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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FRANCISCO ARCANJO DA SILVA
A CRUZ COMO EVENTO TRINITÁRIO NO PENSAMENTO DE
JÜRGEN MOLTMANN
MESTRADO EM TEOLOGIA
SÃO PAULO
2014
2
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
FRANCISCO ARCANJO DA SILVA
A CRUZ COMO EVENTO TRINITÁRIO NO PENSAMENTO DE
JÜRGEN MOLTMANN
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de MESTRE
em TEOLOGIA SISTEMÁTICA, sob a
orientação do(a) Prof.(a), Dr.(a) Maria
Freire da Silva.
SÃO PAULO
2014
3
Banca Examinadora
_____________________________________
______________________________________
_____________________________________
4
AGRADECIMENTOS
Ao Pai ao Filho e ao Espírito Santo, fonte caminho e destino da vida.
Aos meus Pais José da Cruz e Clélia Glória que afagam a face Santa do Deus Trino.
Aos meus irmãos e demais familiares, com os quais aprendi a assimilar e a viver o
dinamismo trinitário de Deus em minha vida.
À Diocese de Lins, da qual sou membro e com a qual faço a experiência da Graça e do
amor do Deus-Comunhão, que me concedeu o privilégio deste tempo de estudo.
À paroquia Nossa Senhora Aparecida de Promissão-SP, pela compreensão nas
ausências e cooperação.
A Dom Irineu Danelon, SDB, Bispo Diocesano de Lins, pelo apoio e incentivo.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, ao Departamento de Pós-Graduação
em Teologia, por meio do Coordenador Prof. Dr. Boris Agustín Nef Ulloa.
À ADVENIAT pela generosidade.
À Prof.ª Dra. Maria Freire da Silva pelo diligente acompanhamento, incentivo e
correções.
Ao Pe. Thiago Calçado, amigo e irmão que durante este tempo foi meu grande
interlocutor e companheiro.
Ao Pe. Lourival Felipe, tio e padrinho pela presença silenciosa e incentivadora.
Aos Missionários do PIME pela acolhida e hospedagens, por meio do amigo e irmão Pe.
Stefano Ferrari.
À Guadalupe Mota, Luiz Furlan Junior, Leonardo Junior, Pe. Leonardo de Sales, Pe.
Marcos Cançado, Pe. André Lemos, Pe. Jesus Aguiar, pela valiosa colaboração.
A todos os meus amigos que me incentivaram e ajudaram a perceber a beleza do
mistério amoroso da Trindade Santa.
5
Resumo
A partir do pensamento de Jürgen Moltmann, esta pesquisa desenvolve uma abordagem sobre a
Teologia da Cruz, atribuindo a cruz como evento trinitário. Em sua obra Trindade e Reino de
Deus, Moltmann interpreta uma doutrina trinitária aberta. Doutrina sensível à história com as
suas vicissitudes, quedas e soerguimentos, dores e cruz. A compreensão da dogmática cristã é
central, pois, trata-se do essencial da fé cristã. Em O Deus crucificado, expressa radicalidade do
amor de Deus que se entende sob o seu pathos revelado em Jesus Cristo, apresentado na
compreensão da crucificação como um acontecimento trinitário interior entre o Pai e o Filho,
onde o que acontece na cruz foi um acontecimento entre Deus e Deus. Esta obra perpassa toda a
dissertação. O Reino de Deus, conteúdo radical da teologia trinitária de Moltmann, aparece na
cristologia do Caminho de Jesus Cristo. A reflexão feita nesse livro aponta o itinerário do Pai
que, no Filho, vem ao encontro da história, e o caminho da história que, em Cristo, se destina
para Deus. Esta abordagem explicita a singularidade do Deus cristão que cria salva e santifica o
homem e toda a criação. Em O Espírito da Vida, Moltmann desenvolve sua pneumatologia.
Afirma-se que no seu Espírito, Deus nunca está fora, mas dentro do coração humano e em suas
experiências. Desenvolve-se ainda uma escatologia que, lida em perspectivas trinitárias, aponta
o futuro como a realidade que ilumina o passado e o presente da história e da vida. Donde a
irmandade com Cristo significa o sofrimento e a participação ativa na história deste Deus. Seu
critério é a história do Cristo crucificado e ressuscitado. Encontra-se, nessa abordagem, uma
hermenêutica do pensamento de Jürgen Moltmann. O objetivo principal é demonstrar a teologia
da cruz em sua perspectiva trinitária, apresentando a cruz de Cristo como base e crítica da
teologia cristã.
Palavras-chave:
Jürgen Moltmann, Trindade, Cruz, Paixão, Morte, Ressurreição.
Abstract At the thought of Jürgen Moltmann, this research develops an approach to the theology of the
cross, giving the cross as Trinitarian event. In his “Trinity and the Kingdom of God works”,
Moltmann interprets an open Trinitarian doctrine. Doctrine sensitive to history with its
vicissitudes, falls and uplifting, aches and cross. The understanding of Christian dogma is
central, because it is the essence of the Christian faith. In “The Crucified God”, expressed
radical love of God that is understood in its pathos revealed in Jesus Christ, presented in the
understanding of crucifixion as an inner Trinitarian event between the Father and the Son,
where what happens on the cross was an event between God and God. This work also permeates
the entire dissertation. The Kingdom of God, radical content of the Trinitarian theology of
Moltmann, appears on the Christology of the Way of Jesus Christ. The reflection made this
book points out the route of the Father, the Son, is in the story, and the path of history that in
Christ, God intended for. This approach explains the uniqueness of the Christian God who
creates saves and sanctifies man and all creation. In “The Spirit of Life”, Moltmann develops
his pneumatology. It is stated that in His Spirit, God is not outside but within the human heart
and their experiences. Also develops an eschatology that read in Trinitarian perspective points
the future as the reality that illuminates the past and the present of history and life. Hence the
fellowship with Christ means suffering and active participation in the history of God. Your
criterion is the story of the crucified and risen Christ. It is, in this approach, a hermeneutic
thought of Jürgen Moltmann. The main objective is to demonstrate the theology of the cross in
his Trinitarian view showing the cross of Christ as the foundation and criticism of Christian
theology.
Key Words:
Jürgen Moltmann, Trinity, Cross, Passion, Death, Resurrection.
6
Sumário
INTRODUÇÃO .............................................................................................................................8
Capítulo I: OS ELEMENTOS PRELIMINARES DA DOUTRINA TRINITÁRIA E APROXIMAÇÃO À
TEOLOGIA TRINITÁRIA DE JÜRGEN MOLTMANN .....................................................................12
Introdução ................................................................................................................................12
1.1-Biografia do autor ................................................................................................................12
1.1.1- Formação Teológica.............................................................................................15
1.1.2- Influências ...........................................................................................................22
1.1.3- Interpretação de sua teologia trinitária...............................................................23
1.2 - Retorno as fontes da doutrina trinitária: A Sagrada Escritura e a Teologia Patrística........25
1.2.1- Aspectos bíblico-doutrinários .............................................................................26
1.2.2- Elementos trinitários no pensamento dos Santos Padres.................................. 32
1.2.2.1- Orígenes...............................................................................................35
1.2.2.2- Os padres capadócios...........................................................................37
1.2.2.3- João Damasceno...................................................................................39
1.3 - A influência da Escolástica ..................................................................................................41
1.4 - O diálogo com a teologia moderna.....................................................................................42
1.5 - A doutrina trinitária de Moltmann .....................................................................................44
Conclusão ...................................................................................................................................74
Capítulo II: A CRUZ COMO EVENTO TRINITÁRIO...................................................................48
Introdução..................................................................................................................................48
2.1 - A Paixão de Deus.................................................................................................................49
2.1.1-A liberdade de Deus..............................................................................................55
2.1.2-A “morte de Deus” como origem da Teologia Cristã............................................57
2.1.3- A doutrina das duas naturezas e a Paixão de Cristo ............................................63
2.2 - Teologia da cruz em perspectiva trinitária .........................................................................68
2.2.1- O Deus crucificado ...............................................................................................71
2.2.2- O diálogo entre Doutrina Trinitária e Teologia da Cruz........................................73
2.2.3- A crise de relevância e de identidade do Cristianismo ........................................75
2.3 - História e ressurreição ........................................................................................................76
2.3.1- O significado da cruz do Cristo Ressuscitado........................................................79
7
2.3.2- O Espírito e a cruz.................................................................................................81
2.3.3- A transfiguração do Espírito ................................................................................85
Conclusão ...................................................................................................................................88
Capítulo III: A PARTICIPAÇÃO HUMANA NO MISTÉRIO TRINITÁRIO REVELADO NA CRUZ..... 90
Introdução ..................................................................................................................................90
3.1- A experiência da vida humana no pathos de Deus..............................................................90
3.1.1- A apatia de Deus e a liberdade do homem .........................................................92
3.1.2- O eterno sacrifício do amor .................................................................................94
3.1.3- A plenitude da vida na história trinitária de Deus ...............................................96
3.2 - A teologia política da cruz ..................................................................................................98
3.2.1- Círculos viciosos da morte .................................................................................101
3.2.2- Caminhos para libertação...................................................................................105
3.2.3- As transformações de Deus nas libertações do homem ...................................107
3.3 - Perspectivas escatológicas da cruz ...................................................................................110
Conclusão..................................................................................................................................114
CONCLUSÃO.......................................................................................................................116
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 120
8
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa busca identificar e compreender a cruz de Jesus Cristo em
perspectiva trinitária no pensamento do teólogo alemão Jürgen Moltmann. Em sua obra O
Deus crucificado, descreveu a cruz como princípio do entendimento e reconhecimento de sua
teologia. Este princípio se baseia na afirmação de que a divindade de Deus revela-se no
paradoxo da cruz. Moltmann não parte das necessidades e perguntas dos seres humanos, pois
vê nelas o perigo de nivelar o escândalo da cruz. Deste modo, a cruz não confirma nossas
necessidades, nossos desejos e interesses, mas os critica. Por isso, o ponto de partida para
qualquer doutrina da redenção precisa ser a cruz.
Ressaltar a “fé na cruz”, não como uma glorificação da crueldade e do sofrimento, mas
como o lugar onde Deus transforma o ódio em sinal de sua disposição de perdoar. Por meio
da elaboração de uma teologia da cruz como proposta de sentido e com sentido a partir da
vinda do Reino de Deus, Moltmann apresenta um possível caminho para a uma conversão da
teologia cristã. Na cruz o sofrimento é visto como não sendo uma contraposição a Deus, pois
o ser de Deus está no sofrimento. Uma vez que, Deus só se manifesta como “Deus” no seu
contrário, na impiedade e no abandono. Ele se manifesta na cruz do Cristo abandonado por
Deus. Sua misericórdia se manifesta nos pecadores. Sua justiça se manifesta nos injustos e
naqueles que não têm direitos e sua eleição gratuita, nos condenados.
Dissertar acerca do tema trinitário é buscar investigar o mistério infinito da própria
existência. Deus em si, Deus conosco, Deus em nós, Deus na vida, Deus na história. Deus se
revelando na criação, na Cruz de Cristo, na cruz dos povos crucificados1 e na glória do seu
Espírito, primícia da realidade vindoura e plenitude da vida eterna. Todas se configuram
realidades intrínsecas à sua natureza singular. Porém, tal desafio não deve ser apresentado
como obstáculo à pesquisa séria e responsável, mas, resguardadas as naturais dificuldades
advindas da complexidade do próprio objeto de estudo, a busca pela pertinência de
significados para a doutrina trinitária já justifica todo e qualquer esforço.
1 MURAD, Afonso. Este cristianismo inquieto: a fé cristã encarnada, em J. L. Segundo. São Paulo: Loyola,
1994, p. 58. Conforme o autor, citando V. Fuller, no sofrimento dos pobres descobre-se também o rosto do Deus
libertador. Ver também: SOBRINO, Jon. O princípio misericórdia: descer da cruz os povos crucificados.
Petrópolis: Vozes, 1994, p. 86-90. Para o autor, os povos crucificados são hoje uma espécie de novo servo
sofredor de Javé.
9
A teologia da cruz de Moltmann constrói uma compreensão de Deus que é
notavelmente tradicional em alguns aspectos e inovadora em outros. Percebe-se o seu sentido
tradicional numa elaboração teológica inteiramente trinitária. Na modernidade, muitos
teólogos minimizaram o papel da trindade em seu pensamento. Moltmann, ao contrário,
compreende a trindade como essencial para a fé cristã e acredita que uma tarefa que confronta
os teólogos contemporâneos é construir uma teologia cristã que seja relevante para a vida das
pessoas, mas, que preserve sua identidade como cristãos. Na perspectiva de Moltmann, às
vezes os teólogos escolhem uma e excluem a outra. Neste sentido, o autor afirma que uma
teologia da cruz capta ambos os aspectos, pois a teologia cristã encontra sua identidade na
cruz de Cristo e sua relevância na esperança.
A presente pesquisa segue as linhas gerais de O Deus Crucificado (1972) e Trindade e
o Reino de Deus (1980) e como complemento utiliza as obras que integram o primeiro
período do pensamento moltmanniano, no qual constitui a base e o germe de sua teologia:
Teologia da Esperança (1966), e A Igreja força do Espírito (1975). Em seguida trabalha a
sistematização do tema, com as obras que compõem o segundo período teológico do autor.
Devido à vasta bibliografia de Moltmann, utilizamos aquelas que mais elucidam o tema
trinitário e contemplam seu desdobramento. Na tentativa de estabelecer diálogo buscamos
contribuições nas obras de outros autores que comentam o pensamento de Moltmann no que
se refere à revelação da Trindade, para melhor compreensão de seu pensamento, pelo viés de
outras interpretações.
O primeiro capítulo apresenta os elementos preliminares da doutrina trinitária e
aproximação à teologia de Moltmann. Parte da biografia do autor e da história da formulação
do dogma trinitário, Na busca de compreender o teólogo ocidental contemporâneo
influenciado pela teologia cristã ortodoxa oriental e movido pelo propósito de desenvolver a
teologia em trono da doutrina da Trindade. Deste modo, percebe-se que o tema trinitário não
incide aleatoriamente em sua teologia. É fruto da experiência que o autor faz ao longo de sua
caminhada histórico-teológica com suas vivencias e formulações teológicas. A doutrina
trinitária desenvolvida por Moltmann se fundamenta na história da salvação. As três pessoas
da Trindade são necessárias para essa história da salvação, que tem na cruz seu ponto de
convergência. Nesse evento e em nenhum outro o Pai entrega o Filho, que sofre, morre e é
separado do Pai. Entretanto, o Espírito os une durante essa ruptura na relação. “Em termos
10
trinitários, o Pai deixa o Filho sacrificar-se através do Espírito. A cruz está no centro da
Trindade”2.
No segundo capítulo desenvolve-se a teologia da cruz na qual Moltmann apresenta a
cruz como evento trinitário. Na cruz manifesta-se a relação do Filho com o Pai. Na cruz
realiza-se plenamente o que começou na encarnação, a saber, que o Pai doa o Filho aos seres
humanos (cf. Jo 3,16). E desde a cruz é-nos dado o dom do Espírito Santo, que é derramado
do lado aberto de Jesus (cf. Jo 19,34). Segundo Moltmann a cruz pode ser interpretada
corretamente só no sentido trinitário.
O evento trinitário da cruz atrai o ser humano para seu interior. Da entrega do Filho
pelo Pai e do Filho ao Pai emana o Espírito “que justifica os sem-Deus, enche de seu amor os
abandonados e devolverá até mesmo a vida aos mortos, pois até mesmo o fato de que estão
mortos não pode excluí-los daquele evento na cruz, mas a morte em Deus inclui também a
eles”3. A cruz revela um Deus que ama e que, por isso, é vulnerável e sofre pelos seres
humanos. Deus não está entronizado acima do mundo, mas se deixa envolver no sofrimento
do mundo. Portanto, a cruz liberta o ser humano da alienação e tutela política.
O terceiro capítulo apresenta elementos da participação humana no mistério trinitário
revelado na cruz. Moltmann mostra que a cruz nos possibilita tornar-se verdadeiramente
humanos. Ele aduz o exemplo dos ídolos e falsos deuses que o ser humano cria para proteger
seu equilíbrio psíquico. Com ídolos da posse, o ser humano reforça sua máscara para desviar-
se de sua verdade, que lhe seria insuportável. Mas os ídolos que deveriam proteger o ser
humano arremetem-no num constante medo de que poderiam ser despedaçados. O ser é
libertado desse medo pelo Deus crucificado que é, ele mesmo, vulnerável e fraco. O Deus
crucificado liberta o ser humano para ser um humano vivo, vulnerável, capaz de amar e de
deixar-se amar – um ser humano “simpatético”.
