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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC/SP Leonardo Tondato de Mello O ENVELHECER: UMA ANÁLISE JUNGUIANA NA MITOLOGIA AFRICANA MESTRADO EM GERONTOLOGIA SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Leonardo Tondato de Mello

O ENVELHECER: UMA ANÁLISE JUNGUIANA NA MITOLOGIA

AFRICANA

MESTRADO EM GERONTOLOGIA

SÃO PAULO

2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC/SP

Leonardo Tondato de Mello

O ENVELHECER: UMA ANÁLISE JUNGUIANA NA MITOLOGIA

AFRICANA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

como exigência parcial para obtenção do Título

de Mestre em Gerontologia, sob a orientação da

Profª Drª Elisabeth Frohlich Mercadante.

MESTRADO EM GERONTOLOGIA

SÃO PAULO

2016

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BANCA EXAMINADORA

___________________________

___________________________

___________________________

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Dedico este trabalho para todos que possuem curiosidade

pelo fenômeno humano.

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço à Deus e aos Orixás, por tudo o que consegui

até o momento e por esta, que se torna mais uma conquista em minha vida. Começo

agradecendo à Odette Figueiredo Tondato (in memorian), por todo amor a mim

dedicado, com sua postura séria, porém acolhedora e cativante e que, hoje, deixa a sua

marca e saudades.

Benedicto de Mello, (in memoriam) exemplo de longevidade e

maturidade.

À minha mãe, Shirley Iara Figueiredo Tondato, que, mesmo sem saber,

me ensinou o gosto por tudo que é da natureza humana e pela cultura e intelectualidade,

de maneira geral.

Ao meu pai, Álvaro de Mello, que me mostrou a força, garra e coragem

em frente a quaisquer obstáculos em minha vida.

Agradeço também à Maria Tereza Figueiredo Tondato, minha tia,

mostrando que as adversidades podem ser enfrentadas de maneira mais leve, sempre

sorrindo e, de preferência, com uma boa brincadeira.

À CAPES, pela bolsa concedida, essencial para a concretização deste

trabalho.

José Américo Figueiredo Tondato, por toda a força e investimento, ao

longo destes anos, sempre acreditando em meu potencial e apostando em mim.

Edith de Mello dos Santos, pela especial acolhida e por toda a dedicação

e atenção, ao longo destes anos.

Elisabeth Mercadante, que com todo carinho recebeu o meu projeto de

dissertação, que, hoje, transforma-se em um trabalho solidificado, grato pelo

investimento e pela caminhada, junto comigo.

Irene Gaeta, grandíssima mestra e amiga, que me acolheu desde estudos

anteriores, me ajudando e trocando conhecimentos, servindo como um referencial e

exemplo.

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Ana Maria Galrão Rios, pela amizade, e pelos livros emprestados, que

fazem parte das referências deste trabalho.

Por fim, gostaria de agradecer a todos meus familiares e amigos, que de

forma direta ou indireta contribuíram para a formação deste trabalho, intitulado O

Envelhecer: Uma análise junguiana na mitologia africana.

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RESUMO

MELLO, LEONARDO TONDATO DE. O envelhecer: Uma análise jungiana na

mitologia africana. Dissertação de mestrado em Gerontologia. Programa de Estudos

Pós – graduados em Gerontologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.

Este trabalho visa proporcionar para psicólogos estudiosos da gerontologia e

profissionais das diversas áreas, uma análise da velhice, levando em conta os

pressupostos da psicologia analítica de Carl Gustav Jung e a mitologia junguiana, desta

forma fornecendo mais uma visão acerca do envelhecimento, ampliando o estudo deste

tema, ainda tão desconhecido. Os orixás são aqui vistos como modelos arquetípicos,

formas de envelhecimento, que apontam para o processo de individuação descrito na

obra de Jung. Têm-se que à luz da mitologia africana e a psicologia analítica há inter

relação entre as temáticas, trazendo, assim, outra concepção sobre o envelhecimento.

Palavras – chave: Envelhecimento, psicologia analítica, Jung, mitologia africana.

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ABSTRACT

MELLO, LEONARDO TONDATO DE. O envelhecer: Uma análise jungiana na

mitologia africana. Dissertação de mestrado em Gerontologia. Programa de Estudos

Pós – graduados em Gerontologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016.

This work aims to provide for scholars psychologists of gerontology and professionals

from various areas, an analysis of old age, taking into account the assumptions of

analytical psychology of Carl Gustav Jung and Jungian mythology, thus providing more

insight about aging, expanding the study this theme, yet so unknown. The deities are

here seen as archetypal models, ways of aging, pointing to the individuation process

described in Jung's work. To have that in the light of African mythology and analytical

psychology there is interrelation between the issues, thus bringing another conception of

aging.

Key - words: Aging, analytical psychology, Jung, African mythology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1. ARQUÉTIPO, MITOLOGIA E VELHICE ......................................... 15

1.1 Metanoia ........................................................................................................... 32 CAPÍTULO 2. MITOLOGIA AFRICANA E PSICOLOGIA JUNGUIANA ............... 38

2.1 O candomblé ..................................................................................................... 48

2.2 Os velhos orixás ................................................................................................ 56

2.2.1 Oxalufã....................................................................................................... 57

2.2.2Abaluaê/Omulu/Obaluaiê/Omolu ................................................................. 63

2.2.3 Nanã de Buruku/Nanã de Burukê ................................................................ 71

2.2.4 Preto-Velho ................................................................................................ 81 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 88 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 91

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INTRODUÇÃO

A velhice é uma fase da vida que, na verdade, ainda não é totalmente

conhecida, as pessoas não sabem lidar, é uma questão contemporânea, um processo

em que ocorrem fenômenos de natureza biológica, psíquica, social e existencial,

portanto, deve-se levar em conta a dimensão de sua totalidade. Não se sabe ao certo

quando ficamos velhos, envelhecemos e tudo ao redor simplesmente toma outra

configuração, sendo esta, também, uma possibilidade de desenvolvimento humano,

período em que há o crescimento espiritual. Segundo MINAYO (2002,p.11): “Pelas

regras de classificação dos ciclos da vida que vigoram em nossa sociedade, o Brasil

precocemente entrou na rota do envelhecimento populacional. Nessa estrada que

acolhe os caminhantes grisalhos e sulcados pela vida, o trânsito vai aos poucos

ficando congestionado, a ponto de já serem mais de 31 mil os brasileiros

remanescentes do século XIX.”

Como visto acima, vive-se mais atualmente, todavia, há uma espécie de

“congestionamento”, não se sabe o que fazer com o idoso e há uma carência de

visões da velhice em seu aspecto multidimensional. A respeito desta questão, NERI

(1993, p.10) afirma: “Vários elementos são apontados como determinantes ou

indicadores de bem-estar na velhice: longevidade; saúde biológica; saúde mental;

satisfação; controle cognitivo; competência social; produtividade; atividade; eficácia

cognitiva; status social; renda; continuidade de papéis familiares e ocupacionais, e

continuidade de relações informais em grupos primários (principalmente rede de

amigos.”

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Em meio a esta trama, cabe ressaltar que envelhecer é uma possibilidade de

desenvolvimento humano, possibilidade esta que, na contemporaneidade, encontra-se

indesejável, com uma sociedade que apóia o “não envelhecer”. Sobre esta questão,

CORREA(2009,p.28) afirma: “Atualmente, a regra é não envelhecer. Não somente a

velhice por si só é indesejável, mas a finitude humana também o é. Por isso o

envelhecimento permaneceu na orla social por tanto tempo como uma espécie de

tabu, da ordem de um interdito em relação ao qual o silêncio seria o melhor aliado.”

Em contrapartida, o aumento da composição demográfica de idosos, fez com

que se buscassem novas formas para inclusão e novos símbolos para o idoso, que

englobassem além da sabedoria e conhecimento, experiência e maturidade, mas

também como visivelmente social, com possibilidades de realizações, planejamentos,

atividades. Ainda sobre a questão, CORREA(2009,p.29) coloca que : “O mundo está

mais velho. Conhecido por ser um país jovem, o Brasil tem ficado cada vez mais

grisalho. O progresso científico, a biotecnologia, os métodos contraceptivos, a maior

produção e o acesso a medicamentos, enfim, poderíamos elencar uma série de fatores

que podem ter contribuído para o aumento da expectativa de vida. Mas esses não

seriam fatores isolados, pois um processo ainda mais complexo aconteceu em poucas

décadas, levando a velhice a um status até então inalcançado, promovendo mudanças

na forma de ver e viver o envelhecimento: a visibilidade social.”

Continuando nesta linha de raciocínio, uma vez que vive-se mais e, agora, os

idosos estão visíveis socialmente, tornam-se também uma parcela populacional

consumidora, ou seja, economicamente lucrativos. Sobre esta questão, CORREA

(2009,p.29) intera: “Outro fator importante na modificação do olhar sobre a velhice

foi seu forte impacto na economia e em outras esferas da sociedade, criando a

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premente necessidade de delimitar essa população, caracterizá-la, conhecer seu

potencial, estabelecer sua funcionalidade, enfim, geri-la de forma eficiente.”

Desta forma, o idoso torna-se eficiente por que assim, agora, o é, como um

fenômeno público, como afirma GEERTZ(1989,p.22): “A cultura é pública porque o

significado o é. Você não pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber o que é

considerado uma piscadela ou como contrair, fisicamente, suas pálpebras, e você não

pode fazer uma incursão aos carneiros (ou imitá-la) sem saber o que é roubar urri

carneiro e como fazê-lo na prática. Mas tirar de tais verdades a conclusão de que

saber como piscar é piscar e saber como roubar um carneiro é fazer uma incursão aos

carneiros é revelar uma confusão tão grande como, assumindo as descrições

superficiais por densas, identificar as piscadelas com contrações de pálpebras ou

incursão aos carneiros com a caça aos animais lanígeros fora dos pastos.”

Quando refletimos sobre o processo de envelhecimento nos deparamos com

um aspecto complexo, no qual se insere a dificuldade de o velho se reconhecer

e compreender, apoiados nos estudos de MERCADANTE et al (2005).

A população de idosos, de acordo com a OMS indivíduos com mais de 60

anos, vem crescendo no Brasil. A longevidade é uma realidade mundial, com isso

observa-se que esse novo contingente populacional tem sua qualidade de vida

alterada. No Brasil, nos últimos sessenta anos, houve expressiva evolução da

expectativa de vida por ocasião do nascimento: em 1900, girava em torno de 34 anos;

em 1940, era de 39; em 1960, 41; em 1970, 59; em 1980 e 1990, 61. Estima-se que

será de 71 anos em 2010 e de 75 em 2020. Em 1980, aos sessenta anos, os homens

podiam esperar viver mais 14,2 anos e as mulheres, 17,6; em 1991, essas taxas em

2004 atingiram 15,3 para os homens e 18,1para as mulheres (Camarano et al.,1999);

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em 2000 foi de 16 anos para os homens e de 19,5 para as mulheres.Nesse ano, a

esperança de vida do brasileiro aos sessenta anos era de 17,8 anos; aos 65, de 14,3;

aos 70, de 11,1; aos 75, de 8,4 e, aos 80, de 6,1 (IBGE, 2000).

Sobre a questão do aumento de idosos, MINAYO (2002,p.11) afirma :

“Embora o crescimento do número de idosos na população total e o aumento da

expectativa de vida sejam indícios de progresso social, sua ocorrência provoca o

aparecimento de novas demandas e de novos problemas.”

A proposta desta dissertação é articular entre a psicologia e a mitologia

africana, no estudo da velhice. A metodologia aqui desenvolvida se dá na análise

bibliográfica sobre a psicologia junguiana, envolvendo autores como Jung e outros

que escreveram sobre a psicologia analítica, como Marie Luise Von Franz, Hollis,

entres outros e autores que escreveram sobre a mitologia africana, como Pierre

Verger e autores que escreveram sobre os dois temas, procurando uma relação entre

eles, como José Jorge de Morais Zacharias.

Entende-se, neste estudo que a velhice como tema proposto parte de uma

análise já pesquisada acerca dos arquétipos, como modelos de comportamento, em

que o indivíduo atua, sendo dominado por tais influências arquetípicas, sem sequer

saber. O velho e a velha, não são somente indivíduos, todavia, fala-se mais, sobre a

maneira arquetípica de envelhecimento, padrões arquetípicos de velhos e

envelhecimentos, uma vez que há inter – relação entre a mitologia africana e a

psicologia analítica e a velhice e os arquétipos, assim como a mitologia pode ser uma

ferramenta que auxilia na compreensão de aspectos da velhice como o “bom”

envelhecer, em que a velhice traduz-se em experiência de vida, sapiência e

serenidade e o “mau” envelhecer, em que o velho pode fazer desta nova fase repleta

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de amargores e angústias, temendo a morte, ou então fazer desta nova fase e

momento de desenvolvimento, uma “cópia” do que foi realizado na primeira metade

de sua vida.

Foi realizada, então, revisão bibliográfica sobre os seguintes temas:

Gerontologia, Psicologia Analítica, Mitologia Africana, apresentando, assim, uma

interlocução entre eles, ofertando novas perspectivas sobre o tema, apontando para

um estudo interdisciplinar.

Este trabalho possui dois grandes capítulos e, também, sub capítulos. No

primeiro capítulo, estudou-se a relação entre o arquétipo, a mitologia e a velhice,

seguido do conceito de metanoia, essencial na psicologia analítica.

No segundo capítulo, estudou-se o candomblé e os velhos orixás, ou seja, quais

são estes orixás velhos e o que eles dizem, do ponto de vista mitológico e

psicológico. Após esta discussão, têm-se as considerações finais, seguidas pelas

referências bibliográficas.

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CAPÍTULO 1. ARQUÉTIPO, MITOLOGIA E VELHICE

Os mitos e os símbolos revelam a realidade mais profunda da psique. Os

símbolos jamais aparecem da psique e são inesgotáveis em seu significado. A partir da

busca dos símbolos e da vida psíquica, Jung formulou a sua teoria, em que ele (o

próprio) percebeu a importância dos símbolos, tal como os mitos para o entendimento

da alma humana. Segundo GOMES E ANDRADE (2009,p.140): “Então explorou as

correspondências entre os símbolos que surgem nas lutas da vida dos indivíduos e as

imagens simbólicas religiosas subjacentes, sistemas mitológicos e mágicos de muitas

culturas e eras.”

Com esta correspondência, a noção de inconsciente pessoal, o que

corresponderia ao inconsciente freudiano, e de inconsciente coletivo foi formulada. O

inconsciente coletivo seria uma estrutura herdada, com conteúdos referentes à

humanidade, morada dos arquétipos. O postulado sobre o inconsciente coletivo permitiu

a explicação de fenômenos individuais e a sua correspondência com temas mitológicos,

referentes à situações da alma humana, cabendo, então a possível correspondência.

Ainda sobre tal questão, GOMES E ANDRADE (2009,p.141) reitera: “O

inconsciente, na perspectiva junguiana é, portanto, uma entidade viva, independente de

nossa percepção dele, acima das noções dualistas de bem e mal. É a outra parte de nossa

psique que o ego desconhece e que está sempre atuando e fazendo com que os sonhos,

em sua linguagem simbólica, sejam as representações fiéis da psique.”

