) e a Ouvidoria, qual é

o seu nível de satisfação?

9. Na condição de gestor(a), que expectativas o(a) senhor(a) tem em relação ao comportamento do(a)

Ouvidor(a)?

10. Na opinião do senhor(a) o(a) ouvidor(a) do(a) [nome do órgão] tem poder adequado para tratar dos

assuntos de interesse dos cidadãos? O(a) Ouvidor(a) do(a) [nome do órgão] tem assento nas reuniões do

fórum responsável pela tomada de decisões no(a) [nome do órgão]?

11. Na opinião do senhor(a), o(a) Ouvidor(a) tem a autonomia e a independência necessárias em relação à

direção do(a) [nome do órgão] para realizar o seu trabalho?

12. Ao tratar dos assuntos que chegam à Ouvidoria, na opinião do(a) senhor(a), quais valores ou

preocupações devem orientar a conduta do Ouvidor?

13. Na opinião do(a) senhor(a), quais características e competências uma pessoa deve ter para desempenhar a

função de Ouvidor(a)?

14. Qual é o significado de democracia para o(a) senhor(a)? Quais instituições (ou entidades) o(a) senhor(a)

acredita que são importantes para a democracia? Por quê?

15. Como o senhor vê, atualmente, a relação entre o Estado e os(as) cidadãos(ãs)? O que o(a) senhor(a)

acredita que poderia ser feito para aperfeiçoá-la?

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador

Esta pesquisa procura inserir-se no campo das Ciências Sociais como uma singela

contribuição para o conhecimento do sistema de Ouvidorias Públicas do Estado de São Paulo.

Com a preocupação de não se desviar do seu propósito central, a pesquisa procurou adotar uma

linguagem direta e objetiva, além de um plano clássico de estruturação: na Parte I estabelece-se o

quadro teórico dentro do qual a pesquisa se desenvolve e se justifica. A Parte II é dedicada à

discussão da natureza e das funções do Ombudsman escandinavo e das Ouvidorias paulistas. A

Parte III concentra-se na descrição dos dados empíricos, sua análise e contribuições da pesquisa

com vistas à valorização da cidadania e o fortalecimento do papel da sociedade no controle

social do Estado.

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CAPÍTULO I

OUVIDORIA NO CONTEXTO DE UM ESTADO DEMOCRÁTICO.

1.1 O papel do Estado na emancipação política da sociedade.

A invenção do Estado moderno, com divisão de poderes e submetido ao controle da

sociedade, demarca um momento importante no processo de evolução da sociedade. Com ele

desenvolvem-se os regimes fundados no governo representativo, cujo nascimento se faz sobre as

ruínas da democracia direta, sob a qual as pessoas livres podiam participar pessoalmente da

tomada de decisões que impactavam a vida na cidade, em vez de fazê-lo por intermédio de um

terceiro – um representante.

Esta democracia indireta, episódica e eleitoral está profundamente associada ao

surgimento de tensões permanentes, criadas a partir de uma desconfiança que nasce com o

próprio sistema de governo representativo. Sua evolução é inseparável da progressão da

desconfiança e da procura pelo estabelecimento de formas de controle sobre o governo, de modo

a limitar o seu poder.

Desde os filósofos clássicos, que inspiraram as grandes revoluções liberais –

notadamente a francesa – até os nossos dias, jamais cessaram as tentativas de fragilizar o poder,

instituindo-se mecanismos por meio dos quais os cidadãos tentam compensar a devastadora

erosão da confiança no governo representativo com formas de vigilância, denúncia e punição.

Pode-se mencionar, entre outros, a divisão dos poderes para prevenir a sua acumulação por uma

só pessoa, o aperfeiçoamento dos processos eleitorais e muitas outras formas de organização da

desconfiança dos cidadãos.

A Ouvidoria constitui nos dias atuais apenas mais um exemplo desta tentativa invertida

da aplicação dos dispositivos de controle descobertos e descritos por Foucault (1975). Para

Rosanvallon (2006), as Ouvidorias (des Ombudsmen et des Médiateurs) são instituições de

vigilância e de controle, que podem, dentro de certos casos, dar aos cidadãos uma possibilidade

de ver as suas reivindicações ou os seus problemas pessoais levados em conta pelos sistemas

burocráticos rígidos e fechados sobre si mesmos. Por intermédio delas, os cidadãos tentam

conquistar ou preservar alguma capacidade de interferência direta e alguma possibilidade de

vigiar e de controlar a conduta dos governantes.

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Esse capítulo discute o surgimento do governo representativo por meio de uma revisão

dos principais clássicos que inspiraram as revoluções liberais. O objetivo é demarcar a

desconfiança nesta forma de governo – um pis-aller ante às incontornáveis dificuldades à adoção

da democracia direta – e o horror à tirania como o motor para a criação de mecanismos de

contre-pouvoir, no sentido de submeter os governantes cada vez mais ao controle da sociedade,

obrigando-os a prestar contas de suas ações.

Na concepção absolutista de Estado, expressas, sobretudo, nos textos de Maquiavel

(1983) e Hobbes, o Estado é apreendido como o elemento central para a emergência e

preservação da sociedade. Maquiavel (1983) acredita que a natureza humana é, essencialmente,

má e vulnerável. Os homens trocam facilmente seus governantes, aceitando com alegria um novo

senhor. Por vezes, empregam armas para mudá-lo, tentando melhorar as coisas. Mas, pela

experiência, logo percebem terem piorado ainda mais a situação. Persuadi-los é mais fácil do que

mantê-los convictos. Por isso, o governante deve estar preparado para se impor pela força,

quando os homens não mais acreditarem nele. E não deve manter a sua palavra quando isso lhe

prejudicar ou tiver desaparecido as causas que o levaram a empenhá-la.

Ao escrever, Maquiavel teorizava sobre um tipo de Estado que ainda não existia,

diferentemente, por exemplo, da época em que Tomas Hobbes escreveu o ‘Leviatã’. Hobbes

discutia um Estado que ainda estava em fase de consolidação, mas com contornos institucionais

e legais já razoavelmente delineados na Inglaterra.

Também é importante destacar que as proposições de Maquiavel emergiram em um

contexto em que predominavam governos despóticos, em meio a uma Itália que vinha sendo

dividida e ocupada por invasores estrangeiros, tornando-a o palco de disputas que lhe eram

estranhas. Para Maquiavel (1983), o Estado é a única entidade capaz de oferecer proteção e

segurança duradouras ao povo, constituindo-se na figura central para a fundação e conservação

da sociedade. Por isso, a integridade do Estado deve ser preservada por quaisquer meios,

incluindo-se, quando necessário e útil, a imposição do medo e a violência. E, embora se deva

esforçar para evitar a crueldade, para se preservar a integridade do Estado – que corresponde à

preservação da própria sociedade –, às vezes, são insuficientes as atitudes morais e os meios

lícitos.

Thomas Hobbes foi um intelectual ligado à elite política inglesa de sua época

(SALGADO, 2008) e viveu atordoado pelo medo de uma invasão espanhola. Para ele, o Estado é

criado pela arte dos homens – a mais excelente obra da natureza – como um poderoso homem

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artificial. O Leviatã – que inspirou Hobbes – aparece no velho testamento, no livro de Jó,

capítulo 41. Sua imagem é associada a um monstro marinho, no trecho:

Ninguém é bastante ousado para provocá-lo; quem lhe resistiria face a face? (...)

Sua costa é um aglomerado de escudos (...). De sua goela saem chamas (...). De

suas ventas sai uma fumaça (...). Seu hálito queima como brasa (...). Em seu

pescoço reside a força (...). Duro como a pedra é seu coração (...). Quando se

levanta tremem as ondas [do mar: grifo] (...). Se uma espada o toca, ela não

resiste (...). O ferro para ele é palha (...). A flecha não o faz fugir (...). Não há

nada igual a ele na terra, pois foi feito para não ter medo de nada (...) (Jó, 41-

42).

Para Hobbes (1974), todos os homens foram igualmente contemplados pela natureza.

De tal modo que, embora se possam encontrar homens de portes físicos relativamente

diferenciados, observando-os em seu conjunto, tais diferenças não justificam qualquer benefício

que outro não possa ter ou aspirar. O mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte,

quer por secreta maquinação, ou aliando-se com outros homens que se encontrem ameaçados

pelo mesmo perigo. Dessa igualdade na capacidade, resulta a igualdade na esperança. Assim,

quando dois homens desejam ao mesmo tempo uma mesma coisa, que não pode ser gozada por

ambos simultaneamente, eles se transformam em inimigos. É por esse motivo que enquanto os

homens vivem sem um poder comum – o Estado –, eles permanecem na condição de guerra de

todos os homens contra todos os outros homens.

Esse estado de guerra não se limita à luta real, mas na conhecida disposição para lutar,

decorrendo daí a permanente insegurança. Neste contexto, não há sociedade nem possibilidade

de progresso e sim um constante temor de ser acometido por uma morte violenta, tornando a vida

solitária, embrutecida e curta. Não há lei, nem justiça ou injustiça, pois, esses sentimentos não

fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Pertencem apenas ao homem em sociedade.

Para Hobbes, não há distinção entre Estado e Sociedade Civil. Esta não existe até que aquele seja

instituído. Instituído o Estado, atentar contra ele significa atentar contra si próprio e contra todos

os outros homens - contra a sociedade, portanto.

O Estado é criado por um contrato, por meio do qual uma multidão de homens - cada

um com cada um de todos outros –, concordam em renunciar à vida de miséria e de guerra de

todos contra todos. Instituído o Estado, emergem a autoridade e o direito daquele, ou daqueles, a

quem for conferido, por consentimento, o poder soberano.

Maquiavel e Hobbes compartilham a ideia de que o Estado é a entidade central para o

surgimento, desenvolvimento e conservação da sociedade. Esta defesa do Estado os aproxima.

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Contudo, aproximá-los não significa perder de vista as diferenças existentes nas obras dos dois

pensadores. A obra e a vida de Maquiavel (1469-1527) estão intimamente ligadas às guerras que

fragmentavam o território italiano no início do século XVI. Turbulências que forneceram a

experiência e constituíram o objeto de análise do pensador italiano. Para enfrentar a ameaça,

Maquiavel faz culto à obediência ao soberano, personificado no indivíduo forte, capaz de

conquistar o poder e unir a Itália. A obra ‘O Príncipe’ é inseparável desse contexto. Mais de um

século depois, na Inglaterra, Hobbes (1588-1679) publicou ‘O Leviatã’. Para ele, há uma ameaça

recíproca que pesa sobre todos. A igualdade entre os homens, existente no estado de natureza,

leva a uma condição de instabilidade e insegurança. Para colocar fim a esse estado de incerteza e

obter a paz, Hobbes faz culto à obediência a um poder impessoal.

No polo oposto à Maquiavel e Hobbes, estão Proudhon, Bakunin e Marx. Para

Proudhon (1983), o homem procura a ordem na anarquia, tal como busca a justiça na igualdade.

Esse processo se inicia pela reflexão – que é uma forma de rebelião –, estabelecendo-se uma

relação inversa entre o esclarecimento da sociedade e a autoridade do rei. A experiência cria

hábitos; os hábitos retidos formam os costumes; os costumes tornam-se máximas que se

arranjam em princípios. A anarquia é uma etapa nesse processo de evolução da sociedade em

que os princípios são englobados na vontade geral, consolidando-se, portanto, na ausência de

senhor, mas não de regras. A liberdade é a forma natural da sociedade humana e se expressa na

igualdade, sem a qual inexiste o estado social. Um governo do homem pelo homem, sob

quaisquer nomes com os quais se disfarce, é opressão. Quando tomado como a entidade que

implanta a ordem na sociedade, o Governo o faz como Alexandre – cortando o nó górdio com o

seu sabre.

Para Bakunin (2002), a origem dos Estados em qualquer lugar do mundo está associada

à violência, à rapina e ao saque. O Estado foi um mal historicamente tão necessário no passado

como imprescindível será a sua destruição no futuro. Ele, em absoluto, não é a sociedade, mas,

antes, o contrário dela. Sua natureza não é a de persuadir, mas de impor. E apesar dos disfarces

que procura adotar, não consegue mascarar o seu caráter de violação da vontade humana e

negação da liberdade.

Marx está de acordo com Proudhon e Bakunin relativamente ao papel desempenhado

pelo Estado. Para ele, toda história do gênero humano, desde a idade primitiva – quando era

comum a propriedade da terra – tem sido a história das lutas entre classes, protagonizadas por

exploradores e explorados e não entre as forças do presente e as forças do passado. A sociedade

burguesa, que emergiu da destruição da sociedade feudal, não aboliu esse antagonismo de classe;

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ao substituir as antigas pelas novas classes, fez surgir novas formas de opressão. E dado o nível

de evolução que se atingira no século XIX, a emancipação dos oprimidos só seria possível por

meio da emancipação da sociedade em geral de toda opressão.

Para Marx, não é o Estado que regula e controla a sociedade burguesa, mas, aquele é

que se submete a esta. Com a criação da grande indústria e do mercado mundial, a burguesia

conquistou a soberania política exclusiva do Estado representativo, transformando o governo em

instrumento da administração dos seus negócios comuns. Assim, Marx concebe o Estado,

essencialmente como aparelho de repressão que possibilita à classe dominante subjugar e

explorar a classe operária. Por isso, pelo menos em um primeiro momento, toda luta de classes

deve se concentrar na apropriação desse poder do Estado. Inicialmente, o operariado deve

destruir o aparelho repressor e ideológico do Estado burguês, substituindo-o depois por um

Estado proletário diferente e, finalmente, em fases posteriores destruí-lo completamente. Nessa

fase final, o Estado político desaparecerá, transformando-se em um simples mecanismo de

administração da produção. Esse ponto coloca Marx em franco conflito com Proudhon e

Bakunin, que não viam a necessidade de uma etapa intermediária de apropriação do Estado pela

classe operária antes da sua completa destruição.

Para Proudhon (1983), o comunismo equivale a uma aristocracia de medíocres, fundada

na aparência de democracia das massas, mas, na qual o poder que possui não tem outra função

senão aquela de assegurar a servidão universal. As bases de sustentação do comunismo teriam

sido inspiradas no absolutismo, como a centralização unitária do poder e a destruição sistemática

de todo pensamento individual, a polícia inquisitorial e a restrição à família.

Locke, assim como Montesquieu e Rousseau, concorda que o Estado é um instrumento

necessário à organização da vida em sociedade. Contudo, opõem-se ao Estado absolutista,

apontando-o como uma limitação à liberdade e ao desenvolvimento da atividade econômica.

Estado e sociedade civil não são mais compreendidos como sinônimos. A sociedade surge

quando se torna soberana em relação ao Estado, controlando e limitando a sua ação. Para evitar a

excessiva repetição, os três pensadores serão apresentados em ordem cronológica, concentrando-

se em suas ideias centrais.

Locke veio depois de Hobbes e antes de Montesquieu e Rousseau – o qual, certamente,

influenciou. Locke viveu em um mundo cujas mudanças ocorriam em todos os campos da vida a

uma velocidade jamais conhecida por seus antepassados. A cultura, a vida intelectual, a ciência,

a tecnologia e a economia passavam por profundas transformações em seus pressupostos

essenciais que marcariam indelevelmente a vida moderna de todo mundo. Se – como destacado

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no início deste capítulo –, Maquiavel escreveu sobre um Estado que ainda não existia e Hobbes

sobre um Estado em processo de formação, Locke o fez acerca de um Estado sob fortes pressões

sociais e, por isso, em franco processo de transformação – às quais, Locke, além de testemunhar,

ajudou a construir, modificando sobremaneira os pressupostos filosóficos e políticos da Europa

do século XVII.

Locke foi o porta-voz dos capitalistas burgueses, uma classe média em expansão e em

ascensão, lançando a base filosófica sobre a qual emergiria a Revolução Industrial Inglesa e

Americana no século seguinte. Puritano, tinha o ócio como um pecado mortal, não o admitindo

nem para as crianças com mais de três anos de idade. Sua obra foi elaborada a partir da sua

observação dos problemas práticos da política inglesa do século XVII, emergindo mais do

pragmatismo do conselheiro político do que da reflexão acadêmica e filosófica. Sua principal

obra foi escrita para aconselhar Anthony Ashley, mais tarde, o primeiro Conde de Shaftesbury.

Locke (1998) compreende que o governante deve ter poder absoluto, pois certas

ocasiões exigem o seu exercício sobre a multidão avessa a freios. Não é menos provável tornar-

se presa do povo – aqueles que os sábios tiveram por feras – do que dos reis – que as escrituras

chamam de Deuses.

Em sua obra, Locke não polemiza com Maquiavel ou Hobbes. Ela é, principalmente,

uma resposta a Robert Filmer (1588-1653) que, em 1630, publicou ‘O Patriarca’. Nesta obra,

Filmer argumentava que a autoridade do governante e a obrigação política para com o Estado

derivavam de Deus, transmitidas aos reis pela herança de Adão. Locke contestou essa doutrina,

acusando os seus formuladores – particularmente, Filmer –, de serem aduladores de príncipes.

Adão não recebera de Deus essa doação e ainda que o tivesse recebido, essa linha de

descendência já teria sido perdida há muito tempo. Em todas as famílias do mundo não restaria a

nenhuma – mais do que a qualquer outra -– a menor pretensão de ser a detentora do direito de

herança. Segundo Locke (1998, p. 205),

No intuito de abrir caminho para essa doutrina, negaram à humanidade o direito

à liberdade natural, de tal modo que [...] expuseram todos os súditos à máxima

desgraça da tirania e da opressão [...] e abalaram os tronos dos príncipes:

porquanto, também eles [...] nascem escravos, salvo um único, e estão

submetidos [...] ao herdeiro legítimo de Adão.

Contudo, descartado o direito divino, como, então, haver governo? Locke considera

necessário encontrar outra fonte para os governos e assim não se acredite que todos eles são

fundados apenas na força e na violência, nem que as pessoas vivem juntas segundo as regras dos

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animais, em meio aos quais apenas os mais fortes prevalecem. Para ele, o direito e o poder de

governar são naturais, fundamentais e individuais, como o é o direito de se conservar a si próprio

e à humanidade. Contudo, ele diferencia claramente a autoridade política e a religiosa, o poder

secular e o espiritual, centrando a sua defesa na autoridade constitucional, legitimada em um

corpo de leis, cuja preservação se fazia necessária para manter a integridade e a unidade da

nação. Governar significa aplicar a lei da razão, uma lei natural.

A racionalidade implica reconhecer a igualdade e a liberdade entre os homens. A razão

estabelece o modo de cooperação, criando o vínculo que nos mantém coesos como sociedade.

Qualquer homem que deixar de reconhecer no outro um ser igual, negando-lhe a liberdade,

deveria ser considerado uma fera, como qualquer outra, e, tornando-se, desse modo, passível de

ser destruído pela pessoa prejudicada e pelo resto da humanidade.

É a razão que leva os homens a cooperar uns com os outros no sentido de preservar as

suas propriedades – que, para Locke, incluía as posses materiais e a própria liberdade –,

mantendo-os coesos. No estado de natureza, os homens são completamente livres, senhores da

sua pessoa e das suas posses. São, ao mesmo tempo, juízes e executores das leis da natureza.

Quando alguém o ofende, desrespeitando-o, todos os demais têm o direito de puni-lo para exigir

reparação, restituindo-se a autoridade da razão – um patrimônio coletivo que deve ser defendido

e preservado por todos. Tal punição deve ser feita com severidade, transformando a transgressão

em um mau negócio, aterrorizando os demais homens para que não procedam da mesma

maneira.

Entretanto, se cada homem é um rei e todos detêm o poder executivo das leis da

natureza, o efetivo exercício desses direitos é bastante incerto, estando constantemente ameaçado

de violação por parte de outros que não sejam estritos observadores da equidade e da justiça. São

essas condições que motivam o homem a abdicar da sua liberdade plena, buscando unir-se em

sociedade para a mútua conservação de suas propriedades – a vida, a liberdade e os bens

materiais. São, portanto, dessas incertezas que se originam os poderes legislativo e executivo.

Eles surgem quando os homens, para escapar a tais riscos, abdicam dos seus poderes para

castigar os transgressores e preservar as suas propriedades, transferindo-os a um único indivíduo

instituído para essas finalidades.

Para Locke (1998), essa transferência de poderes marca o advento da sociedade política.

O indivíduo transfere a sua liberdade individual ao Poder Legislativo, que representa a todos. Ele

não renuncia aos seus direitos, mas o desloca, renunciando ao seu poder executivo, agora

limitado ao que não foi submetido à regulamentação. Portanto, a razão precípua para que os

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homens se unam em sociedades políticas é a conservação da propriedade, fazendo surgir um juiz

imparcial com autoridade e poder para solucionar todas as controvérsias, deliberar e executar

sentenças para punir aqueles que usam a força para subverter a justiça.

Ao concederem a mudança de um para outro estado – de natureza para a sociedade

política –, os seres humanos fazem-no com a intenção de melhor conservarem a si mesmos, bem

como às suas liberdades e propriedades. E o poder por ela constituído – o Legislativo – não

poderá jamais orientar as suas ações para quaisquer outras finalidades que não seja estritamente a

realização do bem comum. Todo governante, de qualquer sociedade, está obrigado a agir de

acordo com um conjunto de leis promulgadas pelo próprio povo e que sejam deste conhecido – e

não por meio de decretos extemporâneos –, empregando as suas forças para executá-las e para

defender o país de ofensas externas, com a precípua finalidade de obter a paz, a segurança e o

bem comum.

Locke (1998) conferia importância especial ao Poder Legislativo. Para ele, este era,

além do poder supremo da sociedade política, uma instituição crucial para evitar que o governo

se tornasse beligerante. As ações perpetradas contra esse poder, por exemplo, impedindo-o de se

reunir e de deliberar constituíam, na verdade, hostilidades contra a sociedade ali representada.

Para ele, o bem do povo – e a sua salvação – era o primado da supremacia da lei, cujo propósito

é conservar e ampliar a liberdade – e não restringir; e, menos ainda, abolir. Onde não há lei, não

há liberdade, pois esta consiste em estar livre de restrições e de violência por parte dos outros. A

liberdade não é o direito de cada um fazer o que quiser, condição em que ninguém seria livre de

fato, mas, a possibilidade de agir dentro dos limites das leis a que se está submetido, não se

sujeitando à vontade arbitrária dos outros.

Contudo, o poder do Legislativo não é e nem pode ser absoluto, na medida em que

ninguém pode transferir a ele mais poder do que se tem. E ninguém possui poder absoluto nem

sobre si mesmo e menos ainda sobre as outras pessoas. A autoridade do legislativo é limitada

pelo poder que as pessoas tinham no estado de natureza, antes de o cederem à autoridade

política. Sua função é, essencialmente, a de elaborar leis que possam moldar as ações exteriores

dos indivíduos de forma a promover o bem comum (LOCKE, 1998). Um governo absoluto e

arbitrário, sem leis ou, ainda, sem leis fixas, é incompatível com os fins da sociedade.

Significaria, no limite, que, ao abdicar do seu poder executivo das leis da natureza, a sociedade

não apenas se desarmou, mas simultaneamente, armou um poder arbitrário. Esta condição a

remeteria a uma insegurança ainda pior do que aquela em que vivia no estado de natureza, por

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ter armado a uma pessoa – o monarca ou o rei – ou a um pequeno grupo – o parlamento – com

poder para impor a própria vontade sobre milhões.

Para Locke (1998), somente o povo detém autoridade para definir a forma da sociedade

política. O poder do parlamento para elaborar leis é delegado daquele e, por isso, limitado por

quatro princípios fundamentais:

1. As leis devem ser universais, quer dizer, válidas para o favorito da corte e para o camponês

do arado;

2. As leis devem ser destinadas exclusivamente à promoção do bem comum;

3. As leis destinadas à tributação da propriedade devem receber o consentimento do povo,

diretamente ou por meio dos seus representantes;

4. O poder para elaborar as leis é intransferível e indelegável.

Para Locke, o que caracteriza a sociedade política é a proteção à propriedade privada.

Sendo ela considerada um direito de todos os homens, nenhum governante pode dela dispor sem

o seu consentimento.

Para que o governo possa assegurar proteção à sociedade é necessário que esta o

sustente com recursos. Contudo, tal pagamento deve receber o consentimento do povo, por meio

de seus representantes. De outro modo, quando alguém dispõe de poder para coletar tributos por

sua própria vontade, há a violação da lei fundamental da propriedade.

Locke contestou o absolutismo de Hobbes, embora se possa encontrar em sua obra

diversos diálogos com o pensamento hobbesiano. Há, entretanto, – e até prevalece – o conflito.

Esses pontos divergentes estão, sobretudo, na concepção que se tem do homem e sobre o que

seja o estado de natureza. Se, em Hobbes, o homem é essencialmente mau e o estado de natureza

é um ambiente de permanente guerra de cada homem contra todos os outros homens, em Locke,

o homem é essencialmente bom e, em geral, gosta de cooperar uns com os outros na construção

da paz e da liberdade – esta, uma virtude plena apenas no Estado de natureza.

O estado de natureza é aquele em que cada indivíduo detém o poder executivo do

direito natural. O que pode levar a uma situação de guerra é o fato de nem todos os homens

serem guiados pelo senso de justiça e tentarem, por meio do uso da força, submeter os outros à

própria vontade. Tal homem – que pode, inclusive, ser o governante máximo de uma nação,

aquele que comanda o Leviatã –, ao negar a liberdade ao outro, desrespeita a autoridade da razão

– esse patrimônio coletivo –, revertendo-se, espontaneamente, à condição de animal e tornando-

se, por isso, passível de ser destruído por todos os membros da sociedade. Desse modo, para

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Locke, em determinadas circunstâncias e em certas condições, para o bem comum da sociedade,

o governante hobbesiano é um animal que deve ser destruído.

Montesquieu está de acordo com Locke sobre a concepção da natureza humana. E em

desacordo com Hobbes quanto à sua compreensão de que antes da instituição da lei positiva – o

contrato – não existiam os referenciais de justiça e de injustiça. Ele afirma que

(MONTESQUIEU, 1979, p. 25): “Dizer que nada há de justo nem de injusto senão o que as leis

positivas ordenam ou proíbem, é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não

eram iguais.”

Para Montesquieu (1979), as leis são relações que emergem da natureza das coisas, não

lhes cabendo nem todas as virtudes, nem todos os vícios. Os homens são dotados de valor e não

nascem em estado natural de guerra, como entendia Hobbes. Para Montesquieu (1979), as leis

naturais são aquelas que o homem recebe antes da vida em sociedade. São leis que têm origem,

por exemplo, nos valores morais e religiosos. O estado de guerra emerge de um sentimento de

força que se manifesta apenas mais tarde, quando o homem passa do estado natural à vida em

sociedade. Ele aponta quatro leis naturais, todas, de certo modo, conflitantes com as proposições

de Hobbes:

1. A primeira lei natural é a paz, pois, segundo entende, em uma condição de natureza, todos se

sentem inferiores, como atestam os selvagens – os índios. Assim, seu medo e suas fraquezas

seriam grandes e o primeiro instinto é o da preservação e não - como entendia Hobbes – o de

atacar.

2. Ao sentimento de fraqueza, o homem acrescenta o da consciência das suas necessidades,

fazendo surgir a segunda lei da natureza, que é o estímulo à procura de alimentos, e não o

desejo de dominação – como pensava Hobbes.

3. A terceira lei natural é o prazer que os seres humanos sentem em estarem próximos uns aos

outros, notadamente quando são de sexos diferentes – mais uma vez contrariando Hobbes,

que acreditava que os homens não tiram prazer algum da companhia dos outros.

4. O desejo de aproximação faz surgir a quarta lei que é a busca pela vida em sociedade.

Contudo, segundo Montesquieu (1979), tão logo o homem se põe em sociedade perde-

se o sentimento de fraqueza. Cada sociedade – e no seu interior, os indivíduos – passa a sentir as

suas forças, procurando convertê-las em vantagens, quer para si próprios, quer para o grupo que

integram, surgindo, desse modo, o estado de guerra entre os indivíduos e entre as nações.

São esses dois estados de guerra – externamente, envolvendo as nações e internamente,

os indivíduos – que exigem o surgimento de leis estabelecendo os direitos das nações para

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regular as relações entre os povos, os direitos políticos, que tratam das relações entre

governantes e governados e os direitos civis, destinados a regular as relações que os cidadãos

mantêm entre si.

Para Montesquieu (1979), há três tipos fundamentais de governos: o despótico, o

monárquico e o republicano, sendo esta a forma de governo em que a soberania pertence ao povo

na sua totalidade ou parte dele. O Governo monárquico é aquele exercido por uma só pessoa com

base em leis fixas. O despótico é, igualmente, o governo de um só, mas, ao contrário do

monárquico, trata-se de um poder fundado no arbítrio dos caprichos e da própria vontade.

Cada forma de governo possui um tipo relevante de princípio, que o mantém coeso. A

virtude – o amor de um povo à liberdade e à construção do seu próprio destino – é fundamental à

república; a honra à monarquia e o medo ao governo despótico.

Tudo na república depende de se implantar esse amor pela liberdade que se deve incutir

no povo, desenvolvendo-o nas crianças por meio da educação. Assim como a educação, as leis

que os legisladores promulgam devem relacionar-se com o princípio de cada governo. O amor à

república é o amor pela democracia, que se materializa na igualdade. Desse modo, para que se

ame a liberdade faz-se necessário que as leis a estabeleçam.

Montesquieu (1979) examina a liberdade sob dois pontos fundamentais: a sua relação

com as leis – ou, mais especificamente, com a constituição – e a relação que ela mantém com o

cidadão. Esses dois aspectos serão discutidos, respectivamente, a seguir.

Tal como Locke, Montesquieu entende que a liberdade não é o mesmo que poder fazer

o que se quer. Em um Estado – que para Montesquieu é uma sociedade regulamentada, a

liberdade está diretamente relacionada à obediência às leis. Consiste em poder fazer o que a lei

(constituição) permite e em não ser constrangido a fazer o que a lei não obriga. Onde cada um

pode fazer o que deseja, onde o espírito da lei promove a independência de cada indivíduo, o que

resulta não é a liberdade, mas o seu oposto, ou seja, a opressão de todos.

O governo despótico é o que comporta as leis mais simples, quase sem nenhuma

formalização, porque tudo se aplaina aos pés do déspota. Ele governa de um modo intransigente

e igual em todos os lugares e situações, sem considerar a tradição e a jurisprudência.

Na monarquia e na república atribuem-se mais importância às formalidades como uma

forma de aumentar a segurança dos cidadãos com a sua honra (monarquia) e de proteger a

liberdade (ou, em outros termos, a república).

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Quanto mais um governo se aproxima da república, mais rigor é exigido na aplicação da

lei. Assim, enquanto nos governos despóticos a lei é feita por quem a aplica, na monarquia e

ainda mais na república o juiz decide apenas se aqueles que se lhe foram trazidos à presença são

ou não culpados, pois a pena está prevista na lei. Na república baseada no contrato – isto é, na lei

– é-se igual não apenas como cidadão, mas também como magistrado, senador, juiz, pai, marido

e patrão (senhor).

Contudo, para Montesquieu, a liberdade pode ser perdida tanto com a servidão, quanto

com a sua exacerbação – libertinagem. Quanto mais um povo pensa em aproveitar a sua

liberdade, mais se aproxima do momento em que poderá perdê-la. Por isso, um povo não pode

pleitear para si o exercício das funções de magistrado ou de senador – que ele não é. E quando

não se respeita a autoridade, não se respeita tampouco os pais e os patrões. Nessas condições, os

costumes e o amor pela ordem desaparecerão, corrompendo a república pela aniquilação da

virtude.

Desse modo, para não se perverter a democracia republicana, deve-se evitar dois

extremos de vícios: a extrema igualdade e a extrema desigualdade. Esta conduz à aristocracia – o

governo de um só; aquela ao despotismo de um só. Por isso, nas repúblicas, as leis devem falar

mais do que aqueles que as executam.

Para Montesquieu, a liberdade só pode existir de fato em um Estado democrático. Lei e

liberdade estão de tal modo entrelaçadas que esta será extinta quando o poder legislativo for mais

corrompido que o poder executivo.

Porém, nem todo Estado democrático é verdadeiramente livre. A experiência mostra

que todo homem que tem o poder é tentado a exercê-lo de forma abusiva e destrutiva à liberdade.

Assim é que a liberdade só existe onde as instituições são dispostas de forma tal que o poder seja

capaz de frear o poder, impedindo o totalitarismo.

Em cada Estado há três espécies de poderes: o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o

Poder Judiciário. Ao primeiro, cabe elaborar as leis e ab-rogar as que já existem (revogar no todo

ou em parte). Ao segundo, cabe fazer a guerra e a paz, administrar a segurança e prevenir

invasões. Ao terceiro, cabe julgar os crimes e corrigir ou punir os conflitos (querelas) entre os

indivíduos.

Quando os Poderes Legislativo e Executivo encontram-se juntos, pode-se temer que as

mesmas pessoas estabeleçam leis tirânicas que serão tiranicamente executadas. Do mesmo modo,

não haverá liberdade quando o Poder Judiciário não estiver dissociado dos demais. Quando uma

mesma pessoa tem o poder de julgar, legislar e executar, a liberdade já terá sido perdida. Esse

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déspota poderá devastar o Estado com suas vontades, e como possui também autoridade para

julgar, ele poderá destruir cada cidadão de forma arbitrária.

Para Montesquieu (1979), o Poder Executivo é mais bem administrado por um do que

por muitos, dado que as suas funções devem ser desempenhadas com agilidade. O oposto ocorre

com o Poder Legislativo, no qual as coisas que dele dependem são melhor realizadas por muitos.

Os juízes integram um poder cuja força é nula e não são nada mais do que seres inanimados ou

bocas que pronunciam sentenças.

Montesquieu considera que o povo é tão capaz para escolher – eleger –, quanto inapto

para decidir. Por isso, ele deve participar do governo apenas escolhendo os seus representantes.

Estes, após receberem delegações genéricas não precisam de novas instruções particulares – que

se aplicam a cada situação específica.

Discutida a relação entre a liberdade e a lei, passemos ao exame da visão de

Montesquieu sobre a relação existente entre a liberdade e o cidadão. A liberdade do cidadão é

constituída por uma componente filosófica e outra política. A filosófica implica poder exercer a

vontade e a política consiste na segurança de que não é necessário temer a outro cidadão.

Portanto, a liberdade do cidadão depende, principalmente, das leis criminais. Por essa razão, os

regulamentos aplicados aos julgamentos criminais devem interessar ao gênero humano mais do

que qualquer outra coisa, pois é no conhecimento dessas práticas que a liberdade pode ser

alicerçada. Nenhuma condenação deve ter como base o depoimento de uma única testemunha.

Pois, entre um que acusa e outro que nega, há um empate, devendo haver um terceiro para que se

possa decidir. A pena a um infrator deve se originar da própria natureza dos crimes cometidos,

que ele classifica em quatro tipos: contra a religião, contra os costumes, contra a tranquilidade e

contra a segurança.

No plano das coisas que se referem a Deus não há punição que se possa impor no

campo da ação humana. Quando um magistrado, confundindo as coisas, dirige uma ação humana

a quem cometeu um sacrilégio, ele não a extrai da sua natureza e, assim, destrói a liberdade.

Uma divindade é para ser honrada e não para ser vingada. A pena a quem cometeu o sacrilégio

que se origina na sua natureza consiste em privar a pessoa dos privilégios que lhe são concedidos

pela religião – como a expulsão do templo e a retirada de algum tipo de status.

As outras três modalidades de crimes pertencem à esfera da ação humana. Para o

segundo tipo de crime, cometidos contra os costumes, como o atentado violento ao pudor, as

penas devem ser extraídas da sua própria natureza, como as multas, a desonra, a infâmia pública

e a expulsão da cidade. Já os crimes cometidos contra a tranquilidade têm na sua natureza as

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penas relacionadas a essa tranquilidade, como a privação da liberdade (prisão). As penas para os

crimes cometidos contra a segurança, como o rapto e o roubo, são uma espécie de talião. Um

cidadão merece a morte quando violou a segurança ao ponto de suprimir uma vida ou tentar

suprimi-la.

Quando a violação da segurança estiver relacionada aos bens, a pena que se extrai da

sua natureza é a perda desses bens. Contudo, segundo Montesquieu, são as pessoas desprovidas

de bens que têm maior propensão a tais crimes e, por essa razão, não haveria como puni-las.

Então, é necessário, nesses casos, que a pena corporal substitua a pena pecuniária.

Finalmente, para Montesquieu (1979) – tal como pensava Locke –, a sociedade deve

suprir o Governo com os recursos de que necessita. Porém, não se deve tirar das necessidades

reais dos cidadãos para suprir as necessidades imaginárias do Estado (exigidas pela paixão e

fraqueza dos governantes). Sendo a ambição dos cidadãos o que faz a riqueza de um país,

quando um poder arbitrário suprime as recompensas da natureza, impedindo que os maiores

esforços recebam as maiores recompensas, instala-se a aversão ao trabalho.

A obra de Rousseau contém diálogos com todos os autores discutidos anteriormente –

Maquiavel, Hobbes, Locke e Montesquieu. Contudo, ela encerra maior complexidade, de tal

modo que não se ajusta, perfeitamente, a nenhuma das categorias utilizadas neste estudo. Em

determinados pontos, ela poderia integrar o bloco da centralidade, formado por Maquiavel e

Hobbes. Em outros pontos, Rousseau pode ser visto como um precursor de Marx. A defesa que

faz do poder absoluto do soberano – presumido por vezes do silêncio da multidão – liga-o a

Maquiavel e a Hobbes, enquanto a sua antecipação a Marx se expressa na defesa da função

social da propriedade.

Rousseau e Locke estão de acordo em relação ao papel da propriedade, ligando-a aos

direitos fundamentais do indivíduo e ao próprio surgimento da sociedade. Contudo, enquanto

para Locke a propriedade constitui um direito natural e inalienável do indivíduo, devendo, por

isso, receber proteção do Estado, para Rousseau ela deve subordinar-se à vontade geral. E como

o direito à propriedade é uma criação do Estado, cabe a este limitá-la e organizá-la de acordo

com a vontade do povo. Desse modo, diferentemente de Locke, Rousseau parece ver na

propriedade a degeneração do homem, e não um direito natural.

Com o ‘Contrato Social’, Rousseau parece preocupar-se com a elaboração de uma obra

que seja ao mesmo tempo teórica e prática, propondo regras administrativas para a aplicação de

leis legítimas de forma a garantir a segurança e o bem estar coletivos.

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Logo na introdução, Rousseau (1973, p. 27) critica os denominados déspotas

esclarecidos que, procurando conviver socialmente com os filósofos, teorizavam sobre os

governos de uma forma diversa daquela que governava:

Perguntar-me-ão se sou príncipe ou legislador para escrever sobre política.

Respondo que não, e que por isso escrevo sobre política. Se fosse príncipe ou

legislador não perderia meu tempo dizendo o que deve ser feito; haveria de fazê-lo,

ou calar-me.

Para Rousseau (1973), a família é a primeira organização política. Comumente tomada

como natural, ela só o é enquanto os filhos dependem dos pais para a sua própria conservação.

Quando a necessidade deixa de existir, desfaz-se o vínculo da obediência dos filhos e a

obrigatoriedade dos cuidados dos pais. A partir desse ponto, a família se mantém por uma

convenção.

Do mesmo modo, a diferença entre governantes e governados origina-se de uma

convenção e não da superioridade natural de alguns. A passagem da sociedade do direito natural

– em que o homem é completamente livre e vive aos ferros por todos os lados – para a ordem

civil dá-se por meio de uma convenção.

Rousseau (1973) não reconhece a força como geradora de direito – afastando-se do

pensamento de Hobbes. Jamais se é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão

transformando a força em direito e a obediência em dever. E ceder à força constitui um ato de

necessidade – e não de vontade. Desse modo, as conquistas feitas pela força – da guerra, por

exemplo – não geram direitos nem criam instituições legítimas a que os homens tenham a

obrigação de obedecer.

Para Rousseau (1973), o contrato social surge de uma motivação externa ao indivíduo.

Ele não nasce de uma vontade interior, nem constitui um produto da história. A passagem do

estado de natureza para o estado civil se dá quando os indivíduos se vêem ameaçados por fatores

externos que se sobrepõem às forças que cada um dispõe para se conservar no estado natural. Os

indivíduos procuram, então, somar as suas forças, empenhando-as de maneira que possam

melhor cuidar de si mesmos.

A instituição do contrato por meio de um pacto social significa uma completa alienação

de todos os indivíduos, com todos os seus direitos e poderes, subordinando-os à representação

suprema da vontade geral. Cada membro torna-se parte indivisível do todo, produzindo no lugar

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de cada particular um corpo moral coletivo - o Estado. E desde que essa multidão se encontre

assim organizada em um corpo social, a agressão feita a um membro é uma ofensa a todos.

A soberania do Estado é, para Rousseau (1973), inalienável e insuperável, embora

subordinada à vontade geral – compreendida como a realização do bem comum. O soberano tem

poder absoluto, pois representa a vontade geral presumida, em determinados casos, do silêncio

universal.

Da discussão levada à efeito nesta seção encontram-se três respostas distintas à

indagação sobre qual é o papel desempenhado pelo Estado na emancipação política da

sociedade. Para Maquiavel e Hobbes, ele é a entidade central e a sua existência precede o

surgimento da sociedade. Para Proudhon, Bakunin e Marx, o Estado é um instrumento de

dominação e a sua destruição é condição indispensável à emancipação da sociedade política.

Locke, Montesquieu e Rousseau veem o aparecimento do Estado como uma condição necessária,

embora insuficiente à formação da sociedade política, implicando, além da sua fundação, o seu

controle por parte da sociedade.

1.2 O imperativo de democratizar o sistema de gestão burocrática.

A maioria das questões importantes para o exercício da cidadania na atualidade tem,

ainda, a indelével marca do Estado. As leis, os sistemas de proteção social, as políticas de saúde,

educação, segurança e justiça são serviços públicos que estão entre os temas vitais para a

formação de um quadro de referência dentro do qual a cidadania se desenvolve.

Caracteriza o Estado o estabelecimento de relações de subordinação entre governantes e

governados (BOBBIO, 1987), distinguindo-se de outras organizações pela possibilidade de uso

da violência legitimada como um dos instrumentos de que dispõe para fazer valer as suas

decisões (WEBER, 1967). A noção de Estado compreende, tradicionalmente, uma comunidade

de indivíduos estabelecidos sobre um território soberano, com uma clara consciência de possuir

alguma identidade específica em comum e uma expectativa de um futuro a ser compartilhado.

Após o triunfo das revoluções liberais, consubstanciadas, principalmente, na guerra de

independência dos Estados Unidos frente ao Império Britânico e na Revolução Francesa, a ideia

de legitimidade do poder passou a desempenhar um papel central na definição de Estado – ao

menos no sentido de Estado-nação democrático, dado que não seria razoável supor a perspectiva

da legitimidade e controle social do Estado em contextos totalitários. Nos regimes liberais

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democráticos, alguns membros da sociedade são escolhidos para dirigir o Estado, exercendo as

funções de governo, com a responsabilidade de assegurar que a vontade geral – ou o interesse

coletivo - sobreponha-se aos interesses particulares. Sob esse ponto de vista, os políticos que

dirigem o Governo e os funcionários que prestam serviços aos cidadãos são agentes da

sociedade, atuando sob e por delegação desta (PRZERWORSKI, 1998).

Contudo, no Brasil, historicamente, sucessivos governos populistas e autoritários

promoveram um profundo distanciamento entre as organizações públicas e a sociedade, entre

governantes e governados. A prestação de serviços não é percebida como um dever dos

governantes e um direito dos governados, mas como caridade que os políticos fazem aos

cidadãos. Embora o populismo e o autoritarismo representem estilos políticos distintos, eles têm

em comum o fato de ambos manterem a participação social em níveis mínimos (CAMPOS,

1990).

O distanciamento desembocou em mal estar social, caracterizando-se naquilo que

Rosanvallon (2006) acredita ser o grande problema político do nosso tempo: a erosão da

confiança nos políticos e nas instituições. Essa desconfiança generalizada torna imperativo

indagar sobre como melhorar a qualidade desse relacionamento e de que maneira poder-se-ia

instituir mecanismos de participação e controle, por meio dos quais os agentes públicos sintam-

se incentivados – quando não obrigados – a prestar contas de suas ações aos cidadãos.

Em todo o mundo essa questão tornou-se uma preocupação crescente nos meios

acadêmicos, na sociedade e mesmo entre os políticos e técnicos da Administração Pública.

Como consequência direta, nas duas últimas décadas do século XX, o movimento de

reforma do Estado adquiriu dimensão universal. Independente do alinhamento ideológico do

governante de plantão e do tamanho do aparato administrativo de que dispunha o governo, a

grande maioria dos governos procurou introduzir reformas visando reduzir os custos e

aperfeiçoar o sistema de governança (KETTL, 1998).

O movimento foi iniciado na Inglaterra, sob o comando do Gabinete Conservador

liderado pela Primeira Ministra Margareth Thatcher – denominada à época de ‘a dama de ferro’.

A reforma inglesa se tornaria um paradigma para outros países, inclusive para os Estados Unidos

de Ronald Reagan e o Brasil dirigido por Fernando Henrique Cardoso.

Segundo Dardot e Laval (2010), as reformas significaram um rompimento com o

welfarisme da social democracia, colocando em prática políticas destinadas a superar a inflação e

recuperar o crescimento econômico por meio da atração ao investimento privado. Com slogans

frequentemente simplistas, os reformadores sustentavam que a sociedade é exageradamente

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exigida com as cobranças de taxas (surimposées), excessivamente regulamentada

(surréglementées) e submetida às pressões de sindicados, corporações egoístas e funcionários.

Era preciso reorientar a economia. A fórmula empregada para isso foi buscar uma economia livre

e um estado forte. Forte e guardião do interesse privado. A grande virada, explica Dardot e Laval

(2010), foi que a esquerda social democrática abandonou seu ideal programático e adotou a

matriz ideológica dos liberais da direita, seus opositores históricos, substituindo a defesa dos

direitos sociais e combate às desigualdades pela bandeira da ajuda pontual – e caridosa – a

grupos específicos, como portadores de deficiência (handicapés), idosos e mães solteiras.

Entretanto, o neoliberalismo não é somente uma política econômica. Ele representa uma

nova maneira de pensar, de viver. Explicam Dardot e Laval (2010) que o colocado em jogo não é

nada menos que a forma de nossa existência, ou seja, a maneira como somos estimulados a nos

comportar, nos relacionar com os outros e conosco mesmo. O neoliberalismo introduz um

conjunto de normas na sociedade ocidental em que cada um é exortado a viver em um mundo de

competição generalizada, organizando as relações sociais sob os fundamentos do mercado.

A remodelação do papel do Estado torna-se uma questão central. Colocando de lado

suas especificidades, todos os governos reformistas tiveram como ponto comum a preocupação

com a redução do tamanho do Estado, das suas atividades e do nível de intervenção na

economia. Foram introduzidas medidas de descentralização da administração direta, privatização

de empresas estatais e criação ou aperfeiçoamento de mecanismos de estímulo à concorrência e

proteção do mercado (JENKINS, 1998; KETTL, 1998; PEREIRA, 1998).

Ao lado da ascensão em escala mundial da ideologia liberal, que acreditava na

superioridade dos modelos de gestão da iniciativa privada em relação à Administração Pública,

as reformas e grande parte do seu receituário foram condicionadas também pela crise econômica

que se desenvolveu a partir da década de 1970, provocando uma dramática redução nas receitas

do setor público.

Entre os objetivos declarados das reformas encontravam-se o de substituir – ou ao

menos flexibilizar – o sistema burocrático de gestão, introduzindo-se instrumentos de melhoria

da produtividade, e acoplando ao processo de defesa da modernização do Estado determinados

conceitos ainda pouco difundidos na Administração Pública, como a busca contínua da qualidade

e a participação dos cidadãos no controle e avaliação dos serviços públicos.

Numerosos estudos demonstram que essa abordagem estava no centro das preocupações

de praticamente todos os países que se lançaram nos esforços de reforma no decorrer das décadas

de 1970 a 2000, incluindo, entre outros, Estados Unidos (OSBORNE E GAEBLER, 1995;

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KETTL, 1998), Nova Zelândia (CARVALHO, 1997; KETTL, 1998; RICHARDSON, 1998),

Austrália (FERREIRA E MESQUITA, 1997), Espanha (CÓRDOBA, 2000), Chile (GLADE,

1998), México (GAULT, 1997), Argentina (FELDER, 2000) e Brasil.

Catalá (1998) justificava essa estratégia argumentando que contemporaneamente

governar não significa tanto produzir bens e serviços, mas, sim, fazer a coordenação das

atividades no sentido de garantir que os diferentes atores sociais e econômicos se comportem de

acordo com as regras estabelecidas. Osborne e Gaebler (1995) entendiam que o problema

fundamental era debater a inadequação do governo aos novos tempos. Independente do tamanho

do governo, advertem, é imprescindível melhorar a atividade governamental, pois é verdade que

o governo não pode funcionar como uma empresa privada, mas o governo pode ser mais

‘empresarial’, em uma óbvia referência direta ao que consideravam ineficiência e ineficácia da

Administração Pública.

Em seu relatório de 1997, o Banco Mundial diagnosticava que as diferenças entre o que

a sociedade exigia do Estado e a capacidade deste em realizar tais exigências havia atingido

proporções de uma aguda crise. A crise era ainda maior nos países em desenvolvimento, onde os

governos e os Estados haviam perdido a capacidade de fornecer até os serviços públicos

elementares, como a garantia dos direitos de propriedade e os serviços básicos de saúde e de

educação. Segundo o Banco Mundial, em reação à ineficácia dos Estados, a sociedade sonegava

impostos, iniciando um círculo vicioso de aprofundamento cada vez maior da degradação.

Nestes países, a corrupção tornara-se endêmica, dada a ausência de mecanismos de controle

social da atividade governamental. Por isso, era importante que os governantes selecionassem

cuidadosa e estrategicamente as atividades que o Estado deveria executar diretamente,

concentrando-se nas suas funções essenciais, ao mesmo tempo em que deveria ampliar a

participação das empresas privadas e da sociedade civil na prestação de serviços públicos, e o

envolvimento dos cidadãos na formulação das políticas públicas e no controle das ações

governamentais.

No Brasil, o Plano Diretor da Reforma do Estado, principal documento que reunia e

explicava as estratégias e intenções dos reformadores, trazia uma análise que corroborava o

diagnóstico do Banco Mundial. Segundo o documento, as democracias modernas são

caracterizadas pela ideia de complementaridade entre Sociedade e Estado. Ambos deveriam

formar um todo indivisível, pois, nessas modernas sociedades capitalistas, o mercado e o Estado

são as instituições centrais por meio das quais se opera o sistema econômico. Por isso, o

funcionamento regular de ambos é imprescindível à estabilização social, política e econômica.

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Daí, a importância de se redefinir o papel do Estado, desincumbindo-o de desempenhar algumas

funções diretas, como a produção de bens e serviços, assumindo papel promotor, coordenador e

regulador.

Desse modo, o Estado deveria renunciar à missão que havia desempenhado

historicamente de instrumento de transferência de rendas, delegando ao setor privado as

atividades que pudessem ser controladas por mecanismos de mercado. Paralelamente ao

processo de privatização, o Plano Diretor expressava o desejo de transferir às organizações da

sociedade civil – Organizações Não Governamentais – certas atividades de prestação de serviços

públicos que não envolvessem o uso do poder típico do Estado, entre as quais se incluíam

serviços de saúde, educação e pesquisa científica. Esse processo era chamado pelos articuladores

da reforma no Brasil de publiscização5. Dessa maneira, ao reduzir a sua atuação como prestador

direto de serviços, o Estado poderia se fortalecer técnica e politicamente para o desempenho de

suas funções de coordenação e de regulação. Essa concepção metodológica deu origem ao

projeto de reforma do Estado no Brasil, que distinguia quatro áreas de atuação, relacionando-as

às formas de propriedade e sistemas de gestão, conforme esquematizado no Quadro 3.

Quadro 3: Os Quatro Setores do Estado.

Áreas de ação Atividades Propriedade Modelo de gestão

Núcleo Estratégico

Tomada de decisões estratégicas:

Definição de leis e políticas e cobrança

pelo seu cumprimento;

Manutenção da ordem.

Estatal

Burocrático

Atividades Exclusivas Atividades exclusivas do Estado:

Regulamentação;

Fiscalização;

Fomento;

Cobrança de impostos.

Estatal

Empreendedora

Serviços não exclusivos Atividades não exclusivas do Estado:

Saúde (Hospitais);

Educação (Universidades);

Cultura (Museus);

Ciência e Tecnologia (Centros de

Pesquisa);

Meio Ambiente.

Pública não

estatal (OSs)

Empreendedora

Produção de bens e serviços

para o mercado

Atividades econômicas lucrativas:

Atividades das empresas estatais que

oferecem seus produtos no mercado

com o objetivo de lucro.

Privada

Empreendedora

Fonte: Gomes6, 2001.

5A publiscização é um processo considerado intermediário entre a privatização e a estatização. Segundo o Plano

Diretor da Reforma do Estado (1995: 73-74), publiscizar significa transferir a produção de serviços não exclusivos

do Estado para organizações da sociedade civil ou do denominado setor público não estatal. 6 GOMES, J. L. A complexidade do gerenciamento estratégico de organizações públicas no contexto da reforma do

Estado no Brasil. Dissertação (Mestrado em Administração). Centro Universitário FECAP, 2001.

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Na configuração esquematizada no Quadro 3 nota-se evidente tentativa de separar a

concepção das políticas públicas de sua execução. Toda atividade de formulação estaria a cargo

do núcleo estratégico, composto pelas cúpulas dos três poderes (Legislativo, Executivo e

Judiciário) e o Ministério Público. As atividades que exigem a aplicação do poder típico de

Estado para regulamentar e fiscalizar, como a cobrança de impostos e a atuação das polícias,

seriam atribuições do setor de serviços exclusivos, enquanto que o setor de serviços não

exclusivos incorporaria aquelas atividades, cuja execução não implica o uso do poder de Estado

e que podem ser desenvolvidas pelo setor público, pelas empresas privadas e também por

organizações da sociedade civil. Finalmente, o setor de bens e serviços para o mercado

compreendia o segmento das empresas estatais orientadas para a realização de lucros.

Dado que a estrutura segue a estratégia, como ensina Chandler (1969), esta tentativa de

reconfigurar as atividades do Estado teria como implicação lógica direta igual necessidade de

adequação do sistema de gestão, exigindo novas abordagens de controle das atividades dos

órgãos e dos administradores públicos. A privatização de grandes empresas estatais, a delegação

da prestação de serviços públicos para entidades autônomas descentralizadas, como as

organizações sociais e não governamentais, a ‘flexibilização’ dos controles burocráticos sobre o

setor de atividades exclusivas do Estado, em favorecimento a uma lógica de controle por

resultados, exigiria uma forte redução das assimetrias de informações entre principais (os

cidadãos) e agentes (órgãos e administradores públicos), sob pena de aumentar ainda mais a

captura do Estado por interesses particulares. Então, subjacente estava o pressuposto de que as

reformas levariam, de um lado, a mudanças na lógica de gestão, e, de outro, a uma maior

participação da sociedade na formulação das políticas e no controle social da Administração

Pública.

Diversos estudos corroboravam os pressupostos das reformas. Grande parte deles

reuniam publicações da ENAP – a Escola Nacional de Administração Pública –, à época

vinculada ao Ministério da Reforma do Estado no Brasil.

Andion (1998), por exemplo, vislumbrava o desejo da sociedade brasileira de evoluir de

uma democracia representativa para outra de caráter participativo. Outra articulista das reformas

explicava que quando um serviço público possuísse usuários bem segmentados poder-se-ia

compartilhar com eles o processo de administração e controle (NASSUNO, 1999), reduzindo a

necessidade de adoção dos tradicionais sistemas burocráticos. Campos (1990) enfatizava o alto

grau de controle que outras sociedades exerciam sobre os serviços públicos, colocando em relevo

práticas identificadas em determinadas comunidades dos Estados Unidos. Advertia, entretanto,

que tal participação e controle eram devidos à presença de uma consciência política melhor e da

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existência de uma maior capacidade de organização dos cidadãos em torno de um grande número

de entidades comunitárias. Essas entidades, segundo a pesquisadora, reuniam elevada

representatividade e eram mantidas pelos seus associados. A representatividade e o não

recebimento de subvenções governamentais lhes confeririam mais força e legitimidade frente ao

Estado.7

Dando forma e consistência sistêmica à reforma, os reformadores apontavam para a

implantação de profundas inovações por meio da criação de entidades e instrumentos

estratégicos de gestão capazes de redefinir – ou mesmo de superar – o paradigma burocrático, à

época de tal modo‘demonizado’ que atribuir a alguém o título de burocrata convertera-se em

ofensa muito grave. Segundo Gomes (2001), subjazia o entendimento de que dois processos se

desenvolveriam de formas paralelas e complementares: a melhoria dos sistemas de controle e a

elevação dos níveis de participação dos cidadãos. Combinados, esses processos – a reforma da

estrutura do Estado e a introdução de novos instrumentos de gestão – levariam, de um lado, à

melhoria da qualidade dos serviços prestados à sociedade e, de outro, ao aperfeiçoamento do

processo interno de tomada de decisões, tornando-o, ao mesmo tempo, mais ágil e melhor

conectado aos anseios da sociedade.

Um desafio que precisava ser superado era aproximar Sociedade e Estado com o intuito

de eliminar ou pelo menos reduzir as assimetrias de informações. Seria necessário estabelecer

conexões entre os cidadãos e os tomadores de decisões estratégicas posicionados no topo das

organizações, fazendo chegar a eles a percepção dos cidadãos sobre o desempenho das

organizações públicas no cumprimento da sua missão institucional. Nessa abordagem

emergiram, entre outras entidades, as Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo,

cuja missão era defender e proteger os direitos dos cidadãos usuários de serviços públicos,

ampliar os níveis de participação e controle social e contribuir para o aperfeiçoamento

institucional das organizações nas quais atuam. A lei de acesso à informação, aprovada em 2011,

ao mesmo tempo em que poderá contribuir para golpear o segredo burocrático, criando

condições para reduzir a assimetria de informações, deverá fortalecer o trabalho das Ouvidorias.

7 Embora a autora faça essa afirmação, outros estudos, como os de Osborne e Gaebler (1995), indicam que as

Organizações Não Governamentais dos Estados Unidos são fortemente subvencionadas pelo Estado e submetidas a

um maior controle social através da criação de Conselhos Comunitários de Administração.

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1.3 Estado e cidadania

A questão da cidadania está entre os temas mais importantes e atuais da pesquisa na

área de Ciências Sociais. Relevância justificada pelo fato de que as leis, a proteção social, a

solidariedade, a participação, a representação política, a transparência e a possibilidade de se

organizar para resistir à opressão das estruturas de autoridade formam o quadro em torno do qual

se desenvolve toda vida coletiva.

A palavra cidadania carrega hoje um conceito empregado de maneira cada vez mais

ampla, pelo menos nos países democráticos. Fala-se de uma ‘agenda cidadã’, para se referir a

qualquer evento ou iniciativa, mais ou menos institucionalizado, em que os governos prestam

contas de suas ações à sociedade, às vezes, disseminando propaganda política dissimulada em

comunicação de interesse público.

Essa multiplicidade de usos (e mesmos de abusos) na utilização da expressão cidadania

não impede, contudo, que o conceito tenha sentido bastante preciso, permitindo defini-lo

objetivamente. Entre as definições de cidadania mais frequentemente adotadas está aquela

oferecida por Marshall (1967) em seu ensaio clássico publicado há mais de 60 anos, ‘Cidadania,

classe social e status’. Para ele, o sentido de cidadania está relacionado à possibilidade e a

capacidade de um indivíduo participar integralmente na vida da comunidade da qual faz parte.

Marshal considera que a cidadania estabelece uma condição de igualdade qualitativa. Contudo,

para ele, essa igualdade qualitativa pode coexistir com a diferenciação quantitativa, desde que a

igualdade de cidadania tenha sido reconhecida.

A cidadania implica o crescimento das pessoas, pois se torna cidadão à medida que se

aprende sobre o seu significado, no curso da própria transformação. A cidadania se concretiza

em um modo de viver que parte do indivíduo, do seu interior, não constituindo algo que se possa

lhe impor a partir de fora, do Estado, por exemplo. Por isso, a cidadania se relaciona com a vida

do indivíduo em sociedade, seus direitos e obrigações para com os outros e consigo mesmo.

Marshall via apenas um direito individual incontestável: o de acesso das crianças à

educação, caso único em que admitia o uso do poder coercitivo do Estado para que o objetivo

fosse atingido. A transposição da fronteira do analfabetismo era vista por ele como uma condição

necessária ao exercício da cidadania pelos adultos. Dado que o propósito da educação das

crianças é moldar o adulto em perspectiva, ela não consistia no direito da criança de frequentar a

escola, mas no direito que o adulto teria de ter sido educado na infância, representando, então,

um requisito prévio para o futuro exercício da liberdade.

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Entretanto, ao longo século XX um número generoso de direitos foi acrescentado à

ideia fundadora da igualdade humana de participação. O Estado passou a reconhecer um

conjunto de prerrogativas abarcando o direito ao exercício da liberdade individual, o direito ao

exercício da liberdade política e o direito de acesso aos bens de consumo básicos, conectando os

elementos civis, políticos e sociais. De acordo com Marshall, os direitos civis se formaram

sobretudo no século XVIII, os direitos políticos no século XIX e os direitos sociais se

consolidaram em meados do século XX.

A parte civil da cidadania é formada pelos direitos indispensáveis ao exercício das

liberdades individuais, como as liberdades de ir e vir, de imprensa, de pensamento, de fé, o

direito de propriedade e de acesso à justiça. O elemento político é constituído pelos direitos que

favorecem a criação de condições que permitem participar do exercício do poder político, como

tornar-se membro de instituições políticas investidas de autoridade ou, pelo menos, ter a

possibilidade de participar da escolha dos membros dessas instituições. Os direitos relacionados

ao elemento social são aqueles necessários para propiciar um mínimo de bem estar econômico e

segurança de poder participar da herança da sociedade, levando uma vida civilizada, segundo os

padrões que predominam nesta sociedade. Por um processo histórico de diferenciação, cada

conjunto de elementos levou ao desenvolvimento de quadros institucionais, destinados a

assegurá-los.

Em primeiro lugar, relacionado ao elemento civil, desenvolveram-se as instituições do

direito, dentre as quais, merecem destaque os tribunais de justiça, destinados à garantia da

igualdade formal qualitativa. Outras entidades se desenvolveram durante o processo de criação

da infraestrutura necessária ao desenvolvimento desse elemento, como a profissão de defensor

público e particular, e os cursos destinados à formação de advogados. No tocante aos direitos

políticos, desenvolveram-se as instituições investidas de poder, como o parlamento, os governos

executivos nacionais e locais, as diversas formas de conselhos de participação e, junto com elas,

criaram-se sistemas destinados à coordenação dos processos de escolha dos seus dirigentes e

membros. Finalmente, para a execução dos direitos sociais desenvolveram-se estruturas com o

propósito de fornecer, entre outros, serviços de saúde, educação, previdência e segurança

pública, para assegurar o acesso livre às oportunidades de trabalho – condicionado apenas pela

legítima exigência de prévio treinamento técnico –, além de outros programas, com os quais os

governos procuram assegurar uma renda básica aos que vivem abaixo das condições

consideradas mínimas para participar dignamente da vida da comunidade.

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Entretanto, a simples criação e ampliação de direitos não é garantia de sua efetiva

aplicação. Ao mesmo tempo em que se vive em um mundo que assegura uma multiplicidade de

direitos ao cidadão abstrato, o homem concreto pode continuar sem usufruí-los, quer porque os

ignora, quer porque encontra barreiras em uma administração pública fechada, indiferente às

necessidades e mesmo aos mais elementares direitos dos cidadãos. Paradoxalmente, o mundo

que oferece aos consumidores novas formas de inclusão na sociedade capitalista, por meio do

uso das novas tecnologias é o mesmo que reúne também novas formas de exclusão, ao menos

para os cidadãos que não as dispõem.

A ideia de cidadania repousa fortemente sobre o princípio da igualdade, principalmente

em relação às estruturas de poder. Trata-se, portanto, de algo que se relaciona à qualidade das

relações, mais do que o simples estabelecimento de uma estrutura de normas genéricas para

cidadãos abstratos. Isso implica questionar as desigualdades existentes nas relações entre os

cidadãos e os órgãos de Estado, notadamente no que se refere ao acesso à informação sobre a

Administração Pública, de forma a criar canais pelos quais os cidadãos possam determinar o

nível de engajamento dos agentes públicos no sentido de realizar aquilo que deles se espera, e de

se certificar que eles não se engajem naquilo que pelo menos em princípio não deveriam fazer.

Se o princípio consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil, inspirada

na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão é de que todo o poder emana do povo e em

seu nome deve ser exercido, restará uma realidade irrealizável enquanto se confundir democracia

eleitoral como sinônimo de cidadania. Ela certamente integra o conjunto de repertórios que

forma a cidadania, mas a cidadania aí não se encerra.

A cidadania é, antes de qualquer outra coisa, um princípio de legitimação da atividade

política, da função do Estado e da ação governamental. Nas sociedades democráticas modernas,

explica Schnapper (2007), os vínculos entre os homens não são mais formados pelo

compartilhamento de uma mesma religião, ou pela submissão a um mesmo monarca. Eles são

políticos, fundados no princípio da igualdade de todos os participantes de uma mesma

organização política que, se traduz na fórmula ‘um homem, uma voz’.

Até o advento da Revolução Francesa, os monarcas sentiam-se obrigados a prestar

contas somente a Deus, de quem se acreditavam ser representantes na terra. Sendo monarquias

absolutas, de poder divino, nenhuma pessoa ou grupo de pessoas na terra, poderia limitar ou

controlar o seu poder. Para Louis XIV, o Estado e a vontade do povo estavam nele

representados. Era dele que tudo partia e para ele tudo convergia. Louis XVI acreditava que a

sua vontade era o bastante para tornar qualquer coisa legal: c’est legal si je le veux (é legal, se eu

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o quero), teria ele dito, ao responder a indagação de um deputado do Terceiro Estado sobre o que

ele considerava ser a legalidade. A partir da Revolução Francesa estabeleceu-se o princípio de

que a soberania está na nação, no povo, nos governados e não no governante.

Entretanto, a cidadania não é uma expressão definitiva, fechada, dada para sempre, de

uma vez por todas. Trata-se, antes, de um conceito formado historicamente, revestido de

significados cada vez mais amplos e de uma complexidade crescente. O cidadão que promoveu e

que emergiu das revoluções liberais do século XVIII não é o mesmo da Grécia antiga e, menos

ainda, o cidadão que vive no século XXI.

Embora em constante evolução, o conceito de cidadania carrega um significado preciso,

lastreado em noções fundamentais e universalmente aceito. Ao fazer referência à cidadania

remete-se, quase que imediatamente, à interpelação do Estado, juntando-os em uma mesma

abordagem. Um desafio e tanto, quando se constata que cada um desses assuntos – cidadania e

Estado – que tanto mobiliza os pesquisadores em Ciências Sociais, mesmo quando abordados

separadamente, desperta paixões tão intensas que podem paralisar seus comentadores no interior

das ideologias.

O ideal democrático é hoje compartilhado pela ampla maioria dos países em todo

mundo, convertendo-se em uma busca quase universal, como reconhece Lauzun (2005).

Provavelmente, em nenhuma outra época se viveu tão intensamente esse desejo e possivelmente

em nenhum outro período tantos países se declararam democráticos. Simultânea e

contraditoriamente, é provável que em nenhuma outra época os regimes ditos democráticos

foram alvos de tão vivas críticas. A erosão da confiança dos cidadãos nos seus dirigentes e nas

instituições constitui o grande problema político do nosso tempo, assevera Rosanvallon (2006).

Sob o ângulo de interesse dessa pesquisa, discutir o que constitui a democracia exige

procurar o seu significado real, mais do que operacionalizar a sua definição conceitual. Para

explicar a sua etimologia se poderia recorrer aos gregos.

Democracia significa poder do povo. Contudo, entre a palavra e a sua execução há uma

larga distância. Em meio a uma sociedade que assiste à ascensão do individualismo e do

consumismo, diversos estudos apontam a redução da vontade política geral, a separação entre

sociedade e dirigentes públicos, a prevalência das relações de consumo antes e acima da conduta

cidadã. Em outros termos, constata-se um mal estar generalizado com o regime democrático e

mesmo uma decepção com o sistema representativo de governo. Caracterizado por uma tipologia

fortemente idealizada, a democracia representativa está fundamentada na promessa de realização

de um nobre ideal, sintetizado no objetivo de instauração de um regime de governo baseado no

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interesse coletivo e nas necessidades da sociedade, tendo por princípio a igualdade de todos e a

autonomia de cada cidadão.

A Revolução Francesa foi a primeira experiência de institucionalização dessa promessa.

Entre os temas que nela se fizeram presentes estavam as garantias de liberdade civil e religiosa, a

limitação dos mandatos eletivos, o sufrágio universal, a subordinação do poder militar ao poder

civil, o acesso de todos às funções públicas. As reivindicações que motivaram os revolucionários

já se encontravam formuladas ou ao menos subentendidas nas teses defendidas pelos teóricos

clássicos, notadamente os três da vertente liberal – Locke, Montesquieu e Rousseau. Na

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, reconhece-se o direito de resistência

do povo ao governante que se desviar desses objetivos, agrupados em torno do supremo

comprometimento de se engajar na realização do bem comum. Embora possa ser bastante

improvável que qualquer governante reconheça o efetivo direito de colocar em prática esse

direito, ele demarca o ponto em que se sepulta em definitivo o Ancién Regime, cuja legitimidade

dos reis era reivindicada a um suposto direito divino.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgada pela Organização das

Nações Unidas, em 1948, embora não reafirme o direito à resistência, reforça a necessidade de

que os direitos básicos sejam protegidos para que o povo não seja forçado a recorrer à revolta

contra a tirania e a opressão – ainda que este seja entendido como recurso extremo.

Contudo, explica Rosanvallon (2006), apesar de todas as precauções, constitui um fato

significativo a dolorosa experiência da corrupção do poder, o risco permanente de imposição dos

interesses particulares sobre os interesses coletivos, a possibilidade da representação se tornar

dominação. A decepção com o sistema democrático representativo encontra seu contraponto na

societé de la défiance.

A desconfiança se instala de modo permanente no tecido social. Em contrapartida, nas

democracias liberais, a representação é indireta e o envolvimento do cidadão se dá de forma

episódica e eventual: episódica, para a eleição de representantes e de maneira eventual quando se

recorrem às consultas por meio de plebiscitos, como aconteceu no Brasil para decidir sobre a

liberação ou não do porte de armas de fogo e, mais recentemente, para deliberar sobre a divisão

do Estado do Pará. A desconfiança em si não constitui fato recente. Ela está presente em todas as

obras dos teóricos clássicos. Duas questões constituem, contudo, fenômenos recentes: a

dimensão que a desconfiança adquiriu na sociedade atual e a maneira como a sociedade procura

enfrentá-la.

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Rosanvallon (2006) acredita que esta condição de défiance tornou-se de tal modo

generalizada que ela deve ser vista como um fator estruturante da sociedade contemporânea por

ter se convertido em uma verdadeira forma política. Ainda segundo Rosanvallon (2006), o Brasil

é o país que bate todos os recordes de desconfiança política e também o país no qual os

indicadores de confiança interpessoal são os mais baixos. As causas dessa erosão da confiança

são múltiplas. Esta pesquisa não comporta uma análise aprofundada e exaustiva dessas causas.

Contudo, considera-se necessário discuti-las ao menos de maneira sucinta.

Além das causas já apontadas em relação às disfunções do sistema político e

institucional, advêm outras relacionadas à vida coletiva, dado que a democracia e a cidadania

não se encerram nos processos eleitorais episódicos, nem estão limitadas à relação Estado-

Sociedade. A democracia e a cidadania incorporam as dimensões do viver em sociedade, do estar

juntos no mundo e das expectativas compartilhadas sobre o desenvolvimento no futuro dessa

vida em comunidade. Entende Rosanvallon (2006) que três fatores, de ordem científica,

econômica e tecnológica explicam o advento dessa sociedade de défiance.

O primeiro fator, de ordem científica, é representado pela ruptura com o otimismo

tecnicista que prevaleceu até os anos 1960. Acreditava-se que todos os problemas enfrentados

pela humanidade seriam superados pelo contínuo progresso científico. Entretanto, o advento da

guerra fria, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, a ameaça do horror nuclear e a

possibilidade de uma catástrofe ambiental abalaram de maneira irreversível o otimismo com a

hipótese de um progresso científico linear capaz de reduzir as desigualdades à medida que se

desenvolvia. Passou-se no curso das quatro ou cinco últimas décadas do otimismo com o

progresso ilimitado, à sociedade do risco, das incertezas e da desconfiança em relação ao futuro.

A atribuição ao Estado de um papel menos ativo, desqualificando a sua capacidade de

intervenção no curso de reintrodução de uma ideologia radical-liberalizante, deu forma a uma

sociedade cada vez mais autorregulamentada por uma economia crescentemente autônoma em

escala mundial. O liberalismo se tornou neoliberalismo, dando novos contornos aos Estados, que

se converteram de Estados de bem estar social em Estados administrativos. A intervenção do

governo passou a ser encarada como um entrave ao desenvolvimento da economia de mercado e

uma limitação ao exercício da liberdade individual.

Introduz-se uma lógica de ação governamental que, na compreensão de Allones (2010),

coloca em risco a cidadania que caracteriza a democracia. O cidadão passa a ser visto como

sujeito empresarial, empreendedor de si mesmo, reduzindo-o à dimensão econômica fundada na

racionalidade do mercado que desemboca em um processo de dé-démocratisation. A

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sobrevalorização do indivíduo (a autonomia) compromete os princípios da solidariedade

tornando o mundo uma fábrica de incertezas. Emerge uma concepção de Estado nacional fraco

quanto a sua capacidade de formular políticas sociais e de cidadania, mas que não o é quando se

trata de assegurar os interesses das corporações globais no contexto nacional.

Para Dardout e Laval (2010), o esgotamento da democracia liberal e a ascensão da

racionalidade neoliberal introduziram uma nova fase na história das sociedades ocidentais. O

neoliberalismo se impôs como a nova razão do mundo e não deixou intacta nenhuma esfera da

existência humana. Sua lógica corrói até a concepção clássica de democracia, introduzindo

formas inéditas de dependência e subjugação que constituem – ao menos para os que o

contestam - um enorme desafio político e intelectual. De suas formulações podem ser extraídas

quatro grandes características, que distinguem e tipificam o neoliberalismo: o engajamento

ideológico do Estado, a competição como norma universal de conduta, a preponderância do

direito privado sobre o direito público e ‘gouvernementalité entrepreneuriale’ como modelo de

subjetivação.