2 MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia. Petrópolis: Vozes, 2000,
p. 83. 3 Idem. O Deus crucificado: questões modernas em torno de Deus e da história da Trindade, Concilium,
Petrópolis. v. 76, n. 6, 1972, pp. 724-734.
11
A cruz é revelação do Deus verdadeiro e libertação do ser humano para a humanidade.
Por isso, Moltmann desenvolve não só uma teologia da cruz, mas também uma antropologia
crucis, uma antropologia da cruz que reconhece a natureza do ser humano ao olhar para a cruz
de Cristo.
12
CAPÍTULO I: OS ELEMENTOS PRELIMINARES DA DOUTRINA TRINITÁRIA E
APROXIMAÇÃO À TEOLOGIA TRINITÁRIA DE JÜRGEN MOLTMANN
Introdução
Quando nos debruçamos sobre o pensamento moltmanniano percebemos que o tema
trinitário não incide aleatoriamente em sua teologia. É fruto da experiência que o autor faz ao
longo de sua caminhada histórico-teológica com suas vivências e formulações teológicas.
Da experiência nos campos de concentração na Bélgica e na Escócia surge uma
esperança que não teme o futuro, mas que o aguarda em expectativa: no fim está Deus.
Marcada de esperança, a Escatologia anuncia que o futuro de Cristo, estabelecido pela
ressurreição, será também o futuro da história. Porém, a esperança que possibilita a crença no
futuro redimido, é também a esperança que inquieta, desinstala e contradiz o presente de
sofrimento e morte. É a esperança que evoca a cruz e encontra nela o Deus solidário com o
que sofre e morre e que se coloca contra toda estrutura geradora de sofrimento e opressão.
Desse modo, a Cristologia se enche de esperança e anuncia que o Ressuscitado é o que foi
crucificado; desta forma, a esperança escatológica, que aguarda o futuro em antecipação,
estimula uma esperança cristológica que encarna o presente e o desafia com os valores do
reino de Deus. Nesta perspectiva nasce a Teologia da Cruz.
Moltmann4 afirma que a Teologia da Esperança o levou a empenhar-se intensamente
na formulação de um conceito trinitário de Deus, cujo cerne é o sofrimento e a paixão do
Cristo Crucificado. Diante de fortes objeções modernas acerca da existência de Deus, ele foi
capaz de assumir uma esperança transformadora da realidade e estabelecê-la a partir de uma
inspiração trinitária. A Criação é obra de um Deus triuno que a encaminha à sua plenitude.
Por isso, torna-se importante trabalhar os principais elementos que estruturam e integram o
pensamento trinitário de Moltmann, situando-o no aspecto mais amplo da Teologia.
1.1- Biografia do autor
Jürgen Moltmann nasceu a 8 de abril de 1926 em Hamburgo, região norte protestante
da Alemanha. Filho de uma família protestante liberal, cresceu tendo acesso a poetas e
4Cf. Jürgen MOLTMANN, Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã. Teológica, São Paulo: Loyola, 2005, p. 28.
13
filósofos do Idealismo alemão como Lessing, Goesthe, Nietzche5. Aos dezesseis anos era
estudante de Matemática e Física Atômica, admirador de Max Planck e Albert Einstein com
sua Teoria da Relatividade. A Bíblia e o Cristianismo não lhe eram familiares e tão pouco a
Teologia desempenhava papel importante na sua vida. Mas seus estudos foram interrompidos
quando subitamente foi alistado, aos dezessete anos, em 1943, como auxiliar da Luftwaffe, a
Força Aérea Alemã. Hamburgo foi bombardeada em Julho do mesmo ano na Gomorrah
Operation, pela Royal Air Force. Cerca de quarenta mil pessoas morreram neste bombardeio.
Moltmann e seus companheiros foram destacados para uma bateria antiaérea no centro da
cidade. Neste confronto somente ele sobreviveu, assistindo ao amigo ser estilhaçado. Nesta
noite ele mesmo recorda como chorou e gritou a primeira vez por Deus: “Meu Deus, onde
estás”6? Na segunda Guerra Mundial, Moltmann foi recrutado e levou consigo os poemas de
Goethe e Fausto como também o Zarathustra, de Nietzsche, como sustento intelectual. Serviu
como soldado por seis meses, rendendo-se na Bélgica, em 1945, para o primeiro soldado
britânico que ele encontrou em sua área. Por três anos, ficou preso confinado ao campo de
guerra na Bélgica, Escócia e Inglaterra7. Moltmann relata sua experiência de vida:
Em 1944, com a idade de dezessete anos, fui mandado para a guerra. Colocaram-me
num campo de prisioneiros juntamente com massas de meu povo. Foram três anos
de trabalho forçado. Perdemos os nomes e nos transformamos em números. Ficamos
órfãos de lar e de pátria; perdemos a esperança, a autoconsciência, e a própria
comunidade. Experimentamos, então, o que poderíamos chamar de ochios, ou seja, a
massa humana desorganizada, prisioneira, sem educação, sofredora, sem face, sem
liberdade e sem história [...].8
Este período de sofrimento e injustiça deixará uma marca indelével em sua teologia
do reino de Deus bem como na audaz concepção do patripassionismo9 da sua teologia
trinitária. Os remorsos de Buchenwald, de Bergen-Belsen e de Auschwitz fizeram-no perder a
esperança na cultura germânica. A teologia da justiça transmutada em teologia da esperança
em tempos de sofrimento levará Moltmann ao diálogo com Bloch na reconstrução da teologia
5 SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia. São Paulo: Paulus, 2009, p. 14.
6 Ibid., p.20.
7 SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 14
8 MOLTMAN, Jürgen. Paixão pela vida. ASTE, São Paulo, 1978, p.15.
9 MOLTMAN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, 2ªed. Petrópolis: Vozes,
2000, p.36: o autor propõe uma nova reflexão para reconhecer o próprio Deus na paixão de Cristo e descobrir
essa paixão de Cristo em Deus mesmo. Em face das numerosas tentativas de conciliar cristologicamente apatia e
paixão, no intuito de justificar o axioma da apatia, Moltmann parte não do axioma da apatia, mas do axioma da
paixão de Deus, para assim entender o sofrimento de Cristo como sendo o sofrimento do Deus passível [grifo
nosso].
14
do padecimento. Essa experiência o fez afirmar que a fé cristã combina com a experiência de
uma determinada situação de vida não só privada, mas também social. Trata-se de uma
experiência de natureza coletiva. Nesse sentido, se coloca a questão relevante para Moltmann:
é sempre um problema falar de Deus depois de Auschwitz. A problemática é ainda maior
quando se trata de como falar de Deus depois de Auschwitz?10
Será esta preocupação que
perpassará seu pensamento teológico.
Ainda prisioneiro, o jovem Moltmann e seus companheiros receberam de um capelão
americano uma pequena cópia do Novo Testamento e dos salmos, o que o fez encontrar a fé
cristã:
Eu pessoalmente mergulhei fundo, quando na prisão nas mãos de Deus. A noite
escura das trevas divinas está na minha alma. Dessa necessidade o Cristo crucificado
me deixou livre: quando de sua suplica registrada no Evangelho de Marcos: “Meu
Deus, por que me abandonaste?” Então tomei conhecimento de que ali estava
alguém que podia te entender. Alguém que, em seus temores, estava bem perto de ti.
Ali estava alguém que em sua ressurreição, te leva consigo para a vida verdadeira. O
Crucificado de Deus que experimentou as trevas divinas para a minha redenção.11
Para Moltmann12
, a guerra e o pós-guerra representaram justamente as primeiras
oportunidades de se colocar seriamente a pergunta sobre Deus, que, até então, não o havia
preocupado. No campo de concentração ele experimentou o colapso de suas certezas e neste
colapso encontrou uma nova esperança na fé cristã:
Nos anos em que fui prisioneiro de guerra, de 1945 a 1948, a história bíblica da luta
de Jacó com o anjo do Senhor no Jaboc sempre foi para mim a história de Deus na
qual reencontrei minha própria pequena história de ser humano. Entrávamos nos
pavores do fim da guerra e na miséria insolúvel das prisões do pós-guerra e
lutávamos com Deus para sobreviver nos abismos do absurdo e da culpa. Saímos
daqueles anos, “mancando de uma coxa”, porém abençoados [...].13
Moltmann fala de uma “transformação imerecida” da qual ele participou em sua
vida. Essa transformação pode ser entendida como a metanóia que ele vivenciou em situação
de muitas privações e humilhações. A transformação aconteceu dentro de duas perspectivas:
10
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 14. 11
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e critica da teologia cristã. Santo
André: Academia Cristã, 2011, p.14. 12
Idem, Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia cristã,
p.12. 13
Idem, A Fonte da Vida. O Espírito Santo e a Teologia da Vida. São Paulo: Loyola, 2002, p. 9-10.
14
15
15
graças a Bíblia e aos encontros com pessoas. Ele descreve essas transformações em cinco
momentos, dos quais apresentamos dois deles:
No campo de trabalhos da Escócia pela primeira vez na vida, recebi, como outros
detentos surpresos, uma bíblia de um bem-intencionado capelão militar. Muitos
teriam preferidos cigarros. Eu, porém, lia sem compreender muito, até que
encontrei os salmos de lamentação. O salmo 39 me cativou: “Calei-me, mas (?)
do que convinha. Minha dor tornou-se insuportável... A duração de minha vida é
quase nada diante de ti... Ouve a minha oração, Senhor, e meu grito, e presta
ouvido às minhas lagrimas, não permaneça surdo, pois não passo de um migrante
junto a ti, um hospede como todos os meus antepassados”. Eram palavras que
brotavam de minha alma e a atraiam para Deus. Depois cheguei à história da
paixão. Quando li o grito de Jesus ao morrer: “Meu Deus, por que me
abandonastes?”, soube com certeza: está ali o único que me compreende.
Comecei a compreender o Cristo atribulado, porque sentia que era compreendido
por ele: O irmão divino na aflição que leva consigo os cativos em seu caminho
para a ressurreição. Recobrei o ânimo de viver. Fui tomado de uma grande
esperança. Também vivi paz quando outros foram “repatriados” e eu não. Desde
então nunca mais se apartou de mim essa antiga comunhão com Jesus, o irmão no
sofrimento e o redentor da culpa. Nunca tomei uma “decisão” por Cristo, como
muitas vezes se exigia. Com tudo tenho certeza de que naquele tempo e naquele
lugar ele me encontrou no buraco negro de minha alma. O abandono de Cristo por
Deus me mostrou onde Deus está, onde ele estava comigo em minha vida.14
O segundo fator foi a cordialidade com que nos tratavam os escoceses e ingleses,
antigos inimigos. Em Kilmarnock, os mineiros e suas famílias nos acolheram com
uma hospitalidade que nos envergonhou profundamente. Não ouvíamos
acusações. Não nos atribuíam nenhuma culpa. Éramos aceitos como seres
humanos, embora não passássemos de números, e ostentássemos nas costas as
lapelas de prisioneiros. Experimentamos perdão da culpa sem confissão de culpa
de nossa parte. Foi isso que nos possibilitou viver com o passado de nosso povo e
com as sombras de Auschwitz, sem reprimi-las e sem endurecermos. Por longo
tempo, continuei a me corresponder com a família Steele.15
A) Formação teológica
O processo de formação teológica de Moltmann foi um espaço eclético que
contribuiu significativamente para seu crescimento. Os estudos oferecidos em Norton Camp,
apesar de todas as limitações pedagógicas e metodológicas do ensino, transformaram-se em
um espaço de benção e crescimento para sua maturidade teológica e pastoral. Ele descreve em
três momentos como se deu o processo de educação naquele espaço:
14
SILVA, Geoval Jacinto da. Jorge Schutz DIAS, Jürgen Moltmann: teólogo e pastor. Revista Caminhando, São
Paulo, v.13, n.22, jul-dez, 2008, p. 24-30. 15
MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida. O Espírito Santo e a Teologia da Vida, p.16-17.
16
1. Um espaço de formação como mosteiro. Para nós Norton Camp era uma espécie
de clausura de mosteiro, excluded from time and world (excluído do tempo e do
mundo), como escreveu Gerhard Noller em 1948 na carta de despedida. O dia
começa a seis e meia com um sinal de trompete (porque quando fomos presos
nos tiraram os relógios) e terminava às dez e meia da noite, quando os ingleses
desligavam as luzes. Subitamente tínhamos tempo, muito tempo e, totalmente
famintos de atividade intelectual, nos vimos diante de uma maravilhosa
biblioteca que a Associação Cristã de Moços havia instalado naquele tempo. Li
de tudo: poesias e romances, matemática e filosofia e grandes quantidades de
teologia, praticamente de manha até a noite. As riquezas encontradas nos planos
de ensino das disciplinas.
2. Os planos eletivos dos semestres eram ricos e nós, afinal, queríamos aprender
tudo. Estudei hebraico com Waletr Haaren e Gehard Noller. Gehard Fredrich
nos introduziu no novo testamento. Depois vieram os visitantes: Anders Nygren
ficou quatorze dias e nos ensinou teologia sistemática, o professor Soe, de
Copenhague, fez o mesmo em relação a ética cristã. Werner Milch, emigrado,
mas tarde professor em Marbug, apresentou-nos de forma contagiante uma
história da literatura do século XX. Fritz Blanke veio de Zurique e Matthew
Black, da Escócia. Tempos depois, voltei a encontrá-lo em St. Andrews. Sem
dúvida éramos um acampamento “vitrine”, e não sem motivo. Com tudo
também fomos ricamente presenteados e honrados pelas visitas e palestras de
Birger Forell, John Mott, Willem Visser`t Hooft, Martin Niemoller e outros.
3. A recordação das pregações. Não por último, lembro-me das pregações
impactante dos nossos pastores no acampamento, Rudolf Halver Wilhelm
Burckert foram as primeiras pregações que ouvi na minha vida e várias delas eu
ainda hoje seria capaz de repetir, especialmente a mensagem de Halver sobre a
magna peccatrix (grande pecadora, de 10 de agosto de 1947). Vejo a minha
frente a longa fila de presos no caminho da igreja de Cuckney ou da igreja
metodista de Frank Baker, a quem pude reencontrar mais tarde na Duck
University, em Durrham (EUA).16
Moltmann tem muita facilidade de assimilar os sinais do tempo de Deus para sua
vida e transformá-los em momentos de graça, vida e esperança. A partir da sua visão do vale
de Jaboc (cf. Gn 32,22-31), ele caminha como que marcado, não para morrer, mas marcado
para a vida, como ele mesmo retrata:
O que no início parecia ser um destino cruel tornou-se para nós uma benção de
riqueza imerecida. Começou na noite da guerra, mas quando chegamos em Norton
Camp, raiou o sol para nós. Chegamos com almas feridas, e, quando saímos, “minha
vida foi salva”. Sem dúvida não vimos, como Jacó naquele lugar no Jaboq, “Deus
face a face”. De acordo com a tradição bíblica, isso será reservado apenas a poucos
“amigos de Deus”. A todos os demais, porém, isso foi prometido somente para o
16
SILVA, Geoval Jacinto da; DIAS, Jorge Schutz. Jürgen Moltmann: teólogo e pastor, p.27.
17
grande dia da ressurreição, quando veremos “face a face” e “conheceremos como
somos conhecidos” (1 Cor 13, 12). Ocorreu o inverso: foi Deus quem olhou para nós
com os “olhos radiantes” de sua alegria eterna. A bênção e o Espírito da vida tem
sua origem no “olhar o juízo de Deus” (bester panim) e a rejeição no “olhar desviado
de Deus”. Aquilo que vivenciamos foi, para muitos de nós, a mudança do “rosto
oculto” para a “face resplandecente de Deus”. Experimentamos sua ocultação e sua
distância com dor e sentimos que ele olhou para nós com “olhar resplandecente”, e
sentimos o calor de seu amor. Após cinquenta anos, reunimo-nos aqui para enaltecer
o Deus oculto e mesmo assim, tão misericordioso, por tudo que experimentamos
dele. Comparecemos também para lembrar com gratidão as pessoas que vieram ao
encontro de nós, prisioneiros, com tanta disposição de perdoar e com tanta
hospitalidade. Jamais esqueceremos Birger Forell e John Barwick, que organizaram
Nort Camp, e continuamos devedores da ACM (Associação Cristã de Moços), que
organizou aquela generosa ajuda aos prisioneiros de guerra, que nos restaurou.