O mito trata, para a psicologia analítica, sobre fenômenos que ocorrem na vida

humana e sobre temáticas universais, como, por exemplo, a maternidade, a paternidade,

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bem, mal, entre outros.

Ainda sobre esta questão, GOMES E ANDRADE (2009,p.141): “Diante de tais

concepções, Jung faz uma interpretação dos mitos acrescentando dimensões mais

profundas com relação aos especialistas modernos, considerando os mitos como

fenômenos psíquicos que revelam a própria natureza da psique. Para Jung os mitos

condensam experiências vividas repetidamente durante milênios; experiências típicas

pelas quais passaram e ainda passam os seres humanos. E é a partir desses materiais que

os poetas e sacerdotes elaboram os mitos, dando-lhes roupagens diferentes, de acordo

com a época e as culturas.”

Novamente GOMES E ANDRADE (2009,p.141):” O mito procura explicar os

principais acontecimentos da vida: fenômenos naturais, origens do homem e do mundo

através de deuses, semideuses e heróis. A partir disso vemos que todas as culturas têm

os seus mitos, muitos dos quais são expressões particulares de arquétipos comuns a toda

humanidade. Assim sendo, os mitos são formas de expressão dos arquétipos, falando

daquilo que é comum aos homens de todas as épocas.

Os mitos se referem ainda às realidades arquetípicas, isto é, a situações com que

todo ser humano se depara ao longo da sua vida, e vão além ao explicar, auxiliar e

promover as transformações psíquicas, tanto no nível individual como no coletivo de

certa cultura. Toda mitologia se torna, assim, uma forma de tomada de consciência, um

elemento para nos identificar. Existem mitos universais e os de cada cultura, mitos

iguais para todas as épocas com novas roupagens, porque o que é arquetípico é o tema e

a partir deste tema podem surgir novas formas de colocação.”

Nos mitos o indivíduo pode se reconhecer e reconhecer a sua história, pelo fato

de tratarem de temáticas universais e arquetípicas. Ainda sobre o mito, VON FRANZ

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(2012,p.31): “Parece-me que as histórias arquetípicas se originam, frequentemente, nas

experiências individuais através da irrupção de algum conteúdo inconsciente, que

podem surgir em sonhos ou em alucinações em estado de vigília. Algum evento ou

alguma alucinação coletiva acontece e, então, o conteúdo arquetípico irrompe na vida

nossa. Nas sociedades primitivas, praticamente nenhum segredo é guardado; então essa

experiência é sempre comentada, ampliando-se por outros temas folclóricos existentes

que a completam. Então, ela se desenvolve tanto quanto um boato.”

O mito é, então, uma produção, também, cultural. Ele apresenta aspectos

culturais conscientes, que o ligam àquele lugar história e àquela cultura, fundindo-se

com o consciente coletivo, estando, desta maneira, mais próximo daquela realidade

cultural, o mito está próximo da consciência.

Pode-se concluir que o arquétipo é, também, universal, remontando ao mais

primitivo (em sentido de primordial) e é inconsciente, passando para a consciência de

acordo com o indivíduo que o manifesta, trazendo assim “colorido” pessoal para o

arquétipo, ou seja, como aquele indivíduo, inserido em um dado momento histórico e

cultural, vivencia aquele arquétipo, todavia não é o indivíduo que possui o arquétipo,

mas sim o raciocínio contrário numa “possessão”.

O indivíduo não sabe conscientemente que é tomado por aquele conteúdo

arquetípico, ele simplesmente age de acordo com aquele arquétipo, por isto o termo. Há

uma emersão na consciência em que aquele que é tomado não se dá conta de que sua

ação, em dado momento, foi uma manifestação arquetípica.

Sobre o arquétipo, JUNG(2000, p.79) diz: “não são disseminados apenas pela

tradição, idioma ou migração. Eles podem reaparecer espontaneamente a qualquer hora,

em qualquer lugar, e sem qualquer influência externa”

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O arquétipo é uma forma sem conteúdo. Usar-se-á um exemplo: Um bolo numa

forma retangular. A forma retangular seria o arquétipo, não importa o sabor que o bolo

seja preparado, sua forma será retangular, dada pela forma a qual foi utilizada para ser

feito o bolo.

Do mesmo modo o arquétipo funciona: Ele é quem dá a forma, sendo que o

conteúdo ( ou o sabor do bolo) pode ser interpretado como o conteúdo pessoal, a

maneira como o indivíduo experimenta e/ou vivência a temática arquetípica.

Ainda na mesma temática, CARDOZO (2004,p.70): “Tais arquétipos são formas

sem conteúdo próprio que servem para organizar ou canalizar o material psicológico.

Eles se parecem um pouco com leitos de rio secos, cuja forma determina as

características do rio, porém desde que a água comece a fluir por eles. De qualquer

maneira as formas existem antecipadamente ao conteúdo.”

Reiterando, (JUNG,2000p.100): “O arquétipo não é uma imagem, mas

particularmente uma tendência para formar uma imagem de caráter típico; em outras

palavras, um modelo mental tornado visível”

A vivência de um arquétipo provoca reações emocionais de grande poder, pois

suscita à imagem primordial inconsciente, por isto é tão poderoso.

O inconsciente é quem cria o sonho, o mito como representação de elementos

advindos da psique, ainda citando JUNG (1942, p.109): “Os arquétipos não são apenas

impregnações de experiências típicas, incessantemente repetidas, mas também se

comportam empiricamente como forças ou tendências à repetição das mesmas

experiências.

Cada vez que um arquétipo aparece em sonho, na fantasia ou na vida, ele traz

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consigo uma ‘influência’ específica ou uma força que lhe confere um efeito luminoso e

fascinante ou impele à ação.”

Então, o mito e o arquétipo se relacionam, já que, o mito conta sobre uma

realidade arquetípica e psíquica e, como já dito anteriormente, trata de temáticas

universais, em que o indivíduo pode se encontrar nestas histórias míticas, é o que afirma

CARDOZO (2004,p.71): “Por essa definição, vai se tornando evidente a relação entre

mitos e arquétipos, pois os mitos nada mais são do que uma forma de expressão dos

arquétipos, falando daquilo que é comum aos homens de todas as épocas, porque falam

dos valores eternos da condição humana.”

Agora a pouco, citada foi a cultura. Ela é base de estudo da antropologia e não

pode ser reduzida, o homem é um ser cultural e está intimamente ligado aos significados

que produz e a cultura possui relação com os significados produzidos pelo homem em

seus diversos momentos históricos. Sobre a cultura, GEERTZ(1989, p.15): “O conceito

de cultura que eu defendo, e cuja utilidade os ensaios abaixo tentam demonstrar, é

essencialmente semiótico. Aceitando, como Max Weber, que o homem é um animal

amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo

essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de

leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado”

A cultura é pública e não está como uma “entidade” oculta: Ela está aí, permeia as

relações, está presente no cotidiano e permeia as relações humanas. Retomando

GEERTZ (1989,p.20): “ Uma vez que o comportamento humano é visto como ação

simbólica (na maioria das vezes; há duas contrações) - uma ação que significa, como a

fonação na fala, o pigmento na pintura, a linha na escrita ou a ressonância na música,- o

problema se a cultura é uma conduta padronizada ou um estado da mente ou mesmo as

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duas coisas juntas, de alguma forma perde o sentido. O que se deve perguntar a respeito

de uma piscadela burlesca ou de uma incursão fracassada aos carneiros não é qual o seu

status ontológico.

Representa o mesmo que pedras de um lado e sonhos do outro- são coisas deste

mundo. O que devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido

com a sua ocorrência e através da sua agência, seja ela um ridículo ou um desafio, uma

ironia ou uma zanga, um deboche ou um orgulho.”

Assim sendo, os mitos, transmitidos de geração para geração, de forma cultural,

procuram transmitir, para os seus ouvintes, questões relacionadas à temáticas

arquetípicas humanas, bem como valores estabelecidos e, também, aceitos ou não.

Pode-se pensar que a cultura norteia o indivíduo e “conduzem” seu

comportamento dentro de uma dada sociedade e seus significados são socialmente

estabelecidos, GEERTZ (1989,p.22) diz: “ A cultura é pública porque o significado o é.

Você não pode piscar (ou caricaturar a piscadela) sem saber o que é considerado uma

piscadela ou como contrair, fisicamente, suas pálpebras, e você não pode fazer uma

incursão aos carneiros (ou imitá-la) sem saber o que é roubar um carneiro e como fazê-

lo na prática.”

A cultura é um contexto, está inserida em algum lugar (físico ou não). Ela está no

entremeio, na amálgama de significados e signos, a compreensão da cultura permite que

se entenda o modo de viver, a maneira gestual, o vestuário, os valores, o padrão de vida

daquela sociedade em questão e, por que não, compreender a sua mitologia. Esta

compreensão torna acessível tal sociedade e possibilita a sua análise, todavia não reduz

a sua particularidade e permite assim expor o que é habitual, a normalidade. Ainda

citando GEERTZ (1989,p.24): “ Visto sob esse ângulo, o objetivo da antropologia é o

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alargamento do universo do discurso humano. De fato, esse não é seu único objetivo – a

instrução, a diversão, o conselho prático, o avanço moral e a descoberta da ordem

natural no comportamento humano são outros, e a antropologia não é a única disciplina

a persegui-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura semiótico se

adapta especialmente bem. Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis ( o que

eu chamaria símbolos, ignorando as utilizações provinciais) , a cultura não é um poder,

algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os

comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual

eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade.”

Esvaziar a cultura é isolá-la do acontecimento e das pessoas que ali atuaram, é

simplesmente descontextualizá-la, desprovendo-a de sentido.

Assim, então, envelhecer é um fenômeno cultural e arquetípico. É cultural, uma

vez que a forma em que se envelhece, no Brasil, não é a mesma da chinesa ou da

egípcia, há peculiaridades, em cada cultura.

Envelhecer é um fenômeno complexo, que não pode e nem deve ser interpretado

somente em sua faceta biológica, envelhecer é um fenômeno heterogêneo, é o que

afirma MERCADANTE (2005,p.25): “ A complexidade também está presente nos

estudos realizados pela antropologia, que evidenciam, entre as várias sociedades

primitivas – em um primeiro momento – não uma situação de homogeneidade, mas a

presença da heterogeneidade.”

Portanto, envelhecer é arquetípico, uma vez que todos envelhecem e, para a

psicologia analítica, é um momento importante, em que pode ser realizada (pois nem

sempre o é) a difícil travessia da metanoia, que será tratada no capítulo posterior. Porém

envelhecer também passa por conteúdos pessoais, o processo de envelhecimento de

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Joaquim é diferente do processo de envelhecimento de Pedro e assim de João, mas

também para cada cultura, envelhecer adquire um conteúdo diferenciado, podendo ser

ou não valorizado.

Numa noção de identidade, ser velho implica em uma identidade que define o

sujeito velho, em detrimento de outra identidade, o sujeito jovem, ou seja, para que

exista um sujeito ou a identidade de um sujeito velho, tem que existir o jovem ou a

identidade do jovem, é uma noção opositória. Em tal raciocínio, o “eu” existe em

contraposição um “outro” oposto.

O velho é oposto ao jovem e, então, o velho é o “outro”, é uma visão

estigmatizada, uma vez que o velho é o portador de características como: Incapacidade,

improdutivo, todos os “im” e o jovem é o sinônimo da potência, a divina juventude e

mortal velhice.

Esta identidade do velho é pejorativa e como aponta acima estigmatizadora, pois é

depreciativa, negando possibilidades ao velho, como ressalta MERCADANTE

(2005,p.32): “São essas idéias, relacionando velhice e tempo, que apontam para um

velho que não investe no presente nem projeto para o futuro. Essas idéias conformam

uma noção de idoso que só tem passado, lembranças para rememorar e, no futuro, o

confronto com a morte.”

O idoso se torna, então, um sujeito que existiu no passado, junto com a sua

potência e produtividade e, agora, é apenas um “peso” que não parece ter nenhum lugar

em lugar algum, reforçando a idéia de improdutividade, é claro que isto não é assim em

todas as sociedades, o que se percebe é a mudança do panorama sobre o que é velhice e

velho em diferentes momentos históricos e de sociedade para sociedade.

Ainda sobre a noção de identidade, aponta MERCADANTE (2005, p.33): “ A

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noção de um novo sujeito velho se produzindo não cabe em um modelo contrastivo de

identidade, pois faz parte de uma situação complexa. Em outros termos, a forma

contrastiva de pensar constitutiva da noção de identidade aponta para idéia simples

pouco explicativas da situação complexa da velhice.

Cabe aqui uma análise sobre contemporaneidade e o que acontece com as

coisas tradicionais, vive-se em uma sociedade fluída ,fluidez é um conceito utilizado

e criado por Zygmunt Bauman (2000,p.100), em oposição ao conceito de solidez,

visto nas décadas de 50 e 60. Esta metáfora da líquidez foi conceituada pro Bauman

para apresentar as características do mundo atual. Nas épocas de solidez, a

característica eram valores definidos, até rígidos, sociedade patriarcal, a família era

constituída de um pai que, geralmente, trabalhava para o sustento da família, a

mulher, dona de casa e filhos. Em contraposição à solidez este conceito existe, pois,

na contemporaneidade, os valores encontram-se em crise e o indivíduo não possui

mais medo de fatores externos, mas também, fatores internos agora se juntam como

componentes de medo.

Para o autor tudo agora é líquido: As relações afetivas, bens materiais, a

espiritualidade e até as próprias pessoas, o que urge para outro fato, o descarte. Tudo

é descartado na contemporaneidade e o medo da solidão é um dos maiores existentes,

além disso, a voracidade para tamponar uma angústia é imensa, gerando, de certa

forma um ciclo vicioso entre a fluidez, o descarte e o medo da solidão. Tudo é

consumido sem pensar e os indivíduos atribuem tal fato como algo corriqueiro

“sempre foi assim”, o que não é real. Segundo SOCZEK (2003,p.176):

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“..idéia que Bauman utiliza para expressar sua concepção de modernidade,

que, para ele, adquiriu uma perspectiva “transbordante”, “esvaída”, em oposição ao

conceito de “sólido” enquanto duradouro, dada a fluidez do mundo contemporâneo.”

Ainda sobre a questão da fluidez e da sociedade contemporânea, SILVA

(2011,p.32) afirma:

“As mudanças experimentadas pela sociedade contemporânea modificaram a

forma de interpretar o mundo e, consequentemente, o consumo. A pós –

modernidade desvencilha-se de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma

maneira que não tem precedente. O contemporâneo passa a ser marcado pelo fim dos

padrões, da estabilidade, da segurança e das certezas. Surge o tempo da indefinição,

do medo e da insegurança.”

Na citação acima, pode-se perceber o conceito de fluidez atuante, ou seja, aos

valores sólidos em decadência e, com eles a antiga segurança que funcionava de

certeza, agora substituída pela insegurança e pelo medo generalizado. Continuando

debruçados sobre esta questão, é compreensível e adequado notar que a televisão e,

em especial o anime, funciona como modelador e educador para crianças e jovens,

trazendo, também, uma retomada aos valores sólidos, hoje esquecidos pela liquidez.