O engajamento ideológico do Estado torna-se imprescindível, pois o mercado é uma

realidade construída e não um mecanismo natural, como acreditavam os economistas clássicos.

A legitimação da lógica do mercado antes e acima da cidadania exige uma ativa intervenção do

Estado. A mais importante questão colocada para o debate público é aquela que trata da

capacidade do Estado de conduzir as reformas, cujo sentido não é jamais explicitado, não sendo

possível saber quais resultados estão sendo buscados para a sociedade.

Em segundo lugar, a essência do mercado não é a troca (échange), mas a concorrência,

definida como relação desigual entre diferentes unidades de produção. Deste ponto de vista,

construir o mercado implica, por consequência, fazer valer a competição como norma geral das

práticas econômicas. A figura do cidadão investido de uma responsabilidade coletiva pouco a

pouco se apaga, convertendo-o em consumidor e deixando seu lugar ao homem entrepreneurial.

A terceira característica significa que o Estado não é – como concebido pelo liberalismo clássico

– apenas o guardião dessa nova ordem. Ele submete a própria ação à norma da competição, de

acordo com o ideal de uma sociedade de direito privado. O Estado passa a olhar a si mesmo

como uma empresa, tanto no que concerne ao seu funcionamento interno, quanto nas suas

relações com outros Estados. Muito longe de ser neutra, essa mudança afeta diretamente a lógica

democrática da cidadania social, reforçando as desigualdades na distribuição e no acesso aos

recursos de emprego, saúde e educação, e ampliando a exclusão que produz crescente número de

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‘sub-cidadãos’ e de ‘não cidadãos’. Assim, o Estado, aquele que construiu o mercado também

constrói a si mesmo segundo as regras desse mercado.

Finalmente, a exigência de uma universalização da norma de competição excedeu as

fronteiras dos Estados, atingindo diretamente os indivíduos. De tal modo que o governo de

mentalidade empresarial, que deve prevalecer no plano da ação do Estado, encontrou uma

maneira de se prolongar no governo de ‘si mesmo’ – do indivíduo-empresa. Dito de outra forma,

o Estado empresarial deve, como os outros atores privados, levar indiretamente os indivíduos a

conduzirem eles mesmos como empreendimentos. Desse modo, a ideologia neoliberal se reveste

de um conjunto de técnicas de governo que, ultrapassa a dimensão estatal, orquestrando a

maneira pela qual os indivíduos devem se conduzir. Cada um é uma empresa a ser gerida e um

capital a se fazer frutificar.

Quando a racionalidade se torna estritamente managériale e a performance aparece

como o único critério de uma política, o que importa o respeito à consciência, a liberdade de

pensamento, o respeito às formas e procedimentos democráticos?

A nova racionalidade promove a sua própria forma de validação. Ela nada tem a ver

com os princípios morais e jurídicos que sustentam a cidadania. Olha-se para as leis e para as

normas simplesmente como instrumentos cujos valores são relativos à realização dos seus

objetivos. Episódio ilustrativo dessa conduta ocorreu em 2008. Ante o agravamento da crise

financeira internacional, cuja origem foi a especulação com títulos imobiliários nos Estados

Unidos, o então Presidente da Diretoria Executiva da Vale (Companhia Vale do Rio Doce), a

segunda maior mineradora do mundo, Roger Agnelli, exortou o Presidente Lula a ‘flexibilizar’ a

legislação trabalhista – ao menos temporariamente, para que a empresa pudesse demitir ou

reduzir os direitos e os benefícios dos seus empregados, tornando precárias as relações

trabalhistas(Portal G1, 4/12/088). Antes a empresa já havia demitido cerca de 1.300

trabalhadores. Naquele ano o faturamento da empresa superou os 30 bilhões de reais, valor

superior ao PIB (Produto Interno Bruto) de dez Estados brasileiros.9

Embora observando essas tendências na sociedade sob outro ponto de vista, Bec (2007)

identifica o mesmo fenômeno – a ascensão do individualismo. Em sua visão, esse fato

caracteriza a mudança mais significativa experimentada pelo Estado de Bem Estar nas três

últimas décadas. A ideia de direitos do homem (individual) passou a ocupar a noção central de

dignidade, sobrepondo-se à noção de direito social. Não se trata mais da busca pela realização de

8 Portal G1. Presidente da Vale quer flexibilização de leis trabalhistas.

9 Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rodônia, Sergipe, Piauí, Tocantins, Amapá, Acre e Roraima.

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um projeto político coletivo, mas sim da reivindicação pela atribuição de direitos aos indivíduos,

cada vez mais apartados das exigências coletivas.

Nesse contexto de crescimento do individualismo e da desconfiança nas instituições se

fortalecem as pressões pela ampliação das práticas de democracia direta em um primeiro

momento e, na atualidade, a reivindicação para que sejam estabelecidos mecanismos por meio

dos quais os cidadãos possam ‘vigiar’ – e, quando possível, punir – os dirigentes públicos,

responsabilizando-os pelos seus atos. Um primeiro sintoma dessa mudança nas sociedades pode

ser vislumbrado com os índices crescentes de abstenção eleitoral, tanto mais notado nas

sociedades onde o voto é exercido livremente – condição inexistente no Brasil de hoje.

Segundo Conan (2004), o sufrágio universal, tido como essencial para a democracia,

demorou um longo tempo para ser plenamente aceito pelas elites. Na França, por exemplo, um

dos países fundadores dos modernos sistemas democráticos liberais, segundo Rosanvallon

(1992), a universalização do direito de voto sem dissimulações ou segundas intenções (arrière-

pensées) se deu apenas na década de 1970, com a sua extensão aos jovens de 18 a 21 anos.10

Coincidentemente, essa mesma década marca a ampliação da descrença da população nos

sistemas eleitorais, manifestada continuamente nos elevados índices de absenteísmos. Esse

desinteresse crescente do povo pelo sufrágio eleitoral, aliado a uma incapacidade (ou, também,

desinteresse da esquerda em educar a população), produziu uma quimera política, abrindo o

caminho para o crescimento de uma tecnocracia demagógica, criadora de polêmicas estéreis,

guerrilhas de gabinete e curtas frases de efeito desprovidas de conteúdo (sans lendemain), cujo

representante típico na França foi Jacques Chirac e no Brasil, Fernando Collor.

Um traço que tem sido comum atualmente para unir os políticos de esquerda e de direita

é a busca constante por se emanciparem do sufrágio popular, tentando contorná-lo, substituindo-

o progressivamente por modos de decisão de menor risco (sûr) e menos cansativas que as urnas

(CONAN, 2004). O apelo à auto-organização da sociedade civil constituiu um primeiro

subterfúgio, jamais verdadeiramente explicitado. Para Conan (2004), a intervenção dessas

organizações, por consulta ou gestão direta de equipamentos, mostra-se menos democrática em

comparação ao simples poder de decisão de um eleito submetido ao sufrágio universal. A maior

parte de suas despesas é custeada por subvenções públicas e não por cotizações de seus

associados. Nessas condições, elas se assemelham mais a pequenas administrações autônomas do

que às associações de cidadãos reunidos em torno de objetivos comuns.

10

No Brasil, pode-se dizer que a universalização ocorreu somente ao final da década de 1980, no curso da

elaboração de uma nova constituição para o país, com a concessão do direito – ou obrigação – de voto aos

analfabetos maiores de 18 anos, facultando-o aos jovens com mais de 16 e menores de 18 anos.

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Contudo, a tendência de redução da participação popular nos processos eleitorais,

percebida por muitos como uma ampliação do desinteresse pela cidadania, pode ser

compreendida, também, de outra maneira. De acordo com Rosanvallon (2006), o que está em

curso é um processo de transformação nas democracias. Enquanto a democracia eleitoral vem

sendo incontestavelmente erodida, outras formas de expressão e de intervenção vêm sendo

criadas e afirmadas.

Uma leitura cuidadosa dessa tendência pode mostrar que está havendo, de fato, uma

transformação qualitativa nos processos por meio dos quais a sociedade tenta afirmar a sua voz.11

Tal ponto de vista enseja conceber a democracia como a capacidade da sociedade de tomar para

si a palavra, vigiar os seus governantes e responsabilizá-los pelos seus atos. Assim, a despeito do

diagnóstico de que o cidadão está se fechando em torno de si mesmo, essas novas formas de

manifestação podem corresponder, também, a uma tomada de consciência sobre os limites da

democracia representativa e convergir em direção a um esforço de reconstruir os vínculos sociais

e reconstruir a cidadania por meio da participação solidária e do controle das estruturas de

autoridade, dentre as quais o Estado é a principal, embora não a única.

1.4 Os novos direitos do homem e o cidadão surveillant.

Em extensa pesquisa, sob uma ótica institucionalista, Simões (2012) constatou que um

conjunto de novos direitos foi instituído no aparato institucional brasileiro, com vistas a tornar o

Estado mais aberto ao controle da sociedade. Simões procura traçar as nuances de três vertentes

no processo de formação dos direitos: Estado de direito, social e Estado democrático de direito.

Embora complementares, eles são de natureza distinta. De acordo com Simões, caracteriza o

Estado social a garantia dos direitos sociais, ao passo que o Estado de direito é aquele que

assegura às liberdades políticas e civis. O Estado pode existir na sua forma social, sem entretanto

constituir-se como Estado de direito, assim como ser um Estado de direito sem o ser no plano

social. O Estado social, inaugurado em 1934 jamais deixou de existir. Mas, o mesmo não se

passou com o Estado de direito, havendo períodos da nossa história em o Estado teve um caráter

social, mas não se constituía em Estado de direito, como, por exemplo, o período do Estado

Novo e aquele do Regime Militar. Mas, de acordo com Simões, o inverso também se passou,

pois a República de 1891 foi um Estado de direito sem, contudo, ser um Estado social. Com

11

Por qualitativo, no contexto afirmado, compreende uma mudança nos meios, na forma de ação, não

necessariamente envolvendo o aspecto quantitativo. Não se deseja que a palavra seja tomada em seu sentido usual,

caracterizando algo intrinsecamente superior.

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essas evidências, Simões contesta o clássico texto de Marshal, segundo o qual os direitos se

formaram por meio de um processo linear, iniciando-se pelos direitos civis. Já o Estado

democrático de direito se expressa por meio de uma síntese dos direitos civis, políticos e sociais.

Entretanto, o Estado democrático de direito não se limita a uma síntese dos dois

paradigmas anteriores e tampouco se resume a um Estado social aprofundado. Simões identifica

uma série de novos direitos introduzidos pela Constituição de 1988, entre os quais menciona-se a

legitimidade da participação e o controle social. De acordo com Simões (2012, p. 243), as

inovações introduzidas pela Constituição de 1988

resultaram na alteração da própria natureza das instituições estatais. (...)

enquanto o Estado liberal constituía-se em um ente passivo, que reservava aos

cidadãos a iniciativa de seus direitos; e o Estado social, ao contrário, assumia já

a iniciativa de intervir na ordem econômica para assegurar os direitos sociais

clássicos; o Estado democrático de direito, em síntese, institucionalizou

princípios de interatividade com a sociedade civil, ora por iniciativa desta, ora

daquele, para implementar as políticas governamentais.

As seguintes inovações são descritas por Simões:

Incorporação de direitos sociais novos, entre eles os universais, como a democracia,

mantendo a garantia dos sociais clássicos junto com os direitos civis e políticos;

Para garantir a efetividade dos direitos, alterou o caráter dos princípios e dos dispositivos

constitucionais, até então, meramente programáticos, instituindo princípios que não podem

ser contrariados pela jurisprudência dos tribunais;

Reconhece o poder e a participação civil no Estado, assegurando o seu direito de acesso às

decisões governamentais e a fiscalização da sua execução;

Institui os direitos ‘transindividuais’, reconhecendo a pluralidade e a diversidade das

necessidades e dos anseios da população;

Assegura à população o acesso às condições materiais de vida e de desenvolvimento da

personalidade, sem as quais o direito de cidadania não se realiza;

Promove a inclusão das parcelas da população excluídas, por meio do princípio da igualdade

material;

Promove a inclusão política cidadã, seja ela individual, por meio da regularização da

identidade e do direito de voto, seja pela intensificação da legitimação democrática, através

do controle social da administração pública, por intermédio dos conselhos e do orçamento

participativo;

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Assegura ao Estado a regulação das relações privadas, direcionando-as para o exercício dos

valores constitucionais, como a dignidade, o direito à vida, a união estável, a maternidade;

Reconhece que a pessoa é o centro da ação do Estado, vinculando-se explicitamente à

realização dos valores da ética constitucional;

Mantém os princípios constitucionais clássicos de impor limites à atividade legislativa que

contrarie a Constituição;

Cria três princípios fundamentais de ordem jurídico-política vinculados à realização da

cidadania: a democracia participativa; a garantia do acesso à justiça, conferindo novo status

constitucional ao Ministério Público e o compromisso expresso com a probidade na gestão

dos recursos públicos;

Cria novos mecanismos de controle social que intensificam a atuação da cidadania, como o

habeas data, o direito de petição, iniciativa popular de leis, mandado de injunção, mandado

de segurança coletivo;

Supera a distinção rígida na atuação dos três poderes, por meio do interrelacionamento das

respectivas competências, de modo a se impulsionarem mutuamente;

Inova relativamente à institucionalização da ordem social, desvinculando-a da ordem

econômica e financeira.

Dada a impossibilidade de tecer comentários para cada um dos diversos pontos

descritos por Simões, por motivos vários, iniciando-se pelo forte conteúdo jurídico de muitas das

inovações mencionadas - que escapa ao interesse direto dessa pesquisa -, faz-se aqui não mais do

que algumas observações de caráter geral, sem a menor pretensão de estabelecer uma análise

crítica do brilhante trabalho de pesquisa bibliográfica e documental empreendida pelo autor.

Ninguém contestaria o fato de que o Brasil evoluiu no campo dos direitos desde o

restabelecimento do regime democrático representativo. Entretanto, declarar é bem mais simples

do que efetivá-los. Sobretudo, a alegada atenuação da rígida separação entre sociedade civil e

Estado, é afirmação que mereceria um Estudo empírico para ser evidenciada. O ruído vindo das

ruas dá um sinal desse fosso abismal que separa as duas estruturas. De modo semelhante, um

estudo empírico poderia esclarecer melhor a eficácia dos quase 24 mil conselhos em atividade no

Brasil. E poderia, ainda, contribuir para conhecer o próprio reconhecimento da legitimidade

dessas entidades por parte da população identificando a sua composição, a maneira como os seus

membros são escolhidos e o grau de autonomia com o qual realiza o seu trabalho. Uma grande

parte, senão a totalidade, não passa de arranjo formal.

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No Estado de São Paulo, cumprindo formalidade constitucional, realiza-se anualmente

uma série de audiências públicas, com a qual supostamente se mobiliza a população para que ela

participe da elaboração do orçamento. Em todos os anos são realizadas anualmente cerca de duas

dezenas de encontros regionais dessa natureza em todo Estado. Dados os horários e dias em que

são realizadas, normalmente de segunda a sexta feira em horário comercial, a participação é

bastante limitada, restrita aos grupos mais organizados, quando não profissionalizados, como os

sindicados de funcionários públicos, ONGs, representantes das grandes centrais sindicais,

políticos locais e assessores de deputados com interesses eleitorais na respectiva reunião. A

dinâmica do encontro consiste basicamente em uma apresentação estruturada, proferida por

técnicos do Governo do Estado, informando a estrutura dos programas contidos na proposta

orçamentária. As contribuições apresentadas pelos participantes, normalmente, estão

relacionadas a interesses corporativistas ou são de caráter específico: de um bairro, uma

comunidade rural, uma cidade ou, quanto muito, uma região. Contribuições que sequer podem

ser discutidas, pois o orçamento do Estado é formatado como uma peça unitária e os recursos são

alocados setorialmente e de modo bastante genérico. O orçamento regionalizado, critério que

tornaria a discussão nas audiências públicas um pouco menos esotérica, sequer vem sendo

discutido de modo consistente. Mas isso não é a parte mais desmoralizante desse dispositivo de

participação. O que o torna ainda mais bizarro é o fato de que as sugestões recolhidas junto à

população nas audiências públicas, quando chegam ao órgão central do Governo, o seu

orçamento já está consolidado, não havendo mais espaço para a incorporação das demandas

recolhidas. Com esmero e dedicação pessoal, quase sem recursos tecnológicos para sequer

extrair informações úteis para subsidiar o processo orçamentário seguinte, as informações são

depositadas em arquivos setoriais, sem nenhum processo de análise e aprendizado e, em seguida,

enviadas às secretarias de Estado que, sobre elas, sequer se manifestam. Nenhuma informação

retorna ao cidadão autor da sugestão. Esse é apenas um exemplo. Um estudo empírico revelaria o

caráter majoritário de sua extensão. Na lei, entretanto, o orçamento participativo está assegurado

e implantado.

O problema é a confusão entre a declaração de um direito e a sua real efetivação. O que

está na lei constitui, na maioria das vezes, o que deveria ser ou o que se gostaria que fosse, mas

não exatamente o que é na realidade. Essa mesma Constituição que teria instaurado o Estado

Democrático de Direito, por intermédio do qual a sociedade civil e o Estado teriam se

metamorfoseado, tabelou os juros em 12% ao ano, quando, sabidamente, a taxa real passa dos

200% ao ano. Da mesma forma que se poderia colocar em questão a igualdade de todos perante à

lei formalmente assegurada e jamais plenamente realizada. Os pequenos delinquentes capturados

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pela polícia e levados à delegacia são encarcerados mesmo antes do julgamento. Os delinquentes

de colarinho branco, com advogados de alta patente, após anos de litígio, em muitos casos,

encerram a pendenga assinando no Ministério Público um TAC (Termo de Ajustamento de

Conduta). Conduta que invariavelmente não se ajusta, pois a reincidem. Mas, formalmente,

perante a lei, todos são iguais.

Quando um direito é assegurado pela lei e o Estado não o respeita, para reivindicá-lo é

preciso ir à justiça, por meio dos serviços de um advogado. A justiça é gratuita, mas não o acesso

a ela. E quando o cidadão tem a felicidade de obter uma decisão favorável, destinada a reparar o

dano, a possibilidade de ela se efetive resta ainda rara. Ganhar do Estado no Brasil não significa

levar. Nos casos de indenização, ele será literalmente amontoado em uma lista de precatórios,

cujo e tempo de espera pode levar entre 20 e 50 anos. Nessas condições, para mencionar não

mais que alguns exemplos, o Estado democrático de direito é ainda uma conquista que a

sociedade brasileira tem por realizar.

Sociedade civil e Estado não se confundem. São estruturas distintas. Este é a ordem,

aquela, a política. A distância entre ambos no Brasil é abissal. Reduzi-la transcende a simples

elaboração de regulamentos, implicando fustigar a cultura autoritária que caracteriza um país

inventado de trás para a frente: primeiro veio o Estado. Depois, a sociedade. Esta para servir

aquele. Faz-se necessário aproximar as duas esferas por meio de um diálogo entre iguais. Entre

iguais que se reconhecem como iguais e diferentes. O Estado não é a sociedade. E a perspectiva

de que esta possa, de alguma maneira, ser absorvida por aquele em sua estrutura é uma utopia

que merece uma reflexão que esse espaço não possibilita fazer.

O acesso aos direitos declarados na lei pode não se realizar, também, por falta de

informação. Em estudo recente sobre a relação entre cidadania e governo eletrônico (e-Gov),

Anjos e Ezequiel (2011) constataram uma enorme desinformação na sociedade sobre as funções

desempenhadas pelos órgãos governamentais. No mundo virtual – concluíram os pesquisadores

–, os governos repetem as mesmas estruturas, estratégias e vícios do mundo real, prevalecendo a

‘espetacularização’ de dados em detrimento da informação. Os governos dão ênfase aos aspectos

que caracterizam relações de consumo, em vez de empreender esforços para a promoção da

cidadania. Assim, no ambiente virtual, como no real, o que está oculto é mais importante do que

aquilo que é divulgado, confirmando a lógica do segredo generalizado – já denunciado por

Weber (1999, v. 2) e Rancière (1995).

Talvez não seja por outros motivos que os avanços mais significativos encontrados na

Administração Pública pelos pesquisadores ocorreram nos serviços que se relacionam aos

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mecanismos de controle e de arrecadação, como a Declaração de Imposto de Renda,

cuidadosamente aperfeiçoada todos os anos pela Secretaria da Receita Federal, órgão vinculado

ao do Ministério da Fazenda. O Estado moderniza-se mais ou mais rapidamente nas áreas em

que arrecada ou controla a vida do cidadão.

Por isso, o acesso da sociedade à informação produzida ou custodiada pelos órgãos do

Estado é uma estratégia que pode ser eficaz, ao conferir poder de surveillance ao cidadão. O

acesso à informação pode ser considerado um direito humano fundamental na medida em que ele

se impõe como uma condição incontornável para o exercício de todos os outros direitos. Em

sintonia com essa interpretação, e seguindo tendência internacional, no dia 18 de novembro de

2011, a Presidente Dilma Rousseff promulgou a Lei Federal nº. 12.527, aprovada pelo

Congresso Nacional, regulamentando o direito da sociedade de ter acesso às informações

produzidas e custodiadas pelos órgãos públicos, de acordo com as diretrizes contidas no inciso

XXXIII, do artigo 5º, da Constituição Federal. Segundo esse dispositivo

XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu

interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no

prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja

imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das

pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral

decorrente de sua violação.

A lei estabelece uma dupla responsabilidade ao Estado: a de disseminar informações de

interesse público (independente de solicitação específica) e a de proteger a informação que afeta

a vida privada.

A Lei Federal nº. 12.527/2011 representa a quebra de um paradigma antigo na

Administração Pública do Brasil. Ela procura substituir a cultura do segredo pela cultura da

transparência, estabelecendo que a publicação das informações produzidas ou custodiadas pela

Administração Pública é a regra, e o segredo, a exceção. Qualquer cidadão poderá solicitar

acesso às informações, sem precisar justificar o seu pedido ou uso que a ela será dado. A partir

de agora, cabe ao Governo quando não fornecer a informação solicitada, justificar a negativa.

Mesmo nestas condições, a lei fornece critérios claros e rigorosos mediante os quais uma

informação poderá ser classificada como sigilosa.

São considerados passíveis de restrição de acesso duas categorias de documentos, dados

e informações. Os sigilosos, considerados imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado,

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e os pessoais, relativos à pessoa natural, à sua vida privada, à intimidade, honra, imagem,

liberdade e garantias individuais. O sigilo é classificado nos níveis ultrassecreto, secreto e

reservado. A cada grau de sigilo, a lei define as autoridades competentes para decretá-lo.

Para a sua efetiva implantação, a lei determinou que sejam criados em todos os órgãos e

entidades da Administração Pública o Serviço de Informações ao Cidadão (SIC). Os SICs devem

ser diretamente subordinados ao dirigente com maior poder hierárquico na organização e

instalados em local com condições apropriadas, infraestrutura tecnológica e equipe capacitada

para atender e orientar o público, informar sobre a tramitação de documentos, receber os

requerimentos de acesso a informações, controlar o cumprimento dos prazos estabelecidos na lei

e realizar serviço de busca e fornecimento de documentos, dados e informações.

A lei determina que os SICs atuem em conjunto com as Ouvidorias. Em vários órgãos

do Governo do Estado de São Paulo, o Ouvidor acumulou a função de responsável pelo serviço

de informações.

Contudo, não basta atuar de forma passiva, fornecendo informações quando forem

solicitadas pela sociedade. A lei determina que os governos atuem proativamente, promovendo a

gestão transparente de documentos, dados e informações, divulgando-os em suas páginas na

internet, independentemente de solicitações. Ao mesmo tempo, estabelece a obrigatoriedade de

se definir uma política para proteger documentos, dados e informações sigilosas e pessoais de

maneira a assegurar que não sejam divulgadas inadvertida ou criminalmente.

Entretanto, acredita-se que a lei, embora necessária, é insuficiente para tornar os

governos mais transparentes. O engajamento da sociedade é considerado um aspecto de

importância estratégica para que a lei seja eficaz. Pesquisa comparada sobre a implantação da

Lei de Acesso à Informações em vários países, concluiu que ela é, de fato importante para tornar

a Administração Pública mais transparente, mas que a sua existência, por si só, não é capaz de

reduzir a corrupção, tornar o setor público mais eficiente e os governos mais accountables. O

engajamento da sociedade exerce um papel estratégico no processo de transformar o acesso à

informação em governos mais transparentes e responsáveis (Angélico, 2012).

No Brasil, no âmbito do Governo Federal, desde a entrada em vigor da Lei de Acesso

de Acesso à Informação, em 16 de maio de 2012, até 31 de dezembro de 2013, foram recebidas

141.873 solicitações de acesso à informações. De acordo com informações da Corregedoria

Geral da União (CGU) 139.683 foram respondidas dentro do prazo legal fixado na lei, um total

de 1.508 estavam tramitando já com os prazos vencidos e 682 estavam em análise dentro dos

prazos regulamentares.

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No Estado de São Paulo, desde a entrada da lei em vigor até 10/01/2014, foram

recebidas 19.355 solicitações de acesso. De acordo com informações do Serviço de Informações

ao Cidadão (SIC) do Governo do Estado, é seguinte o status dessas solicitações:

Tabela 1: Solicitações de informações - SIC/Governo do Estado de São Paulo

Status Volume

Recebidos 452

Em análise 175

Atendidos 16.951

Atendidos parcialmente 377

Negados 218

Em recurso 119

Resposta cadastrada 14

Resposta enviada ao cidadão 1.049

Total 19.355

Fonte: Serviço de Informações ao Cidadão do Governo do Estado de São Paulo.

A maior parte das informações chega por Serviço de Informações ao Cidadão (SIC) por

intermédio do preenchimento de um formulário eletrônico. Nesse formulário, o solicitante deve

se identificar e fornecer o número de um documento válido, normalmente o CPF ou o RG.

Contudo, existem casos em que a pessoa não consegue identificar o órgão público responsável

pela produção ou custódia da informação procurada. Nesses casos, a solicitação pode ser enviada

para uma central do SIC (Central de Atendimento ao Cidadão – CAC), vinculada ao Arquivo

Público do Governo do Estado de São Paulo. Esta central recebe demanda e a redireciona para o

órgão detentor da informação.

Quando uma solicitação está classificada com o status de “Recebida”, isso significa que

ela ainda não foi sequer lida por um funcionário do SIC. Cada órgão público é dotado de uma

unidade do SIC, normalmente, por força da própria lei, instalada no piso térreo ou nos andares

mais baixos, com o propósito de facilitar o acesso do cidadão que se dirija ao SIC pessoalmente.

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As solicitações classificadas na categoria “Em análise” são aquelas cujo conteúdo já foi

identificado pelo funcionário do SIC que irá, então, verificar se a informação é considerada

pública ou se está submetida a algum tipo de sigilo. Se for sigilosa, será negada com a devida

explicação do motivo. Se for pública, o funcionário irá tentar obter a informação e enviá-la ao

solicitante. Isso é feito, regularmente, com a participação de funcionários das respectivas áreas

técnicas, que tenham produzido ou guardado aquela informação. Nos casos em que a informação

já esteja publicada no site do órgão, o solicitante será informado e receberá o caminho (ou link)

para que ele possa chegar os dados. Mas existem casos nos quais a informação é considerada

pública, mas não está publicada e nem mesmo sistematizada. Isso implica mobilizar funcionários

técnicos para organizá-la. São estas as situações que mais comumente geram atrasos, recursos e

também conflitos internos, devido à necessidade da alocação de funcionários para esse trabalho,

impondo-lhes ter que interromper suas rotinas para produzir uma informação. Esta é a principal

razão pela qual os membros dos SICs têm pressionado para que as organizações ampliem a sua

capacidade de atuar proativamente, produzindo a informação e a disponibilizando de forma

pública imediatamente.

Um pedido é considerado atendido quando a resposta foi enviada ao cidadão e o prazo

para se contestar o conteúdo da resposta, ingressando com recurso, tenha se esgotado. Uma

solicitação é classificada como parcialmente atendida, nos casos em que o órgão não podia, por

força da lei, fornecer todos os dados demandados ou simplesmente não tinha parte daquela

informação demandada. São, na ampla maioria dos casos, informações de natureza pessoal ou

que estão relacionadas às licitações antes que o certame de escolha da empresa vencedora de

determinado contrato tenha sido realizado. Se o conteúdo pedido tiver a possibilidade de gerar

alguma vantagem para a pessoa que o detenha, essa informação é negada com base na lei.

Uma solicitação é negada quando se trata de informações de natureza pessoal ou cuja

divulgação tenha o potencial de oferecer risco à segurança do Estado ou da sociedade. Demandas

em situação de recurso indica que o cidadão teve a solicitação negada e não concordou ou

entendeu que as informações recebidas não correspondem ao que foi solicitado e, por essa razão,

ingressou com um pedido de reconsideração.

Uma solicitação é classificada como resposta cadastrada, nas situações em que as

informações solicitadas já foram produzidas, o conteúdo da resposta já está registrado no sistema

de gestão de demandas do SIC, mas está aguardando a aprovação do responsável pelo SIC ou de

alguma outra autoridade. Por isso, não foi ainda enviada ao cidadão que solicitou.

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Finalmente, as respostas enquadradas como “Enviadas ao cidadão” significa que a

demanda foi atendida, mas o prazo para que possa ingressar com recurso, caso não a considere

adequada ao conteúdo solicitado ainda não terminou. Esgotado o prazo para recurso, ela mudará

automaticamente de status e será considerada como atendida.

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CAPÍTULO II

ESTADO NACIONAL, BUROCRACIA E DEMOCRACIA.

O processo de emergência do Estado racional, fenômeno que Weber observou ocorrer

somente no Ocidente, tem um caráter paradoxal. A aspiração pela democratização nas modernas

sociedades de massa tende a promover – mesmo sem querer – certo nível de maquinaria

burocrática. Contudo, segundo Weber (1999, v.2), tendencialmente, a burocracia sempre procura

excluir o público e, na medida do possível, ocultar da crítica os seus conhecimentos e a sua

forma de trabalhar. Por isso, inevitavelmente, a burocracia e a democracia entram em conflito.

Esse capítulo procura mostrar que a burocracia é um instrumento técnico de dominação, que

serve a diferentes propósitos, incluindo as formas não democráticas de administração. Foi o que

se verificou no Brasil, onde o processo de burocratização se acoplou a um esforço autoritário de

modernização.

Diante da tendência crescente à burocratização, Weber indagava sobre como preservar

ao indivíduo um pouco de liberdade. A burocracia é uma máquina inanimada; um espírito

coagulado (WEBER, 1999 v.1), difícil de ser enfrentado, pois não se pode recorrer contra ela a

nenhuma instância que, em princípio, tenha interesse em combater o seu poder. Só a

transparência pode limitá-lo. Por isso, é preciso abrir ‘brechas’ no muro hermeticamente fechado

da burocracia, criando espaços para a participação dos cidadãos, obrigando-a a prestar contas.

Este é o propósito institucional das ouvidorias públicas: tornar-se uma janela por meio da qual os

cidadãos, agindo individual ou coletivamente, possam vigiar, sugerir, reclamar e denunciar.

2.1 Weber e o surgimento do estado racional

Os filósofos apresentados nas seções anteriores abordam o Estado focalizando o

contexto de sua emergência e seus primeiros passos de desenvolvimento e consolidação. De sua

parte, Weber vai se ocupar do processo de modernização do Estado, impulsionado, segundo

explica, por uma aliança entre o capital e o Estado nacional, sendo este encarregado de garantir

as condições necessárias à subsistência do capitalismo.

O Estado, em seu sentido racional, segundo Weber (2006), é uma instituição que se

desenvolveu originalmente somente no Ocidente. Ele fundamenta sua ação no direito racional e

atua por intermédio de um funcionalismo profissional especializado. Nesse ponto, Estado

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racional se diferencia do ancien regime chinês, em que, acima do poder das associações da

época, encontrava-se uma fina camada de funcionários de formação humanística, sobretudo,

literatos, que conhece e interpreta a poesia chinesa. Tudo está baseado na ideia mágica da

perfeição do imperador, cuja virtude – dele e dos seus funcionários – é suficiente para manter

tudo em ordem. Eles não podem atuar em sua província natal e, para não criar vínculos, são

transferidos de localidade com frequência. Esses funcionários não se encontram preparados para

o desempenho de funções administrativas e nada conhecem de jurisprudência. Portanto, não

governam. No máximo interferem quando surgem tumultos. Sem uma burocracia estável e

tecnicamente capaz, tudo está entregue à sorte; aos deuses. A solidez da magia impôs uma forte

resistência ao desenvolvimento do Estado racional.

Embora as instituições do Estado racional provenham de múltiplas fontes, no ocidente,

o crescimento do cristianismo e o capitalismo municipal deram importantes contribuições para a

sua formação. Dos municípios, herdou a forma procedimental estritamente sistematizada do

direito romano, eliminando o direito material; do cristianismo, herdou a organização

administrativa fixa, estável e disciplinada. Isso não significa dizer que o capitalismo, irmão

siamês do estado racional, evoluiu do direito romano, comprovando o fato de que seu surgimento

ocorreu primeiro na Inglaterra, país que, segundo Weber, jamais adotou o direito romano.

O direito formal, obtido mediante uma aliança entre o Estado e os juristas, é previsível

como uma máquina, eliminando as interferências mágicas ou religiosas. Na China, por exemplo,

um homem que vendesse uma casa, poderia, mais tarde, caso enfrentasse grave dificuldade

financeira, voltar a ela como inquilino compulsório, sem pagar aluguel. O comprador via-se

obrigado a aceitar o vendedor empobrecido, sob a ameaça de enfrentar a agitação dos espíritos.

O mercantilismo inglês demarca a primeira aliança entre o Estado e os interesses

capitalistas. Entretanto, segundo Weber, não é dele que o capitalismo evoluiu. Dada a sua

irracionalidade, quer pela sua estrutura estamental e monopolizadora, orientado para

oportunidades fiscais, que procurava estabilizar a população em um sistema de fraternidade

cristão-social; seja pela sua forma nacionalista, baseada na proteção à indústria nacional já

existente. As duas formas fracassaram, de tal modo que a maioria das empresas criadas pelo

mercantilismo sucumbiu à sua superação, cedendo espaço ao capitalismo de oportunidades de

mercado, livres de medidas impostas de fora, promovido por uma camada de empresários cujo

progresso havia sido construído com independência do poder estatal.

Diferentemente das entidades econômicas, que tem a satisfação de necessidades como o

objetivo que determina a organização racional de sua conduta, o Estado é uma associação

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política, estabelecida por meio de relações de dominação de um ou de alguns homens sobre

outros homens.

Aos olhos da análise sociológica weberiana, o Estado – tanto quanto à igreja – não pode

ser caracterizado com base no objetivo que procura realizar, mas sim pela relação que procura

estabelecer entre dominantes e dominados. Essa relação é fundada no monopólio da coação

física – ou violência simbólica, na expressão de Bourdieu (WEBER, 2001). A coação, não é,

evidentemente, o seu meio normal, nem usual, mas lhe é específico e que, por isso tipifica-o – tal

como, de sua parte, a Igreja pode ser tipificada pela reivindicação do monopólio da coação

psicológica.

Uma questão central no processo de modernização do Estado, segundo o que se

depreende da sociologia de Weber, é a questão da legitimação da autoridade. Ele distingue de

modo claro poder e dominação. Weber (1999, v.1) qualifica a dominação como o conceito que

encerra maior precisão e estabilidade. O poder caracteriza uma situação de desigualdade,

fazendo com que um dos atores possa impor sua vontade aos outros, mesmo em situações de

resistências, independente de qual seja a fonte dessa probabilidade. Dominação é a possibilidade

de a ordem encontrar obediência automática, sem nenhuma resistência. A dominação é, portanto,

uma forma especial de poder. Diferencia de uma ou outra forma o fato do poder não ser,

necessariamente, legítimo, nem a obediência um dever, enquanto que a dominação é

fundamentada no reconhecimento da legitimidade das ordens por parte daqueles que as

obedecem. O poder e a dominação são convertidos em política ao adicionar a ideia de

agrupamento, introduzindo-se as noções de território, de continuidade e de ameaça de aplicação

da coerção física como forma de impor respeito às regras; de obter a obediência. A política está

relacionada a uma forma de conduta humana, que é fundada na dominação do homem pelo

homem. O Estado não é a única forma de associação política, cuja existência antecede mesmo à

sua criação, mas é, entre os agrupamentos políticos, a instituição que dispõe do monopólio da

coerção física.

A obediência pode basear-se em diferentes motivações, como o costume, o afeto e

interesses materiais – racionais em relação a fins , ou ideais – racionais em relação a valores.

Quase sempre implica uma combinação de algumas ou de todas essas motivações. Isoladamente,

nenhuma delas produz uma relação estável. E todas elas requerem da parte de quem obedece ao

dominante o reconhecimento da legitimidade da dominação. (WEBER, 1999, v 1).

Mas, por que razão a relação de dominação é reconhecida e aceita por parte dos

dominados? Que interesse os leva a obedecerem? Como explica Weber (1974), a natureza desse

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interesse não é somente material, ou racional com relação a um fim, do mesmo em modo que a

dominação não é, necessariamente, a exploração ou coação econômica. Diferentemente da

condição observada na escravidão, a dominação é uma submissão real, mas que é acompanhada

de liberdade. Em tese, o indivíduo poderia aceitar ou recusar obedecer, contrariamente à ideia de

poder, que consiste em uma simples imposição do mais forte sobre o mais fraco.

Weber (1974) contextualiza as relações de dominação de forma ampla na sociedade,

mencionando exemplos variados: da política, do exercício profissional, das relações entre pais e

filhos, etc. O reconhecimento da dominação pode ter um fundamento tradicional, carismático ou

racional. Esses fundamentos inexistem na sua forma pura, sendo mais provável que se

apresentem sob uma combinação de conceitos. Entretanto, tipicamente, um se sobressai. Essa

definição dos tipos legítimos de dominação é central na sociologia de Weber.

A dominação tradicional repousa na alegação e na aceitação da legitimidade com base

na santidade das regras e dos poderes tradicionais representados naqueles que são chamados a

exercer essa autoridade em função da tradição. Trata-se de uma autoridade baseada na devoção

ao que verdadeira ou supostamente sempre existiu, justificada por práticas imemoriais. A

autoridade tradicional encerra uma relação de desigualdade, como a observada entre o mestre

tradicional e seu assistente pessoal – servo ou filho. Seu exercício depende da posse de

determinadas condições naturais, como a idade e a paternidade.

A autoridade carismática repousa na submissão extraordinária ao caráter sagrado, à

virtude heroica e no valor exemplar de uma pessoa. Desse modo, a autoridade carismática é

reconhecida como detentora de algumas características de qualidade, que não seriam encontradas

ou acessíveis às pessoas comuns. Ao basear-se em determinadas qualidades pessoais, a

autoridade carismática se aproxima da do mestre tradicional, quanto à estrutura de dominação.

Entretanto, existe uma diferença entre elas. Em um sistema tradicional, a autoridade desfruta de

determinados direitos e privilégios em virtude de um atributo – por exemplo, o de ser pai. Mas,

esse atributo não o diferencia de muitos outros que se encontram na mesma condição. Já os dons

específicos que diferenciam a autoridade carismática constituem atributos individuais, não se

caracterizando como uma diferença geral entre dois tipos de homens, mas, antes, entre um

indivíduo que é único e todas as demais pessoas.

A dominação racional baseia-se na crença de que as ordens instituídas são legítimas e

quem as determina possui o direito de estabelecê-las, dado que foi nomeado para fazê-lo. Em

geral, essa autoridade está calçada solidamente em um sistema de regras gerais que foi

estabelecido intencionalmente, eliminando a possibilidade de alegar autoridade com base em

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outras fontes, sejam os dons pessoais ou a longa tradição. Enquanto as formas tradicionais de

dominação se fundamentam no indivíduo, na sua posição na sociedade ou na posse de algum

atributo pessoal – o seu status –, em um sistema de autoridade racional-legal os indivíduos

possuem direitos e deveres definidos como membros de uma organização. A organização limita

o escopo de validade do exercício da autoridade. Nessas organizações, que formam hierarquias

de cargos e não pessoas, os indivíduos não são mais do que figuras de autoridade, cuja

legitimidade está fundada na lei instituidora do cargo. Assim, como demonstra Weber (2001), a

obediência ao chefe tradicional e à pessoa do chefe carismático se opõe à obediência à ordem

impessoal, característica da dominação racional-legal. A estabilidade da dominação tradicional e

da dominação legal se opõe à instabilidade da dominação carismática. A modernidade da

dominação racional-legal se opõe à dominação carismática e à tradicional.

Toda dominação sobre um grande número de indivíduos requer um quadro

administrativo, formado por indivíduos obedientes, instalado para assegurar o exercício das

ordens de caráter geral e das ações concretas. Esse quadro pode ser compelido a obedecer ao

detentor do poder pelo costume, por motivos afetivos, interesses materiais ou motivos baseados

em ideais móveis - racionais em relação a valores. A natureza dessa ligação, em grande parte,

determina o tipo de dominação existente. Em síntese, os meios que conduzem à obediência estão

relacionados ao interesse pessoal em obedecer à honra social e ao interesse material. Os feudos

dos vassalos, as prebendas dos funcionários patrimoniais, o salário dos modernos funcionários

públicos. O medo de perdê-los é o último fundamento decisivo da solidariedade do quadro

administrativo com o detentor do poder.

No entendimento de Weber (2001), em todos os lugares, o desenvolvimento do Estado

moderno se deu pela tentativa de desapropriação dos detentores particulares de recursos

administrativos, bélicos e financeiros. (Paralelo pode ser estabelecido com o desenvolvimento da

empresa capitalista, mediante gradativa desapropriação dos proprietários autônomos). Assim, o

Estado moderno concentra a disposição sobre todos os recursos da organização política,

separando, completa e definitivamente o quadro administrativo dos meios materiais e de

administração da organização. Isto se aplica, particularmente, à organização burocrática.

Nenhum funcionário é proprietário do dinheiro que desembolsa, dos prédios, das reservas, dos

instrumentos ou da maquinaria bélica de que dispõe. Enquanto na associação estamental, o

detentor do poder administra com a ajuda de uma aristocracia autônoma, com a qual se vê

obrigado a dividir a dominação, na administração burocrática, apoiando-se em uma camada sem

propriedade e sem honra social própria, completamente dependente. O critério unívoco da

modernização do Estado – tanto quanto da economia capitalista desde a idade média – é a marca

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rumo ao funcionalismo burocrático, baseado em contrato, salário, carreira, treinamento

especializado, competências fixas, documentação e ordem hierárquica.

Portanto, o Estado moderno pode ser definido, na concepção de Weber, como um

agrupamento político de caráter institucional, que obteve sucesso em monopolizar, dentro de um

limite territorial determinado, a violência física legítima – ou legitimada – como meio de

dominação, reunindo em sua estrutura de poder os meios materiais de administração.

Inclui-se nesse processo de modernização ou de burocratização, o surgimento de uma

categoria de políticos profissionais, formada por homens que não almejavam se tornarem

senhores – como o queriam os carismáticos –, mas que se colocavam a serviço de outros

senhores, transformando a execução política dos príncipes em seu ideal de vida – e em seu

ganha-pão. Essa camada de políticos profissionais constituiu o instrumento mais importante de

poder e de expropriação política dos príncipes.

O progresso em direção ao Estado burocrático encontra estreita sintonia com o

desenvolvimento do empreendimento capitalista, cujo fundamento interno é o cálculo contábil.

Para o seu funcionamento, ela requer a redução da incerteza, a eliminação, tanto quanto possível,

de uma justiça cujas sentenças eram determinadas para cada caso, de acordo com os sentimentos

de justiça do juiz. O moderno empreendimento capitalista requer uma justiça calculável por meio

de normas gerais fixas, tal como se calcula o rendimento provável de uma máquina.

Na tipologia de autoridade de Weber, o tipo racional-legal ocupa lugar de destaque.

Para ele, a economia ocidental diferencia-se pelo alto grau de racionalidade, caracterizada pela

predominância das burocracias racional-legais. Entretanto, Weber entendia que o funcionário,

treinado na disciplina da obediência, não era preparado para impulsionar o Estado, exercendo

funções propriamente políticas. Para ele, era indispensável que à frente da maquinaria

burocrática, comandando-a, existisse o elemento carismático.

Em sua análise, ele vê como fato singular de nosso tempo o ‘desencantamento do

mundo’, significando o desaparecimento de todas as práticas e crenças fundadas nos valores

mágicos dos mitos e das divindades. Para ele, esse processo de desencantamento desenvolvia-se

tanto no domínio econômico como nas religiões. Em um mundo despojado de ‘encantamentos’,

de deuses e divindades, as sociedades poderiam caminhar na direção de uma forma de

organização crescentemente racional e burocratizada, condenando seus membros à contínua

alienação. Liberal, Weber via no socialismo o triunfo da completa burocratização. Por isso,

segundo cria, os políticos deveriam ser recrutados por meios e regras diferentes dos que se

aplicam à admissão dos burocratas, já que deles se esperam atitudes diferentes.

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O que, então, espera-se de uns e de outros? Quando se examina a conferência proferida

por Weber, em Chicago, ‘Le métier et la vocation d’homme politique’ (no Brasil, traduzido com

o título de ‘A política como vocação), compreende-se o pensamento dele. Nela, o autor distingue

entre a ética da convicção (traduzida no Brasil na maior dos textos de Weber como ética dos fins

últimos) e a ética da responsabilidade. Segundo classifica Weber, todas as atividades orientadas,

segundo os critérios de ética, podem ser subordinadas a duas máximas totalmente diferentes e

irredutivelmente opostas. Uma pessoa pode se orientar segundo a ética da responsabilidade, ou

segundo a ética da convicção. Isso não significa que a ética da responsabilidade seja idêntica à

ausência de responsabilidade e a ética da responsabilidade à ausência de convicção. Contudo, há

diferenças abissais entre os dois modos de pensar. Explica Weber (1999, v.2, p. 543) que

A diferença reside na natureza da responsabilidade do primeiro e do segundo, e

disso se determina, em grande parte, o caráter peculiar de um e de outro. O

funcionário – cabe repetir – que recebe uma ordem, a seu ver errônea, pode – e

deve – fazer objeções. Se a instância superior insiste em sua ordem, não é

apenas seu dever, mas também sua honra cumpri-la como se correspondesse à

sua própria convicção, mostrando com isto que seu sentimento de dever

vinculado ao cargo está acima de sua vontade individual. [...] Um líder político

que atuasse dessa forma mereceria desprezo. Este se verá muitas vezes obrigado

a recorrer a compromissos, isto é, a sacrificar o menos importante ao mais

importante. Mas, quem não consegue dizer ao senhor (seja este um monarca ou

o demos): “se não obtenho essa instrução, renunciarei ao cargo” é um adesista,

como Bismarck batizou este tipo, e não um líder.

A ética da responsabilidade conduz as pessoas a terem em conta as consequências de

seus atos, engendrando uma forma de racionalidade em relação aos fins. Isto significa que o

agente deverá dar prioridade à adequação dos meios aos fins intentados e responder pelas

consequências dos atos. Para Weber (1999 v.2), esta deveria ser a ética do líder político. Já a

ética da convicção conduz o agente a agir de acordo com prescrições, seguindo-as, significando

julgar as ações em termos de certo ou errado, segundo elas mesmas. Os cristãos fazem o seu

dever e, quanto aos resultados de seus atos, eles os atribuem a Deus.

Para Weber (1999, v.2), a dominação burocrática é um traço importante da sociedade

moderna e ela é indispensável aos governos. Entretanto, seu entendimento era de que o

funcionário não era preparado para impulsionar o Estado, executando as funções políticas.

Formado na disciplina da obediência e não na luta política, ele estava mais preparado para

aplicar as regras e os regulamentos, agindo de acordo com o que fora estabelecido. Se fosse um

bom funcionário seria, portanto, um mau ministro – e o inverso poderia ser verdadeiro. Em

outras palavras, o elemento político deveria guiar-se pela ética da responsabilidade, tomando

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decisões e assumindo os riscos decorrentes, ao passo que o funcionário deveria orientar-se pela

ética da convicção, convertendo a decisão do político em programa de ação.

Ao primeiro, cabe tomar decisões, estabelecer prioridades, definindo a direção política

do Estado; ao segundo, cabe executar os programas.

O propósito da burocracia é transformar as organizações em eficientes máquinas

impessoais. Formalismo, impessoalidade e profissionalismo são alguns de seus princípios

fundamentais. Contudo, os próprios elementos centrais da burocracia podem se tornar

disfuncionais ou ao menos desencadear resultados imprevisíveis. A impessoalidade pode

converter-se em desinteresse, o formalismo em excesso de normas, o profissionalismo em

elitismo, a disciplina hierárquica em rigidez, falta de criatividade, de inovação e resistência à

mudança. A preocupação com o funcionamento rotineiro pode fechar os olhos da organização às

demandas da sociedade e às necessidades de seus membros.

O Ouvidor é um funcionário de quem se espera algo diferente do que é esperado dos

outros funcionários e das outras áreas burocráticas. Nesse sentido, as ouvidorias podem ser

interessantes mecanismos para se introduzir nas organizações públicas elementos de uma lógica

oposta ao desempenho maquinal. Ao focalizar as pressões vindas de fora, a partir das demandas

de iniciativa dos cidadãos, elas podem se tornar uma força interna propulsora de mudanças.

2.2 Desenvolvimento do fenômeno burocrático

A burocracia tornou-se o modo predominante de funcionamento da sociedade

contemporânea, estendendo para todas as esferas da vida a especialização e a separação entre o

indivíduo e os meios de que se utiliza para viver e trabalhar. No caso típico, o trabalhador não

possui os seus instrumentos de produção, tal como nos exércitos as armas de destruição não

pertencem aos soldados (MERTON, 1966). Cada vez mais as pessoas dependem das

organizações burocráticas, que, gradualmente, vão assumindo o lugar do indivíduo, mediando,

de modo semi-autoritário, a quase totalidade das relações sociais (CAMPOS, 1966). Com a

burocratização, o controle do homem passa a ser exercido, em grande parte, por suas relações

sociais com os meios de produção (MERTON, 1966). Do nascimento à morte os indivíduos

tornaram-se ‘insumos’ processados continuamente em sistemas burocráticos impessoais de

produção. A maternidade é uma organização burocrática, do mesmo modo em que o são,

também, a creche, a escola, o condomínio, o parque de diversões, a universidade, os shoppings

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centers e os cemitérios. Como antevia Weber (1999, v. 2) no início do século XX, a burocracia

não era a única forma de organização, mas imprimia seu timbre à época, e o faria de modo ainda

mais marcante também no futuro previsível. A burocracia, advertia ele – mais do que aprovava –

, pertence ao futuro. Weber observava que até mesmo as discussões sobre os fundamentos dos

sistemas educacionais estavam condicionadas pelo avanço irrefreável da burocratização de todas

as relações de dominação públicas e pela importância cada vez maior do conhecimento

especializado (WEBER, 1999 v. 2).

Paradoxalmente, Weber via a burocratização como um fenômeno promovido pela

democracia, com a qual entraria fatalmente em conflito. Segundo Weber (1974), a

democratização da sociedade em sua totalidade é uma base especialmente favorável à burocracia,

promovendo-a inevitavelmente – embora não intencionalmente. Ao eliminar a administração dos

notáveis feudais, patrimoniais e patrícios em favor de funcionários contratados (WEBER, 1999

v. 2), a democracia fortalecia a burocracia, constituindo-se em condição essencial para a

existência do próprio capitalismo e da administração de massas (WEBER, 1999 v. 1). A

igualdade jurídica requer a objetividade racional contra o livre-arbítrio e a graça da antiga

dominação patrimonial. Contudo, a partir de certo ponto, a expansão de uma implicaria,

necessariamente, a limitação da outra.

Como tendência, a burocracia é sempre uma administração que procura excluir o

público e a manter segredo do que sabe e faz (WEBER, 1999 v. 2). Ela é avessa ao controle,

interessando-se inclusive pela manutenção de um parlamento desinformado (WEBER, 1999 v.

2), gerando um desequilíbrio de difícil equacionamento. A propósito, observa Giddens (2005)

que, embora os burocratas sejam servidores do governo, seus cargos estáveis e seu conhecimento

especializado lhes conferem uma sólida base de poder, pois os políticos encarregados de

controlar as burocracias nas democracias modernas são, ao mesmo tempo, dependentes das suas

informações. Weber (1999 v. 2) já advertia que o poder de uma burocracia plenamente

desenvolvida é, em condições normais, enorme, e denunciava sua tendência em procurar

aumentar ainda mais esse poder, colocando os seus interlocutores, e mesmo os que deviam

exercer o seu controle, na mesma condição de um diletante à frente do especialista. Michels

(1966) define como lei de ferro da oligarquia esse processo que ocorre tipicamente nas grandes

organizações – principalmente no Estado – por meio do qual a burocracia se emancipa da

sociedade que procura organizar.

Observando as organizações de sua época, notadamente as públicas, Weber constatava o

contínuo avanço do processo de burocratização, sobretudo à medida que elas cresciam,

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aumentando a necessidade de coordenação de um grande número de pessoas que envelheciam

acumulando experiências que podiam ser descritas e armazenadas em sistemas técnicos para

serem reproduzidas e repetidas indefinidamente.

Assim, à medida que a sociedade contemporânea se tornou crescentemente maior e mais

complexa, aumentou, em caráter simultâneo, o número de organizações burocráticas e a

quantidade de pessoas que as integram. Essa condição está em relação direta com a questão da

democracia, pois, ao mesmo tempo em que, no seu interior, as burocracias tendem para o

desenvolvimento de relações de subordinação e não de autonomia, elas também conferem um

poder imenso aos que dominam as suas regras e que, por isso, podem manobrá-las.

A burocracia trouxe para a sociedade um grupo de assalariados de trabalhadores não

manuais, formando uma tecno-estrutura constituindo uma nova classe social. Em que pese

estarem subordinados às mesmas condições dos trabalhadores manuais – seja pelas condições de

sua renda ou pela subordinação a que estão submetidos – esse grupo de trabalhadores

desenvolveu uma consciência que o identifica com a classe média. Segundo Campos (1966), os

trabalhadores burocráticos são assalariados de gravata, constituindo uma ‘nova classe média’,

detentora de uma falsa consciência, pois se consideram membros da classe média embora

desfrutem do nível de vida da classe operária, podendo ser percebida de modo ambivalente, na

medida em que, surgida de uma diferenciação do segmento operário, ela se inseriu na classe

média, dela também diferenciando-se.

2.3 Os fundamentos da autoridade burocrática.

Segundo Weber (1974), a autoridade pública e estável constitui exceção histórica até

mesmo nas grandes estruturas políticas do Oriente e nos impérios ocidentais de conquista. Os

encargos e a autoridade dos governantes não eram delimitados, sendo, por isso, criados ad hoc –

de acordo com o caso ou a situação com que se defrontavam –, executando-os com o emprego de

pessoas da confiança pessoal.

O surgimento do fenômeno burocrático marca uma cisão com esse paradigma. A

burocracia é regida pelo estabelecimento de áreas oficiais fixas de jurisdição para o desempenho

de atividades regulares, relacionadas ao cumprimento dos objetivos da estrutura dirigida, a

criação de figuras de autoridade estáveis rigorosamente relacionadas com os meios de coerção

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colocados à disposição das autoridades. Tipicamente, os funcionários são admitidos em bases

técnicas, cujas qualificações necessárias são também previstas em um regulamento.

A efetividade da autoridade legal burocrática se fundamenta, segundo Weber (1966), na

aceitação de um conjunto de pressupostos distintos, complementares e interdependentes. Toda

norma legal pode ser instituída por imposição ou livre acordo entre os membros de uma

organização ou associação, visando fins instrumentais, valores racionais ou ambos.

A racionalidade instrumental implica conceber claramente um objetivo e projetar os

meios disponíveis mais eficazes para atingi-lo (ARON, 2003), como o engenheiro que constrói

uma ponte, o administrador que adota medidas de reestruturação e o especulador que se esforça

para ganhar dinheiro. Inerente à ação racional com relação a valores está uma conduta que visa

permanecer fiel à ideia de honra, e não à busca de um resultado extrínseco (ARON, 2003), como

o pacifista que se recusa a servir na guerra em defesa do seu país ou o religioso que rejeita o

aborto justificando tal atitude com os princípios que fundamentam a sua prática religiosa.

A norma deve ser obedecida no mínimo pelos membros da organização ou associação.

Normalmente, ela subordina todas as pessoas que estejam em determinada relação social, ou que

realizem ações sociais consideradas relevantes dentro de uma jurisdição. Uma ação social é

dotada de significado e voltada para outra pessoa que, compreendendo o seu significado, reage,

iniciando um processo de interação social em cadeia (ARON, 2003). A sua relevância é dada

pelo contexto de cultura onde é desempenhada. As relações sociais, por sua vez, implicam a

existência de reciprocidade entre os indivíduos de uma dada comunidade (FREUND, 2006).

Contudo, reciprocidade não deve ser tomada como sinônimo de solidariedade. Significa,

especificamente, que a conduta de um indivíduo, ao mesmo tempo em que é influenciada pelo

comportamento alheio, serve de orientação para as ações de outros membros da comunidade,

associação ou organização. Portanto, dois aliados não estão em maior reciprocidade do que dois

adversários.

A autoridade em uma organização tipicamente burocrática é conferida ao cargo, cujos

ocupantes, do mais elevado ao de menor graduação na estrutura hierárquica, estão subordinados

a uma ordem impessoal que dirige as suas ações no exercício das atividades do cargo –

incluindo-se as atividades de mando. As pessoas não obedecem aos ocupantes dos cargos como

indivíduos, mas à autoridade da lei plasmada na figura de autoridade. A subordinação se limita à

estrita condição de membro da organização/associação e também é circunscrita a uma esfera

racionalmente delimitada, seja ela uma comunidade territorial, uma igreja, uma empresa ou um

Estado.

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O direito consiste, essencialmente, em um conjunto de normas abstratas, formuladas em

caráter geral, que orientam a busca racional dos interesses da organização, cuja aplicação aos

casos específicos e particulares se dá por processo dedutivo.

Weber (1966) discute o que caracteriza a autoridade burocrática – ou racional legal –

distinguindo-a, tipicamente, com algumas características fundamentais. A organização é formada

por uma linha contínua de cargos especializados, delimitados por normas que estabelecem

fronteiras e interdependências, tanto no sentido vertical quanto horizontal. As fronteiras

demarcam áreas de competências específicas – órgão administrativo –, cuja especialização deve

basear-se na diferenciação das funções, levando à sistemática divisão do trabalho. O ocupante de

cada órgão administrativo deve ser dotado de autoridade compatível e dos instrumentos de

coerção necessários, limitando seu uso às condições previamente definidas.

Os cargos são organizados em uma hierarquia que se estende do topo à base da

organização, de tal modo que um cargo inferior recebe o controle e supervisão de outro superior.

O quadro administrativo de uma organização racional é formado por funcionários – e não, por

exemplo, de séquitos nem de discípulos –, implicando apenas a nomeação de pessoas

tecnicamente preparadas para o exercício do cargo.

Existe uma completa separação entre os funcionários do quadro administrativo e a

propriedade dos meios de produção. Estes – incluindo-se o próprio cargo ocupado –, pertencem à

organização e são oferecidos aos indivíduos mediante a obrigatoriedade de prestação de contas.

De modo semelhante, separa-se o domicílio e a instância do trabalho onde são desempenhadas as

funções oficiais.

Embora em sua tipologia ideal a burocracia tenha sido concebida como um sistema de

administração fundado na neutralidade política, capaz de transmitir de modo impessoal,

transparente e democrático o conceito de Estado à sociedade, ela se converteu na verdadeira

administração política e, portanto, no poder propriamente dito. Assim, a burocracia encerra um

paradoxo, uma contradição de equacionamento aparentemente complexo. Ela emergiu com a

democracia – e esta fez crescer a importância da racionalidade burocrática –, e ainda se mostra

indispensável à sua evolução e modernização, mas a sua ampliação crescente – ao conferir poder

aos especialistas – torna o administrador autônomo e reduz o real exercício da democracia,

podendo conduzir a uma forma autoritária de Estado. Tornada poderosa, falta à burocracia a

legitimidade política para determinar a direção da sociedade. E ainda que obtivesse tal condição,

pela sua ética profissional de subordinação, a burocracia seria incapaz de fazê-lo (WEBER,

1999, v. 2).

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A preocupação com a tendência à formação de oligarquias nas organizações

burocráticas, transformando servos em senhores, é central nos trabalhos de Weber. Por isso, para

reduzir o seu poder, ele defendia que a burocracia fosse submetida a fortes controles políticos, de

forma a garantir a sua abertura e transparência. A democracia, segundo Weber (1999, v. 1), não

significa, necessariamente, o aumento da participação da sociedade. Ela consiste, sobretudo, na

igualdade jurídica dos dominados, implicando impedir a formação de um estamento fechado de

funcionários e a minimização do poder de mando no interesse da maior ampliação possível da

esfera de influência da opinião pública. Essa ampliação dar-se-ia, fundamentalmente, pela

ocupação de determinados cargos no curto prazo por meio da eleição de pessoas sem que delas

se exigissem nenhuma qualificação específica.

Dessa forma, democracia significava, na melhor das hipóteses, a ampliação do controle

político, mas não o controle social. A crescente conversão dos partidos políticos em máquinas

burocráticas (MICHELS, 1966), organizadas para lutar pelo controle da distribuição de cargos

(WEBER, 1974), justifica as preocupações de Weber com relação a um inescapável risco futuro

de servidão da sociedade ante os poderosos estamentos burocráticos (WEBER, 1999 v. 2).

As preocupações de Weber decorriam do que ele compreendia como sendo o papel

central do funcionário burocrático e do funcionário político. Do primeiro se exige a máxima

qualificação técnica, que não é requisito para o segundo. Aquele, treinado para a disciplina e a

obediência, não reúne as qualidades necessárias para se colocar à frente da direção de um Estado.

Dos funcionários políticos na Administração Pública – e dos empreendedores na administração

privada –, espera-se dedicação apaixonada à luta pelo poder próprio e pela realização de suas

causas.

Em seu conjunto, os princípios da burocracia formam um modelo fechado em torno de

dois atores: o político, que decide e determina a direção política e o técnico, que se encarrega da

execução das tarefas rotineiras com autonomia profissional. A ascensão dessas formas

burocráticas com as conquistas dos direitos dos homens era, segundo Weber, uma condição

necessária para a sobrevivência nos tempos atuais. Mas, o previsível avanço da burocratização

despertava no mesmo Weber (1999, v II) inquietações que hoje permanecem ainda mais atuais:

como é possível, diante dessa tendência, salvar pelo menos alguns resquícios de liberdade?

Como será possível exercer o controle da burocracia, face à sua indispensabilidade crescente?

Como assegurar que o aumento da burocratização, com os postos de direção das organizações

dominados pelos funcionários treinados na obediência, não configure a aniquilação da política?

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2.4 Principais críticas ao tipo ideal de burocracia.

Muitos pesquisadores utilizaram o tipo ideal de burocracia descrito para aprofundar

estudos organizacionais. Muitos confundiram ‘tipo ideal’ com modelo ideal, no sentido do

‘dever ser’. Assim, limitações foram apontadas em sua aplicação direta à análise empírica dos

fenômenos organizacionais (UDY, 1966), na falta de correlação entre as suas diversas

características (HALL, 1966), no caráter obscuro ou mesmo contraditório de determinados

pontos (GOULDNER, 1966) e nas disfunções encontradas no funcionamento modelo

(MERTON, 1966).

A pesquisa de Hall (1966) foi conduzida com uma amostra extraída de dez organizações

de idades e tamanhos diferenciados – 65 a 3.096 funcionários e entre 4 e 63 anos de

funcionamento. Seus estudos constataram que as características do tipo ideal de burocracia não

são fortemente correlacionadas. As dimensões (ou características) burocráticas existem como

contínuos – e não como dicotomias – e são independentes. As organizações podem apresentar

determinadas características do modelo, mas não outras (HALL, 1966). Isto significa, por

exemplo, que uma organização pode se mostrar altamente burocratizada em hierarquia, mas não

em qualificação técnica, implicando ver a burocracia como uma questão de grau, e não de

natureza.

Tomadas em conjunto, o tipo burocrático ideal pode ser comparado a uma régua, que se

estabelece como uma escala de medida contínua e não apenas de extremidades (HALL, 1966).

De modo idêntico, as características da burocracia são variáveis organizacionais que não podem

ser medidas em termos excludentes – de ausência-presença –, mas ao longo de uma escala que

estabelece níveis de gradação (HALL, 1966). Segundo Weber (1966), a forma burocrática

aplica-se ao Estado, aos partidos, à igreja e às organizações em geral, especialmente as de grande

envergadura. Em sua pesquisa, Hall (1966) alega não ter encontrado evidência empírica dessa

relação entre tamanho ou entre idade da organização e o seu nível de burocratização. O número

de clientes ou usuários atendidos simultaneamente e o tipo de atividade desempenhada pela

organização mostraram-se mais importantes. Hall (1966) não forneceu explicações detalhadas

sobre suas conclusões, não indicando, por exemplo, quais atividades apresentavam maior

tendência à burocratização. Pode-se questionar, por exemplo, se é a natureza da atividade ou a

configuração da empresa que implica o desenvolvimento de diferentes níveis de burocratização.

Do mesmo modo, pode-se indagar sobre a maneira como o autor chegou à conclusão de que o

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número de clientes atendidos simultaneamente – e não o tamanho – são os determinantes da

burocratização.

Por exemplo, será que não são, exatamente, as organizações maiores, isto é, com o

maior número de funcionários, com mais unidades de atendimento, aquelas que detêm

capacidade para atender simultaneamente o maior número de clientes? Se tal proposição for

verdadeira, como, então, estabelecer de modo cabal se é a variável dispersão geográfica, o

número de funcionários ou o número de atendimentos simultâneos realizados que determinam o

desenvolvimento de estruturas burocráticas? Na mesma pesquisa, a dimensão qualificação

técnica – medida como alto nível geral de instrução e capacitação dos indivíduos – mostrou

correlação negativa com outras dimensões da burocracia. Weber, de fato, apontava a mudança

quantitativa como um dos fatores que leva à burocratização, mas não de modo exclusivo. Para

ele, a crescente burocratização era também – senão, principalmente – um fenômeno

impulsionado pelas transformações qualitativas que ocorriam na sociedade.12

Outras pesquisas confirmaram a tendência de correlação positiva entre o tamanho da

organização e o seu nível de burocratização – quanto maior, mais burocrática. Terrien e Mills

(1966), por exemplo, realizaram pesquisa em 1.046 distritos escolares da Califórnia e concluíram

que quanto maior a organização – tomando como referência o número total de funcionários –

maior era o seu componente administrativo. Segundo concluíram, a proporção de funcionários

administrativos amplia-se em relação ao total de funcionários à medida que a organização

aumenta o seu tamanho.

Blau (1966) constatou que a especialização não conduz à profissionalização em todas as

organizações. Provavelmente, ela mostra uma correlação positiva em hospitais, por exemplo.

Mas, por outro lado, um alto grau de especialização torna menos necessário uma força de

trabalho qualificada em fábricas com linhas de montagem.

Udy (1966) buscou distinguir no tipo ideal de burocracia as características burocráticas

e as racionais, concluindo que estas não ocorrem em todas as organizações. Ele desdobrou sete

características do tipo ideal de burocracia em quatro variáveis racionais e três burocráticas. Sua

pesquisa adotou uma abordagem comparativa abrangendo a análise de dados de 150

organizações formais não-industriais dos Estados Unidos (UDY, 1966). O estudo considerou

como aspectos que levam à racionalização a existência de objetivos organizacionais limitados, a

ênfase no desempenho, a participação segmentada e as gratificações compensatórias. Como

12

Ver, por exemplo, Weber, 1974, p 235, 238, 246 e 250; Weber, 1999 v. 1, p. 146 e Weber, 1999 v. 2, p. 208, 210

e 529.

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características burocráticas o estudo focalizou a estrutura hierárquica de autoridade, o quadro

administrativo e as gratificações diferenciadas segundo o cargo ocupado.

Os aspectos relacionados à racionalização e à burocratização foram transformados em

conceitos operacionais. Aceitou-se como a existência de objetivos limitados quando a

organização produzia, exclusivamente, bens materiais. A ênfase no desempenho foi admitida

como presente quando o total da gratificação recebida dependia inteiramente da quantidade ou da

qualidade do trabalho realizado. A participação segmentada era tomada como evidente se

estivesse baseada em qualquer tipo de acordo mútuo limitado. Gratificações compensatórias

foram evidenciadas quando os membros de maior autoridade distribuíram recompensas aos que

detinham menor autoridade em troca de sua participação.

No que tange à burocratização, uma estrutura hierárquica de autoridade era considerada

presente quando a organização possuía três ou mais níveis hierárquicos. Um quadro

administrativo era mencionado quando um número qualquer de funcionários estivesse

encarregado, exclusivamente, de trabalhos não manuais. As gratificações eram consideradas

diferenciadas segundo o cargo sempre que existissem de fato. Udy concluiu que nas

organizações burocráticas existe uma tendência de associação positiva mútua entre os elementos

burocráticos, assim como entre os elementos racionais. Mas, os elementos deste segundo grupo –

características burocráticas – associar-se-iam negativamente com aqueles pertencentes ao

primeiro grupo – racionalização.

Em estudo teórico, Gouldner (1966) assinala o que considera obscuridades e

contradições no tipo ideal de burocracia proposto por Weber. Muitas dessas obscuridades,

segundo Gouldner, surgem na definição dos pressupostos que tornam efetiva a autoridade

burocrática. Segundo Weber (1966, p. 16):

A efetividade da autoridade legal13

descansa na aceitação da validez das

seguintes ideias interdependentes: 1) Que toda norma legal dada pode ser

estabelecida por acordo ou imposição, visando fins utilitários ou valores

racionais – ou ambos. A norma estabelecida pretende obediência, pelo menos

dos membros da organização, mas, normalmente, inclui todas as pessoas dentro

da esfera de autoridade ou poder em questão – que no caso de associações

territoriais é a área territorial – desde que estejam em determinada relação social

que, dentro das ordenações da associação, sejam consideradas importantes.

13

No texto de Weber, a expressão autoridade legal é empregado com o sentido aqui adotado de autoridade

burocrática.

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Segundo Gouldner (1966), Weber relevou os contextos de cultura em que as normas são

instituídas, não aprofundando as diferenças entre as normas que são estabelecidas por imposição

ou por acordo. As culturas estão impregnadas de valores e, pelo menos no mundo ocidental –

onde primeiro se desenvolveram os sistemas burocráticos –, há ampla preferência pelas normas

introduzidas por acordo a aquelas que são impostas. Weber também teria desconsiderado

diferenças – e mesmo conflitos – entre estratos organizacionais, tratando a organização como

uma estrutura homogênea. Weber utilizou como base para a sua formulação a burocracia

governamental, aparentemente mais solidária. Nas burocracias das fábricas, nas quais os

conflitos entre supervisores e supervisionados são mais evidentes, as normas poderiam ser mais

vantajosas ou racionais para a consecução dos objetivos de um estrato organizacional – por

exemplo, os gerentes –, mas não para os trabalhadores do chão de fábrica (GOULDNER, 1966).

A burocracia é um sistema baseado na especialização e na disciplina da obediência.

Segundo Gouldner (1966), Weber acreditava que, em nossa época, o diletante estava condenado

ao desaparecimento, cedendo seu lugar ao especialista. Assim, Weber teria concebido a

organização burocrática com um penetrante caráter bifacial. Mesmo em casos de ocorrências

revolucionárias ou de ocupação por inimigos, a máquina burocrática continuaria funcionando

normalmente, pois a burocracia é fruto racional da disciplina, implicando adequação das ações

dos indivíduos a um padrão, de forma que todo sistema pode ser rigorosamente controlado, na

medida em que o conteúdo de uma ordem, por si mesma, fornece a base para a ação.

O indivíduo a obedece porque a ordem é racional com relação a um fim, que é a

execução dos objetivos organizacionais. Weber teria pensado a obediência como um fim em si

mesmo, pois o indivíduo, ao obedecer a ordem, afasta os julgamentos, principalmente por causa

da posição ocupada pela pessoa que ordena. A disciplina é um comportamento treinado que

implica a aceitação automática de uma determinada ordem, incluindo-se à obediência em massa,

sem crítica nem resistência (WEBER, 1999, v. 1). O conteúdo da ordem torna-se a máxima da

conduta de quem obedece, sem levar em conta sequer a própria opinião.

Gouldner (1966) vê certa contradição nesses dois padrões. No primeiro caso, o

indivíduo obedece devido aos seus sentimentos em relação à norma ou à ordem recebida; no

segundo, ele o faz independente dos seus sentimentos – o segundo princípio teria sido invocado

pelos soldados nazistas e também por outros agentes de governos ditatoriais para justificar todos

os tipos de atrocidades inenarráveis, porque, como argumentaram no Tribunal Internacional de

Nurenberg – Alemanha –, no Brasil, no Chile e na Argentina estavam-se cumprindo ordens.

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Gouldner (1966) acredita que Weber poderia ter confundido dois tipos de autoridade.

Uma repousa na autoridade legítima, decorrente do cargo que ocupa, e a outra na reconhecida

competência técnica do indivíduo. A autoridade do médico, por exemplo, repousa,

fundamentalmente, na crença em que o paciente tem nesta capacidade técnica do clínico

acreditando que ele a utilizará em seu benefício. De acordo com Gouldner (1966), a expressão

‘em seu benefício’ é mesmo essencial nesta definição, pois a simples competência técnica, tão

somente por existir, é insuficiente para assegurar o consentimento das partes envolvidas e, menos

ainda, a legitimidade das prescrições. A competência dos médicos nazistas não era suficiente

para obter o consentimento dos judeus submetidos aos experimentos cruéis nos campos de

concentração, nem tampouco para as tornarem legítimas. Mesmo a competência técnica exige o

consentimento para legitimar-se.

Hopkins (1966) corrobora a pesquisa de Gouldner, explicando que todo sistema de

atividade exige legitimação, principalmente porque ele é abstraído de algum sistema social

concreto, cujos membros compartilham certos valores, entre os quais, aqueles que justificam e

validam a existência do sistema de autoridade. Portanto, parece claro que Weber concebeu dois

tipos de burocracia: uma representativa, legitimada pelo consentimento das partes, e outra

autoritária e punitiva, fundada em uma suposta superioridade dos técnicos.