Encerro com palavras do Salmo 30.12s, confessando:
“Senhor, transformastes meu luto em dança,
Meu traje de luto mudaste em traje de festa.
Por isso a alma te cante sem cessar.
Senhor meu Deus, eu te darei graças para sempre”17
.
Tal momento histórico é decisivo para Moltmann, impregnando e afetando
irreversivelmente sua visão de mundo. Desta forma, dos escombros da Segunda Guerra
Mundial nasce a esperança em um futuro diferente, novo e redimido. Nasce o teólogo da
esperança que aguarda pelo futuro de Deus18
, estabelecido sobre promessas de restauração de
um mundo ameaçado pela morte.
Para tentar compreender o poder da esperança ao qual devia a sua vida, Moltmann
começa uma significativa carreira teológica. Em 1948, regressou à Alemanha, aos vinte e dois
anos, quando iniciou uma teologia dos chamados “Sobreviventes desta geração”. Tinha
esperança que o exemplo da Bekennende Kirche (Igreja confessante, não estatal) durante a
guerra fosse implementado em estruturas eclesiais. No entanto, ele foi desiludido, juntamente
com seus companheiros, ao assistir a um reavivamento dos modelos culturais anteriores à
guerra para tentar fazer um parêntese deste período difícil da história do seu país, como se
nada tivesse acontecido ou como se fosse possível e preferível esquecer.
Moltmann iniciou os estudos na Universidade de Göttingen, uma instituição em que
os professores seguiam Karl Barth e estavam empenhados na Bekennende Kirche da
Alemanha, pois as igrejas nacionais teriam calado ou até mesmo aplaudido durante o tempo
de Hitler. Esta Igreja Confessante foi a única que lhe mereceu respeito, pois foi a única que se
opôs ao III Reich com as declarações teológicas de Barmen, em 193419
, para libertar a Igreja
17
MOLTMANN, Jürgen. A Fonte da Vida. O Espírito Santo e a Teologia da Vida, p.16-17. 18
Cf. Idem, Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma escatologia, p.
27.
19 Cf. MONDIN, Batista. Os grandes teólogos do Século Vinte. São Paulo: Teológica/ Paulus, 2003.p. 28: “Em
Barmen, em 31 de maio de 1934, Barth e Niemoeller redigiram o documento decisivo, que na história da Igreja
18
da tutela do Estado. A Igreja Confessante organizou e fundou a Kirchliche Hochschule de
Wuppertal, em 1935, (onde Moltmann viria a lecionar) para possibilitar uma Teologia não
pública, livre da influência do Estado. Por isso, foi fechada no dia seguinte à sua fundação.
Os Deutschen Christen (cristãos nacionalistas) não se importaram muito também com a
demissão de Paul Tillich e Karl Barth da docência da Universidade de Bonn pelo Partido
Nacionalista (nazi), em 1935, por não se submeterem ao juramento de fidelidade ao Estado
como funcionários de Hitler. A Kirchliche Hochschule foi apenas reaberta em 194520
.
Todavia, Moltmann, sentiu necessidade de ultrapassar o entendimento estreito da
teologia dialética de Karl Barth. Privilegiou a então “nova ortodoxia” dos Solus Christus ao
tentar oferecer respostas às mudanças políticas e culturais do período pós-guerra,
distanciando-se dos clássicos esquemas de relações entre “trono e altar”, “fé e a burguesia” ou
entre “religião e o capitalismo”. Moltmann tornou-se crítico de Barth com esta “ortodoxia
Barmen” e com a ajuda do teólogo holandês Arnold van Ruler na sua teologia do apostolado.
A partir de Ernst Wolf e das Cartas da prisão, de Dietrich Bonhoeffer, publicadas em 1951,
desenvolveu sua preocupação pela ética social. Neste sentido, foi influenciado também por
Lutero, Hegel e por Hans Joachim Iwand, profundo conhecedor da ideologia da Reforma.
Este último conseguiu convencê-lo do poder libertador da doutrina reformada da justificação
e da teologia protestante da cruz.
Seus primeiros estudos teológicos transcorrem entre os anos de 1948 a 1952,
passando, logo em seguida, ao exercício da atividade ministerial. Durante seis anos (1953 –
1958), Moltmann exerce atividades pastorais, dedicando-se, porém, ao ensino teológico a
partir do ano de 1957, quando assume as cátedras de História do Dogma e Teologia
Sistemática na Universidade de Bonn.
A partir de suas experiências encontram-se o material biográfico e social que darão
origem à sua obra Teologia da Esperança, publicada em 1964. Outro fator determinante para
seria recordado com o nome de “Confissão de fé de Barmen” e que já tem o seu lugar entre os textos simbólicos
da Igreja Evangélica. Naquele admirável documento, entre outras coisas, podemos ler: “Segundo o testemunho
das Escrituras, Jesus Cristo é a única Palavra de Deus. Unicamente a ela devemos ouvir e somente a ela devemos
confiança e obediência na vida e na morte. Repudiamos a falsa doutrina pela qual a Igreja poderia e deveria
reconhecer, como fonte de sua mensagem, além e ao lado dessa única Palavra de Deus, outros eventos, outras
forças, personalidades e verdades como revelações de Deus”. 20
MOLTMANN, Jürgen. Experiências de reflexão teológica. Caminhos e formas da teologia cristã. . São
Leopoldo: Unisinos, 2004, p.19.
19
o surgimento da Teologia da Esperança é o trabalho de Ernst Bloch21
, que o levaria a
formular duas perguntas básicas: a) por que a Teologia tem negligenciado o tema da
esperança? b) e o que resta, no Cristianismo atual, do espírito de esperança que animava o
Cristianismo primitivo?
Para Bloch22
, a tese marxista segundo a qual o homem se encontra em estado de
alienação, constitui um dos fundamentos de sua filosofia da esperança. No entanto, este
estado de alienação não se dá apenas por razões econômicas, como apresentava Marx, mas
também, por razões ontológicas. Isso significa que um homem, à semelhança de tudo criado, é
essencialmente incompleto, abertura que decorre de uma condição de ainda-não, mas que
tende para o possível que lhe está adiante, o futuro-não-ainda-tornado-tal. Nestes termos, o
princípio esperança de Bloch apresenta-se como herdeiro de todas as esperanças humanas,
assumindo contornos de uma metarreligião23
.
Através do diálogo com a filosofia de Bloch, Moltmann estabelece quatro pontos do
pensamento cristão que oferecem resistência de adequação ao que ele entende ser um
princípio escatológico ateu. Estes são: a) o fundamento da esperança; b) o reino de Deus; c) a
escatologia e a ressurreição dos mortos; d) a esperança cristã como força ativa.
Para Moltmann24
, o fundamento da esperança cristã reside na promessa de Deus e no
futuro de Cristo. O que está reservado para o homem e o que ele finalmente se tornará
21
SILVA, Geraldo Cruz da. A Trindade libertadora: um estudo da teologia trinitária de Jürgen Moltmann, em
sua obra: Trindade e Reino de Deus. Dissertação de Mestrado-FAJE, Belo Horizonte, 2006, p. 12. Sobre
ERNEST BLOCH (1885 – 1977) - Pensador alemão, de origem judaica, considerado um dos maiores filósofos
revisionistas do Marxismo. Professor da Universidade de Leipzig exilou-se nos Estados Unidos em 1933,
regressando à Alemanha Oriental em 1948 e radicando-se depois na Alemanha Ocidental (1958), onde foi
professor na Universidade de Tübingen. O Marxismo de Bloch é influenciado pelo Idealismo Alemão, sobretudo
hegeliano, e pela tradição mística judaica e cristã. O principio fundamental da sua filosofia é a esperança
(Hoffnung). Vê a história como algo que vai se fazendo de acordo com esse espírito e define a consciência como
“Consciência antecipadoura”. Em sua revisão do Marxismo, Bloch propõe dois pontos fundamentais a serem
reconsiderados: a) abandono do princípio da dialética que ele substitui pelo da possibilidade (ou do “ainda-não”
como ele prefere); b) centra sua interpretação da historia numa nova concepção do homem, e não no estudo dos
fenômenos econômicos, como fizera Marx. Obras principais: Sobre o espírito da utopia (1918) e O princípio
esperança (1954-1959). 22
Cf. MONDIN, Batista. Curso de filosofia, Os filósofos do ocidente. v.1. São Paulo: Paulinas, 1983. p.242-248. 23
CF. BLOCH, Ernest. O Princípio Esperança, Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p.203-205. Bloch dialoga
diretamente com as definições da matéria formuladas por Aristóteles, isto é, que a matéria mecânica (existência
determinante) não representa toda dimensão da matéria. Este ainda conceberia o que chamou de matéria
interferente (totum utópico), a que possui o potencial e o lugar das condições contínuas; a matéria concebida
como possibilidade (sendo-em-possibilidade ou útero da fertilidade) e não como fim em si mesmo. 24
CF. MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.256-258. Moltmann esclarece que o futuro de Cristo [grifo nosso] é o conhecimento do
futuro oriundo da promessa, logo, conhecimento em esperança, e, por isso, prospectivo e antecipatório, como
também provisório e fragmentário, mas aberto para compreender as tendências e latências que projetam o evento
Cristo em sua morte, ressurreição e aparições pós-pascais. Promessa cujo conteúdo transparece seus traços já no
Antigo Testamento, mas cuja forma é determinada pela pregação, sofrimento e morte de Cristo.
20
ocorrerá por obra do Deus transcendente. Bloch, porém, afirma em seu escatologismo ateu,
que o homem não se transformará em nada que lhe seja projetado de fora, mas naquilo em que
é misterioso nele mesmo e que no fim se descobrirá. Neste caso, o fundamento da esperança
estaria na própria esperança e, por isso mesmo, passível de ser considerada utópica.
Na perspectiva do reino de Deus, a esperança cristã o define como reino no qual a
morte será definitivamente tragada e não apenas como a pátria da identidade ou da
solidariedade, na qual o homem alienado de Bloch poderá encontrar-se consigo. O reino de
Deus é um reino escatológico, cuja consumação se dará por exclusiva iniciativa e
competência trinitária.
O tema da escatologia e da ressurreição dos mortos suscita outra dificuldade. Para
Moltmann, a escatologia cristã espera a ressurreição dos mortos. Uma ressurreição que
reintegra a morte à vida, como creatio ex nihilo. Para Ernest Bloch, porém, as queixadas da
morte atingem apenas a casca da existência humana, quer dizer, o ser que existe, mas não o
núcleo obscuro, isto é, o ser que existirá. Esta postura ante a condição existencial do homem
frente à morte, em Bloch, assemelha-se a uma doutrina da imortalidade da alma na qual há
uma distinção entre o eu empírico e o eu transcendental25
.
Por fim, coloca-se a questão da natureza da esperança cristã como uma possível força
ativa. Ernest Bloch acusa a esperança cristã (como as demais de cunho religioso) de ser uma
esperança, cuja certeza consiste em mera segurança supersticiosa e mitológica, uma vez que
se estabelece a partir da hipótese Deus. Deste modo, apenas a mensagem do princípio
esperança seria capaz de trazer o ser humano comprometido com o futuro. Moltmann afirma
que a esperança cristã, embora seja uma certeza confiante (Zuversicht), estabelecida pela fé,
não pode ser confundida com uma tranquila segurança (Sicherheit). Ela se identificará mais
com um protesto contra a miséria, a injustiça, o pecado e a morte. Estará mais próxima da
cruz (donde provém), das realidades crucificadas, reverberando sua insatisfação e inquietação
até que a promessa de Deus (confirmada na cruz de Cristo) se cumpra em benefício da justiça,
da verdade e da vida de toda a sua criação.
Deste modo, pode-se concluir que a Teologia da Esperança26
é devedora do
Princípio Esperança de Ernest Bloch. Moltmann não nega ou dissimula isto, antes demonstra
com veemência sua inquietação pela pouca influência que o tema da esperança escatológica
passou a ter no pensamento cristão ao longo da história. Moltmann soube explorar toda força
25
GIBELLINI, Rosino. Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 1998, p. 291. 26
Moltmann ficou conhecido com a publicação do seu livro a “Teologia da Esperança” (1964) com o qual inicia
a construção de uma teologia da cruz como proposta de sentido a partir da vinda do reino de Deus.
21
que o Princípio Esperança exerce, tanto sobre o futuro que se aguarda quanto sobre o
presente que se busca transformar, inclusive politicamente. Por outro lado, ele soube também
definir os limites dessa influência. Permanece uma diferença fundamental entre a Teologia da
Esperança e o Princípio Esperança. Enquanto o Princípio Esperança (ou filosofia da
esperança) admite apenas um futuro que emergirá da própria matéria por extrapolação das
tendências intrínsecas da realidade-matéria (futuro do futuro), a Teologia da Esperança, por
sua vez, reafirma o futuro como advento (futuro do advento); o futuro que vem, não por
extrapolação, mas por antecipação, isto é, no evento Cristo, configurado definitivamente em
sua ressurreição, o futuro se antecipa como dádiva divina de vida, renovação e esperança27
.
O desenvolvimento do pensamento teológico de Moltmann pode ser estruturado a
partir de três fases: A primeira, expressa diretamente os anseios políticos-socias dos anos 60 e
70. Neste período suas obras principais são: Teologia da Esperança (1964), Crítica à religião
política (1970), O Deus Crucificado (1972) e Igreja no Poder do Espírito (1975). A segunda
fase dá-se na década de 80, com as obras denominadas contribuições à teologia: Trindade e
Reino de Deus (1980), Deus na Criação (1985), O Caminho de Jesus Cristo (1989). A
terceira, reflete as inquietações dos anos 90: Espírito da Vida (1991), A Vinda de Deus
(1995), A Fonte da Vida (1997) e, finalmente, Experiências de Reflexão Teológica (1999),
obra que trata mais detidamente do seu método teológico.
O método utilizado nesta dissertação foi o do estudo analítico e hermenêutico de suas
obras, sobretudo, as que expressam a originalidade de Moltmann e sua interpretação da
teologia trinitária: O Deus Crucificado (1972), Trindade e Reino de Deus (1980) e O
Caminho de Jesus Cristo (1989). Iniciamos nossa pesquisa com um percurso histórico,
apresentando como a questão trinitária foi sendo refletida e afirmada na história da Teologia.
Em seguida, ressaltamos a contribuição que a Teologia Protestante de Jürgen Moltmann traz
e que, a nosso ver, constituiu uma novidade importante que configura de forma diferente o
pensar teológico hodierno.
27
GIBELLINI, Rosino. Teologia do Século XX, p. 291.
22
b) Influências
Como já abordamos, Moltmann foi afetado radicalmente por Ernest Bloch. Assume
deste filósofo termos como prioridade e primado que, no caso, servem para articular a relação
entre socialismo e democracia28
. Deste autor Moltmann considera, ao lado da Bíblia e da
Dogmática da Igreja de Barth, O Principio Esperança como a obra mais importante já
produzida.
Bloch oferece a Moltmann a esperança utópica, ao passo que este oferece para a
Teologia uma reflexão sobre o Reino de Deus, cuja esperança transcende os horizontes
históricos, de forma que o éscathon ilumina o presente da criação, sustenta a comunidade no
itinerário da salvação, enquanto promove, a partir da fé, as experiências que fazem o ser
humano avançar em direção à promessa.
Barth foi seguramente o teólogo mais influente do Protestantismo desde o grande
Schleiermacher. Enquanto Moltmann tem as marcas da Segunda Guerra Mundial, Barth foi
provado pela Primeira. Ele questiona a postura de pensadores conformistas e decide refletir
sobre a Carta aos Romanos em busca de respostas aos questionamentos que tanto o
inquietam29
.
Moltmann foi introduzido na Dogmática de Barth pelo teólogo alemão Otto Weber.
Esta obra, considerada por muitos como a Suma Teológica do Século XX, tornou-se, para
Moltmann, uma referência. Quando ele pensou que não havia mais Teologia depois de Barth,
Arnold von Ruler, em 1965, o libertou desse engano.
Percebe-se de modo ímpar em O Espírito da Vida (1991), a presença da filosofia de
vida de Dilthey, Bergson, Simmel e Nietzsche, que atua de modo transversal na
Pneumatologia que esta obra desenvolve. Sob a influência de Buber, Moltmann entende que o
diálogo não é resultado de dois monólogos. Ele aplica essa alteridade em sua cristologia
messiânica, que ressoará na cristologia latino-americana de Jon Sobrinho. A cristologia de
Moltmann é messiânica. Não se limita nem ao Jesus histórico nem ao Cristo da fé. Antes,
procura entender a passagem do Jesus judeu para o Jesus cristão, enquanto aponta para a
descoberta do Jesus judeu no Jesus cristão.