A característica mais notada na sociedade atual é a rapidez. Tudo é rápido e, hoje,

com apenas um toque, pode-se conectar com amigos que estão em lugares

longínquos, todavia, a tecnologia, globalização e a própria sociedade faz com que

essa prática da rapidez seja criada e, de certa forma legitimada, o que produz em

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maior escala tal prática, que novamente será legitimada e levará novamente outra

produção, em um ciclo. O que era durável ou tido como bem durável hoje não é

mais, é descartado, sendo rei o momento presente, a sua intensidade maior ou menor,

sempre com rapidez, com conseqüência o desapego e uma vida almejando a

felicidade numa busca incansável. Para manter a auto – estima o consumidor deve

comprar um ou outro produto, adquirir, que em breve será obsoleto, tudo isso, para

adquirir temporária posição social, na visão do autor.

Assim, um novo sujeito se produz, mas não na contraposição de uma alteridade

jovem, mas sim na produção de uma “subjetividade” negadora da identidade estigma.

O mais aconselhável é uma noção de subjetividade, em que o “eu” e o “outro”

podem simplesmente existir, sem que um seja o oposto do outro, assim, o velho e o

jovem existem, cada qual com suas peculiaridades, sem que haja visão de estigma ou

tão esteriotipada, como há no caso da identidade.

A velhice não é o estágio terminal, nem a última parada na estação anterior à

morte, que pode acontecer a qualquer momento da vida. Envelhecer é também ganho, e

também o desenvolvimento continua na velhice, que não é um processo estático.

Envelhecer não é somente um fenômeno cronológico, mas também kairosiano, o

ser humano não é apenas cronos, mas também é kairós!

Filho de Urano e Géia. O mais jovem dos Titãs. Se tornou senhor do céu

castrando o pai. Casou com Réia, e teve Héstia, Deméter, Hera, Ades e Poseidon.

Como tinha medo de ser destronado, Cronos engolia os filhos ao nascerem.

Comeu todos exceto Zeus, que Réia conseguiu salvar enganando Cronos enrolando uma

pedra em um pano, a qual ele engoliu sem perceber a troca. Mais tarde Zeus voltou, deu

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ao pai um remédio que o fez vomitar os filhos, e logo depois o destronou e baniu-o no

tártaro. Cronos escapou e fugiu para a Itália onde reinou sobre o nome de Saturno. Este

período no qual reinou foi chamado de "A era de ouro terrestre".

Cronos, o "dos pensamentos pérfidos", é o mais novo dos Titãs, filho de Géia, a

Terra, e de úrano, o céu estrelado. Foi o único a escutar o pedido de sua mãe, quando

Géia, a fim de pôr termo à sua própria escravatura e à dos seus filhos, decidiu armá-lo

para que ele vencesse úrano. Com efeito, este, horrorizado com a sua descendência,

mantinha-a prisioneira nas entranhas de sua mãe, a Terra. Então Cronos, com um golpe

de foice, cortou o órgão sexual de seu pai, afastou-o do poder e apoderou-se do

Universo.

A partir de então, o mundo foi governado pela linhagem dos Titãs que, segundo

Hesíodo, constituía a segunda geração divina. Foi durante o reinado de Cronos

que a humanidade (recém-nascida) viveu a sua idade de ouro.

Cronos casou com a sua irmã Réia, que lhe deu seis filhos (os Crónidas): três

raparigas, Héstia, Deméter e Hera e três rapazes, Hades, Posídon e Zeus.

Ora, para evitar que um dos seus descendentes reproduzisse, em seu proveito, a

aventura que o tornara rei, Cronos tinha prometido aos seus irmãos mais velhos não ter

descendência. Por outro lado, os seus pais tinham-lhe prognosticado, caso ele tivesse

filhos, o mesmo destino que tivera seu pai. Assim, Cronos agiu com os seus filhos tal

como úrano tinha feito no passado. Mas fez ainda pior, devorou-os à medida que eles

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iam nascendo.

Desesperada, Reia procurou uma solução, e por conselho de sua mãe decidiu,

quando estava grávida de Zeus, refugiar-se em Creta, a fim de que a criança aí nascesse.

Assim aconteceu e Geia recolheu o bebé, levando-o para ser educado com os filhos do

rei.

Entretanto, Reia apresentou a Cronos uma pedra envolta em panos, que ele

engoliu, sem desconfiar.

A infância de Zeus desenrolou-se entre os carvalhos do monte Ida. E para que

Cronos não escutasse o seu choro, os Curetes, sacerdotes-soldados de Reia, simulando

praticar danças sagradas, faziam retinir os bronzes dos seus escudos.

Quando Zeus cresceu, resolveu vingar-se de seu pai, solicitando para esse efeito

o Apolo de Métis - a Prudência - filha do Titã Oceano. Esta ofereceu a Cronos uma

poção mágica, que o obrigou a restituir os filhos que tinha devorado.

Então Zeus afastou-o do trono, e segundo as palavras de Homero prendeu-o com

correntes, precipitando-o, seguidamente, no mundo subterrâneo, onde Cronos foi

encontrado, após dez anos de luta encarniçada, pelos seus irmãos, os Titãs, que tinham

pensado poder reconquistar o poder a Zeus e aos seus partidários.

Segundo outras tradições, Cronos teria sido, simplesmente, adormecido e levado

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para a ilha misteriosa de Tule ou teria sido exilado como rei para um sítio ideal onde o

"solo fértil produzia colheitas três vezes por ano" e onde se teria prolongado esta idade

de ouro, definitivamente terminada com o aparecimento da terceira geração, a de Zeus e

dos Olímpicos.

Quanto à famosa pedra, instrumento de liberdade e de vitória, repelida mais

tarde por Cronos, mereceu a atenção de Zeus, que a transportou para o futuro lugar de

Delfos, a fim de aí ser venerada ao longo dos séculos.

Cronos foi, por vezes, assimilado ao deus fenício Baal, a cujo ídolo eram

sacrificadas as vítimas humanas.

Com este deus, utilizando-se da foice, é dado o início da era do curvo pensar (ou

era da foice). É com Cronos que se associa, via foice, à transformação, o trem da vida

que termina com a morte. Pode-se dizer, em termos da psicologia analítica, que Cronos

está ligado ao ego, seu tempo é linear, unilateral, por isto cabe tal ligação, sendo este o

tempo geron (que sofre o efeito, é o que envelhece).

Já Kairós está associado ao momento certo e oportuno. Conta uma história que

um herói grego possuía uma biga, puxada por dois cavalos de nome Cronos e Kairós.

Enquanto Cronos era responsável por dar movimento à biga, Kairós era quem a puxava

no momento certo para o ataque.

Kairós é o tempo das circunstâncias, podendo ser também representado pelo

momento interno e, em termos junguianos, pela sincronicidade.

Pode-se pensar em um tempo cronológico, seguindo e obedecendo às

formalidades temporais conhecidas: O dia com 24 horas, meses, anos, sofrendo a ação

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do envelhecimento, todavia o ser humano não é somente cronológico, mas também é

kairosiano, ou seja, existe o tempo interno, tempo das vivências o momento certo e

oportuno para “plantar” e para “colher” nos campos da vida.

Segundo ROZENDO e JUSTO (2011,p.157) : “Entre os gregos da Antiguidade,

tinha o sentido de tempo peremptório, implacável, que age tiranicamente sobre a vida

impondo a ela um golpe final. Kairos, por sua vez, filho de Chronos, aludia ao tempo

vivido, construído na experiência e capaz de ser aferido e traduzido pelos

acontecimentos e realizações do sujeito em sua trajetória de vida, agindo sobre Chronos,

criando oportunidades e aproveitando as ocasiões propicias para certas ações.”

Eis aí o desafio: Envelhecer cronológicamente, todavia não ser escravo de

Cronos, ter ciência e, também, saber vivenciar ou atuar de maneira kairosiana, pois o

indivíduo é afetado por este tempo/experiências, porém, por muitas vezes, não se dá

conta de tal.

Sobre Kairós, SANTOS (2010,p.25) afirma: “Acredito que Kairos pode ser visto

como um momento “ponte” em que é necessário atravessar para enxergar novas

situações, que partem de uma situação e tomam uma direção e um sentido diferente.

Compreender em que momento ele surge e uma descoberta individual; cada pessoa

sente, percebe de alguma forma quando ele esta acontecendo. E aquele momento que

escutamos no consultório quando os pacientes dizem: “que tudo esta conspirando ao

meu favor”, no sentido de que as ações feitas, estão sendo realizadas e desenvolvidas no

tempo certo.”

Conhecer e entrar em contato com o tempo interno é de suma importância, para

que ocorra a mudança e que se ouçam os “recados”, provenientes do self, como afirma

SANTOS (2010,p.55): “Existe uma sutileza em tentar equilibrar esses tempos (interno e

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externo), onde como em uma dança, há o momento certo para o passo mais lento, e há o

momento certo para o passo mais acelerado, agressivo, entretanto é o ritmo musical que

prediz o passo. A pessoa atenta e interessada em respeitar os limites individuais conhece

melhor a si mesma, relaciona-se mais facilmente com seu tempo de ser, de estar e viver.

Por isso é muito importante conhecer a nossa música interna.”

Ainda, referente à questão, SANTOS (2010,p.56) ressalta: “A partir deste

compreender complexo sobre o tempo externo e as emoções, surge um tempo oportuno,

o tempo Kairos, que contribui também para a construção do tempo interno, pelo novo

direcionamento que ele pode oportunizar.”

É como afirma o médico Jorge Bichuetti, em seu blog, discorrendo sobre a

temática entre Cronos e Kairós:

Somos escravos do Cronos... Relógio, calendário, agenda eletrônica,

despertadores, celulares, cartões-de ponto... Dia e noite... As estações... Meses, décadas,

séculos e milênios...

Vida cronometrada. Não pode perder o tempo... e o tempo passa e não volta...

De fato, o tempo cronológico é o tempo irrecuperável... O passado se desfez, não

existe; o amanhã não chegou, igualmente, uma nulidade... É o tempo a soberania do

aqui e agora.

Ele rege nosso cotidiano e as nossas paixões... domina nossa vida que se dá sob o

domínio dos sentidos e do passional...

É o tempo da produtividade, da velocidade, do tarefismo, do pragmatismo... O

tempo dos eternos adeuses.

O Aion é um tempo, porém, um tempo atemporal, eterno, impegável, pois não

possui forma e é inominável... Se passa no continuo inalterável da imaterialidade.

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Pura desterritorilização num grau máximo que o torna tempo inoperável...

Assim, podíamos cair no negativismo e na desilusão e nos acomodar à servidão

Cronos.

Todavia, há outro tempo... O tempo Kairós: tempo do instante, do acontecimento e

do devir...

Se Cronos é ordem codificada e quadriculada e o aion, um caos indomável; Kairós

é caosmose...

O tempo que exige atenção e prontidão, pois, não cronometrado, acontece...

Ele - Kairós, é o tempo reconciliável das artes e das percepções sutis, moleculares,

que não dadas pelos cinco sentidos , mas pelo afetar e ser afetado à nível da

sensibilidade fina, afetiva, trans-sensorial...

Ele, sim, é re-tomável...

Ele, sim, se dá às criações do novo...

Ele, sim, não nos abandona, nem nos atropela... Podemos encouraçados não

sermos contagiados, afetados, agenciados...

Nele, um instante é um riacho perene que mesmo inundando o mar, pode ser re-

tomado na profundidade das experimentações que longe do soberano Cronos, ocorrem

na dimensão das pontes que se dão entre um inconsciente amorfo e velocíssimo, cujo

galope nunca alcançamos, e as linhas de fuga, que são arte-vida numa nova

sensibilidade, numa nova subjetivação... O novo na carne e sangue de um

acontecimento que , embora, se consuma num instante, este instante é pernizável e re-

conciável, re-tomado.

Ante estas reflexões, perguntamos: qual o tempo norteia e domina a nossa vida?

Se o aion, mergulhamos num infinito vazio e cheios de buracos negros..

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Se cronos, nos atolamos na servidão e adoecemos de perdas, nostalgias e

desconexão com o ontem e o amanhã: sem ontem, cairemos e história na corporeidade

da vida, e sem o amanhã, nos esgotamos na impossibilidade de dar vida a tanta potência

nas gavetas fechadas dos minutos...

Kairós - um novo tempo... Não que seja novo na vida, mas que nos permite

reinventar a vida e o mundo num tempo que nem escraviza, nem foge pelos poros da

nossa pele e fissuras da nossa alma.

Kairós - o tempo do instante, do acontecimento e do devir... é, também, o tempo

da esperança da arte de viver no caminho do vir, artisticamente.

Kairós - a vida como obra de arte...

1.1 Metanoia

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Envelhecer É bom envelhecer!

Sentir cair o tempo,

magro fio de areia,

numa ampulheta inexistente!

Passam casais jovens

abraçados!...

As árvores

balançam novos ramos!...

E o fio de areia

a cair, a cair, a cair...

Saul Dias, in Essência

O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung postula que, na segunda metade da vida,

batizada por ele como metanoia, o foco muda e há uma nova orientação, em que o

ego se direciona para o self, arquétipo regulador da totalidade psíquica. A velhice

não é de forma alguma estática, mas sim dinâmica, um processo. Segundo ARCURI

(2012,p.89) : “Na Metanoia, tem-se o momento de retomada da consciência, do Ser

como algo maior que transcende o ego, as relações parentais, quando podemos

contribuir de forma mais abrangente. Metanoia é um termo grego que indica

transformação da própria idade pessoal, quando novos valores podem ser adotados.”

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Este momento é de suma importância para a psicologia junguiana, pois nele

lugares são revisitados, há uma retomada da primeira metade da vida, um

direcionamento para o mundo interno, onde as exigências do ego não possuem tanta

importância.

Sobre a idéia de Self, RAMOS (2002,p.127) coloca: “O self (si mesmo)

- É o núcleo não só do inconsciente, mas, também, de toda a psique.

- É o arquétipo que leva o homem à busca pelo conhecimento de si mesmo, pelo

autoconhecimento, pela integração com os demais homens, pela vivência

espiritual, pela integração com Deus. Essa busca é denominada por Jung de

processo de individuação (será falado sobre esse conceito mais adiante) e trata-se da

busca pela totalidade psíquica (a integração entre consciente e inconsciente). - A

vivência do self está associada à numinosidade.”

Como um arquétipo possui polaridades positivas e negativas, deve-se atentar

para o falso self. Sobre esta questão, GALVÃO, GOMES E FERREIRA (2007):

“Essa necessidade se distancia, na medida em que um lado sombrio da

contemporaneidade, ou seja, avanços tecnológicos, produtividade por extensa

jornada de trabalho, (falsa) independência nas inter – relações, internet, uso abusivos

dos antidepressivos para se manter em estado de euforia constante, entre outros,

fazem do homem um ser altamente “adaptado” e “falsamente” feliz e saudável diante

de sua essência, o retrato de tudo isso é contínuo adoecimento. Pode-se dizer que,

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mesmo com tudo isso, o homem nunca esteve tão solitário e aborrecido, tão distante

do seu verdadeiro self.”

Na metanoia, a ênfase maior é em ser, enquanto na primeira metade da vida é

o fazer. A personalidade inconsciente passa a ser o foco deste momento, em

detrimento à personalidade consciente da primeira metade da vida.

Esta passagem não é feita de maneira fácil ou simples, é uma travessia em

que poucos se arriscam, já que, neste momento, valores mudam, entram em crise e o

que é novo ou conteúdos ditos sombrios (que possuem relação com o arquétipo da

sombra) vêm à tona, tornando-se perigosos fantasmas, caso não sejam olhados,

aproximados tais conteúdos.