A burocracia, segundo Gouldner (1966), foi concebida como um sistema neutro, capaz

de produzir a si mesmo, sem a interferência humana. Contudo, a burocracia não sobrevive

autonomamente, nem é formada somente por funções manifestas – ou funcionais –, mas também

de relações latentes. Em ambos os casos, as consequências das ações são concretas. Porém, se na

primeira situação as consequências decorrem de padrões prescritos, na segunda, elas surgem de

padrões que não são culturalmente prescritos ou preferidos, instituídos intencionalmente – ou

não.

No entendimento de Gouldner, ao realizar uma pesquisa, é muito difícil determinar

quando as consequências foram ou não intentadas, pois em situações de conflitos os atores

envolvidos na situação podem dissimular deliberadamente. Existem motivos para acreditar que

as burocracias produzam redes complexas de interações com algumas consequências

intencionais e outras acidentais. Em ambos os casos, tais consequências podem não ser

manifestas, não estarem prescritas no sistema formal da organização, nem serem culturalmente

preferidas. Isto coloca em relevo o funcionamento de uma organização sombra, comumente

abordada na literatura como informal. Contudo, Udy (1966) sugere que a dicotomia formal-

informal presente na teoria de Weber seria retratada com maior exatidão se fosse utilizada a

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dimensão oficial-não oficial. A dicotomia formal-informal baseia-se no tipo ideal, uma

formalidade oficial que pode variar entre uma e outra organização. O caráter formal perde o

sentido quando o modelo típico ideal é abandonado.

Merton (1966), em abordagem teórica, aponta desvios no funcionamento da burocracia,

determinados, em grande parte, pelas pressões internas que afetam a estrutura do modelo. Os

estudiosos da burocracia procuram distingui-la com a inflexibilidade e resistência à mudança.

Merton (1966) observa que tais condições são inerentes à estrutura do sistema burocrático, desde

que se enfatizem a segurança e a previsibilidade. Do mesmo modo em que um engenheiro, ao

construir uma ponte, exagera certas medidas quando efetua os cálculos de segurança, na

organização burocrática tais pressões produzem uma transferência dos fins para os detalhes da

conduta exigida pelas normas. A disciplina no acatamento aos regulamentos deixa de ser

considerada uma medida instrumental, convertendo-se em valor final. O produto extremo desse

deslocamento dos objetivos da organização é o funcionário que cumpre rigorosamente todas as

normas relativas ao seu cargo e que, por isso, torna-se incapaz de atender a muitos usuários.

A esse respeito é penetrante a imagem da Polícia Federal no Brasil realizando ‘operação

padrão’ em aeroportos brasileiros como uma estratégia para conturbar o seu funcionamento

normal e pressionar as autoridades governamentais por uma negociação salarial favorável à

categoria. Na operação, os policiais procuram seguir rigorosamente determinados procedimentos

para o embarque de passageiros. Em um desses movimentos, desencadeado em novembro de

2007, os meios de comunicação informaram que o tempo de atendimento de cada passageiro

passaria de dois segundos para cerca de um minuto e meio. A operação consistia em comparar a

foto do documento de identidade com o passageiro no momento do embarque e em verificar nos

sistemas de informação se haviam restrições para aquela pessoa embarcar. Embora se possa

esperar – e mesmo acreditar – que esse procedimento seja realizado todos os dias, isso exigiria

um efetivo de funcionários muito maior do que o disponível. Por isso, os passageiros apresentam

o documento de identificação apenas no balcão de chek-in para a retirada do cartão de embarque.

Segundo Merton (1966), a estrutura do tipo ideal burocrático induz o planejamento da

incapacidade. Ao buscar a eficiência em casos gerais, a burocracia torna-se ineficaz em casos

particulares. A burocracia procura tornar o atendimento impessoal, categorizando-o em normas

gerais, enquanto que o cidadão sempre vê a sua necessidade como algo que requer um justo

tratamento específico. Espera-se – ainda que não explicitamente – que o funcionário adapte os

seus pensamentos, valores e sentimentos à perspectiva dessa carreira. Logo, esses elementos

transformam-se no estilo de vida do burocrata, convertendo os meios em fins. Essa cristalização

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de sentimentos leva a um processo de sacralização das normas nas organizações burocráticas. O

sagrado - comportamento típico das castas e estamentos - contrasta com a progressiva tendência

de diferenciação das ocupações em nossa sociedade em acelerado e contínuo processo de

mudança. O orgulho do burocrata com essa identidade desenvolvida é tão – senão mais –

importante de que o seu apego aos interesses adquiridos (MERTON, 1966).

Merton (1966) acredita que o status ocupado pelo funcionário na hierarquia da

organização burocrática constitui, também, uma fonte de conflito com o público. O funcionário

estabelece relações impessoais, enquanto as pessoas atendidas esperam tratamento individual

especializado. Ao exercer o cargo, o funcionário está investido de autoridade, atuando como um

representante de toda estrutura de poder e desenvolvendo uma ideologia dominante – real ou

aparente. Os funcionários tornam-se distantes, quando não inacessíveis, enquanto se supõe que

eles sejam os servidores do povo, aumentando a tensão entre a ideologia e os fatos. Essa tensão

pode ser elevada pela diferença de status social percebida entre o funcionário e o usuário

atendido, desde que este se julgue socialmente superior ao funcionário que, no momento, adota

uma atitude dominante.

Para Eisenstadt (1966), a organização burocrática é fruto do desenvolvimento da

sociedade moderna, sendo um dos resultados da contínua ampliação da complexidade social.

Contribui para a sua criação e fortalecimento, entre outros aspectos, a diferenciação de papéis e

de esferas institucionais na sociedade, o surgimento de valores universalistas em substituição ao

de grupos particulares, o aparecimento da sociedade global e o desenvolvimento de grupos

voluntários funcionalmente específicos – como as associações profissionais. Esses processos

levam à liberação de recursos potenciais e à construção de compromissos políticos de apoio

ainda não implantados nem assegurados por – ou para – nenhum grupo particularista

(EISENSTADT, 1966). Tipifica tal organização, diferenciando-a das formas particularistas, a

sua interação com o meio externo. Essa interação é possível devido à especialização das suas

funções e tarefas, em decorrência da existência de normas racionais e impessoais, e pela

dedicação da organização à consecução de objetivos específicos.

A resultante dessa interação é uma organização em equilíbrio dinâmico, de tal modo

que ela mantém a sua autonomia, ao mesmo tempo em que é dirigida pelas pessoas que estão

legitimamente autorizadas para isso – no caso específico do Estado, aquelas que são detentoras

do poder político. O rompimento desse equilíbrio entre a autonomia profissional e o controle

social exercido pelos políticos coloca em relevo duas possibilidades que, embora interligadas,

são disfuncionais e antagônicas. A primeira possibilidade é a da burocratização, com a expansão

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do poder e do controle da organização sobre o seu meio externo. Assim, nestas organizações

burocráticas, sobretudo as maiores e mais tradicionais, o objetivo costuma deslocar-se da

realização de um propósito, como cumprir uma missão social ou maximizar a riqueza do

acionista, para focalizar a ampliação do próprio sistema, aumentando o poder dos seus dirigentes

e o controle do ambiente externo. A segunda possibilidade é a desburocratização, que também

leva à subversão do propósito da organização, mas, desta vez, em favor de grupos privados

externos que fazem a sua captura para a realização de interesses particularistas.

Determinadas variáveis são fundamentais para a compreensão do problema do

equilíbrio dinâmico e dos processos de burocratização e desburocratização. Entre outras,

Eisenstadt (1966) destaca o propósito da organização, a relevância social dos seus objetivos, o

tipo e o grau de dependência da organização relativamente às forças externas. O propósito – ou

missão da organização – tem importância estratégica, pois representa a principal conexão entre

ela e a estrutura social em que está situada. Normalmente, aquilo que é definido internamente

como sendo o propósito ou objetivo da organização, externamente é tomado como sendo a sua

função no meio social. Além do conteúdo dos objetivos, exerce forte influência a relevância

desse propósito para a estrutura social. Tal relevância é dada pela posição central ou marginal do

propósito da organização na estrutura de valores da sociedade e nos sistemas de poder. Em

relação direta com essa posição ocupada está o grau de legitimidade que lhe é conferida. A

dependência externa é função de um conjunto complexo de interações que envolvem,

principalmente, a sua relevância no meio social, o seu poder relativamente aos usuários

atendidos, o principal lócus de controle – interno ou externo – e os critérios empregados na

avaliação do sucesso da organização.

Essa discussão, baseada em Eisenstadt (1966), possibilita inferir que a organização

burocrática procura atuar em uma relação de reciprocidade com o meio externo que a envolve,

tentando ampliar o seu poder e controle sobre ele ou, quando necessário e apropriado, adaptando

os seus objetivos a esse meio exterior. O equilíbrio dinâmico resulta da interação dessas duas

forças contrapostas. A quebra desse equilíbrio, relacionando autonomia profissional e controle

político, pode levar tanto à burocratização quanto à desburocratização.

Fatores distintos contribuem para a ocorrência desses fenômenos. A burocratização é

impulsionada pelo desenvolvimento de valores universalistas, ampla distribuição nas

possibilidades de competição pelo poder e concorrência com outras organizações e grupos

sociais – públicos ou privados – pela realização dos mesmos objetivos. Segundo Eisenstadt

(1966), as burocracias tendem a se desenvolver ou a se fortalecer nas sociedades em que existam

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grupos de lideranças políticas ativas (EISENSTADT, 1966). Assim, contribui a existência de

governos sólidos e a intensidade das atividades políticas. Talvez, por isso, as burocracias

surgiram e se desenvolveram, ao menos em um primeiro momento, nas democracias

representativas.

De outro modo, a desburocratização é um fenômeno impulsionado pelo crescimento da

dependência direta da organização de setores de sua clientela. Isso será ainda mais impactante

quando os critérios para avaliar o sucesso da organização estiverem baseados no padrão de

comportamento desses usuários, podendo conduzi-la a realizar atividades de interesses deles,

embora distantes dos objetivos da organização (EISENSTADT, 1966). Uma maior dependência

de grupos políticos também contribui para a agregação de maior vulnerabilidade à organização,

ampliando, de modo considerável, a possibilidade de que ela venha a sucumbir a diferentes

grupos de pressão, passando a diversificar as suas atividades e a desvirtuar as suas normas de

modo relevante.

A discussão baseada em Eisenstadt mostra que burocratização e desburocratização são

movimentos antagônicos, porém, inter-relacionados. Um processo de desburocratização pode

desencadear um movimento para a realização de esforços opostos – na direção de maior

formalização. De modo idêntico, a expansão dos poderes e dos controles da organização

burocrática sobre o seu meio externo pode ensejar o aparecimento de pressões e de articulações

para forçar a sua desburocratização – ou, no mínimo, a ampliação dos níveis de controle político.

Para se protegerem, as organizações desenvolvem mecanismos de defesa em relação ao

seu meio externo, empregando processos de cooptação formais e informais. Segundo Selznick

(1966), a cooptação formal realiza uma distribuição dos símbolos públicos e dos encargos

administrativos da autoridade, sem, contudo, distribuir o poder substantivo, requerendo, por isso,

paradoxalmente, controle informal sobre os elementos cooptados antes que a unidade de decisão

seja ameaçada (SELZNIC, 1966). Ela ocorre, sobretudo, quando a organização procura lidar com

a melhoria da sua legitimidade e sua aceitação pela opinião pública indiferenciada, para quem as

aparências são substancialmente mais importantes do que a distribuição real do poder, aspecto

que possui uma tendência a ocorrer informalmente e a manter-se na sombra. A necessidade de

cooptação é dada pela medida em que se ampliam, concreta ou potencialmente, os níveis de

desequilíbrios entre a autoridade formal e o meio institucional.

Discutindo a tendência dos partidos políticos à burocratização, Michels (1966),

argumenta que toda organização, à medida que se amplia, desenvolve uma tendência à

oligarquia, dividindo-se em minoria de dirigentes e maioria de dirigidos. Assim, o advento da

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organização marca o início do declínio da democracia. A expressão ‘organização’, como

empregada por Michels, no contexto, não se destina a definir um sistema empresa em sua

totalidade, nem delimitar uma de suas partes com razoável grau de autonomia; tampouco,

procura explicitar o modo como estão agrupados os recursos críticos da empresa, informando o

critério de departamentalização utilizado. Aplica-se a expressão para definir associações formais

voluntárias, como sindicatos e partidos políticos. Organização, no estudo de Michels, significa o

estágio de evolução ou de desenvolvimento de um grupo social determinado, constituído

voluntariamente para perseguir objetivos específicos. Desse modo, o aumento do poder da

organização corresponderá à redução do grau de democracia aplicada. Nos congressos dos

partidos, e não menos em outras organizações voluntárias, há uma tendência a entregar todos os

assuntos importantes às comissões que os debatem em segredo, revelando um sistema eleitoral

indireto contra o qual todos os partidos lutam na vida pública (MICHELS, 1966).

Os pesquisadores e comentadores da burocracia têm sido bastante hábeis para destacar

as imperfeições do tipo ideal burocrático, tomando por modelo operacional ou organizacional

concreto o que foi construído como tipo ideal abstrato. Nos nossos dias a palavra ‘burocrata’ foi

transformada em uma ofensa.

Uns, repetiram as advertências de Weber, explicitamente afirmadas no texto, ou dele

possível de serem deduzidas, usando palavras diferentes, significando, contudo, a mesma coisa.

Outros, inadvertida ou intencionalmente, interpretaram de modo próprio as palavras de Weber,

provavelmente atribuindo a elas significado diverso do que lhe dera o autor. Estes enveredaram

as críticas não para as definições originais, mas, para as próprias interpretações que delas

fizeram. Aqueles se emaranharam em uma batalha que é, antes, mais propriamente semântica do

que conceitual, metodológica ou empírica.

2.5 A formação do Estado brasileiro e a dominação burocrática.

Seguindo os passos da sociologia compreensiva de Max Weber, Raimundo Faoro

(1975) e Simon Schwartzman (1982) procuram explicar o processo de formação do Estado no

Brasil a partir da influência da Coroa Portuguesa e de sua herdeira, a elite política brasileira –

denominada por Faoro de patronato. Faoro descreve o desenvolvimento do Brasil sublinhado,

sobretudo, por processos de reificação de uma estrutura burocrática estamental. Schwartzman

explica que os problemas brasileiros não podem ser compreendidos no interior de um quadro de

referência marxista, de polarização e conflito, no qual se procura estabelecer conexões entre os

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eventos políticos, de um lado, e os grupos de interesses ou classes sociais, de outro: ricos e

pobres, burgueses e proletários, explorados e exploradores, agricultura e indústria, financistas e

industriais.

O estamento burocrático permeou todo processo de evolução da sociedade brasileira,

adaptando-se ao esforço de modernização, sem, contudo, afastar-se de sua essência: a dificuldade

em distinguir entre a coisa pública e a privada Nas palavras de Faoro (1975, p 747),

A longa caminhada dos séculos na história de Portugal e do Brasil mostra que a

independência sobranceira do Estado sobre a nação não é exceção de certos

períodos [...]. O estamento burocrático, fundado no sistema patrimonial do

capitalismo politicamente orientado, adquiriu o conteúdo aristocrático [...].

Nem a pressão democrática desfez o patronato político, cuja estrutura resistiu durante

séculos aos desafios mais profundos e a todas as transformações fundamentais. A comunidade

política conduz, comanda e supervisiona os negócios como se fossem, na origem, privados –

públicos, depois. A falta de um quadro administrativo levou à dispersão da autoridade, que

adquiriu uma faceta patriarcal, de mando pessoal – o fazendeiro, o coronel, o pelego sindical, o

cabo eleitoral.

Na visão de Faoro (1975), quatro elementos tipificam de modo particular a linha do

tempo do processo de desenvolvimento brasileiro:

1. Relação Estado-Sociedade mediada pelo estamento burocrático, que sempre procurou afastar

ou minimizar a interferência dos cidadãos – primeiro o coronel; depois, o pelego, o substituto

urbano do coronel;

2. Formação e desenvolvimento do Estado anterior ao da sociedade, com a contínua primazia

do primeiro;

3. Reificação do estamento burocrático, como o fio condutor de uma sociedade que se

moderniza a partir da ação do Estado, que em tudo lhe antecede e lhe castra;

4. Estado protetoral e iniciativa privada dependente.

O autor ainda afirma que o comportamento mais visível da ordem burocrática

aristocratizada no ápice é a busca pelo emprego público. Havia pessoas que abandonavam suas

plantações, fazendas, famílias e profissões e para ficar nas cidades à espera de um emprego

público. Somente o emprego público nobilitava, branqueava, oferecia poder e glória; elevava e

decorava um nome. Dessa busca de abrigo no Estado não escapava nem mesmo os empresários.

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Mauá, o maior empresário do império, simboliza como poucos essa figura paradoxal da época,

que deseja, ao mesmo tempo, a propriedade da sua indústria e a proteção do governo.

O advento da república, sob a tutela dos militares, ante a fragilidade dos partidos que

formavam nada além de grupos de interesses, não conduz ao liberalismo clássico de padrão

europeu e americano. O povo cala e obedece. Surge uma república sem povo. Faoro (1975),

assevera que na primeira eleição direta, realizada em 1881, votaram menos de 1% (um) da

população total de cerca de 10 milhões de pessoas.

Uma transição no sistema político se fez de forma gradual. No império, o sistema parte

do centro, com nomeação dos presidentes das províncias – futuros governadores. O sistema de

nomeação foi mantido no primeiro governo republicano. Quando os cargos de governadores

tornaram-se eletivos, a dinâmica do sistema mudou, com o deslocamento do eixo decisório para

os estados – sobretudo os grandes, que se fortaleceram, afastando a influência do centro federal.

Esse movimento culminaria na política dos governadores.

Data desse período o fortalecimento do coronelismo, figura ainda ativa na política,

principalmente – mas não exclusivamente – nos pólos menos desenvolvidos do Brasil. A figura

do coronel na política, em si, não caracterizava um fato novo, mas a sua configuração – agora

estadualizada –, sim. O nome coronel foi herança da Guarda Nacional, cujo chefe do regimento

municipal investia-se daquele posto. A nomeação recaía regularmente sobre pessoa qualificada e

detentora de riqueza. Ao lado desse coronel ‘oficial’ desenvolveu-se o chefe político tradicional,

também ele chamado pelo nome do alto posto militar devido ao seu estilo de vida – sem ser,

contudo, detentor da patente. Dessa forma o vocábulo ‘coronelismo’ se entrelaça no

desenvolvimento político e social do Brasil, atuando, principalmente, no âmbito dos municípios.

Grassa no senso comum a imagem do coronel como um sujeito brutalizado e

essencialmente violento. Essa imagem corresponde apenas parcialmente à realidade. O coronel

tradicional, quase sempre era, de fato, um homem ligado às coisas da fazenda, desprovido de

‘cultura’ técnica, sem habilidade no manejo das palavras. Mesmo quando ele morava na cidade,

seus traços culturais mantinham-se bastante arraigados à cultura do campo. Contudo, o coronel

era, geralmente, uma pessoa amável com os compadres e com os afilhados. Era ele quem

amealha um grande número de crianças para batizar, casamentos a testemunhar, honrarias sociais

a receber. A violência não era a regra, mas, sim, um recurso extremo, a ser empregado, seletiva e

impiedosamente, somente contra os ‘inimigos’ que atentavam contra o seu prestígio.

Funções e cargos públicos eram criados – ou extintos –, não em decorrência de uma

realidade social ou econômica objetiva do município, mas, principalmente, devido à necessidade

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do coronel em acomodar seus afilhados protegidos, acolhendo-os, recompensando-os com

“prebendas”14

oficiais. Quando no contexto de um grupo social se cria um conceito, ele, por si

evidencia a prática que expressa: “aos amigos tudo; aos inimigos os rigores da lei”,15

tipifica o

ambiente de favoritismo, estufa na qual se criava e desenvolviam o coronel.

O coronel irá desempenhar funções públicas com base em relações pessoais de

confiança. Acima, investido de poder por um chefe político; abaixo ele cooptará seus

‘subcoronéis’ – os compadres –, espécie de colegiado informal, ao qual controlará cedendo

grande parte de seu poder e de suas ‘prerrogativas’. Para esse homem, que tudo escapa às

características da burocracia profissional – formalismo, profissionalismo, impessoalidade,

separação de domínios –, a própria política constitui seu interesse particular: os favores, os

cargos, os créditos subsidiados, os contratos e tudo o mais que ele puder amealhar - para si ou

para os seus protegidos –, não são mais que direitos adquiridos.

Na república, os governadores tornam-se o centro das decisões, manobrando-as

estrategicamente para manter o poder legitimado na farsa eleitoral. Para os sócios nesse

empreendimento – o coronel e seu chefe político nas capitais dos estados –, a vergonha é a

derrota e não a manipulação eleitoral. Para cima, em direção a capital federal, o poder do

Governador decorre da capacidade de pressionar, manobrando com os parlamentares que

controla. Para baixo, os coronéis devem obedecer, sob ameaças veladas e explícitas e trocas de

favores. O diálogo recolhido por Faoro (1975, p. 629), havido entre João Pinheiro – Presidente,

Deputado, Senador e Governador em Minas Gerais entre 1890 e 1908 – e um chefe político que

lhe pedira orientação, ilustra como era entabulada essa relação, regada a privilégios e ameaças:

Diga sempre que é solidário com o governo. Tudo se reduz a obedecer. Obedeça

e terá politicamente acertado. Do contrário, o senhor sabe, estou eu aqui com o

facão na mão para chamar à ordem aqueles que se insurgirem. A minha missão

principal é essa: manobrar o facão, ou em cima, quando se trata de política

federal, ou em baixo, quando da estadual. O nosso meio de orientação é esse.

Portanto, olho no facão, não esqueça e boa viagem.

Fiadora desse sistema hierarquizado e autoritário atuava sob o comando do governador

uma milícia estadual, força policial de caráter burocrático profissional, forte o suficiente para

chamar às ordens os coronéis distraídos da hierarquia. A contínua profissionalização da força

militar estadual, principalmente nos grandes estados – como São Paulo, Minas Gerais e Rio

14

Emprego rendoso de pouco trabalho. 15

A frase, já incorporada ao anedotário político brasileiro é atribuída a Artur Bernardes (1922 a 1926). Sua

popularização, no entanto, deve-se a Getúlio Vargas.

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Grande do Sul – vai erodir o poder do coronel autônomo e fortalecer um outro tipo de coronel: o

burocrático.

A possibilidade de substituição do coronel, introduzida na República, modifica o

sistema relativamente à sua armadura burocrático-estamental, presente no período do Império.

Entretanto, o povo não emerge à superfície social, como era de se esperar, com suas

manifestações de autonomia. A tutela do poder público sobre a sociedade e a indistinção entre o

público e o privado permaneceram próximos ao modo como se manifestavam no Império.

Por investidura ou reconhecimento oficial – agora dos Estados –, os particulares

exercem funções públicas, tal como antes, raramente distinguindo entre o interesse público e o

privado e frequentemente usando o poder estatal para o próprio benefício. O sistema é de

reciprocidade: o coronel irá preparar as eleições, conduzindo os eleitores como ‘tropas de

jumentos’, garantindo a vitória do chefe político pelo voto – sempre que possível na urna. Mas,

contanto que a assegure, ele a fará, às vezes fraudando os mapas eleitorais, às vezes usando a

chantagem e a pressão psicológica.

Quando todos esses meios mostrarem-se ineficazes, ele buscará obtê-la pelo uso da

violência explícita. Em troca, a política dominante no município e no Estado colocar-lhe-á à

disposição o erário, os empregos públicos, os favores da força policial; enfim, os poderes da

graça e da desgraça; para mandar prender, soltar, isentar, cobrar, conceder, negar, aprovar,

reprovar etc. Colocar o filho na escola, internar um parente doente, conseguir um emprego

público – ou mesmo privado –, arrumar uma ambulância, um ônibus para transportar o time de

futebol, fazer andar a papelada da aposentadoria, construir uma ponte, abrir ou consertar uma

estrada, nada acontece até que se obtenha uma recomendação, um carimbo, uma assinatura, um

pedido do coronel.

O simples ato de comparecer ao guichê de pagamento de tributos, ser chamado à

presença do delegado ou do juiz sem dispor de uma bênção do coronel pode mudar

significativamente a natureza do erro cometido – a gravidade de um crime. ‘Quem tem padrinho

não morre pagão’ – é expressão conhecida e repetida por pessoas do Brasil de todos os lugares,

de todas as classes, de todas as idades, de todas as épocas. A popularização da expressão é

evidencia explícita da sua aceitação como prática ‘legitimada’; a sua permanência no tempo e a

sua disseminação no espaço evidenciam de modo inequívoco que a prática se converteu em

hábito que, retido, penetrou no tecido social, convertendo-se em um dos mais típicos traços da

nossa cultura política.

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Nas primeiras décadas do século XX o sistema conservador dominante passou a ser

pressionado por novas ideologias. Começa um processo acelerado de formação de uma massa

operária. Uma parte oriunda de remanescentes da escravidão, outra de migrantes dos latifúndios

em desagregação e uma terceira formada por imigrantes europeus – sobretudo, Portugal,

Espanha e Itália. Junto com os imigrantes chegaram as ideias anarquistas, difundidas em seus

países de origem. O crescimento do movimento operário vai encontrar dura reação do governo

central, convertendo a questão social em questão de polícia.

Uma classe média formava-se sem forças ou aspirações para assumir o comando

político do país. Sua atuação concentrava-se na defesa de um Estado intervencionista e não na

reivindicação de um papel próprio a desempenhar. As reivindicações da classe média

reclamavam proteção e amparo e não representação, num processo que tornava o Estado o fio

condutor da política e o agente econômico da sociedade. O segmento empresarial seguiu pelo

mesmo caminho. A capacidade empreendedora era, principalmente, a capacidade para obter

financiamento público subsidiado. O setor combina-se e se expande no patrimonialismo, no qual,

um grupo estamental incumbir-se-á de distribuir estímulos e favores. O intervencionismo ocupa

o lugar do liberalismo.

O centralismo presidencialista de cunho autoritário sofreria um racha entre os seus dois

sócios majoritários, com a decisão de Washington Luís de romper o acordo tácito de

revezamento na Presidência da República entre os dois estados hegemônicos – São Paulo e

Minas Gerais. Desencadeavam-se os movimentos que levariam à Revolução de 1930. Revolução

sem povo, sustentada nos tenentes e coronéis, sobretudo gaúchos e mineiros, com mais preparo e

vocação para a política do que para os assuntos da caserna. Foram esses tenentes, sem preparo ou

experiência administrativa, que formariam o maior contingente de interventores nos estados. Em

lugar dos governadores, a espinha dorsal do novo modelo passou a ser o elemento militar –

sobretudo, o exército, interessado em modernizar o Brasil com a implantação da indústria de

base, especialmente, a siderurgia.

Instalado no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas promoveu uma reforma

política, instituindo o voto secreto e a eleição judicialmente supervisionada. A centralização

acentuou-se com a emergência de um estado forte, capaz de flutuar acima das classes e do povo,

subjugando-os. O governo propunha-se a modernizar o Brasil não mais procurando ajustá-lo ao

padrão europeu ou norte-americano, mas preocupado com a ideia da integração nacional, sob o

manto das Forças Armadas.

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Desenvolver-se-ia o integralismo, cuja fórmula era, essencialmente, a reificação da

Velha República. Velha nos métodos autoritários de dominação da sociedade – embora

desmanteladas as oligarquias e afastado o ‘facão’ dos governadores. O apelo direto às massas –

artifício eficaz para evitar o predomínio de grupos autônomos da sociedade – conduz ao

populismo autocrático – sem coronel, embora inserido na mesma lógica estrutural e no mesmo

espírito mental, que procura afastar a sociedade. A conciliação com os operários se fez por

intermédio de um sindicalismo ‘domesticado’, suficiente para evitar o comunismo, enquanto que

a oficialização de certos grupos de pressão capitalistas bastaria para afastar o fascismo. Em sinal

de repúdio ao estilo contestatório de certos movimentos populares criou-se um ministério

símbolo da conciliação de classes – o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Não se trata

de fantasia utopista; obra do acaso.

O Estado se sente forte o suficiente para dirigir a sociedade econômica e socialmente. O

governo – encarnado na pessoa do presidente – é o senhor de todos os instrumentos de comando

político: o operário sindicalizado, a indústria cartelizada, o comércio controlado e a maioria dos

estados asfixiada pelo Banco do Brasil. A exclusão da participação popular bloqueia a formação

de grupos autônomos e o sistema não logra consolidar nenhuma ideologia. O exercício do poder

se converte em uma ditadura pessoal, a oficialização dos sindicados transforma o líder operário

em agente designado e o líder empresarial em humilde cliente das agências do tesouro. Entre o

ditador e o povo estão, agora, o estamento burocrático e o pelego sindical, modernas versões

urbanas do coronel.

A análise de Schwartzman (1982) procura compreender a formação do Brasil a partir da

contradição e do conflito, que se configura nas relações entre o centro econômico mais

organizado da sociedade civil, localizado em São Paulo, e o núcleo de poder central, com maior

presença no Rio de Janeiro. Em São Paulo surgiram as pressões mais fortes contra os poderes

concentrados no Governo Federal, vindas de grupos empresariais e do movimento sindical,

reivindicando a constituição de um sistema político mais aberto e estável para edificar um

regime democrático em bases permanentes.

Ele identifica quatro tipos principais de regiões, que se formaram no Brasil durante o

período de colonização: A burocrática, a tradicional, a autônoma e a militar. A primeira,

burocrática, desenvolveu-se impulsionada pelas atividades governamentais. A residência do

governante ou de outro corpo administrativo constituiu o componente mais importante para o seu

desenvolvimento. Primeiro foi Salvador. Mas, o Rio de Janeiro é a que melhor representa esse

tipo de região. Era a região mais moderna do país, que estava mais diretamente em contato com

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o modo de vida europeu. Sua economia sustentava-se, principalmente, no comércio e no

funcionalismo público. A vida política apresentava certo nível de tensão entre uma pequena

nobreza dependente, de um lado, e uma classe média formada por burocratas e comerciantes, de

outro.

O segundo tipo de região constitui a sociedade tradicional, configurando-se no oposto

da cidade urbana burocratizada. Ela é comumente descrita como uma comunidade não industrial

ou camponesa, que se submete, entretanto, ao impacto dos processos de modernização e de

industrialização. Contudo, no Brasil as regiões tradicionais são formadas por áreas que

experimentaram um período de progresso no passado, entrando, posteriormente, em declínio

econômico e político. As antigas áreas de cultivo da cana-de-açúcar no nordeste e de mineração

em Minas Gerais constituem os melhores exemplos do tradicionalismo brasileiro.

O terceiro tipo de região, representado por São Paulo, retrata a forma mais importante

de diferenciação. Esta região apresentava núcleos dotados de maior autonomia política e

econômica, desenvolvendo-se com base nas atividades comerciais e industriais de seus cidadãos.

Segundo Schwartzman a antiga capitania de São Vicente – posteriormente Província e Estado de

São Paulo – foi o primeiro núcleo a se expandir em direção ao interior. Esse processo de

expansão foi condicionado pela captura de índios, que fugiam, afastando-se cada vez mais na

floresta em direção ao sul do Brasil e pelas expedições em busca de ouro e pedras preciosas em

Minas Gerais. A expansão para o sul iria provocar choques militares com as expedições jesuítas

espanholas, enquanto que a busca pelo ouro levaria aos conflitos com migrantes provenientes do

norte durante a guerra dos emboabas.

Esse fluxo de expansão da capitania de São Vicente estava em completa falta de

sintonia com a política da coroa portuguesa, explicando, ao menos em parte, a quase completa

ausência de São Paulo da vanguarda dos eventos nacionais até o século XIX, quando esse quadro

muda, sustentado na expansão da cultura do café, impulsionada pela entrada no Estado de outros

imigrantes europeus não portugueses. Em 1940, São Paulo já assumira a frente, como o Estado

mais populoso e a economia mais pujante. São Paulo já se tornara o foco da industrialização do

país e a principal fonte de arrecadação de impostos do Governo Federal. Entretanto,

politicamente, o Estado desempenhou um papel muito menor comparando-o ao seu potencial

econômico.

O quarto tipo de região formou-se no Rio Grande do Sul, estado onde não imperou as

relações do tipo tradicional – característica de Minas Gerais e do nordeste – e que não estava no

centro administrativo nacional. Tampouco ele constituía um pólo econômico dominante – à

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altura da sua grande influência política. Foi, desde sempre, uma espécie de centro da periferia.

Sua história, desde a instalação da colônia portuguesa de sacramento foi forjada no conflito entre

os impérios português e o espanhol – a começar pelo ataque quase concomitante à sua instalação,

promovida pelo governador espanhol da Província de Buenos Aires.

Após a independência do Brasil, a província manteve a sua natureza militar devido aos

conflitos entre a Argentina e o Brasil, travados em disputas pelo controle da região, onde hoje

está instalado o Uruguai. Os movimentos separatistas do estado – quase sempre estimulados por

caudilhos argentinos e uruguaios – também contribuíram para a retenção da sua natureza militar.

O Rio Grande do Sul vai se desenvolver quase como um posto militar de fronteira, consolidando

a sua ortodoxia positivista – resultante da tradição militar.

O estado sempre foi uma das bases mais importantes do exército brasileiro,

contribuindo com uma parte considerável dos seus quadros dirigentes. Politicamente, o Estado

chegou ao poder central com Getúlio Vargas, em 1930 e em 1950, e com João Goulart em 1961.

No período militar ocupou a Presidência da República com Costa e Silva (1967), Emílio

Garrastazu Médici (1969) e Ernesto Geisel (1974). Dilma Rousseff, eleita Presidente em 201116

,

embora tenha carreira política construída no Rio Grande do Sul, nasceu em Belo Horizonte -

MG. Em que pese a forte influência europeia no seu desenvolvimento – notadamente na criação

de uma agricultura de alta produtividade – o papel político desempenhado pelo Rio Grande do

Sul no cenário nacional esteve menos relacionado com os aspectos modernos europeizados de

sua cultura do que com a sua sólida tradição militar e caudilhesca.

Schwartzman (1982) faz breve paralelo entre o processo de formação do Brasil e o dos

Estados Unidos. Os estados do sul desse país experimentaram uma forte decadência após a

guerra civil. O comportamento dos políticos representantes dessa região era bastante evidente:

uniam-se quando a autonomia do Estado era ameaçada, quando se fazia necessário defender o

status quo, e emprestava apoio ao Governo Federal quando ele precisava, em troca do controle

político de seus estados. Schwartzman vê semelhanças com aquilo que se pode observar no

Brasil, notadamente nas regiões do Nordeste, do Norte e de Minas Gerais – o que não significa

dizer que tal fenômeno esteja completamente ausente nas demais regiões brasileiras. Entretanto,

na América do Norte, os Estados Confederados haviam sido derrotados pelo norte

16

Juntamente com Leonel Brizola, após a abertura política, lutou pela recriação do PTB. Após a perda da legenda na

justiça para Ivete Vargas, o grupo de Brizola fundou o PDT (Partido Democrático Trabalhista). Dilma Rousseff

jamais exerceu função política de destaque no Estado de Minas Gerais – do qual guardou, contudo, o sotaque. No

Rio Grande do Sul foi Secretária da Fazenda de Porto Alegre (1985) e Secretaria Estadual de Energia, Minas e

Comunicações (1990). Com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República ela se tornaria,

respectivamente, Ministra de Minas e Energia e Ministra Chefe da Casa Civil.

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industrializado, enquanto que no Brasil a hegemonia do centro industrializado jamais foi

estabelecida.

Schwartzman (1982) – usando uma tipologia criada a partir dos conceitos de Weber -

propõe um quadro referencial para pensar a evolução das formas de dominação, relacionando-as

ao processo de formação do Brasil, como mostrado no Quadro 04:

Quadro 4: Dominação tradicional e moderna.

Relação de poder

Sistema

Normativo

Absolutista Contratualista

Tradicional Patrimonialismo Feudalismo

Moderno Neopatrimonialismo

(Patrimonialismo

burocrático)

Dominação

racional-legal

Fonte: Schwartzman (1982)

De acordo com Schwartzman (1982), o patrimonialismo evoluiu para o

neopatrimonialismo – ou burocracia patrimonial – ao passo que o feudalismo consistiria no

precursor da moderna forma de dominação racional-legal. Em suas primeiras formas de

dominação – patrimonialismo e feudalismo – compartilham o fato de que em ambas o poder

central era absoluto e incontestável, embora organizado de modo diverso e legitimado por

diferentes sistemas de normas e de valores. A distinção entre dois tipos modernos de dominação

política – neopatrimonialismo e racional-legal – não é extraída diretamente da obra de Weber,

mas parece ser o resultado de uma análise aprofundada que Schwartzman faz de seus conceitos.

Elas possuem em comum o fato de ambas serem baseadas na existência de um estatuto legal

constituído de regras racionalmente elaboradas.

Contrariando o que é quase sempre sustentado, Schwartzman entende que o feudalismo

não se constituiu historicamente em fator de subdesenvolvimento. De outra parte, a existência no

passado de um estado excessivamente grande e burocratizado parece, esse sim, estar associado às

causas determinantes do relativo atraso de certos países no presente. O feudalismo teria levado

ao Estado liberal, caracterizado pela tendência de existência de grupos sociais e políticos mais

ativos do que no patrimonialismo tradicional. Este teria desembocado no patrimonialismo

burocrático ou neopatrimonialismo, cujo traço característico é a frágil capacidade de atuação dos

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grupos sociais e políticos dotados de autonomia e o não estabelecimento de uma linha clara de

distinção entre as atividades das esferas pública e privada.

O predomínio de um ou de outro tipo moderno de dominação parece ser determinante

para o modo como se desenvolve a participação política em determinado contexto social.

Historicamente, a sociedade brasileira – em São Paulo e em toda parte – não tem se mostrado

incapaz de se organizar para se contrapor ao peso avassalador do poder estatal. A alternância no

poder entre as forças liberais – mais preocupadas com a primazia do indivíduo e com o não

intervencionismo governamental –, e os grupos ideologicamente identificados com a

participação do Estado no planejamento da vida social tem se mostrado, de fato, insuficiente para

alterar uma relação de instrumentalidade, quase sempre, perversa.

A vertente liberal, sob a defesa do princípio de que o Estado não deve se sobrepor à

sociedade, controlando-a, nega a importância do planejamento governamental, necessário para

transcender a simples agregação de interesse privados. Na outra ponta, têm-se a extrema defesa

do intervencionismo governamental, que desconsidera a existência dos grupos sociais

autônomos. Ambos chamam para si a definição do que seja o interesse coletivo, minimizam os

canais para interferência da sociedade, mantendo-a, confortavelmente, afastada. Enquanto os

liberais desdenham as questões sociais, confundindo liberdade com privatização, as forças de

maior conteúdo social articulam uma profunda centralização do Estado para definir o conteúdo

das políticas públicas. Ambos excluem a sociedade como os atores mais relevantes na construção

de um sistema político, e, desse modo, ambos deslegitimam-se. Não raramente, pelo menos em

determinadas regiões ou períodos, grupos dirigentes encampam o que há de pior nas duas

vertentes, combinando o autoritarismo centralizador com o baixo conteúdo social.

2.6 A versatilidade da dominação burocrática.

A burocracia é um dos elementos centrais dos estados modernos. Ela integra o aparelho

de Estado ao mesmo tempo em que constitui, também, um dos principais grupos de interesses

que procuram influenciá-lo. Não se pode, evidentemente, como o fazem muitos, confundir a

burocracia com o próprio Estado. Mas, o seu poder pode resultar desproporcional no interior do

Estado racional moderno, seja isoladamente ou atuando em coalizão com outros atores que

também procuram influenciar o funcionamento do Estado, como os capitalistas, os trabalhadores

e os políticos profissionais.

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O processo de burocratização tornou-se universal, fazendo-se presente nos países

capitalistas e também nos países socialistas, nos quais os burocratas se tornaram a classe

dirigente, dominante e exploradora, a partir do desvirtuamento de movimentos revolucionários

socialistas que se desdobraram na criação de um capitalismo não liberal, de um Estado dirigido

por um partido único dominado por tecnocratas e detentor dos meios de produção.

O Estado nasceu sob a promessa de se constituir em poderoso instrumento de ação

coletiva. Entretanto, desde a sua emergência ele tem sido associado aos interesses de

determinados grupos. Primeiro, de uma pequena aristocracia. Depois - com o advento das

revoluções liberais, dentre as quais a francesa constitui a mais emblemática -, da burguesia, que

transporta para a política e para o Estado o poder que já exercia nos negócios e na economia.

Sob a perspectiva marxista – já brevemente debatida neste capítulo –, o Estado

representa sempre o interesse capitalista. Contudo, aos olhos de Weber, a ótica marxista pode ser

questionada, substituindo-a pela ideia de que o Estado é um instrumento de ação coletiva -

sobretudo, nas comunidades democráticas -, que está sempre sujeito, contudo, à captura pela

classe social melhor organizada em determinada sociedade ou em dado momento histórico.

O processo de modernização, observado desde a Idade Média, coloca em evidência dois

elementos complementares que se desenvolvem simultaneamente: na economia, uma marcha em

direção ao capitalismo; no Estado, o progresso em direção ao funcionário burocrático. Isso será

tanto mais verdadeiro quanto este se trate de um Estado de massa. Essa tendência foi descoberta

por Weber (1999, v.2) tanto para os Estados monárquicos quanto para os democráticos, pois, o

Estado absolutista, da mesma forma que o democrático, procura eliminar a administração

honorífica em favor dos que trabalham mediante contrato e treinamento especializado em troca

de salário, carreira e pensão.

A moderna economia capitalista fundamenta-se no cálculo contábil, cuja existência

requer que haja, da parte do Estado, um direito racional, fundamentado em regras fixas e

previsíveis, de tal modo que se possa calcular a sua aplicação do mesmo modo como se procede

relativamente ao cálculo do rendimento de uma máquina. A burocracia, explica Weber (1999,

v.2), é desumanizada, na medida em que consegue eliminar dos negócios o amor e o ódio, assim

como os demais elementos pessoais, irracionais e emocionais. A desumanização, qualidade que

tipifica a burocracia, é a característica mais apreciada pelas duas principais categorias de

organizações da era moderna - o sistema capitalista e o estado racional - como sua virtude

especial.

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O processo de burocratização não é consequência do capitalismo. De fato, a

administração burocrática pressupõe a existência de uma economia monetária, de tal modo a

criar condições para a compensação pecuniária aos funcionários. Entretanto, a existência desta é

insuficiente, ao menos como fator exclusivo, para determinar a burocracia. Ela lhe é anterior e

também pode ser encontrada até mesmo de forma mais elaborada nos regimes socialistas.

De modo análogo, a democracia não é a causa da burocracia, tanto quanto aquela não é

consequência desta, embora, e até certo ponto, a democracia promova e se apoie na burocracia.

Contudo, a democracia existia na Grécia antes deste país tornar-se burocrático e a burocracia já

se fazia presente no Egito e na Ásia antigas e pode ser encontrada em diferentes formas de

governos autoritários, como se observou na URSS, na Argentina na década de 1970 e no Chile,

de Augusto Pinochet. Entretanto, a moderna democracia de massa, em contraste com os

governos autônomos das pequenas cidades, requer a igualdade perante à lei tanto no sentido

pessoal quanto funcional e, para realizar esse intento, a democracia lança-mão da burocracia para

eliminar os privilégios, procurando o nivelamento social e pessoal para o acesso às funções.

Democracia, ao menos em seu sentido de massa, não é, evidentemente, sinônimo de

participação dos governados. Precisamente, significa a existência em dado contexto social de

diferentes grupos de interesses em luta pelo controle do poder. Em tais condições para tal

objetivo os grupos tendem a se organizarem em associações ou partidos políticos. Esses partidos,

em sua estrutura, consistem essencialmente em máquinas cada vez mais burocratizadas - repletas

de políticos profissionais, dentre os quais, muitos sem vocação -, cuja função na sociedade se

resume à episódica disputa eleitoral.

Embora, no senso comum de nosso tempo, o governo representativo seja

frequentemente tomado como sinônimo de democracia, ele pode, de fato, caracterizar um

simples artifício técnico, condicionado pelas dificuldades de organização do poder em uma

sociedade de grandes dimensões. De parte dessa abordagem – explica Rosanvallon (2000) – o

governo representativo pode não passar de um arranjo possível – un pis-aller –, um substituto

forçado para um impossível governo direto de cidadãos. Este, indubitavelmente, na terna

abordagem clássica, constitui o sistema político ideal17

. Portanto, é enorme a diferença entre

aquilo que os gregos chamavam de democracia e o governo representativo que emerge das

17 Dada a impossibilidade de aprofundar essa discussão aqui, sugerem-se as leituras de: ROSANVALLON, Pierre.

Le sacre du citoyen. Paris: Gallimard, 1992; ROSANVALLON, Pierre. La démocratie inachevée. Paris: Gallimard,

2000; ROSANVALLON, Pierre. La contre-démocratie: la politique à l’âge de la défiance. Paris, França: Seuil,

2006; ROSANVALLON, Pierre. La société des égaux. Paris: Seuil, 2011.

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revoluções liberais, notadamente de 1789. Stricto sensu, talvez não fosse grande exagero afirmar

que o nascimento do governo representativo marca a morte da democracia. Tal fato já fora

apontado por Weber (1974): democratização – explica – não significa necessariamente uma

participação cada vez mais ativa dos governados. Isso pode até ser o resultado de um processo de

democratização, mas, não precisa sê-lo necessariamente.

O conceito político de democracia, como o compreende Weber, depreende da igualdade

jurídica, da tendência ao nivelamento, do horror aos privilégios. Desses princípios, deduzem-se

os postulados de que é preciso (1) evitar a formação de estamentos fechados de funcionários em

detrimento do interesse geral e (2) que se deve minimizar o poder de mando da burocracia, no

interesse de maior influência da opinião pública, introduzindo, onde possível, o preenchimento

de cargos de curto prazo - com duração limitada - por meio de processos eleitorais e sem a

exigência de que seus postulantes possuam qualificação técnica. Nesse ponto, a democracia entra

em conflito com a burocracia, que de certa forma promoveu no curso da luta contra os

privilégios e a administração de dignitários (honoratiores).

Como forma de dominação, a burocracia est partout, nas avançadas democracias do

continente Europeu e estadunidense e em regimes autoritários, como no Brasil da era Vargas e

em tempos mais recentes, na ditadura militar. A rigor, como será visto, foi exatamente sob a

ditadura Vargas que o processo de burocratização no Brasil mais rapidamente se

institucionalizou.

Portanto, a burocracia é inerente ao processo de modernização compreendido como dé-

magification do mundo, consistindo em um instrumento de dominação que se coloca a serviço de

variados interesses, desde os puramente políticos, econômicos ou outros que se possam

conceber. Uma eventual eliminação do capitalismo – como previra Marx –, substituindo-o pelo

socialismo, ou da democracia, cedendo lugar ao governo autocrático, não a destruiria. Pelo

contrário, poderia mesmo fortalecê-la, levando à completa burocratização (WEBER, 1999 v.2).

O papel desempenhado pelo Estado, evidentemente, não é o mesmo em todas as partes

do mundo. Ele certamente foi menor naquelas sociedades, nas quais prevaleceu o

individualismo, como Inglaterra e Estados Unidos; e maior em países da Europa, como Portugal

e França, e, também no Brasil. É dentro desse quadro de referência, no qual o Estado expressaria

as características da sociedade, sendo o seu principal instrumento de ação coletiva, que se pode

compreender o desenvolvimento de uma burocracia pública no Brasil, seja como categoria – e

mesmo classe – profissional ou parte integrante da maquinaria estatal.

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Dada a natureza do processo de formação do Brasil, a burocracia sempre constituiu

parte da elite dirigente – assim o demonstrou Faoro e Schwartzman –, seja na condição de

burocracia patrimonial no império e na primeira república, seja como burocracia moderna a

partir de 1930, atingindo status de principal classe dirigente durante o período militar. Nesse

período, os governos foram conduzidos por membros oriundos dos altos quadros técnicos das

Forças Armadas, que eliminaram qualquer perspectiva de participação da sociedade, procurando

se apoiar numa burocracia profissional para definir e sustentar suas ações políticas.

A partir da década de 1980, aumentaram consideravelmente as pressões da sociedade

por mais participação. A década seguinte foi marcada pela chegada ao poder de governos

democráticos e pela ascensão em escala mundial de uma ideologia que defendia a redução do

papel do Estado às suas funções essenciais. Ao se combinar esses dois fatores com uma crise

financeira internacional, abalando a capacidade de investimento dos Estados, tem-se a

composição de um quadro em que a maioria dos governos de países democráticos realizaram

reformas e procuraram reduzir o poder da burocracia. Nesse curso histórico, o Estado brasileiro

seguiu um trajeto caracterizado por três etapas: oligárquico, autoritário e liberal democrático.

Enquanto nas duas primeiras etapas a burocracia caracterizou-se como sócia da elite dirigente –

primeiro, a burocracia patrimonial em conluio com uma aristocracia agrária e, depois, a

burocracia racional em associação à burguesia industrial -, a terceira fase é marcada pela

ascensão de um capitalismo financeiro com vocação para se internacionalizar e, por isso, avesso

à regulamentação burocrática nacional.

Os primeiros vestígios de uma administração burocrática, baseada na existência de um

funcionalismo profissionalizado, podem ser encontrados no Brasil desde o seu nascimento como

nação independente de Portugal no início do no século XIX. Embora de desenvolvimento lento –

e enviesado, como o demonstram Faoro e Schwartzman, discutidos no tópico anterior -, já em

1824, por ocasião da promulgação da primeira Constituição do Brasil (março de 1824), sob as

ordens do Governo Imperial de D. Pedro I, já se anunciava um razoável aparato de regulamentos

governamentais, que viria a requerer a existência de funcionários especializados para aplicá-los.

Seis anos após a Proclamação da Independência - 11 de agosto de 1827 –, seria criada a

Faculdade de Direito do Largo São Francisco por Lei Imperial, instituição considerada

estratégica para a formação de uma elite de funcionários, governantes e administradores públicos

capazes de organizar e conduzir o projeto do país que acabara de se emancipar. Inicialmente, a

preocupação com o desenvolvimento de uma burocracia profissional é verificada, notadamente

no campo fazendário e da justiça.

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Contudo foi somente a partir da década de 30 do século passado, após o período

revolucionário, que a burocracia racional descrita por Max Weber, baseada no profissionalismo e

na impessoalidade, começou a ser efetivamente implantada no Brasil, acoplando-se ao processo

de industrialização. Tratou-se, no entendimento de Guerzoni Filho (1996), de exigência do

próprio crescimento da complexidade da ação estatal. O governo começava a atuar em novas

áreas, como atesta a criação de novos ministérios, como o Ministério da Educação, O Ministério

da Saúde e um emblemático Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, sinalizando para a

política que se seguiria de formação de uma burocracia sindical. As atividades incorporadas pelo

Governo no seu esforço de apoio e participação na realização da Revolução Industrial brasileira

exigiriam funcionários qualificados e especializados, contratados mediante critérios de

profissionalismo e protegidos contra a demissão imotivada.

Essa preocupação vai se refletir na Constituição da República dos Estados Unidos do

Brasil de julho de 1934, a primeira com um título inteiramente consagrado ao funcionalismo

público, como se demonstra a seguir:

TÍTULO VII

Dos Funcionários Públicos

Art 168 - Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, sem distinção

de sexo ou estado civil, observadas as condições que a lei estatuir.

Art 169 - Os funcionários públicos, depois de dois anos, quando nomeados em

virtude de concurso de provas, e, em geral, depois de dez anos de efetivo

exercício, só poderão ser destituídos em virtude de sentença judiciária ou

mediante processo administrativo, regulado por lei, e, no qual lhes será

assegurada plena defesa.

Parágrafo único - Os funcionários que contarem menos de dez anos de serviço

efetivo não poderão ser destituídos dos seus cargos, senão por justa causa ou

motivo de interesse público.

Art 170 - O Poder Legislativo votará o Estatuto dos Funcionários Públicos (...)

A partir da Constituição de 1934 foi criado o Conselho Federal do Serviço Público

Civil,18

estabelecida uma classificação de cargos, diferenciando entre funcionários efetivos e

comissionados (estes, excluídos das carreiras). Também foi instituída uma grade de

remuneração, dando início ao sistema de administração de pessoal. Evidentemente, essas

iniciativas não eliminaram a tradição de tratar os cargos públicos como importante moeda de

18

Posteriormente, Departamento Administrativo do Serviço Público – DASP – e depois, Secretaria de

Administração Pública da Presidência da República – SEDAP.

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troca no jogo político. Já na Constituição de 1946, o sistema de mérito era fortemente golpeado.

No artigo 23 das Disposições Gerais transitórias estabelecia-se que:

Os atuais funcionários interinos da União, dos Estados e Municípios, que

contem, pelo menos, cinco anos de exercício, serão automaticamente efetivados

na data da promulgação deste Ato; e os atuais extranumerários que exerçam

função de caráter permanente há mais de cinco anos ou em virtude de concurso

ou prova de habilitação serão equiparados aos funcionários, para efeito de

estabilidade, aposentadoria, licença, disponibilidade e férias.

Em 1952, foi instituído o Estatuto dos Funcionários Públicos por intermédio da Lei n.

1.711, de 28 de outubro. Entretanto, essa lei seria continuamente violada, com a contratação de

funcionários sem concurso público que eram posteriormente efetivados. Em 1960, a máquina

governamental estava ‘inchada’ de funcionários contratados com base em indicações políticas,

sem capacidade para executar as políticas governamentais. Esse diagnóstico levou o Presidente

Juscelino Kubitscheck de Oliveira a intensificar a contratação de funcionários especializados

sem a realização de concursos públicos, formando o que era denominado ‘Grupos Executivos’,

constituindo uma verdadeira administração paralela que, apesar da sua importância para o

governo JK, não conseguiu ser perenizada na Administração Pública.

Com o golpe militar de 1964, o processo de criação de uma estrutura burocrática

paralela tornou-se ainda mais nítida. A Constituição de 24 de janeiro de 1967, em seu artigo 104

definia que “Aplica-se a legislação trabalhista aos servidores admitidos temporariamente para

obras, ou contratados para funções de natureza técnica ou especializada”.

Em 25 de fevereiro do mesmo ano foi emitido o Decreto-Lei nº. 200, um instrumento

típico do autoritarismo, pois, embora seja de autoria do Poder Executivo, tem efeito de lei. Em

seus artigos 96 e 97 ele estabelecia que

Nos termos da legislação trabalhista, poderão ser contratados especialistas para atender

às exigências de trabalho técnico em institutos, órgãos de pesquisa e outras entidades

especializadas da Administração Direta ou autarquia, segundo critérios que, para esse

fim, serão estabelecidos em regulamento.

Os Ministros de Estado, mediante prévia e específica autorização do Presidente da

República, poderão contratar os serviços de consultores técnicos e especialistas por

determinado período, nos termos da legislação trabalhista.

Outros estatutos legais consolidaram a dupla entrada para a formação da burocracia

governamental brasileira, como o foi a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969 e a

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Lei nº. 6.185, de 11 de dezembro de 1974 que em seu artigo 1º estabelecia o princípio de que os

servidores civis da Administração Pública direta e indireta reger-se-iam pelas normas estatutárias

e pela legislação trabalhista. Exceção era fixada no artigo 2º para os servidores cujas funções são

típicas do Estado, sem correspondência na iniciativa privada, como a Justiça, a Segurança, a

cobrança de impostos, previdência e Ministério Público. O artigo 3º esclarecia uma das

preocupações do governo, ao dizer que

Para as atividades não compreendidas no artigo precedente só se admitirão

servidores regidos pela legislação trabalhista, sem os direitos de greve e

sindicalização, aplicando-se-lhes as normas que disciplinam o Fundo de Garantia

do Tempo de Serviço.

Como se verifica, o processo de burocratização do Brasil deu-se de maneira enviesada,

observando alguns de seus princípios e violando outros. Sobretudo, o princípio da

impessoalidade foi desrespeitado, tanto ao se contratar os apadrinhados políticos, visando

acolher interesses de parlamentares, quanto ao se contratar técnicos especializados fora dos

critérios estatutários, visando mantê-los amordaçados, dado que não usufruíam o direito de fazer

greve. Muitos órgãos converteram-se nas chamadas ilhas de excelência, formados por

tecnocratas de elevada qualificação técnica, mas que não se identificavam com o setor público.

Sua lealdade era devida à pessoa da autoridade que o contratou e muitos se preocupavam mais

com a carreira de sucesso no setor privado ou com a criação de um negócio próprio. Não foram

poucos os que deixaram o setor público para tocar suas empresas, passando a prestar serviços

para órgãos estatais, agora em vez de empregadores, seus clientes.

Buscando estruturar as carreiras e visando a criação de uma burocracia orgânica,

identificada com as características da clássica burocracia racional, a Constituição de 1988

introduziria em seu artigo 37 o princípio de que

A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de

legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (...)

A mesma Constituição de 1988 tornaria estáveis milhares de funcionários contratados

sem concurso público. Essa trajetória de desenvolvimento da burocracia no Brasil esclarece a sua

vocação para se acoplar às estruturas de poder como forma de dominação. Ela é um instrumento

para a realização dos interesses dos grupos dirigentes, sejam eles quais forem – a burguesia

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capitalista, inclusive, mas de forma alguma exclusivamente. Está presente nos países capitalistas

liberais, que foram os primeiros a implantá-la. Mas ela está presente também nos países do leste

europeu e na China, de tradição não democrática. Ela é um instrumento para o alcance de

determinados fins práticos com base em um cálculo cada vez mais preciso e afastando dos seus

critérios de decisão quaisquer valores, que não sejam considerados estritamente práticos

(MOTA, 1985). Servindo a qualquer sistema, a burocracia tem a tendência de excluir a

participação do público, ocultando da crítica o que sabe e o que faz.

2.7 As variadas formas de democracia: direta, representativa, participativa e de

surveillance.

O princípio da unanimidade está na origem do conceito de regime democrático. Se hoje

a ideia de que a deliberação de uma maioria é suficiente para submeter todos os outros à sua

vontade é aceita com naturalidade, ela, também, esconde o fato de que, na sua origem, o sentido

de legitimidade estava fortemente ligado à noção de consenso e de unidade. Cada pessoa era

considerada portadora de direitos irredutíveis. O respeito ao indivíduo só poderia ser realizado

mediante o consentimento de cada cidadão. De acordo com Rosanvallon (2008), é este o

princípio fundador da noção de estado de direito. A realização de uma sociedade unida e

pacificada definia-se por meio desse ideal político. Participar das diferentes atividades era,

principalmente, afirmar-se como membro de uma comunidade. Caso um conflito nascesse e

persistisse em uma determinada comunidade, não se considerava a hipótese de equacioná-lo

submetendo a minoria à vontade da maioria. A única saída que lhes parecia viável era a secessão.

Ou as pessoas viviam juntas, em harmonia, ou deveriam se separar, formando duas entidades

independentes e unidas.

Com o aparecimento do direito de voto e sua ampliação, a questão do princípio

majoritário foi proposto por Sieyès. Como explica Rosanvallon (2008), Sieyès compreendia que

a vontade geral deveria integrar todas as vontades individuais. Afinal, “se os indivíduos são, por

natureza, livres e iguais, nenhum deve, com efeito, estar em situação de dominar os outros e o

poder legítimo só pode proceder de cada um unindo-se aos outros” (ROSANVALLON, 2008, p.

44)19

(tradução nossa). No entanto, como tornar operacionalmente viável a construção dessa

unanimidade em uma sociedade de grande escala? Sieyès resolveu essa questão de uma forma

19

Si les individus son par nature libres et egaux, aucun ne doit en effet être en situation de dominer les autres et le

pouvoir ne peut légitimement procéder que de la volonté de chacun s’unissant à celle des autres

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simples, colocando a unanimidade como um ideal formal e redefinindo-a no plano concreto,

concebendo-a de maneira aritmética. Ou seja, para Sieyès, a maioria era considerada como

equivalente à unanimidade.

A assimilação da maioria como equivalente à totalidade se legitimou na sua aceitação

como princípio e como um arranjo engenhoso, destinado a superar a impossibilidade do

consenso. Sob essa assimilação legitimada nasceram e se consolidaram as modernas sociedades

de massa, dirigidas por governantes escolhidos com base na democracia representativa.

A democracia representativa aportou ao mundo uma inversão radical de valores, através

da qual uma minoria aristocrática perdeu o direito de decidir em nome da maioria. O princípio de

que o povo é a única fonte de legitimidade impôs-se quase que de maneira universal, tal como o

critério da eleição sobrepôs-se ao da hereditariedade. A legitimidade manifestada pelos cidadãos

suplantou a suposta legitimidade de Deus.

A democracia representativa sustenta-se sobre dois pilares: o sufrágio universal e a

administração pública profissional. O sufrágio universal é constituído por um sistema de escolha

subjetiva de representantes, guiada pelo interesse ou pela opinião dos membros de um

determinado grupo social. A administração profissional, por sua vez, pode ser apreendida pela

imagem de uma corrente de transmissão, por intermédio da qual o poder político chega até à

sociedade. Trata-se de um corpo administrativo que atua com certa margem de autonomia,

fundada no princípio da competência, dado que, em sua origem, o concurso era como a eleição

científica dos mais preparados para o desempenho das funções técnicas do Estado.

Contudo, há uma contradição insuperável no conceito de democracia representativa,

pois sendo o povo todo poderoso como princípio político, ele é sociologicamente frágil, pois, na

democracia representativa o povo reina, mas não governa. A atividade de governar é delegada a

um grupo de representantes, uma parte dos quais, eleitos. O cidadão é, sobretudo, um

expectador. Sua capacidade de intervenção real é limitada e a responsabilização só é possível em

termos retrospectivos e pode ser imposta somente aos representantes eleitos, quando estes se

submetem a um novo processo eleitoral.

O desencantamento com a democracia representativa começou a se multiplicar já em

fins do século XIX, época em que o sufrágio universal (masculino) iniciou o seu processo de

generalização nos países da Europa. À medida que a legitimidade eleitoral se enfraquecia, o

papel da burocracia científica passou a exercer uma influência cada vez mais decisiva. A partir

das duas últimas décadas do século XX, na Europa, e mais recentemente, no Brasil, as coisas

passaram a se degradar de maneira mais acelerada, com a redução da credibilidade e do interesse

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nos processos eleitorais. Evidentemente, que esse fenômeno é muito menos sentido no Brasil,

onde o voto é ainda mantido como obrigação. Na França, os níveis de abstenção batem seguidos

recordes, aproximando já de uma maioria de não votantes. Ainda que a eleição continue

legitimada do ponto de vista jurídico, sob o ponto de vista sociológico, hoje ela significa muito

menos. As minorias não se veem mais como a pequena parte que deve se curvar à maioria. A

sociedade tornou-se pluralista, ou seja, formada por múltiplas minorias, cujas histórias são

singulares e os interesses bem específicos, não sendo mais possível diluí-los na sociedade

massificada, fundada no interesse geral.

Também a burocracia perdeu grande parte de sua legitimidade, convertendo a palavra

em ‘xingamento’. A ascensão do neoliberalismo contribuiu para essa erosão da credibilidade no

poder administrativo, por meio de um ataque sistemático às entidades estatais, erigindo o

mercado como “novo sagrado” da realização do interesse coletivo, desvalorizando a figura do

funcionário público como agente de execução do interesse geral. A preferência de uma grande

parte das elites mais qualificadas pelo trabalho nas empresas privadas, em função dos crescentes

desníveis na remuneração oferecida pelos dois setores, aliado ao advento de uma sociedade com

níveis gerais mais elevados de educação formal, derrubou o mito do concurso como uma eleição

científica dos mais preparados. Assim, a legitimidade do funcionário técnico burocrático não

teve destino muito diferente daquele dado ao elemento da esfera eleitoral-representativa.

Embora a eleição continue sendo um momento importante para a democracia, ela há

deixou de ser a festa da cidadania – até do ponto de vista alegórico - e a atividade parlamentar

passou a ser vista como um espaço de teatralização, de mise en scène, um jogo de cartas

marcadas no qual os interesses de particulares e de grupos privilegiados se sobrepõem ao

interesse geral. A crise de credibilidade, entretanto, não se limitou à criação de um vazio. Na

verdade, ela conduziu ao aparecimento de muitas manifestações no seio da sociedade pelo

estabelecimento de dispositivos inéditos de legitimação e de realização do interesse geral. Novas

maneiras de governar foram sendo delineadas, forjadas no seio da sociedade, fortemente

impregnadas pelos valores da solidariedade e da participação.

Em 1982, em meio ao processo de restabelecimento das liberdades democráticas no

Brasil, André Franco Montoro, foi o candidato de um bloco de oposição liderado pelo PMDB20

ao Governo do Estado de São Paulo, contra o PDS21

, partido que representava as forças civis

conservadoras aliadas ao regime militar. Montoro fez dos temas “participação e

‘descentralização” o lema central de sua campanha e o fio condutor do seu governo. Com o

20

Partido do Movimento Democrático Brasileiro. 21

Partido Democrático Social.

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termo participação, Montoro defendia um governo que se aproximasse da sociedade e, também,

uma administração mais aberta e transparente. Sob o prisma da descentralização, Montoro

pregava a desconcentração do Governo, transferindo recursos e responsabilidades para os

municípios, segundo ele entendia, mais próximo do cidadão. Sua frase preferida, pronunciada

pela primeira vez no edifício sede da FPFL22

/CEPAM23

e hoje inscrita em uma placa à entrada

daquela organização, era: “ninguém mora na União, ninguém mora no Estado. Todos moram no

município”. Ainda que muitos entendam que as coisas não se passaram exatamente como ele

desejava, Montoro inaugurou uma nova maneira de governar, que, até então, em nosso país, só

era conhecida nos livros. O traço central de seu governo foi, inegavelmente, a participação e a

descentralização, ao lado da tolerância e do diálogo com os movimentos sociais e o engajamento

pessoal nos grandes temas políticos da época, a começar pela luta pelo restabelecimento de

eleições livres e diretas para a Presidência da República e a convocação de uma Assembleia

Nacional Constituinte.

O aspecto da participação manifestava-se em um estilo de governo que procurou se

aproximar da sociedade, criando espaços para o envolvimento comunitário e engajando as

agências governamentais na busca de soluções para problemas simples fora da burocracia. Fez-se

a reestruturação administrativa do governo, com a criação de 42 escritórios regionais

coordenados pela Secretaria do Interior, encarregados de promover a integração local das ações

dos diversos órgãos governamentais. No CEPAM, órgão então vinculado à Secretaria do Interior,

criou-se uma área dedicada à capacitação de agentes comunitários nas prefeituras. Várias ações

foram criadas ou apoiadas pelo Governo do Estado. Entre elas, tornar-se-ia muito conhecida a

Horta Comunitária, iniciativa que engajava as pessoas em um projeto coletivo municipal,

estimulando o desenvolvimento da solidariedade e ao mesmo tempo oferecendo alimentos

frescos e saudáveis para serem usados nas do município – escolas estaduais ou municipais.

Do mesmo modo, no campo da descentralização, viu-se um grande número de

programas até então vinculados ao Governo do Estado ser transferido aos Municípios, dentre os

quais, o programa de merenda escolar, municipalizado mediante a assinatura de convênios com

as administrações locais. Junto com os programas, transferia-se aos municípios, também, os

recursos orçamentários destinados ao seu custeio. Outras iniciativas visavam o envolvimento e a

participação dos idosos, da juventude, das crianças pobres, suas famílias e as respectivas escolas

onde estudavam. Não tendo essa pesquisa o propósito de descrevê-los exaustivamente,

22

Fundação Prefeito Faria Lima, cuja sede fica na Avenida Professor Lineu Prestes, Cidade Universitária, em frente

ao Instituto de Química. 23

Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal. Entidade mantida pela FPFL.

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menciona-se aqui o Programa Interior na Praia e o seu inverso, o Redescobrindo o Interior. O

primeiro, durante as férias escolares de julho, levava crianças matriculadas em escolas públicas

estaduais da capital, Grande São Paulo e litoral para conhecerem o interior, sua gente e sua

cultura. O inverso ocorria nas férias escolares de janeiro, quando as crianças das escolas públicas

estaduais do interior, capital e Grande São Paulo desciam a serra para conhecer a praia. O

passeio para cada grupo de crianças tinha a duração de duas semanas.

No âmbito municipal uma miríade de conselhos comunitários formou-se para deliberar

sobre a aplicação dos recursos transferidos às prefeituras para execução das novas

responsabilidades que lhes eram atribuídas, a maioria deles constituíam exigências impostas nos

próprios contratos de parcerias. Os conselhos tinham, em geral, participação tripartite, integrados

por representantes da comunidade, do poder local e do Governo do Estado. Sua missão precípua

era assegurar a boa aplicação dos recursos, fiscalizando a execução e analisando os resultados,

com o propósito de evitar que eles fossem capturados por grupos interesses privados, presentes

no nível local não menos que nos níveis estadual e federal.

Em nível regional, animados pela filosofia praticada e pregados como uma espécie de

princípio sagrado pelo Governador, formaram-se consórcios intermunicipais em diversas áreas,

sobretudo, saúde, educação e desenvolvimento regional, com o intuito de discutir soluções

criativas e somar esforços para solucionar problemas que extrapolavam as fronteiras de um único

município.

A Fundação Prefeito Faria Lima tornou-se um órgão central no apoio aos municípios,

transferindo-lhes tecnologias de gestão e ajudando-os, gratuitamente, a reestruturar-se

administrativamente, visando torná-los mais capazes de lidar com as demandas sociais, absorver

e mesmo catalisar as manifestações de solidariedade presentes nas comunidades.

Seguindo a nova maneira de administrar, experiências inovadoras começaram a surgir

em toda parte. Não sendo possível descrevê-las, faz sentido mencionar as iniciativas na área da

saúde, levadas a efeito em Penápolis, a formação de cooperativas de agricultores em Angatuba,

de artesanato no litoral norte, os projetos de urbanização e asfalto, guias e sarjetas comunitários

na cidade de São Paulo, supervisionados de perto por Mário Covas, então prefeito nomeado pelo

Governador Montoro24

, além das ações de elaboração participativa de orçamentos conduzidas

em São Paulo (Luiza Erundina), Santo André (Celso Daniel) e Porto Alegre (Olívio Dutra) para

mencionar não mais que algumas.

24

As capitais e cidades consideradas pelo regime militar como áreas de segurança nacional, como era o caso de

Santos, tinham prefeitos nomeados pelo Governador.

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Montoro era, no Brasil, o principal expoente de uma tendência que se desenhava no

plano internacional, buscando uma forma de romper os limites da democracia representativa, por

meio de um governo capaz de atuar na catalisação das iniciativas da sociedade. Na América do

Norte, o City Manager de Visalia, na California, Ted Gaebler, levava a cabo um governo com

características também inovadoras. Sua experiência foi descrita no livro “Reinventing

Government: how the entrepreneurial spirit is transforming the public sector”, escrito em

parceria com o Professor David Osborne. A obra se tornaria um best-seller. Foi traduzido para o

Brasil em 1995, com o título “Reinventado o Governo: como o espírito empreendedor está

transformando o setor público”. O título expressava o otimismo inaugurado em São Paulo por

Franco Montoro treze anos antes. Infelizmente, a essa altura, no Brasil já se vivia uma grave

crise no setor público. São Paulo estava saindo de uma sequência de dois governos (Orestes

Quércia e Luiz Antônio Fleury Filho) que mergulharam o estado na corrupção, transformando o

legado de Montoro em uma canhestra política de cunho ‘municipalista desprovida de conteúdo’,

baseada no clientelismo e na troca de favores políticos que mergulhou o Estado em uma das mais

graves crises financeiras e morais de sua história.

À época em que o livro de Gaebler e Osborne foi publicado no Brasil, marcava-se o

momento culminante da ascensão de uma ideologia neoliberal em escala mundial, que pregava

as virtudes do mercado em detrimento do setor público. Essa visão, aliada à crise financeira do

Estado, deslocava o centro do debate sobre o setor público para a questão de determinar o seu

perfil e o seu tamanho ideal. As longas discussões chegavam quase que invariavelmente às

mesmas conclusões: embora necessário, o Estado era um estorvo para o desenvolvimento da

economia e, por isso, a única maneira de minimizar os danos que ele causava era reduzi-lo ao

menor tamanho possível. Essa tendência fora desencadeada em fins da década de 1970 pela

então Primeira Ministra Inglesa, Margareth Thatcher (falecida em 2013), adotada nos Estados

Unidos por Ronald Reagan (falecido em 2004) na década de 1980 e disseminada em quase todo

o mundo – Brasil, inclusive – pelas agências multilaterais – Banco Mundial, principalmente – no

curso da década de 1990.

Gaebler e Osborne tiveram o mérito de colocarem a questão do Estado sob um enfoque

diferente. Defensores de uma forma participativa de administração, para eles o problema não

estava no tamanho do governo, mas sim na maneira errada de governar. Eles faziam veemente

defesa de um tipo de governo empreendedor, que estimulasse a competição entre as próprias

agências públicas e que compartilhasse com a população a tarefa de governar, inclusive a de

fiscalização das atividades dos funcionários públicos.

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Mesmo o Banco Mundial em seu relatório de 1997, intitulado o ‘Estado num mundo em

transformação’, procurava abordar a participação como um fator qualificador e legitimador dos

governos representativos. De acordo com o relatório, o número de governos eleitos

democraticamente havia aumentado acentuadamente nas últimas décadas, passando de 39 países

em 1974 para 117 naquele ano. Apenas 1 em cada país no mundo era democrático em 1974,

agora eram quase dois em cada três. Corroborando a tese propugnada por Gaebler e Osborne, o

relatório afirmava que a participação da população era um fator estratégico para melhorar o

desempenho dos projetos governamentais. Utilizando dados de 121 diferentes projetos em 49

países, testou-se a relação entre a participação e o desempenho do projeto. A participação foi

medida como uma série contínua, a começar pela simples partilha de informações, passando por

consultas detalhadas com os beneficiários e pelo processo decisório compartilhado, terminando

no controle integral do processo decisório. Concluiu-se que havia uma forte correlação entre

altos níveis de participação dos beneficiários, especialmente no processo decisório e o êxito do

projeto.

Diversos dispositivos de participação foram institucionalizados no Brasil a partir da

elaboração da Constituição de 1988, objeto de amplo estudo de descrição e análise empreendido

pelo pesquisador Carlos Jorge Martins Simões, em tese de doutorado defendida na PUC/SP em

2012, sob um viés institucionalista25

. Entretanto, muitas das iniciativas ali inventariadas tiveram

a sua eficácia fragilizada, em face da ascensão ao poder de governos populistas, da crise

financeira dos estados, da cooptação de movimentos sociais instrumentalizando suas lideranças

no interior das máquinas burocráticas, da captura de entidades sociais por interesses políticos-

eleitorais clientelísticos, etc. Também contribuíram as mudanças observadas no comportamento

da sociedade devido ao fortalecimento de uma ética de cunho egoísta, que focaliza o sucesso do

indivíduo empreendedor de si mesmo em detrimento da solidariedade e das lutas coletivas. Não

se pode colocar de lado, igualmente, as graves manipulações de instrumentos de participação,

entre os quais constituem exemplos singulares as audiências públicas que deveriam subsidiar os

processos participativos de elaboração dos orçamentos governamentais. Em muitos casos –

senão na maioria deles – essas audiências são meras formalidades legais. Os vícios são variados,

indo da preparação à estruturação metodológica das reuniões, a ausência de divulgação da

agenda em meios apropriados – o que denota pouco interesse na participação verdadeira da

população –, exposições unidirecionais, mais centralizadas na apresentação das intenções do

governo do que em sua discussão, horários inadequados e, às vezes, locais de difícil acesso.