28
Ibid., p. 282. 29
Cf. COLLANGE, Jean- François; BARTH, Karl. In Dicionário Crítico de Teologia, São Paulo: Paulinas e
Loyola, 2004 p. 242-246.
23
Deus não poderá ser sentido como presença amorosa se não se contempla a criação
como realidade autônoma e dialógica. Esta espiritualidade denuncia um “novo exílio
trinitário”, já acenado por Bruno Forte30
. Por dentro dessa ausência de presença solidária
encontra-se um “não” à recepção de Deus pelo homem, no próprio homem, em toda criatura.
A proclamação de Deus presente na história confirma a esperança fundamentada na
fé em Jesus Cristo, que sopra o seu Espírito e confirma a vontade livre de amar e ser amado.
Em Jesus, revela-se o Deus que independe do homem para criá-lo, mas, quis contar com ele
para o contínuo da criação, o acontecimento da salvação e a realização da santificação.
A partir da Teologia de Moltmann emerge uma reflexão do mistério trinitário que
iluminará Bruno Forte ao perceber o vínculo entre Trindade e história. Este vínculo não é
outro acontecimento senão o mistério salvífico de Jesus. O evento pascal, verdadeiramente, se
experimenta na história. A concepção trinitária de Bruno Forte - que assume a ressurreição de
Jesus segundo o Espírito da vida, e se desdobra em história de amor, cujo evento de amor
eterno não está fora da Trindade - comunga radicalmente com a perspectiva de Moltmann.
c) Interpretação de sua teologia trinitária
A segunda fase do pensamento de Moltmann situa-se entre 1980 e 1999. Esta é
denominada “a parte como contribuição ao todo”, isto é, a formulação de contributos
sistemáticos à Teologia. O objetivo desta fase é tratar de modo sistemático as conexões que
são relevantes entre conceitos e temáticas doutrinais de primeiro plano na teologia cristã.
Trata-se da inserção em um diálogo mais amplo do que a teologia cristã conhece31
.
A partir do princípio esperança, Moltmann passa para a reflexão trinitária explícita.
Essa passagem não é fragmentada, pelo contrário, acontece em forma de espiral. Vai da
Teologia da Esperança à Teologia da Cruz, e desta às Contribuições Sistemáticas para a
Teologia. Esta última tem como característica fundamental o diálogo que se torna tão eficaz
que interpreta a Teologia da Esperança a partir da ação salvífica do Crucificado, donde surge
a esperança que alimenta a fé cristã, a ponto de entender a Trindade como comunidade aberta.
Em Trindade e Reino de Deus (1980), Moltmann tenta superar o conflito entre o
teológico e o antropológico da exegese das Escrituras, auxiliado pela hermenêutica trinitária,
no intuito de libertar a doutrina de Deus dos dois limites da antiga metafísica de substância e
30
FORTE, Bruno. A Trindade como História: Ensaio sobre o Deus Cristão, São Paulo: Paulinas, 1987, p. 12. 31
Maria Freire da SILVA, Trindade, criação e ecologia, p. 28.
24
da metafísica moderna de subjetividade transcendental. Dessa forma, desenvolve-se e amplia-
se completamente a doutrina social da Trindade32
.
Na doutrina social da Trindade surge, relativamente independente, o trabalho do
Espírito. Nesta obra, acaba por aderir à relação pericorética capadócia intra-trinitária e recusa
qualquer concepção monoteística ou monárquica de Deus. Pode-se concluir que em Trindade
e Reino de Deus Moltmann distancia-se da concepção substancialista da Trindade e da
perspectivação da mesma no horizonte da moderna filosofia da subjetividade, para ensaiar
uma doutrina trinitária social, como o próprio autor afirma33
.
A elaboração da Teologia da Trindade está associada ao desenvolvimento de uma
hermenêutica trinitária da história, que tem seu fundamento na Sagrada Escritura. Parte-se do
princípio de que as noções monárquicas e monoteístas influenciaram o desenvolvimento da
Teologia da Trindade. Neste sentido, apresenta-se o discurso teológico, compreendendo a
Trindade como um mistério aberto, somente compreensível na experiência humana de
transformação da história de pecado e opressão em história da própria verdade da revelação.
A esta se une a reflexão sobre Deus como substância suprema e como sujeito absoluto34
, cujo
conhecimento se dá por duas vias, a saber, uma negativa e outra positiva. Na primeira,
discute-se o sentido do sofrimento relacionado à bondade e à misericórdia de Deus e o homem
como sua criatura. Na segunda, o amor é fundamental para mostrar a vulnerabilidade de Deus
diante do sofrimento35
. Esta posição busca resposta na questão da Teodiceia, que tem como
objetivo estudar Deus em si mesmo36
.
Percebe-se na teologia trinitária de Moltmann que a substância divina não é
impassível diante do sofrimento humano, participando de toda situação de dor da humanidade
por solidariedade. Trata-se, portanto, de uma característica que não depende do sofrimento
humano, mas que pertence à própria essência de Deus. Trata-se de situar a cruz no centro da
fé cristã e refleti-la em perspectiva trinitária37
.
A partir do pensamento moltmanniano pode-se verificar que a Teologia da Cruz e a
Doutrina Trinitária constituem símbolos identificadores da fé cristã. Apresentam, ante as
demais religiões, o que o Cristianismo possui de mais específico e controvertido. Nesta
32
Ibid., p. 29. 33
Jürgen MOLTMANN, Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 10. 34
Ibid., p.19. 35
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 111. 36
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 49. 37
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 112.
25
perspectiva, a presente dissertação aprofunda tal temática e apresenta resposta para questões
como: existe uma conexão lógica e interna entre a fé no Crucificado e no Deus triuno? É
necessário pensar trinitariamente para compreender o Deus humano, isto é, o Deus
crucificado? Como a cruz pode ser compreendida trinitariamente e o que ocorreu com Cristo e
Deus na cruz? Para tanto, julgamos necessário um retorno às fontes da formulação da
Doutrina Trinitária e a aproximação à Teologia Trinitária de Jürgen Moltmann.
1.2 - Retorno às fontes da doutrina trinitária: A Sagrada Escritura e a Teologia
Patrística
O estudo da doutrina trinitária remete ao estudo do Deus notadamente cristão.
Transcende a problemática da comprovação de sua existência para enfocar a da sua real
natureza. É o exercício teológico e existencial pelo discernimento do Deus-Criador-Amor em
meio à diversidade de ídolos; é a busca pelo único Deus, revelado em Jesus Cristo, sofredor e
libertador, que ama a ponto de oferecer-se como sacrifício eterno de salvação. Desde a Igreja
antiga, os cristãos se esforçam, sobretudo, nos concílios ecumênicos, para compreender as
repercussões doutrinárias da história de Jesus e seus consequentes desdobramentos para a
compreensão trinitária de Deus.
A partir desta constatação histórica, emergem importantes questões de cunho
hermenêutico. As definições conciliares de fato coincidem com o anúncio divino registrado
no Novo Testamento? No desenvolvimento da doutrina eclesiástica acerca da Trindade, esta
já estava contida nos escritos evangélicos ou representa uma posterior dogmatização do
Cristianismo? Moltmann afirma que entre os referidos períodos históricos ocorre uma
inegável diferença hermenêutica. Para tanto, cita o argumento do teólogo liberal Adolf Von
Harnack38
: “A fé viva parece ter-se convertido em uma fé demasiadamente confessional, e o
sacrifício de Cristo, em cristologia”. No entanto, Moltmann questiona as suspeitas liberais se,
de fato, as confissões eclesiais teriam convertido a ortopraxia de Jesus em ortodoxia da fé em
Cristo39
.
O conhecimento da Trindade é derivado da história de Jesus Cristo, o Filho. Portanto,
a doutrina da Trindade pressupõe uma cristologia como premissa, uma vez que é a cristologia
38
Teólogo Alemão (1841-1930) cujas maiores contribuições encontram-se nos estudos do NT e da Patrística.
Segundo ele, a tarefa do teólogo consiste na eliminação da “casca” cultural e histórica do desenvolvimento
doutrinário com a consequente volta à “polpa” do Evangelho ensinado por Jesus, isto é, a proclamação do Reino
de Deus, a paternidade de Deus e na filiação da humanidade por meio do exercício da justiça suprema: o amor. 39
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 75-76.
26
que faz necessário o conhecimento e o conceito do Deus triúno. Contudo, a Cristologia
pressupõe uma cristologia aberta à percepção da criação do mundo mediante o Pai de Jesus
Cristo, e da transfiguração do mundo mediante o Espírito que procede do Pai e do Filho.
Conclui-se, desta forma, que a criação está associada à encarnação-redenção e santificação40
.
Desta forma, torna-se necessário compreender o processo histórico-teológico segundo
o qual foram construídos imagens e conceitos acerca de Deus.
a) Aspectos Bíblico-doutrinários
A doutrina da Trindade se desenvolveu em decorrência da necessidade da Igreja cristã
de explicar como Jesus, enquanto Cristo, se relaciona com Deus, pelo fato de os primeiros
cristãos terem sido judeus e, por isso, sua ligação com o Deus único era forte. Surgiu a
problemática de como os cristãos podem testemunhar a presença e Deus que eles vivenciam
em Jesus Cristo e ainda assim manter sua crença num Deus único. Assim, como em nossos
tempos, os teólogos cristãos consultaram as Sagradas Escrituras em busca de resposta. O fato
é que não encontraram a palavra Trindade, mas descobriram vários textos que serviram de
base para o desenvolvimento dessa doutrina41
.
Devido à importância da fé trinitária para o Cristianismo e a dificuldade que o
pensamento humano encontra em sua compreensão - e também pelo perigo da má
interpretação da fé -, a Igreja continuamente testemunha e protege a fé contra possíveis
desfigurações42
. Tendo por base as declarações da Igreja, o conteúdo essencial e mais
importante da fé trinitária pode ser compreendido da seguinte forma: O Deus único existe e
vive em três pessoas43
. Estas pessoas são realmente distintas entre si, mas da mesma natureza
40
Cf. SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 114. 41
Cf. LOREZEN, Lynne Faber, Introdução à Trindade. São Paulo: Paulus, 2002, p. 10: Diante da necessidade
de uma doutrina da Trindade que seja funcional para o Ocidente do mesmo modo que o pensamento trinitário
sempre foi referencial para o Oriente. O primeiro recurso para uma doutrina ocidental reautenticada é o
ensinamento trinitário clássico da Igreja oriental. Neste sentido, Moltmann é um dos teólogos que mais
contribuiu para recuperar esse pensamento oriental para ocidente. 42
Pode-se observar essa preocupação nas seguintes profissões de fé: o símbolo apostólico (D 6; DS 10-30), uma
declaração do papa Dionísio (D 57; DS 125), a confissão de fé de Epifânio mais ou menos de 374 (D 13s; DS
42-45), o símbolo niceno-constantinopolitano (D 86; DS 150), a profissão de fé do XI Sínodo de Toledo (de 675;
D 275-281; DS 525-532) e o IV Concílio Ecumênico de Latrão (de 1215; D 428-432; DS800-808), o Concílio de
Lião (D 461s; DS 851-853) o Concílio Ecumênico de Florença (D 703s; DS 1330s), a condenação dos erros
trinitários de Socino de 1555 (D 993; DS 1880), a reprovação das expressões equivocas por parte de Pio VI em
1794 (D 1596; DS 2697s), a rejeição das errôneas interpretações trinitárias do teólogo vienense Anton Günther
em 1857 (D 1655; DS 2828), as declarações de Pio XII sobre a unidade da ação divina e sobre a inabitação do
Espírito Santo (D 2290; DS 3814s) e outras declarações. 43
Assim declarara o Concílio Lateranense IV: DS 800: “Cremos firmemente e afirmamos simplesmente que há
um só verdadeiro Deus eterno, imenso e imutável, incompreensível, todo-poderoso e inefável, Pai, Filho e
Espirito Santo: Três Pessoas, mas uma Essência, uma Substancia ou Natureza absolutamente simples”.
27
divina, a substancia divina. A unicidade de Deus fundamenta-se sobre a unicidade da natureza
divina. Em virtude dessa unidade compreende-se que o Deus único existe como Pai, Filho e
Espírito Santo. Dessa forma, fica excluída a possibilidade de uma “quaternidade”, ou seja,
uma natureza em três pessoas. Para afirmar as reais distinções das pessoas, deve-se admitir
uma distinção formal entre a natureza divina e as pessoas. O Pai não tem princípio. O Filho é
gerado do Pai na substância divina. O Espírito não é gerado, mas é emanado. Procede de uma
única emanação do Pai e do Filho como único princípio. Nas processões divinas existem em
Deus relações que constituem as pessoas e também propriedades pessoais que são, ao mesmo
tempo, sinais distintivos das pessoas. As relações constitutivas são a paternidade, a filiação e a
espiração44
.
Compreende-se a tripersonalidade metafísica de Deus45
- como o ensina a Igreja e a
Escritura a apresenta -, sobretudo, como Trindade econômica, ou seja, como ação salvífica
trinitária de Deus. A Trindade “econômica” não é outra senão a revelação da Trindade
“metafísica”. A relação entre a economia e a Teologia foi muito discutida na Teologia nos
últimos tempos. Ocasião para isso foi a formulação de Karl Rahner do chamado “axioma
fundamental” da teologia trinitária: “a Trindade econômica é a Trindade imanente, e vice-
versa”46
. O Deus uno e trino revela-se na “economia”, tal como é sua vida imanente: através
da revelação de Cristo temos um verdadeiro acesso à “teologia”. A partir dessas investigações
pode-se constatar que a doutrina da Igreja é expressão e desenvolvimento daquilo que atestam
a Escritura e a Tradição.
A doutrina trinitária não consiste em uma exclusiva interpretação tardia da fé cristã.
Seu fundamento bíblico é plenamente justificado no testemunho divino oferecido por toda a
narrativa da história da fé, especificamente a que diz respeito à vida e ministério de Jesus.
Esta consiste na história do Filho com seu Pai, no amor do Espírito. A narrativa bíblica,
portanto, oferece uma clara configuração trinitária, reconhecida posteriormente pela Igreja
Antiga.
44
SCHMAUS, M. Trindade. in FRIES, Heinrich (ed.) Dicionário de Teologia: Conceito fundamental da teologia
atual. São Paulo: Loyola, 1971, P. 363-382. 45
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 187-188: Neste
sentido, Moltmann tenta superar a doutrina cristã de Deus da metafísica de substância e da moderna metafísica
de subjetividade transcendental, procurando desenvolver uma doutrina social da Trindade, enfatizando a
interdependência relativa das Pessoas. 46
O Deus trino como princípio e fundamento transcendente da história da salvação, in MySal II/I, Madri (1969)
359-449. In LADARIA, Luiz F. O Deus vivo e verdadeiro: O mistério da Trindade. São Paulo: Loyola, 2005, p.
37.
28
O Deus único, do qual fala o Antigo Testamento (AT), envia, segundo o Novo
Testamento (NT), o seu Filho ao mundo para que o salve. E juntamente com o Filho manda o
Espírito Santo, para que implante nos homens a obra salvífica do Filho. Na Sagrada Escritura
não se fala, portanto, em primeiro lugar da tripersonalidade de Deus em si, mas da
tripersonalidade para nós. Na sua automanifestação, Deus não dá somente uma informação
sobre si, mas concorda em dar a sua própria vida ao homem ferido pelo pecado, abandonado a
si mesmo, isto é, à sua própria indigência. O conceito chave que a Sagrada Escritura usa para
a automanifestação divina é o de missão47
.
O AT é uma preparação para Cristo, uma sombra do futuro (1Cor 10,11; Gl 3,24; Hb
10,1) do qual se observa, por uma parte, que se refere a Cristo, por outra, que não o designa
claramente, e que, portanto, embora contendo alusões a uma pluralidade de pessoas em Deus,
não a revela claramente. No AT delineia-se certa pluralidade em Deus, sobretudo, nas
expressões ANJO de Javé, PALAVRA de Deus, ESPÍRITO de Deus e SABEDORIA. Os fiéis
do AT podiam compreender essas expressões somente pela ação histórica de Deus. Olhando
do NT para o AT, nas imagens deste se podem ver acenos à tripersonalidade e inícios da
manifestação de Deus em três pessoas48
.