O arquétipo da sombra também foi postulado por Jung e diz respeito de um

lugar psíquico que possui potências relativas ao indivíduo que, por algum motivo,

não foram por ele olhados e também possui projeções do indivíduo para

pessoas/mundo, além de conter o que não é suportado ser visto pelo indivíduo.

Em tal momento importante, é necessário o diálogo entre a persona e a

sombra, para que se busquem soluções para os conflitos. Ainda sobre o tema da

sombra, HOLLIS (1995,p.59) afirma: “Examinemos a sombra, que representa tudo o

que foi reprimido ou que passou desapercebido. A sombra contém tudo o que é vital,

porém problemático – a raiva e a sexualidade,com certeza, mas também a alegria, a

espontaneidade e a chama criativa não aproveitada.”

Agora, sobre a persona, pode-se falar que o próprio termo significa, em latim,

máscara, sendo que ela é uma forma adaptativa medianamente consciente do ego às

condições sociais da vida. A persona é uma espécie de “acordo” entre o indivíduo e a

sociedade.

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Sobre a persona, HOLLIS (1995,p.58) reitera: “Desenvolvemos muitas

personas, papéis que são ficções necessárias. Comportamo-nos de uma maneira com

nossos pais, de outra com nosso patrão e de outra ainda com o nosso cônjuge ou

namorado. Embora a persona seja uma superfície comum de contato necessária com

o mundo exterior, temos a tendência não apenas de confundir a persona das outras

pessoas com a verdade interior delas, mas também de achar que nós também somos

os nossos papéis.”

O diálogo entre a persona e a sombra ocorre na metade da vida e representa

um equilíbrio necessário ao indivíduo. Pode-se dizer que, na primeira metade da

vida, é o momento em que a persona se desenvolve, é o momento de criação e

manutenção da persona, a realidade interior é negligenciada.

Na primeira metade da vida, a preocupação, como já dito, está em fazer. É o

momento em que a prioridade é: Fazer uma faculdade ou ter um ofício/profissão,

comprar uma casa, ter um carro, um emprego que garanta estabilidade, um

companheiro(a) e formar uma família.

Já na segunda metade da vida, há uma retomada do que foi “deixado para

trás” na fase da primeira metade. É realizado um convite, através de self, para que se

retome a própria história. Este encontro com a sombra e a metanoia não são

momentos fáceis de superação; ao contrário, são momentos de crise, dolorosos, e que

implicam em um sacrifício: Abandonar a persona anterior ou a identificação com

uma persona e atender ao chamado de self, é necessário coragem.

A solução para tal encontro é a compreensão de que, as suas exigências

provêm do self e não do que não foi vivido. É ser sincero e honesto consigo mesmo

e, ao mesmo tempo, comprometido consigo.

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Outro fato que também ocorre no meio da vida é o encontro com a função

inferior. Jung postula que quatro funções norteiam a psique: Intuição, sentimento,

pensamento e sensação. A intuição possui seu fator subjetivo, ela “vê” a natureza do

oculto, ou seja, inconsciente, sendo oposta à sensação.

O sentimento capta o mundo através do juízo realizado pelos sentimentos,

como gostar ou não gostar de algo, sua lógica é a emoção.

O pensamento capta o mundo pela lógica da razão, estabelecendo leis gerais e

aplicando-as caso-a-caso, julga, classifica as coisas.

A sensação capta o mundo com os órgãos do sentido, dá constatação às coisas

que o cercam.

Segundo HOLLIS (1995,p.104): “ Todos possuímos, em proporções

diferentes, as quatro funções, pensamento, sentimento, sensação e intuição.”

A função dominante, ou dita superior é aquela a qual se volta de forma

reflexiva para apreender a realidade, manifestando-se desde cedo e norteando a visão

de mundo do indivíduo. A função superior é assim chamada pelo fator de ser

recorrida em maior escala do que outra função, por isso torna-se superior, o mesmo

raciocínio cabe para a função inferior.

No meio da vida, a função inferior, anteriormente negligenciada, exige

atenção, necessita de ser olhada.

Em meio deste conteúdo, tem-se a velhice, que, aqui, estudada foi em sua

forma mitológica, a partir da mitologia africana.

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CAPÍTULO 2. MITOLOGIA AFRICANA E PSICOLOGIA JUNGUIANA

Nesta parte, são apresentados estudos referentes à temática da mitologia

africana e a sua relação com a psicologia junguiana ou psicologia analítica, com intuito

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de contextualização cultural e análise, além da apresentação sobre o que foi escrito e

pesquisado acerca de tal temática.

A mitologia africana, diz respeito aos deuses que habitam o panteão africano e

suas histórias míticas. Neste universo, que foi trazido ao Brasil pelos escravos, os

deuses são chamados de orixás. Na África, estima-se a contagem de 402 orixás, sendo

eles 201 que comandam a parte da “esquerda” (derivações do orixá Exu, senhor dos

caminhos) e 201 comandantes da parte da direita.

Na vinda dos escravos, via navios negreiros, para o Brasil, chefes de tribos

africanas, famílias inteiras foram separados e mandados para o trabalho escravo,

vindos de diferentes regiões africanas, sendo que, na África, orixás diferentes eram

cultuados em diferentes regiões, de acordo com a cultura daquela tribo, sua origem e

demografia também.

Sobre esta questão, IRIGARAY E VERGARA (2000,p.2) , afirmam:

“A presença das religiões africanas no Novo Mundo foi uma conseqüência

imprevista do tráfico de escravos, oriundos das regiões das costas ocidental (área entre a

Senegâmbia e Angola) e oriental (Moçambique e Ilha de São Lourenço, nome original

de Madagascar), para os diversos países das Américas e das Antilhas.

Este processo desarticulado resultou numa multidão de cativos que não possuía

um idioma comum, nem professava a mesma fé; em comum, apenas a infelicidade de

serem escravos.”

Ao chegarem no Brasil, para não sofrerem represálias dos senhores, os escravos

cultuavam a imagem dos deuses católicos, uma vez que o sistema das religiões era o

mesmo: Um deus único e supremo (representado para os africanos como Olorum e para

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os católicos na figura de Deus) e os intermediários ( os orixás e os santos, para os

africanos e para o catolicismo, respectivamente), a este fenômeno, dá-se o nome de

sincretismo, a correspondência dos deuses católicos com as figuras dos orixás.

Sobre a questão do sincretismo, IRIGARAY E VERGARA (2000, p. 4)

reiteram:

“O sincretismo foi facilmente instrumentalizado pela similaridade da estrutura

organizacional das religiões: um deus supremo (Olorum) com vários intermediários

(santos/orixás). Desta forma, Oxalá foi associado a Jesus Cristo, em função de ambos

serem o filho do Criador e salvadores dos homens na Terra. O maior exemplo deste

sincretismo aparece numa das festas mais populares da Bahia: a lavagem

da escadaria da igreja do Nosso Senhor do Bonfim.

Nanã foi associada a Santana, mãe da Virgem Maria, por ser uma orixá velha.

Ela representa as avós, com sua calma e paciência.

Xapanã foi identificado como São Lázaro, pois ambos trazem seus corpos

cobertos de chagas. Em algumas regiões, o sincretismo é feito com São Roque, pois este

dedicou sua vida a tratar dos doentes e, tal qual seu par africano,

vivia isolado do mundo. Originalmente, Xapanã era o orixá que carregava a chaga

(varíola) e, simultaneamente, sua cura. Por este motivo ele era muito respeitado.

Iemanjá é louvada no Brasil como Rainha do Mar, Janaína, Mãe d´Água, Sereia

ou Iara. Em relação ao catolicismo, ela foi associada a Nossa Senhora dos Navegantes e

Nossa Senhora das Candeias. Ainda hoje suas datas festivas – 1 de janeiro e 2 de

fevereiro – são muito comemoradas no Rio de Janeiro e na Bahia, respectivamente.

Xangô, o rei de Oió que se tornou o orixá da justiça, foi associado a São

Jerônimo, o qual é retratado como um velho imponente, sentado ao redor de livros e

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tendo a seus pés um leão, símbolo da realeza entre os iorubas.

Ogum está vinculado a Santo Antônio, na Bahia, e a São Jorge, no Rio de

Janeiro. O primeiro por haver protegido os portugueses contra os invasores holandeses,

e o segundo por ser um santo guerreiro, retratado sobre um cavalo, vencendo um dragão

com uma lança.

Oxóssi foi associado a São Sebastião devido ao martírio do santo, que é

representado amarrado a uma árvore e com o corpo cravado de flechas.

Oxum se reflete no altar católico como Nossa Senhora da Conceição,

representando a fecundidade e a riqueza.

Exu, que na cultura nagô possui um gorro fálico, era o orixá da comunicação e

do sexo. Foi imediatamente associado ao diabo, pois este, na concepção católica, possui

chifres e tenta a humanidade com o pecado original.”

Desta forma, o sincretismo teve seu início e, concomitante, a formação dos

primeiros quilombos no país.

A cultura brasileira possui fortes elementos da cultura africana, quem nunca

ouviu falar de Yemanjá? Ou então, na passagem de ano, foi até o mar pular “sete

ondinhas” para ter sorte no ano vindouro? Estes elementos estão presentes no arcabouço

cultural brasileiro, fazendo parte do cotidiano.

Segundo PASSOS (2004, p.15):

“Mas é justamente no Brasil, que foi, sob muitos aspectos absolutamente

africanizado, que a presença da cultura mítica africana se faz relevante. Os mitos da

tradição iorubá, sempre reatualizados pela força das religiões afro-brasileiras, permeiam

fortemente o inconsciente coletivo do povo brasileiro.”

O inconsciente coletivo foi postulado por Jung e este é um dos motivos da

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divergência entre ele e Freud. Para Jung, além do inconsciente pessoal ( que se

assemelha à postulação do inconsciente freudiano) existe também o inconsciente

coletivo, onde moram os arquétipos e possui em si as experiências que a humanidade

possui com tal arquétipo em diferentes culturas, por isto ele é coletivo.

Sobre este conceito, JUNG (1998,p.13) comenta:

“Diante destes fatos devemos afirmar que o inconsciente contém, não só

componentes de ordem pessoal, mas também impessoal, coletiva, sob a forma de

categorias herdadas ou arquétipos.”

Retomando, o candomblé aparece como um elemento, ferramenta, que auxilia na

manutenção da cultura africana no Brasil e, também como difusão de tal, além de

mantenedor das lendas dos orixás, contadas de maneira oral.

Segundo PASSOS (2004, p.17):

“Da simbologia de luta e resistência, corporificada pela forte presença da cultura

africana no Brasil, principalmente nas artes (música, poesia, dança) e na religiosidade,

os mitos dos orixás foram preservados mais sistematicamente a partir da existência do

terreiro, que acabou por ressignificar o culto dos orixás no Brasil, inventando uma nova

religião sobre a base espiritual da ancestralidade africana. É na experiência cotidiana do

terreiro, que as narrativas míticas das entidades que permaneceram entre nós, se

reatualizam no vigor do culto e das práticas arquetípicas do chamado “povo de santo”,

onde cada filho é um tipo de representação viva do seu orixá, possuindo as mesmas

características, o mesmo temperamento e os mesmos gestos específicos do seu eledá .”

Os traços de personalidade, vistos na pessoa, são chamados na umbanda e no

candomblé de arquétipos, noção esta que pode ser assemelhada ao conceito junguiano

de arquétipo, uma vez que, para o “povo de santo” o arquétipo diz respeito a como o

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filho de dado orixá se comporta.

Para Levi Strauss (1978, p.33), “na mitologia do mundo inteiro, há deidades ou

personagens sobrenaturais que desempenham o papel de intermediários entre os poderes

de cima e a Humanidade em baixo”. Dessa forma, o universo mitológico cria uma

atmosfera relacional entre o plano concreto, material e o plano divino, idealizador,

criativo da atividade sócio-cultural humana.

Os mitos africanos, tais como outros mitos, trazem, então, a ligação do

homem com os deuses, mas também a ligação do indivíduo com o arquétipo do self.

Sobre isto, PEREIRA E SANTOS (2012, p.96) explicam:

“O valor sagrado do mito e sua propriedade de poder ser interpretado e elaborado em

diferentes perspectivas tornam-no matéria-prima para novos questionamentos sobre a

condição humana. Este aspecto de reatualização do mito confirma sua capacidade de

ser, alegoricamente, um instrumento de integração entre o homem e o Cosmo, em que o

elemento religioso e mítico recebe novos contornos conforme a necessidade humana.”

O mito então, traz formas de conduta para o homem, além de que, em suas

alegorias, trazem histórias que remontam aos arquétipos, ELIADE apud PEREIRA E

SANTOS (2012, p.96):

“Sabendo do aspecto fabuloso, inventivo e ficcional que envolve a definição do

mito, Eliade (1992a) pontua que esta visão não é a verificada nos estudos que

engendram os eruditos mitólogos da atualidade. Para eles o mito passa a ser

compreendido em bases das sociedades arcaicas, nas quais esse “designa [...] ‘uma

história verdadeira’ e, ademais, extremamente preciosa por seu caráter sagrado,

exemplar e significativo” (ELIADE, 1992a, p. 7). O mito se manteria “vivo” nestas

sociedades, já que forneceria “os modelos para a conduta humana, conferindo, por isso

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mesmo, significação e valor à existência” (ELIADE, 1992a, p.8).”

Ainda sobre esta questão do mito, FERNANDES E MOTA (2007, p.1) afirmam:

“Os mitos dos orixás apontam para uma longa memória – mesmo que construída

dialeticamente – e reportam seus adeptos para tempos longínquos em que os deuses

habitavam a terra. Na dinâmica dos terreiros de candomblé, os cultuadores dos orixás, o

povo do santo, entende esses textos em seu aspecto religioso, o que lhes confere

instrumento que transcende o material, o concreto, o científico, tornando os mitos, nesta

perspectiva, instrumento que comunica deuses e homem, terra (àiyé) e céu espiritual

(órun).”

Pode-se pensar que os mitos fazem a ligação entre o consciente e o inconsciente,

formando assim uma ponte entre os “dois mundos”, sendo uma ferramenta de ampliação

de consciência.

O candomblé é parte constituinte da cultura brasileira, e está presente na música,

dança, culinária, etc, fazendo parte da cultura e das manifestações populares.

Compreender o candomblé como parte do complexo cultural brasileiro e, no caso desta

dissertação, compreender os orixás como modelos arquetípicos de funcionamento,

constelando modos de ser, auxiliando psicólogos , como afirma PORTZ(2011,p.15):

“Assim, o psicólogo faz uso dessas histórias míticas para assessorar no

tratamento de seus pacientes. Os arquétipos dos orixás, desse modo, cooperam de

diferentes formas para a identificação de características pessoais de uma pessoa aos

hábitos e atitudes tomados por ela em seu dia-a-dia.”

Neste ponto, o arquétipo está aí, presente, vivo. Concorda-se com a opinião

do que PORTZ(2011,p.16) afirma a respeito da cultura dos orixás e a sua

necessidade de compreensão: “ A cultura dos orixás, na minha opinião, está além da

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religião, ultrapassa as limitações do terreiro, já faz parte do povo e da cultura

popular, mesmo daqueles que pouco ou nada sabem sobre estas tradições. No

entanto, mesmo que as manifestações da cultura afrobrasileira estejam presentes em

nosso cotidiano, a forma mais forte, me parece, de legitimá-la dentro do meio

acadêmico ainda é através da produção de conhecimento escrito a respeito do

assunto.”