25

Uma descrição e análise exaustiva desses dispositivos podem ser encontradas na tese de doutorado de Carlos

Jorge Martins Simões, defendida na PUC / SP em 2012.

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Dados os vícios apontados, as audiências públicas têm sido dominadas por assessores e políticos

profissionais – locais e regionais -, grupos de interesses incrustados na própria máquina

governamental, além de alguns representantes de Organizações Governamentais - grande parte

delas controladas por políticos, sem atuação relevante na sociedade e financiadas exclusivamente

com recursos públicos. Para piorar esse quadro já caótico, quando as supostas ‘contribuições’ da

sociedade chegam aos órgãos centrais responsáveis pela consolidação dos orçamentos globais,

estes já estão encerrados. As sugestões recolhidas no curso das audiências públicas servem para

exatamente nada.

A essas questões levantadas, pode-se adicionar o mal estar advindo de uma sociedade

conectada em rede, melhor informada e muito mais consciente sobre os níveis de corrupção no

domínio governamental. Desiludida com os órgãos de controle burocrático e com o parlamento,

percebidos como aristocracias de fato, uma parcela crescente da sociedade mostra-se cada vez

mais disposta a exercer uma atividade de vigilância, seja diretamente ou por meio de entidades

constituídas como formas independentes de autoridade. Trata-se de uma atividade de ‘contra-

poder’ com o qual se procura corrigir - ou ao menos remediar - os vícios da democracia

representativa e as disfunções da democracia participativa, transformando - para usar uma

expressão de Pierre Rosanvallon (2006) – a desconfiança em virtude democrática.

Uma sociedade surveillante está em permanente estado de alerta, cuidando, escutando,

observando. E está em toda parte, lembrando o panóptico de Foucault, embora aplicado na

direção oposta. Em seu livro ‘Surveiller et punir’, naissance de la prison, Michel Foucault (1975)

descreveu um conjunto de dispositivos de vigilância, por meio dos quais o Estado buscava

penetrar no domínio da vida privada das pessoas, objetivando tornar mais efetivo o seu poder de

controle. O desenvolvimento dos equipamentos de informática, as câmeras de vigilância

instaladas em portarias de edifícios, escolas, estabelecimentos comerciais, cruzamentos de vias

públicas e mesmo aquelas embutidas em equipamentos eletrônicos portáteis, estimulam a

aceitação do triunfo de uma sociedade orwelliana. Entretanto, a sociedade de surveillance, com a

imposição de múltiplos dispositivos de controle aos órgãos públicos, inclusive a divulgação

individualizada dos salários dos funcionários, encoraja a formação de uma imagem de um

panóptico às avessas.

Além do estado de alerta do cidadão vigilante, a surveillance tem outra componente,

aquela da denúncia. Se, de um lado, a dimensão ‘vigilância’ da sociedade de surveillance faz

lembrar Foucault, a da denúncia traz à mente a imagem de Marat e seu ‘Ami du peuple’, fazendo

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da suspeita uma política sistemática, tratando a delação como imperativo cívico, contribuindo

para a instauração da era da do terror na França após o triunfo da Revolução de 1789.

A surveillance implantou-se, também, sob a forma de avaliação e de classificação

(notation) – como as avaliações que as agências de rating fazem das instituições financeiras,

classificando-as de acordo com o risco oferecido. Quando suas ações são dirigidas aos governos,

essas entidades se assemelham a tribunais independentes. Não sendo possível nesta pesquisa

descrever a grande quantidade de entidades já existentes com essas características, a título de

exemplificação, menciona-se a ONG Contas Abertas, a Transparência Brasil e a Transparência

Internacional. A ONG Contas Abertas, por exemplo, é formada por voluntários que são experts

em diversas áreas de gestão, como administração, contabilidade, economia e tecnologia de

informação e comunicação. A entidade coleta dados sistematicamente dos governos em todos os

níveis com base na Lei de Acesso à Informação26

, analisa-os e elabora rankings dos níveis de

transparência ativa e passiva dos Governos, publicando-os regularmente. No plano nacional e

internacional multiplicam-se entidades dessa natureza, cuja legitimidade repousa, sobretudo, na

ideia de imparcialidade e não na de representatividade.

O poder de avaliação, sobretudo em uma sociedade integrada em rede, multiplicou a

potência do cidadão de se informar, avaliar e denunciar. Ele investiga, ele julga, ele sentencia,

ele denuncia no mínimo em sua mídia pessoal. O poder do cidadão é hoje direto, sem a

necessidade do uso de representantes, colocando-o, de certo modo, ao menos em perspectiva,

como uma espécie de quarto poder. Assim, os valores legitimadores das práticas democráticas

encontram-se em meio a um inacabado processo de transformação e aprofundamento. A

democracia representativa, baseada no princípio majoritário, perdeu a sua centralidade,

credibilidade e legitimidade. Algo semelhante aconteceu, também, com as entidades sociais

tradicionais, como os sindicados, os partidos políticos e as associações comunitárias.

Provavelmente, a sociedade atual pode ser mais bem compreendida quando observada sob a

ótica de uma constelação de minorias, cujas reivindicações não se confundem com os interesses

gerais, genéricos e abstratos das maiorias que se formam no curso dos processos eleitorais. Sob a

sombra abstrata da maioria, escolhem-se os governantes, contra os quais, muito brevemente, sob

a condição de cidadão-indivíduo concreto integrante de minorias igualmente concretas, entrarão

em confronto. Nesse contexto, ainda emergente e, por isso mesmo, indefinido, a importância

atribuída à legitimidade assume a centralidade. E tal como a confiança entre os indivíduos, essa

legitimidade vai tornando-se uma instituição invisível, mas que é a condição determinante da

qualidade das relações.

26

Lei Federal nº. 12.527, de 18 de novembro de 2011.

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As três formas de surveillance exploradas ocorrem, sobretudo, por meio de ações da

sociedade. Até aqui, nada se falou de instituições públicas de surveillance. Inicialmente, ela se

desenvolveu-se como atividades da imprensa, desfrutando de razoáveis níveis de liberdade desde

o século XIX, expandindo-se de maneira significativa ao longo do século XX, com a eliminação

quase total da censura prévia. A partir da última década do século XX esse universo de

surveillance ampliou-se consideravelmente, inicialmente, com a emergência das ONGs

(Organizações Não Governamentais) e, posteriormente, de grupos sociais conectados em rede,

como por exemplo, os “Curativos Urbanos”27

. Na mesma linha de atuação dos “Curativos

Urbanos” surgiram inúmeras entidades, entre muitas podem-se mencionar o “Queremos Saber” e

o “Para onde foi o meu dinheiro”. São entidades cujo objetivo é identificar os problemas e

pressionar o poder público a agir, sem pleitear a participação na solução e sem a intenção de

representar a população. Corresponde a um tipo de atuação na qual o objeto da política consiste

em abordar um problema ou uma situação, muito mais do que organizar algum grupo estável ou

dirigir estruturas administrativas. São grupos temporários, criados em bases flexíveis, que se

encontram esporadicamente, visando algum interesse comum temporário, como organizar um

evento, evitar o corte de uma árvore, derrubar o aumento da tarifa de ônibus e metrô, realizar um

show de música urbana no estacionamento de um centro comercial ou qualquer outra ação,

sempre na forma de um projeto ad hoc, em que o ‘ficar’ é a regra e não o estabelecimento de

relações duradouras e a assunção de compromissos permanentes. De acordo com Rosanvallon

(2006, p 71)

Sua característica comum é a busca pela tomada do poder, mas à influenciá-lo: eles

concebem que a vida democrática está estruturada pela tensão entre a esfera

eleitoral-representativa e o universo contra-democrático, e não mais pela simples

competição livre para o exercício do poder governamental (tradução nossa)28

.

Na sociedade em rede a força da opinião pública é um fato de muita relevância. Por

isso, as mídias sempre tiveram muito poder, em decorrência da sua capacidade de influenciar. O

fato novo – que escapa ao objetivo central dessa pesquisa e, por isso, aqui não se faz mais do que

mencioná-lo – é que o cidadão, conectado em rede, tornou-se ele próprio um tipo de mídia,

constituindo-se, ao mesmo tempo, a notícia e o veículo de sua difusão. É nesse sentido que a

27

Segundo o grupo informa em sua página no Facebook, ele é “Uma ação que usa a cor e o bom humor para

despertar a atenção sobre os machucados das calçadas que podem machucar muita gente por aí”. 28

Leur caractéristique comune est enfin de ne pas chercher à prendre le pouvoir, mais à l’influencier: ils conçoivent

de fait que la vie de la démocratie est structurée par la tension entre la sphére électorale-répresentative et l’univers

contre-démocratique, et non plus par la simple compétition libre pour l’exercice du pouvoir gouvernemental.

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internet pode ser considerada, também, uma forma de fazer política, sobretudo, política de

surveillance.

As mídias sociais já demonstraram em todo mundo a sua força como dispositivo de

surveillance. Elas vêm sendo utilizadas por movimentos difusos como o principal meio de

mobilização, permitindo ao cidadão se organizar e se manifestar de forma independente, sem a

interferência dos governos, dos partidos políticos e das outras formas tradicionais de

organização, como os sindicatos. Os episódios de julho de 2013, no Brasil, quando uma massa de

jovens foi às ruas para protestar em relação a temas variados, desnudaram o despreparo dos

governos para lidar com o fenômeno. Além da incapacidade para o diálogo, ouviram-se

declarações desastradas de expoentes de partidos situados em quase todos os espectros

ideológicos. Nem mesmo o aparelho de repressão, habituado a tratar os problemas sociais como

caso de polícia, soube abordar a questão, oscilando entre a mais brutal violência a uma inédita

tolerância. Em sua primeira declaração, a Presidente Dilma Rousseff se referiu aos

manifestantes, chamando-os de vândalos. O mesmo fizeram vários governadores e prefeitos,

incluindo-se o Governador de São Paulo e o Prefeito da capital. Poucos dias depois, os vândalos

foram denominados como legítimos representantes da sociedade. No âmbito dos governos

Federal, Estadual e Municipal várias medidas foram tomadas às pressas, plebiscitos foram

anunciados – e jamais realizados -, Deputados e Senadores prometeram reformas.

Em dezembro de 2013 e janeiro de 2014, novos eventos voltaram a ocorrer. Para

denunciar a desigualdade e protestar contra a falta de lazer e cultura na periferia da cidade de São

Paulo, adolescentes organizaram encontros em shoppings centers de classe média e alta, cuja

participação reunia entre mil e cinco mil pessoas.

A mídia tratou o evento com o tom de sempre, chamando os garotos de vândalos; os

comerciantes reagiram como de costume, usando seguranças, chamando a polícia e

instrumentalizando a justiça para impedir os encontros. O governo também compareceu com a

sua ação tradicional em relação aos movimentos sociais, enviando a polícia para reprimir os

adolescentes, em vez de ouvir e dialogar. As cenas eram, além de bizarras, desrespeitosas e

mesmo ilegais. Funcionários públicos - policiais militares -, dentro de suntuosos imóveis

comerciais privados, postados à entrada da área de acesso às lojas, abordando os adolescentes

vindos da periferia, exigindo documentos, acompanhantes e indagando-os sobre o que

pretendiam fazer ali. Dias depois, o Secretário de Segurança Pública anunciou que a polícia não

mais reprimiria os ‘rolezinhos’, pois se tratava de um movimento social. As manifestações são

convocadas pelas redes sociais, sem expressar propósito político ou criminoso. Sua intenção

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parece ser a de irritar os clientes e os comerciantes dos shoppings para denunciar o fosso que

separa a periferia dos bairros nobres de São Paulo. Contudo, participantes do movimento ouvidos

pela Revista Veja, manifestaram objetivos ainda mais modestos. De acordo com um dos

adolescentes citados na matéria, morador no Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, o

“Rolezinho é para ver os parça (parceiros), curtir, comer lanche e beijar na boca”29

.

Se não tiveram explicito conteúdo reivindicatório, os eventos mostraram mais uma vez

o poder das redes sociais para impor mudanças na forma de fazer política e de governar. Na

sociedade em rede, as mobilizações se formam com uma lógica de expansão diferente, não linear

e sem a intermediação de líderes ou representantes. Os processos são diretos e se difundem de

maneira anômala, sem um mecanismo de controle centralizado. Provavelmente o cidadão está

diariamente acompanhando o que os Governos estão fazendo e dizendo o que pensa nas mídias

sociais. Mas os governos ainda não estão dando a atenção adequada a esse tipo de participação.

Assim como ocorreu com o e-commerce, que transformou o comercio global, permitindo às

pessoas comprarem produtos em qualquer país, sem a intermediação dos comerciantes locais, a

internet mudará a política e a forma de governar, criando uma série de novas possibilidades,

interdependências e, também, riscos ainda desconhecidos. O Cientista Político Robert Keohane

(2010, p 120) chama a atenção para esse fato ao dizer que:

A globalização no mundo contemporâneo significa que as relações transnacionais são

extensas e intensas. Estados e outras organizações exercem efeitos em grandes

distâncias; as vidas das pessoas podem ser profundamente alteradas, ou mesmo

destruídas, como resultado de decisões tomadas apenas alguns dias ou momentos antes,

a milhares de quilômetros de distância. Em outras palavras, a interdependência é

elevada (tradução nossa) 30

.

Keohane alerta para uma enorme contradição na sociedade em rede. A sociedade se

tornou global, mas a regulamentação governamental continua delimitada ao espaço nacional.

Diversas entidades de surveillance possuem uma dimensão global.

Entidades de surveillance foram criadas, também, no âmbito da própria administração

pública, sob a forma de autoridades autônomas ou independentes, das quais são exemplos as

Ouvidorias Públicas do Estado de São Paulo, tanto quanto as agências reguladoras. Essas

29

RIZZO, Alana; ARAGÃO, Alexandre; MEGALE, Bela. Rolezinhos: “Eu não quero ir no seu shopping”. Revista

Veja. Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/rolezinho-eu-nao-quero-ir-no-seu-shopping. Visita em

18/01/2014. 30

Globalization in the contemporary world means that transnational relationships are both extensive and intensive.

States and other organizations exert effects over great distances; people’s lives can be fundamentally changed, or

ended, as a result of decisions made only days or moments earlier, thousands of miles away. In other words,

interdependence is high.

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entidades são dotadas de um caráter híbrido, pois, embora sejam ligadas ao Poder Executivo,

desempenham funções que podem, de certo modo, revestirem-se de feições normativas, típicas

do Poder Legislativo, e judiciárias, inseridas, portanto no quadro de atribuições do Poder

Judiciário. Às vezes elas são instituídas pelo parlamento, preocupado com a excessiva

“partidarização” do executivo; às vezes são instituídas pelo próprio Poder Executivo, na tentativa

de se desincumbir de uma determinada demanda ou tarefa, para qual ele se vê pressionado para

realizar, mas não se percebe capaz de empreendê-la. Poderia, com certo cuidado, inserir, ainda,

no campo das entidades autônomas de surveillance, o ativismo encontrado em certas áreas do

Ministério Público e do Poder Judiciário, incluindo-se aí o engajamento militante – para o bem

ou para o mal - de alguns Promotores e Ministros do Supremo Tribunal Federal, deixando a sua

tradicional passividade, tornando-se proativo na produção de regulamentos e atuando fortemente

no sentido de ‘enquadrar’ a produção legislativa. Essas mudanças não surgiram como gerações

espontâneas, produzindo a si mesmas. Elas devem ser percebidas no conjunto de exigências

emergentes em termos de um novo padrão de gestão pública. Não se trata aqui, evidentemente,

de fazer qualquer juízo de valor em relação ao futuro dessas instituições. Elas podem tanto

contribuir para um aprofundamento inédito da democracia e da justiça social, como desaguar em

um dispositivo de simples reforço a um neoliberalismo frio, desprovido de conteúdo social.

Todas essas entidades contribuem para o estabelecimento de formas de controle externo. As

Ouvidorias, por exemplo, embora atuando indiretamente, podem produzir resultados

equivalentes aos esperados de sistemas de democracia direta. As ações dos órgãos

governamentais serão cada vez mais percebidas como legítimas se – e tão somente se -, de algum

modo, forem submetidas, de forma transparente e direta, ao juízo do cidadão surveillant.

No Brasil, desde a década de 1990, a urna eletrônica foi implantada de maneira

generalizada. Ela significou um generoso avanço, automatizando o processo de recepção e

contagem dos votos e, talvez, eliminado as tentativas de fraudes locais, pois o sistema utilizado é

padronizado em todo o país. Mas a urna eletrônica nada significou em termos de

aprofundamento das práticas democráticas. Ela sequer tem sido usada para consultas públicas. À

época de sua implantação ouviram-se argumentos entusiasmados sobre as perspectivas de que a

ela poderia se tornar o primeiro passo de uma nova sociedade democrática. Graças à internet,

uma grande comunidade virtual poderia ser rapidamente reunida, como se fosse um pequeno

grupo, realizando o ideal da participação de todos na tomada de decisões. Um vocabulário

inédito se formou em torno das possibilidades criadas pelo advento de uma sociedade conectada:

“democracia eletrônica”, “e-governo”, “cyberdemocracia”, “república.com” são algumas das

expressões mais comumente empregadas. Contudo não foi bem isso o que se seguiu. A urna

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eletrônica não significou mais do que a informatização do procedimento manual. Sequer a ideia

do ‘televoto’, por meio do qual o cidadão se livraria da necessidade de comparecer fisicamente a

uma seção eleitoral, foi viabilizada. A urna eletrônica não significa hoje nada mais do que um

instrumento que facilita a continuidade da democracia representativa, episódica e estritamente

eleitoral; um instrumento que não conduz a sociedade em direção ao aprofundamento

democrático. Consiste, no limite, da maneira em que está instituída, em um obstáculo a mais à

democracia direta e participativa. A adoção de um modelo de urna universal, para mencionar

apenas um desses aspectos, impede a sua adequação ao nível das comunidades, inserindo no

grande esforço de mobilização que se faz nas ocasiões de votações, a consulta à população sobre

temas de interesse locais e gerais.

Reproduzem-se no mundo virtual os equívocos clássicos, fundadores da democracia

representativa. A redução do custo do voto para o poder público permitiria a realização de

consultas à população tanto mais frequentes quanto simples. Assim, a impotência política da

internet no mundo da democracia representativa e participativa a converteu em potência na

democracia de surveillance, turbinando os dispositivos de vigilância, informação, avaliação,

classificação e denúncia.

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CAPÍTULO III

O OMBUDSMAN E AS OUVIDORIAS PÚBLICAS DO ESTADO DE SÃO PAULO

Este capítulo é dedicado à compreensão do Ombudsman escandinavo e das Ouvidorias

do Governo do Estado de São Paulo. A instituição sueca tem sido regularmente apontada como

inspiradora das entidades paulistas. A informações sobre o Ombudsman provêm de fontes de

pesquisa teórica ao passo que as Ouvidorias são explicadas já com dados colhidos na pesquisa de

campo.

O Ombudsman sueco foi instituído em 1809, quase três séculos após a criação de uma

Ouvidoria Geral do Brasil. Contudo, a figura desse Ouvidor Geral não se confunde com a do

Ombudsman escandinavo nem, tampouco, com as Ouvidorias que vêm sendo implantadas no

Brasil – e, particularmente, no Estado de São Paulo – após o processo de redemocratização do

país. O Ouvidor Geral representava a justiça real portuguesa, atuando como uma espécie de

corregedor, dotado de poderes para julgar e punir os infratores dos interesses da Coroa

Portuguesa no Brasil. Já o Ombudsman escandinavo é identificado com a proteção aos direitos

individuais, objeto também da atuação das Ouvidorias Públicas paulistas. Entretanto, há muitas

diferenças entre as entidades paulistas e a instituição sueca. O propósito do capítulo é o de

conhecer a instituição Sueca para, depois, com a pesquisa de campo, aproximar as duas entidades

com o objetivo de identificar os principais traços compartilhados e demarcar as diferenças

relevantes.

3.1 O Ombudsman sueco, seu contexto e desenvolvimento.

O Ombudsman como instituição surgiu na Suécia durante a revolução de 1809. Sua

origem e formato explicam-se, em parte, pelas peculiaridades da história administrativa desse

país e, em parte, pela situação vivida pelo Parlamento sueco à época. A subordinação dos órgãos

superiores de administração não era assegurada pelos meios clássicos e, embora existisse

hierarquia no interior das organizações, os órgãos superiores estavam livres de subordinação e de

responsabilidade perante aos Ministros.

Nessa mesma época, a Suécia não contava com um Parlamento de funcionamento

contínuo. Ele reunia-se esporadicamente, em seções quinquenais, que depois se tornaram

trienais. Nessas condições, o papel desempenhado por um Ombudsman tornava-se essencial

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como uma espécie de braço auxiliar do Parlamento e, em certa medida, um paliativo à

desinformação dos parlamentares no que dizia respeito ao funcionamento do governo.

Ao menos em seu início, a atuação do Ombudsman sueco estava ligada ao controle

constitucional. Durante muito tempo, ela não guardou qualquer relação com as atividades

relacionadas à administração. Somente em tempos mais recentes é que o Ombudsman passou a

se ocupar, também - e, mesmo preferencialmente -, com as ações relacionadas à administração.

Inicialmente, ele era nomeado pelo Executivo, mas progressivamente o Parlamento foi lhe

impondo controles, até obter o direito de indicá-lo.

Na Suécia do Ancien Régime – como na França e no Brasil dominado pela Coroa

Portuguesa –, justiça e administração não estavam separadas. O Rei era, antes de tudo, o

encarregado de fazer justiça (justicier), sendo sua função essencial manter a paz no reino,

assegurando a cada um a aplicação exata das regras e dos critérios de justiça. Administração e

justiça constituíam o aspecto central da ideia de soberania, abarcando, de certa forma, atribuições

encontradas nos dias atuais no âmbito do Poder Judiciário, do Poder Legislativo e do Poder

Executivo. Um agente real era, em um só tempo, juiz e administrador.

A primeira instituição, da qual parece ter evoluído o Ombudsman atual, é o grande

Sénéchal. A função de uma Sénéchaussée, desde o Século XVI na Suécia, era supervisionar as

atividades da justiça no interior do Reino, evidentemente, sob a autoridade suprema do Rei. Esse

Grand Sénéchal recebia as informações e levava ao Rei as falhas e negligências que ele

constatava nas práticas dos juízes inferiores e, eventualmente, propunha reformas. Era também

ele quem chefiava o órgão, encarregava-se de preparar as matérias e quem deveriam levá-las à

apreciação do Rei. Contudo, o Sénéchal não tinha jurisdição além das atividades da justiça. O

Rei não tardaria a sentir a necessidade de um controle do mesmo gênero sobre a administração.

Essa missão foi confiada, em 1713, ao Kansliordning31

, ao qual, segundo Legrand (1970), para a

maioria dos autores remonta a criação do Justitiekansler32

(JK).

Fora criado, de fato, um Konungens Konungens Högsta Ombudsman33

, ao qual uma

instrução atribuía a função “de exercer uma supervisão geral sobre a obediência às ordens e

monitorar se cada um cumpria com as suas obrigações no exercício de sua função”

31

Gabinete ou escritório de ordem. 32

Função criada no antigo Reino da Suécia, em 1719, cujo ocupante se encarregava de supervisionar as atividades

dos juízes e dos funcionários públicos (Legrand, 1970, p. 21-26). O JK aparece, também, como um defensor do

Estado, pois, era investido de autoridade para investigar delitos de imprensa e de particulares (Legrand, 1970, p. 25,

nota 21). 33

Chanceler de Justiça.

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(LEGRAND, 1970, p. 23) (tradução nossa)34

. Ele era habilitado para emitir ordens em nome do

Rei e de acusar os funcionários que faltavam com suas obrigações. Em 1719, o Högsta

Ombudsman foi transformado em Justitieombudsman35

.

Em 1718, com a morte do Rei Charles XII, uma grande mudança processou-se no reino

da Suécia, marcando o declínio da realeza. O poder passou às mãos do Parlamento, inaugurando

naquele país l’Ere de la Liberté, que influenciaria profundamente a posição do JK. Uma

transformação lógica se verificou: os Estados tornaram-se soberanos, submetendo o Rei. Desse

modo, o controle da justiça e da administração – que, como já se mencionou, era a manifestação

da soberania –, passou às mãos dos Estados que exerciam o controle do Riksdag (Parlamento).

Uma nova Constituição impôs ao JK a obrigação de apresentar ao Parlamento relatórios

detalhados do exercício de sua função. Em 1720, os Estados aprovariam uma nova denominação

para o JK, que passou a se chamar Eminente Agente de Sua Majestade Real e dos Estados do

Reino36

. O JK foi, assim, colocado em uma situação delicada: ele continuava sendo um

funcionário do Rei e, desse modo, o Parlamento não poderia lhe dar ordens. Mas, ele deveria

prestar contas à Assembleia Nacional da Suécia sobre o desempenho da sua função. Como o

poder real a essa altura estava verdadeiramente nas mãos dos Estados, rapidamente, foi a eles

que o JK escolheu obedecer. Finalmente, em 1766, o Parlamento decidiu que a nomeação do JK

caberia, doravante (désormais), ao Parlamento e não mais ao Rei. Ele seria escolhido por uma

comissão formada no seio do Riksdag, por meio de um processo eleitoral indireto. Mas este não

seria um processo sem conflitos.

O JK sueco era escolhido mediante eleição indireta. Cada Estado indicava um

representante ad hoc e estes, em assembleia, elegiam-no, podendo tanto reconduzir o JK como

escolher outra pessoa para desempenhar a função. Os conflitos envolvendo a sua nomeação

cresciam à medida que a suas atividades tornavam-se visivelmente relevantes.

Em 1739, o JK foi investido de poderes para receber reclamações de particulares,

emoldurando, em grande parte, as funções que ele desempenha até os dias atuais. A partir desse

momento, ele tornou-se um homem de confiança do povo, tanto quanto dos Estados, por meio de

seus representantes no Parlamento.

34

D’exercer un contrôle général sur l’observation des ordonnances et de surveiller si chacun, dans l’exercice de sa

fonction, remplissait ses obligations. 35

Provedor de Justiça. 36

Eminent Mandataire de Sa Majesté Royale et des États du Royaume.

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Entretanto, um funcionário com a importância adquirida pelo JK não poderia escapar à

politização. Em 1772, após um Golpe de Estado desfechado pelo Rei Gustavo III, o JK passou

novamente a ser nomeado pelo Rei.

Em 1779, uma nova regulamentação estabeleceu que “o JK só teria responsabilidades

em relação ao Rei e ele não seria obrigado a prestar contas do exercício de sua função e de sua

administração a mais ninguém” (LEGRAND, 1970, p. 26) (tradução nossa)37

.

Um segundo Golpe de Estado de Gustave III seria concretizado em 1792, aprofundando

a centralização de poder no Rei. Contudo, esse novo absolutismo real despertaria vivas

oposições, sobretudo por parte da nobreza. Ainda em 1792, Gustave III foi assassinado. Seu

sucessor Gustave IV Adolphe seria deposto. O Riksdag retomaria uma parte do poder que havia

perdido. O Parlamento instituiu, então, o Justitieombudsman des États du Royaume38

, cujas

funções em muito se assemelhavam às desempenhadas pelo antigo JK. Entretanto, agora, a

Suécia outrora fechada às experiências estrangeiras, parecia estar fortemente inspirada nos

acontecimentos que se desenvolviam em outras partes do mundo, notadamente, na Révolution

Française.

Estabelecer a origem exata do Ombudsman na Suécia, tal como ele é nos tempos atuais,

é tarefa de muita complexidade. Legrand (1970) acredita que os constituintes de 1809 queriam

recriar a antiga instituição – o Justitiekansler -, adaptando-a à situação da época. Mas ele

acredita também que os constituintes estavam influenciados por ideias que não lhes eram

próprias, inspirando-se em exemplos vindos do estrangeiro, notadamente, da França e da

Inglaterra.

A criação do Justitieombudsman foi uma estratégia do Parlamento sueco para recuperar

parte considerável do poder que havia perdido com os dois Golpes de Estado desfechados pelo

Rei Gustave III - o primeiro, chamando para si o direito exclusivo de nomear o Justitiekansler;

depois subordinando-o a ninguém mais que a ele próprio.

À época de sua criação do Justitieombudsman - em 1809 - inexistiam experiências

semelhantes em outros países – na Europa ou em outros continentes. Contudo, podem-se

procurar paralelos com instituições ou iniciativas análogas, já existentes há muito tempo e que,

em maior ou menor grau, relacionavam-se ao que o Ombudsman seria no reino da Suécia.

37

Le JK n’a de responsabilité qu’envers Sa Majesté Royale et il est tenu de ne rendre compte de l’exercice de sa

fonction et de son administration qu’à Elle seule. 38

Justitieombudsman dos estados do reino.

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Acreditava-se que o Justiciat d’Aragon e o Plebis Tribunus Romain poderiam ter

servido de inspiração à criação do Ombudsman. O Justiciat d’Aragon era, na Idade Média, um

juiz (e não um acusador) nomeado diretamente pelo Rei com a função de proteger os particulares

– a nobreza, principalmente – dos abusos cometidos pelos funcionários públicos. O Plebis

Tribunus foi criado ao final do Século V a.C. após a revolta dos plebeus contra a arbitrariedade

dos tribunais patrícios. Seus magistrados – inicialmente dois - atuavam junto ao Senado de Roma

Antiga na defesa dos direitos da plebe. Entretanto, Legrand (1970, p. 27) esclarece que “(...)

essas instituições correspondiam a um outro tipo de entidade e é pouco provável que os

Constituintes de 1809 tenham desejado imitá-las.” (tradução nossa)39

É preciso, portanto, procurar ailleurs as tendências que influenciaram a instituição

suédoise. Legrand (1970) as encontrará na Inglaterra e, principalmente, na França. Em sua

origem, podem-se distinguir duas preocupações centrais na instituição do Ombudsman: a

surveillance da administração e da justiça – funções de controle já bem incorporadas às

atividades governamentais. Mas, “(...) o Ombudsman respondia, além disso, à preocupação de

proteger os direitos do povo contra a administração (...)” (LEGRAND, 1970, p. 28) (tradução

nossa)40

. Ele respondia, em primeiro lugar, ao desejo do Parlamento Sueco de se fortalecer frente

ao Executivo. A defesa dos direitos dos cidadãos contra os funcionários públicos era uma

excelente maneira de fazer isso.

Estas duas preocupações – o controle da administração e a proteção aos direitos do povo

– estavam entre os temas prioritários da Europa durante os séculos XVII, XVIII e início do

século XIX. As revoluções anglaises (a Puritana, em 1640 e a Gloriosa em 1688) foram feitas

em nome da continuidade e do respeito ao Parlamento. De même, em 17 de junho de 1789, a

Assembleia Nacional Francesa declarava que “(...) a obra comum de restauração nacional pode

e deve ser iniciada sem atrasos pelos deputados presentes, e que eles deveriam segui-la sem

interrupções e sem obstáculos” (ASSEMBLÉE NATIONALE, L’abbé Sieyès) (tradução

nossa)41

.

Ao lado de um Parlamento que funcionava sem interrupção, um novo direito se

espraiava pela maioria dos países da Europa. Tratava-se do direito de petição. De acordo com

Legrand (1970) esse direito já havia sido reconhecido pelo Bill of Rights de 1689 na Inglaterra.

39

(...) Ces institutions correspondaient à un toute autre type de société et il est peu probable que les Constituants de

1809 aient entendu les imiter. 40

l’Ombudsman répondait en outre au souci de proteger les droits du peuple contre l’administration. 41

(...) l'oeuvre commune de la restauration nationale peut et doit être commencée sans retard par les députés

présents, et qu'ils doivent la suivre sans interruption comme sans obstacle.

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Na França, na Constituição de 1791 se conferiu esse direito a todos os membros da nação,

distinguindo-se claramente duas aplicações, como explica Legrand (1970, p. 29):

Aquilo que era chamado de queixa: um indivíduo vítima de um ato injusto e

contrário à lei se dirige ao Parlamento para denunciar a autoridade culpada e

solicitar reparação. E a petição propriamente dita, que permitiria ao peticionário

de solicitar a votação de uma nova lei ou a reforma de uma lei antiga. (tradução

nossa)42

Princípios análogos podem-se encontrar nos Cahiers de Doléances43

, existentes na

França desde o século XIV. Neles, as assembleias encarregadas de eleger os Deputados que

representavam as Ordens nas reuniões dos Estados Gerais anotavam suas doléances –

reclamações e reivindicações. Havia no país em torno de cinquenta mil Cahiers. Os mais

lembrados são os de 1789, que antecederam a eclosão da Révolution Française. Naquele ano, em

muitos bailliages44

et paroisses45

, as três ordens (Clero, Nobreza e Terceiro Estado) juntaram-se

para redigir um único Cahier. De acordo com Soboul (1974), as assembleias foram unânimes em

reivindicar a abolição da venalidade e da hereditariedade dos ofícios. De acordo com Malet

(1913, p. 28) as três Ordens estavam quase unânimes com os seguintes pontos:

Eles atribuíam todos os males da nação ao poder arbitrário do rei (...). Eles

concluíam então sobre a necessidade de enquadrá-lo dentro de estreitos limites

estabelecidos na Constituição que, definiria os direitos do rei e da nação e seria

de agora em diante a regra invariável de todas as partes da administração e da

ordem pública. (tradução nossa)46

Esta Constituição deveria garantir a todos os franceses a liberdade individual, a

liberdade de pensar e de escrever: não haveria mais nem arbitrariedade (lettre

cachet47

) nem censura. (tradução nossa)48

Os Estados Gerais seriam de agora em diante regularmente convocados. Eles

participariam da elaboração das leis. Eles votariam os impostos que o rei não

poderia aumentar sem o consentimento dos Parlamentares. (tradução nossa)49

42

Ce qu’il appelait la plainte: un individu victime d’un acte injuste et contraire au lois s’adresse au Parlement pour

dénoncer l’autorité coupable et demander réparation. Et la pétition proprement dite, qui permettait au pétitionnaire

de demander le vote d’une loi nouvelle ou la réforme d’une loi ancienne. 43

Cadernos de queixas. 44

Circunscrição territorial. 45

Subdivisão de uma paróquia (cristianismo). 46

Ils attribuaient tous les maux de la nation au pouvoir arbitraire du roi (...). Ils concluaient donc à la nécessité de le

resserrer dans des justes bornes en établissant une Constitution qui définerait les droits du roi et de la nation et serait

désormais la règle invariable de toutes les parties de l’administration et de l’ordre public (...). 47

Ordem arbitrária do rei mandando punir alguém sem julgamento. 48

Cette Constitution devrait garantir à tous les Français la liberté individuelle, la liberté de penser et d’écrire: il n’y

aurait plus ni lettres de cachet ni censure.

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Todas essas reclamações eram redigidas, evidentemente, em tons moderados,

exprimindo, sobretudo da parte do Terceiro Estado, um profundo amor por Louis XVI.

Sobretudo, manifestavam gratidão pela iniciativa do Rei de convocar os Estados Gerais, o que

não acontecia a mais de 150 anos – a última convocação fora em 1614. A maior parte do

Terceiro Estado – os Sans Culottes50

– não tinha em mente a mínima intenção de promover uma

revolução, nem o desejo de depor Louis XVI, muito menos ainda se fosse por meios violentos.

Entretanto, celeremente, iniciou-se uma verdadeira revolução jurídica que se realizava sem

violência, deslocando o centro do poder. As classes médias e a burguesia endinheirada passavam

a ocupar na política uma posição condizente com a sua influência na economia. Isso é

demonstrado pelo fato de que na eleição de 1789, metade dos deputados integrantes do Terceiro

Estado eram Funcionários Públicos (serventuários da justiça), duzentos eram advogados, a

burguesia (comerciantes, banqueiros e industriais) formava uma bancada contendo

aproximadamente uma centena de membros – dos 578 deputados eleitos pelo Terceiro Estado

nem um sequer era camponês.

Na França – país onde o poder de Sa Majesté se esfumaçou - a Declaração dos Direitos

do Homem e do Cidadão, de 1789, constituiu-se como uma cartilha da nova ordem implantada.

Já em seu Artigo primeiro, ela proclamava que “Os homens nascem e permanecem livres e

iguais em direitos” (tradução nossa)51

. Trata-se, aqui, evidentemente, da igualdade formal,

fortemente associada à ideia de liberdade. Liberdade que era reclamada pela burguesia em

relação à aristocracia e pelos camponeses contra os seus senhores, significando, claramente a

igualdade formal e civil - a lei deveria ser a mesma para todos. Estabeleceu que o objetivo de

todo tipo de associação política é a proteção dos direitos naturais e imprescritíveis do homem

(Artigo 2º). “Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à

opressão.” (tradução nossa)52

.

Na visão de Soboul (1974) essa declaração visava muito mais a legitimação das revoltas

passadas do que a autorização de insurreições futuras. A declaração define a liberdade como algo

que só encontra seu limite no outro (Artigo 4º): “A liberdade consiste em poder fazer tudo aquilo

que não seja nocivo ao outro.” (tradução nossa)53

. Volta-se contra as prisões arbitrárias (Artigo

7º) e cria a presunção de inocência (Artigo 9º). Os homens não podem ser perturbados em

49

Les États Géneraux seraient désormais régulièrement convoqués. Ils participeraient à la confection des lois. Ils

voteraient les impôts que le roi ne pourrait lever sans leur consentement. 50

Denominação dada pelos aristocratas à parte mais pobre da população francesa que participou da revolução de

1789. Recebiam essa designação pelo fato de não usarem calças compridas, diferentemente da nobreza que vestia-se

com uma espécie de calção que era amarrado à altura dos joelhos. 51

Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. 52

Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression. 53

La liberté consiste à pouvoir faire tout ce qui ne nuit pas à autrui.

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decorrência de suas opiniões (Artigo 10º) e “todo cidadão pode então falar, escrever e imprimir

livremente.” (tradução nossa)54

, respondendo pelos abusos que eventualmente cometer de acordo

com a lei (Artigo 11º). Anuncia o fim dos privilégios fiscais determinando que “Para a

manutenção da força pública (polícia), e para as despesas da administração, uma contribuição

comum é indispensável. Ela deve ser igualmente distribuída entre todos os cidadãos, em função

de suas capacidades.” (tradução nossa)55

(Artigo 13º). Fixa claramente a separação de poderes,

afirmando que em “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a

separação dos poderes determinada não existe Constituição.” (tradução nossa)56

(Artigo 16º).

Antes, em seus Artigos 14 e 15, fixa o princípio do controle social, feito pelo cidadão,

diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos:

Todos os cidadãos têm o direito de constatar por eles mesmos ou por meio de

seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de consenti-la

livremente, de acompanhar a sua aplicação, definir o seu montante, sua

permanência, cobertura e duração. A sociedade tem o direito de solicitar

prestação de contas a todo agente público de sua administração. (tradução

nossa)57

Entretanto, na França a revolução caracterizou um processo de ruptura com o Ancien

Régime. E a burguesia, ansiosa por estender à política os poderes que já detinha na economia,

não poderia fazê-lo de outra forma, que não fosse reduzindo de maneira peremptória o poder do

rei. Tanto a Declaração de 1789 quanto a Constituição de 1791 foram feitas contra o rei,

condição que não se passara no Reino da Suécia.

O Parlamento sueco não logrou êxito em tornar-se o centro da vida política. Em 1809, a

nova Constituição sueca manteve o sistema antigo – a Monarquia. O Parlamento continuou com

sua atuação descontínua, com seções quinquenais e depois trienais. Essa descontinuidade do

Parlamento o colocava em flagrante desvantagem face ao governo permanente. Legrand (1970,

p. 28) entende que nestas condições “Era então normal que os Estados tivessem pensado em

criar um mandatário que vigiasse a administração do reino entre as seções do Riksdag

54

Tout citoyen peut donc parler, écrire, imprimer librement. 55

Pour l’entretien de la force publique, et pour les dépenses d’administration, une contribution commune est

indispensable. Elle doit être également répartie entre tous les citoyens, en raison de leurs facultés. 56

Toute Société dans laquelle la garantie des droits n’est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, n’a

point de Constitution. 57

Tous les citoyens ont le droit de constater, par eux-mêmes ou par leurs représentants, la nécessité de la

contribution publique, de la consentir librement, d’en suivre l’emploi et d’en déterminer la quotité, l’assiette, le

recouvrement et la durée. La Société a le droit de demander compte à tout agent public de son administration

(Article XIV).

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(Parlamento).” (tradução nossa)58

E foi para isso que os Constituintes instituíram um

Ombudsman e o obrigou a elaborar, imprimir e publicar um relatório de atividades durante o

intervalo das reuniões dos Estados (Parlamento). Com essa decisão os deputados visavam, de

forma evidente, estabelecer maior controle sobre as atividades do governo de Sa Majesté.

Embora inspirado nos acontecimentos revolucionários que agitaram a França, o

Ombudsman sueco não pode ser caracterizado como uma instituição revolucionária. Ele se

incorporaria à organização constitucional da Suécia desde o início, evidenciando certo

prolongamento das instituições anteriores.

Mas, é fato, também, que ele representa uma forte reação do Parlamento à centralização

do poder na figura do rei. No curso de elaboração de uma nova Constituição para o país, os

parlamentares reservaram para si amplos poderes para surveiller a justiça e a administração.

Nessa busca pelo equilíbrio de poder, os deputados viam o Ombudsman como um auxiliar do

Riksdag, análogo ao Justitiekansler do rei. Mas isso, além de não representar uma iniciativa

revolucionária, adverte Legrand (1970), também não significou a instauração de um governo

parlamentar. Os poderes do rei foram mantidos, embora agora submetido a uma maior vigilância

do Parlamento. Mesmo as características feudais da Suécia permaneceram. No entanto, a sua

criação anunciava o desejo dos Estados de controlar a administração, a justiça e a maneira como

o rei exercia o poder, representando, em termos práticos, a passagem da Suécia de uma

Monarquia absoluta para uma Monarquia limitada.

É importante ainda frisar que a revolução de 1809 não alterou a estrutura administrativa

do país. O Rei continuava formalmente com poderes para governar sozinho, respondendo, ao

menos oficialmente, pelas funções de Governo e pela Administração. Entretanto – e aqui reside a

principal peculiaridade sueca –, a administração não era integrada.

O Rei era auxiliado por um Ministério que, na prática, não tinha poderes nem para

decidir nem para governar. As decisões eram tomadas pelo colegiado de Ministros (o Conselho

de Estado) e a execução das políticas era atribuída aos órgãos burocráticos. Explica Legrand

(1970, p. 40), utilizando um exemplo, que o Ministério da Saúde e Assuntos Sociais,

(...) ao qual competia, entre outros, todas as questões de pensões de saúde

pública, de proteção social ou de política familiar (extremamente importantes

em função da orientação social do governo sueco) contava apenas com cerca de

quarenta funcionários. São departamentos específicos que, independentemente

58

Il était donc normal que les États aient songé créer un mandataire qui surveillât l’administration du royaume entre

les sessions du Riksdag.

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do Ministro competente, implantavam a política determinada por esse

ministério: o Escritório Nacional de Segurança administra o setor de pensões, a

direção nacional de Saúde o setor das questões de ordem médica. (tradução

nossa)59

Constantemente demandado pela população, sujeita aos grandes e pequenos abusos e

negligências frequentes da burocracia, é ao enfrentamento desta que o Ombudsman dedicar-se-ia

prioritariamente. O controle do Governo - cujos ministros tinham poder limitado - não se tornará

sua preocupação central. Assim, como bem o descreve Legrand (1970, p. 43), em princípio, as

competências ficaram assim compartilhadas: “(...) o Parlamento (Riksdag) controla os

conselheiros do rei; seu Ombudsman os funcionários e os juízes” (tradução nossa)60

. Entretanto,

o controle dos juízes não será também o foco prioritário do Ombudsman. Ele se concentraria nos

direitos dos cidadãos e sua ligação com o Parlamento seria o meio de poder utilizado para

legitimar as suas ações.

O Ombudsman é eleito pelo Parlamento em cada legislatura ordinária “(...) o que

significa que exceto em caso de vacância extraordinária da função, a eleição ocorre a cada

quatro anos e por um período de quatro anos.”61

(LEGRAND, 1970, p. 44) (tradução nossa). O

Rei não tem qualquer poder de influência na escolha do Ombudsman e até mesmo a influência

do Parlamento é limitada à aplicação de um procedimento que orienta a organização do processo

eleitoral. O Parlamento não é sequer instância de recurso contra os resultados da eleição.

Constitui-se uma comissão encarregada de todo o processo, levando à escolha do Ombudsman.

Durante quinze dias essa comissão identifica os candidatos mais preparados para ocupar o cargo.

A função do Parlamento

(...) consiste a nomear as pessoas que devem eleger o JO (Justitieombudsnan ou

simplesmente Ombudsman: grifo nosso). Elas (Câmara e Senado: grifo nosso),

em seguida, não tem outro papel além de constatar que a eleição se encerrou e

mandar redigir e promulgar o ato de nomeação do eleito através da chancelaria

59

(...) Auquel ressortissent, entre autres, toutes questions de pensions de santé publique, de protection sociale ou de

politique familiale (extrêmement importantes en raison de l’orientation sociale du gouvernement suèdois) ne compte

qu’une quarantaine de fonctionaires. Ce sont des administrations particuliers qui, indépendemment du ministre

compétent, mettent en oeuvre la politique déterminée par ce ministère: l’Office National de l’Assurance gère le

secteur de pensions, la Direction Nationale de la Santé celui des questions d’ordre médical (...). 60

(...) Le Riksdag contrôle des conseillers du Roi, son Ombudsman les fonctionnaires et les juges 61

(...) ce qui signifie que, hors le cas de vacance extraordinaire de la fonction, l’élection a lieu tous le quatre ans et

pour une période de quatre ans.

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do Riksdag e de acordo com as prescrições do parágrafo 80 do Regimento do

Parlamento (Riksdagsordning) (LEGRAND, 1970, p. 46-47) (tradução nossa)62

.

Elege-se o candidato que obtém o maior número de votos entre os membros da

comissão. Caso haja empate, faz-se um sorteio. Entretanto, há certas exigências que devem ser

atendidas por aqueles que desejam ocupar a função de Ombudsman. Segundo o explica Legrand

(1970, p. 46) “O § 96 da Regeringsform63

insiste no fato de que ele deve ser especialista

comprovado em ciência do direito e de particular integridade” (tradução nossa)64

. Todos os

Ombudsmän tiveram fortes carreiras administrativas e jurídicas antes de exercer a função.

Muitos vieram do corpo de auditores (revisionssekreterare), outros foram juízes de cortes de

apelação ou presidentes de tribunais de primeira instância. Alguns, ao final de seus mandatos,

foram nomeados para a Suprema Corte do país.

Embora necessária, a formação jurídica é insuficiente. Exige-se igualmente que o

Ombudsman tenha bons conhecimentos dos problemas da administração. Exigência que, de

acordo com Legrand (1970) tornou-se ainda mais necessária à medida que a ação de controle do

Ombudsman se deslocou da justiça em direção à administração. Entre as primeiras instruções do

Riksdag em relação às atribuições do Ombudsman está a determinação de

investigar com um particular cuidado os erros que lhe pareçam advir da

busca de um interesse pessoal, de uma intenção maledicente, de parcialidade

ou de uma negligência grave ou representar uma insegurança geral para os

direitos dos cidadãos. (LEGRAND, 1970, p. 52) (tradução nossa)65

.

O controle da administração mostrar-se-ia uma tarefa bem mais complexa do que se

poderia antever. Diferentemente da justiça, a administração não era baseada em regras fixas.

Logo o Ombudsman perceberia que os meios de exercer a sua missão de controlar a justiça e a

administração não estavam definidos de antemão. Considerando que o seu poder de controle

estava incluso na sua missão, os meios seriam deduzidos da natureza da atribuição.

62

(...) Consiste à nommer les personnes qui doivent élire le JO. Elles (Câmara e Senado: grifo) n’ont ensuite qu’à

constater que l’élection est terminée et à faire rédiger et promulguer l’acte de nomination de l’élu, par la

Chancellerie du Riksdag et selon les prescriptions du paragraphe 80 de la Riksdagsordning. 63

Constituição da Suécia. 64

Le § 96 de la Regeringsform insiste sur le fait qu’il doit être jurisconsulte de science éprouvée et d’intégrité

particulière. 65

Porsuivre avec un soin particulier les fautes qui lui paressent provenir de la recherche d’un intérêt

personel, d’une intention maligne, de partialité ou d’une négligence grave ou présenter une insecurité

générale pour les droits des citoyens.

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Como já se frisou, a independência do Ombudsman é assegurada mediante eleição pelo

Parlamento. O órgão forma um tipo de departamento especial, fora da administração ordinária.

Legrand (1970) lhe atribui a definição genérica de ‘Administração do Riksdag’. Todo o pessoal

que trabalha diretamente no apoio ao Ombudsman integra uma lista especial, em cujo topo está o

Parlamento e não o Rei. Sob esse ponto de vista – o da subordinação hierárquica – o poder do

Rei sobre o Ombudsman é quase inexistente.

Trabalha no apoio ao Ombudsman em torno de uma dezena de pessoas, todas nomeadas

por ele mesmo. Algumas dessas pessoas, como o chefe do escritório, são nomeadas para ocupar

a função transitoriamente. Os funcionários de apoio não desfrutam de nenhuma autonomia.

Subordinados hierarquicamente ao Ombudsman, eles trabalham em atividades preparatórias,

prestando contas permanentemente de seus projetos. Todas as questões devem ser submetidas ao

Ombudsman e toda decisão definitiva só pode ser tomada por ele.

A atuação do Ombudsman foi importante para assegurar um maior ativismo do

Parlamento no controle da administração e garantir o cumprimento dos dispositivos

constitucionais por parte do Rei. Esse sucesso iria diminuir a importância do papel constitucional

do Ombudsman. Em paralelo ao fortalecimento do Parlamento, assistiu-se ao desenvolvimento

da imprensa livre, tornando o controle constitucional ainda menos importante para o

Ombudsman. As denúncias aos abusos cometidos pelo Rei e seus ministros eram agora feitas

pela oposição no Riksdag e pela imprensa livre. O Ombudsman concentrar-se-á ainda mais no

controle da administração, procurando proteger os cidadãos dos abusos da burocracia. Como

afirma Legrand (1970, p. 107) o Ombudsman escandinavo foi instituído

(...) Como a solução mais compatível com o estado de direito sueco, que se

pode conferir à questão dos recursos dos cidadãos contra a ilegalidade dos atos

dos funcionários. (...) A instituição do Ombudsman, além disso, apresenta na

Suécia, uma característica fortemente relacionada de defensor do interesse

social. Trata-se de retificar uma situação de dano para a sociedade inteira tanto

quanto de dar razão ao cidadão. (tradução nossa)66

A atuação do Ombudsman vai se mostrar determinante para a garantia dos direitos dos

cidadãos, contribuindo para o esclarecimento de delitos e para a indenização de particulares

lesados por atos dos funcionários.

66

Comme la solution la plus compatible avec l’état du droit suédois, qui se pût apporter au problème du recours des

citoyens contre l’illegalité des actes des fonctionnaires. (...) L’institution de l’Ombudsman, de même, présente en

Suède, un caractère très accusé de défenseur de l’intérêt social. Il s’agit de rectifier une situation dommageable pour

la société tout entière autant que d’accorder raison au citoyen.

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O Ombudsman pode agir por duas razões. Ou por meio de uma reclamação (plainte) de

um cidadão, endereçada contra um funcionário especificado ou, mesmo não havendo a

provocação externa, para apurar fatos contrários ao interesse dos cidadãos, conhecidos por ele,

seja por meio de investigações conduzidas por ele mesmo ou através da imprensa. Entretanto, as

principais atividades do Ombudsman são formadas a partir de reclamações dos cidadãos.

A forma para um cidadão interpor um recurso é bastante simples. Exige-se, contudo,

que a reclamação seja feita por escrito e que o seu autor seja identificado. Reclamações

anônimas são normalmente recusadas pelo Ombudsman. Os funcionários do Ombudsman podem

ajudar o cidadão a descrever os fatos, quando isso se mostrar necessário. Embora recomendável,

não é obrigatória a apresentação de provas. Diz Legrand (1970, p. 109) que

Se uma medida em geral para iniciar um pedido de explicações ao interessado

devesse ser tomada, ela poderia algumas vezes depender do exame de

circunstâncias existentes em outros contextos, que corroborava a comprovação

da denúncia. É este exame que é extremamente delicado, sobretudo em razão do

fato de que o pedido de explicações poderia ser entendido como um meio de

constranger o funcionário a denunciar a si mesmo, a fornecer o material para

uma eventual acusação. Todavia, nesse ponto, em casos excepcionalmente

indicados, as dificuldades surgidas são contornadas, e, nesses casos, faz-se

referência, acima de tudo, ao fato de que o denunciante parecia não ter

condições, por um motivo ou outro, de fornecer a prova necessária (tradução

nossa)67

.

Com efeito, existem casos em que a natureza da falta ou as condições em que ela foi

cometida não possibilita ao reclamante fornecer uma prova escrita. Recusar ao cidadão o acesso

ao Ombudsman em casos semelhantes não seria razoável. Bastará ao reclamante, por exemplo,

anexar um recorte de jornal ou descrever a natureza da falta cometida. O Ombudsman, então,

demandará informações ao funcionário denunciado e se estas explicações não lhe parecerem

suficientes ele abrirá um inquérito para investigar.

Os traços fundamentais da instituição suèdoise evoluíram, inclusive com a criação de

um MilitieOmbudsman (MO), encarregado de receber denúncias das tropas militares sobre

abusos cometidos por seus superiores. Inicialmente, o MO era um especialista em assuntos

67

Si une mesure, en général pour commencer une demande d’explications à l’intéressé, (deve ser tomada)a dû être

prise, elle a pu quelquefois dépendre d’un examen de circonstances existant par ailleurs, qui ont parlé en faveur de la

(comprovação) vraisemblance de la dénonciation. C’est cet examen qui est extrêmement délicat, surtout en raison du

fait que la demande d’explications a pu être conçue comme un moyen de contraindre le fonctionnaire à se dénoncer

lui-même, à founir lui-même le matérial pour une accusation éventuelle. Les difficultés, nées sur ce point, ont

cependant(tem todavia), dans des cas exceptionels indiqués, dû fléchir (dever dobrar), et, dans ces cas, on s’est avant

tout référé au fait que le dénonciateur paraissait hors d’état pour un motif ou un autre, d’apporter la preuve

nécessaire.

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militares. Posteriormente, passou-se a exigir dele a especialização jurídica, como já o era em

relação ao JustitieKansler e ao JustitieOmbudsman. Entretanto, esse Ombudsman Militar

mostrou-se bastante frágil e mesmo inviável. Os soldados não se sentiam ‘confortáveis’ em

remeter suas queixas ao MO, principalmente, temendo as consequências em caso de fracasso.

Desse modo, as informações que ele conseguia eram quase sempre na atuação de ofício, obtidas

em frágeis depoimentos orais e conversas informais. Raras eram as denúncias escritas. O

MilitieOmbudsman foi extinto em 1967 e suas atribuições foram incorporadas pelo

JustitieOmbudsman.

Até o ano de 1957 o Ombudsman sueco não tinha jurisdição sobre as comunidades

locais – os municípios. Contudo, a partir daquele ano sua competência passou a abranger

também os municípios e autoridades municipais, exceção feita ao legislativo e judiciário. Isso

levou a um aumento extraordinário na quantidade de casos recebidos pelo Ombudsman, impondo

que a instituição fosse reformada. Em 1950, a instituição recebera 60 denúncias, contra 447 em

1964. Dado o aumento do número de casos, começaram as pressões sobre o Parlamento para que

a instituição fosse reestruturada.

A reforma de 1967 teve três aspectos centrais: o desaparecimento do

MilitieOmbudsman, a ampliação do número de Ombudsmän e a limitação do acesso ao

Ombudsman como primeiro recurso.

As dificuldades já apontadas na atuação do MilitieOmbudsman contribuíram para a sua

extinção, mas as suas atribuições de inspecionar instalações militares e receber denúncias dos

soldados permaneceram, sendo incorporadas pelo JustitieOmbudsman. MilitieOmbudsman e

JustitieOmbudsman passaram, então, a formar uma única entidade, porém, agora a cargo de três

Ombudsmän, cada um posicionado em determinada especialização. De acordo com Leite (1975),

um se encarrega das questões referentes ao bem-estar social, abrangendo as atividades de

previdência e assistência social, educação, infância, habitação, alcoolismo, prisões, etc. Outro

cuida do sistema judiciário, ou seja, das atividades do Ministério Público, da polícia e dos

assuntos militares - estes, antes, sob a jurisdição do MilitieOmbudsman. Ao último cabem as

questões relacionadas a qualquer repartição civil que não esteja sob a jurisdição do primeiro.

Além dos três Ombudsmän introduzidos pela reforma de 1967, existem outros três

Ombudsmän específicos, posicionados setorialmente: o Ombudsman da liberdade de comércio, o

Ombudsman dos consumidores e o Ombudsman da Imprensa. O Ombudsman para a liberdade

econômica tem a missão de proteger os cidadãos contra abusos das organizações privadas,

prevenindo as práticas de monopólio, oligopólio e limitação da concorrência. De acordo com

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Amaral Filho (1993), este Ombudsman não tem poder de sanção. Mas, ele pode realizar

inspeções, advertir os faltosos e fazer recomendações. Nos casos em que os problemas

persistirem, o Ombudsman recorre ao Tribunal de Mercados. Segundo Braz (1992) este

Ombudsman, criado em 1954, pode atuar de ofício (iniciativa própria) ou por meio da apuração

de denúncias recebidas de empresas sobre as práticas das outras companhias. Este Ombudsman

responde ao Parlamento, que o nomeia (AMARAL FILHO, 1993).

O Ombudsman dos consumidores foi criado em 1971 para defender os interesses dos

consumidores junto ao Tribunal de Mercados. Esse Ombudsman não está submetido ao

Parlamento, pois sua nomeação se dá pelo executivo, como qualquer outro funcionário

(AMARAL FILHO, 1993). Ele fiscaliza a aplicação das leis de proteção ao consumidor,

incluindo-se neste escopo a propaganda enganosa. Sua primeira intervenção, segundo Braz

(1992), é sempre a busca de uma solução amistosa. Entretanto, quando ele não consegue êxito

com a ação amigável, ele recorre ao Tribunal de Mercados, órgão que tem poder para proibir a

prática questionada. Este Ombudsman pode agir de ofício ou por provocação externa.

Finalmente, o Ombudsman da Imprensa foi criado em 1969 (BRAZ, 1992). Como os

demais, sua atuação pode ser de ofício ou mediante provocação de leitores, sentindo-se

prejudicados por alguma publicação, quer por que ela seja considerada caluniosa ou que, a seu

juízo, fere a ética jornalística. Esse Ombudsman não é nomeado exclusivamente pelo

Parlamento, mas, por uma comissão especial, composta por três pessoas (BRAZ, 1992), entre as

quais um representante da imprensa. Integra, ainda, essa comissão, segundo Amaral Filho

(1993), um dos Ombudsmän nomeados pelo Riksdag e o Presidente da Ordem dos Advogados da

Suécia.

Ao extinguir o MO e ampliar o número de Ombudsmän, a reforma de 1967 perseguia

dois objetivos fundamentais: “Instituir uma organização para velar eficazmente as liberdades e

direitos dos cidadãos e ser capaz de intervir rapidamente contra todo abuso dos funcionários ou

das autoridades”68

(LEGRAND, 1970, p. 136) (tradução nossa).

Entretanto, o recurso ao Ombudsman passaria a ser de natureza extraordinária e não de

rotina. “A necessidade de proteção jurídica dos cidadãos deve ser inicialmente assegurada pela

utilização dos procedimentos normais de recurso” (Legrand, 1970, p. 137)69

(tradução nossa). A

queixa ao Ombudsman não poderá constituir um procedimento de recurso de rotina. Antes de

68

Constituer une organisation veillant efficacement aux libertés et doits des citoyens et être capable d’intervenir

rapidement contre tout abus des fonctionnaires ou des autorités. 69

Le besoin de protection juridique des citoyens doit être d’abord assuré par l’utilisation des procédures normales de

récours.

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ingressar com uma reclamação junto ao Ombudsman, o cidadão deve recorrer ao superior

hierárquico do funcionário que praticou o ato considerado lesivo ao particular ou à coletividade.

O Ombudsman é uma espécie de segunda instância de recurso administrativo.

Respeitada essa condição, ressalta-se que é assegurado aos Ombudsmän o acesso livre a

todas as informações. Sempre que as requisitar, os funcionários estão obrigados a fornecê-las por

força da Constituição. Se considerar necessário, ele poderá convocar outros funcionários além

dos que trabalham sob a sua subordinação hierárquica direta para auxiliá-lo na pesquisa,

levantamento de informações e no apoio técnico aos processos de investigação.

A função do Ombudsman como órgão de controle perdeu importância em tempos

recentes. Essa é hoje uma atividade suplementar. Sua função essencial é a de proteger os

cidadãos contra os abusos e negligências dos funcionários públicos, identificando-os, corrigindo-

os e sugerindo ações de mudanças nas organizações, de forma a evitar a repetição e mesmo a

perpetuação das falhas. Controle tornou-se a sua função menos importante, marginal e

complementar.

A expansão da instituição Ombudsman para outros países europeus ocorreu com

diferentes níveis de sucesso. Legrand (1970) estudou a sua criação em quatro países ao longo do

século XX: Finlândia (Eduskunnan Oikeusasiamies) em 1917; Dinamarca (Folketingets

Ombudsmand) em 1946; Noruega (Stortingets Ombudsmann e depois Sivil Ombudsmann for

Forvaltningen) respectivamente, em 1952 e em 1962; Alemanha (Wehrbeauftragte des

Bundestages) em 1957.

De acordo com Legrand (1970) a experiência sueca foi muito bem sucedida na

Finlândia. A criação do Ombudsman foi proposta junto com um projeto de Constituição em 3 de

novembro de 1917, antes mesmo da declaração de independência do país em relação à Suécia,

que se daria pouco mais de um mês depois, em 6 de dezembro.

A atuação do Ombudsman na Finlândia é bastante semelhante à instituição sueca que

lhe serviu de referência. Esse sucesso é atribuído, em grande parte, às características culturais e

administrativas comuns entre os dois países. Pequenas modificações visaram adaptar a

instituição às especificidades constitucionais da Finlândia, pois o país é uma República

Parlamentar, enquanto que a Suécia era – e ainda é - uma Monarquia Constitucional. Entretanto,

as alterações introduzidas preservaram a autoridade e a independência do Ombudsman frente ao

Parlamento, ao Governo e às forças militares.

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O Ombudsman dinamarquês foi instituído em 9 de fevereiro de 1946. O objetivo de sua

criação foi bastante diferente do que motivou os Parlamentares constituintes da Suécia em 1809.

Como explica Legrand (1970, p. 225)

Não se tratava nem de resolver delicados problemas de equilíbrio entre o

Governo e o Parlamento, nem de remediar certas fragilidades da organização

administrativa, por meio da criação de mecanismos apropriados, mas de

encontrar uma solução para o problema geral das relações entre a administração

e o cidadão. (tradução nossa)70

Como na Suécia, a função é reservada aos especialistas jurídicos. O Ombudsman

mantém-se totalmente independente em relação ao Governo e mesmo em relação ao Parlamento

que o elege. Mas, segundo Legrand (1970, p. 206),

(...) a lei sobre o Ombudsman vai mais longe: ela não se limita a estabelecer os

meios, praticamente assegurando a independência do Ombudsman. Ela impede

ao Parlamento de impor ao Ombudsman o exame de uma determinada questão

ou de impedi-lo de investigar um fato. (tradução nossa).71

Entretanto, há diferenças fundamentais no domínio constitucional dos dois países.

Enquanto que na Suécia o Rei exerce o poder, na Dinamarca o Rei o delega aos Ministros. O

país adota o parlamentarismo clássico, cuja administração é inteiramente hierarquizada, colocada

sob a direção de ministros, que são constitucionalmente responsáveis perante o Parlamento. O

direito penal aplicável aos agentes públicos na Dinamarca proíbe praticamente todas as

alternativas de investigação encontradas na Suécia. Diz Legrand (1970, p. 226) que “Muito

raramente, os inquéritos concernem somente a funcionários subalternos” (tradução nossa)72

.

Desde os trabalhos preparatórios à criação do Ombudsman, os Parlamentares reservaram uma

parte insignificante das suas atividades aos processos penais e disciplinares. Frágil e dedicado às

questões menores, a função do Ombudsman dinamarquês tornou-se não mais que uma pequena

arma acessória de controle. Assim, os resultados da ação da instituição nos dois países são

bastante diferentes, como explica Legrand (1970, p. 242):

70

Il ne s’agissait ni de résoudre des délicats problèmes d’équilibre entre le Gouvernement et le Parlement, ni de

pallier, par la création de mécanismes appropriés, certains défauts de l’organisation administrative, mais d’apporter

une solution au problème général des rélations entre l’administration et le citoyen. 71

(...) La loi sur l’Ombudsman va plus loin: elle ne se contente pas d’établir des moyens assurant pratiquement

l’indépendence de l’Ombudsman. Elle interdit au Parlement d’imposer à l’Ombudsmand l’examen d’une affaire

déterminée ou de l’empêcher d’enquêter sur un fait. 72

Très rares, les poursuites ne concernent généralement que des fonctionnaires subalternes.

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Enquanto que a intervenção do Ombudsman sueco leva frequentemente a uma

indenização, determinada pelos tribunais ou espontaneamente concedida pelos

funcionários com a intenção de evitar uma acusação, a atividade do

Ombudsman dinamarquês conduz raramente a uma solução desse gênero.

(tradução nossa).73

Excetuando os casos em que pagamentos indevidos são realizados a administradores,

que aceitam devolver os recursos para evitar um processo, a ação de crítica do Ombudsman

dinamarquês frequentemente provoca dois efeitos principais: o reexame ou a reformulação de

uma decisão individual ou regulamento e a prevenção de outras irregularidades comparáveis. Em

que pese a fragilidade da instituição, o Ombudsman goza de muito prestígio na sociedade

dinamarquesa. Segundo Legrand (1970), isso se deve à grande facilidade dos cidadãos para

encontrarem o Ombudsman e seus colaboradores e fazer o registro de uma reclamação. Quando

uma pessoa não tem condição ela mesma de fazer a queixa por escrito, é suficiente uma

declaração oral. O Ombudsman ou seus colaboradores redigem a queixa, tendo por base a

declaração oral. Seu modo de ação é essencialmente não contencioso. Entretanto, em uma ação

de natureza quase contenciosa, ele pode recomendar às autoridades a abertura de processos

disciplinares contra funcionários, atuando, desse modo, na proteção e defesa dos cidadãos, não

deixando que as medidas disciplinares fiquem apenas nas mãos dos superiores hierárquicos.

Na Noruega, o Ombudsman Militar foi criado em 1952, antes do civil que seria

instituído em 1962. Segundo Legrand (1970) a Noruega possui muitas semelhanças com a

Suécia no que concerne ao seu direito público e, também, na estrutura administrativa. Situação

análoga é encontrada também nas condições de exercício do poder real, na atuação do Ministério

e do Parlamento. Todas as decisões importantes eram tomadas pelo Rei sem participação

relevante do Parlamento e dos ministros. Entretanto, neste país, no que tange ao contexto

político, verificou-se uma situação inversa ao ocorrido na Suécia. No reino suédois, o

Parlamento instituíra o Ombudsman em busca de um maior equilíbrio de poder vers Sa Majesté,

por meio do controle do Governo, dos juízes e dos funcionários. Na Noruega, entretanto, “é o rei

e não o Parlamento que tentará aqui, aliás, sem sucesso, implantar seu controle sobre os

funcionários” (LEGRAND, 1970, p. 249) (tradução nossa)74

.

73

Alors que l’intervention des ombudsman suèdois amène souvent une indemnisation, prononcées par le tribunaux

ou spontanément versée par les fonctionnaires désireux d’éviter une accusation, l’activité de l’Ombudsmand danois

conduira rarement à une solution de ce genre. 74

C’est le Roi et non le Riksdag qui cherchera ici, sans succès d’ailleurs, à instaurer son contrôle sur les

fonctionnaires.

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Também demarcará importante diferença a atmosfera sociológica de cada país. Na

Suécia, a constituição foi redigida sob um forte sentimento antiburocrático que não se exprimiria

na Noruega, onde, mais da metade dos parlamentares constituintes era formada por funcionários

públicos. A Constituição foi redigida por um grupo homogêneo, formado por um comitê

integrado por quinze membros, dentre os quais, quatorze funcionários públicos. Então, como

explica Legrand (1970, p. 249)

Sendo os redatores da Constituição funcionários públicos, suas reflexões não se

orientaram em direção ao problema concreto das relações entre o cidadão e o

funcionário, mas para outra direção, mais geral e mais abstrata das relações

entre o cidadão e o Estado. Nada surpreende, então, que eles tenham adotado as

concepções jurídicas de Montesquieu, nem que eles confiram importância

essencial aos problemas de relacionamento entre os poderes supremos.

(tradução nossa)75

Apesar da inspiração na instituição sueca, na Noruega, o Ombudsman Militar integrou

uma estrutura diferente. Em cada quartel um grupo formado por homens de confiança da tropa e

dos comandantes se encarrega do recebimento das reclamações. Um comitê de Ombudsmann

(Ombudsmannsnemnd), composto por sete membros eleitos pelo Parlamento para um mandato

de quatro anos encarrega-se do exame dos problemas recebidos do comitê de homens de

confiança. Um dos membros desse comitê de Ombudsmän é eleito Presidente do grupo. Esse

recebe o nome de Ombudsman pour la Défense.

O espírito geral que orientou a instituição do Ombudsman Militar era de que os

conflitos deveriam ser resolvidos nos locais onde eles ocorrem e que o Ombudsman deveria ser

acionado apenas em casos excepcionais. Mesmo no tocante aos recursos, o Ombudsman

constitui uma instância de segundo grau, pois, antes de chegar a ele, as queixas eram submetidas

ao comitê de homens de confiança. O Ombudsman tem poder apenas de aconselhamento. Diante

da recusa de um comandante ou administrador em acatar a sugestão, ele não tem poder para

intervir. Um relatório é enviado anualmente ao Parlamento, relatando os casos atendidos e

fazendo sugestões de reformas, constitui seu mais importante instrumento de pressão. A

divulgação desse relatório é a sanção que leva as autoridades a colaborar com o Ombudsman.

75

Les rédacteurs de la Constitution étant des fonctionnaires, leurs réflexions ne s’orientent point vers le problème

concret des relations entre le citoyen et le fonctinnaire, mais vers celui, plus général et plus abstrat, des rapports

entre le citoyen et l’état. Rien n’étonne donc à ce qu’ils approuvent les conceptions judiciaires de Montesquieu, ni à

ce qu’ils accordent l’importance essentielle aux problèmes des rapports entre les pouvoirs suprêmes.

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O Ombudsman civil foi criado em 1962. Antes da sua instituição, os cidadãos

noruegueses já dispunham da possibilidade de exercer o Direito de Petição, com o qual podiam

endereçar suas queixas para a análise do Parlamento. O Parlamento reteve essa prerrogativa,

mesmo após a criação do Ombudsman. Ele é eleito pelo Parlamento para um mandato de quatro

anos. Embora possa exercer o mandato de forma independente, o Parlamento pode demiti-lo com

a aprovação de dois terços dos seus membros. Não há justificativa estritamente definida para

essa possibilidade de revogação, podendo ser um simples complô, uma crise política ou um mau

humor temporário. Diversas limitações são impostas por lei ao Ombudsman. Devido à

independência conferida aos juízes, ele não tem nenhum poder em relação aos órgãos do Poder

Judiciário. Também não tem autoridade em relação ao controle das contas públicas, dado que se

trata de competência do Parlamento. Exclui de sua jurisdição, igualmente, o controle das

atividades do Rei, tarefa conferida exclusivamente ao Parlamento. Sua arma essencial será,

então, a possibilidade de criticar.

De todos os casos estudados, Legrand (1970) considera que a do Ombudsman Militar

alemão é a de menor efetividade. Ele foi criado em 1957, tendo a instituição sueca como

referência. Sua eleição é feita pelo Parlamento (Bundestag), mediante aprovação da maioria, para

um mandato de cinco anos. Os candidatos devem ser apresentados pela Comissão de Defesa do

Bundestag ou por um grupo de parlamentares.

Entretanto, comparativamente às experiências discutidas anteriormente, há muitas

diferenças na institucionalização do Ombudsman alemão, o que, provavelmente, ao menos em

parte, corrobora a explicação de seu échec. Uma diferença relevante está na nomeação do

pessoal do serviço. Na Suécia o Ombudsman desfruta de autonomia, sendo o mestre do seu

serviço. Os funcionários são nomeados por ele e recebem ordens exclusivamente dele. O mesmo

não acontece na Alemanha, onde o pessoal é nomeado e demitido pelo Presidente do Bundestag.

Esclarece Legrand (1970, 264-265) que

Não há dúvida de que o presidente só pode nomear pessoas propostas pelo

Ombudsman; não há dúvida de que a eventual revogação só pode atingir

empregados indicados pelo Wehrbeauftragte. Sem dúvida, enfim, o pessoal de

serviço fica subordinado ao controle do Wehrbeauftragte durante o tempo no

qual ele exerce a sua função (...). Não é menos certo que existe aqui a

manifestação de uma certa dependência em relação ao Parlamento. Adicionando

o fato de que o Wehrbeauftragte não tem verdadeiro suplente, e que em caso de

impedimento ele pode ser substituído por diversas pessoas, entre as quais o

Bundestag pode fazer a escolha (...), constatar-se-á aí uma primeira diferença

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com o MO sueco, certamente pequena, mas caracterizando um estado de fato

que vai se confirmar sob outros aspectos. (tradução nossa)76

Nenhuma qualificação especial é exigida aos candidatos à Ombudsman. Para postular a

função é o bastante ser alemão, ter 35 anos completos (révolus) e ter cumprido um ano de

serviço militar. Eleito para um período de cinco anos, o Ombudsman pode ter o mandato

interrompido. Isso “é o que sempre ocorreu até aqui” (LEGRAND, 1970, p. 264) (tradução

nossa)77

, seja por pedido de demissão, exoneração pelo Bundestag ou morte do titular.