Quanto ao NT, os Sinóticos - não obstante a unidade que está em toda a Escritura -,
atestam a Trindade diversamente de Paulo, e este, por sua vez, a atesta diversamente de João.
Antes de tudo, deve-se ter em mente que os Sinóticos - conquanto a fidelidade das suas
relações -, dão somente um testemunho interpretativo, isto é, teológico, daquilo que viram e
ouviram de Jesus Cristo. Neles, a tripersonalidade enquanto tal é acenada na aparição que
segue ao batismo de Jesus (cf. Mt 3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,2-13; Jo 1,32-34).
Com a pregação de Jesus, morre definitivamente a imagem farisaica de Deus, como
Deus do mérito, da autoafirmação e da soberba: Jesus proclama a necessidade universal do
perdão do Pai e o imperativo universal de conversão à misericórdia divina. O fato de que
Jesus tenha se dirigido a Deus na oração, chamando-o Pai (abba), pode-se considerar como
dado neotestamentário fundamental49
. Portanto, percebe-se que nos escritos sinóticos existe
uma íntima relação entre Cristologia e Pneumatologia que se manifesta de numerosas formas,
47
Para essa expressão confira Mt 15,24; Lc 1,43; 7,3; 9,52; 14,32; 19,14.29,32; 20.20; 22,8; Jo 3,17; 3,34; 5,36;
6,29.57; 7,29; 8,42; 10,36; 11,42; 14,16s; 14,25s; 15,26s; 16,5-11; 17,3.8.21.23.25; 20,21; At 3,20; 3,26; 10,36;
1Jo 4,9; 4,14; 1Pd 1,12. 48
SCHMAUS, M. Trindade in FRIES, Heinrich (ed.): Dicionário de Teologia: Conceito fundamental da
teologia atual, p. 367. 49
PASTOR, Félix Alexandre. Semântica do mistério: A Linguagem Teológica da ortodoxia Trinitária. São
Paulo: Loyola, 1994, p. 9.
29
exprimindo a convicção da comunidade sobre a significação escatológica da divina
autocomunicação realizada em Jesus. Neste a ação do Pai, pelo Espírito, culmina nos
acontecimentos pascais. Em especial na cristalização da linguagem trinitária tem a fórmula
batismal do evangelho de Mateus (cf. Mt 28,18ss), cuja autenticidade à fórmula é garantida
pela presença da mesma em todos os manuscritos. Esta mesma experiência batismal é
explicada no texto mateano como salvação procedente de Deus Pai, concretizada na missão
do filho e do Espírito Santo50
.
Na teologia paulina o kerygma51
proclama a salvação divina em Jesus Cristo morto e
ressuscitado (cf. Rm 4,25). Paulo, marcado pela experiência religiosa do encontro carismático
com Cristo glorioso, vive para a missão de anunciar o evangelho da salvação universal em
Cristo, concretização paradoxal no escândalo e loucura da cruz, da sabedoria e justiça divina
(cf. 1Cor 1,30). Em seus escritos, a Cristologia e a Pneumatologia são intimamente
relacionadas (cf. 2Cor 3,17s), mas não se identificam. Jesus Cristo é sempre o Senhor
humilhado e exaltado, crucificado e glorioso52
, que deve ser formado em nós e em nós atua
pelo Espírito Santo. Este é a garantia da salvação escatológica futura e a expressão da
presença divina na comunidade eclesial: os fiéis são templo do Espírito Santo (cf. 1 Cor 3,16)
e carta escrita por ele (cf. 2Cor 3,8); os ministros são diáconos do Espírito (cf. 2Cor 3, 6). A
transformadora presença de Deus se manifesta pelos frutos do Espírito (cf. Gl 5,22s),
particularmente pela esperança (cf. Rm 15,13). O Espírito é, deste modo, presença e promessa
de Deus (cf. 2Cor 1, 22).
O dom do Espírito transforma a comunidade eclesial não só numa nova sinagoga, mas
numa comunhão carismática e diaconal (cf. 1Cor 12; Rm 12; Ef 4), construída pela caridade
50
Ibid., p. 13. 51
Cf. LATOURELLE, René. Querigma/ Catequese/ Parênese in Dicionário de Teologia Fundamental. Trad.
Luiz João Baraúna. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1994, p. 721-723: Kerygma ou querigma,
substantivo derivado do verbo kerýssein, designa a pregação global da boa notícia da salvação através de Cristo:
é o primeiro anúncio chocante do evangelho que ressoa no discurso dos séculos. Trata-se essencialmente de
anunciar a Boa Nova e de convidar à conversão da fé. 52
Sobre Cristologia Paulina, cf. F. A. PASTOR, O Cristo da fé. In Perspectiva Teológica. Belo Horizonte, v. 5
(1973) p. 227ss: Paulo sublinha o caráter kenótico da encarnação (Fl 2, 6s), a pré-existência e transcendência do
Filho (Rm 8,3), a íntima relação entre cruz e ressurreição (1Cor 15, 3s), e a continuidade entre o Cristo da fé e o
Jesus da história (Gl 1, 19; 1Cor 9, 15). Os títulos cristológicos preferidos por Paulo são os de Senhor (cf. 1Cor
12, 3) e novo Adão (Rm 5, 16s). A cristologia pós-paulina usa também os títulos de Deus Salvador ( Tt 2, 13),
Cordeiro Imolado (1Pd 1, 18ss) e Sumo Sacerdote (Hb 7, 24ss).
30
(cf. 1Cor 14,12), na plenitude dos carismas53
(cf. 1Cor 13). Paulo insistentemente faz lembrar
uma salvação que tem sua origem no Pai, que é realizada por Cristo e que é interiorizada por
nós pelo Espírito Santo, o qual anima nossa confiança de filhos, mesmo em meio às
tribulações, e alimenta a nossa esperança de uma salvação definitiva (cf. Rm 5,1ss). No hino
triádico que inicia a carta aos Efésios são também exaltados o Pai, como origem da eleição e
da salvação, o Cristo, como mediador da salvação, e o Espírito Santo, como sinal do fiel e
garantia da herança escatológica (cf. Ef 1,3s).
A teologia do Apóstolo dos Gentios tem uma coloração trinitária. Ele confirma em
primeiro lugar uma Trindade em ordem à econômica salvífica, mas ela aparece como
manifestação da Trindade metafisica54
.
Na Teologia Joanina encontra-se uma linguagem que atribui a Deus como Pai, usada
em sentido absoluto. Com efeito, Jesus fala, sobretudo, de seu Pai: somente uma vez fala de
“vosso Pai”, referindo-se aos discípulos depois da ressurreição (cf. Jo 20,17). Os discípulos
são filhos de Deus - não assim os judeus -, porque, ao não reconhecer a glória do Filho,
também não reconhecem o Pai (cf. Jo 8,32s). O Pai aparece cheio de majestade e em absoluta
precedência mesmo com relação a Jesus (Jo 14,28). O Pai é a origem e conteúdo da revelação
de Jesus (cf. Jo 1,18), o qual consagrou para a missão salvífica e a quem envia para cumprir a
divina vontade (cf. Jo 12, 49; cf. 10,36). Jesus revela o nome do Pai (cf. Jo 17,6), porque só a
palavra preexistente e subsistente podia revelá-lo (cf. Jo 1,1.18). Porque Jesus viu o Pai (cf. Jo
6,46), pode anunciá-lo com claridade (cf. Jo 16,25). Entre o Pai e o Filho existe uma mútua
imanência, logo ver Jesus é ver também o Pai (cf. Jo 8,19; 12,45; 14,7ss). Acolher Jesus é
acolher o Pai (cf. Jo 8,42; 15,23). Jesus é revelador e salvador escatológico, que preexiste ao
tempo e nos salva no tempo (cf. Jo 1,18; 8,38). Ele é o Cristo (cf. Jo 7,26.41), o Cordeiro de
Deus (cf. Jo 1,29.36), Filho de Deus (cf. Jo 1,34.49), Filho do Homem escatológico (cf. Jo
1,51; 5,27), Filho por excelência (cf. Jo 3,31s), profeta definitivo (cf. Jo 1,21.25), prometido
53
Cf. E. SCHWEIZER, Neo testamentica. In PASTOR, Félix Alexandre. Semântica do mistério: A Linguagem
Teológica da ortodoxia Trinitária, p. 21: A doutrina carismática de Paulo combate o monismo tradicionalista dos
judeo-cristãos e o entusiasmo fanático de alguns cristãos helenistas. O carisma é dom do Espírito, não limitado à
oração extática e ao milagre, concedido para edificar a comunidade na fé e na caridade, em obediência ao Cristo
e segundo o plano escatológico de Deus Pai. 54
Cf. SCHMAUS, M. Trindade. In FRIES, Heinrich. Dicionário de Teologia: Conceito fundamental da teologia
atual, p. 367: Textos que contêm a ideia da Trindade nos escritos paulinos: Rm 1, 1-7; 5,1-5; 8,3s; 8,8s; 8,11;
8,16s, 20-30; 14,17s; 15,16-19; 15,30; 1Cor 2,6-16; 6,11; 6,15-20; 12,3-6; 2Cor 1,21s; 3,3-6.10-17; 4,16s; 5,5-8;
12; Gl 3,1-5; 3,11-14; 4,6; 5,21-25; Ef 1,3-13; 1,17; 2,22; 3,5-7; 3,14-17; 4,4-6; 4,30-32; 5,18-20; Fl 3,3; Cl 1,6-
8; 1Ts 1,6-8; 4,2-8; 5,18s; 2Ts 2,13s.
31
já no AT (cf. Jo 1,45), Salvador (cf. Jo 4,42) e Santo de Deus (cf. Jo 6,69). Em Jesus Cristo se
encontra o alimento (cf. Jo 6,35) e vida (cf. Jo 18,12) porque só ele é ressurreição e vida (cf.
Jo 11,25) e caminho, verdade e vida (cf. Jo 14,6). Em seus escritos João conhece a conexão
entre Cristologia, Pneumatologia e Eclesiologia, em que o Espírito é o Dom do Cristo à sua
comunidade (cf. Jo 7,38s; 20,22s) e atua principalmente nos sacramentos da fé.
No Prólogo do seu Evangelho João usa a expressão Logos para designar o “eu” divino.
Este termo poderia provir do Gnosticismo55
com o qual João polemiza em todo o Evangelho.
O Logos de João tem como característica principal a historicidade (cf. Jo 1,14; 1Jo 1,1-3).
Este preexistia a todos os tempos; vivia junto de Deus, era Deus e fez-se carne no tempo.
Essas afirmações de João não têm apenas a finalidade de informar-nos sobre a existência do
logos, mas de comunicar-nos a vida divina aberta para nós pelo Logos encarnado.
Sendo assim, o “Filho” usado no lugar da expressão Logos faz aparecer em maneiras e
imagens sempre novas tanto o “eu” divino como a sua natureza; tanto a sua distinção do Pai
como a sua ligação com Ele. O Filho é, portanto, preexistente ao mundo, pois existe antes de
toda criação (cf. Jo 3,11-13; 6,46; 8,23-38; 17,5). Ele deve tudo ao Pai (Jo 5,23.27.36; 3,35;
13,3; 16,15), ao mesmo tempo que é um só, no ser e no agir. O Pai está nele e Ele está no
Pai56
.
Deste modo, pode-se concluir que a linguagem da ortodoxia trinitária não pode
prescindir da luz advinda do Kerygma bíblico, onde se revela a epifania definitiva da Trindade
salvífica e onde se explicita a experiência cristã da fé no Pai que nos salva no Filho e no
Espírito Santo. Por acontecer na história, a autocomunicação divina possui uma nota de
irrepetibilidade: a revelação do Pai acontece na salvação do Filho, cujo reconhecimento, na
força no Espírito, constitui a experiência da graça. Revelação e reconhecimento, experiência e
salvação coincidem, quando a luz interior do Espírito nos ensina a considerar na cruz e na
55
Cf. Irineu, Adv. Haer. IV, 33, 8. PERKINS, Pheme. Gnôsis. In LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino.
Dicionário de Teologia Fundamental, p. 721-723: no sincretismo religioso do mundo greco-romano, a palavra
grega para conhecimento gnôsis foi usada para designar a revelação exotérica que garantia a salvação aos que
recebiam. Asseada na revelação e acessível somente a poucos reeleitos, que abrem os olhos para a intimidade da
natureza divina que os separa do cosmos material e perceptível, a gnôsis reivindica uma verdade que não pode
ser encontrada pela razão humana, nem é encontrável nas tradições religiosas exotéricas da humanidade. O termo
gnôsis foi usado também por alguns escritores para referir-se à doutrina cristã. 56
Ibid., p. 372.
32
glória do Cristo, o amor do Pai. Neste reconhecimento e aceitação realiza-se o êxodo da
Trindade econômica para a Trindade imanente57
. Por isso, longe de ser minimamente
irrelevante ou inútil, a meditação no Kerygma bíblico e nas suas implicações é indispensável
para a inteligência e vivência do mistério explicitado e defendido na linguagem da ortodoxia
trinitária58
.
b) Elementos Trinitários no Pensamento dos Santos Padres
A dificuldade de formular uma reflexão, desde a era apostólica até o final do século
IV, levou à formulação dos elementos fundamentais do dogma da Igreja sobre Deus uno e
trino, em concreto sobre a divindade do Filho e do Espirito Santo na unidade da essência com
Deus Pai, com o qual são um só Deus59
. As primeiras investidas trinitárias com Basílio, o
Grande (379), Gregório Nazianzo (390) e Gregório de Nissa (394), no Oriente, e no Ocidente
com Agostinho de Hipona (430), foram fundamentais para que estabelecesse posteriormente
uma formulação ortodoxa sobre a questão trinitária.
Atanásio (296-373), Bispo de Alexandria, foi quem contribuiu de forma decisiva para
o estabelecimento da discussão sobre a substância do Filho (homoousion)60
, e posteriormente
sobre a divindade do Espírito. Em sua obra De Synodis (359), ao mesmo tempo em que afirma
a tese do homoousion, também busca entender a “destra da comunhão” aos homoiousianos,
tratando-os como irmãos que discutem, porém, buscam consenso nos pontos essenciais (hos
adelphoi pros adelphous dialegometha)61
e não como irreconciliáveis inimigos na fé; gesto
que produziu grande repercussão e importantes adesões para a causa trinitária.
57
Para esclarecimento dos termos cf. BOFF, Leonardo. A santíssima Trindade é a melhor, p. 183. Trindade
econômica: É a Trindade enquanto se autorrevelou na história da humanidade e age em vista à nossa
participação na comunhão trinitária. Trindade imanente: É a Trindade considerada em si mesma em sua
eternidade e comunhão pericorética entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Sobre pericorética (pericórese)
expressão grega que literalmente significa uma pessoa conter as outras duas (em sentido estático) ou então cada
uma das pessoas interpenetrar as outras e reciprocamente (sentido ativo); o adjetivo pericorético quer designar o
caráter de comunhão que vigora entre as divinas pessoas. Ibid. p.182. 58
PASTOR, Félix Alexandre. Semântica do mistério: A Linguagem Teológica da ortodoxia Trinitária, p. 15-16. 59
Cf. LADARIA, Luiz F. O Deus vivo e verdadeiro: O mistério da Trindade, p. 135 – 148. 60
HOMOIOUSIOS, HOMOOUSIOS, dois termos gregos usados nos séculos III e IV da Era Cristã no debate a
respeito da relação da Jesus, o Filho, com Deus, o Pai. Homoiousios (lit. de substância similar) foi usado pelos
semi-arianos para sustentar que o Filho era de uma substância similar, porem, não idêntica à de Deus, o Pai.
Homoousios (lit. mesma substância) foi empregado por Atanásio para afirmar que o Filho extrai suas substâncias
do Pai e assim compartilha da mesma substância dele e finalmente aceito como parte do ensino ortodoxo. 61
KELLY, J.N.D. Doutrinas centrais da fé cristã: origem e desenvolvimento. São Paulo: Vida Nova, 1994, p.
190.
33
Uma vez estabelecido o credo dogmático sobre a Trindade 62
, emerge uma questão
hermenêutica de relevante abrangência: a doutrina eclesiástica da Trindade já estava latente
nos textos do NT ou ela é uma elaboração posterior, fruto de um processo de dogmatização do
Cristianismo? Ou seja, o dogma conciliar é um desfecho natural da dinâmica interpretativa
das primeiras comunidades cristã ou uma ruptura, e, portanto, uma formulação doutrinaria
anormal à genuína fé cristã63
?