A cultura dos orixás está além da religião, é também manifestação

arquetípica, cultura, psicológica, alteridade, como afirma SANTOS (2012,p.17):

“Outra categoria que caberia incluir nessa introdução seria a alteridade

(relação com o outro e com a natureza (Orixás) expressa pelo ritual , dança em

roda/círculo e que remete a uma rememoração da acestralidade na memória mítica

que é ali celebrada.”

O mito instrui praticantes religiosos, dá ao homem explicações do surgimento

do mundo e também, pensando de maneira analítica, o ordena psiquicamente.

Sobre a questão arquetípica, AFONSO (1995,p.40) diz: “As divindades das

religiões africanas têm pois personalidades próprias e funcionam como modelos de

identificação dos crentes que vão tentar reproduzir o comportamento daquela de que

são adeptos. Um deus é uma força pura, sem matéria e só pode ser percebido pelos

Homens: se incorporar num deles, num dos seus descendentes. Assim, no panteão

afro-brasileiro existe uma série de esteriótipos que compreendem características dos

humanos.”

Estas características humanas ligam os homens aos deuses e as manifestações

arquetípicas são as mais profundas da psique, do inconsciente coletivo, são, como já

citado, as imagens primordiais. Sobre esta questão, RODRIGUÉ (2009,p.163) versa:

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“Essas imagens são comuns a todos os povos, a todas as civilizações.

Portanto são universais e fundamentam visões diferentes de mundo.

Psicologicamente, essas imagens representam o instinto humano que independe da

vontade, e, são consideradas o âmago do inconsciente, o guia e provedor do

consciente.”

O self é tido como uma fonte inesgotável de energia psíquica, que ordena a

consciência, rumo ao processo de individuação. Nos mitos, observam-se a presença

de símbolos, que possui um significado infinito, já que pode representar diferentes

representações em diferentes momentos e possuí, também, temática arquetípica.

A respeito do símbolo, RODRIGUÉ (2009, p. 164):

“Símbolo se refere à possibilidade de se expressar a existente polarização

através de algo conhecido (pessoal) com algo totalmente estranho que vem de fora, a

natureza arquetípica, impessoal, coletiva quer dizer pertencente ao inconsciente

coletivo.”

O símbolo, então possui duas partes: Uma pessoal e outra arquetípica, o

entremeio entre conhecido e desconhecido, pessoal e coletivo, consciente e

inconsciente e é uma estrada para compreensão do que o inconsciente diz, uma vez

que pode ser pensado como “recados” oriundos do inconsciente, o objetivo da

psicoterapia na abordagem junguiana, pode ser visto como trazer à consciência o

processo simbólico.

Segundo ZACHARIAS (2010,p.92): “No homem primitivo ocorreu a

mitologização do fenômeno natural e também emocional. Mundo externo e interno

confundia-se com grande intensidade, isto devido ao fato do homem estar ainda

despertando sua consciência e, portanto muito próximo às forças inconscientes que

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se espelhavam na natureza. Esta condição deu origem a um estado de espírito

denominado por Lévy-Bruhl de participation mystique, que é um estado de maior

inconsciência, em que o indivíduo experimenta um sentimento de união aos aspectos

da natureza, proporcionando uma íntima relação dos fenômenos naturais com os

fenômenos psíquicos.”

O mundo de símbolos do individuo implica no contexto simbólico daquele

grupo social e de seu subgrupo, e o seu sistema de formação de símbolos, construído a

partir das experiências individuais.

Voltando para a questão dos orixás, ZACHARIAS (2010,p.158):

“Os Orixás são representações coletivas de características arquetípicas que,

semelhante aos deuses gregos, apresentam mitologia e padrões de comportamento

ligados aos elementos naturais ou culturais que lhes são próprios.”

Finalizando esta parte, cabe e é de concordância, com a afirmação de

ZACHARIAS (2010,p.158):

“O conhecimento do conteúdo simbólico contido nos cultos de Orixá fornece chaves

de entendimento para processos psíquicos, sejam estes individuais ou coletivos. Isto só

é possível graças às analogias míticas, que podemos traçar entre os deuses de várias

culturas. Por exemplo, deuses que têm por elemento o raio e o trovão: Zeus, Tupã e

Xangô.

Em um contexto de população fortemente influenciada pelos cultos afrobrasileiros, é

de vital importância que o conteúdo mítico-simbólico destes cultos sejam conhecidos e

compreendidos em seu sentido psicológico. Os símbolos e deuses cultuados nos cultos

afro-brasileiros são mitologias vivas, pois que a religião está viva, diferentemente dos

deuses e mitos helênicos, que na atualidade só podem ser compreendidos através de um

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exercício de interpretação cognitiva, visto estar o helenismo, como religião do povo,

morto.

A mitologia dos Orixás está viva e representada na vida religiosa e cotidiana de cada

iniciado. Cada pessoa expressa no mundo, na comunidade, na família e em sua própria

representação identitária o Orixá vivo e atuante.”

2.1 O candomblé

O candomblé é, em sua raiz, uma religião africana, inicialmente praticada por

escravos em cultos familiares. Esta religião tem uma base anímica, ou seja, cultua

divindades da natureza (anima) e foi trazida pelo Brasil pelos escravos que vinham

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trabalhar em terras, mantendo o culto e a tradição aprendidos na África.

Ao virem ao Brasil, por conta da igreja católica, os negros foram proibidos de

expressar sua religião e as “roças” de candomblé foram perseguidas, sendo que as

práticas eram realizadas dentro dos quilombos. O candomblé resistiu às perseguições

e hoje se mantém como uma das religiões praticantes.

O candomblé resistiu aos anos e às lutas, sendo hoje uma religião que possui

grande influencia no povo brasileiro, por mais que seus praticantes somem, em todo

o território nacional, 0,3%, o que corresponderia a 470 mil fiéis praticantes que se

denominam candomblecistas. Hoje, o candomblé encontra-se disseminado por todo o

Brasil e, existe também a questão de que algumas pessoas freqüentam o candomblé,

todavia se denominam católica, pela forte influência da igreja católica no país e o

fato das religiões afro-brasileiras serem constantes alvos de críticas e perseguições.

Em primeiro lugar, é importante saber que o candomblé é uma religião panteísta.

Esse termo é muito importante para compreensão do candomblé, pois, “panteísmo”

significa “Toda Crença em Deus” (do grego Pan + Theo). Esse termo sustenta a idéia

de que em tudo há um único Deus. Um Deus que está em tudo, onipresente. Também, a

idéia politeísta de – vários deuses representando diversos elementares da natureza.

Quando há uma relação pacífica do conceito politeísta com a idéia que exprime

um Deus supremo que vive em tudo, podemos afirmar que essa relação é característica

do que chamamos de “panteísmo”.

Logo, todos os adeptos do candomblé são considerados panteístas, pois, nessa

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doutrina, existe um Deus supremo e também outros que estão correlacionados aos

elementares da natureza, do universo em geral.

Os deuses do candomblé são genericamente chamados de Orixás. O, o

candomblé é uma religião cujo país de ascendência –África- tem seus adeptos

generalizados como “povo do santo”.

O candomblé não está presente apenas no Brasil. Existem outros países tais

como, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, México, Panamá, Colômbia, Venezuela,

Argentina e Uruguai – que abrigam esta religião.

No Brasil, século XVI, as tribos africanas, ainda na África – cultuavam de forma

singular um único Orixá. A junção de todos esses Orixás se deu aqui no Brasil com o

tráfico de escravos de diferentes tribos para o mesmo local.

Reunidos nas senzalas, os escravos nomeavam um chefe, também negro,

responsável por zelar os ritos aos Orixás. Os chefes homens eram chamados de

Babalorixás, e as mulheres, Yialorixás.

Desde seu início, 1549, passando pela Abolição da Escravatura em 1888, até os

dias de hoje... O candomblé vem resistindo ao preconceito e a força do tempo – o que

propõe uma infinidade de mutações temporais.

O candomblé possui adeptos de várias partes do Brasil, das mais diversas classes

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sociais. Aproximadamente três milhões de brasileiros freqüentam o candomblé –

espalhado por dezenas de milhares de terreiros, como afirma PRANDI (2004).

Só na cidade de Salvador, Bahia, existem aproximadamente 2.300 terreiros

registrados na Federação Baiana de Cultos Afro-Brasileiros e catalogados pelo Centro

de Estudos Afro-Orientais da UFBA.

Devido a inúmeras parecenças, o candomblé é muitas vezes confundido com

Umbanda, Macumba e / ou Omoloko – que são religiões brasileiras, e também, religiões

americanas tais como Vodou Haitiano, Santeria Cubana e o Obeah – em Trinidad e

Tobago.

Na África, existiam diversos grupos étnicos e que foram trazidos para cá, Brasil.

Os mais destacados são:

· Yoruba – grupo étnico oriundo da Nigéria composto por aproximadamente trinta

milhões de pessoas. É o segundo maior grupo étnico da Nigéria – representando 20 %

da população. A maioria fala o idioma ioruba, também conhecido por Èdèe Yorùbá ou

simplesmente Èdè.

Geralmente, estão localizados no Sudoeste da Nigéria, nos estados de Ekiti,

Ogun, Lagos, Kwara, Osun, Oyo e Ongo.

Vivem também em outros países como Brasil, Togo, Gana, República Dominicana,

Cuba, Serra Leoa e República do Benin.

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· Ewe – também conhecido como Jeje – habita Gana, Togo e Benin. Falam a

língua Ewe – que está relacionada a outras línguas tais como: Aja, Togo, Benim, Gbe e

Fon. Essas línguas pertencem à família de Línguas Kwa – que é um ramo da família

lingüística nigero-congolesas.

· Fon – população do sul de Benin e do sul de Togo. Os Fons falam a língua Fon

e sua maior expressão histórica se deu na fundação do Reino Dahomey (Reino do

Daomé). Este era um reino, onde atualmente é Benin, fundado no século XVII e que

durou até 1901, quando foi conquistado por tropas senegalesas e pela França. Outra

expressão muito forte foi à chamada Diáspora Negra – que é caracterizada pelos

acontecimentos em outros países fora da África, devido ao processo escravista através

do Vodum (tradição religiosa deles).

Com a semi-independência da religião, o candomblé se espalhou por diversas

partes do Brasil, e, devido à soma de fatores históricos, culturais e sociológicos, surgem

então as chamadas Nações – que são ramificações do candomblé. Essas nações são

conhecidas basicamente como Nagô, Ioruba, Ketu, Efan, Ijexá, Jeje, Xambá entre

outras.

Seus fundamentos são muito parecidos, mas há muita diferença entre essas

nações, devido aos ocorridos históricos.

Com essas culturas, o candomblé se tornou uma religião muito vasta e muito

rica em mitologias diferentes. Entretanto, nessas mitologias, nós podemos observar algo

em comum: os deuses, independentemente do nome que recebem, sempre são criados

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por um Deus supremo.

Na mitologia Yoruba, os Orixás foram criados por um deus supremo chamado

Olorum ou Olodumare. Eles acreditam que não há outro deus equivalente a Olodumare.

“Kosi Oba Kan Afi Olorun – Não Há Outro Rei Senão Olorun”.

Na mitologia Fon, os Voduns foram criados por um deus supremo chamado

Mawu.

Na mitologia Bantu, os Nkisis foram criados por um deus chamado

Zambiapongo, também conhecido como Zambi.

No candomblé em geral, nós podemos observar uma certa hierarquia para

organização e melhor execução. Existem os sacerdotes, os instrumentistas e outras

funções, geralmente associadas à organização social.

Ao contrário do que muitos pensam, não é errado dizer que o candomblé é uma

religião monoteísta, uma vez que, nessa tradição – Deus supremo é apenas um. Mas,

também não é errado dizer que é uma religião politeísta devido o fato de ser panteísta.

Cabe a visão de cada um.

As diferentes nações possuem autonomia em suas ritualísticas. Devido ao

Sincretismo Religioso, muitos interpretam o Deus Católico como o mesmo Deus do

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candomblé: pai de Jesus Cristo, quando na verdade não.

Para o culto às forças da natureza (Orixás, Nkisis e Voduns) – podemos observar

uma série de fundamentos, sempre na linhagem da devoção materializada paralela a fé.

Geralmente são cânticos, oferendas de animais e vegetais, vestimentas especiais e

danças. Os cultos estão sempre baseados na comunicação do homem com a natureza.

É realmente uma religião muito vasta, e aos poucos, vamos mergulhando neste

maravilhoso mundo dos estudos referentes ao candomblé.

Em síntese, desde 1549 o candomblé vem se desenvolvendo em diversos estados

brasileiros, com alguns costumes diferentes e outros parecidos. São quase quinhentos

anos de história. O candomblé sofreu repressão por parte da cultura européia, depois foi

praticamente liberado, depois de 1888, teve seus primeiros estudiosos e escritores, e

hoje passa pela era da informação para todos, através da digitalização. Pode-se dizer que

esta era da informação para todos é denominada Modernismo no Candomblé.

A contemporaneidade no Candomblé não visa mudar radicalmente a sua visão e

suas práticas, mas sim, adaptar a religião aos dias de hoje, no sentido de que – seus

adeptos não podem mais estar totalmente vivendo a religião deixando suas vidas sociais

de lado. Todos precisam trabalhar, estudar, cuidar da saúde e todas essas relações

sociais são desenvolvidas em tempos e situações diversas daquelas do candomblé.

A religião também entra como um bem de consumo, um produto que dá

posição e, também, é forma de escapar da incerteza, da polaridade confusa em que o

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indivíduo está imerso , hoje sem valores ou sem padrões, um declínio constante, com

superficialidade e rapidez, não gerando um conhecimento verdadeiro e no campo

religioso, não trazendo a dimensão numinosa para o homem.

Este termo, numinoso foi concebido, para descrever o fenômeno do sagrado,

Numen, em latim, era um termo aplicado para se referir a divindades menores ou

mesmo para se referir ao que seria divino, isto é, algo que transcenderia nossa

realidade, nos impactando. Deste modo, religião para Jung era uma atitude que o

individuo assumia frente ao numinoso.

O candomblé resiste contra a fluidez, vista anteriormente em Baumann. Traz em

seu ritual, conceitos de solidez, opostos à liquidez do autor, como afirma PRANDI

(2004): “Em resumo, ao longo do processo de mudanças mais geral que orientou a

constituição das religiões dos deuses africanos no Brasil, o culto aos orixás primeiro

misturou-se ao culto dos santos católicos para ser brasileiro, forjando-se o sincretismo;

depois apagou elementos negros para ser universal e se inserir na sociedade geral,

gestando-se a umbanda; finalmente, retomou origens negras para transformar também o

candomblé em religião para todos, iniciando um processo de africanização e

dessincretização para alcançar sua autonomia em relação ao catolicismo. Nos tempos

atuais, as mudanças pelas quais passam essas religiões são devidas, entre outros

motivos, à necessidade da religião se expandir e se enfrentar de modo competitivo com

as demais religiões. A maior parte dos atuais seguidores das religiões afro-brasileiras

nasceu católica e adotou a religião que professa hoje em idade adulta. Não é diferente

para evangélicos e membros de outros credos.”