A principal explicação para o fracasso do Ombudsman na Alemanha foi a sua

dependência em relação ao Parlamento. De acordo com Legrand (1970, p. 274), “A instituição

não tem sentido a não ser que ela disponha de uma liberdade de ação total e que o único papel

do órgão que a elege consista a determinar, à partir do ponto de vista puramente técnico, o

melhor candidato possível.” (tradução nossa)78

.

A década de 1960 marcaria um período de forte expansão da instituição do

Ombudsman. A Nova Zelândia foi, provavelmente, o primeiro país da Common Law que o

acolheu como um meio de oferecer aos cidadãos um mecanismo de proteção frente à

Administração Pública. De acordo com Correia (1979), o país se sensibilizou para a instituição

do Ombudsman após um seminário realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), no

Ceilão, em 1959. A Inglaterra, berço da Common Law, caminharia algum tempo depois na

mesma direção. Em 22 de maio de 1967 o Parlamento aprovaria o “The Parliamentary

Commissioner Act”, com o propósito de estabelecer o Ombudsman para receber queixas dos

cidadãos e investigar os abusos cometidos pela administração. Em 1969, o Ombudsman seria

introduzido na Irlanda do Norte.

Ainda no final da década de 1960, a instituição chegaria à América do Norte,

desembarcando, primeiramente no Canadá. Em 1967, a Província de Alberta instituiu o seu

Ombudsman. Em maio do mesmo ano, ele seria criado na Província de New Brunswick. Um

Protecteur du Citoyen (ou Public Protector) seria criado em Quebec em 1968 e, na Província de

76

Sans doute le président ne peut-il nommer que des persones proposées par l’Ombudsman, sans doute la révocation

éventuelle ne peut-elle frapper des employés que sur proposition du Wehrbeauftragte. Sans doute, enfin, le personel

du service reste-t-il soumis au contrôle du Wehrbeauftragte pendant le temps où il accomplit sa fonction (...). Il n’en

reste pas moins qu’il y a là la manifestation d’une certaine dépendence à l’égard du Parlement. Si on y ajoute le fait

que le Wehrbeauftragte n’a pas de véritable suppléant, mais qu’il peut être remplacé, au cas d’empêchement, par

diverses persones, entre lesquelles le Bundestag peut faire son choix (...), on constatera lá une première différence,

mineure certes, mais caractéristique d’un état de fait, que d’autres points vont confirmer, avec le MO suédois. 77

C’est ce qui s’est toujours passé jusqu’ici. 78

L’institution n’a de valeur que si elle dispose d’une liberté d’action totale et si le seul rôle de l’organe qui l’élit

consiste à déterminer, à partir de points de vue purement techiniques, le meilleur candidat possible.

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Manitoba seria instituído o Ombudsman em 1969. Em 1971 e 1972, respectivamente, as

Províncias de Saskatchewan e da Nova Escócia criariam uma função análoga, encarregada de

conhecer as queixas dos cidadãos e investigar os casos em que um particular pudesse ser vítima

de abusos cometidos pela administração pública.

Esse movimento chegaria aos Estados Unidos na década de 1970, entrando nesse país

através de seus Estados Federados. Primeiro, foi o Hawai, em 1966, seguido de Nebraska (1969)

e Iowa (1972).

A instituição chegaria à Austrália em 1971 (Austrália Ocidental), 1972 (Austrália

Meridional) e 1973 (Victória). A entidade de origem sueca pode ser encontrada ainda na Guiana

(inglesa), Tanzânia, Gana e Índia. Israel instituiu um Controlador do Estado em 1949. Em 1971,

foi criada junto ao Controlador do Estado uma seção encarregada do recebimento de queixas dos

cidadãos, passando a funcionar de maneira análoga ao Ombudsman.

Mesmo a França, país que, segundo Correia (1979), destaca-se pela eficácia e prestígio

dos meios de proteção aos particulares, uma instituição semelhante ao Ombudsman foi criada em

1973, o Médiateur. Entretanto, o Mediateur francês escapa em muito às características do

Ombudsman sueco. Ele é nomeado pelo Conselho de Ministros, órgão do Poder Executivo, e não

pelo Parlamento, como na Suécia, e o acesso dos cidadãos a ele se dá apenas de maneira indireta,

sob a intermediação do parlamento.

Em 1976, o Ombudsman seria instituído em Portugal, sob o nome de Provedor de

Justiça. Em seu Artigo 23, a Constituição da República Portuguesa diz que

1. Os cidadãos podem apresentar queixas por acções ou omissões dos poderes

públicos ao Provedor de Justiça, que as apreciará sem poder decisório, dirigindo

aos órgãos competentes as recomendações necessárias para prevenir e reparar

injustiças.

2. A actividade do Provedor de Justiça é independente dos meios graciosos e

contenciosos previstos na Constituição e nas leis.

3. O Provedor de Justiça é um órgão independente, sendo o seu titular

designado pela Assembleia da República, pelo tempo que a lei determinar.

4. Os órgãos e agentes da Administração Pública cooperam com o Provedor de

Justiça na realização da sua missão.

Em 1982, após mudanças democráticas iniciadas no país depois da morte do General

Francisco Franco, em 1975, a Espanha adotou a instituição sueca, como

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Instituição que tutela os direitos fundamentais e as liberdades públicas da

cidadania, podendo supervisionar as atividades das administrações e órgãos que

gerenciam serviços públicos em todo o territorio nacional e das delegações

administrativas espanholas no exterior que atendem a cidadãos espanhois.

(tradução nossa).79

A Constituição espanhola determina que a eleição do Defensor del Pueblo seja feita em

conjunto pelas duas câmaras. Sua atuação pode ser de ofício ou por provocação de pessoa natural

ou jurídica.

3.2 As Ouvidorias públicas do Estado de São Paulo.

As Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo foram criadas em 1999,80

como entidade central do Sistema Estadual de Defesa do Usuário de Serviços Públicos

(SEDUSP), com a missão institucional de mediação das relações Estado-Sociedade, atuando

internamente como representantes dos cidadãos usuários81

de serviços públicos. Entre os seus

principais objetivos estão o de garantir o acesso à informação e promover a participação dos

cidadãos82

no planejamento e controle dos serviços públicos. De acordo com o que define a Lei

nº. 10.294, de 20 de abril de 1999, constituem direitos básicos dos cidadãos (1) o acesso à

informação, (2) a qualidade na prestação do serviço e (3) o controle adequado do serviço.

Para cumprir o primeiro direito – de acesso à informação –, todos os órgãos e entidades

públicas devem oferecer aos usuários informações precisas sobre os horários de funcionamento,

a localização, o tipo de atividade exercida, os procedimentos e dados necessários à prestação dos

serviços e a indicação do responsável pelo atendimento ao público. Segundo a Lei nº.

79

Institución que tutela los derechos fundamentales y las libertades públicas de la ciudadanía, para lo cual puede

supervisar la actividad de las administraciones y organismos que gestionan servicios públicos, en todo el territorio

nacional y de las delegaciones administrativas españolas en el extranjero que atienden a ciudadanos españoles. 80

Era Governador do Estado de São Paulo o senhor Mário Covas. 81

Embora possa parecer – ou mesmo ser – sutil, é importante distinguir entre cidadão e usuário de serviços públicos.

Designa-se por usuário de serviços públicos a pessoa que é beneficiária direta, de modo específico e divisível, dos

serviços de um órgão público bem delimitado. Cidadão procura fazer referência a uma condição de status de

igualdade desfrutado pelos membros de uma determinada comunidade. O cidadão pode não ser usuário direto de

determinados serviços públicos, como a educação ou a saúde, por exemplo. Contudo, como cidadão, a qualidade

desses serviços deveria lhe interessar, dado que seus efeitos positivos ou negativos disseminam-se e impactam toda

sociedade. 82

A Lei Estadual nº. 10.294/1999, que instituiu o SEDUSP (Sistema Estadual de Defesa do Usuário de Serviços

Públicos), faz referência somente a usuários de serviços públicos. Em seu texto de 35 artigos (sendo 4 inseridos nas

Disposições Transitórias), nem uma vez sequer aparecem as palavras ‘cidadão’ e ‘cidadania’. Entretanto, o Decreto

nº 44.074, de 1º de julho de 1999, que regulamentou o funcionamento das Ouvidorias, afirma logo em seu artigo

primeiro, inciso I que “Compete aos ouvidores do serviço público: I - exercer a função de representante do cidadão

junto à instituição em que atua (...)”.

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10.294/1999, o direito à informação será sempre assegurado, ressalvando-se as hipóteses de

sigilo previstas na Constituição Federal83

. Em cada órgão foi instituída uma Ouvidoria como a

área designada para receber solicitações de informações, denúncias, reclamações ou sugestões

(artigo 4º da referida lei) e a todas elas conceder o tratamento adequado.

O direito ao acesso à informação deve ser assegurado em cada órgão ou entidade

governamental por meio do atendimento pessoal, por telefone e pela internet. Deve-se oferecer

ao público, entre outros itens, comunicação visual adequada, minutas de contratos redigidas em

termos claros e com caracteres legíveis, informações sobre taxas e tarifas cobradas, bancos de

dados de interesse público contendo informações quanto a gastos, licitações e contratações.

Preferencialmente, a informação deve ser fornecida em meio computadorizado (artigo 5º da Lei

nº. 10.294/1999).84

O usuário tem direito a um serviço de qualidade (artigo 6º a Lei nº. 10.294/1999),

exigindo que ele seja prestado com polidez e respeito, assegurando-se a igualdade, exceção feita

aos casos de diferenciação previstos em lei. É proibido aos agentes públicos fazerem aos

usuários exigências além das previstas em lei, obriga-os a estabelecer horários compatíveis com

o bom atendimento ao público e a cumprir prazos e normas procedimentais. Para facilitar a

prestação dos serviços, a lei veda a solicitação de autenticação de documentos, que deve ser feita

pelo próprio agente público à vista dos originais – salvo quando a autenticidade do documento

não puder ser comprovada (artigo 7º da referida lei).

A lei estabelece que os usuários têm direito ao controle adequado do serviço. Para se

assegurar o cumprimento desses direitos, determinou a criação de Ouvidorias em todos os órgãos

do Governo do Estado de São Paulo. Em junho de 2012, segundo a Secretaria da Casa Civil,

havia cerca de 250 Ouvidorias Públicas instaladas.

Tipicamente, cada ouvidoria é formada por uma pequena equipe dirigida por um

Ouvidor. O Ouvidor é um funcionário destacado entre os seus pares do aparato burocrático

83

De acordo com o artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal, todos têm direito a receber dos órgãos

públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da

lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do

Estado. A Lei Federal nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, regulamentou o acesso à informação, bem como os

casos, as condições e os prazos em que uma informação (arquivos, documentos e bases de dados) poderá ser

declarada submetida a sigilo. 84

O Decreto Estadual nº 58.052, de 16 de maio de 2012, que regulamentou a aplicação da Lei Federal nº 12.527, de

18 de novembro de 2011, no âmbito dos órgãos e entidades do Governo do Estado de São Paulo, tornou as

exigências ainda mais rigorosas e claras. Nele, define-se que a informação é, como regra, pública e que o sigilo

constitui exceção, devendo, quando for o caso, ser estabelecido sempre por tempo limitado e justificado com

fundamento na lei. Foi determinada uma rigorosa política de permanente análise, classificação e desclassificação de

documentos. Instituiu-se a obrigatoriedade da transparência ativa, exigindo que todos os órgãos e entidades

publiquem as informações em locais específicos de seus sítios na internet, independente de solicitação externa.

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administrativo, a quem se atribui a função de proteger e defender os direitos dos usuários (artigo

8º da Lei n. 10.294/1999). As principais competências das Ouvidorias, especificadas no artigo 9º

da lei supracitada, são:

Avaliar a procedência de sugestões, reclamações e denúncias e encaminhá-las

às autoridades competentes, inclusive à Comissão de Ética, visando à:

I - melhoria dos serviços públicos;

II - correção de erros, omissões, desvios ou abusos na prestação dos serviços

públicos;

III - apuração de atos de improbidade e de ilícitos administrativos;

IV - prevenção e correção de atos e procedimentos incompatíveis com os

princípios estabelecidos nesta lei;

V - proteção dos direitos dos usuários;

VI - garantia da qualidade dos serviços prestados.

Semestralmente, as Ouvidorias devem apresentar relatório à autoridade superior

prestando contas de suas atividades e oferecendo sugestões para o aprimoramento dos serviços.

O funcionamento das Ouvidorias criadas pela Lei n. 10.294/1999 foi regulamentado

pelo Decreto Estadual n. 44.074, de 1º de julho de 1999. Segundo o decreto, o Ouvidor deve agir

como representante do cidadão junto ao órgão ou entidade na qual atua, devendo proteger e

defender os direitos dos usuários de serviços públicos. Para desempenhar as suas funções, ele

terá livre acesso a todos os setores do órgão ou entidade onde exerce as suas funções, para que

possa apurar e propor as soluções requeridas em cada situação. Ele deve identificar problemas no

atendimento ao usuário, propor a correção de erros, omissões e abusos, atuar na prevenção de

conflitos e estimular a participação do cidadão na fiscalização e planejamento dos serviços

públicos (artigo 1º do Decreto Estadual n. 44.074/99).

O Ouvidor deve reportar-se diretamente ao principal dirigente do órgão (artigo 2º do

Decreto Estadual nº. 44.074/99) e exercer as suas funções com independência e autonomia, sem

qualquer ingerência político-partidária (artigo 3º do decreto mencionado). Ele é investido de

autoridade para:

I - solicitar informações e documentos ao órgão público em que atua;

II - participar de reuniões em órgãos e em entidades de proteção aos usuários;

III - solicitar esclarecimentos dos funcionários para poder esclarecer a questão

suscitada por um cidadão;

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IV - propor modificações nos procedimentos para a melhoria da qualidade;

V - formar comitês de usuários, para apurar a opinião do usuário;

VI - buscar as eventuais causas da deficiência do serviço, evitando sua

repetição.

Ainda de acordo com o decreto, o Ouvidor sempre responderá às demandas dos

cidadãos, no menor tempo possível, com clareza e objetividade (artigo 4º). Ao ocupante do cargo

de Ouvidor o decreto estabeleceu a garantia de exercício da função pelo tempo mínimo de um

ano, permitida a recondução de acordo com decisão do dirigente do órgão (artigo 5º).

Embora as Ouvidorias Públicas do Governo do Estado de São Paulo tenham sido

criadas 1999, a ideia de estabelecimento de um órgão de proteção ao usuário dos serviços

públicos remonta ao fim da década anterior. Mais precisamente ao ano de 1988, quando o Brasil

convocou uma Assembleia Nacional Constituinte, com o objetivo de elaborar uma nova

constituição para o país, encerrando o ciclo de governos autoritários, iniciado em 1964.

Concluía-se uma lenta transição política que se desenvolvia desde o início da década de 1980,

com a eleição direta de Governadores dos Estados, Prefeitos das Capitais e das cidades

consideradas pelos governos militares como áreas de segurança nacional.

Apesar desse novo ciclo democrático, em que as eleições livres e diretas passariam a ser

empregadas para a escolha dos membros do Parlamento e dos principais dirigentes do Poder

Executivo nos três níveis da Federação, a cultura administrativa brasileira pouco se modificara,

conservando grande parte das suas características de isolamento e autoritarismo nas relações com

a sociedade.

As pressões por eleições livres e diretas, imortalizadas na memorável campanha das

“Diretas-já” compunha um quadro em que a sociedade manifestava o desejo de se tornar mais

ativa no controle da administração pública.

Em 1988, durante o processo constituinte, o então Senador Mário Covas, líder do seu

partido no Senado, já tinha as ouvidorias em sua mente, fazendo inserir no Capítulo 5º da

Constituição, que trata da pessoa humana, os incisos trinta e dois e trinta e três, relacionados à

defesa do consumidor e ao acesso dos cidadãos às informações produzidas e custodiadas por

órgãos públicos. Ambos os incisos foram propostos pelo Senador Mário Covas.

O inciso trinta e dois, que trata da defesa do consumidor, diz que: “o Estado promoverá,

na forma da lei, a defesa do consumidor”. Cerca de dois anos mais tarde, em, 11 de setembro de

1990, a Lei Federal nº. 8.078 faria a regulamentação desse inciso, instituindo o Código de Defesa

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do Consumidor, visando a regulação das relações de consumo. A vigência do código promoveria

uma revolução na mentalidade das empresas privadas, que começariam a atuar fortemente no

planejamento da qualidade, passando de um enfoque corretivo para uma abordagem preventiva,

visando reduzir os riscos de exposição a processos, autuação e danos à imagem do

empreendimento.

O inciso trinta e três preocupava-se com o estabelecimento de garantias de proteção e

defesa dos cidadãos em relação às organizações prestadoras de serviços públicos. De acordo com

o referido inciso

todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular,

ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de

responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da

sociedade e do Estado.

Entretanto, a regulamentação do inciso trinta e três não recebeu a mesma atenção

atribuída ao anterior, que levou à promulgação do Código de Defesa do Consumidor. Em 1995,

ano em Mario Covas chegaria à chefia do Governo do Estado de São Paulo pela primeira vez,

não havia ainda lei regulamentando a aplicação do inciso nas relações entre os cidadãos e a

administração pública. No primeiro ano de mandato, o Governador enviou mensagem à

Assembleia Legislativa do Estado, propondo a instituição formal de Ouvidorias em todos os

órgãos do Governo. Contudo, a proposta encontrou resistências entre os Parlamentares e até

mesmo entre auxiliares diretos do Governador. E não seria aprovada ao longo de todo seu

primeiro mandato. Covas seria reeleito. No início do seu segundo mandato de Governador,

quatro meses após a sua posse, em 20 de abril de 1999, o Parlamento Estadual aprovaria a Lei nº

10.294, contendo as diretrizes para a proteção e defesa dos usuários de serviços públicos no

âmbito da administração estadual. Além do estabelecimento dos direitos básicos do cidadão, era

criado um sistema de proteção ao usuário de serviços públicos, integrado por uma rede de

Ouvidorias, encarregada de assegurar a aplicação desses direitos no interior da administração de

cada órgão. Três meses depois, em 1º de julho, o funcionamento das Ouvidorias seria

regulamentado pelo Decreto nº 44.074/1999.

De acordo com Vera Melo (Ouvidora do DETRAN), assessora de Mário Covas desde

os tempos em que ele era Deputado,

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o ouvidor era o ouvidor dele (Mário Covas: grifo). Ele não falava exatamente...

não falava com muita gente, porque era um assunto que pouca gente entendia.

Historicamente, o Ouvidor que a gente conhecia era o dedo duro do rei de

Portugal. Então, não era uma coisa muito bem vinda. Mas, ele achava que este

tinha que ser o nome; que a gente não tinha que chamar de Ombudsman. Era o

Ouvidor dele. Quando ele mandou a mensagem para a Assembleia (Legislativa:

grifo) em 1995, ele tinha em mente criar seus Ouvidores. As pessoas que iam

contar pra ele como estava o Governo. E ele não criou o Ouvidor Geral porque

ele dizia que o Ouvidor Geral era ele.

Edson Vismona, ex-Secretário da Justiça de Mário Covas, corrobora a explicação de

Vera. De acordo com Vismona, a Constituição de 1988 inseriu em seu texto a criação de um

Código de Defesa do Consumidor (CDC). Já em 1999, constituiu-se um grupo nacional, formado

por representantes das empresas e de entidades ligadas à defesa dos interesses dos consumidores,

para debater e elaborar um anteprojeto para o código. Em 1990 o CDC seria promulgado,

entrando em vigor em 1991.

O CDC, explica Vismona, tinha um caráter fortemente punitivo, fazendo surgir nas

empresas a preocupação com a ideia de prevenção. Uma das estratégias adotadas por algumas

empresas e associações empresariais foi a criação dos Ombudsmen, incumbidos de receber as

reclamações dos consumidores e buscar uma solução negociada em âmbito administrativo. Entre

outras empresas, a Folha e São Paulo, o Pão de Açúcar, o Banco Nacional e a Associação

Brasileira da Indústria de Máquinas (ABIM)85

haviam instituído Ombudsman para atuar na

recepção de demandas dos seus clientes. Édson Vismona tornara-se o primeiro Ombudsman da

ABIM. No âmbito da Administração Pública, as Prefeituras de Curitiba e de Santos, o PROCON

e o IPEM (Instituto de Pesos e Medidas) vinham conduzindo as primeiras experiências.

Em 1994, o então Ombudsman da ABIM, Édson Vismona, foi se integrar à equipe

encarregada da elaboração do Programa de Campanha do Senador Mário Covas ao Governo do

Estado de São Paulo. Ele participou da Equipe Temática ‘Defesa do Contribuinte’, que se reunia

na Rua Curitiba, em São Paulo, sob a coordenação do professor Angarita, da FGV de São Paulo.

Cada área temática contava com três subcoordenadores: um representava o segmento acadêmico,

outro a sociedade. O terceiro era uma pessoa ligada ao partido do candidato, alinhado com a sua

ideologia. O Ombudsman da ABIM tornou-se o subcoordenador de sociedade da área temática

‘Defesa do Contribuinte’. Os outros subcoordenadores da equipe eram Rubens Naves, professor

da PUC de São Paulo e Luiz Olavo Baptista, da USP. A equipe recolhia sugestões e montava o

85

Atualmente, ABIMAQ.

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programa de governo. Entre as propostas que passaram a integrar o programa, estava a criação

das Ouvidorias Públicas.

“Demonstrando rara sensibilidade”, afirmou Vismona, Mário Covas tinha na cabeça a

ideia de criar um código de defesa do contribuinte. “Ele compreendia a chegada de um novo

tempo, em que o diálogo se fazia necessário”, observou Vismona. E acrescentou:

Político gosta de falar. Não gosta de ouvir. O Covas queria ouvir. E no ouvir,

debater. No debater, convencer ou ser convencido. Ele queria discutir, ele

queria conversar. Por isso que ele tinha esse apego à Ouvidoria. E queria

defender o governo dele. E era o governo dele. Porque era ele que havia sido

eleito. O Governador começava o dia lendo a coluna do leitor, que ele

considerava a parte mais importante do jornal. Várias vezes, ele ligava para o

leitor que escrevera para o jornal ‘O Estado de S. Paulo’ e para a ‘Folha de S.

Paulo’.

Normalmente, nota Vismona, os programas de governo tratam da questão do transporte,

da saúde, da educação, da infraestrutura, do orçamento e da segurança. Nenhum outro programa

de governo focalizou essa questão da defesa dos contribuintes. E embora o ex-Governador

falasse em defesa do contribuinte, de acordo com Vismona, sua visão era muito mais ampla,

ultrapassando a dimensão da relação com o fisco, preocupando-se verdadeiramente com a defesa

do usuário de serviços públicos. Era um código de defesa do consumidor de serviço público que

ele tinha em mente, acredita Vismona.

Mário Covas reunia duas grandes qualidades, não comum nos homens públicos, ressalta

Vismona: “além da sensibilidade política, ele era um estadista, pois pensava a estrutura do

Estado em face aos seus desafios - e não pensando na próxima eleição”. Ele era absolutamente

ligado aos detalhes. Por isso, ele discutiu todas as propostas, incluindo a da criação da Ouvidoria.

Recorda Vismona que após eleito, ele reuniu a equipe do programa de governo e os desafiou a

colocar em prática o que eles tinham sido bons para colocar no papel.

Belizário dos Santos, que fora o coordenador da equipe de Defesa da Cidadania no

programa de governo, tornou-se o primeiro Secretário de Justiça no Governo de Mário Covas.

Edson Vismona, então Ombudsman da ABIM, foi convidado para assumir as funções de

Secretário-Adjunto da Justiça.

De acordo com Vismona, a Secretaria de Justiça desempenhou papel estratégico no

Governo de Mário Covas. Embora não contasse com muitos recursos financeiros, ela mantinha

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interface com todas as outras secretarias, por meio da coordenação de programas transversais,

como o Programa de Qualidade no Serviço Público e o Programa de Direitos Humanos.

Ao lado de iniciativas, como o estabelecimento de juizados dentro do PROCON e a

criação do Instituto de Terras, iniciou-se o desenvolvimento do anteprojeto da lei de defesa do

usuário de serviços públicos, empreendimento que contava com a participação de professores da

PUC/SP e da USP.

A primeira proposta de implantação de um código de defesa do contribuinte previa a

criação de uma Ouvidoria Geral do Estado de São Paulo. Contudo, recorda Vismona, o

Governador discordou da criação de uma única Ouvidoria para todo Governo e para todo Estado.

De acordo com Vismona, ele disse que não queria um ‘Senador’ sentado ali ao seu lado, sem

estrutura, acompanhando o Serviço Público. Covas disse que queria um sistema de ouvidoria, em

que cada órgão público tivesse um Ouvidor. Surgia a primeira proposta de criação de uma rede

paulista de Ouvidorias Públicas, com base no projeto que levaria à Lei nº 10.294/1999.

A lei, segundo Vismona, institucionalizava um sistema estruturado em quatro princípios

fundamentais:

1) O princípio da qualidade, pois se entendia que para cuidar da defesa do usuário de

serviços públicos era necessário oferecer um serviço de qualidade e estimular internamente o

desenvolvimento de uma cultura voltada para a qualidade. Em paralelo, já vinha sendo

implantado o programa de qualidade no serviço público;

2) O princípio da participação, no sentido de que era necessário criar canais de interação

com os cidadãos, para que eles pudessem oferecer sugestões, fazer reclamações e oferecer

denúncias de abusos;

3) O princípio do controle, ou seja, o estabelecimento de mecanismos por meio dos

quais os cidadãos pudessem acompanhar o desenvolvimento da Administração Pública. Surge,

por exemplo, o Poupatempo, uma organização sem espaços fechados, permitindo ao cidadão

verificar o real esforço que o funcionário faz para realizar aquilo que foi solicitado;

4) O princípio da informação, baseado na ideia de que é preciso garantir a entrega da

informação ao usuário. Criou-se o Portal do Cidadão, o Portal Prestando Contas e o Portal do

Governo Aberto, reunindo bases de dados e uma ampla gama de informações sobre os resultados

dos programas e ações do Governo do Estado de São Paulo. Nesses portais, publicam-se,

também, informações sobre os serviços públicos, incluindo-se os locais onde eles são fornecidos,

as condições para obtê-los e os procedimentos aplicáveis, possibilitando ao cidadão acompanhar

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a execução de cada etapa de tudo que ele solicita. As Ouvidorias surgiram neste contexto,

destinadas à proteção e à defesa dos direitos dos cidadãos.

A Lei nº 10.294/1999 institucionalizava a rede de Ouvidorias Públicas. Todos os órgãos

– os já existentes e os que viessem a ser criados – passaram a ser obrigados a instituir Ouvidorias

para atuar como canal institucional encarregado de ouvir o cidadão.

De acordo com Vismona, com a criação de um sistema de Ouvidorias Públicas em lugar

de um Ouvidor Geral, Mário Covas queria quebrar a ideia de guichê na Administração Pública.

Segundo Vismona, Mario Covas dizia que “não podemos jogar os nossos guichês nas costas do

cidadão”. O Governador defendia que

era necessário harmonizar a Administração Pública em função do cidadão.

‘Vamos recepcionar o que ele tiver pra nos falar e nós vamos fazer a

distribuição aqui dentro, pois, para o cidadão o governo é uma coisa só’. Então,

o sistema de ouvidoria inovou nisso, quebrando a ideia do guichê. O cidadão

podia reclamar de um problema da educação ou da saúde com o Ouvidor da

Secretaria de Transportes. O Ouvidor não encaminhava o cidadão para um outro

guichê, da Secretaria da Educação ou da Saúde. Ele, o próprio Ouvidor da

Secretaria de Transportes, é que se encarregava de ouvir, registrar e encaminhar

à outra Secretaria (Vismona).

Entretanto, criadas as ouvidorias, nenhuma das primeiras pessoas designadas para a

função tinha experiência. A formação dos primeiros ouvidores foi apoiada pela Associação

Brasileira de Ouvidores/Ombudsman (ABO), também recém-criada. A ABO reuniu experiências

e começou a difundir conceitos e valores, dando forma a essa entidade brasileira, que se inspira

na instituição do Ombudsman escandinavo, mas que é dela bastante distinta - observa Vismona.

Um quadro comparativo entre o Ombudsman sueco e as Ouvidorias paulistas é apresentado na

seção 8.2 do capítulo dedicado à discussão dos resultados.

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CAPÍTULO IV

A PESQUISA.

4.1 Considerações gerais sobre a execução da pesquisa de campo.

Esta pesquisa de campo se preocupou em conhecer o sistema de Ouvidorias do Governo

do Estado de São Paulo, colocando em evidência suas principais características institucionais, os

valores que sustentam o seu funcionamento, seus processos de trabalho e sua relação com o

sistema de gestão das organizações públicas. Para levar a efeito esses objetivos utilizou-se de

quatro instrumentos de coleta de dados: entrevistas semiestruturadas, análise de documentos,

registros em arquivos e observação direta. Dessas fontes, as evidências coletadas por intermédio

das entrevistas mostraram-se as de maior relevância. Entretanto, os documentos foram úteis para

a coleta de evidências estáveis, como os memorandos de troca de comunicações entre as

Ouvidorias e as áreas de gestão das organizações, colocando em relevo momentos de tensões que

dificilmente seriam adequadamente retratados nas entrevistas.

As informações contidas em arquivos em formato digital forneceram exemplos com os

quais se procuram esclarecer de maneira complementar aquilo que era explicitado nos relatos

orais. As observações foram realizadas antes e após as entrevistas, no mesmo dia em que estas

foram empreendidas, e forneceram indicações sobre as interações entre os funcionários das

Ouvidorias, entre estes e os cidadãos-usuários, bem como sobre o clima geral no ambiente de

trabalho. Já os artefatos possibilitaram o estabelecimento de inferências sobre a acessibilidade às

Ouvidorias, como a facilidade de acesso.

Concluída a fase de coleta de dados, criou-se categorias de análise, no interior das quais

inseriu-se as informações coletadas por meio das diversas fontes de evidências. As categorias

formadas foram formadas em um total de 10, conforme descrito no quadro 05.

Como já foi mencionado, o relato contido neste capítulo procurou integrar as

informações provenientes de quatro fontes de evidências, descrevendo-as em uma mesma e única

estrutura. Cada categoria criada tornou-se uma seção específica. Assim, as principais

informações recolhidas com as entrevistas são inseridas, principalmente sob a forma de citações

diretas. O conhecimento obtido por meio das observações, dos registros em arquivos e da análise

documental foi utilizado como recurso complementar. Por vezes, longas reflexões desenvolvidas

pelos sujeitos da pesquisa foram interpretadas e não estão apresentadas entre aspas. Contudo, em

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todas as situações, manteve-se estrita fidelidade às ideias e conceitos expressos pelos seus

autores.

Quadro 05: Categorias de análise dos dados empíricos.

Categorias Descrição

01) Função das Ouvidorias. Descreve a percepção dos sujeitos da pesquisa sobre o papel das Ouvidorias

para as suas respectivas organizações.

02) Motivos pelos quais os

cidadãos recorrem à Ouvidoria. Classifica, a partir das demandas dos cidadãos, as razões que os levam a

entrar em contato com a Ouvidoria.

03) Formas de atuação do

Ouvidor. Descreve as formas pelas quais os Ouvidores atuam no desempenho de suas

atividades.

04) Poder e autonomia do

Ouvidor. Descreve as percepções dos sujeitos da pesquisa sobre o poder e a autonomia

de que desfrutam os Ouvidores de suas respectivas organizações.

05) A racionalidade do trabalho

do Ouvidor. Identifica os valores que os sujeitos acreditam fundamentar a atuação dos

Ouvidores.

06) Importância estratégica das

Ouvidorias. Especifica a visão dos participantes da pesquisa sobre a relevância das

Ouvidorias para gestão estratégica das suas respectivas organizações.

07) Controle social. Reúne as informações que emergem, sobretudo, dos relatos orais, sobre a

natureza do controle propiciado pela atuação das Ouvidorias.

08) Expectativas em relação ao

trabalho dos Ouvidores. Agrupa os relatos dos sujeitos sobre a expectativa que acreditam que os

cidadãos e a organização têm em relação à atuação das Ouvidorias.

09) Avaliação do trabalho da

Ouvidoria. Descreve a maneira pela qual as Ouvidorias procuram conhecer a percepção

dos cidadãos e dos gestores a respeito da qualidade do seu desempenho.

10) Competências necessárias

ao Ouvidor.

Reúne as percepções dos sujeitos sobre as competências que consideram

importantes para o desempenho da função de Ouvidor Público.

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador.

4.2 Caracterização dos sujeitos participantes da pesquisa

Poupatempo

Ouvidor: José De Ambrosis Pinheiro Machado, 51 anos. Graduado em Direito, com

especialização em Ouvidoria, Responsabilidade Social e Terceiro Setor. Está no serviço público

desde 1997 e é Ouvidor desde 1999. A Ouvidoria está localizada no edifício da Rua Boa Vista,

162 - décimo andar. A entrevista foi realizada no dia 03 de janeiro de 2013, das 14h16min às

16h30min.

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Gestor entrevistado: Ilídio San Martin Machado, 45 anos. Graduado em Ciências Sociais e

Administração de Empresas e MBA em Logística Empresarial. Está no serviço público desde

1988 (no Poupatempo há 15 anos). Dirige a Superintendência de Novos Projetos desde 2006. A

entrevista foi realizada no dia 15 de abril de 2013, das 10h23min às 11h40min.

UNICAMP

Ouvidora: Adriana Eugênia Alvim Barreto, 47 anos. Graduada em Pedagogia, com

especialização em Mediação e Administração Escolar e Orientação Educacional. Está no serviço

público desde 1989 e é Ouvidora desde 2003. A Ouvidoria está localizada dentro da UNICAMP,

na Avenida Roxo Moreira, 1831, terceiro andar, na Cidade de Campinas. A entrevista foi

realizada no dia 17 de dezembro de 2012, das 13h30min às 14h43min.

Gestor entrevistado: José Luiz Silveira, 67 anos. Graduado em Ciências da Computação. Está no

serviço público desde 1970. Dirige o Centro para Manutenção de Equipamentos da UNICAMP –

CEMEQ – desde 2002. A entrevista foi realizada no CEMEQ no dia 17 de dezembro de 2012,

das 10h10min às 11h25min.

DETRAN

Ouvidora: Vera Melo, 71 anos. Graduada em História. Está no serviço público desde 1988 e é

Ouvidoria há 15 anos: doze anos no Metrô e há três no DETRAN. A Ouvidoria está localizada

na Rua João Brícola, 32, quinto andar. A entrevista foi realizada no dia 11 de dezembro de 2012,

das 09h07min às 10h45min.

Gestor entrevistado: Jânio Loyola, 34 anos. Graduado em Administração de Empresas, com pós-

graduação em Orçamento Público. Está no serviço desde 2009. A entrevista foi realizada no dia

06 de maio de 2013, das 15h50min às 17h10min.

Secretaria da Saúde

Ouvidora: Elza Ferreira Lobo, “pra lá dos 70 anos”, graduada em Educação e Comunicação

Social. Fez pós-graduação na Universidade Católica do Chile, no Instituto Latinoamericano de

Desarrollo – CELAM, de Santiago do Chile e no Instituto Ecumênico a Serviço do

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Desenvolvimento dos Povos, de Paris. Está no serviço público desde 1986 e é Ouvidora desde

2000. A entrevista foi realizada no dia 19 de fevereiro de 2013, das 12h00min às 13h49min.

Gestor entrevistado: Sérgio Antônio Bastos Sarrubbo, 64 anos. Médico, especializado em

Pediatria, e pós-graduado em Gestão de Saúde e Administração Hospitalar e sistemas de saúde.

Está no serviço público desde 1977. É Diretor Técnico do Hospital Infantil Darcy Vargas desde

2004. A entrevista foi realizada no dia 03 de maio de 2013, das 14h20min às 15h21min.

Secretaria da Fazenda

Ouvidor: Florêncio dos Santos Penteado Sobrinho, 49 anos, é graduado em Comunicação Social,

com Mestrado em Comunicação e Semiótica. Está no serviço público desde 1995 e é Ouvidor

desde 2002. A entrevista foi realizada no dia 05 de dezembro de 2012, das 09h25min às

12h14min. Devido a algumas interrupções, o tempo útil de útil de gravação foi 2h39min.

Gestor entrevistado: Rubens Peruzin, 52 anos. Graduado em matemática. Está no serviço público

desde 1985. É Diretor do Departamento de Despesa de Pessoal do Estado desde xxx. A

entrevista foi realizada no dia 12 de abril de 2013, das 09h10min às 10h00min.

Conselho de Transparência do Estado de São Paulo

Entrevista exploratória realizada em caráter complementar: Édson Vismona, 54 anos. Graduado

em Direito, com especialização em Direito Internacional. Atualmente, é o Presidente do

Conselho de Transparência do Estado de São Paulo. Foi Ombudsman da Associação Brasileira

da Indústria de Máquinas (ABIM) e Secretário da Justiça durante a gestão do Governador Mário

Covas em seu segundo mandato (1999 – 2002)86

. A entrevista teve caráter exploratório. Por isso,

não foi integrada à parte dos resultados. Contudo, considerou-se necessário entrevistá-lo com o

objetivo de determinar as motivações para a instituição da rede de Ouvidorias Públicas do Estado

de São Paulo. A indicação do Dr. Vismona surgiu durante o processo de realização das

86

Mario Covas governou São Paulo por dois mandatos. O primeiro, entre 1995 e 1998, Covas cumpriu

integralmente, tendo se afastado da chefia do Governo no período de campanha à reeleição, sem contudo, renunciá-

lo. Assumiu o segundo mandato em janeiro de 1999, afastando-se do comando do executivo paulista em 22 de

janeiro de 2001, para tratar de um câncer. Covas faleceria em 6 de março daquele ano. Geraldo Alckmin, Vice-

Governador, assumiria o Governo para completar o mandato de Covas até 2002. Édson Vismona permaneceria à

frente da Secretaria da Justiça.

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entrevistas com os Ouvidores, sobretudo, quando o pesquisador tentava identificar as motivações

políticas associadas à criação das Ouvidorias. Quatro dos cinco Ouvidores participantes da

pesquisa sugeriram que ele fosse entrevistado com essa finalidade. As informações obtidas nessa

entrevista foram muito úteis para a construção do item 3.2 (Capítulo III). A entrevista foi

realizada no dia 20 de junho de 2013, das 14h25min às 15h55min.

4.3 As entrevistas

4.3.1 Função das Ouvidorias.

Para Florêncio (Ouvidor da Secretaria da Fazenda), as ouvidorias são um importante

instrumento da sociedade democrática moderna. Elas representam o reconhecimento do Estado

de que ele precisa prestar contas à sociedade. “Quando alguém reclama, denuncia ou sugere

alguma coisa, a Ouvidoria leva essa manifestação em frente, inserindo a opinião do cidadão no

processo decisório da organização pública”, explica Florêncio.

A missão da Ouvidoria – observa Florêncio – é a de “facilitar a transformação social –

não de fazê-la, pois o Ouvidor só tem poder na comunicação dos fatos e não para mandar.

Quando eu permito que o cidadão venha e fale, eu acolho, eu devolvo. Há uma pedagogia nisso

aí. Também, eu estou permitindo que a sociedade continue no processo de transformação e de

geração de novos conhecimentos, novos valores (...).” O Ouvidor é um facilitador e um

catalisador das transformações sociais, diz Florêncio.

Florêncio entende que, embora seja de difícil realização, a Ouvidoria é um local onde a

imparcialidade precisa ser mantida: “A Ouvidoria não deve - e não pode - enxergar as coisas

com os olhos do cidadão”, afirma. Ela tem que ser imparcial, até para conseguir ajudar o

cidadão. É muito difícil ser imparcial, pois a primeira coisa a fazer é conhecer todas as regras,

leis, normativas, contratos. Existem casos em que as pessoas sentam-se na Ouvidoria e choram.

Nota-se que a pessoa precisa daquilo que ela está solicitando, mas é necessário manter a

imparcialidade, esclarece Florêncio. “Não se está a confrontando com o órgão público, mas com

os seus pares na sociedade”, explica Florêncio. Às vezes, “alguém reclama que não conseguiu

pagar o IPVA até o dia que teve o desconto, mas outros nas mesmas condições o fizeram”.

Mas, além do cidadão, as Ouvidorias são, também, muito importantes para a

organização, diz Florêncio. O paradigma da Ouvidoria, a ideia que a identifica, é o modelo da

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Ouvidoria que é instituída para receber reclamações. Contudo, a Ouvidoria deve ser vista como

uma poderosa ferramenta de gestão estratégica da organização. Ela está vinculada à pessoa que

ocupa a posição mais elevada na hierarquia da organização, no caso de uma Secretaria de Estado,

a Ouvidoria se reporta ao Secretário da pasta. Então, ela constitui um mecanismo de feedback, de

retroalimentação de informações puras em um sistema de gerenciamento da coisa pública. A

informação pura chega sem filtros gerenciais diretamente à pessoa com mais elevada

responsabilidade pela tomada de decisões gerenciais e estratégicas. A Ouvidoria consegue

trabalhar com números que são amostras representativas. Dez casos, na verdade, podem estar

representando mil ocorrências. Alguns poucos casos podem indicar falhas rotineiras. Florêncio

fornece um exemplo, narrado a seguir, ilustrando o seu ponto de vista:

Tudo se passou no ano de 2008 na Secretaria da Fazenda, quando houve um problema

no sistema de pagamento do IPVA. O IPVA é um tributo que tem uma data exata para ser pago.

Quem perde o prazo é punido com multa e juros. Em um dia, a Ouvidoria da Secretaria da

Fazenda recebeu 64 reclamações, indicando que o sistema estava com problemas. Segundo

Florêncio, é um número pequeno, quando cotejado aos milhões de proprietários de automóveis

no Estado de São Paulo. Mas, o que era estratégico nessa informação era que ela indicava a

existência de falhas em um sistema que é central para o órgão e que afeta a vida de milhares de

cidadãos. Muitos desses cidadãos, diz Florêncio, não têm muita disposição para fazer

reclamações, embora possam estar dispostos a se vingar de alguma outra maneira. A partir das

reclamações, a organização pública pode agir para evitar mais prejuízos a milhares de pessoas

atingidas, que, provavelmente, encontrariam maneiras de se vingar, atacando o governo,

sonegando impostos, escrevendo para os meios de comunicação ou ingressando com ações na

justiça. Desde as primeiras manifestações, recebidas na manhã daquele dia, o Ouvidor manteve-

se em contato com o Secretário da pasta. Ao final do dia, uma última análise do problema foi

realizada pelo Ouvidor com o Secretário da Fazenda, decidindo-se pela imediata prorrogação do

prazo de pagamento por mais dois dias.

Elza Lobo (Ouvidora da Secretaria da Saúde) entende que a missão essencial da

Ouvidoria é de orientação ao usuário: “as pessoas chegam aqui sem rumo”. O papel fundamental

da Ouvidoria é garantir que as pessoas saiam com a informação correta sobre onde elas devem ir

para conseguir o que estão procurando. “Às vezes”, explica Elza, “lá no município ou no próprio

bairro tem o atendimento, mas a pessoa não acredita naquele atendimento. Quer é vir para o

nível central, achando que tem mais possibilidades”. Elza fornece um exemplo dessa situação,

em que a falta de informação e a procura da autoridade para equacionar problemas na área da

saúde, levou a um conflito entre a Ouvidoria e o Gabinete do Governador do Estado. Lembra

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Elza que o Gabinete do Secretário da Saúde recebeu uma reclamação enviada pela assessoria do

Governador. Tratava-se de uma queixa de uma mãe. Segundo dizia, o filho não tinha sido

atendido corretamente dentro do Hospital das Clínicas. Após entrar em contato com a Diretora

do Hospital, descobriu-se que a criança não havia passado pelas suas dependências, pois não

havia nenhum registro dela. Provavelmente, havia sido atendido no quadrilátero87

, mas não no

Hospital das Clínicas. Depois de muita pesquisa, constatou-se que ele havia sido atendido no

Centro de Saúde da Escola da Faculdade de Saúde Pública. Elza enviou ao Centro de Saúde o

documento recebido do Palácio dos Bandeirantes, cujo relato da mãe era tenebroso. Segundo

Elza, não havia problema algum. O garoto havia sido atendido normalmente, mas “a mãe, aquela

superprotetora, (...) começou a insinuar que o tratamento não era correto (...)”. Elza informou o

Gabinete do Secretário da Saúde e o Palácio dos Bandeirantes. “O cidadão lá do palácio acabou

ligando pra pedir desculpas, porque tinha sido grosseiro”, diz Elza.

Elza considera que a Ouvidoria representou um passo importante na relação do gestor

com o usuário, pois o gestor pode acompanhar de perto o que a população está pensando. Em

uma sociedade que havia superado o período autoritário, diz Elza, “o Covas foi muito feliz

quando ele impulsionou as ouvidorias”. Como Prefeito de São Paulo, explica Elza, “ele já tinha

começado um trabalho, que não era Ouvidoria, mas era dele estar presente em todas as atividades

e ouvir a população. Então, ele fez muitas caminhadas pela periferia de São Paulo”.

Elza explica que não trabalhou diretamente com Mário Covas. Mas como era

funcionária da Secretaria da Saúde, acompanhava-o no tempo em que ele foi Prefeito de São

Paulo (1983–1986: grifo), em seus deslocamentos pela cidade. Ela recorda com nostalgia uma de

suas muitas idas aos bairros periféricos de São Paulo, para dialogar com a população. Esses

deslocamentos eram realizados nos finais de semana, sobretudo aos sábados pela manhã: Elza

conta: “eu me lembro quando a gente foi inaugurar pela prefeitura uma unidade lá em Itaquera.

Era um fim de tarde chuvoso. Ele virava pra população... vocês estão satisfeito com isso aqui?”,

referindo-se a alguma coisa que não funcionava bem ou que fora mal feita pela Prefeitura. E ele

continuava, conta Elza: “onde você trabalha? Quanto tempo você leva pra chegar até seu local de

trabalho? Não tinha que ter outra forma? E aí ele fazia com que as pessoas fossem pensar no

Metrô, porque naquele momento não tinha Metro em Itaquera”.

Essa preocupação de fazer com que as pessoas assumissem os seus direitos e os

exigissem junto aos governantes – inclusive dele próprio -, era uma preocupação permanente do

Mário Covas, explica Elza. E esse era o norte que ele seguia quando criou as Ouvidorias

87

Região da Avenida Doutor Arnaldo, em São Paulo, próxima à sede da Secretaria Estadual da Saúde, na qual está

localizado um grande número de hospitais públicos, estaduais e municipais.

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Públicas, em 1999. “Eu acho que ele queria realmente um contato mais direto com a população”,

diz Elza.

Elza acredita que o ex-Governador Mario Covas via na ouvidoria mais do que um lugar

de atendimento passivo à população, mais do que um espaço para que as pessoas se dirigissem

para reclamar. Ele via na ouvidoria um lugar de conscientização dos cidadãos sobre os seus

direitos: “era a própria visão de um administrador que quer resolver as necessidades da

população e percebe que nem sempre a população está exigindo do gestor aquilo que ela tem

direito”. Por isso, a lei que instituiu as ouvidorias atribui a elas a organização de grupos de

cidadãos para participar da administração, prerrogativa que não vem sendo atendida pelas

Ouvidorias, lamenta Elza.

Adriana (Ouvidora da UNICAMP) entende que “a Ouvidoria é uma entidade

extremamente valiosa para uma sociedade que pretende se desenvolver em bases democráticas”.

A missão da Ouvidoria é a de “aplicar a escuta qualificada”. Escuta qualificada significa ouvir de

forma isenta, com imparcialidade, incluindo o juízo pessoal. “Eu escuto o que aconteceu com

alguém, pode ser pouco importante na minha concepção, mas para ele aquilo é significativo.

Então, essa escuta é qualificada, com respeito, fazendo esse processo dialógico pedagógico, de

troca, eu entendo que essa seria a primeira missão da ouvidoria”. A segunda, sem dúvida, é a

intermediação, continua Adriana: “Atuar como representante do cidadão, mas não

exclusivamente, porque se sou representante do cidadão já não me torno imparcial. Eu acho que

a gente, em algum momento, representa as duas facetas: o cidadão perante a organização e a

organização perante o cidadão”. Quando o ouvidor encaminha as demandas do cidadão junto à

organização, ele o representa. Mas quando ele responde ao cidadão, ao contrário, ele representa a

organização perante ao cidadão, explica Adriana. É uma representação bilateral, ampla e mais

adequada para a Ouvidoria.

Em uma palavra, a síntese do trabalho da Ouvidoria é acolhimento, diz Adriana: “(...) o

cidadão espera que a Ouvidoria não seja mais um órgão que vai ouvir e engavetar; mais um

espaço onde ele vai perder tempo. Que ele tenha confiança de que aqui ele é ouvido seriamente e

que os assuntos dele vão ser encaminhados a qualquer custo”.

Adriana vê, ainda, uma ação pedagógica para a Ouvidoria, pois ela deve, também,

ajudar o cidadão a mudar de atitude. Por exemplo, modificando o seu jeito de escrever, passando

a escrever para Ouvidoria de uma forma mais adequada depois de uma primeira vez em que foi

extremamente ofensivo. A interação com a Ouvidoria modifica a perspectiva delas. “Essas

pessoas vão ser multiplicadoras de uma sociedade mais respeitosa e melhor. Eu não te diria em

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questão de números, mas de qualidade, porque uma transformação no indivíduo tem um impacto

grande na sociedade. Ele se amplia”, acredita Adriana.

Vera Melo (Ouvidora do DETRAN) entende que a Ouvidoria é um lugar de

acolhimento. Assim, segundo pensa, ela é apropriada para o cidadão tratar de todos os assuntos

que afetam a sua vida, mesmo que não sejam diretamente relacionados àquele órgão. Vera relata

que certa vez foi procurada por uma senhora de Rio Claro. Ela havia passado por São Paulo e viu

o telefone e o nome da Ouvidoria em uma composição do Metrô. Aquela senhora assim contou:

“vivi e cinco anos com o meu marido. Durante quinze anos nós não éramos casados. Os últimos

dez anos nós vivemos juntos casados. Agora, ele morreu e a aposentadoria ficou para as três

filhas do primeiro casamento dele. A senhora acha que está certo?” Vera disse que tentou

explicar à senhora que ela era, à época, Ouvidora do Metrô e que não tinha competência técnica

ou autoridade funcional para lidar com aquele assunto. Ao que a senhora de Rio Claro

respondeu: “Eu sei. É que eu não tenho pra quem perguntar. Eu estive em São Paulo. Vi o seu

nome no trem e o seu telefone. Por isso que eu liguei. Como era uma mulher, eu liguei. Eu não

tenho pra quem perguntar”. Vera a orientou sobre os documentos que deveria reunir para

comprovar a situação civil dela e a aconselhou a procurar a ajuda de um advogado.

Vera Melo acredita que as pessoas vivem em um mundo de solidão. Por isso, diz, as

Ouvidorias atendem de tudo. Ela acredita que isso se deve à credibilidade que a entidade desfruta

na sociedade. E complementa: “ela procurou uma Ouvidoria porque era mulher, mas podia

procurar uma médica, podia procurar uma advogada, uma delegacia da mulher”.

A Ouvidoria é um local onde o cidadão se dirige para resolver problemas pessoais e

específicos, explica Vera. Justamente aqueles que a burocracia tem dificuldades para acolher.

“As pessoas sofrem muito”, diz. “Essa relação do ser humano, do cidadão comum. Quando eu

digo comum, é aquele cidadão que sai lá da periferia com o dinheiro justinho pra ir e voltar e

comer um cachorro-quente”. Vera ilustra com outro caso dos tempos em que ela ainda era

Ouvidora do Metrô: “Ele sai lá da periferia... tem que tomar o Metrô. Aí, ele põe lá o dinheiro

numa máquina de venda de bilhete... pra tirar um bilhete duplo, quer dizer, a ida e a volta. Aí, ele

ou não recebia o bilhete ou não recebia o troco ou não recebia nada. E aquele era o dinheiro dele

do dia. Ele senta e chora”, diz. A máquina de venda de bilhetes pertencia a uma empresa privada,

que prestava serviços terceirizados ao Metrô. Mas, estava na estação do metrô. A

responsabilidade é, portanto, do Metrô. Segundo Vera, ela teve que “brigar com a Diretoria de

Operações do Metrô até quase ‘pegar no tapa’”. O Diretor chegou a impedir a circulação de um

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jornal interno, distribuído aos oito mil funcionários do Metrô, porque a Ouvidora havia abordado

o assunto em sua coluna, denominada ‘Dia-a-dia Ouvidoria’.

Quando esses incidentes ocorriam, o cidadão recebia dois reais e vinte centavos, o

equivalente ao troco (...), depois de muitos dias, por intermédio de um cheque nominal cruzado.

O sujeito que mora na COHAB, talvez nem tenha conta bancária, nota Vera: “o que ele faz com

o cheque nominal cruzado de dois reais e vinte?”. Essa é a realidade do povo, diz Vera: “Quando

eu falo o povo, não somos nós. Nós temos como nos defender. Agora, a relação deste público de

noventa por cento da população ou mais com os órgãos públicos é uma relação de muita

dificuldade. Então, os problemas deles é um problema pessoal, é onde dói no bolso, onde dói no

estômago, onde dói na farmácia, que ele não pode comprar o remédio”.

Para Vera Melo a missão essencial da Ouvidoria é reduzir a distância entre o usuário e a

organização. É facilitar esse caminho, é fazer esse caminho mais leve. Ela diz: “O DETRAN tem

cem anos. E cem anos de corrupção. Uma história triste”. A proposta agora, explica, “é mudar a

cara do DETRAN, mudar a cultura do DETRAN, de mudar a aparência do DETRAN. E a

Ouvidoria faz parte disso. Pra mim é muito, embora eu tenha setenta anos. Isso pra mim é muito

satisfatório, embora esse trabalho alucinado. Isso que é o bom da vida”, observa Vera.

Vera Melo acredita que as Ouvidorias representam um “avanço na relação entre o

cidadão e os órgãos que prestam serviços públicos. É um avanço nessa relação, porque nela, o

usuário, aquele que paga pelo serviço, era sempre a parte mais fraca, a parte que mais sofria. Não

tinha o direito de falar, não tinha o direto de reclamar, não podia nada. “E a Ouvidoria, eu vejo

como a ponte que faz o caminho de via dupla, entre o cidadão e o órgão”. Democracia é isso,

destaca Vera: “é o governo onde o poder é exercido por todos os cidadãos; é uma forma de

governo que tem que contar com a participação do povo”.

Para Pinheiro (Ouvidor do Poupatempo), a missão da Ouvidoria é democratizar o acesso

do cidadão à informação e facilitar a sua participação na administração pública. Trata-se de “uma

política pública de participação e”, também, “é, sim, um agente de transformação das instituições

a favor de uma cidadania mais ativa”. O Ouvidor é a voz do cidadão dentro da organização,

afirma: “somos representantes do cidadão dentro da instituição. Nesse aspecto, eu acho que o

cidadão ter a possibilidade, ter alguém que o represente dentro da instituição é uma abertura do

processo de cidadania”.

Contudo, segundo compreende, a ideia de que a participação do cidadão se restringe a

enviar uma manifestação e aguardar uma resposta é muito estreita. E dizem: “eu acho que pode

ser mais do que isso. Ele pode interferir. Se eu estou numa instituição... eu estou dizendo que ela

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deve se transformar em cidadã, significa que o cidadão pode interferir nela. Então, o Ouvidor,

nesse aspecto, é agente; pode trazer esse cidadão pra dentro, pode trazer a sua opinião (...) e fazer

com que a máquina interna institucional possa se desburocratizar”.

Pinheiro entende que, tomando o modelo paulista como referência, “o Ouvidor é uma

expressão da democracia (...); a Ouvidoria representa o cidadão dentro da organização. Ela vai

ter uma função, eu diria (...) de tradutor e interprete (...) do cidadão”. Não se trata de se tornar

um tradutor apenas do fato, mas também, da visão do cidadão, diz Pinheiro. E complementa: “eu

preciso me colocar no lugar do cidadão e falar com a organização como se eu fosse o próprio

cidadão”, diz. Contudo, isso se dá com uma diferença importante, explica Pinheiro: “eu conheço

(a organização: grifo) muito mais que o cidadão. E então, a organização vai ficar na saia justa

comigo”. O Ouvidor é o funcionário que cuida dessa interação, mas que o faz sob o ponto de

vista do cidadão, que olha a empresa pelo lado de fora. Esse é, de acordo com Pinheiro, o papel

do Ouvidor no modelo institucional de Ouvidoria paulista.

Assim, quando a organização pública toma uma decisão estratégica, cabe ao Ouvidor

observá-la com o olhar do cidadão. Pinheiro fornece um exemplo:

O Poupatempo criou uma solução chamada agendamento virtual. O principal propósito

dessa forma de agendamento foi reduzir as enormes filas que se formavam no interior dos

postos. Só que o sistema de agendamento era inteiramente baseado na Internet. Por isso, a

Ouvidoria o contestou firmemente, dizendo que era uma solução elitista que excluía os

semianalfabetos e os analfabetos digitais. O agendamento deveria ser feito somente pela Internet.

Uma pessoa que fosse ao posto Poupatempo seria orientada a entrar no site e agendar. A

Ouvidoria considerou inaceitável essa mudança na forma de atendimento, fazendo constar a

crítica da Ouvidoria em um relatório enviado à alta administração. Iniciaram-se intensos contatos

para tentar modificá-lo. Um acordo foi firmado, pelo qual, os cidadãos que fossem pessoalmente

aos postos seriam atendidos e o agendamento seria feito pelo próprio funcionário do

Poupatempo. Assim, o agendamento virtual foi mantido. E ele melhorou muito o Poupatempo.

Mas ao mantê-lo, a Ouvidoria conseguiu ser a voz do cidadão ameaçado de exclusão,

conseguindo incorporar salvaguardas que humanizaram a solução técnica, analisa Pinheiro.

Atuar na representação do cidadão no interior da organização e como porta voz desta

perante o cidadão são papéis clássicos da Ouvidoria. Com o exemplo descrito, Pinheiro aponta

um terceiro, que é o da mediação de conflitos. O Ouvidor deve ter sensibilidade e compromisso

social, explica Pinheiro. Ele deve usar o diálogo como ferramenta e ter posicionamentos muito

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claros frente às questões, sob pena de se tornar um assessor comum, como outro qualquer. Além

desse compromisso, internamente, o Ouvidor tem que exercitar a crítica, complementa.

Para Rubens (Gestor na Secretaria da Fazenda) a função da Ouvidoria é receber o

cidadão e encaminhar uma solução para o problema que ele traz, porque “ninguém chega numa

Ouvidoria se ele não está com um problema”. Então a missão da Ouvidoria “é recepcionar

aquela situação, dar os encaminhamentos e apresentar uma solução 100% resolvido para o

usuário”. Rubens não é favorável à prática encontrada em muitas empresas privadas, de colocar

uma série de condições para se ter acesso à Ouvidoria como, por exemplo, que a pessoa já tenha

registrado a queixa em outros lugares, principalmente, na própria área responsável pela prestação

dos serviços.

Para Ilídio (Poupatempo), a relação de sua área com a Ouvidoria é de parceria. Para ele,

“a posição da Ouvidoria, ela é o cidadão aqui dentro, reclamando pela melhora e zelando pela

boa prestação de serviços”. (...) As pessoas que trabalham na Ouvidoria estão “sempre bem

abertas e atentas às discussões com a gente. Eles são Ouvidores à disposição do cidadão e eu

diria que eles são Ouvidores à nossa disposição também. Eles ouvem e trabalham junto com a

gente”.

Explica Ilídio: “infelizmente, a gente não consegue atender a tudo, porque a gente tem

algumas limitações”. E prossegue dizendo que “o papel deles é continuar discutindo, continuar

cobrando. Por isso, às vezes, até dentro da própria estrutura eles acabam nos ajudando, porque

têm coisas que fogem um pouco da nossa alçada em termos sistêmicos. (...) é uma relação de

parceria, se é que eu posso dizer isso, porque a Ouvidoria não tem que ser parceira, ela tem que

procurar ser parceira (...) pro cidadão”. Então, diz Ilídio, “quero dizer que não é uma parceria de

falarem que está tudo bem. Não é isso não, entendeu? É de uma parceria, mas uma parceria onde

o cidadão é que manda”.

De acordo com Sérgio (Diretor do Hospital Darcy Vargas), as Ouvidorias são, por

excelência, um espaço de acolhimento: “colocar-se no lugar do outro é fundamental”, diz. Sérgio

explica: “acolhimento é uma palavra mágica, que faz parte da política de humanização da saúde.

O grande problema que nós temos hoje na área da saúde é o acolhimento do paciente. É saber

ouvir e receber”. É uma questão de acolhimento, de conversar, ouvir para poder esclarecer e

orientar o paciente, explica.

Sérgio diz que o serviço público perdeu a credibilidade: “não acredito no funcionário

que está trabalhando atrás do balcão. Ele está desacreditado, porque a máquina burocrática é

torpe, dura, difícil”. Uma parte desses problemas, Sérgio acredita ser inerente à Administração

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Pública, relacionando-se com o princípio da transparência. Para assegurar o controle, em

determinadas situações, como nos processos licitatórios, para ter transparência na execução

orçamentária, acaba criando uma disfunção, que é o travamento da administração. Sérgio

considera que o pregão eletrônico “que é uma coisa fantástica”, enquadra-se nesta condição. Ele

fornece um exemplo, ocorrido no hospital Darcy Vargas: Sérgio diz estar com um problema com

o RX, que está quebrado. Caso ele pudesse resolver o problema diretamente, ele poderia corrigi-

lo rapidamente. Contudo, por determinação legal, é preciso abrir um processo de licitação. E esse

processo é naturalmente demorado. Então, lamenta Sérgio, as pessoas falam: “tá vendo, serviço

público é isso. Tá quebrado, como se não quebrasse em outros locais também”.

Para José Luiz (Gestor na UNICAMP) não se considera em condições de definir de

modo específico a função da Ouvidoria, mas diz que “eu acho que a função assim que mais

aflora é, justamente, a função de mediação”.

4.3.2 Motivos pelos quais os cidadãos recorrem à Ouvidoria

De acordo com o relatório da Comissão de Centralização de Informações do Serviço

Público do Estado de São Paulo (CCISP), as Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo

receberam no primeiro semestre de 2013 um total de 556.437 manifestações. Deste total,

318.994, correspondente a 57,33% do total, eram solicitações de informações.

Quando se examinam os dados dos relatórios semestrais das Ouvidorias participantes da

pesquisa, o percentual de solicitação de informações se mantém elevado em todas elas. Em 3

delas formam o contingente maior de manifestações. Entretanto, no DETRAN e na UNICAMP

as reclamações compõem o grupo com maior incidência. Esses dados são apresentados na tabela

a seguir:

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Tabela 2: Solicitações de informações recebidas nas Ouvidorias (primeiro semestre 2013)88

Manifestações

Órgãos

Total de manifestações

recebidas no período

Solicitação de

informações %

DETRAN 6.790 1.778 26,18

POUPATEMPO 6.614 3.314 50,10

Secretaria Fazenda 7.989 7.396 92,57

Secretaria Saúde 100.094 40.607 40,56

UNICAMP 1.211 453 37,40

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP (Comissão de Centralização das Informações do Serviço Público).

Muitas vezes as pessoas não têm informação suficiente por desconhecimento dela,

explica Florêncio, Ouvidor da Secretaria da Fazenda: “Se você pegar os relatórios das

Ouvidorias, mais de 70% são pedidos de informações; orientação. É o ‘canyon’ entre a

comunicação do Estado e a sociedade. A comunicação que ocorre entre os dois é ainda muito

vazia. Falta muito para que haja entendimento. Esse é o motivo de se receber um volume tão alto

de solicitação de informações”, adverte Florêncio.

Especificamente, no caso da Secretaria da Fazenda, informa Florêncio que “do total de

demandas recebidas na Ouvidoria, 6 ou 7% são os casos efetivamente que são da Ouvidoria. Os

outros 93 ou 94% são de atendimento ao público” ou de rotina. “Então”, diz, “eu retorno para as

áreas para que eles sejam atendidos normalmente, evitando que tenham privilégios”.

Para Elza, Ouvidora da Secretaria da Saúde, as pessoas procuram a Ouvidoria quando

não têm a informação ou quando falta a resposta na ponta89

, na linha de atendimento – na

unidade básica, no hospital, no posto de saúde. As pessoas, por vezes, acham que a Ouvidoria

pode substituir ou alterar a decisão de um médico, diz. E exemplifica com um caso ocorrido com

um motorista de táxi, cujo ponto ficava nas imediações de um hospital estadual. Tratava-se de

88

No DETRAN, no momento em que o relatório foi finalizado, 642 manifestações estavam ‘em análise’. Isso

significa que elas não haviam ainda sido lidas e classificadas, embora estejam incluídas no total de demandas

recebidas. Outras 30 manifestações foram classificadas como ‘Protocolos (processos)’; 789 estão descritas como

‘Secretarias e Ouvidoria Geral’; 1.035 como ‘SIC (Serviço de Informações ao Cidadão)’. Esses números foram

considerados na totalização da demanda recebida pelo órgão, mas não estão inseridos em nenhuma das categorias

descritas nesta seção. Os dados do segundo semestre de 2013 ainda não estavam disponíveis até 22 de janeiro,

quando esta pesquisa foi revisada pela última vez. Na Secretaria da Saúde 1.386 manifestações estavam em análise.

Na UNICAMP eram 65. Estas manifestações estão inclusas no total recebido por esses órgãos, mas não estão

incorporadas às categorias apresentadas nesta seção. 89

Ponta significa o local no qual o atendimento deveria ter sido realizado. Por exemplo, o Posto de Saúde.

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um cidadão muito conhecido na região onde trabalhava. Ele fazia ponto no próprio hospital e

teve um problema grave. A família quis transferi-lo para outro lugar, mas, dada a sua condição, o

médico não autorizou o procedimento. E a pessoa morreu. De acordo com Elza, a situação deu à

família e à comunidade de taxistas a impressão de que a pessoa havia morrido por não ter

recebido a assistência adequada e não em função do estado de saúde em que ela se encontrava:

“Fizeram abaixo-assinado; ficou aquele clima pesado. A ouvidoria atendeu os familiares e os

informou que eles tinham que tratar da situação lá no nível local, no hospital. Tem questões

assim, de transferência de um local pra outro, que as pessoas acham que cabe ao Ouvidor fazer.

Isto não. É o médico que tá atendendo aquele paciente que sabe as necessidades e que vai ver pra

onde ele deve ir”. O Ouvidor não tem resposta pra tudo, esclarece Elza.

Contudo, de acordo com Pinheiro, Ouvidor do Poupatempo, o elevado volume de

solicitações de informações pode estar relacionado à qualidade da informação disponível para os

cidadãos. Pinheiro menciona o Guia de Serviços Públicos, um projeto que ele considera

revolucionário. Trata-se de um guia que reúne informações sobre todos os serviços públicos

prestados aos cidadãos pelo Governo do Estado de São Paulo. Nele, consta uma breve descrição

de cada serviço, os locais onde pode ser obtido, horário de atendimento, requisitos para a sua

obtenção (eventuais especificidades ou restrições, gratuidade ou exigência de pagamento de

alguma taxa), telefones e e-mails para solicitação de informações adicionais, entre outros dados.

Essas informações devem ser atualizadas em tempo real, sempre que ocorrer alguma alteração.

Entretanto, dada a complexidade e a grande quantidade de serviços, pode haver discrepâncias

que levam o cidadão a obter uma informação no guia, que é diferente daquela que será aplicada à

prestação do serviço, levando-o a procurar a Ouvidoria para se queixarem. Por essa razão, César

(auxiliar de Pinheiro na Ouvidoria do Poupatempo, convidado pelo Pinheiro para participar da

entrevista) acredita “que 80% dos problemas do Poupatempo reclamados pelos cidadãos podem

ser resolvidos com um aperfeiçoamento da qualidade da informação”.

Ilídio acredita que a primeira situação que faz o cidadão procurar a Ouvidoria é quando

ele não consegue resolver os problemas com o atendimento de rotina. Ele observa que o cidadão

“vai escalonando, vai tentando entender. Chega uma hora, você fala, não, vocês não estão

entendendo. Vou recorrer a alguém que tenha a visão do todo e me responda o que está

acontecendo ou faça com que essa solicitação transite dentro da organização”. A segunda,

explica Ilídio, é que o cidadão já está tão cansado de ser mal atendido, que ele já recorre direto à

Ouvidoria. “Essa segunda situação eu acho ruim”, explica Ilídio, “porque aí você sobrecarrega a

Ouvidoria, porque ela tem que ouvir e dar o retorno. E ela faz isso com primazia, mas você

sobrecarrega a Ouvidoria”. A primeira, explica Ilídio, traz retorno muito positivo para todos.

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Mas a segunda situação, embora seja positiva para o cidadão, agrega pouco para a organização,

porque ela decorre de um problema interno, causado, provavelmente por um primeiro

atendimento ruim, que acaba tirando tempo da Ouvidoria para tratar de questões que lhe são

próprias.

Do ponto de vista estrito da racionalização do atendimento, Ilídio acha que se poderiam

criar pré-condições para o cidadão recorrer à Ouvidoria, obrigando o cidadão a dirigir-se,

primeiro, às áreas prestadoras de serviços. Contudo, Ilídio acha que, com isso, a Ouvidoria

“perderia o sentido, porque não tem cabimento você cumprir uma regra para chegar à

Ouvidoria”.

No caso do DETRAN, segundo Jânio Loyola (Diretor de Atendimento), grande parte

dos cidadãos que recorre à Ouvidoria poderia ser atendida por outros canais, como o Disque

DETRAN (uma central telefônica) ou o Fale com o DETRAN (um portal onde o cidadão pode

reclamar diretamente para o DETRAN). Mas, as pessoas preferem falar com a Ouvidoria. Jânio

Loyola entende que duas situações levam os cidadãos diretamente à Ouvidoria do DETRAN:

“uma, é a desinformação, ou seja, muitas vezes, os cidadãos desconhecem a existência dos

outros canais. Outra, é a confiança despertada pela Ouvidoria, pois, algumas pessoas pensam que

não adianta reclamar em outros lugares, que ninguém vai me responder. Só a Ouvidoria

responde”.

“Às vezes, para o cidadão, é muito difícil distinguir entre tantos órgãos e níveis de

governo”, analisa Sérgio. “Como os diversos níveis de governo atuam com órgãos diferentes nos

mesmos setores, saber o que pertence a cada um, por si só, já é um desafio”.

Para José Luiz, as pessoas que procuram a Ouvidoria da UNICAMP, o fazem, às vezes,

por algum desconhecimento do papel institucional desse órgão. Para ele, “a Ouvidoria tem um

papel semelhante ao do advogado para as pessoas que a procuram por se sentirem prejudicadas.

A partir de uma demanda externa, ela busca uma resposta que, mesmo não sendo o que a pessoa

quer ouvir, não deixa de ser uma resposta que foi buscada e fundamentada”.

Defeito na prestação dos serviços caracteriza uma situação em que o cidadão entra em

contato com o órgão público, por quaisquer meios, principalmente comparecendo pessoalmente a

uma de suas unidades e não consegue receber o serviço ao qual considerava ter direito ou o

recebeu de forma incorreta, incompleta ou inadequada. O serviço pode ter sido feito, porém, o

atendimento oferecido foi descuidado, negligente ou o ambiente encontrava-se desorganizado. O

funcionário encarregado de atender ao cidadão pode ter agido de maneira confusa, mostrando

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pouco conhecimento ou deficiências nas habilidades para realizar o serviço, ou possuir

dificuldades de comunicação e de relacionamento com o usuário. Tipicamente, esse tipo de

ocorrência, quando é enviada às Ouvidorias, é registrado como Reclamação.

As Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo receberam no primeiro semestre de

2013, 175.626 reclamações. Considerando-se o total de manifestações ocorridas no período

(556.437), esse número corresponde a 31,56%.

Nas Ouvidorias participantes da pesquisa, as reclamações formam o segundo grupo de

manifestações recebidas, após as solicitações de informações. A exceção, como já se destacou, é

o DETRAN, no qual as reclamações montam à ponta. De acordo com nota explicativa da

Ouvidora, isso se deve ao processo de modernização em curso no órgão, com a reorganização de

fluxos e procedimentos. Quando as mudanças estiverem concluídas, o atendimento no DETRAN

será simplificado e o órgão estará mais ágil e seguro, afirma Vera Melo. Por isso, acredita Vera,

a tendência é que as reclamações se reduzam. Comparando o primeiro semestre de 2013 com o

ano anterior, já se observa essa tendência de queda no número de reclamações. Houve forte

queda entre o primeiro semestre de 2012 e o segundo semestre do mesmo ano, passando,

respectivamente, de 5.065 para 2.215. Entre o segundo semestre de 2012 e o primeiro de 2013

observa-se uma ligeira queda, com a recepção de 2.061 reclamações. A Tabela 3 mostra a

quantidade de reclamações recebidas nas Ouvidorias participantes da pesquisa:

Tabela 3: Reclamações recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a 30/06/2013)

Manifestações

Órgãos Total de manifestações

recebidas no período Reclamações %

DETRAN 6.790 2.061 30,35

POUPATEMPO 6.614 2.077 31,40

Secretaria Fazenda 7.989 381 4,76

Secretaria Saúde 100.094 29.423 29,39

UNICAMP 1.211 514 42,44

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP.

Para Pinheiro, o cidadão procura a Ouvidoria quando alguma coisa não saiu de acordo

com as suas expectativas. Ele explica: “nós vendemos a ideia de que o Poupatempo tem um

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padrão de excelência em serviço e quando alguma atitude não condiz com o padrão Poupatempo,

então, aí é competência da Ouvidoria atuar”. Para César, “o cidadão vai à Ouvidoria do

Poupatempo, quando, por alguma razão, ele se sente mal atendido: porque o tempo foi mais alto

do que ele esperava ou porque teve algum problema de informação”.

Pinheiro aponta três situações que caracterizam a maior parte das ocorrências de

reclamações: uma delas é a falta de polidez. O cidadão reclama porque o funcionário o atendeu

de maneira pouco cortês, sem urbanidade. Outra caracteriza um tipo de atendimento em que o

funcionário foi muito gentil, mas se mostrou tecnicamente despreparado para a utilização dos

sistemas e realização do serviço demandado pelo cidadão, cometendo muitos erros. Um terceiro

grupo de reclamações diz respeito às falhas, inconsistências ou mesmo discrepâncias nas

informações disponíveis previamente ao cidadão, sobretudo pela internet, às quais ele recorre

antes de se dirigir a um posto do Poupatempo.