O desenvolvimento da doutrina da Trindade desde o século II até os padres capadócios
teve como centro a controvérsia Ariana64
e a contestação de Atanásio. Percebe-se que o
desenvolvimento é complexo porque nenhuma doutrina surge isolada de outras. Além disso,
vários grupos empenham-se para que sua perspectiva prevaleça, por isso, a doutrina trinitária
é um desafio para a fé cristã. O esforço despendido para a sua compreensão é o mesmo
requerido para a sua exposição. Desde os primeiros embates cristológicos - sob as ameaças do
Arianismo e do Sabelianismo65
-, a comunidade cristã viu se obrigada a enfrentar e envolver-
se em profundos conflitos ameaçadores da sua própria essência. Percebe-se que as disputas
doutrinárias não geravam em torno de inocentes e despretensiosas demandas. Em questão
encontrava-se o núcleo da própria experiência cristã: a vida, morte e ressureição de Jesus de
Nazaré, reconhecida como manifestação messiânica e como história trinitária do Filho.
A unicidade de Deus é uma constante fundamental do NT, mas juntamente com essa
afirmação o mesmo NT apresenta- nos, unidos ao Pai na obra salvífica e na fórmula batismal,
o Filho e o Espírito Santo. O Filho Unigênito, Jesus Cristo, é o único mediador entre Deus e
62
O dogma Trinitário em sua formulação segue o seguinte cronograma conciliar: em Nicéia (325), define-se a
doutrina, omitindo, porém, a natureza do Espírito Santo. Em Constantinopla (381), o Espírito é, então
mencionado, afirmando-se que procede do Pai, devendo ser cultuado e glorificado. Em Toledo (589), acrescenta-
se que o Espírito procede do Pai “e do Filho” (em latim filioque), acréscimo que é considerado uma das
principais causas da separação das Igrejas Ocidental e Oriental. 63
Cf. MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 75-76: Moltmann
salienta que os teólogos do Protestantismo Liberal tentaram transformar essa questão em um obstáculo
instransponível. Isso porque entendiam que a Teologia da Igreja Antiga havia produzido uma dogmatização
paralisante da viva relação divina contida na Bíblia, transformando o sacrifício de Cristo em cristologia e o
seguimento da doutrina moral de Jesus em um culto religioso a Cristo. Esse seria o legado dos apóstolos,
inclusive Paulo, desvirtuando, assim, a ortopraxia de Jesus em ortodoxia da fé em Cristo. 64
Cf. BOFF, Leonardo. A santíssima Trindade é a melhor comunidade. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 178.
Arianismo: ensino herético a respeito da identidade de Jesus Cristo. Baseando-se primordialmente nos ensinos de
Ário (250 – 336, sacerdote de Alexandria no Egito), sua heresia afirmava o subordinacionismo (o Filho, como
também o Espírito Santo, seriam subordinados ao Pai). A principal característica do seu pensamento era que, em
virtude de Deus ser um, Jesus não podia também ser verdadeiramente Deus. Para lidar com o testemunho bíblico
a favor da condição elevada de Cristo, Ário ensinava que Jesus era o mais elevado dos seres criados por Deus. 65
Heresia trinitária do século III cujo nome deriva de Sabélio, também chamada de Modalismo (o Filho e o
Espírito Santo seriam simples modo de manifestação da divindade e não pessoas distintas). O Deus único se
revelou sucessivamente na história da salvação, primeiro como Pai (Criador e Legislador), depois como Filho
(Redentor) e finalmente como Espírito Santo (Sustentador, Doador da Graça). Assim para Sabélio havia apenas
uma pessoa divina e não três como afirma o Trinitaríssimo. Cf. ibid. p. 182.
34
os homens e aparece unido a Deus Pai também na obra criadora. O Espírito Santo está
intimamente unido ao Pai e ao Filho na realização da obra salvadora. Desde o começo esses
“Três” aparecem nos escritos cristãos. Como no NT, também nos antigos escritos patrísticos
“Deus” é em geral o Pai. A Ele cabe a iniciativa na criação e na salvação; Ele é que envia o
Filho e o Espírito Santo. Julgados do ponto de vista da evolução dogmática, não faltam
lacunas e imprecisões nos escritos desses primeiros séculos cristãos. Essa constatação
testemunha uma fé sempre em busca de formulações mais adequadas para expressar o que
supera as palavras e os conceitos humanos66
. O que se pode observar, por exemplo, na Carta
aos Coríntios do bispo de Roma São Clemente (morto por volta do ano 100); nos pontos de
contato do mártir Inácio de Antioquia (morto por volta de 110) com Clemente Romano; na
epístola do Pseudo Barnabé (final do século I, começo do século II); na Didaché (final do
século I); e no “Pastor”de Hermas (escrito provavelmente na primeira metade do século II).
Na teologia dos Padres Apostólicos encontram-se algumas fórmulas triádicas, mas não
podemos falar de uma teologia trinitária elaborada. Percebe-se um pouco mais desenvolvida a
teologia da relação Pai-Filho. Afirma-se a preexistência de Cristo à encarnação e inclusive é
chamado “Deus” com alguma frequência. O Espírito é relacionado com a inspiração profética,
com a concepção de Jesus; contempla-se em algumas ocasiões como derramado sobre os
homens, com provável alusão ao batismo. A repetição da forma triádica (em primeiro lugar a
de Mt 28,19) obrigará a um maior aprofundamento sobre os conteúdos que por elas se
expressam.
Com os Padres Apologetas começa lentamente na Igreja a reflexão trinitária
propriamente dita67
. Inicia-se um esforço especulativo que já não é a repetição das fórmulas
tradicionais nem tampouco o mero anúncio da salvação de Jesus. Precisamente, a
preocupação com essa última leva a indagar o porquê da salvação transcendente que Deus nos
oferece. A reflexão inicia-se com a centralidade nas relações Pai-Filho; e depois introduz
lentamente o Espírito Santo. A preocupação mais notável dos apologetas será em grande
medida a geração do Logos, o Filho de Deus. Percebe-se a preocupação desses teólogos em
defender a fé entre os cristãos para protegê-la de possíveis mal-entendidos, desde o mais
66
Cf. LADARIA, Luiz F. O Deus vivo e verdadeiro, p. 135 – 148.
67
Cf. DULLES, Avery. Apologética. In LATOURELLE, René; FISICHELLA, Rino. Dicionário de Teologia
Fundamental, p. 75-81: no século II, com os assim chamados apologetas, os escritos apologéticos tornaram-se a
forma principal de literatura cristã. Parte dessa literatura destinava-se a imperadores e autoridades civis, para
obter deles a tolerância para os cristãos. Outra parte dirigia-se aos judeus ou aos pagãos, na esperança de que
abandonassem seus erros, e outra era destinada aos cristãos para que não vacilassem frente às objeções e
professassem corajosamente sua fé.
35
significativo dos apologetas, Justino (filósofo e mártir, morto em Roma por volta de 165); seu
discípulo Taciano (morto depois de 172); bem como o começo da especulação trinitária
encontrada em Atenágoras (segunda metade do século II); Teófilo de Antioquia (morto por
volta de 186) que a seu Ad Autolicum deve-se o termo grego que em latim traduziu-se por
trinitas para designar o Pai, o Filho e o Espírito.
Para melhor acompanhar a evolução da teologia trinitária, pode-se observar as
contribuições de grandes personalidades no desenvolvimento desta teologia, a saber:
Orígenes, Padres Capadócios e João Damasceno.
1- Orígenes68
Devido à riqueza e complexidade de sua Teologia, no que e diz respeito à elaboração do
Dogma Trinitário e por sua vasta abrangência delimitaremos alguns pontos para iluminar a
evolução da Teologia Trinitária. Para Orígenes, a Trindade significa um eterno dinamismo de
Comunicação. Orígenes é o primeiro teólogo a usar a palavra hipóstase (pessoa)69
para
caracterizar os três divinos em Deus e esta ideia de Trindade como jogo de relações e
comunicação, a partir e dentre as três pessoas distintas que constituirá uma matriz fecunda de
sistematização da reflexão posterior. Ladaria70
, em sua abordagem detalhada de Orígenes, nos
sugere um texto em que Orígenes comenta o Evangelho de São João, introduzindo-nos na
problemática que comporta o pensamento de Orígenes, enquanto Teologia Trinitária.
Seguindo esse raciocínio, pode-se constatar em suas observações: Orígenes propõe
como resolver o problema que perturba a muitos, querendo ser piedosos: por medo de
reconhecer dois deuses, caem em opiniões errôneas e ímpias, porque negam que a
individualidade do Filho é diferente daquela do Pai, ainda que professem como Deus, aquele
que chamam de Filho. Ao menos pelo nome, admite que sua individualidade e sua substância
pessoal sejam, em suas características próprias, diferentes daquelas do Pai. É preciso dizer-
68
O mestre da escola de Alexandria, morto por volta de 254, principal representante da exegese dita “alegórica”.
Escreveu a obra apologética mais considerável da época pré-nicena, o Contra Celso, refutação do discurso
verídico de Celso, filósofo do Platonismo médio, citando em sua resposta amplos extratos de Celso. Além disso,
tem pertinência com a Teologia Fundamental, temas discutidos nos tratados sobre os princípios ou Perí Archôn,
ou também nos comentários e nas homilias. 69
Orígenes afirmou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são três Pessoas. A palavra empregada por ele para
significar Pessoa é o termo grego "Hipóstase". Anteriormente, Tertuliano e Hipólito se referem às "Pessoas" da
Trindade; o primeiro utiliza o termo latino "Persona", e o segundo o termo grego "Prosopon". O termo que
Orígenes emprega "Hipóstase", originalmente é sinônimo de "Ousia". Ambos significam "Essência", ou aquilo
que uma coisa é, e não a substância individual. Em Orígenes, entretanto, embora "Hipóstase" seja empregado às
vezes com o significado de essência, o mais frequente é que ele lhe dê o sentido de subsistência individual. 70
Cf. LADARIA, Luiz F. O Deus vivo e verdadeiro: O mistério da Trindade, p. 166 - 175.
36
lhes que o Deus é o Deus em Si e que por essa razão, também, o Salvador diz na oração a seu
Pai: “Para que conheçam que Tu és o Deus verdadeiro” (Jo 17, 3), enquanto todo aquele que,
com exceção de Deus em si, é deificado por participação à sua divindade, seria mais justo não
o chamar Deus, senão Deus. Portanto, de modo absoluto, o primogênito de toda criatura (cf.
Cl 1,15), enquanto está junto com Deus e é o primeiro que se impregna de sua divindade, é
mais digno de honra entre todos os que além dele são deuses de tal forma que lhes concedem
fazerem-se Deus, tirando de Deus o princípio para deificar, e, em sua bondade, faz
participantes dele aos outros com liberdade. Deus é, portanto, o Deus verdadeiro. Já os outros
deuses que se fizeram segundo ele são como as reproduções de um protótipo.
Por outro lado, a imagem arquetípica dessas múltiplas imagens é o Verbo que está
junto a Deus, e permanece sempre Deus, enquanto não seria Deus se não estivesse junto a
Deus e não perseverasse na contemplação ininterrupta do profundo do Pai. Sobretudo, a
posição relevante do Pai, que é o único “Deus em si”. O Filho, por sua vez, em outros lugares,
é chamado o reino, a justiça, a sabedoria, a razão em si, mais nunca outro “Deus”. É o
“segundo Deus”. Deste modo só ao Pai corresponde ser o Deus, com artigo (cf. Jo 1,1).
Apresentamos a transcendência de Deus sobre o criado. E só Deus Pai é transcendente
a tudo, é o princípio já que tudo deriva dele, é superior ao Filho e ao Espírito Santo. Observe-
se a posição do todo singular do Pai: quanto ao Filho e ao Espírito Santo são transcendentes
em relação a outros seres, mas são superados pelo Pai.
Em Orígenes, encontramos a primeira afirmação clara dessa geração coeterna com o
ser do Pai. O autor contenta-se com uma coeternidade intencional: a criação está feita desde
sempre na sabedoria, nela está pré-formada e prefigurada71
. Para Orígenes, é claro que Deus
não é Deus antes que Pai; é, eternamente, Pai do Filho. Em sua compreensão o Filho é o
Logos. Pois o Logos é, desde o primeiro instante, o Filho, e tem uma substância própria, ainda
que incorpórea, gerado desde a eternidade. É também desde sempre o Filho. Pode parecer
estranha, à primeira vista, a afirmação de que o Logos é Deus por estar sempre com o Pai e
contemplá-lo. Trata-se de uma geração eterna, porém, livre e que está ligada à vontade
criadora e divinizadora de Deus. Assim, o Logos é Deus por geração. Isso significa que existe
uma diferença essencial entre sua participação na divindade e a que se concede às criaturas.
71
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação. História dos Dogmas. Tomo I. São Paulo: Loyola, 2005. p.
194-201.
37
O Logos é, além de divino, uma hipóstase própria. Isto já ensinava o texto do comentário a
João que nos serviu de guia.
O Logos, portanto, está orientado para a criação e para a “Economia” salvífica.
Encontra-se um caminho difícil de reflexão, desde a Era Apostólica até o final do Século IV,
que leve à formulação dos elementos fundamentais do Dogma da Igreja sobre Deus Uno e
Trino, em si, sobre a divindade do Filho e do Espírito Santo, na unidade da essência com
Deus Pai, com o qual é um só Deus. Parte-se, pois, do princípio de que a unicidade de Deus é
uma constante fundamental do Novo Testamento e, junto com essa afirmação, o mesmo Novo
Testamento apresenta unido ao Pai - na Obra salvífica e na fórmula batismal -, o Filho e o
Espírito Santo. Assim como no Novo Testamento e nos antigos escritos Patrísticos Deus é, em
geral, o Pai. A Ele pertence a iniciativa da criação e a salvação; é Ele quem envia o Filho e o
Espírito Santo.
Embora o termo trinitas seja raro em Orígenes, não se pode dizer que a teologia
trinitária não exista. Em seu comentário ao quarto evangelho, as passagens de ritmo trinitário
estão presentes. Não obstante às imperfeições e desequilíbrios, a contribuição de Orígenes
para o desenvolvimento da teologia trinitária não pode ser desprezada. A distinção entre as
hipóstases será uma característica da teologia alexandrina posterior que, levada ao extremo,
dará lugar à heresia de Ário, o que certamente seria inadmissível para Orígenes.
2. Os Padres Capadócios72
Os grandes defensores do dogma de Nicéia (325) foram Atanásio, no Oriente, e
Hilário, no Ocidente. Mostraram as incongruências da posição Ariana - do ponto de vista
tanto do verdadeiro sentido da paternidade de Deus como da Salvação que Deus oferece ao
homem -, à participação na filiação divina de Cristo. Mas estes não aprofundaram a
significação do homoousios e não deram uma solução especulativa ao problema da unidade e
da distinção pessoal em Deus. Essa foi a grande tarefa assumida pelos Capadócios, a quem
coube uma parte fundamental no desenvolvimento da Pneumatologia, sobretudo, na reflexão
sobre a unidade do Espírito Santo com o Pai e o Filho na única divindade. Desse modo, os
Padres Capadócios completaram a criação de uma linguagem teológica, consolidaram os
72
Os estudiosos tradicionalmente combinam no trio dos “grandes capadócios”: Basílio de Cesaréia (330-
377/379), seu irmão mais novo, Gregório de Nissa (morto em 395), e seu companheiro ligeiramente mais velho,
Gregório de Nazianzeno.
38
conceitos dessa linguagem e expressaram todo o profundo significado da doutrina ortodoxa da
Santíssima Trindade contida na homooúsion de Atanásio e no Credo niceno73
.
Eis a essência da doutrina trinitária dos Padres Capadócios: uma única Divindade
existe simultaneamente em três modos de ser, ou “hipóstases”. Gregório Nazianzeno explica
esta posição, afirmando que "os Três possuem uma única natureza, isto é, Deus, o fundador da
unidade sendo o Pai, do Qual e para o Qual as Pessoas subsequentes são consideradas". Ao
mesmo tempo em que é excluído qualquer subordinacionismo, o Pai permanece aos olhos dos
Capadócios a fonte ou o princípio da Divindade.