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2.2 Os velhos orixás

Para compreensão da velhice em termos mitológicos, são abordados três

orixás considerados “velhos” e uma entidade vinda da umbanda, seu simbolismo,

arquétipo e lendas, que podem ser pensadas como o “bom” e o “mau” envelhecer.

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2.2.1 Oxalufã

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Oxalá, também chamado Obatalá e Orixalá (Orisa-nla), é a divindade criadora,

incumbida pelo Ser Supremo de criar a terra sólida, povoá-la e modelar a forma

física do homem, sendo por isso, freqüentemente descrito como o representante de

Olodumare na terra. Oxalá possui outros nomes descritivos de sua natureza e

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caráter: Obatala, contração de Oba-ti-o-nla, o rei que é grande ou Oba-ti-ala, o rei

em vestes brancas.

Muito antigo, diretamente originado do Ser Supremo, compartilha com Ele

alguns nomes: A-te-rere-k-aiye = O que se expande por toda a extensão da terra;

Eleda = Construtor; Alabalase = o regente que empunha o cetro (símbolo da

autoridade divina); Ibikeji Edumare = Representante de Olodumare; Adimula =

Aquele que é suficientemente forte para nos dar segurança. Freqüentemente

representado pela figura de um ancião com trajes e ornamentos brancos, todos os

objetos a ele associados são igualmente brancos, incluindo-se roupas e ornamentos

de seus sacerdotes, sacerdotisas e devotos.

Sobre Oxalá/ Oxalufã, VERGER (2002,p.178) afirma: “ “Òrì_ànlá ou _bàtálá,

“O Grande Orixá” ou “ Rei do Pano Branco” , ocupa uma posição única e inconteste

do mais importante orixá e o mais elevado dos deuses iorubás. Foi o primeiro a ser

criado por Olodumaré, o deus supremo. Òrì_ànlá-_bàtálá é também chamado Òrì_à

ou _bà Ìgbò, o Orixá ou o Rei dos Igbôs. Tinham um caráter bastante obstinado e

independente o que lhe causava inúmeros problemas”

Ainda sobre Oxalufã, VERGER (2002,p.179) reitera: “ “Òrì_à Olúf_n, Òrì_à

fun fun, velho e sábio, cujo o templo é em If_n, pouco distante de Oxogbô. Seu culto

permanece ainda relativamente bem preservado nessa cidade tranqüila, que se

caracteriza pela presença de numerosos templos, igrejas católicas e protestantes e

mesquitas que atraem, todas elas, aos domingos e sextas-feiras, grandes números de

fiéis de múltiplas formas de monoteísmos importados do estrangeiro”.

Analisando a figura de Oxalufã, trata-se de um orixá introvertido, com a função

superior intuição e função auxiliar sentimento (a atitude da libido e as funções

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psíquicas serão posteriormente explicadas).

Oxalufã traz, simbolicamente, a figura do Velho Sábio. Esta figura, mostra a

sabedoria, é o dinamismo patriarcal em seu último estado desenvolvimentário. É

dócil, mostra sabedoria ao falar, ao se colocar e colocar suas opiniões, fato este

observado em Oxalufã que veste-se de branco, símbolo da pureza e sendo ele o poder

de fertilização do masculino, convertido na figura do sêmen.

Em sua polaridade positiva, podem ser observados aspectos como a soberba e a

arrogância, além da teimosia e a inflação do ego, por conta de seu poder.

Sobre a questão psicológica de Oxalufã, ZACHARIAS (1998,p.197) versa:

“Este último sempre se apresenta vestido de branco e encurvado sob o peso dos anos,

apóia-se em um cajado de prata, o paxorô ou opaxorô. Apesar de sua sabedoria e

bondade, ele apresenta aspectos de teimosa e arrogância de seu poder, um de seus

mitos narra este fato.”

Conforme visto na citação acima, cabe trazer o mito de Oxalufã que mostra a

arrogância e sua teimosia:

Certo dia, Oxalufã resolveu visitar Xangô, rei de Oyó. Ele consultou um

babalaô (adivinho) para saber como seria a viagem. O babalaô lhe advertiu para não

seguir no intento, pois a viagem seria terrível e acabaria mal. Mas, como Oxalufã é

muito obstinado, resolveu fazer a viagem assim mesmo. Então o babalaô disse que se

ele não quisesse perder a vida durante a viagem deveria fazer tudo o que lhe pedissem

e não reclamar das consequências que viriam. Além disso, ele deveria levar três mudas

de roupa branca e uma barra de sabão da costa. Assim procedendo, Oxalufã partiu.

Logo de início encontrou Exu Elepô (Exu do Dendê) sentado à beira da estrada com

um barril de azeite de dendê. Exu saudou Oxalufã e pediu sua ajuda para por o barril

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nas costas. Oxalufã logo se prontificou e então Exu virou todo o azeite sobre Oxalufã

que ficou sujo de dendê. Exu gargalhou e zombava de Oxalufã que não reclamou e foi

lavar-se no rio e trocar de roupa. Deixando a roupa suja no rio segui viagem, e

encontrou ainda Exu Onidú (Exu dono do carvão) e depois deste Exu Aladi (Exu dono

do óleo do caroço do dendê). Mais duas vezes Oxalufã foi vítima da zombaria de Exu,

e lavando-se seguiu viagem, agora com a sua última muda de roupa. Entrando no reino

de Xangô encontrou um cavalo que ele mesmo havia presenteado Xangô tempos atrás.

O cavalo estava perdido e ele resolveu levá-lo de volta. Estava a caminho quando os

servidores de Xangô encontraram-no e tomando-o por um ladrão, aprisionaram-no e

lançaram-no no cárcere do palácio de Xangô. Por conta disto, não mais choveu, as

ervas e animais, bem como os homens tornaram-se estéreis, as doenças campearam

pelo reino e durante sete anos o reino de Xangô foi devastado. Inconformado com tal

situação, Xangô chama um babalaô que lhe disse o que estava ocorrendo. Então, o

babalaô disse-lhe que um velho fora preso injustamente e chamou o velho para sua

presença. Eis que, para a surpresa de Xangô, o velho era Oxalufã e, o rei de Oyó,

mandou que todos vestissem branco, para saudar Oxalufã.

Novamente acerca do arquétipo do velho sábio, MEDEIROS (2005,p.143)

afirma: “O velho sábio é a figura da razão que, geralmente representada por um velho

ou por um animal, surge na vida do herói para dar-lhe instruções de como lidar com os

problemas que virão e que ele terá, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar. Essa figura

sábia seria a voz da consciência, aquela que nos guia, aquela que representa a

totalidade absoluta da psique, diferentemente do ego, que constitui apenas uma

pequena parte; isso tudo representa o self.”

O velho sábio, então, direcionaria a psique, através de sua sabedoria e

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maturidade, conduzindo as pessoas em suas “travessias” pessoais. Novamente citando

MEDEIROS (2005,p.144): “Ele é o extremo da balança entre o bem e o mal.”

Relacionando este arquétipo com a velhice, em sua polaridade positiva, pode-se

pensar no velho que teve um “bom envelhecer”. Passou pelos estágios de

desenvolvimento do masculino e pôde atingir a maturidade e sabedoria, atuando como

um “guia” para os mais novos, compartilhando experiências e ensinamentos.

Em sua polaridade negativa, pode indicar a teimosia, soberba e arrogância,

sendo o “velho torrão”, amargurado ou então tido simplesmente como “chato”. Sobre

esta questão, ZACHARIAS (1998,p.102) diz: “ O Grande Pai e Velho Sábio. Tende a

ser auto suficiente e convencida. Calma e teimosa, sempre inspira respeito e

admiração. É introspectiva e cheia de força de vontade, constante e lenta, mas pode ser

violenta. Observadora, romântica, dócil, serena e exprime sabedoria ao opinar, porém

não esquece as ofensas e têm poucos relacionamentos.”

Pode exprimir, então, pensando em um “mau” envelhecer, pessoas que não

permitem ouvir outras opiniões, não admitem seus erros e guardam o menor tipo de

ressentimento ou então do que lhe é sofrido, esperando sempre a melhor hora para que

devolva isso para a pessoa que cometeu ao sofrimento, numa espécie de “tsunami”.

A imagem do velho sábio não é heróica e nem menos paterna, mas sim uma

espécie de ermitão, mago, podendo ser pensado na figura do mago Merlim.

Cabe lembrar que o velho sábio ou a velha sábia, podem aparecer para o

homem, como aparição da anima no homem. Cabe, aqui, a citação de HOPCKE

(1998,p.135): “ As palavras citadas acima deixam claro como o Velho Sábio

arquetípico é a personificação psíquica do que Jung identificava como espírito,

especialmente o espírito como conhecimento ou sabedoria, Logos em todas as duas

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muitas formas e muitos efeitos”.”

Acerca da bibliografia referente à temática do velho sábio, cabe ressaltar que os

escritos secundários sobre a temática são escassos, cabendo a análise de que, para

posteriores trabalhos e outros escritores junguianos, escreverem acerca do tema,

muitíssimo importante.

2.2.2Abaluaê/Omulu/Obaluaiê/Omolu

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Ambos os nomes surgem quando nos referimos à esta figura, seja Omulu seja

Obaluaiê. Para a maior parte dos devotos do Candomblé e da Umbanda, os nomes são

praticamente intercambiáveis, referentes a um mesmo arquétipo e,

correspondentemente, uma mesma divindade. Já para alguns babalorixás, porém, há de

se manter certa distância entre os dois termos, uma vez que representam tipos

diferentes do mesmo Orixá.

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São também comuns as variações gráficas Obaluaê e Abaluaê.

Um dos mais temidos Orixás, comanda as doenças e, consequentemente, a

saúde. Assim como sua mãe Nanã, tem profunda relação com a morte. Tem o rosto e

o corpo cobertos de palha da costa, em algumas lendas para esconder as marcas da

varíola, em outras já curado não poderia ser olhado de frente por ser o próprio brilho

do sol. Seu símbolo é o Xaxará - um feixe de ramos de palmeira enfeitado com

búzios. Em termos mais estritos, Obaluaiê é a forma jovem do Orixá Xapanã,

enquanto Omulu é sua forma velha. Como porém, Xapanã é um nome proibido tanto

no Candomblé como na Umbanda, não devendo ser mencionado pois pode atrair a

doença inesperadamente, a forma Obaluaiê é a que mais se vê. Esta distinção se

aproxima da que existe entre as formas básicas de Oxalá: Oxalá (o Crucificado),

Oxaguiã a forma jovem e Oxalufã a forma mais velha.

A figura de Omulu/Obaluaiê, assim como seus mitos, é completamente

cercada de mistérios e dogmas indevassáveis. Em termos gerais, a essa figura é

atribuído o controle sobre todas as doenças, especialmente as epidêmicas. Faria parte

da essência básica vibratória do Orixá tanto o poder de causar a doença como o de

possibilitar a cura do mesmo mal que criou.

Em algumas narrativas mais tradicionalistas tentam apontar-se que o conceito

original da divindade se referia ao deus da varíola, tal visão porém, é uma evidente

limitação. A varíola não seria a única doença sob seu controle, simplesmente era a

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epidemia mais devastadora e perigosa que conheciam os habitantes da comunidade

original africana, onde surgiu Omulu/Obaluaiê, o Daomé.

Assim, sombrio e grave como Iroco, Oxumarê (seus irmãos) e Nanã (sua

Mãe), Omulu/Obaluaiê é uma criatura da cultura jêje, posteriormente assimilada

pelos iorubás. Enquanto os Orixás iorubanos são extrovertidos, de têmpera passional,

alegres, humanos e cheios de pequenas falhas que os identificam com os seres

humanos, as figuras daomeanas estão mais associadas a uma visão religiosa em que

distanciamento entre deuses e seres humanos é bem maior. Quando há aproximação,

há de se temer, pois alguma tragédia está para acontecer, pois os Orixás do Daomé

são austeros no comportamento mitológico, graves e conseqüentes em suas ameaças.

A visão de Omulu/Obaluaiê é a do castigo. Se um ser humano falta com ele

ou um filho-de-santo seu é ameaçado, o Orixá castiga com violência e determinação,

sendo difícil uma negociação ou um aplacar, mais prováveis nos Orixás iorubás. Para

VERGER (2002,p.56) : “Obalúayé (“Rei Dono da Terra” ) ou Omolu (“ Filho do

Senhor” ) são os nomes geralmente dados a Sànpònná, deus da varíola e das doenças

contagiosas, cujo nome é perigoso ser pronunciado. Melhor definindo, ele é aquele

que pune os malfeitores e insolentes enviando-lhes a varíola”. Falando ainda sobre o

deus das pestes e das doenças, VERGER (2002,p.58) reitera: “Quando o deus se

manifesta sobre um de seus iniciados, ele é acolhido pelo grito “Atotô!” Seus iaôs

dançam inteiramente revestidos de palha da costa. A cabeça também é coberta por

um capuz da mesma palha, cujas franjas recobrem seu rosto. Em conjunto, parecem

pequenos montes de palha, em cuja parte inferior aparecem pernas cobertas por

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calças de renda e, na altura da cintura, mãos brandindo um xaxará, espécie de

vassoura feita de nervuras de folhas de palmeira, decorada com búzios, contas e

pequenas cabaças que se supõem conter remédios. Dançam curvados para frente,

como que atormentados por dores, e imitam sofrimento, as coceiras e os tremores de

febre”.

Obaluaiyê quer dizer "rei e dono da terra" sua veste é palha e esconde o segredo

da vida e da morte. Está relacionado a terra quente e seca, como o calor do fogo e do sol

- calor que lembra a febre das doenças infecto-contagiosas. O lugar de origem de

Obalúayé é incerto, há grandes possibilidades que tenha sido em território Tapá (ou

Nupê) e se esta é ou não sua origem seria pelo menos um ponto de divisão dessa crença.

Conta-se em Ibadã que Obalúayé teria sido antigamente o Rei dos Tapás. Uma lenda de

Ifá confirma esta última suposição. Obalúayé era originário em Empê ( Tapá ) e havia

levado seus guerreiros em expedição aos quatros cantos da terra. Uma ferida feita por

suas flechas tornava as pessoas cegas, surdas ou mancas.

OBALÚAYÉ representa a terra e o sol, aliás, ele é o próprio sol, por isso usa uma

coroa de palha (AZÊ) que tampa seu rosto, porque sem ela as pessoas não poderiam

olhar para ele. Ninguém pode olhar o sol diretamente. Está fortemente relacionado aos

troncos e os ramos das árvores e transporta o axé preto, vermelho e branco. Sua matéria

de origem é a terra e, como tal, ele é o resultado de um processo anterior. Relaciona-se

também com os espiritos contidos na terra. O colar que o simboliza é o ladgiba, cujas

contas são feitas da semente existente dentro da fruta do Igi-Opê ou Ogi-Opê, palmeiras

pretas. Usa também bradga, um colar grande de cauris. OBALÚAYÉ é o patrono dos

cauris e do conjunto dos 16 búzios, que reina do instrumento ao sistema oracular: o

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brendilogun, que lhe pertence. Seu poder está extraordinariamente ligado a morte. OBA

significa Rei (Oni), ILU espíritos e AIYÊ significa terra, ou seja, Rei de Todos os

Espíritos do Mundo. Ele lidera e detém o poder dos espíritos e dos ancestrais, os quais o

seguem. Oculta sob o saiote o mistério da morte e do renascimento (o mistério do

gênesis). Ele é a própria terra que recebe nossos corpos para que vire pó.