Na UNICAMP, a maior parte da demanda vem do corpo de servidores, professores e

alunos, explica Adriana. Os problemas mais reclamados por esse público referem-se às questões

de infraestrutura do campus, manutenção e adequação do espaço universitário. Por solicitação do

corpo docente, a Ouvidoria possui atuação relevante na mediação de conflitos interpessoais, no

campo das relações entre alunos e professores. O corpo discente tem recorrido à ouvidoria em

busca de ajuda para solucionar conflitos com o corpo docente. A Ouvidora acredita que sua

atuação tem sido importante para evitar a ‘judicialização’ de supostos casos de assédio moral.

Adriana observa que os conflitos envolvendo a relação discente-docente são mais numerosos do

que aqueles envolvendo a relação entre colegas e entre chefias e subordinados. São, sobretudo,

alunos se sentindo assediados pelos professores, embora estes, quando confrontados com uma

reclamação, queixam-se também dos alunos, no quesito cumprimento das regras. Esses casos

exigem da Ouvidoria habilidade para atuar na mediação de conflitos, área de conhecimento na

qual Adriana considera ser um diferencial da Ouvidoria que dirige. Ela fornece um exemplo:

“nós nos sentamos recentemente numa mesa de negociação, onde tínhamos cinco professores e

cinco alunos”. Os alunos eram representantes da turma. O objetivo era tratar de problemas

envolvendo uma disciplina. Um aluno havia apresentado a reclamação. “E ele saiu de lá

comprometido do quanto que ele também teria que se dedicar, a fim de haver mudança na

qualificação da aula e na atuação do professor”, diz Adriana. “Eu digo pra você que eu saí de lá,

acho que um quilo mais magra, mas muito feliz” com o resultado, diz Adriana.

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As sugestões focalizam o desejo do para que a organização melhore um serviço

existente ou comece a prestá-lo. Esta categoria de manifestação é definida pela percepção, por

parte do cidadão, de que um serviço inexistente poderia ser oferecido pela organização. Ou que

um serviço já oferecido encontra-se inadequado ou desatualizado, podendo ser submetido a um

processo de aperfeiçoamento. As Ouvidorias classificam esse tipo de manifestação como

Sugestões.

O sistema de Ouvidorias do Governo estadual paulista recebeu no primeiro semestre de

2013 um total de 10.473 sugestões, perfazendo uma porcentagem de 1,88% do total de

manifestações recebidas.

Nas Ouvidorias participantes da pesquisa observou-se comportamento semelhante.

Excetuando-se a Ouvidoria da Secretaria da Saúde, cujas sugestões atingiram quase 7% do total

de manifestações, nas demais, elas ficaram sempre agrupadas em torno de 1% do total recebido,

como pode ser observado na Tabela 4:

Tabela 4: Sugestões recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a 30/06/2013)

Manifestações

Órgãos Total de manifestações

recebidas no período Sugestões %

DETRAN 6.790 16 0,23

POUPATEMPO 6.614 67 1,01

Secretaria Fazenda 7.989 12 0,15

Secretaria Saúde 100.094 6.900 6,89

UNICAMP 1.211 13 1,07

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP.

De acordo com Florêncio, não se deve criar um estereótipo sobre o trabalho da

Ouvidoria, principalmente, o de que ela existe para receber reclamações. Fazendo-se uma

tipificação, explica Florêncio, resulta que a maioria dos casos é de reclamações. Mas, as

Ouvidorias recebem também sugestões. “A reclamação vai demonstrar que tem alguma coisa

errada, que o serviço está sendo entregue com defeito; a sugestão vai mostrar alguma coisa que

ainda não está sendo feita, mas que poderia ou deveria ser, ou ainda que pode ou deve ser

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melhorada”, diz Florêncio. Ele oferece um exemplo de uma sugestão que levou a uma inovação

na Secretaria da Fazenda:

Uma senhora que foi atendida na Ouvidoria, após ir ao toilette, voltou à Ouvidoria e

disse: “quero fazer uma sugestão”. Ela escreveu: “quando eu for ao toilette, gostaria que tivesse

um ‘ganchinho’ atrás da porta para pendurar a bolsa”. A Ouvidoria recebeu essa sugestão e

encaminhou para a área que cuida da administração do prédio. “Foram colocados ganchos em

todos os toilettes da Secretaria da Fazenda”.

Um segundo exemplo vem do Poupatempo. De acordo com Pinheiro, desde a sua

origem, em 1995, a comunicação eficiente sempre foi uma preocupação central na estruturação

dos postos do Poupatempo. Do leiaute das áreas de atendimento às cores das placas de

sinalização, nada escapava ao crivo da clareza, da objetividade e da visibilidade. Os nomes dos

postos fazem parte desse cuidado. Assim, eles deveriam sempre receber os nomes dos lugares

onde estavam instalados, como forma de facilitar a sua localização. Quase sempre, pois um havia

escapado a esse critério. No posto Alfredo Issa, decidiu-se colocar o nome do Jurista que dá

nome à praça, apesar dos outros equipamentos públicos próximos, bem mais conhecidos da

população, como é o caso da Praça da República e do Parque da Luz. E foi exatamente isso que

uma manifestação enviada por um cidadão apontava. Ele indagava: “por quê o Poupatempo Sé se

chama Sé; o Poupatempo Itaquera se chama Itaquera, e o Poupatempo que, no entendimento

dele, devia ser República se chamava Alfredo Issa?” De acordo com Pinheiro, “a gente fez essa

reflexão no Poupatempo”. Houve certa resistência, porque já tinha decreto, formulários,

panfletos, backlight90

com o nome Poupatempo Alfredo Issa. Mas, com o tempo foi trocado o

decreto e tudo virou Poupatempo Luz. Luz – e não República – porque estava mais perto do

metrô Luz e o conceito era o de orientar o cidadão, observa Pinheiro.

Outro exemplo, que também se passou no Poupatempo, está relacionado à introdução da

Linguagem Brasileira de Sinais (LIBRAS) nos postos de atendimento do Poupatempo. Explica

Cesar e Pinheiro que sempre houve preocupação em treinar pessoas para utilizar essa linguagem.

Contudo, a introdução efetiva do serviço, jamais saiu do plano das intenções e acabou caindo no

esquecimento. Entretanto, um grande número de manifestações começou a chegar, especialmente

vindas do posto Santo Amaro, sugerindo que houvesse funcionários nos postos com o domínio

da linguagem de sinais para o atendimento às pessoas portadoras de deficiência auditiva. De

acordo com Pinheiro, a partir das sugestões levadas ao Superintendente do Poupatempo, fez-se

uma parceria com uma associação de intérpretes de LIBRAS para oferecer treinamento aos

90

Placa de sinalização equipada com um monitor de Lcd. São muito utilizadas para melhorar a visibilidade da

sinalização em áreas ou ambientes cuja iluminação seja precária.

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funcionários. Com um discreto sorriso, Pinheiro diz: “o Poupatempo brinca com a gente... não, a

gente já tinha isso previsto. Tinha”, admite Pinheiro, “mas não fez. Foi o cidadão que empurrou

esse negócio”. Atualmente, cada posto do Poupatempo tem pelo menos um funcionário em cada

turno que domina a linguagem LIBRAS.

A demonstração de satisfação com o atendimento pode ser caracterizada como uma

mensagem espontânea do cidadão que tendo utilizado algum serviço da organização, recebeu

atendimento que considerou adequado às suas necessidades ou que tenha até mesmo superado às

suas expectativas. Não significa, entretanto, que seja esse o percentual de pessoas satisfeitas com

o atendimento recebido. Ele retrata apenas o percentual de pessoas que se dá ao trabalho de

manifestar o seu estado de espírito após ter passado por uma experiência agradável ao interagir

com algum setor ou funcionário da organização. Essa categoria de manifestação é registrada nas

Ouvidorias como Elogios.

No primeiro semestre de 2013, o sistema de Ouvidorias do Governo do Estado recebeu

21.531 elogios. Cerca de 4% do total. Nas Ouvidorias que participam da pesquisa, no mesmo

período, temos os seguintes números:

Tabela 5: Elogios recebidos no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a 30/06/2013)

Manifestações

Órgãos Total de manifestações

recebidas no período Elogios %

DETRAN 6.790 94 1,38

POUPATEMPO 6.614 153 2,31

Secretaria Fazenda 7.989 18 0,22

Secretaria Saúde 100.094 16.093 16,07

UNICAMP 1.211 50 4,12

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP.

Segundo Pinheiro, o cidadão não procura a Ouvidoria somente quando a sua expectativa

é frustrada. O cidadão a procura, também, quando a sua expectativa é superada. No primeiro

caso, ele reclama. No segundo, ele faz elogios.

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181

Pinheiro fornece um exemplo de um cidadão que recorreu à Ouvidoria após ter

problemas no agendamento eletrônico e no atendimento presencial em um posto do Poupatempo.

De maneira criativa, o cidadão elogiou o atendimento fornecido pelo Ouvidor Adjunto, Getúlio

César. O cidadão escreveu:

Alvissaras!

Que bom saber que existe uma Ouvidoria que nos ouve.

Melhor ainda saber que ela também nos fala.

Perfeito será constatar que a conjugação dos esforços de quem solicita

(antigamente chamado de reclamante) com os de quem atende (às vezes

chamado de atendente, duas qualificações em desuso pela conotação

pejorativa), resultou em ordem e progresso.

No mínimo estaremos fazendo juz ao que preconiza nosso lindo pendão de

esperança.

Pois bem, meu prezado interlocutor Sr. César de Paula, fui ouvido (bravo!),

recebi uma resposta simpática (biz), quiçá animadora (amém) e muito bem

escrita (viva!), coisa rara nos dias atuais desse Brasil que não pode reprovar

ninguém. Bons ingredientes para preparar um final feliz.

Outros exemplos são fornecidos por Florêncio, da Secretaria da Fazenda, expressos nas

três mensagens a seguir. O primeiro exemplo refere-se a um cidadão que procurou a Ouvidoria

para elogiar o atendimento recebido em um Posto Fiscal na cidade de Santos:

Ilustríssimo Senhor.

Florêncio dos Santos Penteado Sobrinho.

Digníssimo Ouvidor da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo.

Tentando solucionar um problema referente à retificação de GARE, junto ao

Posto Fiscal 11, de Santos, comunico-lhe, com satisfação, o atendimento

obsequioso e eficiente, que me foi dispensado pela Agente Fiscal, Sra.

Terezinha Rodrigues, que dignifica o quadro do funcionalismo público do

Estado de São Paulo, no âmbito da Secretaria da Fazenda.

Com os cumprimentos deste velho advogado, Procurador do Estado aposentado

e cidadão que acredita na capacidade dos dirigentes da Administração Pública.

Santos, 25 de julho de 2007.

O segundo exemplo foi enviado por uma cidadã que se mudara do Estado de São Paulo

para o Amapá. Ela opinava sobre as diferenças percebidas nos serviços públicos dos dois

Estados:

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Assunto: A arte de bem receber

Mensagem: Amanhã fará dois meses que mudei-me de São Paulo para Macapá. Vocês

não fazem idéia da falta que sinto da organização de vocês. Esta é só para dizer que

todos estão de parabéns por tudo o que representam, e continuem atendendo bem

qualquer pessoa que por aí apareça, independente de quem ou de onde ela é. Às vezes a

pessoa pode ser uma visita e, se não bem atendida, pode sair do estado ou da cidade

falando mal de tudo. Estou sentido isto na pele. As pessoas daqui só são atenção para

aqueles que possuem QI (quem indica) e se esquecem do potencial profissional e

humano que o ser pode representar. Eu os estou representando bem e brigando para que

as pessoas me escutem e me conheçam pela bagagem cultural que eu trouxe daí.

Obrigada por tudo, sinto saudades e orgulho dos paulistanos.

O terceiro exemplo foi enviado por um cidadão, para manifestar satisfação com a

rapidez com a qual a Ouvidoria respondeu à sua solicitação:

Senhores (as), bom dia.

O serviço público tem uma péssima referência para quem o procura. O descaso

e a morosidade andam de mãos dadas quando se trata de atendimento. Por isso,

fiquei surpreso com a pronta resposta a minha solicitação.

Meus parabéns as pessoas que estão na linha de frente em contato com o

público em geral e rogo para que mantenham o comprometimento e continuem

praticando a gestão do atendimento com qualidade, pois são tão clientes quanto

eu.

À diretoria da Secretária da Fazenda meus agradecimentos e parabéns mais uma

vez pela sua equipe.

O desvio de conduta retrata uma situação em que o cidadão pode ter tomado

conhecimento de alguma malversação de recursos públicos, como a má aplicação de verbas, obra

executada abaixo do padrão técnico especificado; uso de um equipamento público em atividade

particular e uma gama enorme de outras possibilidades, caracterizadas tanto pelo que é percebido

como estando em não conformidade com as questões de legalidade, como aquilo que, no senso

comum, é tido como conduta moral e ética diferente daquelas que são esperadas de um agente

público.

Pode ser uma desconfiança, formada com base na observação de determinadas

características simples, cuja compreensão é possível ao cidadão comum, como o atraso em um

cronograma de execução de uma reforma, a desorganização de um canteiro de obras, a falta de

conservação dos equipamentos de um órgão, a má relação dos funcionários de uma organização

com a comunidade do seu entorno.

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Uma denúncia pode ser motivada pelo fato de o cidadão não ter entendido uma

informação, ou ter sido induzido pela falta de clareza das placas de sinalização de obras e outros

tipos de intervenções do poder público, às vezes, devido à maneira complexa ou imprecisa com

que dados numéricos são fornecidos. Uma placa, por exemplo, pode anunciar que uma praça será

revitalizada, quando, na verdade, apenas será construído um coreto. Pode-se informar que um

imóvel histórico será preservado, quando o que, de fato, o que será feito é o seu tombamento.

Denúncias podem ocorrer, também, estimuladas por intrigas políticas, situação em que

o dirigente de determinado órgão público pode prejudicar uma comunidade inteira pelo fato de

que nela mora um adversário político seu. A rivalidade política anima os opositores derrotados

em pleitos eleitorais a vigiar o comportamento dos vencedores, quando estes assumem o

comando político das organizações. E as forças derrotadas tendem a tentar instrumentalizar as

Ouvidorias em suas estratégias de luta política.

Pode, ainda, ter ocorrido abuso de autoridade por parte de um funcionário durante o

atendimento a um cidadão, sobretudo em situações de elevado estresse, quando aquilo que é

demandado ao órgão público não pode ser feito nas condições solicitadas. As manifestações que

se enquadram nesta descrição são registradas como Denúncias.

As Ouvidorias paulistas receberam 8.052 denúncias no primeiro semestre de 2013. Isso

corresponde a um percentual de 1,45% do total de manifestações registradas. Nas Ouvidorias que

participam da pesquisa, os números são:

Tabela 6: Denúncias recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a 30/06/2013)

Manifestações

Órgãos

Total de manifestações

recebidas no período

Denúncias %

DETRAN 6.790 339 4,99

POUPATEMPO 6.614 0 0

Secretaria Fazenda 7.989 182 2,27

Secretaria Saúde 100.094 851 0,85

UNICAMP 1.211 65 5,36

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP.

De acordo com Vera, a Ouvidoria do DETRAN recebe muita denúncia de corrupção.

Ela diz que a direção daquele órgão está atuando nisso seriamente: “vai ter até um sistema para

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filmar o aluno dentro do carro na hora do exame prático. Filmar e gravar o que o sujeito fala pra

ele, porque na hora do exame prático é que eles ameaçam e diz que se não derem dinheiro você

não passa. E não passa, até porque a pessoa fica nervosa. Tem dezoito anos, entendeu? Aí não

passa”.

Na Secretaria da Fazenda, Florêncio informa que as denúncias formam um grupo

pequeno de manifestações. São denúncias de sonegação fiscal, principalmente. Sobretudo,

envolvendo empresas que fazem alguma coisa para fraldar o fisco, que se recusam, por exemplo,

a fornecer nota fiscal. A Ouvidoria recebe essas denúncias e as encaminha para área que vai

fazer a apuração. Algumas denúncias estão relacionadas à campanha ‘De Olho na Bomba’,

envolvendo suspeitas de venda de combustíveis adulterados por Postos de Gasolina. De acordo

com Florêncio, essas denúncias chegam sempre sem nenhuma objetividade, baseadas em

suspeitas, implicando que todas precisam ser submetidas a um processo de investigação. Explica

Florêncio: “O cidadão vai ao posto e abastece o carro e tudo que ele informa normalmente é o

endereço. Nada mais concreto o cidadão consegue oferecer. A Ouvidoria recebe a denúncia e a

encaminha ao Posto Fiscal para que seja feita a verificação. A principal fraude dos postos é a

adição à gasolina de solventes cuja tributação é mais baixa. A Secretaria da Fazenda conseguiu

perceber isso. Esses solventes não alteram as características do combustível vistas a olho nu.

Normalmente, causam danos ao motor do veículo no longo prazo. Como a Fazenda só tem

competência para atuar na fiscalização de tributos, ela articula a ação com outros órgãos, como o

IPT, o IPEN e o PROCON”.

Ilídio diz que as denúncias devem ser tratadas com cuidado para evitar cometer

injustiças. Nem sempre o cidadão usa de forma responsável os canais disponíveis para se

manifestar. Ele conta que, certa vez, um usuário portador de necessidades especiais, fez uma

manifestação longa, queixando-se de muitas coisas, grande parte delas pertinentes ao Acessa São

Paulo e sem relação com o Poupatempo. Entre outras coisas, ele acusava um manobrista do

estacionamento (estacionamento privado, sistema de Valet, sob concessão, então existente na

unidade do Poupatempo de Santo Amaro) de ter furtado uma carteira com cinquenta reais.

Segundo afirmava o cidadão, a carteira estava guardada no interior do seu automóvel. Essa

carteira, segundo dizia o cidadão, era deixada no carro como um tipo de ‘seguro’ contra assalto.

Caso ele fosse abordado por um ladrão, ele entregaria essa carteira e não a sua de verdade, com

dinheiro e documentos.

Funcionários do Poupatempo entraram em contato com o cidadão. Conversaram sobre

as reclamações e ele ficou satisfeito. Em parte, parecia um pouco de carência. O cidadão queria

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atenção, diz Ilídio. Para tentar esclarecer o desaparecimento da carteira, o funcionário do

estacionamento foi chamado para dar explicações, tendo negado peremptoriamente que tivesse

se apossado da carteira do cidadão. Para contornar a situação, o Poupatempo solicitou à empresa

que o funcionário fosse transferido para outra unidade. De algum modo, o funcionário foi

prejudicado, ao menos na questão da comodidade para ir ao trabalho, além do seu emocional.

Alguns dias depois, o cidadão retornou e pediu desculpas, pois sua filha havia tirado a carteira do

veículo. Contudo, salienta Ilídio, “uma pessoa já havia sido injustamente constrangida e punida”.

São manifestações, por meio das quais, os cidadãos emitem opinião sobre assunto que

lhe chamou a atenção. Pode ser algo relacionado ao governo, aos seus membros ou referir-se à

própria sociedade. Como se tratam de manifestações que trazem opiniões baseadas em

julgamento político e que não contém um objeto específico, as Ouvidorias as classificam como

Expressões livres.

A rede de Ouvidorias públicas do Governo do Estado de São Paulo recebeu 15.724

manifestações classificadas como Expressões livres ao longo do primeiro semestre de 2013. Nas

Ouvidorias participantes da pesquisa, os números são:

Tabela 7: Expressões livres recebidas no primeiro semestre 2013 (01/01/2013 a 30/06/2013)

Manifestações

Órgãos

Total de manifestações

recebidas no período

Expressões livres %

DETRAN 6.790 6 0,08

POUPATEMPO 6.614 3 0,04

Secretaria Fazenda 7.989 0 0

Secretaria Saúde 100.094 4.834 4,82

UNICAMP 1.211 51 4,21

Fonte: Relatórios semestrais da CCISP.

Além dos assuntos mais gerais, como longas análises sociais e econômicas, criticas aos

políticos e outros agentes públicos, Adriana aponta outro tipo de manifestação sem conteúdo

objetivo relacionado à Ouvidoria. E ela lamenta o fato de que “existem casos de pessoas que

utilizam esse espaço para acabar com a vida de outra pessoa. Para jogar um problema que é

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pessoal, ou até às vezes de ordem passional, de ordem relacional, na Ouvidoria. Então, ele fica

atrás de um anonimato de uma falsa identidade e joga uma ofensa de cunho pessoal”.

Nesse tipo de contato com a Ouvidoria, o cidadão tenta instrumentalizá-la a seu favor,

procurando contornar alguma exigência ou dificuldade. O objetivo é obter vantagens pessoais,

para si mesmo ou pessoa próxima, como ‘furar’ uma fila, obter benefício ao qual não tem direito,

não cumprir prazos legais ou se beneficiar de alguma ‘brecha’ para se eximir de determinada

obrigação, como o pagamento de um imposto ou taxa pública.

O comportamento típico desses cidadãos pode ser bastante variado. Mas, há dois grupos

que se distinguem. Uns procuram comover os Ouvidores com histórias que relatam desventuras

pessoais ou familiares, com as quais procuram convencer os Ouvidores a lhes conceder o

privilégio demandado. O outro grupo procura fazer ameaças generalizadas. Entre as ameaças

mais comuns estão as de processar o Ouvidor, denunciando-o por prevaricação91

; denunciar o

órgão, o Ouvidor ou ambos nas redes sociais e na mídia convencional.

Essas manifestações não são classificadas separadamente. Por isso, não se pode

apresentar números. Elas entram em muitas das categorias descritas anteriormente, podendo estar

sutilmente inseridas em uma reclamação, em uma denúncia ou mesmo em uma sugestão.

De acordo com Florêncio, um dos motivos que levam o cidadão a procurar a Ouvidoria

pode ser o de “furar a fila”. “Fura fila”, diz Florêncio, “porque se você vem reclamar na

Ouvidoria, eu encaminho essa reclamação para área e ela será vista com prioridade. Fatalmente

(ou felizmente) será atendido na frente de outros. Então, é preciso ter cautela e procurar evitar

isso”.

Florêncio diz que é possível segmentar o público da Secretaria da Fazenda em quatro

grupos: “quando pensamos em tributos, temos o do IPVA (Imposto sobre a Propriedade de

Veículos Automotores), temos o ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e

Doações), temos o ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços).

São três perfis diferentes. Um quarto tipo de público é aquele da Folha de Pagamento, que são os

funcionários da Administração Pública do Governo do Estado de São Paulo”.

“O público do ICMS é muito pouco ‘influenciável’. Normalmente, é o profissional

qualificado, como contadores e empresários. Alguns são especializados em procurar falhas

dentro do sistema. Então, eles já sabem quais são as leis que eles têm que cumprir. No limite ele

91

A ameaça de denúncia por prevaricação é feita,de acordo com Florêncio, principalmente por Advogados. Na

maioria das vezes, trata-se apenas de uma chantagem, visando fortalecerem-se em uma negociação.

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pode vir aqui pra poder tentar adiantar o processo dele, quando, por exemplo, ele precisa de uma

inscrição, uma homologação ou uma alteração de qualquer coisa. A gente faz uma análise para

verificar o que está acontecendo. Se houve algum erro ou falha no procedimento, é acolhida a

reclamação. Mas, se a reclamação não é procedente, o cidadão é encaminhado ao Posto Fiscal

para receber atendimento de rotina”.

“O público do ITCMD é, na sua maior parte, advogados”. De acordo com Florêncio,

“os advogados são hábeis para lidar com procedimentos, com processos que estão inscritos em

lei. Não se deve generalizar, mas uma grande parte não gosta de acessar sistemas por meio da

Internet ou usar computadores. No limite, vão fazer um documento ou outro. A Secretaria da

Fazenda deixa todas as informações disponíveis no site, inclusive formulários pra eles

preencherem as declarações e emitirem guias. Só que muitos deles têm dificuldades. Esse é um

público com o qual é preciso ter muito cuidado. Muitos, a primeira coisa que faz é ameaçar,

acusando-nos de prevaricação. Tenho muitos casos aqui”. Segundo Florêncio, eles dizem: “O

senhor sabe que está prevaricando? Eu respondo: não senhor, porque estaria? Eles explicam e

não tem nada a ver. Geralmente, ele foi atendido e o que ele está fazendo é transferir as

dificuldades deles para nós”.

Segundo Jânio, tem gente esperta que, por exemplo, quer “saber quais são os veículos

que estão com o licenciamento vencido no Estado”. São empresas que desejam entrar em contato

com esses proprietários pra vender serviços. Essa informação é negada. Uma seguradora pediu o

registro de todos os proprietários de veículos do Estado, incluindo o endereço, e-mail e o

telefone. Provavelmente, para enviar correspondências ou e-mails oferecendo seguro. Trata-se de

informação de caráter pessoal, que não pode ser fornecida.

Na mesma linha de pensamento, Adriana alerta que as Ouvidorias precisam fazer uma

análise criteriosa das manifestações recebidas, pois existem mesmo pessoas que tentam usar a

ouvidoria para a obtenção de privilégios. Então – afirma Adriana -, “a Ouvidoria tem que deixar

muito claro e conceituado que ela não é uma segunda porta de entrada, um fura filas,

especialmente na área hospitalar, onde isso é muito forte, pois as pessoas entendem que entrando

pela Ouvidoria elas podem talvez conseguir uma vaga antes. É exatamente isso que a gente

coíbe. A gente não quer nenhum protecionismo, ninguém furando fila. Também há pessoas que

ingressam com processos na justiça e quando percebem que vai demorar, procuram a Ouvidoria.

A Ouvidoria não aceita uma demanda à medida que ela tenha sido levada ao Poder Judiciário,

pois isso constituiria uma violação à autonomia dos poderes”, explica Adriana.

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Adriana observa uma tentativa de algumas pessoas em “transferir certas

responsabilidades, que são de caráter pessoal, à universidade e ao Estado. Às vezes, elas trazem

alguma coisa pontual, como um cartão estudantil pra ser renovado e elas não foram bem

atendidas na Diretoria Acadêmica, alguma coisa nessa ordem. Mas, já se fala que o Estado não

prevê a estadia das pessoas na Universidade. O cidadão também está atribuindo muito de suas

necessidades, sua insatisfação ao próprio Estado e à Universidade”. Adriana relata um exemplo:

“Nós temos um programa de moradia estudantil. É um número de vagas menor talvez que a

demanda. Quando você dá a cada um a moradia, o indivíduo quer o colchão novo; aí mudou o

colchão, ele quer que mude o fogão. Então, ele tem problema com ratos na casa dele, às vezes,

porque a própria higiene não é adequada. Não estou falando na grande maioria, são casos

individuais. Parece que às vezes a gente não define o que é compromisso com educação superior

e parece que a expectativa é que a Universidade o mantenha em todas as suas necessidades

pessoais”, explica Adriana.

4.3.3. Formas de atuação do Ouvidor e tratamento das manifestações.

A maior parte das demandas recebidas nas Ouvidorias chega por meio eletrônico - e-

mail e formulário. Mas as Ouvidorias atendem por todos os canais possíveis: além do e-mail e do

formulário eletrônico, o cidadão tem à disposição o atendimento presencial, por telefones, fac-

símile e até mesmo carta.

A partir do momento em que uma demanda é recebida, a Ouvidoria fornece um

protocolo ao seu autor e inicia uma série de contatos, com o objetivo de levantar informações,

formar uma convicção e dar encaminhamento à demanda. Esse é um processo bastante flexível.

Dependendo do tipo de manifestação, pode ocorrer um contato informal, por telefone ou uma

visita do Ouvidor à área demandada para um encontro informal ou para uma reunião oficial.

Denúncias podem ensejar a abertura de um processo formal com recomendações explícitas do

Ouvidor para que seja instaurado um procedimento investigativo. Inicialmente, a denúncia é

enviada para a área onde o funcionário trabalha. Após receber a denúncia, a área tem até trinta

dias para ouvir a Procuradoria Geral do Estado e conduzir um processo preliminar de apuração.

De acordo com Adriana, às vezes, a Ouvidoria precisa constatar as coisas em seu local

de ocorrência: “a gente precisa estar ligada, saindo dos escritórios”. A Ouvidora tem o hábito

visitar as diversas áreas da universidade, sobretudo aquelas que tendem a apresentar o maior

volume de problemas ou os problemas mais graves. Em determinadas situações, o próprio

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cidadão convida a Ouvidora para ir conhecer o problema que ele levantou. Adriana fornece um

exemplo: “Eu tinha uma cabine de ônibus aqui que entrava mais chuva dentro do que fora. Em

um dia que chovia torrencialmente, um usuário me ligou e falou: ‘olha é hoje que você precisa ir

lá’. Eu disse: vou, mas vou com você. E voltei toda encharcada”. É importante sair do escritório

e ver o que pode ser feito; mobilizar é alguma coisa importante realmente importante, diz

Adriana.

José Luiz entende que a Ouvidoria é um mecanismo de atuação reativo, pois deve agir a

partir da provocação externa. Ele diz: “a Ouvidoria, por mais proativa que ela seja, ela atende a

demandas. Ela não gera demandas (...). Vem um questionamento, esse questionamento é

repassado pra ti, que é repassado pra outro. Mas, a origem foi uma demanda de alguém ou de um

grupo de pessoas. Então, eu acho que não é o papel da Ouvidoria gerar demandas em funções de

visões da própria Ouvidoria. Ela é um intermediário na história”.

Pinheiro, entretanto, opina que nos últimos tempos, vem aumentando muito o número

de funcionários que não são do Governo, mas que trabalham nos postos do Poupatempo, em

empresas terceirizadas. E, como trabalham dentro do Poupatempo, eles se identificam como

funcionários do Poupatempo. Algumas situações têm nos colocado em “uma saia justa”, explica

Pinheiro. Segundo ele, “o Governo considera que contratou um serviço – e não funcionários. A

tarefa de contratar e de demitir seria daquela empresa contratada que ganhou a licitação”.

Pinheiro conta que certo dia ligou uma menina que dizia que estava grávida e que havia sido

demitida. E a empresa onde ela trabalhava não tinha mais sede em São Paulo. Havia se mudado

para Brasília. E a ex-funcionária perguntava como o Poupatempo poderia lhe ajudar a resolver a

situação. Pinheiro se questiona: “E o padrão Poupatempo. Onde fica o padrão ético?”. A

Ouvidoria entende que não cabe ao Governo do Estado assumir a responsabilidade, mas insistiu

para que uma autoridade do Poupatempo procurasse encontrar uma solução junto à empresa.

César (Assistente da Ouvidoria do Poupatempo) informa que recebe também

manifestações de funcionários do Poupatempo, pois a Ouvidoria do órgão entende que também o

funcionário deve ser atendido – e não apenas o cidadão. Ele diz: “quando eu vou ao posto, eu

brinco com o pessoal: poxa, a gente não é cidadão. Quando a gente põe a gravatinha, o lencinho

Poupatempo, deixa de ser cidadão”. Embora a legislação que instituiu a Ouvidoria se refira

sempre ao cidadão ou - o que é mais comum - ao usuário de serviços públicos, tem prevalecido a

ideia de que o funcionário é cidadão e, como tal, tem direito de recorrer às Ouvidorias, inclusive

para reclamar de injustiça ou abusos cometidos pelos seus superiores.

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Para Pinheiro, mesmo essa atuação da Ouvidoria em relação ao funcionário não se

confunde com a da área de RH. A Ouvidoria não cuida das rotinas de pessoal, mas de problemas

relacionados ao seu cumprimento e, também, questões que dizem respeito ao tratamento ético do

funcionário. Ele exemplifica: “Nós tivemos um caso (...). Nós fomos procurados por uma

funcionária perguntando como é que funcionava o assunto assédio sexual. E ela não se sentiu

segura de ir ao RH”. A Ouvidoria estabeleceu com ela uma abordagem para tratar o problema,

firmou um protocolo e ela ficou tranquila.

Após o recebimento de uma solicitação, a primeira providência é registrá-la no sistema

de controle. Quando a mensagem é enviada através do formulário eletrônico, o registro é feito

automaticamente. Mas quando esta mensagem chega por e-mail, é preciso fazer o registro

manualmente, uma por uma. Cadastrada a demanda, examina-se o seu conteúdo para verificar a

sua pertinência. Por vezes, as Ouvidorias recebem manifestações apócrifas, de conteúdo

ininteligível, além de propagandas disparadas por sistemas automáticos de envio de mensagens.

Também podem chegar demandas em que uma pessoa solicita informações pessoais de outra.

Tais manifestações são classificadas como impertinentes. Mesmo nesses casos, sempre que o

cidadão que fez a solicitação fornece um endereço válido, ele recebe uma resposta da Ouvidoria.

Caso o cidadão esteja solicitando acesso ao conteúdo de um documento, arquivo ou banco de

dados, para não entrar em conflito com a legislação de acesso à informação92

, a Ouvidoria

orienta o interessado a entrar com o pedido no SIC (Serviço de Informações ao Cidadão). Para

acesso a esses conteúdos, a legislação exige que o solicitante se identifique e informe o número

de um documento válido.

Para as solicitações consideradas pertinentes, verifica-se, então, se a questão suscitada é

de competência daquele órgão ao qual a Ouvidoria que a recebeu está vinculada ou se o assunto

está na esfera de atribuições de outro órgão. A rede de Ouvidorias está estruturada de acordo

com um conceito que procura eliminar a ‘cultura de balcão’, na qual o cidadão é enviado de um

para outro lugar. No sistema de Ouvidorias, o cidadão pode enviar a sua solicitação para

qualquer órgão. Nada o impede, por exemplo, que ele envie uma demanda da educação para a

Secretaria de Agricultura. Ou uma que diga respeito ao sistema de Saúde para a Secretaria da

Fazenda. O Ouvidor recebe a manifestação, analisa o seu conteúdo e faz o encaminhamento

correto internamente, sem jamais devolver a demanda ao cidadão. Na cultura de balcão, a

manifestação seria devolvida e o cidadão seria informado que ele deveria ir tratar do assunto em

outro lugar.

92

Lei Federal nº 12.527/2011 e Decreto Estadual nº 58.052/2012.

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Quando a demanda pertence ao órgão, é preciso, então, decidir sobre a sua natureza. Ela

aborda uma questão de rotina, que deve ser tratada diretamente nas áreas de atendimento da

organização, ela apenas solicita alguma informação ou ela traz uma questão mais grave, em que

algum direito do cidadão pode ter sido violado ou alguma regra de conduta tenha sofrido

violação?

Quando se trata de uma solicitação de serviços de rotina, o cidadão ou a manifestação

são encaminhados para as áreas de atendimento permanente. Assim, evita-se a criação de

privilégios, como, por exemplo, o descumprimento de prazos ou o desrespeito à ordem de uma

fila. Quando se trata de um pedido de informação, a maior parte dos casos, a Ouvidoria responde

diretamente, sem a necessidade de se fazer consultas às áreas técnicas. As respostas são obtidas

em um banco de informações criado na própria Ouvidoria, com base em demandas respondidas

anteriormente. Para as áreas técnicas, “a gente manda o que é pepino; o que a gente não

consegue resolver”, explica Vera (Ouvidora do Detran).

Porém, quando se tratam de assuntos que envolvem algum dano causado aos cidadãos,

como o não atendimento a um direito, negligências e abusos de poder, as Ouvidorias realizam

procedimentos mais complexos. O caso mais simples é o envio de uma mensagem de correio

eletrônico para o chefe da área citada. Nesse caso, o e-mail tem valor de ofício. Em casos muito

graves, como nas denúncias, pede-se para o cidadão apresentar alguma comprovação ou

evidência objetiva do que aconteceu.

Mas, raramente o cidadão consegue ter alguma prova. Nessas condições, o cidadão deve

fazer uma descrição minuciosa da ocorrência e assiná-la. Em condições adversas, em que o

cidadão não tenha condições de fazer a descrição de próprio punho, ele será entrevistado pela

Ouvidoria que ‘reduzirá a termo’93

a sua declaração. A declaração será lida pelo cidadão e, em

seguida, será assinada por ele e por um representante da Ouvidoria – normalmente, o próprio

Ouvidor.

Muitas demandas apresentam solicitações de informações técnicas, participações em

pesquisas e convites para proferir palestras ou comparecer a eventos. Casos assim, também, são

submetidos à análise da área demandada. Ela deverá examinar a questão apresentada e responder

à Ouvidoria. Cabe a Ouvidoria fazer o contato com o cidadão. Na Secretaria da Fazenda, onde as

práticas de Ouvidoria estão solidamente institucionalizadas, há uma Comissão de Ética

permanente, criada nos termos da Lei Estadual nº. 10.294/1999. Essa comissão é formada por

três membros, um deles, o Ouvidor, que a preside. Casos de mais alta complexidade, como

93

Significa passar para a forma escrita uma declaração oral.

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eventual denúncia de assédio ou de abuso de poder, são tratados no âmbito dessa comissão. Já os

casos de denúncia de sonegação e de corrupção são encaminhados para a Corregedoria da

Administração Tributária, em conformidade com o Art.87, da Lei nº 10.177/1998 – Processo

administrativo no Estado de São Paulo. E artigo 14 da Lei nº 8.429/1992 - Improbidade.

Regra geral, as Ouvidorias não estabelecem um prazo mínimo padronizado para as

respostas das áreas técnicas. Como explica Adriana (Unicamp), tudo depende de uma análise do

conteúdo da manifestação e da sua gravidade. “Há assuntos que requerem urgência e outros que

exigem análise”, explica Adriana. “Fazemos um papel de cobrança bastante intenso.

Semanalmente a gente liga pergunta se já há um posicionamento, mas é melhor que esse

posicionamento venha bastante estudado do que recebermos uma resposta proforma”, comenta

Adriana.

José Luiz esclarece que na UNICAMP, a Ouvidoria encaminha as solicitações por

escrito. As áreas elaboram seus pareceres também por escrito para a Ouvidoria. A Ouvidoria

analisa o grau de adequação do conteúdo desse parecer, ajusta a linguagem e o envia ao cidadão

solicitante. No entanto, as situações envolvendo demandas de maior complexidade, como as

denúncias, o gestor pode ser convocado para ir à Ouvidoria e fornecer mais explicações. “Em

princípio”, explica José Luiz, “a preocupação da gente é atender a solicitação. Quando não é

possível atender, é preciso explicar essa impossibilidade”.

De forma semelhante, Florêncio (Secretaria da Fazenda) faz o controle de tudo que

circula pela Ouvidoria: “vou controlando. Eu tenho os protocolos que já foram encerrados, que

passaram aqui e tem aqueles que estão em trânsito, aguardando algumas respostas”. A criação de

pontos de controle, para que se consiga rastrear a informação é muito importante, alerta

Florêncio.

De acordo com Pinheiro, a maioria das manifestações apresentam questões muito

simples, às quais a Ouvidoria responde direta e imediatamente, como os pedidos de informações

sobre os serviços prestados pelo órgão. Algumas trazem desabafos genéricos sobre algum

acontecimento no Estado ou país, sem relação direta com os serviços do Poupatempo. Essas

também são respondidas imediatamente, basicamente com um agradecimento pelo envio da

manifestação. Outras criticam determinada política de governo que causou algum impacto no

órgão, mas cuja decisão não está na esfera de decisão do Poupatempo, como por exemplo, o

aumento de uma taxa de cobrança pela obtenção da segunda via de um documento. Essas

solicitações são também respondidas imediatamente. Dada a natureza da questão, fornece-se a

explicação de que se trata de uma decisão de governo e não do Poupatempo. Há ainda

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manifestações cujo objeto abordado é claramente da competência de outro órgão público ou

mesmo de outro nível de governo federado.

Contudo, explica Pinheiro que, por vezes, há problemas que aparecem e que ninguém

sabe como resolver. Eles acabam chegando à Ouvidoria. Caberá à Ouvidoria interagir com as

organizações que integram o Poupatempo e pesquisar até encontrar aquela que pode resolver o

problema. Por isso – lembra Pinheiro, “a Ouvidoria tem a prerrogativa de circular em todas as

áreas da organização”.

Mesmo depois da análise, classificação e envio da demanda pela Ouvidoria a uma

determinada área, após a análise técnica, a área pode demonstrar que a falha não é de sua

responsabilidade. Rubens (Secretaria da Fazenda) fornece um exemplo: o pagamento dos

servidores é feito com base em informações repassadas pelas áreas de recursos humanos dos

órgãos setoriais. Às vezes – diz Rubens - recebemos aqui a informação de que a Secretaria de

Fazenda não está pagando corretamente determinado funcionário e, quando se analisa o que está

acontecendo, constata-se que a falha está ocorrendo devido a erros na informação repassada pelo

órgão setorial. Rubens relata que certa vez ocorreram inúmeros problemas com a Secretaria da

Educação, envolvendo a atribuição de aulas aos docentes. A Ouvidoria recebeu uma enxurrada

de reclamações. “Para as pessoas, o problema estava aqui na Secretaria da Fazenda, que nós não

estávamos fazendo o pagamento correto. Então, o que a gente fez? Quando chegava uma

reclamação de um docente, a gente avaliava. Se a gente verificava que não tinha recebido as

informações da Secretaria da Educação, a gente ligava pra unidade e pedia para que eles

corrigissem o problema, em vez de ficar empurrando a pessoa de um para outro lado”.

No DETRAN todos os canais disponíveis para o cidadão se manifestar foram integrados

em um sistema informatizado denominado Sistema de Manifestação do Cidadão (SMC). O

Disque DETRAN, O Fale com o DETRAN e a Ouvidoria compartilham o mesmo sistema. Além

desses três canais, disponíveis pela Internet, o DETRAN tem um sistema de manifestação por

meio de formulário em papel, chamado ‘Caixa de Sugestões’. São urnas que ficam espalhadas

pelas unidades do órgão. Ao lado dessas urnas ficam disponíveis formulários impressos. O

cidadão pode preenchê-los e fazer sugestões ou reclamações. Uma vez depositados nas urnas,

cada unidade os recolhe, entram no sistema SMC e transcreve a mensagem.

A Ouvidoria consegue visualizar todas as manifestações. Quando alguém remete uma

demanda à Ouvidoria para tratar de um problema de rotina, a Ouvidoria repassa essa

manifestação para a Diretoria de Atendimento, por intermédio do Sistema de Manifestações do

Cidadão. Jânio exemplifica: “pedi o licenciamento do meu veículo e não chegou em casa. Então,

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esse tipo de situação, que é algo comum, corriqueiro, a Ouvidoria nos encaminha via sistema e a

gente trata. A gente tem um prazo, no máximo sete dias para responder para o cidadão. Sete dias

desde o dia que o cidadão fez a manifestação. Algumas vezes, quando são problemas mais

complicados a Ouvidoria me encaminha notes (Correio eletrônico: grifo) dizendo... olha, mandei

essa manifestação... ainda não tive o retorno, ou quando ela recebe por outros meios, que às

vezes ela recebe por e-mail, então, ela me encaminha diretamente pro meu notes pessoal”. Às

vezes, quando a Diretoria de Atendimento tem a informação disponível, a resposta é enviada

imediatamente. Quando não é possível responder imediatamente, a área elabora um parecer e o

remete à Ouvidoria para que esta responda ao cidadão. Às vezes, em casos mais simples e

rotineiros, a Diretoria de Atendimento entra em contato com o cidadão e resolve diretamente.

Nesses casos, a Ouvidoria é informada que o problema já foi sanado. Jânio exemplifica as

situações em que o problema é resolvido diretamente com o cidadão. Ele diz que, as vezes, o

cidadão reclama, mas não fornece os dados necessários para a investigação do problema, como o

nome completo e o número do CPF. Nesses casos, diz, a gente mesmo entra em contato com o

cidadão. “A gente já responde e informa a (Ouvidoria: grifo) que essa dificuldade foi resolvida e

que o cidadão já teve retorno”.

No Poupatempo, a complexidade começa com o volume de atendimento. De acordo

com Ilídio, os postos do Poupatempo realizam, em média, 115 mil atendimentos por dia. Certas

situações são simples, envolvendo, por exemplo, alguma falha no agendamento. Alguém

percebe, avisa a Ouvidoria, a Ouvidoria comunica a área responsável e esta toma a ação corretiva

e retorna para a Ouvidoria, informando as providências adotadas. E há situações mais

complicadas. Ilídio dá um exemplo: “Desde a sua implantação, o Poupatempo fazia o

atendimento de maneira espontânea. O cidadão que precisava de documentos ia até a unidade

mais próxima ou que lhe era conveniente e fazia a solicitação do serviço. Depois de algum

tempo, verificou-se que a demanda por atendimento na hora do almoço havia crescido muito. O

número de funcionários da unidade não suportava essa acentuada curva de demanda, que ocorria

sempre entre às 10h e às 15h. Fora desses horários e, principalmente, nos períodos de férias,

havia ociosidade. O Poupatempo não tem flexibilidade para fazer o ajuste dos pontos de

atendimentos de acordo com a demanda. Ele precisa trabalhar com dados da média. Evidente que

a espera nos horários de maior demanda foi causando desconforto para o cidadão e provocando

um esgotamento dos recursos físicos e humanos”, explica Ilídio.

Então, há alguns anos o Poupatempo adotou o agendamento prévio do atendimento. “Na

verdade”, diz Ilídio, “não é uma solução que nos agrada totalmente. Nós gostaríamos que a

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pessoa quando quisesse fosse lá e fizesse o serviço. Mas, diante da demanda (...) você não

poderia melhor organizar”.

Ilídio explica que os resultados dessa nova política foram considerados muito bons. “A

espera do cidadão dentro do Poupatempo foi eliminada. No entanto, com essa implantação, os

dirigentes do Poupatempo depararam com outra questão, com outro problema: as senhas estavam

sendo objeto de comercialização. Apareceu o profissional da fila, o cambista da fila. Então, para

coibir essa prática ilegal, criou-se uma etapa adicional no agendamento. Para fazê-lo, o cidadão

deve entrar com um endereço de e-mail ou criar um. Ele recebe de volta nesse e-mail a

confirmação. Só aí, ele entra em uma tela pra agendar o serviço. Assim, uma pessoa não

consegue agendar pra outra. Ou, para fazê-lo, você teria que ir criando vários e-mails, o que não

é muito lógico”, explica Ilídio. “Evidentemente que isso cria problemas para o cidadão”, admite

Ilídio. “Alguém que precisa levar os filhos vai ter que ficar criando contas de e-mails. Mas, foi o

preço que se teve que impor ao cidadão para conter a comercialização de senhas”.

“Essa prática tem sido motivo de muitas discussões entre nós e a Ouvidoria”, comenta

Ilídio. “Não que nós achamos que isso está correto. Não, a Ouvidoria tem razão, porque isso não

é prático”. Muitos cidadãos reclamam de ter que abrir várias contas de e-mails. O Poupatempo

está trabalhando em parceria com a Ouvidoria para procurar uma solução para o problema, mas

não encontrou ainda.

A integração das diversas Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo é feita por

meio da elaboração de relatórios gerenciais semestrais. Esses relatórios são enviados à Comissão

de Centralização das Informações do Serviço Público (CCISP), colegiado vinculado à Secretaria

de Gestão Pública e integrado pelos seguintes órgãos: Associação Brasileira de

Ouvidores/Ombudsman, Fundação Procon, Fundação Seade, Poupatempo, Secretaria da Casa

Civil, Secretaria da Educação, Secretaria da Fazenda, Secretaria de Gestão Pública, Secretaria

da Justiça e Defesa da Cidadania, Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Regional,

Secretaria da Saúde, Secretaria da Segurança Pública.

A CCISP, então, consolida os dados, elabora um relatório geral do conjunto de

Ouvidorias do Governo do Estado e o remete ao Presidente da Corregedoria Geral da

Administração, ao Secretário de Gestão Pública, ao Secretário da Casa Civil e ao Governador do

Estado de São Paulo.

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Os relatórios são elaborados em três níveis. O do órgão ou unidade administrativa de

governo, o da secretaria sede e o geral, este, reunindo os dados de todas as Ouvidorias do

Governo do Estado de São Paulo.

No âmbito da unidade administrativa, o relatório contem informações sobre a demanda

ocorrida naquela organização específica (fundação, estatal, autarquia ou sede de uma secretaria

de estado). Ao nível das secretarias sedes consolidam-se os relatórios dos órgãos vinculados a

uma determinada secretaria. Finalmente, na CCISP, elabora-se o relatório geral, agrupando os

dados de todas as secretarias sedes, uma análise qualitativa global da demanda e recomendações

para subsidiar iniciativas governamentais para a melhoria da qualidade da gestão pública.

Em todos os níveis os relatórios contém uma descrição estatística do atendimento

realizado no período de seis meses, uma análise qualitativa das manifestações recebidas e

recomendações dos Ouvidores para a organização lidar com os problemas identificados.

Quanto aos prazos a serem obedecidos, o processo de elaboração ocorre como explicado

no Quadro 06:

Quadro 6: Prazos para elaboração e entrega de relatórios gerenciais

1º semestre 2º semestre

Período do relatório Janeiro a junho de cada ano Julho a dezembro de cada ano

Prazo máximo para que as

Ouvidorias dos órgãos enviem

seus relatórios às Ouvidorias

das Secretarias sedes.

Último dia útil do mês de julho Último dia útil do mês de janeiro.

Prazo máximo para que as

Ouvidorias das Secretarias

sedes enviem os relatórios

setoriais consolidados à CCISP.

Último dia útil do mês de

agosto.

Último dia útil do mês de

fevereiro

Prazo máximo para a CCISP

entregar o relatório geral o

senhor Governador do Estado

de São Paulo.

Último dia útil do mês de

setembro.

Último dia útil do mês de março.

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador.

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4.3.4 Poder e autonomia do Ouvidor.

As fontes de poder formal do Ouvidor estão asseguradas pela Lei Estadual nº.

10.294/1999 e pelo Decreto Estadual nº. 44.074/1999. Ambos foram publicados no segundo

mandato do Governador Mário Covas. Assegura-se ao Ouvidor autoridade para agir

internamente como representante do cidadão, garantindo-lhe acesso a todas as áreas e

informações existentes no órgão. Entre as suas principais atribuições estão:

Acolher o cidadão externo (o usuário de serviços públicos) e o interno (o funcionário da

organização), receber as manifestações e analisar a pertinência do seu conteúdo.

Fazer o encaminhamento interno das manifestações para as áreas técnicas e acompanhar o

processo de análise.

Fazer o acompanhamento de tudo que é encaminhado para as áreas técnicas da organização e

cobrar justiça e celeridade na apreciação do problema.

Avaliar a qualidade do conteúdo do parecer elaborado pela área técnica e enviar a resposta ao

cidadão, sem subterfúgios, respondendo de maneira direta e objetiva a questão por ele

colocada.

Produzir relatórios sobre a demanda atendida contendo descrições estatísticas e análises

qualitativas fundamentadas em fatos e dados.

Fazer recomendações específicas para abordar os problemas identificados.

Agir preventivamente, evitando a repetição dos mesmos problemas para outras pessoas.

Manter um olhar sistêmico sobre a organização, sempre que possível fazendo generalizações

com vistas a reforçar o caráter preventivo da ação da Ouvidoria.

No exercício da função, além de dar encaminhamento adequado às manifestações

recebidas, o Ouvidor pode solicitar informações diretamente a qualquer funcionário, sem se

submeter à estrutura hierárquica da organização. A lei lhe assegura o direito de livre acesso a

todos os setores e a todas as informações da organização, para que ele possa conduzir

investigações e propor soluções para os problemas identificados. Tem autoridade ainda para

estimular e organizar formas de participação dos cidadãos no planejamento e na fiscalização dos

serviços.

O Ouvidor reporta-se diretamente ao dirigente do órgão com mais elevado poder

hierárquico e recebe proteção especial da legislação, garantindo-lhe o exercício das suas funções

com independência e autonomia, protegendo-o de toda e qualquer ingerência político-partidária.

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Uma característica dessa proteção é a inamovibilidade temporária de que desfruta. Tem

assegurado a permanência no cargo por no mínimo um ano, podendo ser renovado

indefinidamente.

De acordo com Florêncio (Secretaria da Fazenda), a natureza do trabalho da Ouvidoria

ainda não está bem compreendida, pois “há Ouvidores que acham que seu papel é de gestor da

organização, quando não é”, diz. Ele entende que os Ouvidores têm poder adequado, mas que

existem limites para a sua atuação. “No passado” - diz Florêncio – “um ouvidor condenou e

mandou enforcar Tiradentes. Hoje, há ouvidores que querem ser os Tiradentes”. Para ele isso

parece uma causa perdida. Ele diz já ter presenciado, em reuniões da categoria, pessoas acharem

que tem poder de mando dentro da instituição: “pra mandar fazer, mandar executar, mandar um

monte de coisas”. Florêncio acredita que isso “não é possível em lugar nenhum e que isso é falta

de uma percepção mínima do que é o trabalho do Ouvidor; de se entender que ele é parte e não a

totalidade. E que a parte é, necessariamente, menor que o todo”. “Minha participação” - diz - “é

essa, escrevendo (relatórios e críticas: grifo), brigando com os caras; não mostrando o nome do

cidadão, colocando meu nome, pois quando eu mando uma reclamação registrada no expediente

eu escrevo (assino: grifo): Ouvidoria Fazendária”. “Não vai o nome do cidadão. Ele não vai ser

perseguido (...) fazer isso... só isso, já é nosso poder... nosso dever e nossa obrigação. (...) O

trabalho da Ouvidoria é garantir que isso continue existindo”, afirma.

Na Secretaria da Fazenda, o poder da Ouvidoria, além daquele previsto na legislação

das Ouvidorias do Governo do Estado, por intermédio da Lei nº 10.294/199 e do Decreto nº

44.074/199 – já mencionados – é reforçado por meio de uma Resolução, complementando a

legislação geral, comum a todas as demais Ouvidorias do sistema estadual. Nesta resolução, diz-

se, entre outras coisas, que um simples e-mail da Ouvidoria tem valor de ofício. De acordo com

Florêncio “quando a Ouvidoria falar tem que ser dada prioridade. Se tiver 300 (...) o número um

deve ser o que chegou da Ouvidoria”. E complementa dizendo que “a resolução diz que o

funcionário que procrastinar, que não atender a Ouvidoria ou deixar pra depois, será penalizado

nos termos da lei, que é o do Estatuto do Funcionalismo Público”. Contudo, Florêncio entende

que não há necessidade de usar esse arsenal esse arsenal de poder letal.

Rubens considera que a Ouvidoria da Secretaria da Fazenda tem atuação muito ativa: “a

gente costuma trabalhar o máximo possível alinhado e pensando sempre na solução”. Para ele, o

Ouvidor atua com autonomia e independência. Mas, diz que “não posso dizer assim 100% de

independência”. “De repente, algo que possa ter uma repercussão geral negativa, talvez, ele

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precise consultar o Gabinete do Secretário, para não criar uma situação muito pior e muito mais

desfavorável”.

Fazendo coro com Florêncio, Adriana acredita que o poder do Ouvidor vem da

capacidade de persuasão: “temos o jogo da palavra, o jogo da prova numérica, o jogo do discurso

ágil. É preciso dizer, ‘olha professor ou olha diretor’, temos a possibilidade de tratar esse assunto

dessa maneira, mas o senhor tem toda autoridade para decidir. Eu sempre dou um voto de

confiança para aquele que procuro. Então, ‘eu digo: eu sei professor que o senhor é uma pessoa

extremamente aberta, que o senhor é uma pessoa muito interessada nessa questão e eu tenho

certeza que vou obter o apoio do senhor nisso’. Falo isso e aí coloco o problema. Se ele não era

atencioso e apoiador, ele ficou, porque eu já atribuí isso a ele”, explica Adriana.

Mas, segundo Adriana, os Ouvidores encontram pessoas resistentes, que cultivam a

cultura de que ceder é perder. Ao defrontar com casos assim, o Ouvidor atua para mostrar que

não responder à Ouvidoria pode ser ainda pior, levando-o a ter que se justificar futuramente

junto a um órgão de imprensa ou responder perante o judiciário.

Vera concorda com Adriana. Ela diz que tem poder adequado para realizar o seu

trabalho, inclusive por meio do apoio dos dirigentes do DETRAN. Mesmo assim, “nem sempre a

gente consegue resolver, porque há pessoas que bloqueiam”. Vera acredita que o poder e a

autonomia da Ouvidoria podem melhorar através do aperfeiçoamento institucional. Ela acredita

existir respeito pelo trabalho da Ouvidoria, mas, falando em hipótese, ela diz que se ouve94

“muito fique quietinho. Não assim claramente mas...”.

Para ter poder “a Ouvidoria precisa estar regulamentada”, diz Adriana. “A gente é um

país de leis. O aparato institucional atual foi muito importante, sem dúvida que representou um

avanço quando surgiu, mas ele precisa ser renovado, precisa ser rediscutido, trazer à tona as suas

limitações, oxigená-lo”, analisa. Além da adequação das leis, Adriana considera importante uma

maior união por parte dos ouvidores do Estado. “Quando você melhora a escrita da lei, a própria

atribuição do Ouvidor, você dá um ‘empoderamento’, ‘empowerment’ diferenciado”, diz. E

adverte: “Eu acredito que a gente hoje tá fazendo muito a linha de atendimento, de elaboração de

relatórios. A gente não tem retorno; não tem feedback”.

Cesar (Poupatempo) acredita que o poder da Ouvidoria oscilou em função da troca de

dirigente. Assim, “tem alguns momentos em que a gente se sentia plenamente respaldado e

outros nem tanto”. Para Pinheiro (Poupatempo), o dimensionamento da equipe da Ouvidoria não

94

Ao fazer essa afirmação, Vera falava em termos genéricos. A frase não pode ser relacionada ao trabalho dela na

Ouvidoria do DETRAN.

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acompanhou o crescimento da importância da entidade no interior do Poupatempo. Ele mostra

isso em números: “nós tínhamos 200 casos em três ou quatro meses, que davam 50 casos por

mês. A gente já tava pedindo mais equipe. Dez anos atrás. Hoje, nós temos mil manifestações

por mês. E a equipe não mudou muito”.

De acordo com César, já houve Presidente que dizia que a Ouvidoria deveria bater

muito firme nas áreas, que ele respaldava. “Na verdade” – diz – “não é isso; nunca foi isso. A

nossa trajetória sempre estabeleceu uma relação de parceria. Quando tem que fazer uma ação

mais firme, a gente faz”. Mas, a Ouvidoria tem a sua própria estratégia, observa César.

Pinheiro considera que o poder institucional é muito importante para o trabalho da

Ouvidoria. Até mesmo mais importante do que a capacidade de mediação e diálogo. Sem o poder

institucional Pinheiro acha que, talvez, não funcionaria. “O fato de o Ouvidor estar ligado à

autoridade hierárquica com maior poder na organização faz toda diferença”, acredita Pinheiro.

Cesar entende que são duas variáveis que se complementam, criando as condições de

funcionamento da Ouvidoria: “o camarada sabe que tem um diálogo com você. Mas sabe que

você é ligado diretamente ao Presidente”, diz.

Pinheiro diz poder realizar o seu trabalho de Ouvidor com independência e autonomia.

São requisitos assegurados na legislação, mas que dependem em grande medida de uma

conquista do Ouvidor no interior de cada organização: “eu me sinto com essa autonomia, com

essa independência. Acho que nem tudo é perfeito. Acho que tudo é uma conquista também.

Mesmo que a lei nos outorgue autonomia e independência, como prerrogativa, isso tem que ser

conquista feita no dia-a-dia”. E é, de acordo com Pinheiro, uma conquista difícil de ser feita e

muito fácil de ser perdida.

Para Pinheiro, a estratégia de nomeação dos Ouvidores Públicos paulistas pode

representar uma limitação ao exercício automático da independência e da autonomia, implicando

conquistá-las. “Eu tenho uma posição sobre isso”, enfatiza Pinheiro. “Antes eu defendia que as

Ouvidorias têm que ter uma independência institucional (...) como, por exemplo, da polícia, que

é uma estrutura indicada pela sociedade civil. Entidades indicam e o governado legitima. Esse

não é o modelo no qual estamos mergulhados. Quem indica os nossos nomes é a administração

(...). Então, isso tem os seus limites, como qualquer outra situação, mas, ao mesmo tempo, eu

acho que, independente desses limites, as Ouvidorias tem poder para atuar”.

Para Pinheiro, o fortalecimento das Ouvidorias passa por uma compreensão melhor do

seu papel na organização, tanto por parte dos gestores quanto dos Ouvidores. “Ouvidor não é um

dedo duro, mas eu aponto os problemas. Pode ser com dedo mole, mas eu aponto”, diz Pinheiro.

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E complementa: “muitos gestores podem usar essas informações para instrumentalizar seus jogos

de poder”. César considera ser fundamental enfatizar a atuação técnica da Ouvidoria: “todo

mundo aqui sabe como penso politicamente (...). Não vou atuar de maneira política aqui dentro.

Não. Tem que ser técnico”.

De acordo com Pinheiro, “é preciso estabelecer uma relação fundada na ética e no

diálogo”. Entretanto, “diante da percepção de que uma área está criando dificuldades para a

Ouvidoria e para o cidadão, é preciso saber recorrer aos recursos de poder da estrutura

hierárquica institucional”.

Ilídio (Poupatempo) considera que a atuação da Ouvidoria do Poupatempo é adequada e

independente: “eu acho que eles têm uma independência, sim, porque essa relação é direta e

nenhum de nós tem ingerência sobre eles em nenhum aspecto. A Ouvidoria tem um canal aberto

o tempo todo com a diretoria e a presidência do Poupatempo. Eles podem, a qualquer hora,

apresentar as questões para serem discutidas”. “Por vezes” - explica Ilídio- “o que a Ouvidoria

deseja não pode ser feito, por uma questão de tecnologia. É o que ocorre com a política de

agendamento, que implica não poder cadastrar várias pessoas com o mesmo e-mail: eles já

andaram discutindo, já andaram relatando pra Presidência. A gente vem tentando encontrar

alternativas. Não é nem o fato de concordar ou discordar. É um problema tecnológico: identificar

o que fazer pra você manter o controle. Enfim, acho que eles atuam, sim, de forma

independente”.

De acordo com Ilídio, o poder da Ouvidoria na organização emana mais das pessoas do

que da posição do órgão na estrutura: “eu acho que se não tiver a institucionalização não vai

existir a Ouvidoria. Isso pra mim é muito claro. Agora, havendo a institucionalização, eu acho

que quem compõe a Ouvidoria faz muita diferença”. Segundo pensa, “o Ouvidor precisa dar

demonstrações de que se importa com os problemas do cidadão”.

De acordo com Jânio (DETRAN), há “uma ordem expressa do Presidente do DETRAN

para que as solicitações da Ouvidoria sejam acolhidas com prioridade”. Jânio entende que esse

apoio da direção é muito importante, pois estabelece qual é a ordem de prioridade. Quando Jânio

chegou ao DETRAN na manhã do dia em que concedeu entrevista para essa pesquisa, havia em

sua caixa de mensagens 286 (duzentos e oitenta e seis) e-mails aguardando verificação. Ele diz

que “minha ordem de prioridade - que não tem como em dez minutos ler tudo – é o

Superintendente e a Ouvidoria. Respondi os dois, aí eu vou ver quais são os outros problemas.

Primeiro o Diretor Presidente. Em seguida a Ouvidoria”, repetiu.

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Vera confirma que o apoio que recebe da direção do DETRAN tem sido fundamental

para o desempenho das atividades da Ouvidoria: “No DETRAN”, explica Vera, “é diferente pela

forma como o (Superintendente) criou e impôs (a Ouvidoria: grifo). Assim, de vez em quando...

uma pessoa demora muito pra responder alguma coisa. Aí, eu faço uma cobrança. Depois de

quinze dias, outra. Mais quinze dias, outra. Depois de três cobranças, a última eu ponho todas

num e-mail só e mando para o sujeito com cópia pro (...), o Superintendente”.

4.3.5. Fundamento racional do atendimento nas Ouvidorias

A análise dos dados coletados na pesquisa mostra que o trabalho dos Ouvidores se

fundamenta em uma dupla racionalidade, de acordo com a tipologia apresentada no Quadro:

Quadro 07: Fundamentos racionais do atendimento na Ouvidoria

Tipo de racionalidade Principais características da ação

Racional em relação à

finalidade de cumprir a lei.

O Ouvidor deve garantir o cumprimento da lei, representando o cidadão

no interior da organização onde trabalha, protegendo e defendendo os

seus direitos.

Monitorar a administração para que ela cumpra a lei e entregue ao

cidadão-usuário de serviço público aquilo que é dele por direito. Deve

auxiliar o cidadão a compreender os seus direitos e deveres e defendê-lo

no interior da organização. A administração deve fazer, no mínimo, o que

está legalmente estabelecido.

Racional em relação a

valores.

O Ouvidor deve acolher o cidadão e se colocar no lugar dele.

O trabalho do Ouvidor deve se fundamentar nos princípios da

solidariedade. Ele deve sempre ouvir o cidadão, acolhendo-o e

oferecendo-lhe orientação. O Ouvidor não pode ignorar o aparato legal

de normas e regulamentos, mas deve se esforçar para interpretá-lo de

maneira flexível, de tal modo a colocá-lo em benefício do cidadão.

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador.

Florêncio entende que a base da conduta do Ouvidor “começa com os valores de

cidadania, de acreditar no cidadão. Depois, vem o sistema de normas, também muito relevante”,

salienta. Ele afirma que “(...) uma coisa pra iniciar o atendimento - o valor principal - é não

duvidar da pessoa; acreditar na palavra dela. (...) eu não posso duvidar da palavra do cidadão”.

Entretanto – explica Florêncio -, “para salvaguardar a palavra do cidadão, para que ela não seja

desacreditada, é preciso colocar a informação no padrão que a instituição atribui valor, que é

aquela que está escrita. A gente tem aqui um formulário, uma coisa bem protocolar de serviço

público. (...) a pessoa põe o nome, escreve o que tá acontecendo (...). Eu pergunto: o senhor já foi

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ao Posto Fiscal? O senhor tem que ir lá... ele vai resolver. A pessoa responde, ‘não, eu já fui’. O

senhor pode demonstrar? Qual foi o protocolo? Às vezes o cidadão não tem nada. Só a palavra”.

Então, diz o Ouvidor: “vou dar fé à sua palavra. O senhor foi... só escreve pra mim o que faltou,

quando o senhor foi. Ele escreve e assina. E a pessoa da Ouvidoria que o atendeu assina também.

Isso torna legitimo o nosso trabalho. A palavra dele tem valor para nós”.

“A Secretaria da Fazenda não é área fim”, explica Florêncio. “Ela não dá casa, não

entrega serviços. O que ela faz? Ela vai tirar o dinheiro do seu bolso e depois vai distribuir.

Agora, pra que ela possa fazer isso, ela tem que te oferecer condições para que você compreenda

que isso tá sendo feito dentro de um padrão lícito, um padrão que é transparente, confiável. (...)

então (se) você vai ao posto fiscal você tem que ser atendido; tem que ter todas as informações;

(...) essa é uma preocupação, saber quais são as regras que são colocadas (...)”.

Além do sistema de normas legais, escrito, Florêncio atribui importância também ao

sistema cultural. Ele relata que, certa vez, um colega Ouvidor lhe disse que havia na Secretaria

da Fazenda um grande número de normas. Esse colega teria dito, com certa ironia: “pra ir ao

banheiro você tem que fazer um expediente aqui”. E o colega continuou: “nunca vejo você sem

gravata. Como é que é isso, diretor do departamento tem que usar gravata?” Embora na

Secretaria da Fazenda não exista norma formal exigindo o traje social, todos usam – explica

Florêncio -, acatando uma norma social. Florêncio explica: “não é (norma: grifo) escrita. É

social. Agora, por que não vou usar? Incomoda? Incomoda. Calor e coisa e tal. Só que é assim

que os meus pares se vestem”. Ele acredita que “(...) isso facilita o diálogo; isso faz parte da

construção da referência”.

Florêncio atribui importância estratégica ao cumprimento da lei não apenas pela questão

da legalidade, como se ela fosse um fim em si mesma. Para ele é preciso exigir o cumprimento

da lei como forma de dar garantias ao cidadão. “Não se trata de ser legalista, mas de garantir que

seja entregue ao cidadão pelo menos o mínimo, que é aquilo que a lei diz que tem que ser feito.

Isso não é fácil. É muito difícil. Eu não decido. Eu aplico a lei”, diz Florêncio.

De acordo com César (Poupatempo), a Ouvidoria deve interpretar a lei em benefício do

cidadão. Ele diz: “nós temos leis pra tudo. Temos regras, mas elas têm que ser interpretadas

diante de uma determinada situação. Cada situação contém certas especificidades. Então, é

preciso interpretar cada situação, correlacionando a cidadania e a lei”, diz.

Para Pinheiro (Poupatempo) “é a cidadania que dita o primeiro contato, que leva o

Ouvidor a acolher e tentar entender o problema que aflige o cidadão. No Poupatempo, entra

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qualquer cidadão. Nosso lema é: o cara que entra no Poupatempo tem que sair mais cidadão do

que quando entrou”.

“Mas” - Pinheiro adverte -, “o Ouvidor precisa contextualizar o problema no ambiente

legal. As questões de cidadania (...), vamos dizer, estão em primeiro lugar. Mas é obvio que você

não pode deixar de analisar o aspecto legal”. Pinheiro diz ter ficado muito sensibilizado com o

caso de uma moça grávida, que perdeu o emprego e levou calote da empresa. Era uma empresa

terceirizada, que prestava serviços ao Poupatempo. Mas ele justifica: “essa empresa não é minha.

Eu tenho limite institucional para atuar em relação a essa demanda”. Entretanto, Pinheiro

acredita haver uma ligação, pois essa menina trabalhava dentro do Poupatempo. “Então’ – diz -,

“é preciso ir montando o quebra-cabeça. A cidadania oferece o impulso para agir, mas ao

argumentar, o Ouvidor precisa contextualizar as coisas de acordo com o aparato de normas

legais. É preciso dar a informação correta à cidadã, de que a ilegalidade foi cometida pela

empresa que a contratou, e não pelo Poupatempo. Em seguida, cobrar o Estado”. “Eu não tenho

um aprofundamento sobre a questão da terceirização. Eu não tenho nada contra diminuir o custo.

Mas diminuir o custo significa você sacrificar outras dimensões da cidadania? Aí é uma

indignação que até foge ao papel do Ouvidor. Você, como cidadão, puxa vida, não dá pra aceitar

certas coisas”.

Para Cesar, dizer ao cidadão qual é o limite da Ouvidoria é uma questão de boa

informação, algo fundamental no trabalho do Ouvidor. Dizer às pessoas: “a partir daqui eu não

posso mais atuar”. Ele considera grave a questão dos salários dos funcionários terceirizados no

Poupatempo, pois “as pessoas estão ganhando salários diferentes para fazer as mesmas coisas.

Não há um padrão salarial entre os funcionários do Governo e os terceirizados e nem mesmo

existe uma tabela que estabeleça valores equivalentes entre os diferentes postos do Poupatempo.

A Ouvidoria pretende recomendar em relatório que os próximos editais contemplem essa questão

salarial”.

Apesar desses problemas, Pinheiro entende “que o funcionário não pode transferir para

o cidadão a culpa pelo seu salário, jogando nos ombros dele essa responsabilidade, oferecendo-

lhe serviços ruins”. Mas, ele concorda que o problema dos salários cria distorções estruturais.

“Um estado que quer construir cidadania não pode destruí-la”, adverte Pinheiro, referindo-se aos

contratos terceirizados firmados entre o Governo do Estado de São Paulo e empresas privadas

para a implantação de postos do Poupatempo.

Para a Ouvidora da UNICAMP, Adriana, “a instância pública tem que estar na

legalidade, no regimento. Contudo, às vezes, o que é legal, regimental, não é justo. Está na lei,

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mas não é justo”. “Então”, diz, “é lógico que a gente não pode fugir do que é regimental. Mas,

mostrar que, às vezes, é preciso ter adequações dos preceitos da legalidade, flexibilizações de

regras (...)”.

Para Elza Lobo (Secretaria da Saúde), “os valores humanos em relação à população

devem ser a base do atendimento na Ouvidoria, procurando dar voz ao cidadão e fazendo,

também, um trabalho de educação da população”. Segundo diz, “por vezes, a falta de

conhecimento dos procedimentos e dos canais de diálogo com as instituições levam a situações

de extremo estresse”. Para ilustrar seu ponto de vista, Elza Lobo relata o acontecimento a seguir:

Segundo Elza, o Gabinete do Secretário da Saúde lhe enviou uma dura cobrança, pois a

Ouvidoria não teria respondido a uma solicitação do Ministério Público. Segundo lhe dissera o

Gabinete, tratava-se de uma ação movida por um cidadão, pleiteando que seu filho recebesse

cuidados médicos urgentes. Dada à suposta negligência com o Ministério Público, agora, a

resposta deveria ser dada em até 48 horas. Naquela semana, a Ouvidoria havia mudado de

prédio. Por isso muitos documentos não estavam ainda organizados e arquivados em seus lugares

apropriados. “Muita coisa estava empilhada. E tínhamos 48 horas para responder”, lembra Elza.

Através da companhia telefônica a Ouvidoria conseguiu o número do telefone de uma pessoa

que, supostamente, era aquela que necessitava de cuidados médicos. A primeira descoberta feita

pela Ouvidoria foi que a pessoa que necessitava de tratamento não era a mesma que constava na

mensagem recebida do Gabinete do Secretário. Na verdade, uma senhora havia entrado com uma

ação no Ministério Público em defesa do filho da empregada. A empregada trabalhava no

sistema de diarista, ou seja, comparecendo àquela casa apenas alguns dias por semana. A

Ouvidoria telefonava e não havia ninguém na casa para atender o telefone, pois a dona da casa

encontrava-se em viagem de férias. De acordo com Elza, “quando o prazo de 48 horas já estava

terminando, tivemos a sorte de encontrar a empregada na casa (...). A empregada havia ido à

residência em um dia que não era seu dia normal de trabalho”. “Foi um anjo da guarda”, reforça.

A empregada deu o nome da criança, que era seu filho e informou o hospital onde o menino

estava internado. Era um hospital pertencente ao Município de São Paulo - e não ao Governo do

Estado. A Ouvidoria conseguiu levantar todas as informações e enviar ao Gabinete do Secretário

para que o Ministério Público fosse informado. “Contudo” – lamenta Elza -, “o estresse

envolvido foi enorme”. Elza acredita que esse é um tipo de comportamento não se justifica

dentro de um mesmo espaço de trabalho. E complementa dizendo que “pensa em se afastar da

Ouvidoria ou se aposentar: “(...) aquilo me fez um mal lascado. Acho que depois, quando eu caí

e que quebrei o braço (...), falei... não é possível que no fim da sua trajetória você tenha que

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passar por situações assim embaraçosas. Aí, é complicado (...). Não... eu quero ver se vou até o

final desse ano. Depois tenho que bater em retirada”, diz Elza - entristecida.