Para explicar como uma única substância pode estar simultaneamente presente em três
Pessoas, os Capadócios fazem uso da analogia do universal e seus particulares. São Basílio
escreve que “Ousia” e “hipóstase” se diferenciam exatamente como universal e particular,
isto é, como “animal e um homem em particular". Nesse sentido, cada uma das Hipóstases
divinas é a “ousia” ou a essência da Divindade, determinada por suas características
particularizantes apropriadas. Para Basílio, estas características particularizantes são a
"paternidade", a "filiação" e a "potência santificadora" ou "santificação". Os outros
Capadócios as definem de uma maneira mais precisa como "não ser gerado", "geração" e
"missão" ou "processão". Assim, a distinção das Pessoas é baseada nas suas origens e relações
mútuas. Anfilóquio de Icônio (séc. IV), primo de São Gregório Nazianzeno e, por intervenção
de São Basílio, bispo de Icônio, sugere que os nomes Pai, Filho e Espírito Santo não denotam
essência ou ser, mas "um modo de existência ou relação", e o Pseudo Basílio argumenta que o
termo "não gerado" não representa a essência divina, mas simplesmente o "modo de
existência" do Pai. Destas considerações pode-se perceber como os Padres Capadócios
analisaram a concepção de hipóstase muito mais plenamente do que Santo Atanásio74
.
Resumidamente, pode-se concluir que a doutrina enunciada no Credo de
Constantinopla reafirmou o uso do termo “homooúsion” ao descrever a relação do Filho com
o Pai, de modo que o Filho é “Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado,
consubstancial ao Pai”. Outro fator que contribuiu para a formulação dessa doutrina foi
favorecimento do imperador Teodósio por Nicéia e, por conseguinte, a posição
73
LOREZEN, Lynne Faber. Introdução à Trindade, p. 23.
74
Cf. SESBOÜÉ, Bernard. O Deus da salvação. História dos Dogmas. Tomo I, p. 255-262.
39
“homooúsion”. A obra dos Padres Capadócios e de Atanásio, que defenderam este termo
desde 325, foi de suma importância para promover a homooúsion.
Como já visto, os Capadócios escreveram a favor da divindade do Espírito Santo, que
o Credo de 325 havia mencionado sem lhe atribuir alguma função. A Basílio coube o primado
na insistência da divindade do Espírito Santo; a Gregório de Nissa coube a tarefa de descrever
o Espírito como doador de vida e a Gregório Nazianzeno, a tarefa de acrescentar “procede”
para descrever como o Espírito Santo tem origem no Pai de modo diferente do Filho. Essas
contribuições ajudaram a esclarecer as relações internas na Trindade. No Credo, a função do
Espírito Santo descreve-se em parágrafo breve como a de “Senhor e doador de vida, que
procede do Pai”. Todas são contribuições dos teólogos capadócios.
Os Padres Capadócios desenvolveram também a linguagem que deu sustentação à
doutrina da Trindade. Gregório de Nissa acrescentou os termos filosóficos e os definiu para
que se adequassem particularmente à questão da Trindade. Desde então, a Trindade foi
descrita no Oriente como três hipóstases em uma ousía. A Gregório Nazianzeno é atribuída a
elaboração do compromisso que possibilitou a Igreja chegar ao acordo sobre o Credo no
Concílio de Constantinopla, em 381. Desse Concílio - posteriormente declarado o II Concílio
Ecumênico, sendo o I o Concilio de Nicéia em 325 -, resulta o Credo Constantinopolitano,
que acrescido do nome do Credo Niceno, torna-se o Credo que as Igrejas Orientais e
Ocidentais rezam atualmente. O Credo de Nicéia não é exatamente o mesmo no Oriente e no
Ocidente, fato que reflete uma diferença na compreensão da Trindade, na compreensão do
papel de Cristo na salvação. Essas diferenças se devem principalmente à obra de Santo
Agostinho75
.
3. João Damasceno
João Damasceno surge na primeira metade do século VIII, considerado um
sintetizador genial da Doutrina Patrística anterior. Antes dele, existem outros grandes
representantes da Teologia Oriental como: Pseudo-Dionísio Aeropagita (começo do Século
VI) e Máximo, o Confessor, (primeira metade do Século VII). O primeiro é o grande
75
Cf. LOREZEN, Lynne Faber. Introdução à Trindade, p. 52: os efeitos da salvação no Ocidente são mediados
pela garantia da fé mais do que pela experiência direta, como no Oriente. Isso porque a doutrina da salvação no
Ocidente fundamenta-se na doutrina da Trindade elaborada por Agostinho e na convicção deste de que os seres
humanos são pecadores por natureza e, portanto, incapazes de cooperar com a salvação ou de participar dela de
outro modo que não sendo eleitos por Deus, apesar de sua condição pecadora. Também, Lutero e Calvino
seguem, não somente a doutrina agostiniana da Trindade, mas também sua compreensão de salvação como
eleição e sua avaliação da humanidade como a mais profunda pecadora.
40
representante da inspiração apofática da Teologia Oriental, que se refere a Proclo, o último
dos Neoplatônicos, que fala de Deus como superessência, não sendo possível conhecê-lo por
meio do conhecimento intelectual. O segundo, apresenta uma extraordinária síntese que
recorre a Orígenes e aos Capadócios, relendo-os por meio de um Cristocentrismo nascido do
aprofundamento do dogma de Calcedônia (451)76
.
João Damasceno utiliza um termo novo “pericórese” em sua Cristologia e na
Teologia Trinitária. O uso do termo tem por objetivo indicar tanto a união sem confusão da
natureza divina e da natureza humana em Cristo como a relação da mútua inexistência das três
Pessoas divinas. Com relação à Trindade, refere-se, logicamente, aos textos joaninos, em que
Jesus afirma esta misteriosa realidade: “O Pai e eu somos um” (Jo 10,30); “o Pai está em mim
e eu no Pai” (Jo 10,38; cf. 14,9.11; 17,21).
A permanência e a morada de uma na outra das três Pessoas significa que elas são
inseparáveis e que têm entre si uma compenetração sem mistura, não de forma que se fundem
e se misturam entre si, mas de forma que se conjugam e interagem mutuamente. O que se
pode afirmar: O Filho está no Pai e no Espírito, o Espírito está no Pai e no Filho, e o Pai está
no Filho e no Espírito sem que tenha espaço para mistura, fusão ou confusão. O movimento é
uno e idêntico, já que o impulso e o movimento das três pessoas são únicos, algo que não se
pode encontrar na natureza criada.
João Damasceno adotou, portanto, o termo de Cirilo e o usou frequentemente. Foi ele
o maior divulgador da doutrina da pericórese. Empregou a palavra como termo técnico
designando tanto a compenetração das duas naturezas em Cristo como a interpenetração das
pessoas divinas. Ao ser traduzida a obra de São João Damasceno por Burgúndio de Pisa, a
expressão passou à Teologia Ocidental, à versão latina de Circumincessio. Dessa, passou mais
tarde à palavra Circuminsessio. A primeira respeita claramente a ideia da compenetração
ativa; a segunda, a de estar ou inexistir passivo. A primeira, responde mais ao ponto de vista
teológico grego; a segunda, da teologia latina. Sem dúvida, o termo pericórese na concepção
grega assume um papel mais amplo do que entre os latinos. Na concepção grega, o ponto de
partida é o Pai; a vida flui do Pai como origem, princípio para o Filho, e por meio do Filho ao
Espírito Santo. Acentuando a compenetração mútua das três pessoas divinas, salva a
unicidade da substância divina. Já a concepção latina parte da unidade da substância divina e
76
SILVA, Maria Freire da. O Princípio Trinitário das Relações e a Complexidade ecológica. In Revista Ciências
da Religião, História e Sociedade. São Paulo: Mackenzie, vol.4, n. 1, 2006, p. 38-58.
41
explica como ela, pelas processões divinas imanentes, manifesta-se em Trindade de pessoas.
Aparece, então, em primeiro termo, a ideia de consubstancialidade77
.
1.3-A Influência da Escolástica
No século XII as controvérsias Trinitárias têm início na escola de Abelardo e
Gilberto de Poitiers. O debate sobre a Santíssima Trindade durante este século busca
aprofundar o conceito de “uno” e “trino”, rejeitando e combatendo qualquer sinal de heresia
sabeliana ou ariana. A problemática era como explicar a Trindade sem cair num modalismo
ou triteismo. Entre as declarações conciliares, do IV Concílio de Latrão convocado pelo Papa
Inocêncio III através da bula Vineam Domini Sabaoth de 19 de abril de 1213, destaca-se um
fato notável: pela primeira vez um concílio declara como texto oficial da Igreja a doutrina de
um autor, citando-o expressamente. Aos cinquenta anos após sua morte, Pedro Lombardo
obtinha oficialmente o reconhecimento da sua obra Liber Sententiarum. A vitória da doutrina
trinitária de Pedro Lombardo encerra definitivamente um longo e conflituoso debate a
respeito do dogma da Santíssima Trindade78
.
O Concílio condena formalmente o conteúdo doutrinal presente na obra De unitate seu
essentia Trinitatis, de Joaquim de Fiori que, provavelmente, teria sido escrito contra
Lombardo, a pedido do papa Alexandre III. Na realidade, o debate trinitário torna-se matéria
de preocupação Conciliar como é perceptível no Concílio de Tours, em 1163, o Terceiro
Concílio de Latrão, em 1179 - através da violenta crítica de Gualtiero de S. Vittore -, e,
finalmente, no Quarto Concílio de Latrão, de 1215. Essa preocupação é fruto a intensa
atividade acadêmica em torno de temas teológicos, entre eles o dogma da Trindade, no qual se
busca uma explicação racional a partir do instrumental científico do sec. XII.
Contudo, qual era o problema crucial entre as doutrinas trinitárias de Pedro Lombardo,
expressa na sua obra Liber Sententiarum, e de Joaquim de Fiori na obra De unitate seu
essentia Trinitatis? Leva-se em conta que Joaquim de Fiori critica publicamente a doutrina
Trinitária de Pedro Lombardo. O primeiro ataque aparece em sua obra Vita Sancti Benedicti,
na qual fala-se de perfidia Petri, acusando-o de uma quaternidade (quaternita) na obra
lombardiniana. A crítica joaquimita torna-se acirrada na obra sucessiva Tractatus super
77
Ibid., p.49. 78
ARAÚJO, Gilvan leite de. A crise trinitária durante o século XII. In Revista de Cultura Teológica, São Paulo:
PUC, n.81, jan- jun/ 2013, p.145-161.
42
quatour Evangelia. Pode-se dizer que Joaquim de Fiori procurava na reflexão teológica um
vivens ordo rationis, como ele mesmo expressa nos Dialogi79
.
A discussão a respeito do tema Uno-Trino durante o século XII vem iluminada pela
obra Monologion, de Anselmo d‟Aosta, escrita em 1076. Principalmente através dos capítulos
trinta e sete ao sessenta e três que aprofundam o tema trinitário. O debate se avigora com as
críticas a Roscellino de Compiègne, por Anselmo, na Epistola de incarnatione Verbi, de
1092, no qual o acusa de sustentar um triteísmo.
No entanto, Joaquim pode ter tido contato direto com a obra Theologia Scholarium de
Aberlardo, possivelmente durante a sua estadia na abadia de Casamari. O Concílio de Latrão
(1215), no entanto, assume a tese trinitária de Pedro Lombardo, rejeitando a De essentia seu
de unitate Trinitatis (A Essência e a Unidade da Trindade) de Joaquim de Fiori, rejeitando a
teoria da “similaridade e da coletividade” adotada por Joaquim na exemplificação da sua tese
Trinitária. Nessa época, a célebre coleção sistematicamente ordenada de textos básicos,
adotada como manual de teologia ate o século XVI, foi justamente o Livro das Sentenças, de
Pedro Lombardo, que trata de Deus como Trindade.
No século XIII, a literatura mística vai-se divorciando ainda mais da Teologia e
empenhando no caminho específico da analise das experiências de Deus, seus preliminares
ascéticos, a disciplina da oração e suas repercussões na Psicologia, que resultará na mística
espanhola do século XVI. A Teologia da Trindade é desenvolvida sem novidades nas diversas
sumas teológicas, como as de Alexandre de Hales e de São Boaventura, franciscanos, e na de
santo Alberto Magno, dominicano. Tomás de Aquino vai introduzir uma grande novidade:
antes de tratar da Trindade, trata de Deus, dando origem - a partir do século XVI, quando sua
Suma Teológica substituiu o texto de Lombardo na interpretação tomista habitual-, ao hoje
denominado tratado De Deo Uno, teologia do Deus uno, ou da unidade de Deus, que precede
o De Deo Trino, dedicado ao estudo da Trindade propriamente dita80
.
1.4 – O diálogo com a modernidade
Os teólogos da Reforma, como Lutero, Calvino ou Malancgton, procuraram renovar a
perspectiva salvífica neotestamentária, aceitaram os símbolos da fé da tradição apostólica e a
linguagem trinitária da Igreja antiga e manifestaram aversão à Teologia Patrística. Houve uma
79
Ibid., p.151. 80
Cf. CATÃO, Francisco. A Trindade uma aventura teológica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 41.
43
renascença da linguagem trinitária heterodoxa devido ao biblismo dos reformadores, unido à
ruptura com a tradição teológica medieval. Desse modo, foram novamente propostos o
monarquianismo81
- sob a forma adopcionista em Sozzini e sob a forma modalista82
em
Miguel Servet -, como também o subordinacionismo83
em Blandrata. A linguagem trinitária
da contra-reforma permanece fiel ao modelo latino de linguagem trinitária de tipo
agostiniano-tomista, mesmo procurando um enriquecimento pelo maior contato com a
tradição bíblica e patrística.
A crise do Iluminismo moderno em relação à linguagem teológica da ortodoxia
trinitária significou um momento de verificação racional da lógica e do conteúdo do dogma
trinitário. A filosofia do Iluminismo colocava em crise os pressupostos linguísticos e
conceituais da ortodoxia trinitária, criticando os conceitos de natureza e substância, pessoa e
subsistência, consciência e mistério, a partir de uma gnoseologia crítica da subjetividade
pensante, que dificilmente encontra uma possibilidade de aceitação do momento de revelação
na religião, assim como em Kant; bem por supor uma ontologia panteísta, como em
Spinosa84
.
A crise da linguagem ortodoxa trinitária significa a problematização do dogma
mesmo, considerado impossível ou absurdo, quer dizer, linguisticamente carente de sentido,
onde a filosofia cristã se limitou a uma posição meramente negativa, defendendo a não
irracionalidade do dogma trinitário, ou seja, a não contradição na lógica da ortodoxia
trinitária.
Em uma época de restauração romântica da significação do dogma trinitário - quer na
interpretação filosófica do idealismo transcendental, quer na fidelidade teológica à ortodoxia
dogmática -, surgiu um momento de infravolorização da centralidade do dogma trinitário,
considerado como resultado de um processo de helenização da linguagem e de
81
. Cf. BOFF, Leonardo. A santíssima Trindade é a melhor comunidade, p. 181: trata-se de uma negação da
Trindade em nome de um estrito monoteísmo, que consiste em afirmar a existência de um e único Deus; o
Antigo Testamento conhece um monoteísmo pré-trinitário, anterior à revelação da Santíssima Trindade; pode
haver, depois da revelação do mistério da Trindade, um monoteísmo a-trinitário: fale de Deus sem tomar em
conta a trindade de pessoas, como se Deus fosse um realidade única e existindo em sua substância só em sua
substância; e existe o monoteísmo trinitário: Deus é um e único por força da única sustância que existe no Pai, no
Filho e no Espírito Santo ou em virtude da comunhão eterna e a pericórese que vigora desde o princípio entre as
três divinas Pessoas. 82
Cf. Ibid. p. 181: Modalismo: doutrina herética segundo a qual a Trindade constitui apenas três modos de ver
humanos do único e mesmo Deus, ou então três modos (máscaras) do mesmo e único Deus se manifestar aos
seres humanos; Deus não seria trindade em si, seria estritamente um e único. 83
Trata-se da heresia de Ário segundo a qual o Filho e Espírito Santo estariam subordinados ao Pai. 84
PASTOR, Félix Alexandre. Semântica do mistério: A Linguagem Teológica da ortodoxia Trinitária, p. 59.
44
desescatologização da mensagem do Cristianismo primitivo. O significado da linguagem da
ortodoxia trinitária coincidiria simplesmente com o sentimento religioso de admiração perante
a presença divina no mundo, quer sob a forma de sentimento de dependência filial, como em
Jesus, quer sob a forma de sentimento de fidelidade e fraternidade comum, como na
comunidade cristã primitiva. O minimalismo da escola histórica liberal com relação ao
significado do dogma trinitário, foi posteriormente contrastado, também pela teologia
dialética de Karl Rahner . Importante salientar como Rahner tenta repropor o modelo grego de
linguagem trinitária, enquanto Barth ou Ionergan permanecem mais próximos ao modelo
latino-agostiniano85
.