OBALÚAYÉ mede a riqueza com cântaros, mas o povo esqueceu-se de sua

riqueza e só se lembra dele como o Orixá da moléstia.

Muitos podem ser os simbolismos atribuídos a este orixá, tal como o arquétipo

do curador ferido, assemelhando-se, assim, ao centauro Quíron da mitologia grega,

todavia, neste trabalho, será analisada a simbologia de Omulu como o orixá da morte,

ou seja, aproximação com a finitude.

Todo ser humano é finito, nasce, cresce, desenvolve-se e, por fim, morre. Já foi

falado aqui, que a velhice também significa sinônimo de desenvolvimento, por maiores

que sejam as limitações físicas, porém, por vezes, a velhice é tida como a última parada

do trem da vida, anterior à morte que, na verdade, pode ocorrer em qualquer momento

da vida, sem mandar recados prévios.

Na velhice, quando metaforicamente o sol ilumina a si mesmo, esta questão

pode estar mais presente, sobre esta questão, BREHONY (1999,p.123): “ Na meia –

idade, torna-se possível compreender que a não – permanência é a verdadeira natureza

do nosso mundo e da nossa realidade. A nossa ideia de um universo permanente,

imutável é um mito mantido pelo ego, quer agarrar e manter tudo aquilo que tem valor

para ele. Mas não obstante os desejos do nosso ego, a meia – idade traz a esmagadora

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percepção de que tudo nas nossas vidas está sujeito a mudança.”

É neste momento, no envelhecer, em que dá-se conta de outros aspectos da vida,

a consciência pode ser ampliada, via metanoia, trazendo esclarecimentos ao indivíduo e

constelando questões que anteriormente não eram vistas, ou nem então pensadas.

Novamente citando BREHONY(1999, p. 134): “ O universo nos proporciona

muitas oportunidades, normalmente bastante dolorosas, para nos tornarmos fortes e

espiritualmente esclarecidos, quando vamos pela trilha que leva ao nosso destino. Na

metade da vida, a maioria de nós já passou por várias “pequenas não – permanências” e,

assim, já tivemos a oportunidade de desenvolver uma perspectiva da perda e da morte

bem diferente daquela que tínhamos na juventude.”

Pode-se pensar que Omulu se faz presente em vários momento da vida, em que a

morte e o renascimento se fazem presentes, tais como: Saída de um emprego, conseguir

um emprego novo, a morte de um ente querido, o fim de um relacionamento e o começo

de outro, etc.

Saber acerca da morte, tomar consciência dela, pode fazer com que o indivíduo

se agarre à vida e a viva com total vontade e intensidade, como afirma BREHONY

(1999,p.137): “ Por outro lado, o conhecimento da morte pode nos impelir a dançar com

a vida, agarrá-la com todo o entusiasmo de que formos capazes. Podemos viver cada dia

no momento presente, aprender a amar sem hesitação, tomar conhecimento daquilo que

é verdadeiramente importante para nós e sentirmo-nos como parte de um grande plano

cósmico. A morte é a companheira natural da vida.”

Transpondo este raciocínio para a velhice, por mais que haja a finitude humana e

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que deste encontro marcado não se pode escapar, não impede que o indivíduo fique

esperando a morte chegar, sem sequer ter traços de vida: Ele pode ter vida em si e

transbordar esta vida e vontade de viver, até a hora em que “ as cortinas do espetáculo

se fechem”.

A morte é o oposto complementar da vida, o casamento perfeito, trazendo em

tona a mysteruim coniunctionis, ou seja, a operação alquímica da união de opostos,

trazendo para a psique, a outra metade que lhe falta.

Ainda sobre esta temática que, para uns, é vista como medonha, BREHONY

(1999,p.143) reflete: “ Na meia – idade, estamos cada vez mais cientes do nosso próprio

encontro predestinado com a morte, de como estamos inexoravelmente presos a este

animal moribundo. Aquilo que a juventude nos permite negar já não pode ser

empurrado para fora da consciência. De fato, é esta nova percepção da morte que

diferencia a transição da meia – idade de toda e qualquer outra transição que é

experimentada ao longo da vida.”

É, também, com a aceitação e compreensão da finitude, que, além da união dos

opostos, o arquétipo de self pode dialogar com o ego, como ressalta BREHONY

(1999,p.158):” Na meia – idade, pedem-nos para deter a tensão dos opostos, para estar

na dialética de viver plenamente, ao mesmo tempo em que sabemos que a morte e a

perda são inevitáveis. Se abrirmos as nossas consciências para estas duas percepções,

permitiremos imediatamente que o ego e o si- mesmo entrem num diálogo crítico.”

Pode-se pensar no próprio processo de individuação como uma preparação

para a morte, dentre suas inúmeras interpretações. Sobre tal questão, Jaffé, FREY-

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ROHN e VON FRANZ (1980, p. 17) afirmam: “Oportunamente, parece que, diante

da morte, “o implacável encontro com o si – mesmo” força o homem a completar a

parcela de sua individuação que ainda lhe é possível antes de morrer.”

2.2.3 Nanã de Buruku/Nanã de Burukê

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Esta é uma figura muito controvertida do panteão africano. Ora perigosa e

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vingativa, ora praticamente desprovida de seus maiores poderes, relegada a um

segundo plano amargo e sofrido, principalmente ressentido, Nanã possui não dois

lados, como tantos Orixás, mas sim um Orixá dentro do outro, um conceito que foi

sendo gradativamente substituído por outro, dando margem a muita confusão e

contestação no jeito de se defini-la. Nanã é um Orixá feminino de origem daomeana,

que foi incorporado há séculos pela mitologia ioruba, quando o povo nagô

conquistou o povo do Daomé (atual República do Benin) , assimilando sua cultura e

incorporando alguns Orixás dos dominados à sua mitologia já estabelecida. Nanã é

descrita como uma velha senhora que teria enjeitado os filhos, Omolu e Oxumarê, os

quais foram então adotados pela amorosa Yemanjá. Em vários mitos, ela surge como

a mulher idosa, autoritária e sem atrativos físicos que, apesar de tentar tudo para

segurar sua relação com Oxalá, acaba mesmo por perder o páreo para a bondosa e

maternal Yemanjá. Nanã é ligada aos pântanos e águas lodosas, não utiliza utensílios

de metal e é a mais antiga dos orixás mulheres, sendo considerada “avó dos orixás”.

É a entidade da Terra e do barro, em ewe e fon, a expressão Nanã Buruku tem o

seguinte significado: Nana = velho ou antigo / buruku é o nome de Deus.

Assim, Nanã Buruku significa Deus Antigo. Em seu santuário é guardado o edon

(metal), que consiste em imagens gravadas em ferro, uma representando o aspecto

masculino da divindade e outra o feminino. Ali são guardadas também outras

imagens belamente esculpidas em madeira, com distintos formatos, algumas

representando mulheres grávidas ou carregando bebês às costas, ou oferecendo o seio

ao filho. Tais imagens, expressões dos tabus da divindade, são retiradas do santuário

e carregadas em procissão nos festivais anuais, que duram três meses.

Durante o festival em sua homenagem os aspirantes à iniciação recebem

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instruções e perdem temporariamente a capacidade de falar: regridem a estágios

anteriores do desenvolvimento e falam como criancinhas que estivessem ainda

aprendendo. No final desse período, resgatam a capacidade lingüística e retornam

para casa entre canções e outras expressões deregozijo.

No Candomblé ela é considerada um Orixá perigoso, no sentido de tomar

bastante cuidado na hora de seus assuntos (fundamentos). Ela também tem o seu

culto na Umbanda.

A respeito da figura de Nanã, VERGER (2002,p.80) afirma: “É considerado a

mais antiga das divindades das águas, não das ondas turbulentas do mar, como

iemanjá, ou das águas calmas dos rios, domínio de Oxum, mas das Águas paradas

dos lagos e lamacentas dos pântanos. Estas lembram as águas primordiais que

Odùduà ou Òrànmíyàn (segundo a tradição de Ifé ou e Oyó) encontrou no mundo

quando criou a terra.”

Lendas de Nanã de Burukê:

Disputa entre NanãBuruku e Ogum

Nanã Buruku é uma velhíssima divindade das águas, vinda de muito longe e há

muito tempo. Ogum é um poderoso chefe guerreiro que anda, sempre, à frente dos

outros Imalés. Eles vão, um dia, a uma reunião. É a reunião dos duzentos Imalés da

direita e dos quatrocentos Imalés da esquerda. Eles discutem sobre seus poderes. Eles

falam muito sobre obatalá, aquele que criou os seres humanos. Eles falam sobre

Orunmilá, o senhor do destino dos homens. Eles falam sobre Exú: "Ah! É um

importante mensageiro!" Eles falam muita coisa a respeito de Ogum. Eles dizem: "É

graças a seus instrumentos que nós podemos viver. Declaramos que é o mais importante

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entre nós!"

Nanã Buruku contesta então: "Não digam isto. Que importância tem, então, os trabalhos

que ele realiza?" Os demais orixás respondem: "É graças a seus instrumentos que

trabalhamos pelo nosso alimento. É graças a seus instrumentos que cultivamos os

campos. São eles que utilizamos para esquartejar." Nanã conclui que não renderá

homenagem a Ogum. "Por que não haverá um outro Imalé mais importante?" Ogum diz:

"Ah! Ah! Considerando que todos os outros Imalés me rendem homenagem, me parece

justo, Nanã, que você também o faça."

Nanã responde que não reconhece sua superioridade. Ambos discutem assim por muito

tempo. Ogum perguntando: "Voce pretende que eu não seja indispensável?" Nanã

garatindo que isto ela podia afirmar dez vezes. Ogum diz então: "Muito bem! Voce vai

saber que eu sou indispensável para todas as coisas." Nanã, por sua vez, declara que, a

partir daquele dia, ela não utilizará absolutamente nada fabricado por Ogum e poderá,

ainda assim, tudo realizar. Ogum questiona: "Como voce fará? Voce não sabe que sou o

proprietário de todos os metais? Estanho, chumbo, ferro, cobre. Eu os possuo todos." Os

filhos de Nanã eram caçadores. Para matar um animal, eles passaram a se servir de um

pedaço de pau, afiado em forma de faca, para o esquartejar. Os animais oferecidos a

Nanã são mortos e decepados com instrumentos de madeira. Não pode ser utilizada a

faca de metal para cortar sua carne, por causa da disputa que, desde aquele dia, opôs

Ogum a Nanã.

Praga ao velho rei

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Nanã era considerada como a grande justiceira. Qualquer problema que ocorria

em seu reino, os habitantes a procuravam para ser a juíza das causas. No entanto, Nanã

era conhecida como aquela que sempre castigava mais os homens, perdoando as

mulheres. Nanã possuía um jardim em seu palácio onde havia um quarto para os eguns,

que eram comandados por ela. Se alguma mulher reclamava do marido, Nanã mandava

prendê-lo chamando os eguns para assustá-lo, libertando o faltoso em seguida.

Osalufã sabedor das atitudes da velha Nanã resolveu visitá-la. Chegou a seu

palácio faminto e pediu a Nanã que lhe preparasse um suco com igbins. Oxalufã muito

sabido fez Nanã beber dele, acalmando-a e a cada dia que passava ela gostava mais do

velho rei.

Pouco a pouco Nanã foi cedendo aos pedidos do velho, até que um dia levou-o a

seu jardim secreto, mostrando-lhe como controlava os eguns. Na ausência de

Nanã, Oxalufã vestiu-se de mulher e foi ter com os eguns, chamando-os

exatamente como Nanã fazia, ordenando-lhes que deveriam obedecer a partir

dali somente ao homem que vivia na casa da rainha. Em seu retorno Nanã tomou

conhecimento do fato ficando zangada com o velho rei. Foi então que rogou uma

praga no velho rei que a partir dali nunca mais usaria vestes masculinas. Por isso

até hoje Oxalufã veste-se com saia cumprida e cobre o rosto como as deusas

rainhas.

Nanã quer de volta

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Dizem que quando Olorum encarregou Osalá de fazer o mundo e modelar o ser

humano, o Òrìsà tentou vários caminhos. Tentou fazer o homem de ar, como ele. Não

deu certo, pois o homem logo se desvaneceu. Tentou fazer de pau, mas a criatura ficou

dura. De pedra, mas ainda a tentativa foi pior. Fez de fogo e o homem se consumiu.

Tentou azeite, água e até vinho de palma, e nada. Foi então que Nanã veio em seu

socorro e deu a Osalá a lama, o barro do fundo da lagoa onde morava ela, a lama sob as

águas, que é Nanã. Osalá criou o homem, o modelou no barro. Com o sopro de Olorum

ele caminhou. Com a ajuda dos òrìsà povoou a Terra. Mas tem um dia que o homem

tem que morrer. O seu corpo tem que voltar à terra, voltar à natureza de Nanã. Nanã deu

a matéria no começo mas quer de volta no final tudo o que é.

Viu-se, até agora, o arquétipo do orixá Nanã, tal como suas origens um pouco de

seu fundamento, porém, o que significa psicológica e arquetipicamente Nanã de

Burukê?

Primeramente, este orixá, principio feminino, a primeira, considerada avó dos

orixás, tida como orixá velha, tendo seu reino nas águas lodosas, recebendo seus filhos

em seu leito de morte, uma vez que “ para terra há de se retornar”. Pode-se pensar em

Nanã de Burukê como um orixá do tipo introvertido.

Em psicologia analítica, ou junguiana, a libido (energia psíquica), pode tomar

dois caminhos: O da extroversão (para fora) ou a introversão (para dentro). Indivíduos

extrovertidos tendem a focar no mundo exterior e nos acontecimentos externos a si,

focando para fora. Indivíduos introvertidos tendem a focar no mundo interno e nos

acontecimentos internos, ou seja, a importância aqui são os eventos internos, sendo que

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o mundo externo não possui tanta importância.

Sobre a atitude da libido, HOPCKE (1998,p.62), afirma: “ No tipo atitude, há

duas alternativas: extrovertido, em que a libido da pessoa tende a ser dirigida a partir de

si para objetos do mundo externo, ou introvertido, em que a libido da pessoa tende a ser

dirigida a partir dos objetos do mundo externo para dentro dela.”

Novamente retomando, Nana é uma orixá introvertida, com função psíquica

sentimento/intuição. A respeito da função psíquica, na teoria jungiana, quatro dão as

funções que norteiam a psique: Sentimento, pensamento, intuição e sensação. O tipo

pensamento, atribui leis gerais para os fenômenos e age de acordo com elas, vendo o

mundo através da razão. O tipo sentimento atribui valor emocional aos acontecimentos,

gostando ou não. O tipo sensação atribui às experiências vividas as sensações que lhe

são evocadas e o tipo intuitivo é o mais inconsciente, lançando a energia psíquica para o

futuro, onde não há uma lei racional ou de causa e efeito para os fenômenos.

É dado o nome função superior e inferior. A função superior aqui não tem

conotação de valor, mais sim se diz superior pelo fato do indivíduo valer-se mais dela e

a inferior, por valer-se menos, por exemplo: Um indivíduo com função superior intuição

e sentimento, possuirá uma função auxiliar pensamento e a função inferior sensação,

assim como um indivíduo com função superior pensamento e sensação, auxiliar

intuição, terá como função inferior o sentimento, diametralmente opostos.