De acordo com Vera Melo, a cidadania é o principal fundamento para acolher o cidadão

na Ouvidoria: “ele tem esse direito. Seja ele pobre ou rico, ele tem esse direito”. E para assegurar

os direitos das pessoas, por vezes, é preciso enfrentar situações difíceis, “chutar o pau da

barraca”. Vera entende que o Ouvidor precisa ter um bom relacionamento com as pessoas, para

que ele possa realizar o seu trabalho, mas conta um caso em que ela teve que sacrificar essa

relação interna para acolher a demanda de um cidadão, vítima de injustiça. Tudo se passou

quando Vera era ainda Ouvidora do Metrô de São Paulo.

Um morador de uma COHAB localizada na Zona Leste da cidade de São Paulo

telefonou para a Ouvidoria e relatou que havia tomado uma embarcação do Metrô naquela

manhã, quando se deslocava para uma entrevista de emprego. Ele havia se sentado em um banco

e colocado o braço no peitoral da janela. Quando ele se levantou, o braço da camisa estava sujo

de tinta. Felizmente – dissera o cidadão -, ele portava um paletó, que vestiu, cobrindo a mancha

da camisa. Assim, ele pode participar da entrevista de emprego. Mas, lamentava, pois, aquela era

a única camisa boa que ele tinha. Ele a havia ganhado. Era uma camisa da marca ‘Via Veneto’,

informa Vera.

Segundo Vera, tratava-se de uma pessoa muito simples, que não poderia comprar uma

camisa cara, como aquelas da marca ‘Via Veneto’. Vera perguntou se ele tinha anotado alguma

informação sobre a composição, como o número do trem e do vagão. Ele o fizera e forneceu os

dados à Ouvidoria. Vera anotou os dados e redigiu um memorando interno, dirigido ao Gerente

de Manutenção. No memorando, a Ouvidoria solicitava informações, de forma a poder confirmar

a denúncia do cidadão.

O gerente de manutenção respondeu à Ouvidoria que de fato houvera um problema

naquele trem. Ele havia sido pintado durante a madrugada. Duas falhas haviam sido cometidas

na liberação do trem pra voltar a circular: em primeiro lugar, a tinta fora utilizada sem o aditivo

‘secante’; em segundo, o trem foi liberado para voltar a circular sem a realização de um teste

básico nos serviços executados, para se verificar se a tinta já estava completamente seca. O

gerente havia reconhecido o erro do Metrô.

De posse dessa informação, a Ouvidora foi falar com a Diretoria de Operações, à qual

está subordinada a Gerência de Manutenção. O Diretor foi indagado sobre como a Ouvidoria

deveria proceder para solicitar o ressarcimento dos prejuízos causados ao cidadão. O Diretor

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recomendou que ela procurasse o Gerente de Operações, unidade também vinculada à Diretoria

de Operações.

Indagado pela Ouvidoria sobre o que a Gerência de Operações tinha a ver com aquilo,

dado o reconhecimento do erro por parte da Gerência de Manutenção, o Diretor respondeu que

isso se devia aos procedimentos. A Ouvidoria concordou. Enviou a solicitação à Gerência de

Manutenção. A resposta dele veio quinze dias depois: “O Gerente de Operação mandou o

memorando para o Chefe de Departamento, o Chefe de Departamento para o Coordenador, o

Coordenador para não sei quem, pra não sei quem, pra não sei quem”. A Ouvidora recebeu a

resposta a seguir: “Senhora Ouvidora, para pedir o ressarcimento o cidadão precisa apresentar a

Nota Fiscal de compra da camisa”. De acordo com Vera, “a mensagem vagamente assinada:

‘Atendimento ao cidadão’”. “Ou seja, ninguém”, completa Vera.

Aborrecida, a Ouvidora se penitencia: ela acha que cometeu um erro, encaminhando a

solicitação ao Diretor de Operações do Metrô. Vera acha que teria melhor sorte se o

encaminhamento tivesse sido feito diretamente ao Presidente do Metrô, a quem a Ouvidoria

estava subordinada.

A Ouvidora relata ter entrado na sala do Diretor de Operações e o indagado de forma

bastante irritada: “(...), quando você compra uma camisa em Paris você guarda a Nota Fiscal?”

Ele respondeu que não. A Ouvidora, então, falou: “Pois é. Esse cidadão não comprou. Ele

ganhou a camisa. Como ele vai ter a Nota Fiscal de compra?”. O diretor respondeu: “É o

procedimento”.

A Ouvidoria pediu para o cidadão enviar a camisa. Em um domingo, ela foi a uma loja

da ‘Via Veneto’, no Shopping Higienópolis, e comprou outra camisa da mesma cor e do mesmo

tecido. Na segunda-feira, ela enviou a camisa ao presidente, juntamente com todo processo.

Agora ela tinha uma Nota Fiscal. Junto com o processo, a Ouvidora enviou uma observação

dizendo que “assim se o senhor (o Presidente do Metrô: grifo) considerar correto devolver a

camisa pra ele (o cidadão: grifo), eu vou pedir o ressarcimento do que eu gastei (...). Se o senhor

não considerar correto, ela (a camisa: grifo) já está comprada. Eu devolvo do mesmo jeito; eu

assumo a despesa”.

A Ouvidora recebeu o dinheiro gasto. Entretanto, ela não se deu por satisfeita e levou o

caso ao Secretário de Justiça. O Diretor de Operações foi chamado à Secretaria de Justiça pra

ouvir do Secretário que ele “não podia fazer aquilo; que o procedimento deveria ser modificado”.

Por isso, completa Vera com ar irônico, “ele me adorava”.

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Para Rubens, o fundamento da atuação do Ouvidor são as normas e os regulamentos

legais. Ele justifica: “Ele (o Ouvidor: grifo) não pode tomar partido. Não tem muito o que ser

feito. Mesmo que isso pra gente (...) não seja o correto... mas, é o correto porque está previsto

legalmente. Então, fica difícil você, de repente, tomar partido de alguma coisa. Acho que tem

que ser sempre pela legalidade”.

José Luiz corrobora a opinião de Rubens. Ele acredita que as pessoas que recorrem ao

Ouvidor já bateram em muitas outras portas antes, e chegam à Ouvidoria como uma espécie de

última esperança. Fundamentalmente, diz, são pessoas que “vem na busca da satisfação em

relação a um determinado assunto. Então, o trabalho da Ouvidoria é buscar uma resposta que

seja satisfatória para aquele questionamento. Ver o sentido de fundamento... não é isso, é assim.

Isso é assim por causa disso... a lei. (...) assim que foi o pressuposto... aconteceu essa decisão ou

esse fundamento. Essa fundamentação da resposta é um negócio bastante importante e coisa que

eu tenho percebido no trabalho da Ouvidoria (...)”.

Ilídio faz um raciocínio um pouco diferente. Segundo pensa, a institucionalização da

Ouvidoria na estrutura da organização é uma questão vital. Contudo, segundo entende, uma vez

que isso esteja equacionado, que a Ouvidoria tenha sido criada estruturalmente, “o fundamental é

a Ouvidoria se colocar no lugar do cidadão, entender a demanda dele”, pois, “as regras que

existem não vão resolver nada para o cidadão. O cidadão não entende todas as regras e sequer

conhece todos os seus direitos e quais são as suas possibilidades em diversas situações”. “Então”

– continua Ilídio -, “o cidadão precisa de auxílio. Se ele se sentir lesado, ele precisa recorrer a

alguém e esse alguém precisa ter o mínimo de sensibilidade pra entender o que eu estou

colocando e com isso poder fazer uma análise (...) em relação ao meu papel de cidadão e o papel

da Administração Pública, quer dizer, se os dois papéis (...) estão sendo executados, porque a

Administração Pública pode estar executando seu papel e o cidadão pode não estar entendendo

isso”. E complementa que “o papel da Ouvidoria, às vezes, é dar uma satisfação, uma explicação

ao cidadão, mostrando-lhe o que é possível e o que não é”. E diz que “a Ouvidoria tem que atuar

aqui dentro da instituição pra poder solucionar, entender quais são os gargalos ou qual é o

problema (...), o que a gente tá pecando em relação à cidadania”.

O entendimento de Sérgio (Secretaria da Saúde) é o de que, ao atuar, o Ouvidor deve

ser imparcial: “Acho que ele participa do processo como um todo e, doa a quem doer, ele vai

trazer a informação técnica”.

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4.3.6 A importância estratégica das Ouvidorias.

Diversas vezes, os ouvidores e os administradores entrevistados manifestaram o

entendimento de que as Ouvidorias representam um avanço nas relações entre a sociedade e as

organizações públicas, colocando à disposição da primeira um canal por meio do qual ela pode

participar ou pelo menos manifestar-se. Entretanto, as principais expectativas dos gerentes é a de

que as Ouvidorias atuem como uma espécie de ‘pára-choque’, recebendo e absorvendo as

queixas dos usuários, ao mesmo tempo em que sistematizam os dados e lhes fornecem

informações relevantes para subsidiar processos de melhorias de suas respectivas áreas.

De acordo com Rubens Peruzin (Secretaria da Fazenda), a Ouvidoria é importante para

facilitar o alinhamento estratégico da gestão. Afinal, às vezes, o problema está mesmo aqui

dentro, diz: “a partir de uma reclamação eu verifico um determinado procedimento que pode

estar sendo adotado pelas nossas regionais ou pelos nossos profissionais que não está de acordo”.

A partir do momento em que chega uma reclamação através da ouvidoria, o objetivo

passa ser entender o que está acontecendo nas unidades regionais. Rubens diz: “eu até prefiro

quando chega a informação via Ouvidoria, porque é por meio disso que eu preparo uma

orientação e um procedimento que vai servir não só pra mim e pra meia dúzia de pessoas que

estão aqui comigo, mas para todas as unidades regionais. No caso do Departamento de Despesa

de Pessoal do Estado, são 17 divisões e 15 Regionais, sendo 11 no interior e 4 na capital. Como a

unidade deve trabalhar de maneira uniforme, com todas as divisões adotando o mesmo

procedimento, alguma coisa que está errada aqui poderá também estar se repetindo em outros

lugares”, explica Rubens. Por isso, a mesma orientação é distribuída para todos, para que adotem

o mesmo procedimento.

Para Florêncio, o relatório da Ouvidoria cumpre uma função gerencial importante, pois

ele agrega informações que chegam de modo disperso. Ele explica como o seu desejo é melhorar

a capacidade do relatório de “fornecer informações que permitam aos gestores enxergar o que

está acontecendo. É preciso ver e agir rápido, saber, por exemplo, que naquele dia já ocorreram

dez casos de mau atendimento em um mesmo determinado posto fiscal”.

Para Florêncio, a Ouvidoria é uma forma de “garantir o controle administrativo – e não

o controle burocrático da administração. As informações da Ouvidoria são geradas pelos

usuários. São estratégicas”. “Então” – explica Florêncio, “se você tem uma proposta, essa

proposta diz que pra eu cumprir a minha missão, tem que atingir tais objetivos. O Ouvidor tem

essa função de mostrar - e não de dizer - o que está errado ou certo; mostrar o que está falhando

na ponta”.

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José Luiz compreende que as Ouvidorias “são entidades importantes para auxiliar na

solução de problemas para os cidadãos e, também, para informar as pessoas em relação a

algumas coisas que elas entendem como direito. Eu posso entender que uma coisa constitui um

direito meu, mas, de repente, não é”, diz. “Então, essa informação mais concisa, com mais

embasamento, eu acho que é um negócio interessante”. Para ele, a Ouvidoria é uma entidade

paradoxal e importante para a sociedade democrática, porque é capaz de atuar de forma isenta:

de “certa forma é meio contraditório, porque ela é um órgão do governo que vai buscar acertar a

situação das pessoas que vão lá em busca de auxilio, em busca de resposta, mas nessa isenção é

que eu acho que está a virtude” (das Ouvidorias: grifo), diz.

José Luiz acredita que a “Ouvidoria pode fornecer boas contribuições para a melhoria

da qualidade da gestão da organização pública, oferecendo sugestões de mudanças em função do

seu histórico de demandas e conduzindo estudos”. Ele procura demonstrar com um exemplo,

dizendo que “no caso da UNICAMP, poderia haver um estudo mostrando que a instituição do

transporte gratuito para os funcionários levaria a uma redução de mais ou menos 20% do uso de

vagas de estacionamento na universidade”. Segundo José Luiz, a Ouvidoria “vai estar

trabalhando em função de dados coletados, em função do histórico, em função de um contexto

estatístico de casos pra poder fornecer ao contexto maior da universidade”.

Adriana destaca que a “Ouvidoria trata os assuntos individualmente, mas o tempo todo

cuida de observar o conjunto, para que o mesmo problema não ocorra de novo. Então, isto é uma

coisa que a gente tem que tomar cuidado, porque se não a gente passa a enxugar gelo (...)”. A

Ouvidoria sempre procura conscientizar os funcionários e professores que “é muito importante

resolver esse assunto, mas é preciso também que, juntos, possamos refletir sobre quais são os

processos onde estão as falhas, para que não haja recorrência”.

De acordo com José Luiz, “a importância da Ouvidoria torna-se maior quanto mais uma

sociedade se torna participativa e informada sobre os custos das obras públicas: o cidadão tem

que ter alguma resposta correta, que vai ser traduzida em confiança no sistema, porque a

Ouvidoria é uma coisa que é suportada pelo sistema”.

Adriana acredita que a Ouvidoria deve estimular o cidadão a mudar de uma cultura

exclusiva de reclamação para uma cultura da participação: “eu acho que o cidadão precisa

entender que ele é partícipe, que ele pode sugerir, que ele pode reclamar, mas que vale a pena ele

sugerir uma ideia nova. E eu acho que devemos estimular cada vez mais a participação”.

Jânio Loyola vê a Ouvidoria como uma entidade que ajuda a melhorar a qualidade da

gestão do DETRAN, pois, “quando algum serviço não fica pronto no prazo, ela não se conforma

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e cobra: tem muita persistência e sentimento de indignação (...). Ela vai atrás das informações,

busca, cobra, fiscaliza, monitora. Recomenda reforçar o treinamento, acrescentar informações no

Disque Poupatempo ou desencadear uma campanha pela imprensa. E nos questiona

constantemente se a informação já está no portal, na nossa Central de Atendimento e nas

unidades descentralizadas”.

“É importante resolver o problema particular, para o cidadão que apresentou a

reclamação”, diz Jânio. “Contudo, isso é insuficiente, pois, é preciso melhorar os processos

internos, eliminando os problemas identificados a partir das manifestações dos cidadãos para que

eles não aconteçam com outras pessoas, evitando que milhares de pessoas fiquem insatisfeitas e

tenham também que reclamar”.

Vera explica que, “ao chegar na Ouvidoria, o cidadão espera que ela resolva o seu

problema de modo específico. Ele sairá satisfeito da Ouvidoria se isso acontecer”. Entretanto,

Vera acredita que o papel da Ouvidoria vai muito além dessa função de resolver problemas

específicos: “é mais do que isso, porque (...) o meu trabalho não está terminado. O meu trabalho

é uma via dupla” – explica ela: eu caminhei em direção ao cidadão e resolvi o problema dele

(...), ele saiu daqui feliz (...). Então, eu venho pra dentro da organização e vou tentar mudar. É a

parte mais difícil do trabalho. Mudar aqui dentro: as normas, os procedimentos que causam

aquele problema, porque se você tem um problema, o problema é de muita gente. Nunca é o

problema de uma pessoa só. (...) Pra cada pessoa que reclama (...) deve existir 20, 30, 50 pessoas

que não reclamam e enfrentam o mesmo problema. Não reclamam porque não acreditam mais

em nada; porque não têm acesso; porque não têm coragem de chegar num órgão público cheio de

mármore, geralmente cheio de coisas”. “Então” - insiste Vera -, “o trabalho do Ouvidor não se

encerra no atendimento ao cidadão. É preciso atuar para tentar mudar a cultura organizacional, as

normas e os procedimentos internos”.

Para Ilídio, a relação de sua área com a Ouvidoria é de parceria. Para ele, “a posição da

Ouvidoria, ela é o cidadão aqui dentro, reclamando pela melhora e zelando pela boa prestação de

serviços”. (...) As pessoas que trabalham na Ouvidoria estão “sempre bem abertas e atentas às

discussões com a gente. Eles são Ouvidores à disposição do cidadão e eu diria que eles são

Ouvidores à nossa disposição também. Eles ouvem e trabalham junto com a gente”.

“Infelizmente, a gente não consegue atender a tudo, porque a gente tem algumas

limitações”, explica Ilídio. “O papel deles é continuar discutindo, continuar cobrando. Por isso,

às vezes, até dentro da própria estrutura eles acabam nos ajudando, porque têm coisas que fogem

um pouco da nossa alçada em termos sistêmicos. (...) é uma relação de parceria, se é que eu

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posso dizer isso, porque a Ouvidoria não tem que ser parceira, ela tem que procurar ser parceira

(...) pro cidadão”, diz. Ilídio complementa: “quero dizer que não é uma parceria de falarem que

está tudo bem. Não é isso não, entendeu? É de uma parceria, mas uma parceria onde o cidadão é

que manda”.

Algumas demandas trazem questões simples, como um pedido de informações. Nesses

casos que a Ouvidoria encaminha para as áreas, dá-se um retorno ao cidadão e a demanda é

encerrada. Mas, há aquelas em que se constata haver um problema com o processo de

atendimento. Nesses casos, explica Ilídio, “a gente levanta o que aconteceu no posto na hora do

atendimento, isso vai para o O&M (Organização e Métodos). Dependendo do que tenha

acontecido, a gente muda o fluxo ou resolve aquela questão. Aliás, muitas das alterações feitas

desde o início do Poupatempo em termos de procedimento de atendimento ao cidadão, vieram de

sugestões dos cidadãos”. Muitas vezes as pessoas reclamam de ter que apresentar cópia de

documento, como, por exemplo, comprovante de residência. Ilídio diz que “tudo vem pra dentro

do Poupatempo. A gente levanta pra verificar a colocação feita pelo cidadão, quer dizer, por

onde ele tá enxergando (...) A gente leva isso pro órgão de origem. Comprovante de residência,

por exemplo, quantas vezes a gente foi ao DETRRAN discutir com ele: ‘escuta, o Estado sabe

onde o cidadão está. Porque ele tem que trazer um comprovante aqui... não tem muito sentido’.

Além de que o interesse é do cidadão em ter o seu endereço correto porque é ele que vai deixar

de receber comunicação do Estado. Pra que isso? Porque é só mais um documento”, explica.

“Portanto” – completa -, “uma manifestação do cidadão pode levar a muitas modificações: no

procedimento de atendimento, no Guia de Serviços Públicos”.

Em uma ponta, explica Pinheiro (Poupatempo), “a Ouvidoria representa o cidadão junto

à organização pública. Na outra, a Ouvidoria deve ser vista como um instrumento que apoia

fortemente a melhoria da qualidade dos processos de gestão”.

Pinheiro não é voz isolada. Seu colega de Ouvidoria, César, vai na mesma direção,

considerando que a Ouvidoria desempenha esse duplo papel, pois, assumem-se, também, como

representantes da organização junto aos cidadãos. “Não basta você se colocar no papel de

representante do cidadão”, explica. “Isso é um jogo de duas vias. E papel da Ouvidoria não é só

de representação, mas, também, didático. Ela tem que informar. O cidadão tem que saber que

existe uma Ouvidoria e que a Ouvidoria está lá para ser um representante dele ali dentro. Porque

se ele não souber. não adianta. Então a Ouvidoria tem esses dois aspectos”.

De acordo com Pinheiro, as demandas recebidas pelas Ouvidorias constituem uma

importante fonte de inovação organizacional. “Essas manifestações são enviadas aos

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coordenadores de cada órgão no Poupatempo. Além de atuar para resolver o problema de modo

específico, para o cidadão que fez a manifestação, ela deverá ver a possibilidade de fazer

generalizações, a partir das quais se introduz mudanças na estrutura dos procedimentos do órgão,

evitando que o mesmo problema ocorra com outros cidadãos”. César e Pinheiro têm vários

exemplos de inovações introduzidas a partir de manifestações de cidadãos enviadas à Ouvidoria

do Poupatempo.

Uma manifestação levou à troca dos bancos da área de espera no Poupatempo Santo

Amaro. César e Pinheiro explicam como aconteceu. Todos os postos Poupatempo são equipados

com áreas de espera, procurando oferecer um razoável nível de conforto ao cidadão. Na agência

Santo Amaro, entretanto, os bancos para se aguardar sentado o momento de ser atendido eram

feitos à base de cimento. E os bancos estavam instalados ao longo de um grande corredor que era

atingido por uma constante corrente de ar. “No inverno, as pessoas ficavam geladas ali”. Então,

“uma manifestação enviada por um cidadão à Ouvidoria queixava-se disso. Para corrigir o

problema, duas medidas foram introduzidas: primeiro, instalou-se no local uma porta de vidro

corta-vento. Segundo, providenciou-se a substituição dos bancos de cimento por outros de

madeira”.

Outro exemplo diz respeito à liberação do uso de uma marquise no Poupatempo de

Bauru. De acordo com César e Pinheiro, “longas filas se formavam a partir das sete horas da

manhã, aguardando a abertura da agência Poupatempo, que ocorre às 09h00. No verão, as

pessoas ficavam sob o sol escaldante. Nos dias de chuva, era ainda pior. Havia no interior da

agência uma enorme marquise que as pessoas poderiam ficar embaixo, para se proteger das

intempéries. A partir de manifestações enviadas à Ouvidoria, estabeleceu-se um entendimento

com o coordenador da agência e o acesso à área da marquise passou a ficar permanentemente

aberto ao público”.

De acordo com Sérgio, a Ouvidoria faz o papel de um moderador: “a partir do momento

que a Ouvidoria entra, ela ouve, acolhe, ela trabalha atendendo a manifestação e traz o problema

a mim. É o momento em que a gente vai conversar e vamos dar a devolutiva, entender. Então, a

Ouvidoria... faz o papel de moderador dessas diferenças”. E complementa: “moderador, porque

ela... dentro do próprio perfil, ela recebe aquela avalanche de manifestações, muitas vezes

lotadas de uma emoção muito forte. Imagine na área de saúde”.

Como administrador de um hospital (Darcy Vargas), Sérgio considera muito importante

dialogar com a Ouvidoria: “eu tenho que ouvir, eu não posso fazer de conta que eu não vejo”. E

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completa: “é muito importante saber o que estão pensando e, a partir daí, as nossas ações têm

que procurar corrigir, procurar melhorar, promover treinamento”.

Sérgio entende que a Ouvidoria é uma instituição importante para iniciar mudanças na

organização orientadas pelas necessidades dos seus usuários. Ele fornece um exemplo

envolvendo a questão das visitas de parentes às pessoas internadas no hospital Darcy Vargas.

Sérgio acredita que determinados critérios que se colocam para as visitas dos parentes

aos pacientes internados em hospitais públicos não se justificam. Sérgio exemplifica: “visita das

15 às 16, às terças e quintas, todos os dias pares (...)”.

“Assim que instituiu a Ouvidoria, começaram a chegar reclamações. Por exemplo, o pai

que trabalhava o dia inteiro, ele não podia vir. A avó que morava longe só podia vir aos

domingos. Então, aquele horário se ampliou e passou a ser livre das 7h às 22h. Além disso, o

hospital criou um amplo programa de acolhimento aos domingos. Os pacientes que têm

condições podem descer do quarto da enfermagem para o anfiteatro ou para o jardim. Lá, o

paciente recebe a família... que vem... vem quem? A avó, a tia, o cachorro - o cachorro não - (...).

Mas... vem. E convive com a criança, fora do ambiente do hospital”. E continua: “aliás, às

quartas feiras, os cães visitam as crianças que fazem terapias”. Sérgio esclarece: “cães

registrados, vacinados, acompanhados”. E Sérgio diz – com a voz ligeiramente emocionada:

“não tem isso... às vezes, hospital público tem isso... é terça, é quinta. Não, hoje é quarta. Mas,

opa, o dia era ímpar. Então, sabe... a determinação é que a criança tem direito à mãe

acompanhante..., o horário de visita é aberto. Além da mãe ficar ao lado criança 24 horas, tem

direito de permanecer, tem direito ao segundo acompanhante”.

Sérgio fornece outro exemplo de inovação promovida no hospital por meio de uma

sugestão vinda da Ouvidoria. Trata-se da criação de uma área de hospitalidade. Segundo Sérgio,

“a mãe fica aqui 15 dias. Como é que ele faz pra trocar de roupa? Lavar a roupa dela? E tem que

trocar, não é? Será que não podia lavar minha roupa dentro do hospital?” – indagava a mãe de

uma criança – “foi aí que descobrimos um jeito de fazer... de poder lavar no hospital, entendeu”?

Sérgio acrescenta um terceiro exemplo de inovação criada a partir das manifestações

recebidas pela Ouvidoria. “Recentemente” – diz – “veio também pela Ouvidoria uma comissão

de mães. Queriam falar com o Diretor para tratar de um problema envolvendo as fumantes, que

não podiam sair do hospital após as 22h para fumar. Elas saem e vão fumar na pracinha, lá fora.

Dentro do hospital é proibido o fumo”. O horário foi ampliado até às 23h.

Na sede da Secretaria da Saúde, a linha de diálogo entre a Ouvidoria e os dirigentes

encontra-se quase que completamente bloqueada. De acordo com Elza Lobo, “a comunicação

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direta, feita, por exemplo, por meio de encontros presenciais, são raros e a Ouvidora não tem

sido convidada a participar dos fóruns de decisão do órgão, dentre os quais, as reuniões

gerenciais. A comunicação está restrita aos memorandos e às trocas de mensagens através de

correios eletrônicos”.

Para que a Ouvidoria seja, de fato, um instrumento de gestão estratégica, Elza entende

que “isso depende muito da postura dos gestores, de se ter um canal direto com a Ouvidoria”. Ela

diz: “a gente tinha que ter o que se tinha antes: um canal maior; ter acento na reunião das

diferentes áreas da Secretaria”. Nesse momento, segundo Elza, na saúde prevalece uma visão de

que a “academia resolve tudo”. Ela indaga: sem esse apoio, “como é que a gente dá as respostas

à população”?

4.3.7. As Ouvidorias e o controle social da administração.

A maior parte dos sujeitos que participaram desta pesquisa – os Ouvidores tanto quanto

os gestores - enfatizou a alta credibilidade desfrutada pelas Ouvidorias. Dado o contexto de forte

desilusão em que se vive atualmente, acreditam que as Ouvidorias poderão se tornar entidades

centrais, à medida que se mostrarem úteis à sociedade como instrumentos eficazes para controlar

a administração e disseminar informações de interesse coletivo. Com o advento da Lei de Acesso

às Informações (Lei Federal nº 12.527/2011 e Lei Estadual nº 58.052/2012), o cidadão foi

fortalecido na capacidade de fiscalização. Pode-se mesmo considerar, sem exageros, que ele foi

elevado à condição de órgão de controle, podendo requisitar junto às autoridades governamentais

toda e qualquer informação que desejar, sem haver sequer a necessidade de justificar a sua

utilização, contando apenas que não sejam informações particulares de outra pessoa ou que não

impliquem riscos para a vida da sociedade ou do Estado.

Adriana acredita que vem crescendo muito nos últimos doze anos a preocupação com a

fiscalização da Administração Pública. Os eventos de corrupção, a popularização da Internet e a

mídia têm contribuído para que o cidadão passe a se interessar mais pelo controle social do

governo. “As pessoas entendem que o orçamento público tem que ser monitorado e eles querem

saber até a faixa salarial dos funcionários”. Adriana acha que ainda é preciso mais. E que é

preciso que o cidadão modifique o seu olhar, pois, segundo entende, atualmente, o controle

social não é realizado com um olhar coletivo, voltado para o bem da sociedade. O controle é

feito somente quando alguma coisa afeta diretamente o indivíduo.

Adriana considera que a Lei de Acesso à Informação é um “avanço importantíssimo

para sociedade brasileira. Acho que estamos atrasados nisso, que a informação tem que ser

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entregue ao cidadão de forma objetiva, porque ela é pública”. Particularmente, Adriana diz

gostar muito da inversão que a lei faz: “a pessoa que solicita a informação não precisa explicar

os seus motivos, nem o uso que será dado à informação. Mas, o órgão público responsável pela

produção ou guarda da informação terá que se explicar, caso não tenha ou não possa fornecer a

informação solicitada”.

“Somos uma sociedade com tradição autoritária, que começou de trás pra frente”,

ironiza Adriana, observando que, no Brasil, o Estado chegou antes da sociedade. “Dizem que em

1500 já tínhamos uns quatrocentos mil decretos. Já tínhamos leis quando ainda não tínhamos a

sociedade organizada. Acho que essa história tem um impacto no nosso desenvolvimento como

sociedade. Além disso, tivemos um período muito complexo da ditadura, onde o que procurava

participar era aquele que perturbava a ordem pública. A gente incorporou isso, pois até hoje a

gente fala: olha que bonitinha aquela criança tão quietinha; se ela começar perguntar muito, a

gente fala que é hiperativa”.

De acordo com Florêncio (Secretaria da Fazenda), “os cidadãos têm sido mais ativos no

monitoramento da administração pública e, face às pressões da sociedade, a postura do próprio

Estado tem se modificado”. Segundo explica, “a Ouvidoria da Secretaria da Fazenda criou um

contrato de fé com o seus usuários já há dez anos. Naquela época, as Ouvidorias e outras

entidades de atendimento aos cidadãos e a consumidores de um modo geral, não assinavam as

respostas que emitiam, nem davam qualquer referência sobre como podiam ser localizadas, tais

como endereço, telefone e e-mail. Pessoalmente, aquilo me incomodava. Quando se mantinha

contato com alguma empresa ou órgão público, quando alguma resposta era obtida, recebia-se

uma mensagem burocrática, dizendo ‘Obrigado. Sua mensagem foi recebida’. Às vezes, dizia

que providências cabíveis seriam tomadas. Mas, o que eram as tais providências cabíveis? Quem

as determinaria? Então, aqui na Ouvidoria da Secretaria da Fazenda, começamos a colocar o

nome da pessoa que estava respondendo, o endereço, e-mail, telefone para que o cidadão pudesse

saber quem o estava atendendo. Nessa época, entre 50 e 60% dos acessos davam-se pelos meios

eletrônicos. Hoje são quase 100%. Todos sabem que terão uma resposta. Por isso, continuam a

enviar mensagens para nós, continuam participando”, diz, enquanto mostrava alguns exemplares

de cartas recebidas na Ouvidoria.

Os dispositivos eletrônicos, principalmente, o formulário e o e-mail, têm sido os

principais caminhos utilizados pelos cidadãos para fiscalizar e denunciar desvios de conduta dos

administradores públicos. Em menor quantidade ainda são recebidas denúncias enviadas por

cartas e há cidadãos que preferem comparecer pessoalmente à Ouvidoria para se manifestar.

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Há denúncias que são encerradas sem que se consiga comprová-las. Mas, a maioria

delas foi eficaz, tendo sido encerradas com a comprovação dos fatos e a punição dos

funcionários envolvidos.

Florêncio vê a Lei de Acesso à Informação (Lei Federal nº 15.527/2011 e o Decreto

Estadual SP nº 58.052/2012), como um aperfeiçoamento da perspectiva da transparência e do

controle social do Estado, regulamentando a questão do acesso às informações produzidas ou

custodiadas pelos órgãos governamentais. Mas segundo ele acredita, a lei colocou apenas o

serviço público na berlinda. Ele explica: “pode-se saber quanto um funcionário ganha. De acordo

com algumas sugestões que têm sido apresentadas, inclusive por determinados membros do alto

escalão do Governo, além de informações sobre o salário, poderá vir a ser possível saber,

também, dados sobre o endereço e quem são os membros da minha família, como, por exemplo,

quem é minha esposa e quais são os meus filhos. Seria uma prática para evitar o nepotismo. Mas,

e o setor privado? No Conselho de Defesa do Contribuinte (CODECON), metade dos membros

representa entidades da sociedade civil e metade órgãos do Estado. Então, queríamos instituir um

sítio (na Internet: grifo) do órgão, colocando os nomes e as fotografias dos seus integrantes, para

que a sociedade saiba quem o compõe. Os representantes das entidades privadas bloquearam a

iniciativa, por não desejarem serem identificados. Houve um debate no CODECON relacionado

a esse assunto, envolvendo a Nota Fiscal Paulista. Qual era a questão? As pessoas não aceitavam

porque diziam que iriam descobrir quanto ela ganha. Isso cria situações distintas, pois no caso do

funcionário público, o que ele ganha está exposto na folha de pagamento disponibilizada ao

público”. Então, de acordo com Florêncio, a Lei de Acesso à Informação está bem colocada para

o setor público, mas é um valor que tem que se estender para a sociedade.

Florêncio acredita que o Estado de São Paulo é, nesse quesito, uma parte bastante

diferenciada do restante do Brasil. Presidente da Associação Brasileira de Ouvidores /

Ombudsman (ABO), ele diz que “em alguns encontros dos quais participo (...) fico com a

impressão de que São Paulo é um outro país dentro do Brasil; uma outra cultura no interior da

cultura nacional. O nosso funcionalismo público, o funcionalismo do Governo do Estado de São

Paulo, comparado com o de alguns municípios do próprio Estado, principalmente com o daqui

da capital, ele é muito diferente. Ele está muito adiante e muito preparado para o novo mundo”,

que ele considera ser o mundo da complexidade. “Complexo”, diz Florêncio, “porque permite a

entrada de vários entendimentos para produzir um conhecimento. Eu creio que a Lei de Acesso à

Informação permite que o outro que tem acesso à informação possa produzir o conhecimento e

não apenas ter acesso a dados, pois isso não vale nada”.

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De acordo com Elza Lobo, alguns cidadãos se mostram mais dispostos a fazer o

controle do Estado. Mas, a maioria está se mobilizando apenas para exigir benefícios, meio na

linha do “eu pago impostos, eu tenho direitos. E tem uma população também que grita e não tem

razão”, diz. Elza ilustra seu ponto de vista com dois exemplos: o primeiro caso diz respeito a um

senhor que mora em Higienópolis e que faz tratamento de saúde no Hospital das Clínicas. Ele

veio à Ouvidoria para dizer que “esse prédio tá muito velho. Tem que desmanchar e fazer outro”.

Então, diz Elza, que lhe perguntou? O senhor foi bem atendido lá? Não tem nada a ver uma coisa

com a outra, observa.

O outro caso é o de uma senhora da periferia. Ela procurou a ouvidoria muito brava,

dizendo que no período em que o Secretário era outro (o anterior), ele ia muito à região onde ela

mora. Então, “ela queria que o atual secretário fosse igual. E o atual secretário não é” igual ao

anterior, explica.

A maioria das manifestações chega à Ouvidoria da Secretaria da Saúde através de

mensagens de correio eletrônico. Algumas mensagens contêm textos longos, com descrições

detalhadas. São, sobretudo, críticas e exigências de direitos. Os funcionários leem tudo e fazem

um resumo, destacando as questões que requerem respostas específicas. “Nem sempre as

contribuições são no sentido de (...) aperfeiçoar; é mais critica”, explica Elza.

Elza entende que “o estado democrático de direito é um processo importante, mas que

não se pode cair num democratismo de achar que todo mundo tem direito a tudo”. As pessoas

falam, “eu pago imposto; eu pago também. E todos nós temos que cumprir com as nossas

responsabilidades”.

Vera Melo (Detran) acredita que a sociedade brasileira ainda não fiscaliza a

Administração Pública adequadamente. Ela explica que “O Código de Defesa do Consumidor

(CDC) foi promulgado em 1990, resultado da constituição de 1988. Em dez anos o povo

aprendeu a se defender, apelando para o CDC e ele já tem o hábito de procurar a Ouvidoria,

acreditar na Ouvidoria. Só que ele não tem o hábito de fiscalizar, ele não percebe que ele tem

que fiscalizar, ele vota e esquece em quem votou, porque os problemas dele são o dia-a-dia, os

problemas dele são tão momentâneos que ele não consegue (...)”.

De acordo com Vera a Internet tornou mais fácil o desenvolvimento de mecanismos de

controle da administração. Mas é preciso que se crie uma cultura de fiscalização: “nem sempre a

pessoa tem essa conscientização. O mais difícil é fazer as pessoas entenderem que elas pagam

impostos. Ela tem o direito de ter acesso à informação e a fiscalizar”, explica.

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Na opinião de Vera Melo, a Lei de Acesso à Informações vai ajudar a melhorar a

transparência e o controle social da Administração Pública. Mas, seu entendimento é que ela está

atrasada, principalmente quando nos comparamos com os países escandinavos.

César e Pinheiro (Poupatempo) acreditam que o Brasil vive um clima de liberdade,

condição em que o cidadão sente-se encorajado a participar, seja para reclamar ou para elogiar:

“nós sabemos que tiveram épocas em que não se podia se manifestar”, dizem. E embora pareça

simples, de acordo com Pinheiro, um projeto de dar voz ao cidadão é algo de alta complexidade,

e mesmo paradoxal. “É complexo, tanto para o cidadão quanto para nós, que vamos responder ao

cidadão”, pois no interior das organizações, “as Ouvidorias defendem certas bandeiras, como a

de não mentir para o cidadão. Embora seja o governo que tenha instituído as Ouvidorias e que

banquem o seu projeto, em certos órgãos, a questão das Ouvidorias pode ser impregnada de

questões políticas”.

Pinheiro entende que a cultura da fiscalização da administração pública está ainda

incipiente. Mas acredita que é nítido “que de 1999 para cá que o cidadão procura muito mais a

palavra Ouvidoria do que usou anteriormente. E o instituto da Ouvidoria está se solidificando”,

diz Pinheiro.

Pinheiro também acredita que a Internet está contribuindo para a formação de uma

cultura de transparência e fiscalização. Os órgãos públicos estão disponibilizando muitas

informações ao público externo e o cidadão está usando a rede para participar. De acordo com

Pinheiro, “hoje o principal canal de interação nossa com o cidadão é via internet”. São, em

média, mil manifestações por mês. Além das manifestações, tem o Twitter, “que é um absurdo”,

diz César, “com o pessoal twitando o tempo todo”.

Entretanto, Pinheiro acha que a estrutura do Estado não consegue funcionar na

velocidade da Web 2.0. Então, a recomendação básica dada através do Twitter é que o cidadão

entre em contato com a Ouvidoria através do site ou do e-mail. Pinheiro explica: “a regra é

simples e para mim não é de rede social, não é Web 2.0. É Web 1.0. Enquanto as coisas fluem

positivamente, ótimo. Quando surge uma situação complicada, eu não tenho resposta

institucional. Eu não tenho a política do Estado e nem da minha empresa pra me dar

sustentação”.

Pinheiro acha que a Lei de Acesso à Informações (LAI) fortalece o esforço de

transparência e entende que o marco legal das Ouvidorias pode se aperfeiçoar, adotando alguns

recursos inseridos na LAI, como o estabelecimento de um prazo obrigatório dentro do qual uma

demanda seja respondida.

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Para César, a Ouvidoria se encaixa nesse esforço de construção democrática, que ainda

é frágil. “As Ouvidorias têm uma parcela importante nisso (...); faz parte de uma construção

democracia”.

Para Pinheiro, os fatores clássicos dos Estados democráticos, como a divisão de

poderes, são relevantes. Entretanto, “nossa democracia só vai funcionar se a cidadania

efetivamente se apropriar mais do conceito de ‘pertencimento’”. Para César é fundamental

conseguir fortalecer o entendimento da questão da cidadania, incluindo-se a atuação do

Ministério Público e a democratização dos meios de comunicação. “Os meios de comunicação

estão há muitos anos nas mãos das mesmas famílias, mais como liberdade de empresa do que de

imprensa”, diz Pinheiro. E complementa: “a gente está num momento complicado. A gente tá

criando consumidores e não cidadãos. E à medida que você cria consumidores, você, em

principio, está afastando esse cara do processo cidadania”. “Afasta em tese”, diz Pinheiro, “pois

ele vai reivindicar aquilo que é individual, esquecendo as questões de natureza coletivas.

Estamos vivendo no momento o ápice do individualismo”.

Pinheiro indaga sobre o tipo de relação que se está construindo com a sociedade. O

Estado trata das questões coletivas. Pelo menos deveria tratar. Então, “quando você trata esse

cidadão como consumidor você, de certa forma, o está desvinculando de questões mais amplas”.

Nessa sociedade, cuja democracia está em construção, diz Pinheiro, “a Ouvidoria é um lugar que

dá esperança ao cidadão”.

No entendimento de Rubens Peruzin, a fiscalização da Administração Pública por parte

do cidadão está melhorando. Mas, ele acredita que ainda está muito distante do satisfatório. No

Serviço de Informações ao Cidadão – explica Rubens -, “chegam muitas solicitações de

pesquisadores. Contudo, considerando o tamanho da população do Estado de São Paulo, é uma

parcela de participação muito pequena”. Rubens acredita que, “mesmo com a existência de uma

lei garantindo o acesso à informação, e até mesmo com a disseminação de informações via

internet, resta a dificuldade da população para entender o que está escrito. A melhoria da

capacidade da população de participar da fiscalização das atividades da Administração Pública

passa pela melhoria da qualidade da educação no país”, ele diz. O cidadão pode até ter vontade

de participar, mas o Governo é uma coisa muito grande e difícil de entender, explica e adverte:

“precisa começar lá na escola, entendeu? É lá na escola, no colégio, na faculdade. (...) tem que

começar lá no início”.

Rubens entende que a internet criou um facilitador para a participação da população, tal

como a Lei de Acesso à Informação. Mas, ele considera “uma invasão à vida privada do

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funcionário a divulgação do seu salário”. Em sua opinião poder-se-ia ter feito a

“descaracterização do nome da pessoa (...), porque eu acho que (...) cria (...) problema para o

próprio servidor, porque ele está abrindo a sua vida, a sua carteira pra eventuais problemas de

sequestro e um monte de outras coisas. Quer dizer, se alguém estiver interessado em fazer algum

tipo de malandragem, estiver a fim de algum sequestro, de alguma coisa, (algum) ato ilícito aí é

um ótimo caminho pra começar”. Ele concorda que o Estado tem que disponibilizar informações,

mas, diz, que “o Estado não pode colocar em risco a vida dos seus recursos humanos”. E

desabafa: “queria ver se essas pessoas que fazem esse tipo crítica e fazem esse monte de

solicitação, pra ficar vasculhando as vidas das pessoas, se eles gostariam de ver a sua vida lá na

internet, seu contracheque lá na internet pra todo mundo ver”.

Ainda na questão da transparência, Rubens aponta o aumento nos custos para o Estado.

“Muitas vezes, esses custos são incorridos na produção de informações que visam o atendimento

a interesses privados”, observa. Ele exemplifica com uma solicitação de acesso à informação que

recebeu recentemente: Um jornalista pediu informações retroativas há 10 anos. Ele queria saber

os maiores salários. No campo da transparência, essa informação pode ser dada sem nenhum

problema, explica Rubens. “Tivemos até o aval da Consultoria Jurídica”, diz. Contudo, para se

gerar uma informação como essa, é preciso rodar dez anos de folha de pagamento. É um custo

enorme para o Estado. Rodar dez anos de folha, filtrando quem teve rubrica maior. Rubens

indaga: “O Estado precisa bancar esse custo”? Não, de acordo com a Lei de Acesso à

Informação, pois se a informação tiver que ser produzida, o interessado deve arcar com os custos

correspondentes. Contudo, disse Rubens, “ao saber disso, o jornalista ficou bravo e recorreu à

Corregedoria de Administração. O processo estava tramitando na CGA, ainda sem uma decisão

tomada”. Rubens complementa: “O Estado vai ter que produzir e custear uma informação que

vai ser usada contra o próprio Estado”? A Corregedoria recomendou que o sistema (base de

dados da Prodesp) seja aberto para o jornalista consultar. Mas, diz Rubens: “como eu vou abrir

um sistema? Acho que aí houve uma extrapolação. Não porque existe a questão do sigilo da

informação. Porque você tem dentro disso (das bases de dados) outras informações, por

exemplo, informações bancárias do servidor. (...). Isso é uma coisa insana”95

.

José Luiz não acredita que a população já esteja preparada para fiscalizar a

Administração Pública. Mas ele acha que “está aflorando sentimentos no sentido de tentar

conduzir a administração, para que ela represente os anseios da população”. Para ele, a Internet

potencializa a participação crítica do cidadão: “uma virtude da internet é a velocidade na

95

Uma ferramenta BI poderia gerar essa informação limitada aos itens solicitados pelo jornalista. Entretanto, a

Secretaria da Fazenda ou a Prodesp não têm esse recurso.

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divulgação de informações (...). Principalmente, as redes sociais têm tido um papel muito

importante. De certa forma, hoje, a classe politica respeita bastante o que ocorre na internet,

justamente pela velocidade de transmissão da informação”. De acordo com José Luiz, “uma

pessoa satisfeita divulgava um fato para mais ou menos onze pessoas. Se ela estivesse

insatisfeita, ela o divulgava para mais ou menos quarenta e cinco pessoas. Hoje isso é

potencializado na internet. Ele tem uma caixa de e-mail lá e tem, sei lá, no caso do Facebook, ele

coloca uma informação (para umas) trezentas pessoas e aquelas trezentas (pessoas) replicam pra

outras trezentas”.

Para José Luiz, a Lei de Acesso à Informações representa um passo importante para a

transparência na administração pública brasileira. Segundo entende no “Estado democrático as

coisas tem que ser às claras”. Então, diz: “o fato da disponibilização de informações (...) eu acho

bastante interessante, porque (...) se existem regras, se existem leis, elas têm que ser respeitadas.

Então, se os dados estiverem de acordo com a lei, com a regra, não tem razão pra ele não estar

lá”.

Jânio Loyola acredita que “o mito e o medo das organizações públicas estão em baixa”.

Ele diz que quando foi fazer a sua habilitação, seu pai lhe fez sérias recomendações. Tinha que

cortar o cabelo; tinha que se arrumar. “Tinha que sair bonitinho (na foto). “Então, assim” –

explica Jânio -, “a impressão que eu tenho é que a população geral via os órgão públicos como

algo superior, como algo que tinha que respeitar e abaixar a cabeça sempre que ele me falasse.

Eu não tinha o direito de questionar qualquer coisa”, analisa. Mas, continua Jânio, “eu percebo

agora algumas situações até ao contrário. Várias vezes a gente recebe uma reclamação, a pessoa

acha que está falando no Facebook com um amigo. Então, é assim: ô mano, olha vocês estão me

roubando tipo...; ô véio... com gíria e tudo mais”. Para ele, “essa barreira de ver o órgão público

como algo superior já se quebrou, pelo menos com os mais novos”. Então, como as pessoas não

veem os órgãos públicos como algo superior, quando eles pensam que devem reclamar, eles o

fazem sem problemas, explica. E não reclamam só no órgão. Também divulgam muito nas redes

sociais. Por isso, o DETRAN monitora a sua imagem nas redes sociais. Jânio entende que as

pessoas muitas vezes ainda tem aquela postura de achar que ninguém o vai ouvir, que não vai

adiantar reclamar. Mas, reclama assim mesmo, para constar, para se vingar: “pelo menos vou

encher a caixa de postagem de vocês, mas vou reclamar. Sei que ninguém vai me atender. Aí,

quando a gente atende ele é surpreendido”.

A Internet, de acordo com Jânio, está facilitando a participação do cidadão no controle e

fiscalização: “via internet, a setecentos quilômetros, o cidadão consegue olhar, falar, reclamar”.

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Ele fala: “olha, eu quero desse jeito. Tá escrito aqui e o governador falou que eu podia consultar

o portal”. Segundo Jânio, “em 645 municípios, o cidadão ajuda o DETRAN, fiscalizando muitas

unidades que às vezes não estão fazendo o serviço como foi definido em portaria pela sede do

órgão. Ele entende que a Lei de Acesso à Informação dá mais um passo nesse processo de

transparência pública”.

Contudo, Jânio vê na proliferação de canais de acesso disponíveis ao cidadão algo que

pode fazê-lo se perder, em vez de facilitar a sua vida. Por isso, ele entende que “no interior dos

órgãos públicos é necessário redirecionar as manifestações, separando os casos simples e

rotineiros, daqueles que são mais complexos e de menor volume, devendo ser cuidados pela

Ouvidoria. Nem sempre as pessoas sabem usar adequadamente os diversos canais disponíveis”,

constata Jânio. “Tem gente que vai ao Serviço de Informações ao Cidadão solicitar serviços de

rotina. por exemplo, porque ele foi multado. O SIC não é o canal apropriado para isso. Às vezes,

o cidadão solicita informação pessoal de outro cidadão. Por exemplo: por que que a CNH do

meu pai não foi emitida. Outros entram no Fale com o DETRAN e pergunta qual é a frota de

veículos do Estado de São Paulo? Essa sim, uma solicitação que deveria ser remetida ao SIC. E

tem as pessoas espertas que solicitam informações pessoais de terceiros. Cabe ao funcionário do

DETRAN dizer que essa informação será fornecida somente à própria pessoa”.

Relacionando os princípios da democracia ao DETRAN, Jânio acredita que “ela

significa direito à informação”. E o “direito de optar por fazer o serviço diretamente ou por

intermédio de um terceiro. Direito de questionar, direito de ser ouvido”. De acordo com Jânio, no

plano macro-institucional, um judiciário independente é muito importante para a existência da

democracia. No nível micro, ele entende que as Ouvidorias são fundamentais, pois

desempenham um papel parecido. “Eu vejo muitas pessoas reclamando de direitos que entendem

ser justos”, diz Jânio. E o Judiciário vai analisar se ela tem ou não aquele direito. “Nesse ponto”,

diz Jânio, “acho que a Ouvidoria é semelhante, ou seja, eu sou uma pessoa que entendo que eu

tenho o direito a tal serviço. A Ouvidoria, entendendo aquilo, ela vai lutar internamente aqui no

nosso microcosmo por aquele direito que o cidadão tem”.

Jânio acredita estar havendo uma transformação entre a sociedade e o Estado, mas que

existem muitos ‘Brasis’. Nas regiões do norte e do nordeste ainda se conserva um certo mito

sobre o Estado. Nas cidades, tudo gira em torna da Prefeitura. Não há o poder do

questionamento, dizer, por exemplo, “você está me dando bolsa família ou sei lá o quê (...), eu

não quero, cadê a faculdade, cadê a água encanada com a qualidade mínima, cadê o celular (...).

A quantidade de serviços que a gente tem aqui (...) pela internet. (...) Olhando lá os caminhões

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pipa vendendo água (...) As mesmas pessoas que são eleitas sempre. Às vezes, no máximo, muda

de uma família pra outra. E não se muda nada”. Já aqui em São Paulo, diz Jânio, “você vê... o

metrô para um minuto, tá todo mundo reclamando”. Jânio defende que na base da mudança das

relações na sociedade e desta com o Estado, está a questão da educação. A educação “pode criar

ferramenta pro cidadão se virar sozinho”, diz.

Na opinião de Ilídio, a população não tem como um de seus hábitos a fiscalização da

Administração Pública e as notícias sobre episódios absurdos que têm ocorrido na Administração

Pública provocam muita descrença: “quanto mais informação tem mais de boca aberta você

fica”, diz. Segundo entende, uma parte da população sequer entende muito bem o que está

acontecendo, mas, outra parte, mais politizada, sim, entende. E essa desacredita demais. Em

parte, segundo pensa, “essa desesperança explica a boa avaliação do Poupatempo junto à

população”. Ele diz: a população, “ela chega ao Poupatempo e se sente acolhida, se sente

atendida. Alguém tá enxergando aquela pessoa ali na frente. Ela fica tão maravilhada que ela dá

uma boa avaliação para o Poupatempo. (...) a gente sabe que não é tão bom assim; a gente

conhece. Nós resolvemos nossos problemas. Ou parte deles. Então, às vezes, eu digo, o cidadão é

muito bom (...), porque ele é muito maltratado. Eu me coloco no lugar do cidadão. Você vai em

alguns locais (...), serviço da iniciativa pública ou privada e quando você é bem atendido, eu

também me espanto”.

Ilídio indica, também, a existência de outro tipo de cidadão, este, bastante arrogante.

“Alguns fazem sugestões muito pertinentes”, diz. E o fazem com frequência. Enquanto as

sugestões são adotadas, as pessoas ficam satisfeitas. “Mas, quando não o são, porque conflitam

com normas ou com os interesses de outras pessoas, esse cidadão fica irritado e passa a enviar

manifestações agressivas”, explica.

Ilídio conta que a Internet tem facilitado a participação do cidadão, sobretudo pela

conveniência: “pelo menos na experiência no Poupatempo, me parece que o cidadão está muito

mais à vontade. Ele tem essa disponibilidade 24 horas possível pela internet. No momento

oportuno, ele senta e escreve com tranquilidade e a encaminha. Se ele tem que ligar ou ele tem

que ir presencialmente a algum lugar para reclamar, eu acho que é mais complicado”. Por isso,

Ilídio acredita que “de uma forma geral, essa prática de você se manifestar, ela tem aumentado

muito”. Entretanto, Ilídio manifesta certo temor, ao dizer: “eu só fico torcendo para que ela seja

uma ação responsável. Pra que você use essa possibilidade de uma forma consciente, porque do

mesmo tempo em que ele tem esse tempo pra escrever com tranquilidade, ele também pode

misturar um pouco as coisas em função do anonimato. Falar sem conhecimento de causa e, às

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vezes, uma coisa dita sem o conhecimento, mas com muita assertividade, se transforma numa

confusão tremenda”.

Segundo Sérgio, “a população quer se manifestar, quer participar”. Ele defende a

Ouvidoria como um canal que poderia ser usado para evitar a violência; menciona como

exemplo, casos em que ocorrem atropelamentos, nos quais, a população, revoltada, coloca fogo

em pneus, fecha a estrada. Ele indaga se “isso não poderia ser evitado caso houvesse uma pessoa

pública, um ouvidor para conversar”? Isso evitaria o afloramento da violência, acredita.

Para Sérgio a Internet contribui para aumentar quantitativamente a participação do

cidadão, embora nem sempre o mesmo ocorra em relação à qualidade dessa participação. “A

internet afasta as relações humanas. Ela esconde quem é você. Quando você entra na internet,

você vê uma notícia e comentários abaixo, que, eventualmente podem ser feitos com o maior

estapafúrdio (...). O sujeito... ele radicaliza de uma forma tal, que ninguém sabe quem ele é”. Ele

entende que a Internet é uma coisa indispensável nos dias atuais. Entretanto, como forma de

comunicação, ela “fez que o homem perdesse algumas coisas nas relações humanas, na conversa.

Afastam-se as pessoas, afastam-se as famílias”. E exemplifica: “hoje, quando você vai a um

restaurante.. tá lá o pai, a mãe e os dois filhos adolescentes, cada um com o seu (celular: grifo) e

ninguém sabe o que está fazendo lá”.

Sérgio considera a Ouvidoria como uma entidade relevante no mundo democrático: “eu

acho que o Ouvidor é o elemento da democracia, porque ele ouve, ele dá oportunidade ao

indivíduo. Agora, o resultado disso é que nós não sabemos (...). Eu acho que a democracia

perdeu um pouco a essência”, diz Sérgio, enfileirando-se no bloco dos desiludidos com a

sociedade democrática. Indagado sobre quais instituições ele ainda acredita serem importantes

para a democracia, ele diz: “olha, eu já não acredito em mais nada nesse momento”.

Para Sérgio, mesmo nos pequenos grupos comunitários tem sempre alguém querendo

tirar proveito: “A lei de Gerson tomou conta do país. Até mesmo em um evento, algo tão

simples, tem gente querendo tirar vantagem”.

4.3.8 Expectativas em relação ao trabalho dos Ouvidores.

Para Florêncio (Secretaria da Fazenda), a expectativa das pessoas com o trabalho dele

como Ouvidor é que ele ‘”possa participar, que possa contribuir para a melhoria dos processos

da organização”. Ele explica que alguns gestores “já falaram que me consideram um parceiro

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nesse campo. Falando de mim nesse momento e não do Florêncio, mas como ouvidor da

Secretaria da Fazenda”.

“A expectativa do cidadão” - explica Florêncio - é que a Ouvidoria consiga fazer essa

ponte entre ele e a organização. Há “alguns que, insatisfeitos, ainda escrevem pra nós, deixa só

como uma sugestão. E quando a gente faz a análise, eu com o pessoal aqui, a gente fala: mas o

que a gente pode fazer? Não dá... a coisa tá feita, mas a pessoa escreve na expectativa de que nós

cumpramos o papel da Ouvidoria de entregar a sugestão (...) então, a expectativa é essa, de

garantir a sua voz dentro da organização”, explica.

De acordo com Vera Melo, “a expectativa do cidadão quando ele chega à Ouvidoria é

que todos os seus problemas sejam resolvidos”. “Até me assusta”, comenta sorrindo. Por isso,

ela diz ter sempre em mente uma frase do ex-Governador Mario Covas: “é melhor um ‘não’

explicado do que um ‘sim’ que não se cumpre”, apontando para aquilo que ela acredita ser uma

função pedagógica da Ouvidoria: “dizer a verdade significa respeitar o cidadão”, acredita Vera.

“Eu não tenho poder, nem o Superintendente tem, porque tem coisa que, por exemplo, se refere

ao Denatran”, explica. “Se eu atendo uma pessoa e eu não vou poder resolver o problema dela,

eu sempre digo: eu não vou conseguir; não adianta; eu não sou Deus, eu não faço milagre”. A

pior situação, diz Vera, é prometer e depois não fazer nada “porque isto é uma safadeza. Eu

tenho que explicar: olha isto eu consigo; isto não. Isto aqui eu vou tentar, vou lutar até o fim,

mas não garanto que eu consiga”. Para Vera essa atitude não frustra o cidadão “porque o cidadão

quer ser respeitado. E você dizer o que você vai conseguir e o que você não pode conseguir é

respeito. De outra forma você está sendo enganado”. Quanto aos gestores, Vera acredita que a

expectativa deles é que a Ouvidoria possa contribuir para a melhoria da prestação dos serviços e

satisfação do cidadão.

Para Adriana, o cidadão espera “uma Ouvidora que escuta muito, espera seriedade. O

cidadão espera que a gente não seja mais um órgão que vai ouvir e engavetar, que vai ser mais

um espaço onde ele vai estar perdendo o tempo dele. Que ele tenha confiança de que aqui

seriamente ele é ouvido e que os assuntos dele vão ser encaminhados à qualquer custo e mesmo a

despeito de que não queiram, porque às vezes eles falam pra algum lugar e isso ficam

engavetado”.

Já a expectativa dos gestores, de acordo com Adriana, é que a “Ouvidoria minimize os

conflitos, diminua os problemas, diminuam a ordem de assuntos judiciais para a Universidade.

Espera que a Ouvidoria haja com isenção, resolvendo esses problemas pontuais e possíveis. E

mais que isso, que a gente possa dar subsídio para grandes mudanças. Então, que nossos

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relatórios, os nossos dados sejam de forma tão bons e tão bem estruturados que isso possa ser

utilizado como ferramenta clara de gestão para o bom desempenho, para melhoria”.

Disse César que “tem cidadão que liga pra gente na expectativa de que nós vamos

resolver o problema dele”. Pinheiro (Poupatempo) acredita que isso ocorre “com 100% dos

casos, pois, muitos cidadãos esperam que o Ouvidor tenha poder para decidir”. Para Cesar, essa é

uma confusão que precisa ser esclarecida imediatamente: “a gente didaticamente se coloca: nós

vamos encaminhar, vai ser assim. A gente não tem poder de resolução”.

Pinheiro acredita que a confusão vem do próprio fato de a Ouvidoria ter escutado o

cidadão. “A pessoa quer ser ouvida. Ela percebe que alguém ouviu, entendeu”? Aí vem a

confusão, diz Pinheiro: “você me ouviu, você vai solucionar meu problema. Tem esse papel que

a gente tem que explicar. E como a gente vai explicar esse papel?” – indaga Pinheiro.

Mas Cesar aponta para outro tipo de público, aquele cuja expectativa é muito baixa:

“tem o cidadão que faz a reclamação e a expectativa é que nem receba uma resposta. A

expectativa é tão baixa que só o fato de você retornar pra ele, olha escuta: alô, seu fulano, como

você está? É a Ouvidoria.. não é possível!! Vocês me retornaram!! A expectativa é tão baixa que

qualquer atenção que você dá você já superou”.

Elza resumiu que a expectativa dos administradores da Secretaria de Saúde é “ter

alguém que aguenta as queixas todas – um para choque”. Ela prossegue: “quando o cidadão

chega à Ouvidoria, ele já rodou muito; está desesperado. Ele quer agredir... quer sair com a

resposta, seja o atendimento que não obteve ou o medicamento que ele não conseguiu. E não é a

Ouvidoria que fornece o medicamento”. De acordo com Elza, há muita falta de informação: “tem

gente que vem de outros estados achando que vai chegar em São Paulo, entrar no Hospital das

Clínicas e ser operado”. Mas, é preciso vir com autorização do Ministério e da Secretaria de

origem e tem que ser agendado, senão a pessoa não vai conseguir atendimento. “Às vezes”, diz

Elza, “tem essa distorção, também. Da população achar que o Ouvidor resolve tudo e aí fica

como um ‘superman’, uma supermulher, mas não é assim”, diz.

Para Rubens, a Ouvidoria é uma área de solução de problemas: “eu acho que é, em

outras palavras, é resolver problemas, porque ninguém chega numa Ouvidoria se ele não está

com um problema. É recepcionar aquela situação, dar os encaminhamentos e apresentar uma

solução 100% resolvida para o usuário”.

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Janio Loyola entende que o papel da Ouvidoria é o de fiscalizar o órgão público e fazer

a ponte com o cidadão, assegurando a ele o direito de acesso à informação: “aqui dentro,

internamente, forçar mesmo a barra, monitorar, fiscalizar e exigir das outras diretorias, enfim, do

órgão como um todo que ele preste o serviço da melhor qualidade possível para o cidadão”.

“Muitas vezes” – prossegue ele – “a gente até fala, não, necessariamente, o cidadão vai ter o que

ele quer, porque, por exemplo, ah! eu quero que o meu documento seja emitido hoje e não quero

pagar nada. Não, ele não vai conseguir, porque tem taxas. Claro que nem todos os serviços.

Alguns são gratuitos. Então, assim, mas, ele não vai conseguir o documento de graça. Mas, ele

fala: olha, pro senhor conseguir esse documento é assim. Ele tem direito à informação. A

Ouvidoria ajuda muito isso, a esclarecer”.

Ele observa que, às vezes, o cidadão entra no site, lê a informação e não entende, pois,

ela está confusa para ele. Ele informa a Ouvidoria: “A gente lê. Realmente pra quem tem um

vício, dentro do órgão, acha que tá óbvio, tá clara a informação. Se alguém reclamou na

Ouvidoria, não tá legal. Não entendeu ou entendeu outra coisa. A informação não está legal. É

onde a gente senta. Às vezes, é algo simples. A gente altera, ou às vezes tem que chamar dois ou

três diretores. Esse é o nosso papel aqui dentro: identificou algum erro, a gente tem que

melhorar. E sempre tem alguma coisa que dá pra melhorar. Então, Ouvidoria pra mim fiscaliza,

monitora e cobra daqui de dentro. Por isso que ela tem que ter o apoio da Administração”. E

completa dizendo que “se ela não tiver esse papel internamente, vai ser mais complicado. Se o

cidadão procura um canal que ele entende que é o mais apropriado, que vai ouvir; vai atrás de

ajudá-lo e a pessoa que está à frente desse canal não tem essa atitude, o cidadão no mínimo vai

se sentir muito frustrado”.

De acordo com José, sua expectativa é que “o ouvidor, ele busca dentro do contexto a

solução ou a resposta pra um questionamento. Essa resposta tem que ser fundamentada em

alguns fatos, em alguns preceitos. Então, o papel do ouvidor é justamente buscar essa resposta ao

questionamento, seja ela favorável ou não”. É a “expressão da verdade que é buscada, uma vez

que conseguiu essa informação, essa informação é passada para a pessoa que abriu aquela

demanda. Então, com isso, nem sempre o cara se sente satisfeito, mas ele teve uma resposta

concisa, fundamentada”.

A expectativa de Ilídio é que o Ouvidor seja “independente; ele não concordar comigo.

Por que não? Acho que o papel é esse mesmo, ter a independência”.

Sérgio espera que o Ouvidor aja com imparcialidade: “o Ouvidor não toma partido”,

diz. “Acho que ele participa do processo como um todo e doa a quem doer ele vai trazer a

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informação técnica”. “Eu acredito” - prossegue ele – “que é uma questão de saber utilizar o

momento, utilizar a sua ação dentro daquilo que você está vivenciando”.

4.3.9 Avaliação da eficácia do trabalho da Ouvidoria

Os sujeitos participantes dessa pesquisa acreditam que as Ouvidorias desempenham três

papéis principais. Elas são definidas como entidades de representação dos cidadãos junto às

organizações nas quais atuam. A maioria dos Ouvidores acredita que essa é a função mais

importante das Ouvidorias. Entretanto, eles entendem que a Ouvidoria é também representante

da própria organização junto à sociedade. As Ouvidorias são vistas, também, como, fonte de

informações para subsidiar a gestão e a mudança organizacional planejada.

Contudo, nenhuma Ouvidoria possui indicadores objetivos, específicos e diretos sobre a

maneira como os cidadãos e os gestores avaliam o desempenho da entidade. Todos os Ouvidores

participantes da pesquisada destacaram a dificuldade de fazer avaliações objetivas do seu

trabalho.

Por outro lado, todos os gerentes que participaram da pesquisa reconheceram a

importância estratégica das Ouvidorias, demonstrando, sob o ponto de vista dos gerentes, um

elevado grau de coerência entre aquilo que as Ouvidorias são e o que elas acreditam ser.

Na UNICAMP não há um instrumento formal com o qual se identifica sistematicamente

o nível de satisfação das pessoas que procuram atendimento na Ouvidoria. De acordo com

Adriana, cerca de 20% das pessoas atendidas costumam entrar em contato espontaneamente para

manifestar satisfação como o trabalho desenvolvido pela Ouvidoria. Entretanto, anualmente,

trabalho da Ouvidoria é avaliado em pesquisa geral da universidade.

Na condição de gerente, José Luiz faz excelente avaliação do trabalha da Ouvidoria. A

Ouvidora, diz, é uma pessoa que “trabalha de sol-a-sol nos atendimentos”. Em sua opinião, a

Ouvidoria precisa de uma estrutura maior. E diz que “o que eu tenho sentido das pessoas é

justamente a confiança no trabalho da Ouvidoria. Então, a Ouvidoria da Universidade é um

órgão que não só inspira, mas que dá confiança às pessoas”. Essa confiança, segundo José,

refere-se tanto ao cidadão quanto aos gestores.

Vera Melo considera importante conhecer o nível de satisfação das pessoas com a

prestação de serviços da Ouvidoria. Entretanto, devido ao quadro de pessoal insuficiente, Vera

diz que ainda não faz um processo sistemático de avaliação. Contudo, há no DETRAN uma

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pesquisa que é feita nas unidades de atendimento ao público. Esta pesquisa inclui a Ouvidoria

entre as áreas avaliadas.

De acordo com Vera, um número significativo de pessoas entra em contato com a

Ouvidoria e elogia o atendimento recebido. Ela defende que um “elogio chega quando você

recebe mais de 100%, quando você recebe 110%, porque 100% é a nossa obrigação. Nem

sempre a gente consegue fazer 100%, mas é a nossa obrigação. E o público tem a noção exata de

que fazer esse serviço é a nossa obrigação. Então, se ele elogia ou se ele agradece, (...) ele

recebeu mais do que ele esperava receber”.

Jânio Loyola diz avaliar positivamente o trabalho da Ouvidoria do DETRAN. Ele

destaca, sobretudo, o espírito de inquietação, que considera característico da Ouvidoria. O perfil

da Ouvidoria, diz, “é de jamais se acomodar, de sempre achar que é possível melhorar”. “Sem

esse perfil”, afirma Jânio, “o cidadão, no mínimo, vai se sentir muito frustrado” com a

Ouvidoria.

No Poupatempo, a avaliação da satisfação dos cidadãos com o trabalho da Ouvidoria é

feita por intermédio de uma pesquisa trimestral, realizada em todos os postos. Duas perguntas

dizem respeito à Ouvidoria. Pergunta-se sobre a importância atribuída à existência da Ouvidoria

e, também, se a Ouvidoria já ajudou o cidadão a resolver algum problema. Os índices de

satisfação atingem níveis sempre superiores a 80%.

Não há instrumento para avaliar a satisfação dos gestores com o trabalho da Ouvidoria.

Entretanto, Pinheiro afirma que eles estão satisfeitos com as contribuições oferecidas pela

entidade. “A Ouvidoria”, diz, “conseguiu construir muitas parcerias internas com os gestores.

Hoje ela tem muito respeito, além do poder institucional. Mesmo tendo poder institucional, a

gente acha que o diálogo é a principal ferramenta. Se eu tivesse que dizer que é uma guerra,

nossa principal arma é o diálogo. A gente dialoga. Ou dialoga ou não tem jeito”, explica.

De acordo com Cesar, é muito difícil separar nitidamente aquilo que é o trabalho da

Ouvidoria do conteúdo do problema. “Essa dificuldade resulta em uma poderosa barreira à

implantação de uma avaliação objetiva. A satisfação do cidadão se relaciona diretamente com a

solução dada ao problema. Dificilmente, se consegue distinguir as coisas”, alerta.

Segundo Ilídio, “se você tiver um trabalho sério e quiser, de fato, prestar um bom

serviço, você tem que ouvir o cidadão, você tem que entender qual é a demanda dele. E a

Ouvidoria... ela é fantástica. Ela ouve a demanda, ela faz o papel do cidadão, vai lá, te aperta”

para procurar uma solução. “Eu acho que é fundamental”, diz. Para ele, a Ouvidoria tem um

papel independente dentro de um órgão público “e com isso ela consegue ter de fato a opinião

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daquele cidadão que não consegue ter a solução da sua demanda”. Ela possibilita à organização

entender o que está acontecendo, para buscar uma solução. “Essa demanda atendida do cidadão

permite verificar os gargalos, os pontos de atritos internamente, para que você possa caminhar

para uma situação melhor”, ressalta. “Isso não se consegue pelas vias normais”, completa Ilídio.

De acordo com Ilídio, apesar da dedicação dos gerentes e dirigentes do Poupatempo,

eles sempre se deparam com falhas, recebidas por meio da Ouvidoria. “A gente se vira, se mexe,

senta com eles pra entender o que está acontecendo”, explica.

Para Elza Lobo a avaliação da satisfação dos usuários contribui no sentido de se saber

se a pessoa entendeu que o problema foi resolvido. Contudo, a Ouvidoria não dispõe de

instrumentos para realizar essa avaliação. Segundo disse, na Secretaria da Saúde, havia uma

pesquisa que era feita no passado, com a qual se procurava, inclusive, traçar o perfil do usuário

da Ouvidoria. Entretanto, quando houve a troca do Secretário de Saúde, a pesquisa foi

interrompida e transferida para outra área. Posteriormente, a Ouvidoria iniciou uma forma de

comunicação com os usuários em que ele era informado, inclusive, sobre o custo do tratamento

para o governo. “As pessoas não tinham que pagar nada, mas era bom para que elas soubessem

que nada é de graça. Fizemos isso durante três anos, até que a mudança de gestão interrompeu

esse procedimento”.

Sérgio considera-se muito satisfeito com o trabalho da Ouvidoria. Isso não significa

ausência de conflitos, diz. “Temos que reconhecer o seguinte: ninguém gosta de ser criticado”,

explica. “E as pessoas enviam críticas à Ouvidoria”. De acordo com Sérgio, “o médico deixou de

ser aquele ser impoluto, ícone da sociedade. Ele é operário da saúde. Da mesma forma que você

briga com o seu mecânico, porque o carro não está funcionando direito, o sujeito continua com

tosse”.

Entretanto, Sérgio indica uma alteração na estratégia de atuação da Ouvidoria no

hospital Darcy Vargas: o servidor também pode prestar queixa contra o usuário. Segundo Sérgio,

no hospital ocorreu um caso em que um médico foi agredido fisicamente pelo pai de uma

criança. Ele diz: “um pai que veio e começou a agredir fisicamente o médico (...). Foi preciso

chamar a polícia”. Agora, o médico pode denunciar o usuário para a Ouvidoria. A Ouvidoria vai

chamar o cidadão e investigar o que está acontecendo. Além de conversar, tomar conhecimento

dos antecedentes daquela pessoa: “se a pessoa tem várias passagens pela polícia. Então, você

sabe com quem você tá mexendo”. Sérgio considera essa extensão do direito de reclamar ao

servidor em relação ao usuário uma mudança importante no sentido da garantia de direitos.

Afinal, “direito também é uma coisa explícita, clara e de mão dupla”, diz.

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Florêncio considera importante saber da satisfação dos cidadãos-usuários com todas as

áreas da organização, incluindo a Ouvidoria. Mas, como isso vai ser construído lhe parece

complicado. Ele acredita que a pesquisa de satisfação, aquela que se faz a cada atendimento,

tende a não avaliar a realidade que determinou a satisfação ou a insatisfação do cidadão.

Florêncio exemplifica o seu ponto de vista: “você vem aqui e reclama do IPVA, que você não

vai poder pagar. Eu fui totalmente cordial, te mostrei toda lei do IPVA, te mostrei tudo o que

você não conseguiu em outros locais... Então, você fica extremamente satisfeito pelo

acolhimento, pela recepção, por eu demonstrar interesse na sua causa. Só que você vai estar

insatisfeito, pois você não vai conseguir pagar o IPVA sem os juros e sem as multas” Então, para

Florêncio, “a distinção entre o atendimento da Ouvidoria e o conteúdo próprio da manifestação

dificilmente será captada na pesquisa. Quando o cidadão avalia, ele pensa no resultado efetivo e

não exatamente na experiência de atendimento da Ouvidoria. Não é fácil estabelecer uma

metodologia que consiga isolar as duas coisas, com o intuito de mensurá-las de modo

específico”, explica.

Na Secretaria da Fazenda é feita uma pesquisa com o usuário externo e o interno. Ela é

conduzida por um instituto independente, contratado pelo órgão. Pelo menos 75% das pessoas

avaliam bem a Ouvidoria. “Temos 75% de satisfeitos e 25% de insatisfeitos. Isso incomoda?

Claro que incomoda, mas é uma pesquisa que demonstra mais a realidade. Tem uma parte que

fala que tá bom e outra que fala tá ruim”. É uma parte que você consegue administrar, com a

qual se consegue lidar, mas não depende só da Ouvidoria.