A respeito da tipologia junguiana, RAMOS (2002,p.137) diz: “Jung percebeu

que além de a psique possuir dois sentidos de fluxo da libido (extroversão e introversão)

também possui quatro funções psíquicas (pensamento, sentimento, percepção e

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intuição) que também são mecanismos de adaptação do indivíduo à sua realidade

subjetiva e objetiva. Percepção : relaciona-se aos mecanismos sensoriais da psique.

Constata a presença das coisas que nos cercam. Pensamento : esclarece o que significam

os objetos. Julga, classifica, discrimina uma coisa da outra. É a razão. Sentimento : faz a

avaliação dos objetos. Decide o valor que estes têm para nós (se agradam ou não).

Estabelece julgamentos assim como o pensamento, entretanto, obedece a uma lógica

toda diferente: sua lógica não é a da razão, é a lógica da emoção. Intuição : é a

apreensão perceptiva dos objetos pela via inconsciente. A intuição “vê” a natureza

“oculta” das pessoas, dos objetos e dos fatos.”

Nanã então é o orixá da calma e vagareza, da gentileza, agindo como se fosse a

figura da “avó”. Traz em si o simbolismo do materno primordial, a ancestralidade, tal

como a deusa grega Gaia, podendo, então, ser um tipo introvertido sentimento, com

função auxiliar intuição e função inferior pensamento.

A figura de Nanã pode, também, ser associada à figura arquetípica da Velha

Sábia. Este é um arquétipo, que traz e mostra o equilíbrio, a sabedoria e a benevolência,

em sua polaridade positiva, não esquecendo que o arquétipo traz as duas polaridades,

negativa e positiva.

Novamente, em sua polaridade positiva, Nanã traz o poder do matriarcado, a

sabedoria, a calma, além da espera, temperança e parcimônia, podendo, assim, pensar

no “bom” envelhecer, que traz, via metanoia, aspectos relacionados à sabedoria,

integração dos opostos, é a imagem da avó ( ou da velha) que ensina, pacienciosa,

agindo como uma espécie de mentor para os mais novos.

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Em sua polaridade negativa, este arquétipo pode indicar a severidade,

inflexibilidade, amargor e demasiado controle, autoritarismo. Aqui, a lei, ordem e regras

sociais podem estar em demasias e inflexíveis, podendo ser pensada a figura do

feminino que envelheceu e tornou-se amarga, desgostosa pela vida, “seca”.

Para que se constele a polaridade positiva da velha sábia é necessário encarar a

difícil travessia da metanoia, olhando para si e, via o amor, poder se transformar,

integrar os opostos e poder seguir na caminhada.

A respeito da questão da polaridade de Nanã, ZACHARIAS (1998,p.196)

afirma: “ Se no aspecto negativo, Nanã é rancorosa pela perda do seu poder, por outro é

a imagem da velha sábia, senhora da sabedoria e dos mistérios da vida e da morte, daí o

sincretismo que lhe é outorgado com a Senhora Sant’Ana, a mestra. Em Nanã

encerramos o ciclo das mães que inicia-se com Oxum, a mãe jovem; Iansã a mãe

distante mas atenta; Iemanjá, a mãe madura; e Nanã, a mãe idosa, carinhosamente

considerada vovó.”

Arquétipo do orixá Nanã para os filhos:

Nanã Buruku é o arquétipo das pessoas que agem com calma, benevolência, dignidade

e gentileza. Das pessoas lentas no cumprimento de seus trabalhos e que julgam ter a

eternidade à sua frente para acabar seus afazeres. Elas gostam das crianças e educam-

nas, talvez, com excesso de doçura e mansidão, pois têm tendência a se comportarem

com a indulgência dos avós. Agem com segurança e majestade. Suas reações bem -

equilibradas e a pertinência de suas decisões mantêm-nas sempre no caminho da

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sabedoria e da justiça.

2.2.4 Preto-Velho

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Eles representam a humildade, força de vontade, a resignação, a sabedoria, o

amor e a caridade. São um ponto de referência para todos aqueles que necessitam:

curam, ensinam, educam pessoas e espíritos sem luz. Não têm raiva ou ódio pelas

humilhações, atrocidades e torturas a que foram submetidos no passado. Para muitos

os Pretos -Velhos são conselheiros mostrando a vida e seus caminhos; para outros,

são pisicólogos, amigos, confidentes, mentores espirituais.

As grandes metrópoles do período colonial: Portugal, Espanha, Inglaterra,

França, etc; subjugaram nações africanas, fazendo dos negros mercadorias, objetos

sem direitos ou alma.

Os negros africanos foram levados a diversas colônias espalhadas

principalmente nas Américas e em plantações no Sul de Portugal e em serviços de

casa na Inglaterra e França.

Os traficantes coloniais utilizavam-se de diversas técnicas para poder arrematar os

negros:

Chegavam de assalto e prendiam os mais jovens e mais fortes da tribo, que

viviam principalmente no litoral Oeste, no Centro-oeste, Nordeste e Sul da África.

Trocavam por mercadoria: espelhos, facas, bebidas, etc. Os cativos de uma tribo que

fora vencida em guerras tribais ou corrompiam os chefes da tribo financiando as

guerras e fazendo dos vencidos escravos.

No Brasil os escravos negros chegavam por Recife e Salvador, nos séculos XVI

e XVII, e no Rio de Janeiro, no século XVIII.

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Os primeiros grupos que vieram para essas regiões foram os bantos; cabindos;

sudaneses; iorubás; geges; hauçá; minas e malês.

A valorização do tráfico negreiro, fonte da riqueza colonial, custou muito caro; em

quatro séculos, do XV ao XIX, a África perdeu, entre escravizados e mortos 65 a 75

milhões de pessoas, e estas constituiam uma parte selecionada da população.

Arrancados de sua terra de origem, uma vida amarga e penosa esperava esses homens

e mulheres na colônia: trabalho de sol a sol nas grandes fazendas de açúcar. Tanto

esforço, que um africano aqui chegado durava, em média, de sete a dez anos! Em

troca de seu trabalho os negros recebiam três "pês": Pau, Pano e Pão. E reagiam a

tantos tormentos suicidando-se, evitando a reprodução, assassinando feitores,

capitães-do-mato e proprietários. Em seus cultos, os escravos resistiam,

simbolicamente, à dominação. A "macumba" era, e ainda é, um ritual de liberdade,

protesto, reação à opressão. As rezas, batucadas, danças e cantos eram maneiras de

aliviar a asfixia da escravidão. A resistência também acontecia na fuga das fazendas e

na formação dos quilombos, onde os negros tentaram reconstituir sua vida africana.

Um dos maiores quilombos foi o Quilombo dos Palmares onde reinou Ganga Zumba

ao lado de seu guerreiro Zumbi (protegido de Ogum).

Os negros que se adaptavam mais facilmente à nova situação recebiam tarefas

mais especializadas, reprodutores, caldeireiro, carpinteiros, tocheiros, trabalhador na

casa grande (escravos domésticos) e outros, ganharam alforria pelos seus senhores ou

pelas leis do Sexagenário, do Ventre livre e, enfim, pela Lei Áurea.

A Legião de espíritos chamados "Pretos-Velhos" foi formada no Brasil, devido a esse

torpe comércio do tráfico de escravos arrebanhados da África.

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Estes negros aos poucos conseguiram envelhecer e constituir mesmo de maneira

precária uma união representativa da língua, culto aos Orixás e aos antepassados e

tornaram-se um elemento de referência para os mais novos, refletindo os velhos

costumes da Mãe África. Eles conseguiram preservar e até modificar, no sincretismo,

sua cultura e sua religião.

Idosos mesmo, poucos vieram, já que os escravagistas preferiam os jovens e

fortes, tanto para resistirem ao trabalho braçal como às exemplificações com o látego.

Porém, foi esta minoria o compêndio no qual os incipientes puderam ler e aprender a

ciência e sabedoria milenar de seus ancestrais, tais como o conhecimento e emprego

de ervas, plantas, raízes, enfim, tudo aquilo que nos dá graciosamente a mãe natureza.

Mesmo contando com a religião, suas cerimônias, cânticos, esses moços

logicamente não poderiam resistir à erosão que o grande mestre, o tempo, produz

sobre o invólucro carnal, como todos os mortais. Mas a mente não envelhece, apenas

amadurece.

Não podendo mais trabalhar duro de sol a sol, constituíram-se a nata da

sociedade negra subjugada. Contudo, o peso dos anos é implacavelmente destruidor,

como sempre acontece.

O preto – velho é uma entidade da umbanda, sendo vista em alguns terreiros de

candomblé. Esta religião brasileira, surgiu em 15 de novembro de 1908 com o médium

Zélio Fernandino de Moraes que tinha 17 anos de idade. O Patrono foi o Caboclo das

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Sete Encruzilhadas. Ordenado pelo astral superior, feita pela manifestação de espirítos

que se apresentavam como Caboclos (índios nativos de nossa terra) e os Pretos -Velhos

(velhos africanos que haviam servidos como escravo) que não encontravam campo de

ação nos remanescentes Cultos Negros, já deturpados, confusos e desordenados e

dirigidos quase que exclusivamente para trabalhos do mal.

A Lei principal da Umbanda é resumida numa só palavra CARIDADE: no sentido

do amor fraterno em benefício dos seus irmãos encarnados, qualquer que fosse a cor,

raça, o credo e a condição social, não podendo haver ambiciosos, vaidosos,

mistificadores, pois estes, mais cedo ou mais tarde, são afastados da Umbanda pelos

espíritos de luz.

As normas da Umbanda são:

Sessões - assim se chamariam os períodos de trabalhos espirituais;

Vestes - os participantes estariam uniformizados de branco;

Sacrifícios - o sacrifício de aves e animais é totalmente alheio a Umbanda (somente na

umbanda branca);

Fundamento Básico - é a crença ou culto aos espíritos evoluídos;

Atendimento - gratuito.

A Umbanda é uma doutrina espiritualista como o Espiritismo, o Catolicismo,

o Protestantismo, o Judaísmo, o Esoterismo, entre ouros, o que não impede de haver

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entre elas diferenças essenciais que lhes dão características próprias.

Tem a Umbanda seus Sacerdotes, com seus graus iniciativos, como Tatás

(com mais de 30 anos), Babalorixás (homens) e Yalorixás (mulheres), podendo

realizar Batizados, Casamentos e outras cerimônias dentro de seus cultos.

Se religião é todo culto que contém seu cortejo de Divindades, ou melhor,

chamado de Teologia (relação entre os deuses e os homens), o seu cerimonial ou

Liturgia (fórmulas consagradas de orações) e seus praticantes ou sua classificação

hierárquica, umbanda é religião.

O preto - velho personifica o preconceito com negro e, também, com o velho.

Pode-se pensar arquetipicamente na umbanda como a religião dos excluídos: Os

espíritos que são cultuados são os excluídos da sociedade, como os caboclos ( o

preconceito com os indígenas), os erê ( o preconceito com a criança, por saber de

menos), os marinheiros ( preconceitos com os marujos), os ciganos ( mal vistos

culturalmente), as pomba-giras ( mulheres da vida em sua maioria) e, por fim os

pretos - velhos ( o preconceito com o negro e com os velhos aqui são vistos).

Sobre esta questão, SANTOS (2007, p. 164) afirma:” Parece-nos que no

sistema de classificação elaborado pela sociedade brasileira para a cor da pele das

pessoas, o preto velho refere-se, enquanto tipo social, ao que ficou conhecido na

tradição popular como negro preto, categoria do homem muito escuro, “negro ébano”,

negro muito preto.”

A figura do preto – velho também está associada aos escravos fugitivos, que

foram para os quilombos, o negro como elemento ruim da sociedade, o negro

“demônio” e ao velho decrépto.

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Infelizmente, traz à tona elementos que se referem ao velho como sinônimo

de finitude, não aproveitável ou rentável, aquele que está a um passo da parada final

da estação da vida: a morte. Aqui a velhice não é vista como mais um estágio do

desenvolvimento humano, uma fase que possui suas peculiaridades, potências e

realizações, resgatadas pela teoria junguiana e pela visão desta dissertação.

Ainda há socialmente uma visão identitária do velho em que, para que ele

exista, há uma identidade jovem, que possui aspectos constrastantes e antônimos aos

velhos: Divina juventude, mortal Velhice, como no texto do psicanalista argentino

Ricardo Iacub.

Ainda sobre esta questão, SANTOS (2007, p. 174) ressalta: “A figura do

preto velho, por sua vez, esteve associada ainda aos estereótipos do negro feiticeiro,

mágico, supersticioso. É comum verificar-se, nas obras literárias vinculadas a

diferentes escolas, a relação estabelecida entre a figura negra e ações tidas como

mágicas ou a prática da feitiçaria; ligada diretamente ao continente de origem do

negro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Neste trabalho, a velhice é analisada, a partir da psicologia junguiana e da

mitologia africana. Uma vez que os arquétipos são universais, presentes em todas as

sociedades, cabe-se relacioná-los com a psicologia analítica.

Envelhecer é mais uma fase do desenvolvimento humano, que possui suas

peculiaridades e também potências. Como qualquer outra. O velho não pode e nem

deve ser estigmatizado, como sinônimo de perda de forças e quaisquer que sejam as

perdas, de maneira geral. A velhice é o momento em que se desfruta do carpe diem, o

famoso aproveite o dia, ou então, por que não dizer, aproveitar o tempo, não de

maneira cronológica, mas sim em sua forma kairosiana?

Kairós diz respeito ao tempo interno, tempo das vivências e, em psicologia

analítica o tempo da sincronicidade. Na velhice, as amarras sociais parecem mais

frouxas, possibilitando um novo viés, novo olhar, caminhos dantes nunca percorridos,

mais nítidos agora, possibilitando ao sujeito sua capacidade de ser.

A velhice é o momento de retomada da própria história, aproximação de

conteúdos que anteriormente, por diversos motivos, não foram olhados, propiciando a

transformação do indivíduo, dada pelo amor, a si , pela criatividade e, também, pela

disposição em passar pelo tão atribulado momento da metanoia, que não possui nem

momento certo para começar, seque momento para terminar.

O velho não é, então, depositário de características negativas e depreciativas, é

muito além disto, é potência, é vida e é força e vontade de viver!

Segue um poema, de um autor retirado da internet, de Dayse Sene:

A Juventude e a Velhice

Um dia,

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a juventude disse:

_ vou sempre visitar a velhice.

Gosto de estar perto dela.

Ela me passa

sabedoria e aprendizados!

E a velhice disse a juventude:

_ Adoro quando você

vem me visitar...

Em cada visita sua,

me encho de juventude...

E fico um pouco mais,

por aqui na terra.

Por isso concluo, eu a poeta:

_Apesar de serem

extremos na palavra vida.

Cada um a seu modo,

fortalece o outro.

Abençoado seja,

quem tem essa visão no mundo.

Pois assim e somente assim...

Haveria mais harmonia

e reciprocidade,

entre as pessoas do mundo!

Dá-nos asas e sonhos....

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E aqui sobreviveremos

mais e mais..

Finalizando, fica a frase de Simone de Beauvoir : “ Se não foste feliz quando

jovem, certamente que tens agora tempo para o ser”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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