A preocupação em conhecer a satisfação das pessoas com o trabalho da Ouvidoria se dá

também na relação com os gestores da organização. Segundo o Ouvidor da Secretaria da

Fazenda, “os gestores valorizam muito o trabalho da Ouvidoria”. A Ouvidoria conversa

constantemente com os coordenadores de todas as áreas, inclusive quando analisa de forma

crítica o desempenho do setor, com base nas reclamações dos usuários. Florêncio oferece um

exemplo para ilustrar a segurança da Ouvidoria na realização da crítica interna e o respeito que

desfruta dos membros do grupo de gestão:

Uma pessoa se dirigiu à Ouvidoria para reclamar do atendimento recebido em uma

unidade da Secretaria da Fazenda. Além de grosseria por parte de uma funcionária, a sua

documentação não chegara sequer a ser analisada. A Ouvidoria aceitou a reclamação, pois, em

princípio, parecia mesmo ser fundamenta a queixa de que o atendimento havia sido negligente. A

autora da reclamação entregou à Ouvidoria cópia de todos os documentos, os mesmos que já

haviam sido entregues em um Posto Fiscal.

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A reclamação foi encaminhada ao chefe da área. Junto, informava-se também tratar-se

de uma pessoa portadora de deficiência auditiva. O Chefe do Posto Fiscal respondeu à Ouvidoria

rispidamente, informando que o cidadão tinha que apresentar todos os documentos. Caso

contrário, ele não poderia nem avaliar aquilo que a Ouvidoria estava solicitando. O Ouvidor

enviou nova mensagem, com os mesmos documentos da mensagem anterior e que a pessoa já

havia apresentado no Posto Fiscal. A essa segunda mensagem da Ouvidoria o coordenador do

Posto Fiscal respondeu, de novo rispidamente, que, agora sim, com os documentos que a

Ouvidoria havia remetido ele poderia analisar; sem eles isso não seria possível.

Agora, dizia o chefe do Posto Fiscal, ele tinha uma informação que não lhe fora enviada

antes, duas vezes, uma pelo cidadão e a outra pela Ouvidoria. Com a documentação em mãos –

continuava o chefe do Posto Fiscal -, bastava o contribuinte comparecer ao posto fiscal, pegar

uma senha, apresentar uma Nota (Fiscal) e os documentos originais do veículo para obter o

serviço desejado. Informava, ainda, que não se lembrava de ter atendido aquela pessoa. Mas,

adiante, contestava a reclamação do cidadão de mau atendimento, dizendo que a funcionária não

havia sido grosseira com ele. Ele sim – o cidadão -, é que havia sido extremamente grosseiro e

muito desrespeitoso com a funcionária.

Florêncio diz: “evidentemente que a hipótese de que isso possa de fato ter ocorrido não

deve se descartada. Nem a de que ambos tenham sido grosseiros. Há funcionários grosseiros. E

há cidadãos grosseiros. Contudo, estranho que o chefe do Posto Fiscal informe que não havia

notado a presença desse senhor no local, mas saiba que ele havia sido grosseiro. Como isso é

possível? - questiona Florêncio.

A Ouvidoria replicou a resposta do chefe do Posto Fiscal, mostrando que juntamente

com o relato assinado pelo cidadão, havia enviado, também, toda sua documentação. Em sua

mensagem final, enviada ao chefe do Posto Fiscal com cópia para o seu superior imediato, ele

dizia que “considerando os desdobramentos internos na conclusão dada pelo inspetor, observa-se

que os procedimentos são deficientes, beirando a falta de atenção. A Ouvidoria forneceu duas

vezes os mesmos documentos, fato que poderá se repetir constantemente nos balcões de

atendimento do posto (...)”. Encerrando, a Ouvidoria propõe a “revisão dos procedimentos e a

capacitação dos atendentes do posto fazendário, de modo a influenciar as atitudes e harmonizar o

expediente (...).”

De acordo com Florêncio, “é o respeito de que goza a Ouvidoria na organização que lhe

permite fazer críticas e recomendações. Sem o respeito dos funcionários e dos detentores de

funções de direção isso não seria possível ou suas críticas e recomendações não teriam eco

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algum”. “Constantemente” – diz Florêncio -, “a Ouvidoria é convidada para fornecer dados sobre

o atendimento, para ser enviado à imprensa, e para participar da elaboração de documentos que

são remetidos a outras instituições, como a Assembleia Legislativa, propondo a criação ou o

aperfeiçoamento de alguma legislação”. Para Florêncio, esses são alguns fatos que demonstram a

importância da Ouvidoria para os gestores, como eles reconhecem a importância do trabalho da

Ouvidoria na Secretaria da Fazenda.

Na condição de administrador de um departamento importante da Secretaria da

Fazenda, Rubens se considera muito satisfeito com o trabalho da Ouvidoria. Mesmo quando

surgem situações mais complexas, como ter que lidar com a apuração de alguma denúncia, ele

entende haver um processo de troca de informações muito adequado com a Ouvidoria. O

Departamento de Despesa de Pessoal do Estado recebe entre 10 e 14 mil manifestações por ano.

A maioria vem de um serviço do Governo do Estado chamado ‘Fale Conosco’, destinado ao

esclarecimento de questões mais simples dos cidadãos. O volume de demandas encaminhadas

pela Ouvidoria e pelo SIC, que costumam lidar com as questões mais complexas, é menor.

4.3.10 As competências necessárias ao Ouvidor.

Esta seção encerra as descrições dos dados da pesquisa. Em grande parte, ela consiste

de um trabalho de elaboração do pesquisador, cuja base, entretanto, sustenta rigorosamente nos

dados da pesquisa. Contudo, as informações aqui contidas transcendem aquelas obtidas com as

entrevistas, incorporando, também a convicção formada a partir da leitura de documentos e

impressões colhidas nas observações do trabalho dos Ouvidores.

O trabalho do Ouvidor se desenvolve num ambiente com muitas incertezas, exigindo

dele e daqueles que os auxiliam flexibilidade e capacidade de adaptação a situações imprevistas.

Os Ouvidores normalmente têm uma agenda, na qual eles registram as principais atividades que

pretendem executar em um determinado dia. Essas atividades incluem, entre outras, as seguintes

ações: atendimento ao público interno e externo, elaboração de respostas aos cidadãos que

enviaram manifestações à Ouvidoria, telefonemas para cobrar respostas a demandas já

encaminhadas, contatos com funcionários, reuniões com dirigentes para tratar de recomendações,

elaboração de ofícios, produção de relatórios mensagens eletrônicas com lembretes de prazos

para responder às demandas, abertura de processos, solicitações de informações, encontros

informais para obter informações de maneira não oficial, participação em eventos diversos,

realização de palestras em universidades e entidades, leitura de textos técnicos da área.

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Eles se envolvem, também, em atividades de interesse da categoria na Associação

Brasileira de Ouvidores / Ombudsman (ABO), na Secretaria de Gestão Pública (SGP) e na

Corregedoria Geral de Administração (CGA), cujas ações impactam fortemente o trabalho e os

interesses da categoria. A ABO é a principal entidade não governamental que reúne, articula e

procura criar mecanismos de apoio e proteção à categoria, atuando, também, na criação de

padrões, formação e certificação de novos Ouvidores. A Secretaria de Gestão Pública é, no

âmbito do Governo do Estado de São Paulo, o órgão encarregado de administrar a rede de

Ouvidorias. A ela está vinculada à Comissão de Centralização das Informações do Serviço

Público (CCISP), principal fórum de decisão do SEDUSP (Sistema de Defesa do Usuário de

Serviços Públicos). Trata-se de um grupo formal, instituído pelo Inciso III, do Artigo 30, da Lei

nº 10.294/199, com a missão de coordenar as operações da rede de Ouvidorias, manter bancos de

informações sobre o desempenho dos serviços públicos e estabelecer manuais e padrões de

qualidade para o funcionamento do sistema. Essa comissão é formada por 11 membros, cuja

ampla maioria desempenha a função de Ouvidor em seu respectivo órgão de atuação.

Quadro 08: Órgãos que integram a CCISP

1. Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania

2. Secretaria da Casa Civil

3. Secretaria da Fazenda

4. Secretaria de Economia e Planejamento

5. Sistema de Comunicação do Governo do Estado de São Paulo – SICOM

6. Sistema Estratégico de Informações

7. Poupatempo - Centrais de Atendimento ao Cidadão

8. Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor – Procon

9. Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados – Seade

10. Associação Brasileira de Ouvidores – ABO

11. Entidade representante dos usuários (indicado pelo Secretário de Gestão Pública)

Fonte: Resolução SGP Nº 34, de 22-11-2013.

Apesar da agenda contendo um plano de trabalho, cada telefonema, cada mensagem

eletrônica recebida na Ouvidoria ou atendimento presencial realizado pode trazer algo

completamente inesperado, às vezes com potencial para fazer o Ouvidor abandonar o seu plano e

seguir uma rota emergente, completamente diferente da que havia sido traçada. As denúncias são

as que alteram mais profundamente a rotina da Ouvidoria.

O trabalho do Ouvidor é constituído de exigências próprias do cargo, decisões que

requerem capacidade de julgamento e de restrições múltiplas. As obrigações incluem, entre

outras atividades, participar de reuniões, realizar atendimentos, emitir pareceres, responder

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mensagens de e-mails, elaborar relatórios, fazer recomendações e cobrar respostas às demandas

da Ouvidoria. As decisões implicam compreender os diversos relatos que lhe chegam e dar

encaminhamento aos seus portadores, escolher as ações que serão priorizadas ao longo de um

período, a alocação do próprio tempo, além de ouvir partes da organização envolvidas em

conflitos, reunir informações, analisá-las, formar convicção e emitir uma recomendação. As

restrições são variadas e envolvem limitações de natureza cognitiva, recursos financeiros, quadro

de pessoal, recursos materiais (como espaço físico adequado e equipamentos), poder (como o

acesso a bancos de dados, participação em fóruns de decisão) e autonomia (como a

impossibilidade de, pelo menos em certas condições ou situações, tornar suas recomendações

obrigatórias).

Dada a própria natureza do trabalho, os Ouvidores precisam possuir ou adquirir um

conjunto de competências, abrangendo conhecimentos, habilidades e atitudes, de acordo com a

descrição idealizada no Quadro 08, a seguir:

Quadro 09: Principais competências necessárias ao Ouvidor

Tipo de

competência Principais ações que realiza

Conhecimentos

Dizem respeito às competências técnicas, como o conhecimento das diversas áreas e

programas da organização, o domínio da legislação que rege o funcionamento da

Administração Pública e, em particular, das normas específicas aplicáveis à

organização. Exige que o Ouvidor tenha clareza das suas atribuições institucionais e

conhecimentos básicos de administração.

Habilidades

Referem-se à capacidade de construir relacionamentos formais e informais. As

relações formais são constituídas, normalmente, tendo como base principal o uso

das prerrogativas de poder institucional conferido à Ouvidoria pela legislação que a

instituiu. A rede informal é construída com base em relações de confiança, que se

alimenta, sobretudo, de um discurso ideológico, fundamentado nos ideais da

transparência e do controle social do Estado, tomados como condições essenciais

para a melhoria da reputação e da legitimidade da Administração Pública.

Atitudes

As atitudes referem-se à capacidade e maturidade do Ouvidor para tomar iniciativas

e assumir a defesa do cidadão diante de seus pares na organização pública. Podem

se referir, também, à representação da organização perante o cidadão, sempre lhe

oferecendo uma resposta consistente, cujo princípio essencial é sempre dizer a

verdade. Implica, ainda, capacidade de discernimento para tomar decisões em um

contexto impregnado por vieses ideológicos, sentimentos, emoções e, mesmo,

desejos de vinganças dentro de limites, nos quais jamais se consegue obter às

informações completas.

Fonte: Desenvolvido pelo pesquisador

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Encarregados da relação entre a organização e os usuários externos, os Ouvidores não

respondem diretamente a todas as manifestações que recebem. Muitas exigem levantamentos de

dados, cuidadosas conversas com dirigentes de áreas fins e funcionários especializados.

Frequentemente, são realizadas visitas aos locais das ocorrências.

Grande parte das demandas que são recebidas nas Ouvidorias é encaminhada para uma

análise técnica das áreas fins da organização. Isso implica ter bons conhecimentos sobre o

organograma da organização, das atribuições das áreas e dos diversos programas existentes. Mas,

o conhecimento dessa estrutura, apesar de muito importante, é insuficiente. É preciso ser capaz

de construir redes de relações de confiança com as pessoas que produzem e guardam essas

informações. Por isso, diz Adriana (Unicamp) que “o primeiro passo que dei, além de estudar

toda estrutura e toda composição da própria universidade em termos administrativo e

hierárquico, eu fiz questão de visitar cada unidade e explicar o trabalho da ouvidoria a cada

diretor, mostrando qual era a importância e qual era também a necessidade de uma parceria com

as unidades”. Segundo menciona, “isso foi fundamental, pois havia uma confusão entre o que era

Ouvidoria, corregedoria e auditoria. A ideia de que a Ouvidoria é capaz de colocar medo nas

pessoas pode parecer atraente em um primeiro momento. Contudo, em condições de ameaças,

provavelmente, as áreas optarão por esconder a informação da Ouvidoria em lugar de fornecê-

la”.

Para Florêncio (Secretaria da Fazenda), o conhecimento técnico é muito importante. Ele

fornece um exemplo para explicar seu ponto de vista: certa vez, uma funcionária reclamou da

condução de um processo seletivo na Secretaria da Fazenda. Ela desconfiava da existência de

‘cartas marcadas’. Tratava-se de um processo seletivo interno, por meio do qual seriam

escolhidos funcionários para trabalhar na área de atendimento, função em que a secretaria paga

gratificação. Essa funcionária escreveu para a Ouvidoria dizendo que o chefe sequer fizera uma

entrevista com ela, não conduzindo o processo seletivo de acordo com aquilo que estava

previsto.

O Ouvidor encaminhou uma solicitação de explicações ao coordenador da área. O

coordenador respondeu rispidamente, alegando falsidade dos argumentos da funcionária

descontente. Aquilo que ela dizia não teria acontecido. E complementava dizendo: “Quem

manda é o chefe, não é?”.

O Ouvidor replicou a resposta agressiva do Coordenador, enviando-lhe, imediatamente,

toda legislação, na qual estavam fixadas a extensão e as limitações do poder do chefe. E onde se

estabelecia que tudo deveria ser feito com transparência. “Para o gestor me ouvir”, explica

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Florêncio, “eu tenho que mostrar a ele alguma coisa que seja concreta e objetiva. Não basta dizer

que gostaria que alguma coisa fosse feita. É preciso argumentar com base na lei”.

Florêncio entende que para o desempenho da função de Ouvidor não é necessário ter

formação específica. Contudo, ele acredita que ter pelo menos a graduação é necessário, pois

“ajuda para que a pessoa tenha o exercício do discernimento; melhor capacidade crítica”.

Elza entende que o conhecimento da estrutura, programas e processos da organização na

qual o Ouvidor atua é muito importante. “Acho que, primeiro, é conhecer bem o órgão onde ela

está; conhecer as responsabilidades das diferentes áreas pra saber a quem você tem que recorrer

na hora que você tá recebendo as demandas” O outro lado, diz Elza, “é o de atuar como um

educador, ensinando às pessoas o que elas devem procurar e onde procurar”. De acordo com

Elza, muitas vezes, as pessoas chegam na Ouvidoria com muita agressividade, “achando que

você tem que resolver naquele instante toda a vida dela. (...) Pessoas profundamente irritadas”.

Pinheiro considera que também é importante “conhecer o negócio da organização, seus

objetivos, serviços, processos de trabalho e legislação aplicável”. De acordo com Pinheiro é

necessário, ainda, “compreender a retórica organizacional, pois hoje, depois de alguns anos, eu

sento com o técnico, eu não sou um técnico em informática, e percebo a hora que ele começou a

me enrolar”. “É a cultura”, diz Pinheiro, “que se expressa na linguagem e permite ver quando as

pessoas estão fugindo à própria responsabilidade, repassando o problema para outra pessoa ou

atribuindo a culpa ao sistema”. Se, no entendimento do Ouvidor da Secretaria da Fazenda, não é

necessário nenhuma formação específica para o desempenho da função de Ouvidor, César e

Pinheiro vão além, ao considerarem que nem mesmo é necessário ter formação acadêmica. “É

preciso bom senso”, diz Pinheiro.

Adriana considera que as habilidades para a mediação de conflitos são muito

importantes. Na UNICAMP, o corpo discente tem recorrido à ouvidoria em busca de ajuda para

solucionar conflitos com o corpo docente. “Nessa hora”, diz Adriana, “o mais relevante é saber

trabalhar somente com os aspectos factuais e objetivos, separando-os dos aspectos pessoais e

subjetivos”. Adriana exemplifica: “é diferente quando o aluno diz ‘o professor é arrogante, é um

cara que não sabe nada, de quando ele aponta uma questão objetiva, como ‘o professor não nos

deixa perguntar para esclarecer dúvidas; ele nos interrompe; ele não quer fazer vista de prova”.

De acordo com Adriana, “a capacidade de persuadir é uma das mais importantes para o Ouvidor

- senão a mais importante”, afirma. “Mostrar para o gestor que é melhor que a gente possa olhar

isso com profundidade pra que isso não volte ocorrer. Muita gente está arraigada, às vezes a

gente encontra no serviço público aquele que carimba alguma coisa sem nem mesmo pensar, mas

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ele sempre carimbou sempre disseram que tinha que carimbar, é assim que vai funcionar. Então é

preciso ter esse remexer, esse renovar constante em direção à melhoria. A gente precisa

mobilizar aquele que faz, pra que a gente tenha a ele também como parceiro e ele é quem pode

dizer se é possível ou não modificar aquilo”.

Elza entende que é muito importante ter capacidade para se relacionar, criando

interfaces no nível local. Elza exemplifica essa importância com o caso de um Ouvidor de uma

Unidade Regional que mandou para a Ouvidoria central da Secretaria de Saúde um telegrama

pedindo pra cortar uma árvore que estava cobrindo uma casa no município. “Esse Ouvidor tinha

que se relacionar com os órgãos municipais e não mandar para a Secretaria de Estado da Saúde,

em São Paulo, uma demanda que não corresponde nem a ele”, afirma Elza. Ela acredita que há

pessoas despreparadas, sobretudo no âmbito municipal, que assumiram as ouvidorias e “que não

sabem nem porque estão ali”.

Em sua opinião, um ouvidor deve atuar com exclusividade, não pode ter atribuições

além da ouvidoria, para que ele possa ter tempo para manter contatos com outros colegas de

ouvidoria ao nível dos municípios e sedes regionais. Diz Elza: “Eu acho que a gente teria que ter

os Ouvidores só como Ouvidores. (...) Na Saúde, eles estão envolvidos também com outras

atribuições”.

Embora considere que o conhecimento seja indispensável ao Ouvidor, a opinião de

Florêncio reforça o ponto de vista de Elza. Conhecimento técnico é insuficiente, diz. “É preciso

que o Ouvidor tenha muita capacidade para se relacionar. É muito importante, também, manter

um canal de diálogo permanentemente aberto”. “Para se trabalhar bem na Ouvidoria” – adverte

Florêncio -, “é preciso ter capacidade para unir os conhecimentos técnicos da organização, o

conhecimento da legislação e as habilidades interpessoais. O Ouvidor precisa ter habilidades de

negociação ou de mediação”. Florêncio ilustra essa necessidade com um episódio que se passou

na Secretaria da Fazenda em uma época conturbada, em que se faziam a integração dos cadastros

do Estado de São Paulo com os da Receita Federal.

O Ouvidor enviou uma mensagem ao Gabinete do Secretário, relatando problemas na

área de atendimento. A área de tecnologia estava colaborando para resolver os problemas, mas a

de atendimento não ajudava. A chefia da área de atendimento ficou muito irritada com a

afirmação da Ouvidoria. Criaram-se até piadas no órgão, dizendo que após os e-mails da

Ouvidoria, os corpos ficavam em chamas. “Mas a Ouvidoria tinha que interferir, dizer o que

estava acontecendo”, explica Florêncio. E continua: “não era nada pessoal. Eu estava defendendo

o cidadão”. Para destravar o nó, a Ouvidoria promoveu uma reunião entre as áreas de tecnologia

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e a de atendimento, ouviu as explicações, e os cobrou, sobretudo porque a área de atendimento

não vinha respondendo as mensagens enviadas pela Ouvidoria. O diretor entendeu, concordou e

iniciou mudanças que aperfeiçoaram a qualidade do atendimento. “Esse é um momento em que

as habilidades de negociação são muito exigidas”, reafirma Florêncio. “A base para essa

negociação é a lei e a argumentação deve ser fundamentada em fatos e dados”, explica Florêncio,

mostrando que o domínio do conhecimento técnico, as habilidades e as atitudes são requeridos

para formar as competências indispensáveis para o equacionamento do problema. Florêncio

levou para a reunião uma série de gráficos cuidadosamente elaborados, com a qual ele mostrava

as ocorrências de reclamações de todos os setores nos últimos semestres. Do semestre corrente,

ele incluiu dados dos últimos quatro meses. “As informações agregadas”, diz, “conferem

objetividade à discussão”.

As atitudes complementam o quadro de competências indispensáveis ao desempenho da

função de Ouvidor. De acordo com Adriana, “a atuação na Ouvidoria requer profissionalismo.

Saber que não se pode contar um fato pessoal pra diminuir a dor do outro, porque não vai

adiantar. Não adianta falar... ah você sabe... comigo aconteceu um negócio igualzinho, meu

filho. E aí conta uma história do tio, da cachorra, do vizinho. Isso não adianta. O individuo quer

alguém institucional; um profissional sério. O Ouvidor deve ter um olhar humanizado, mas, ao

mesmo tempo, muito profissional, muito isento. Eu costumo dizer que a minha feição não muda,

porque eles (os usuários: grifo) ficam querendo olhar na sua cara e ver o quê que você... se

você... aí sai daqui falando: até a ouvidora chorou comigo; ela está impressionada. Então, nosso

princípio básico aqui é que o nosso usuário saia claramente conhecedor das competências da

Ouvidoria e conhecedor do encaminhamento que será dado e dos riscos. Temos o compromisso

de falar de forma adequada, sem ser desrespeitoso. E do compromisso de entender que a

resolução está lá na área. Que a gente pode sugerir, apontar, mas quem tem autoridade para

deliberar e executar é o dirigente da área”.

O profissionalismo, explica Florêncio, compreende saber separar o momento de se tratar

as coisas. Por exemplo, “quando eu encontro com as pessoas pelos corredores, ou qualquer outro

local, eu não falo de trabalho, não cobro nada. E se me apresentam alguma questão, eu até ouço,

mas procuro manter outro dialogo. Também não se podem transformar os conflitos inerentes à

função em questões pessoais. Não carregar mágoa. No corredor, a conversa é mais pessoal”,

afirma.

Para Pinheiro, a primeira competência é saber se colocar no lugar do outro: “saber

ouvir, entender, interpretar e respeitar”, dizem. Essa opinião é fortemente apoiada pelos

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argumentos de Vera. Ela entende que o “mais importante para se trabalhar na Ouvidoria não é a

qualificação técnica, mas, sim, a capacidade de sentir o que o outro sente”. Ela diz: “o que é

fundamental para o ouvidor é a capacidade de sentir o que o outro sente, de se colocar no lugar

do outro. Se você não tem a capacidade de se ofender com aquilo que ofendeu o sujeito, de sentir

a dor que o sujeito sentiu, de sentir a raiva que o sujeito sentiu, você não pode ser ouvidor,

porque você tem que se colocar no lugar dele pra representar essa pessoa pra dentro”. E

complementa: “esta é a principal característica. A pessoa pode ter qualquer formação. “Eu acho

que a pessoa tem que ter formação Universitária, porque a vivência na universidade traz um tipo

de experiência que é única, que é o amadurecimento. Eu acho importante. Não é indispensável.

Agora, o importante, o indispensável é a pessoa ter a capacidade de se ofender com aquilo que

ofendeu o sujeito, de sentir a dor que o sujeito sente”.

O Ouvidor pode ser engenheiro, matemático, médico. Pode ser qualquer coisa, observa

Florêncio. Para ser fiscal não precisa ser economista. Um dos fiscais mais comemorados e

homenageados aqui na Secretaria da Fazenda era músico. Ele foi Delegado Tributário. Agora já

está aposentado. A pessoa “vai se aperfeiçoando, vai se especializando à medida que se debruça

sobre a coisa. Em um primeiro momento, a capacitação é a do discernimento. Tem que ser uma

pessoa proativa, inquieta”, diz.

A primeira competência indispensável ao desempenho da função de Ouvidor é a

autonomia e o conhecimento da organização, diz Rubens Peruzin (Secretaria da Fazenda). “Tem

que ter autonomia e ter acesso a todas as áreas, indistintamente, para que possa realizar o seu

trabalho”. “Não é necessário ser um especialista em tudo” - continua Rubens -, “mas, o Ouvidor

precisa ter um conhecimento bastante profundo da organização para que ele possa direcionar as

demandas recebidas corretamente. Às vezes, dependendo do órgão da Secretaria, os assuntos são

tão diversos que pode não ser fácil identificar a área para onde ou para quem encaminhar uma

determinada questão”.

Rubens considera que a formação técnica é importante, embora insuficiente. “A função

de Ouvidor requer algo que vai além da formação”, afirma: “é o interesse, é a espontaneidade da

pessoa, é a comunicação. Acho que é isso que precisa. Então, não adianta simplesmente ter

faculdades, doutorado, mestrado, um monte de coisas, se ele, como pessoa, não sabe como se

comunicar. Quer dizer, o Ouvidor deve saber ouvir, saber se comunicar e ter acesso às áreas da

organização e às pessoas que trabalham nessas diversas áreas”.

Ilídio entende que conhecer a estrutura da organização não é o mais relevante. “O

Ouvidor precisa ser um excelente analista”, afirma. “Ele não tem que conhecer a estrutura. Isso é

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de menos. Ele não faz parte da estrutura. Ele precisa entender qual é a demanda e rastrear o que

está acontecendo. Tem que ser muito atento aos direitos de cidadania”. Ilídio se lembra de

contatos seus com as Ouvidorias de concessionárias de energia. E diz: “a minha expectativa não

é que a pessoa resolva o meu problema, mas que a pessoa me entenda e, às vezes, até me dê

alguma sugestão pra que eu consiga resolver. Ou, pelo menos, que demonstre compreensão e

interesse em ajudar a resolver”. Então, eu acho que precisa ter “essa noção de cidadania. Tem

que ser muito analítico. Tem que ter essa noção de defender os direitos”.

De acordo com Sérgio, saber ouvir e ter uma compreensão geral do órgão onde trabalha

é essencial. “O Ouvidor tem que ser emocional, no sentido de afeto; de acolhimento. Mas, ao

mesmo tempo, ele tem que ser frio”. Sérgio imagina uma situação para fazer compreender o seu

ponto de vista: “imagina você... eu vou fazer uma reclamação muito importante. Meu filho foi

maltratado. A enfermeira deu injeção errada, qualquer coisa. A mãe vem, reclama pra você.

Você tem que receber. E você não pode nem piscar, nem falar a senhora tem razão (...), porque

(você) é tido como a pessoa que vai ouvir, vai acolher, vai resolver o seu problema”. É preciso

muito equilíbrio, diz. “Tem que ter o equilíbrio e tem que estar muito bem com a vida, também”,

completa Sérgio.

De acordo com Sérgio não há uma formação técnica que seja boa para o desempenho da

função de Ouvidor em qualquer área. Ele entende que a formação técnica é importante, mas que

a área específica deve levar em conta as atividades da organização.

Para José Luiz a primeira exigência para quem deseja ser Ouvidor “é a capacidade para

se dedicar à função e em segundo lugar a isenção. Por mais que alguém tente fazer um trabalho,

se ele não for isento ele tá colocando a opinião própria e às vezes isso pode desvirtuar uma

informação. (...)”. A isenção, segundo José, é importante devido à função de mediador do

Ouvidor: “ela está conciliando segmentos, a pessoa que está questionando e outra que é a

entidade ou a pessoa que é responsável por dar aquela informação. Então, tem que ser isento,

senão ele começa a fazer parte do processo. E ele não pode fazer parte do processo. Ele tem que

orientar o processo”. José considera que é importante, também, ter conhecimento da

organização: “é importante que ele busque conhecer o contexto de trabalho dele, a área de

abrangência a qual ele está inserido, pra saber onde buscar as informações. Ele tem que saber

onde buscar as respostas, com quem buscar as respostas (...)”, diz.

A característica indispensável para o exercício da função de Ouvidor é, para Janio

Loyola “uma atitude de não conformidade, de sempre querer melhorar, sempre ter um pouco de

indignação. Uma pessoa persistente. Precisa ter amplas habilidades de comunicação,

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conseguindo falar com um cidadão, que, às vezes, é uma pessoa que sequer sabe ler e escrever.

Ouvi-lo, entender a situação e ser capaz de transmiti-la em menos de dois minutos ao Presidente

do órgão, a um técnico ou a um diretor da organização, como normalmente se dá em uma

reunião. A Ouvidoria faz essa interpretação, pois, muitas vezes, o cidadão tem muitas dúvidas,

não conhece as enigmáticas siglas utilizadas pelos funcionários do órgão ou não sabe se

expressar corretamente”. A Ouvidoria procura “entender o que o cidadão precisa e traduzir isso

pra dentro do órgão”.

De acordo com Janio Loyola, não há uma formação técnica que possa, por si, suprir as

características pessoais. Ele explica: para o desempenho da função de Ouvidor “é muito mais um

perfil pessoal do que formação acadêmica. Eu não consigo visualizar, por exemplo, que um

advogado ou um professor ou alguém formado em letras seja melhor”. E complementa: “já vi

diversos advogados que são indicados, que vão atrás, mas às vezes não têm essa capacidade de

sentar com uma pessoa humilde e ficar lá por 10, 15 (minutos) ou meia hora, se for necessário,

para entender realmente o que o cidadão precisa”.

4.4 Análise das entrevistas.

As respostas obtidas nas entrevistas desta pesquisa permitiram identificar duas

responsabilidades ou funções atribuídas às Ouvidorias. Os Ouvidores entrevistados enfatizam o

aspecto acolhimento e orientação ao cidadão, ouvindo-o com imparcialidade, representando-o no

interior da organização, facilitando o seu acesso às informações e criando condições para a sua

participação. Ao fazer isso, eles acreditam que a Ouvidoria reduz a distância entre o Estado e a

sociedade, catalisando o processo de transformação social. Os gestores, por sua vez, dão

destaque à Ouvidoria como entidade de mediação, fiscalização, solução de problemas e de apoio

ou parceria à gestão organizacional. Gestores e Ouvidores mencionam a Ouvidoria como uma

ferramenta de gestão estratégica, facilitando a introdução de mudanças na organização a partir

dos estímulos recebidos da sociedade. As falas dos gestores sancionam o reconhecimento da

Ouvidoria como um dispositivo legítimo de representação do cidadão no interior da organização.

Os motivos que levam as pessoas às Ouvidorias são diversos. A pesquisa catalogou sete

razões principais. São elas: para solicitar informações sobre onde e como obter serviços;

reclamar de alguma deficiência na prestação de serviços; apresentar sugestões visando o

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aperfeiçoamento de um serviço existente ou a criação de um novo; para demonstrar satisfação

com o atendimento recebido; denunciar a má conduta de agente público ou o mal uso de recursos

e equipamentos; opinar sobre assunto de interesse geral; tentar obter algum privilégio pessoal,

como, por exemplo, não precisar esperar em uma fila. As principais fontes para essa catalogação

foram as consultas aos documentos e aos registros em arquivos.

A falta de informações é o principal motivo que leva os cidadãos recorrerem às

Ouvidorias. Nas falas dos gestores, a confiança que os cidadãos depositam na Ouvidoria surge

também como uma causa adicional. Fez-se uma verificação, comparando a informação que os

cidadãos solicitam por intermédio de e-mails ou do preenchimento de um formulário eletrônico e

as informações disponíveis nos sites dos respectivos órgãos. Constatou-se que a maior parte das

informações solicitadas está publicada na página da organização na Internet. Provavelmente, o

cidadão enviou a solicitação à Ouvidoria antes mesmo de procurá-la na internet, ou a procurou e

não a encontrou. Contudo, ocorreram casos nos quais a informação publicada no site era

diferente do procedimento de atendimento.

Do ponto de vista legal, entrevistas demonstram que os Ouvidores consideram possuir

autonomia e poder adequados para atuar. Contudo, a maioria entende que, embora sejam

necessários, poder e autonomia são insuficientes para o desempenho da função de Ouvidor.

Segundo se pode constatar em suas falas, o aparato legal precisa ser aperfeiçoado e o efetivo

exercício do poder institucional e da autonomia dependem, em grande parte, de um trabalho de

legitimação por meio da conquista de confiança e de afirmação da pessoa que exerce a função de

Ouvidor. Também as entrevistas revelam a existência de mecanismos sutis por meio dos quais se

podem minar o trabalho da Ouvidoria. Entre eles está, por exemplo, a redução ou a não

atualização dos recursos da Ouvidoria, como a equipe de pessoal. Outro recurso importante é o

apoio dado pela direção da organização. Juntos, eles podem anular, na prática, as garantias

formais oferecidas. A importância da afirmação pessoal para o exercício da Ouvidoria aparece

também nas falas dos gestores e até com força maior.

Todos os Ouvidores que participaram da pesquisa entendem que o fundamento mais

importante para o trabalho da Ouvidoria são os valores de cidadania. Este deve ser o primeiro

impulso para o acolhimento das pessoas. Depois, vem o aparato de normas. Entretanto, as

entrevistas mostram, também, que as normas legais, tornam-se muito relevantes quando se trata

de dialogar com a organização em busca de soluções para os problemas apresentados, pois a

organização tende a dialogar com base na racionalidade das leis. Os gestores que participaram da

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pesquisa, a exceção de um deles, colocam o aparato de normas como o fundamento que deve

nortear toda a conduta do Ouvidor.

Todos os sujeitos participantes da pesquisa qualificam a Ouvidoria como uma área de

muita importância para a gestão estratégica das suas respectivas organizações. Segundo dizem,

partindo das manifestações específicas dos cidadãos, agregando-as, a Ouvidoria consegue

mostrar o que está acontecendo, apontando a necessidade da realização de mudanças. Desse

modo, além de resolver o problema para o autor da manifestação, a organização altera o próprio

projeto do serviço, evitando que os problemas se repitam para outros usuários, reduzindo, assim,

a sua própria vulnerabilidade.

Nas falas dos Ouvidores, esses argumentos são inseridos na lógica da valorização da

cidadania: resolver para o cidadão prejudicado e assegurar que outros não o sejam. Nas falas dos

gestores, estes argumentos emergem como alinhamento estratégico da organização.

As entrevistas evidenciam que os Ouvidores acreditam que a população se mostra a

cada dia mais disposta a atuar na fiscalização da Administração Pública. A popularização da

Internet aparece em todas as falas como uma ferramenta que estimulou essa atitude na

população. Do mesmo modo, eles acreditam que a Lei de Acesso à Informação vai fortalecer a

capacidade da sociedade em fiscalizar, ao tornar obrigatório o fornecimento de informações e a

prestação de contas por parte dos órgãos públicos. Alguns Ouvidores apontam ter ocorrido uma

melhoria significativa desde 1999 (ano de introdução das Ouvidorias). Mesmo assim, eles

entendem que o Brasil encontra-se ainda muito longe do padrão desejável de participação da

sociedade. Contudo, os Ouvidores afirmam que os cidadãos participam apenas para tratar de

questões de interesse individual e quase sempre se mobilizam apenas quando se sentem pessoal e

diretamente prejudicados.

Os gestores também acreditam que o controle da administração pública pela população

está se aperfeiçoando, embora se mostrem um pouco mais céticos do que os Ouvidores. Alguns

acreditam que as deficiências na educação criam barreiras difíceis de serem transpostas. Outros

entendem que essa atitude de preocupação com o controle social, como a solicitação de

informações às organizações públicas, está restrita a um pequeno grupo da população, como os

pesquisadores, por exemplo. Haveria, também, setores empresariais que utilizam a informação

com finalidade lucrativa e que, ao solicitarem-na ao Estado, estariam transferindo os custos da

sua produção para o setor público e, portanto, para a sociedade.

Segundo se depreende das falas dos Ouvidores, os cidadãos esperam que a Ouvidoria

não se transforme em mais um órgão burocrático e que ela faça a ligação entre a sociedade e a

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administração do órgão. Para fazer essa conexão, os Ouvidores entendem que os cidadãos têm a

expectativa de serem ouvidos com atenção. E como a Ouvidoria costuma ser o único lugar no

qual se propicia ao cidadão a oportunidade de falar e se explicar, isso tende a aumentar as

esperanças dele em uma solução favorável para todos os seus problemas. Contudo, alguns

Ouvidores afirmam que o cidadão em geral tem baixa expectativa com o serviço público,

contribuindo para o aumento da satisfação com o trabalho da Ouvidoria pelo simples fato de

receber um pouco mais de atenção.

Quanto às expectativas dos gestores, os Ouvidores acreditam que eles esperam da

Ouvidoria a sua contribuição para minimizar os conflitos, resolver os problemas, reduzir os

processos judiciais contra a organização e participar do processo de melhoria da qualidade da

gestão.

Por sua vez, em suas falas, os gestores expressam expectativas que as Ouvidorias atuem

na fiscalização do órgão visando a sua melhoria e que o Ouvidor realize o seu trabalho com

imparcialidade. Esperam, também, a busca da Ouvidoria sempre por uma resposta para o

problema apresentado, conduzindo-se com base em princípios e em fatos.

As entrevistas da pesquisa revelam que todos os participantes atribuem muita

importância ao conhecimento da satisfação das pessoas com os serviços que prestam. Entretanto,

nenhuma das Ouvidorias pesquisadas possui instrumento próprio para a realização desse tipo de

avaliação. Os Ouvidores consideram tratar-se de um trabalho de alta complexidade e, por isso,

difícil de ser avaliado fora do contexto do seu resultado. Ou seja, o cidadão fica satisfeito quando

o seu problema é resolvido e insatisfeito quando não o é, mesmo nos casos em que a Ouvidoria

tenha oferecido o atendimento correto e atencioso.

Em três das Ouvidorias pesquisadas, os órgãos a que pertencem conduzem pesquisas

periódicas com os usuários para fazer uma avaliação da organização em sua totalidade. Nessa

pesquisa são incluídas algumas questões básicas sobre a Ouvidoria. O índice de satisfação com a

Ouvidoria da Secretaria da Fazenda, por exemplo, está na ordem de 75%. De acordo com os

Ouvidores, um número razoável e espontâneo de cidadãos costuma entrar em contato com as

Ouvidorias para manifestar satisfação com o atendimento recebido. Em algumas Ouvidorias esse

público chega a cerca de 20% do total atendido.

Em suas falas, os gestores são unânimes em avaliar positivamente o trabalho da

Ouvidoria. Contudo, salientam que isso não significa ausência de conflitos. Os gestores

enfatizam a confiança, a capacidade de diálogo dos Ouvidores e a inquietação da área como as

características mais marcantes.

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A maioria dos sujeitos entrevistados acha que é importante que o Ouvidor tenha

formação em nível superior. Entretanto, não consideram essencial ter formação em uma área

específica de conhecimento. Determinadas habilidades e características pessoais são tidas até

como mais relevantes do que a qualificação técnica ou acadêmica.

Os Ouvidores enfatizam a capacidade para ouvir e se colocar no lugar do outro como

algo muito importante. Eles acreditam que é fundamental ter disposição para o diálogo,

capacidade para estabelecer relacionamentos, conquistar a confiança e habilidades de mediação

de conflitos. É necessário saber identificar os elementos fatuais das demandas que atende,

separando-os daqueles que são emocionais ou afetivos. Os Ouvidores dão muita importância ao

conhecimento do órgão, às suas áreas, aos seus objetivos e programas. O domínio da legislação e

o entendimento da retórica organizacional também são percebidos como fatores de alta

relevância.

Das falas dos gestores emergem a compreensão de que o Ouvidor precisa ser uma

pessoa dotada de autonomia e disposição para se dedicar à função. É importante que ele tenha

elevada capacidade de análise, entendimento da organização e que fique atento aos fatos

relatados, incluindo-se aí a compreensão contextualizada da própria emoção da pessoa enquanto

faz seu o relato. A fala de um dos gestores, entretanto, diferenciou-se bastante de todos os outros.

Para ele, o conhecimento da estrutura da organização é algo de pouca relevância, pois, para ser

Ouvidor, o que é mais necessário é ter capacidade de análise e estar muito atento aos direitos de

cidadania.

Considerando a totalidade das entrevistas, a pesquisa não encontrou diferenças

relevantes entre os modos de pensar dos gestores e dos ouvidores. Há até mais diferenças entre

as visões de dois ouvidores de órgãos diferentes ou entre dois gestores do que entre o gestor e o

Ouvidor de uma mesma organização. Este fato pode ser um indicador de que, também para o

Ouvidor, a cultura organizacional constitui um fator de pressão pela conformidade e modelação

do comportamento, amalgamando-o na organização, e, dessa forma, contribuindo de modo

decisivo para a sua assimilação entre os quadros da administração burocrática. Outro fator, que

pode contribuir para essa homogeneização, é o da subordinação hierárquica. Confere ainda mais

consistência a essa interpretação o fato de quase todos os sujeitos entrevistados, sejam ouvidores

ou gestores, terem apontado o apoio da alta direção da organização como um fator crítico para o

bom desempenho da Ouvidoria. Isso demonstra que a Ouvidoria, como qualquer outro

departamento, não possui vida própria. Embora ela possa desfrutar de maior autonomia formal,

assegurada em lei, o seu desempenho efetivo depende das mesmas variáveis e recursos das

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outras áreas. Assim, provavelmente a permanência do Ouvidor na função dependa tanto ou mais

da vontade dos dirigentes do que da proteção formal conferida pela legislação.

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CONSIDERAÇÕES GERAIS.

Esta pesquisa se preocupou em conhecer o sistema de Ouvidorias do Governo do Estado

de São Paulo. O conjunto de informações coletadas permitiu compreender a instituição em seu

contexto, colocando em evidência a complexidade de suas relações operacionais, seus traços

culturais e mesmo as suas contradições funcionais. Por meio das informações coletadas,

identificou-se uma série de inovações que merecem ser destacadas e, também, fragilidades

institucionais, cuja superação mostra-se indispensável para que a instituição possa se consolidar

como um dispositivo de controle social.

A pesquisa traz uma limitação, a ser superada em estudos posteriores. As Ouvidorias

nasceram para acolher o cidadão, atuando na proteção e na defesa dos seus direitos no interior

das organizações do Estado. Infelizmente, a complexidade e o tempo necessário a ser despendido

não permitiram a inclusão dos cidadãos entre os sujeitos participantes da pesquisa. Uma

limitação que poderá ser corrigida por meio de estudos complementares no futuro. Será que as

Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo são conhecidas pela sociedade? E se são

conhecidas, será que são reconhecidas como espaços de diálogo e canais efetivos de

participação? Os Ouvidores participantes da pesquisa sugerem que as entidades ressentem de

uma política de divulgação, atualmente restrita a uma entrada na página dos respectivos órgãos

públicos na Internet. O Governo estaria sendo tímido para fazer a divulgação das Ouvidorias,

temendo que ocorra uma avalanche de reclamações. Contudo, as Ouvidorias não poderão

cumprir a missão para a qual foram criadas se a Sociedade não as conhecer e delas não se

apropriar. O ponto de vista do cidadão, infelizmente, não está contido nesta pesquisa.

As Ouvidorias significam uma mudança de postura dos governos e uma forma avançada

de proteção à sociedade, das quais os cidadãos têm tanto mais necessidade, quanto mais eles são

desprovidos de meios para defender os seus direitos junto às organizações públicas. O espírito de

solidariedade e a adesão aos valores de cidadania presentes em todos os Ouvidores que

participaram da pesquisa em nada lembram a forma tradicional como as burocracias recebem e

tratam o cidadão, classificando-os de maneira mecânica e impessoal em seus sistemas de normas

abstratas. Mais do que atender, os Ouvidores procuram compreender os relatos em seus

contextos. Mais do que ouvir, querem ajudar. Essa disposição para um engajamento em uma

jornada de cidadania, aliada à qualificação técnica dos Ouvidores, cria uma força capaz de abrir

horizontes e gerar energia para superar dificuldades imensas e variadas. Algumas dessas

dificuldades – aquelas que esta pesquisa conseguiu diagnosticar – serão apontadas adiante.

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Não são muitas as pesquisas já realizadas diretamente com os cidadãos com o intuito de

avaliar a credibilidade das Ouvidorias. Entretanto, mensagens enviadas pelos cidadãos aos

Ouvidores revelam que esse é também um diferencial das Ouvidorias. Muitas mensagens são

enviadas às Ouvidorias com cidadãos manifestando satisfação, gratidão; encantamento. São

relações que respeitam a legalidade, mas que vão além, revestindo-se de um espírito de

solidariedade raramente encontrado. Algumas dessas mensagens foram inseridas na seção de

descrição dos dados de campo dessa pesquisa. Nas Ouvidorias, a palavra atendimento é

substituída pelo conceito de acolhimento. Acolher, ouvir, acreditar, compreender, respeitar,

ajudar. Nem sempre eles conseguem ajudar e resolver os problemas que lhes são apresentados –

eles próprios admitem. Mas acolher, ouvir, acreditar, respeitar e compreender sempre é possível

– repetem os Ouvidores frequentemente, como um mantra. Também não existem estudos

realizados para mensurar o nível de penetração das Ouvidorias na sociedade. O volume de

manifestações que as Ouvidorias recebem anualmente é bastante impressivo, mas o sistema

carece de melhor divulgação junto à sociedade e de uma mais adequada compreensão da sua

função na administração.

O sistema de Ouvidorias inaugurou uma nova maneira de atendimento ao cidadão que

rompeu com o conceito de balcão, tão característico do setor público. Criou-se uma rede de

Ouvidores, na qual um cidadão pode enviar a sua manifestação para qualquer órgão do Governo

do Estado. Caso não seja o lugar apropriado para tratar da questão suscitada, os Ouvidores

redirecionam internamente a mensagem, em vez de jogar o cidadão de um lado para o outro, sem

orientá-lo corretamente. O Brasil tem uma enorme quantidade de órgãos públicos, muitos

atuando de maneira concorrente em todos os níveis da federação. Para o cidadão, já é difícil

identificar as competências de cada ente federativo. Mais difícil ainda é distinguir as atribuições

de cada órgão. Há um compromisso entre os Ouvidores de jamais deixar o cidadão sem uma

resposta que o oriente. A pesquisa coletou evidências de que esse compromisso vem sendo

adequadamente praticado em todas as Ouvidorias participantes.

As informações da pesquisa demonstram que as Ouvidorias estão contribuindo para a

garantia de direitos e para redução da assimetria de informações entre a sociedade e o setor

público e entre os dirigentes das organizações e o corpo administrativo. Sobretudo, após o

advento da Lei de Acesso à Informação (LAI), fortaleceu-se o poder da sociedade para exigir

informações do setor governamental. Combinando-se as Ouvidorias com a Lei de Acesso à

Informação, tem-se a criação de uma possibilidade real para o cidadão tornar-se, na prática, um

órgão de controle social, fazendo do Ouvidor o elemento técnico que, em nome do cidadão,

desempenha o papel de fiscalizar as ações dos administradores.

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Entretanto, a pesquisa identificou fragilidades no funcionamento do sistema, cuja

superação parece importante para aproximar as atuais Ouvidorias daquilo que elas se propõem e,

de fato, poderiam ser. Em sua lógica a entidade parece ter sido bem pensada. A ação, entretanto,

mostra-se prejudicada. As Ouvidorias têm a responsabilidade de ouvir o cidadão, mas não são

dotadas de autoridade suficiente para fazer valer os seus interesses; elas têm a cortesia para

acolher, mas não dispõem de poder para decidir; elas recebem proteção formal, mas não

desfrutam de autonomia operacional. Por isso, com maior ou menor grau, as Ouvidorias acabam

se tornando uma espécie de ‘para-choque’ do governo, instrumentalizadas para absorver o

impacto das pressões vindas da sociedade, ouvindo as queixas para, depois, tentar resolver os

problemas do lado de dentro. A situação é bastante ambígua, na medida em que, do lado de fora,

a Ouvidoria representa e defende o governo, enquanto que, do lado de dentro, ela se propõe a

fazer exatamente o contrário, ou seja, representar e defender o cidadão. O interesse do cidadão é

o de resolver um problema específico, ao passo que o Governo dificilmente admite estar errado.

Assim, não raramente, os Ouvidores caminham no ‘fio da navalha’, em situações-limite, com a

difícil e perigosa tarefa de dar as más notícias para os dois lados.

O sistema de gestão do governo não usa adequadamente as informações produzidas

pelas Ouvidorias. Ao nível específico de algumas das organizações que participaram da

pesquisa, observaram-se mudanças em serviços e procedimentos, introduzidas a partir do

conhecimento proporcionado pelas suas respectivas Ouvidorias. Em pelo menos uma das

organizações participantes, entretanto, o fluxo de comunicação entre a Ouvidoria e a gestão

organizacional encontra-se totalmente bloqueado.

Relatórios gerais do conjunto de Ouvidorias são elaborados semestralmente, sob a

coordenação da Secretaria de Gestão Pública e da Ouvidoria da Corregedoria Geral de

Administração. No entanto, esses relatórios não são utilizados com o intuito de subsidiar o

conhecimento do governo sobre si mesmo e orientar as suas decisões. Em termos mais

específicos, pode se dizer que essas informações não têm servido para gerar inteligência e

inovação no Governo, por exemplo, para identificar vertentes e tendências que se desenvolvem

no seio da sociedade. Embora os relatórios focalizem, sobretudo, questões pontuais ou locais, no

seu conjunto, eles permitem uma leitura da maneira como a sociedade está vendo o Governo,

possibilitando, por meio da análise, passar da ação corretiva emergencial para a ação proativa

local e global. Poderiam, por exemplo, ensejar a realização de pesquisas mais profundas para a

compreensão de temas cujas manifestações apenas sinalizam.

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Mesmo a correção de problemas pontuais e emergenciais apresenta deficiências. Há

casos em que um determinado cidadão entra com uma reclamação e, tempos depois, outro

cidadão, em outra organização – ou na mesma –, ingressa com uma nova reclamação sobre o

mesmo problema, evidenciando a falta de um tratamento sistêmico ao problema identificado. A

Ouvidoria resolve os problemas caso a caso, para aquela situação. As fissuras, tanto quanto as

suas causas, permanecem.

Apesar da existência de comparações entre as Ouvidorias paulistas e o Ombudsman

sueco, afirmando-se que a instituição escandinava foi a sua principal fonte de inspiração, esta

pesquisa constatou que as Ouvidorias do Governo do Estado de São Paulo constituem uma

iniciativa bastante peculiar, que, em poucos aspectos, aproximam-se da instituição sueca. Entre

elas há mais diferenças do que semelhanças, como se procura mostrar no Quadro 10, colocando

lado a lado as duas entidades no tocante a alguns dos seus aspectos mais relevantes. aqui

Como se pode constatar observando o Quadro 10 – próxima página –, algumas

diferenças saltam aos olhos. Mais do que estabelecer juízos de valores, o objetivo é relacionar as

características centrais, o que implica realçar determinadas características, como intuito de

contrastá-las.

A entidade paulista surgiu cento e nove anos mais tarde e poderia ter aproveitado os

principais pontos fortes da instituição escandinava, além de avançar no sentido de incorporar

novas possibilidades criadas pelo advento de uma serie de oportunidades proporcionadas por

inovações tecnológicas. Contudo, embora generosa, a Ouvidoria é uma inovação que se acopla à

estrutura tradicional do Estado, assimilando grande parte da sua cultura, mais do que a

conflitando. Nas organizações nas quais a administração superior estimula o seu funcionamento

como fonte de garantia de direitos, melhoria dos serviços e provedora de informações

estratégicas para a inovação organizacional, ela tornou-se dinâmica e respeitada. Contudo, onde

ou quando o núcleo dirigente não se interessou pelo seu bom funcionamento, ela sucumbiu e não

conseguiu realizar a sua missão. Isso coloca em evidência uma entidade institucionalmente

frágil, sem autonomia real, sujeita aos interesses e humores dos dirigentes.

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Quadro 10: Comparação não exaustiva entre o Ombudsman e a Ouvidoria.

Característica Ombudsman sueco Ouvidor paulista

Criação. 1809. 1999.

Natureza. Órgão de controle não contencioso da

administração.

Órgão de assessoramento da

administração superior.

Atribuição. Proteção e defesa dos direitos

legítimos do cidadão.

Proteção e defesa dos direitos legítimos

do cidadão. Organizar a participação da

sociedade.

Institucionalização. Constitucional. Legislação infraconstitucional.

Vínculo institucional. Poder Legislativo. Poder Executivo

Posição no

organograma.

Superior. Órgão não subordinado. Assessoria. Órgão formalmente

subordinado ao dirigente máximo da

organização.

Critérios de

nomeação.

Notório saber jurídico. Profundo

conhecimento da administração.

Integridade pessoal e profissional.

Conhecimento da administração pública

e, particularmente, do órgão onde

trabalha. Integridade pessoal e

profissional.

Procedimento de

escolha.

Eleito pelo Parlamento. Pessoa

escolhida não pode ter envolvimento

político.

Livre escolha do dirigente da

organização. Não há restrição de

vínculo partidário.

Forma de nomeação. Promulgação do ato de eleição pelo

Parlamento.

Por meio de resolução publicada no

Diário Oficial do Estado.

Campo de atuação. Ampla, geral e irrestrita. Limitada ao órgão no qual está

instalada.

Formas de atuação. Por provocação externa e iniciativa

própria (de ofício).

Fundamentalmente, por provocação

externa. Tem prevalecido o

entendimento de que ela pode, também,

acolher manifestações de funcionários.

Autonomia. Alta. Média. A autonomia está oficializada

na legislação, mas se trata de um órgão

subordinado.

Autoridade. Alta Baixa. Não tem poder de investigação,

nem orçamento, nem quadro próprio de

funcionário.

Proteção. Alta. Inamovibilidade assegurada na

Constituição.

Formalmente alta. Inamovibilidade

temporária assegurada na legislação.

Poder. Alto. Poder para investigar,

recomendar, criticar e apresentar

denúncias perante os tribunais.

Baixo. Poder para aconselhar,

recomendar, sugerir. Não há sequer a

obrigatoriedade de a administração

pronunciar-se sobre os relatórios do

Ouvidor.

Quadro funcional. Próprio. Designado.

Qualificação exigida. Direito. Não estabelecida na lei. Todos que

participaram desta pesquisa, entretanto,

possuem no mínimo formação superior.

Condições de acesso Gratuito e não ordinário. Livre, direto, informal e gratuito.

Mandato De quatro anos, permitida a reeleição. De um ano, permitida a recondução.

Fonte: Desenvolvida pelo pesquisador.

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A Ouvidoria não chega a ser um órgão de controle da administração, como é o caso do

Ombudsman. Ela se assemelha muito mais a uma assessoria de Gabinete, cujas recomendações

são tomadas em conta somente quando vão ao encontro do interesse do grupo dirigente. Entre as

suas atribuições estão, além da defesa e proteção aos direitos dos usuários, a de organizar a

participação dos cidadãos e a realização de avaliações periódicas da satisfação dos usuários com

os serviços da organização. Nenhuma das Ouvidorias participantes da pesquisa se encarrega de

executar essas duas responsabilidades, pois não contam com autonomia, nem infraestrutura

humana e tecnológica adequada para desempenhá-las. As redes sociais são hoje o espaço mais

promissor em termos de oportunidades para se estimular a participação, realizar avaliações e

consultas frequentes, instantâneas e de baixo custo. Entretanto, as Ouvidorias sequer estão nas

redes sociais, devido à existência de limitações de ordem operacional, restrições políticas e

institucionais. O Governo tem centralizado a atuação nas redes sociais às assessorias de

comunicação, cuja atuação não se caracteriza por um diálogo, mas, principalmente, pela

divulgação de informações de interesse governamental. Os próprios Ouvidores manifestam

muitos temores em entrar nas redes sociais, devido à falta de infraestrutura interna para dar

respostas às demandas na velocidade exigida por esse instrumento de interação. Um governo

analógico e hierárquico é um mastodonte incapaz de acompanhar a velocidade digital das redes

sociais.

As Ouvidorias foram institucionalizadas por legislação infraconstitucional, oferecendo-

lhes razoável proteção formal. Entretanto, os Ouvidores são nomeados com base em relações de

confiança, tornando-os muito vulneráveis ao dirigente máximo da organização, que desfruta de

plena liberdade para nomeá-lo e para reconduzi-lo ou não a cada final de mandato de um ano

sem ter que sequer se justificar. É preciso ampliar o tempo de mandato e tornar mais complexo

tanto o processo de nomeação quanto o de demissão, envolvendo, no mínimo, a apreciação do

Poder Legislativo. Como instituído atualmente, ao contrário do que parece assegurar a

legislação, a autonomia, na prática, não é conferida ao Ouvidor, mas sim à pessoa da autoridade

que o nomeia, tornando-o completamente dependente do corpo dirigente. Aqui, vale lembrar que

o Ombudsman sueco é escolhido por uma comissão do Parlamento, extinta no momento em que

é publicada a ata de sua nomeação, ficando o eleito livre para seguir as suas convicções e

fiscalizar a administração de acordo com a sua consciência. O mandato de quatro anos confere

ao Ombudsman tempo razoável para tratar de projetos de maior envergadura, que seriam

impossíveis de serem executados no período de apenas um ano atribuído ao Ouvidor paulista.

Esse mandato excessivamente curto, aliado à possibilidade de recondução do Ouvidor

indefinidamente, pode levar ao estabelecimento de relações de clientelismo com os dirigentes e,

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também, à acomodação do Ouvidor, transformando a Ouvidoria em mais um órgão

burocratizado. Clientelismo e burocracia estão entre as anomalias que a instituição foi criada

para combater. Por isso, seria conveniente ampliar o seu mandato e limitar a quantidade de

reconduções possíveis.

Embora nomeado no âmbito do Poder Executivo, o Ouvidor deveria prestar contas,

também, ao Legislativo. Dada a natureza do Poder Legislativo, era de se esperar que fosse essa a

instituição mais próxima das Ouvidorias. Estranhamente, os Deputados Estaduais estão

completamente afastados.

O campo e as formas de atuação estabelecem diferenças abissais entre o Ombudsman e

as Ouvidorias. Enquanto o Ombudsman não encontra qualquer limitação à sua atuação, a ação

dos Ouvidores circunscreve-se às suas respectivas organizações e são desprovidos de poder e de

instrumentos próprios de investigação. O relatório que elaboram ao menos semestralmente é,

hoje, o principal produto do trabalho do Ouvidor. Nele, faz-se a descrição do atendimento

realizado no semestre anterior, críticas e sugestões com as quais se poderiam corrigir os

problemas identificados. Por isso, esse relatório pode ser considerado, também, o principal

instrumento de poder do Ouvidor. Mas esse relatório não tem servido adequadamente ao

propósito de accountability. A Ouvidoria sequer recebe um parecer dos dirigentes das

organizações sobre o destino que foi dado aos comentários, críticas e sugestões apresentadas.

Isso poderia mudar significativamente, caso o trabalho das Ouvidorias se integrasse às ações do

Tribunal de Contas, do Ministério Público e do Poder Legislativo. Além disso, as Ouvidorias,

por intermédio da Ouvidoria Geral da Corregedoria de Administração, poderiam ampliar a sua

aproximação com a sociedade, realizando, uma vez por semestre, uma audiência pública para

submeter o relatório ao conhecimento e à discussão da sociedade.

Até mesmo a proteção temporária de um ano oferecida ao Ouvidor não tem sido

respeitada. Informalmente, os Ouvidores entrevistados relataram ter conhecimento de casos em

que colegas foram constrangidos a pedir afastamento antes do final do mandato. Em outros, disse

um entrevistado, ouve-se muito ‘fique quietinho’. Em diversos órgãos públicos a entidade não

desfruta das condições mínimas de trabalho. Esta é uma forma tão discreta quanto eficaz de

asfixiar as Ouvidorias. Basta não lhe fornecer os recursos mínimos necessários, como pessoal,

computador, sistemas, telefone e local apropriado para a realização do atendimento. A

dependência vis-à-vis aos dirigentes superiores do órgão, na prática, reduz drasticamente a

autonomia formal conferida à Ouvidoria na legislação.

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A elaboração de regimentos internos é um dispositivo que tem sido usado tanto para

fortalecer quanto para fragilizar a atuação da Ouvidoria, sempre em consonância com a vontade

dos dirigentes. Em uma das organizações envolvidas na pesquisa, o regimento fortaleceu a

autonomia e o poder da Ouvidoria. Mas há relatos de casos em que o regimento foi instituído

com o claro propósito de limitar o seu campo de atuação, impedindo, por exemplo, que ela

pudesse acolher demandas de funcionários, mesmo quando o assunto não está relacionado às

políticas de recursos humanos, recaindo sobre questões que agridem o direito de cidadania, como

o assédio moral e sexual.

Há órgãos nos quais a Ouvidoria foi transformada em área de atendimento de rotina de

tudo aquilo que é para ser negado. Os funcionários vivem submetidos a uma pressão

insustentável e a Ouvidoria se fragilizou perante o cidadão, deixando de realizar a sua verdadeira

função, qual seja a de atuar na proteção e defesa dos direitos dos cidadãos. Em uma das

Ouvidorias participantes da pesquisa, a Ouvidoria tornou-se uma espécie de SAC96

. Diante de

um forte crescimento na demanda por medicamentos, acima da capacidade de suprimento do

órgão, a área responsável pelos serviços de rotina, com o apoio dos dirigentes, decidiu não mais

atender ao público, transferindo-o para a Ouvidoria. Sufocada, a Ouvidoria não pode se dedicar à

sua função de proteger os cidadãos, organizar a sua participação atuar na busca de melhorias dos

serviços públicos.

A inexistência de um quadro funcional próprio é um fator a mais de insegurança

institucional, assim como a ausência de autonomia orçamentária e financeira. Os funcionários

destinados à Ouvidoria deveriam ser selecionados de maneira específica, levando em conta os

conhecimentos e as habilidades requeridas para o desempenho das atividades da entidade.

Para ocupar o posto de Ombudsman na Suécia, exige-se o notório saber jurídico. Essa

exigência foi estabelecida em 1809 em função da missão atribuída ao Ombudsman, de verificar a

correta aplicação das leis pelos juízes e Poder Executivo. Em São Paulo não se faz qualquer

exigência em termos de qualificação nem de formação específica. Nem sequer é exigido ter

formação superior. No caso sueco, a possibilidade do Ombudsman poder oferecer denúncias aos

tribunais justifica a exigência da formação em direito. No Brasil, essa função é desempenhada

pelo Ministério Público. No sistema paulista de Ouvidorias, procura-se colocar a ênfase no

processo de solução administrativa de problemas, evitando que eles se tornem demandas de

caráter judicial. Para esse objetivo, conhecer os meandros da organização, seus gargalos e sua

cultura, é mesmo muito relevante. Para fazer isso, o alinhamento das ações das Ouvidorias com o

96

Serviço de Atendimento ao Cliente. Uma área muito comum nas empresas privadas.

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Ministério Público e outras entidades de controle é uma condição fundamental para busca da

convergência entre as diferentes formas de controle. Então, levando-se em conta a natureza da

função, da responsabilidade, das relações a desenvolver e repertório de temas a dominar, faz

sentido que ao lado da experiência administrativa seja exigida no mínimo a formação superior.

As Ouvidorias representam uma alternativa de introdução do controle social nas

organizações públicas brasileiras, inserindo-o na nossa cultura de gestão com o intuito de

complementar as tradicionais formas burocráticas de controle. No Brasil, diversas formas de

controle são aplicadas sobre a Administração Pública. Tomando como base a sua localização,

elas podem ser classificadas nas modalidades interna ou externa. O controle exercido por

intermédio dos instrumentos hierárquicos, a Procuradoria Geral do Estado, a Corregedoria Geral

de Administração, o Ministério Público, as Comissões de Ética classificam-se na modalidade de

controles internos. O Poder Legislativo e o Poder Judiciário são as principais modalidades de

controle externo. O controle social propriamente dito inexiste na realidade brasileira, embora

esteja presente em algumas das mais sólidas democracias do mundo, sobretudo nas europeias. As

evidências coletadas apontam para as Ouvidorias como embriões dessa forma de controle.

Entretanto, para que elas possam desempenhar esse papel de maneira efetiva, uma série de

aperfeiçoamentos deverá ser introduzida, visando o seu fortalecimento institucional.

As Ouvidorias estão em uma fase de transição. As mudanças deveriam ter como

objetivo promover o fortalecimento interno do papel das Ouvidorias, ao mesmo tempo em que

amplia a sua penetração na sociedade, para que elas consigam avançar, passando do atendimento

passivo de demandas à organização da participação dos cidadãos e do controle da sociedade

sobre a administração. Como estão, ao contrário disso, as Ouvidorias poderão sucumbir à

conformidade da cultura burocrática, tornando-se mais um órgão de assessoramento, afigurando-

se, quando muito, entre os instrumentos de controle interno e se afastando da modalidade de

controle social que elas poderiam inaugurar no nosso país.

As informações produzidas pela Ouvidoria podem fornecer um conhecimento bastante

razoável da percepção da sociedade relativamente ao desempenho global da organização. No

setor público é muito difícil obter indicadores sintéticos de desempenho, semelhantes aos

encontrados no setor privado, no qual, para efeito de avaliação, as decisões, os projetos e as

ações podem ser submetidos à única dimensão do retorno para o acionista – o lucro. Essa

dificuldade encontrada no setor público torna a avaliação uma tarefa particularmente difícil. O

tipo de informação produzido pelas Ouvidorias pode, ao menos parcialmente, equacionar esse

problema, introduzindo no processo decisório a percepção do cidadão obtida em tempo real e de

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forma contínua, criando um indicador síntese de alta relevância estratégica para a promoção do

realinhamento contínuo da gestão pública face os interesses e expectativas da sociedade.

Essa pesquisa se iniciou estabelecendo a hipótese de que as Ouvidorias se inseririam

entre os dispositivos de surveillance, aqueles por meio dos quais a sociedade tenta impor

vigilância às ações da administração pública. Os dados da pesquisa evidenciam essa premissa.

As informações obtidas pela pesquisa demonstram que, tanto a parcela da sociedade que interage

com as Ouvidorias, quanto os funcionários nomeados Ouvidores têm essa compreensão. Os

cidadãos demandam informações. Os Ouvidores as obtêm internamente e as entregam ao

cidadão.

Nesse sentido, o Ouvidor precisa definir o seu papel e construir uma identidade. Ou ele

bem representa a organização perante o cidadão, como uma espécie de Porta Voz. Ou ele

representa o cidadão no interior da organização. A pior situação é aquela em que as Ouvidorias

se encontram atualmente, no meio do caminho.

Rapidamente, estamos transitando para um novo paradigma, no qual a atividade de

governar transcenderá o desafio de administrar orçamentos e executar obras. Governar implicará,

cada vez mais, estimular e organizar a colaboração coletiva para a produção e a prestação de

serviços. Os desafios não se limitarão mais apenas ao desafio de mudar a cultura da

administração pública e as relações entre o Estado e a Sociedade. É a própria estrutura que se

mostra profundamente ultrapassada para as novas funções que o Estado vem sendo desafiado a

desempenhar. Essa pesquisa possibilitou constatar que as Ouvidorias podem ser úteis para

melhorar a atuação do setor público de maneira sistêmica.

No curto prazo, as organizações públicas estão submetidas a uma forte tensão,

resultante de uma cultura de gestão tradicional burocrática, que deseja funcionar com pouca ou

nenhuma interferência da sociedade. Essa cultura vem sendo fortemente confrontada com as

expectativas existentes no seio da sociedade por uma administração pública que se torne mais

aberta e participativa, prestando contas de suas ações. O setor público precisa desenvolver

mecanismos que sejam capazes de reduzir a sua captura por interesses particulares e, ao mesmo

tempo, ele tem que aprender a lidar com novas demandas da sociedade, incorporando a

tecnologia da informação na transformação democrática das organizações em vez de apenas

utilizá-la como ferramenta de disseminação unilateral de informações de interesse do governo.

A Ouvidoria pública, seja pelo seu posicionamento na estrutura das organizações, seja

pelo seu compromisso em dialogar com a sociedade, é uma entidade capaz de atuar em todas

essas áreas, contribuindo para a criação de valor público. Ela pode auxiliar a melhoria da

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eficiência operacional e a diminuição dos custos, pois as reclamações e as denúncias permitem

evitar o desperdício e reduzir as sombras, nas quais operam os grupos interessados na captura do

Estado. Essas manifestações criam estímulos para que a organização se desenvolva do ponto de

vista institucional e melhore a sua capacidade de articulação com a sociedade. As Ouvidorias são

tentáculos sensíveis, conectados à sociedade. Por meio da sistemática coleta, análise e

organização de informações elas podem gerar inteligência pública de alto valor estratégico e

tornar muito mais efetiva a ação governamental.

As Ouvidorias Públicas podem desempenhar um papel central nessa sociedade que está

emergindo, focalizando a sua ação, além da proteção aos direitos, na organização da participação

e organização da colaboração coletiva, passando do acolhimento à construção do entendimento.

Um dos principais pressupostos que guiaram esta pesquisa é o de que a democracia

representativa e o sistema burocrático de gestão pública estão em crise. Historiadores e

Cientistas Sociais produziram numerosos estudos diagnosticando a natureza dessa crise, as suas

causas e dimensões. Se no decorrer do século XIX e parte do século XX ambos aportaram ao

mundo capitalista a esperança no progresso social e no fortalecimento da legitimidade do poder

político, no século XXI ambos vão se constituindo em uma grande desilusão. No Brasil, além

das disfunções próprias do sistema democrático eleitoral representativo e episódico, o fenômeno

da desilusão é agravado pela corrupção endêmica que atinge as instituições e pelo insulamento

da administração pública. Essa pesquisa não teve o propósito de fazer crescer esse diagnóstico.

A intenção foi outra, a de estudar uma entidade em seu fundamento e estrutura, trazendo

à tona as suas características mais relevantes, debatendo as suas possibilidades e os seus limites,

inserindo-a num contexto em que a legitimação do poder político exige o estabelecimento de

dispositivos capazes de aproximar as organizações públicas e a sociedade, transcendendo os

estreitos limites da democracia representativa. Não se trata, evidentemente, de substituí-la, mas

sim de complementá-la.

A instituição das Ouvidorias no Estado de São Paulo, como um sistema voltado ao

acolhimento de demandas do cidadão, constitui uma inovação relevante na administração

pública. Como princípio, elas significam o reconhecimento por parte do Estado de que ele

precisa dar satisfação à sociedade, a ela prestando contas sistematicamente. Respeitada a

legalidade da conduta, o cidadão é um órgão de controle das ações do governo tão ou até mesmo

mais legítimo do que os órgãos investidos de poder burocrático.

Um sistema eficaz de Ouvidoria pode de fato constituir-se em um dispositivo poderoso

de valorização da cidadania e, por isso, de revitalização democrática. Entretanto, para que esse

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objetivo seja alcançado, essa pesquisa constatou haver ainda um longo caminho a ser percorrido.

Um dos passos mais importantes é o seu fortalecimento na sociedade como parte indissociável

do sistema democrático. Elas são ainda entidades pouco conhecidas. Uma das limitações desta

pesquisa é o fato de não ter ouvido os cidadãos. Porém, os Ouvidores participantes da pesquisa

acreditam que o grande público ignora até mesmo a existência no Estado de São Paulo de uma

legislação que, em sua origem, pretendia ser para o usuário de serviços públicos o que o Código

de Defesa do Consumidor se tornou no campo das relações de consumo no domínio privado.

É nesse sentido que se faz extremamente necessário tornar a sociedade mais consciente

dos seus direitos, disseminar informações sobre a existência das Ouvidorias destinadas a garantir

a efetividade desses direitos e divulgar as suas ações em defesa dos cidadãos para reforçar a sua

credibilidade. A conquista da confiança dos cidadãos é indispensável para o processo de

consolidação das Ouvidorias públicas, pois o seu fortalecimento só poderá advir com a sua

apropriação pela sociedade. Mesmo que o Ouvidor seja investido de todo poder para atuar na

defesa e proteção ao cidadão, nada acontecerá se esse cidadão não tiver consciência dos seus

direitos e da possibilidade de se recorrer à Ouvidoria para assegurá-los, caso isso seja necessário.

É na implantação de uma política de transparência, participação e reparação de danos

que a Ouvidoria encontra o seu lugar mais apropriado. A transparência significa aplicar o

princípio segundo o qual a divulgação das informações constitui a regra, e o sigilo, a exceção. A

participação implica aproximar a sociedade e o Estado introduzindo a voz dos cidadãos nas

decisões governamentais. A política de reparação exige que o Estado reconheça seus erros, para

que se possa tratar daqueles danos, abusos e negligências, os quais os cidadãos normalmente

relevam, por acreditarem que ninguém lhes dará atenção e cuja complexidade e custos de se

recorrer ao judiciário os desestimulam a pleitear o reparo. São nesses três campos que as

Ouvidorias encontram um fértil terreno para atuar, fortalecerem-se e contribuir de maneira

efetiva para a superação da crise de legitimidade das instituições governamentais.

Um Estado transparente e participativo será fortalecido, pois o controle social reduz a

possibilidade de sua captura por grupos privados. O objetivo não deve ser o de absorver a

sociedade e nem eliminar as fronteiras, mas de criar parcerias nas quais cada um dos atores tenha

papeis a desempenhar, mantendo a sua identidade e autonomia.

A participação dos grupos sociais, muito provavelmente, jamais poderá ser organizada

no sentido tradicional. Um governo burocratizado, rigidamente estruturado, organizado sob a

metáfora de uma máquina planejada para a produção em massa, será cada vez menos efetivo em

uma sociedade multiespecializada, comunicando-se como redes neurais, à imagem de um

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cérebro gigante, criando infinitas redundâncias por meio de grupos autônomos, que se conectam

apenas de maneira frouxa e provisória. As consultas à população, a transparência nas ações, a

prestação de contas, o diálogo e a participação serão, mais e mais, a cada dia, os únicos meios

reconhecidos de legitimação da ação governamental. As Ouvidorias podem tornar-se um ator

ativo na animação dessa nova democracia emergente que transcenderá os limites da episódica

democracia eleitoral representativa.

No ditado popular consagrou-se a expressão de que cada povo tem o governo que

merece. Possivelmente, o maior problema do cidadão brasileiro seja o de possuir direitos que ele

ignora, instituições que ele desconhece e políticos que ele não merece. Mas o déficit de

democracia não se resume aos políticos eleitos. Trata-se de um fenômeno muito mais amplo,

enraizado na cultura de gestão pública brasileira. Superá-lo não é mais uma opção. É uma

necessidade para a sobrevivência da própria democracia.

A participação e a legitimidade nutrem a democracia. O fechamento das organizações e

a corrupção do governo a desmoralizam. Para usar a expressão consagrada por Ulysses

Guimarães, a corrupção é o cupim da República.

O controle social é a vacina.

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