A ortodoxia trinitária na época moderna tem manifestado sua fidelidade aos modelos
da linguagem trinitária do consensus linguístico neoniceno. No contexto da nova cultura
secular, a ortodoxia trinitária tem procurado seguir a via média da Igreja antiga, entre
subordinacionismo triteistizante e modalismo monárquico. Foram excluídas as tendências
neomonarquianas e as fórmulas ortodoxamente equívocas da época do Iluminismo. Também
foram excluídas as posições neotriteístas, derivadas da especulação trinitária do Iluminismo
transcendental. Portanto, é excluída uma concepção da Divina Trindade pensada como
autoafirmação do Absoluto, em processo dialético de autodesenvolvimento que multiplicaria
triadicamente a divina substância. Também é excluída a posição suspeita de racionalismo, ou
seja, toda a pretensão de demonstrar por argumentos dedutivos a coerência lógica da
linguagem da ortodoxia trinitária, mesmo suposto o a priori da revelação bíblica86
.
1.5 – A Doutrina Trinitária de Moltmann
Após uma rápida revisão do processo de formulação do dogma trinitário, retomamos a
discussão acerca do pensamento do teólogo ocidental contemporâneo, Moltmann. Como se
pode perceber na interpretação de sua teologia trinitária, o teólogo alemão foi influenciado
pela teologia cristã ortodoxa oriental e movido pelo propósito de desenvolver a teologia em
torno da Doutrina da Trindade.
Moltmann propõe uma doutrina trinitária de Deus em oposição a teólogos que
defendem a concepção monoteísta de Deus. Ele rejeita grande parte da tradição cristã
ocidental em que foi educado e se apoia na tradição crista oriental, a tradição de Atanásio, ao
formular sua doutrina da Trindade. Por compreender a unção integradora da trindade,
85
Ibid., p. 59. 86
Ibid., p. 61
45
Moltmann oferece um modelo que possibilita a formulação de doutrina ocidental autêntica da
Trindade. Desse modo, ele desenvolve a doutrina histórica e social da Trindade, baseado na
história de Jesus e procura mostrar a correspondência entre as relações na Trindade e as
relações das pessoas com Deus, com outras pessoas e com o Mundo. Para ele, “todos os
enunciados teológicos da fé cristã relativos a Deus [...] precisam ser compreendidos e
interpretados como expressão da vida moral cristã”87
, e a correspondência entre Deus e o
mundo é absolutamente necessária para essa doutrina da Trindade.
Moltmann critica os seguidores de Agostinho no que ele, Moltmann, denomina
“concepção monoteísta da doutrina da Trindade”88
. Barth é o exemplo desta teoria cujo
objetivo da doutrina de Deus é estabelecer a soberania ou senhorio de Deus. Por isso, a
doutrina da Trindade precisa também sustentar essa soberania, e ela o faz situando a unidade
trinitária no senhorio unificado de Deus. Moltmann compreende que esta concepção parece
estabelecer um sujeito divino e reduz as “três pessoas” a três “modos de ser”. Na verdade,
essa é exatamente a linguagem de Barth. Moltmann não aceita essa posição porque não
reconhece a existência distinta das três pessoas da Trindade.
A doutrina da Trindade desenvolvida por Moltmann fundamenta-se na historia da
salvação. As três pessoas da Trindade são necessárias para essa historia da salvação que tem
na cruz seu ponto de convergência. Este é o tema que pretendemos aprofundar nesta
dissertação. No evento da cruz o Pai entrega o Filho, que sofre, morre e é separado do Pai.
Entretanto, o Espírito os une durante essa ruptura na relação: “Em termos trinitários, o Pai
deixa o Filho sacrificar-se atrás do Espírito. A cruz está no centro da Trindade.”89
O debate acerca da Trindade revelou a centralidade de uma cristologia aberta90
. Na
história do Filho encontra-se a história do Deus triuno e do seu reinado trinitário. Esta não se
desenvolve apenas no exterior da divindade (ad extra) sobre a Terra, mas também em seu seio
(ad intra) e a partir dele. Por autodeterminação livre e amorosa autolimitação abre-se para
fora em relações vivas e reciprocas com a sua criação91
. O testemunho bíblico afirma que do
caos o Criador sempre retirará a ordem e da opressão a esperança. Esse é o sentido que
87
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 62. 88
Ibid., p. 197. 89
Ibid., p. 61. 90
A Doutrina Trinitária estabelece em primeiro lugar a Cristologia no pensamento de Moltmann. Uma
cristologia aberta: ou seja, uma cristologia especial e histórica, aberta ao conhecimento da criação por obra do
Pai de Jesus Cristo, e aberta à transfiguração do mundo, por obra do Espírito. Somente essa cristologia permite
de fato levar ao conhecimento e ao conceito de Deus uno e trino, o que altera a ordem tradicional dos dogmas
cristãos (doutrina do Pai, do Filho e do Espirito). 91
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.110.
46
Moltmann estabelece para uma cristologia aberta, em sua vinculação com a história
universal, como acesso determinante ao Deus triuno que se revela na criação e na história de
redenção.
A história do Filho projeta conhecimento sobre a realidade trinitária, por isso se faz
necessário relacionar a figura do Filho aos horizontes mais amplos da história divina em sua
interação com o mundo. Desta maneira, pode-se compreender o significado universal da
história do Filho. Firma-se, assim, uma cristologia aberta, capaz de dialogar com o mundo
criado (pelo Pai) e com a sua transcendência (pelo Espírito).
Moltmann propõe que uma cristologia aberta seja percebida em suas relações com: a
“criação do pai”, a “encanação do Filho” e, a “transfiguração do Espírito”, para responder
ao questionamento de que maneira esta cristologia pode relacionar-se com o mundo criado e
com a esperança de sua transfiguração. Desse modo, reforça-se o pressuposto básico de uma
reciprocidade, através da qual Deus e a criação afetam-se mutualmente, não de modo igual,
mas sem dúvida a seu modo. Se Deus é amor, então ele não apenas prodigaliza o amor, mas
também espera o amor e dele necessita: o seu mundo deve ser o seu lar. Nele deseja
morar92
.[grifo nosso]
Portanto, o tema da paixão de Deus ocupa um lugar de destaque no pensamento
trinitário de Moltmann. Para o Teólogo da Esperança, uma das causas determinantes da apatia
da sociedade moderna remonta à formação de conceitos fortemente influenciados pela
religiosidade cristã ocidental. Era inadequado para a filosofia grega admitir à existência divina
a pluralidade, o movimento e o sofrer, caso contrário não seria divina93
. A rejeição ao
sofrimento e a dor encontra amparo em uma concepção de vida, na qual o sucesso e o trabalho
é que podem propiciar felicidade e realização. Moltmann afirma que os que confiam nas
promessas dos ídolos do trabalho e do sucesso pessoal poderão, talvez, alcançar uma
existência sem dor ou conflitos. Mas, o preço será grande, pois serão transformados em seres
apáticos, deteriorando-se pouco a pouco, até morrer, mesmo permanecendo vivos.94
Por isso,
torna-se decisivo compreender o processo histórico-teológico, a partir do qual foram
construídas imagens e conceitos de Deus, distanciados de sua condição histórica passível ao
amor e à paixão.
92
Ibid., p. 111. 93
Ibid., p. 35. 94
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida: ASTE, p. 12.
47
Conclusão
Percebe-se em Moltmann uma busca incessante pelo diálogo aberto, libertador, vivo e
sempre em sintonia com os desafios do sistema dogmático95
(embora seus críticos afirmem
que isto não foi de todo cumprido). Para Moltmann, os sistemas não se apresentam para serem
discutidos e, em geral, não buscam autonomia e pessoalidade. Em função desses, a tradição é
reduzida da sua condição de espaço fecundo de reflexão dos desafios da história e da fé para
se consolidar como repositório de verdades atemporais.
O pensamento trinitário social de Moltmann pode assim representar uma contribuição
determinante tanto para a reflexão humana acerca da liberdade quanto da sua esperançosa
busca por libertação de todos os esquemas políticos, sociais e religiosos opressores e
comprometidos com a morte96
. Portanto, a Doutrina Trinitária não pode ser relegada na
tradição cristã. Ao contrário do que sugeriu Emannuel Kant, o pensamento trinitário pode e
deve ser percebido como profunda fonte de inspiração. A Trindade não é uma elucubração
psico-filosófica do cristianismo helenizado; antes, é a percepção teológica de se pensar Deus
como nosso mais radical desafio por unidade, entrega, doação, relação e liberdade. Dizer que
Deus é amor, é entender trinitariamente que só existe amor quando há relação, quando existe
um outro, quando este outro não se torna objeto de subjugação nem sujeito de dominação.
Deus é amor porque gera e doa-se ao outro. Permite-se entrar em relação ainda que por ela
possa fragilizar-se, entristecer-se e sofrer.
95
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.11. 96
LIBANIO, João Batista. Teologia da revelação a partir da modernidade, São Paulo: Loyola, 1992, p. 444-
449. O autor também entende que o revelar-se de Deus não pode deixar aqueles que acolhem tal revelação ficar
indiferentes aos pobres. A revelação não são simplesmente verdades a serem conhecidas, mas a serem
verificadas pelas práticas daqueles que a acolhem. A libertação dos pobres e oprimidos é a prática coerente com
a revelação judeu-cristã.
48
CAPÍTULO II: A CRUZ COMO EVENTO TRINITÁRIO
Introdução
A reflexão sobre a cruz sempre esteve presente à fé, à piedade e à teologia cristã. Sem
ela, o anúncio da ressurreição significaria uma esperança sem conteúdo: é o crucificado que
foi ressuscitado (At 3,15). Entretanto, nem sempre se tiraram todas as consequências daquilo
que está latente na cruz e na morte de Cristo. Um intuito moderno de pensar radicalmente a fé
à luz da cruz foi levado a efeito por Jürgen Moltmann, na parte protestante, e por Hans Urs
von Baltazar, na parte católica. Estes não foram os únicos. A experiência moderna da dor do
mundo provocou outras reflexões que tentaram dar sentido ao sem-sentido à luz da razão97
.
Moltmann parte de uma tese profundamente enraizada na tradição luterana de que a
verdadeira teologia cristã é aquela que se faz à sombra do Crucificado e a partir da cruz98
.
Nesta encontra-se a identidade cristã. No prefácio de O Deus Crucificado (1972) o autor no
intuito de facilitar a compreensão do tema afirma que:
A cruz não é e não pode ser amada. E apesar disso, somente o Crucificado provê
aquela liberdade, que transforma o mundo, pois ela não teme mais a morte. No seu
tempo o Crucificado foi escândalo e loucura. Hoje, não é costume colocá-lo no centro
da fé cristã e da teologia. E, ainda assim, somente essa antiquada lembrança nele
liberta as pessoas do poder dos fatos presentes, das leis e pressões da história e a abre
para um futuro que não retornará às trevas. Hoje é fundamental que a igreja e a
teologia reflitam sobre o Cristo crucificado para mostrar ao mundo a sua liberdade e,
se elas quiserem ser o que elas afirmam ser: A igreja de Cristo e a teologia cristã.99
No Cristianismo a cruz prova tudo que merece ser denominado cristão. Somente por
meio dela e nada além dela prova isso, pois ela desmente todas as inverdades e elimina os
97
Cf. BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo paixão do mundo. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 178. 98
Desde o início de seus estudos, Moltmann se dedica à teologia da cruz e acredita que ela seja o ponto central
do seu pensamento teológico desde Teologia da Esperança (1964). Isso se deu a partir do momento em que se
ocupou com as perguntas da fé cristã e da teologia na existência de um prisioneiro de guerra “atrás do arame
farpado”. O autor afirma que deve isso às inesquecíveis aulas dos professores Hans Joachim Iwand, Ernest Wolf
e Otto Weber no período de 1948/49, em Göttingen, sobre Teologia da Reforma. Cf. MOLTMANN, Jürgen, O
Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, Santo André: Academia Cristã, 2011,
p. 17. 99
Ibid., p.17.
49
elementos sincretistas do Cristianismo. Moltmann afirma que a existência cristã de teologias,
igrejas e pessoas enfrentam hoje, mais que nunca, uma crise dupla: a crise de relevância e a
crise de identidade. Para ele, quanto mais a Teologia e Igreja tentam ser relevantes nos
problemas atuais, mais se aprofundam na crise de sua própria identidade cristã. Quanto mais
tentam afirmar sua identidade em dogmas tradicionais, ritos e princípios morais, mais
irrelevantes e desacreditadas se tornam. Nesse sentido, a reflexão sobre a cruz leva a um
esclarecimento a respeito do que podem ser consideradas identidade e relevância cristãs em
solidariedade crítica com os contemporâneos100
.
2.1- A Paixão de Deus
No capítulo anterior constatamos que a Paixão de Deus encontra um lugar de destaque
no pensamento Moltmanniano. O autor afirma que os povos antigos, sobretudo os gregos,
exerceram decisiva influência na formação de um conceito apático da divindade. Apatia,
originariamente, significava ausência de sofrimento e era considerada a mais alta virtude tanto
dos deuses quanto dos humanos, o que lhes faziam atribuir a Deus uma natureza perfeita, não
acessível ao mal, ao sofrimento e à morte, portanto, autossuficiente, bastando-se a si
mesmo101
. A ideia da divindade se caracterizava, assim, como a suprema apatia, sobrepondo-
se às necessidades e impulsos102
.
Nesta perspectiva, a felicidade não estava associada à realização dos desejos ou
necessidades. Era feliz aquele que não os tinha ou os abandonava. Daí a valorização de uma
vida sem paixão, sem explosões de raiva, mas também sem amor. A verdadeira felicidade
estava acima do sofrimento e da alegria. Para alcançar a divindade e a liberdade era preciso
vencer os desejos, dominar aos impulsos e cultivar a apatia103
.
100
Ibid. p. 23. 101
MURAD, Afonso. Este cristianismo inquieto: a fé cristã encarnada em J. L. Segundo. São Paulo: Loyola,
1994, p.30. Segundo o autor a imagem corrente de Deus no Ocidente é a de um ser sozinho, perfeito e
impassível, e não a da sociedade trinitária. Isto não seria apenas fruto de influência grega. A causa mais profunda
estaria numa espécie de privatismo, isto é, uma concepção hipervalorizada do ser humano enquanto
individualidade a qual justificaria um modelo social nos moldes de um agrupamento de indivíduos sem
interação. Em função deste contexto a imagem de um Deus “privado” seria gerada. 102
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 12. 103
Há varias palavras hebraicas e gregas para indicar o ato de desejar: avah (desejar), chamad (desejar, ter prazer
em), chapets (desejar, ter prazer em), chashaq (deleitar-se em, apegar-se a), thélo (querer, desejar), epipothéo
(desejar muito) e epithuméo (desejar apaixonadamente). No entanto, as palavras epithymia (desejo,
concupiscência ) e epithymeo (desejar, querer) já se acham antes de Sócrates. A partir do significado básico de se
emocionar acerca de alguma coisa, já tinham o sentido de “impulso”, “desejo” no grego secular. Na literatura, a
palavra incialmente tem um sentido neutro. Mais tarde, tem um significado eticamente mau, porque a epithymia,
como as três demais paixões (medo, prazer e tristeza) resultam de uma falsa avaliação das posses e dos males
desta vida.
50
Para Moltmann, o pensamento filosófico grego contribuiu para firmar as estruturas
conceituais da divindade. Consequentemente, não seria adequado a Deus a pluralidade, o
movimento e o sofrer. A substância divina, portanto, deve ser apática e impassível, caso
contrário não seria divina, absoluta, autossuficiente, devendo opor-se à natureza transitória,
limitada e dependente do mundo.
Diferentemente a mensagem cristã apresenta, em Cristo, um Deus que se revela em
outras categorias. A Encarnação permitiu que o chamassem de Emanuel, Deus-conosco (Mt
1,23); diante do desvio espiritual do seu povo, seu envolvimento salvífico o fez chamar-se
Jesus, o que salva (Mt 1,21); sua vida em constante entrega e serviço o identificou com o
“Ebed Iahweh”, o Servo de Deus (Is 53), e sua obediência radical a Deus, até a morte de cruz,
evidenciou sua relação filial com o Pai, pelo que foi declarado Filho de Deus (Mt 27,54; Mc
15,39).
Moltmann conclui que Deus está pessoalmente envolvido na história da Paixão de
Cristo, senão a sua morte não poderia produzir nenhum efeito redentor. Mas, se de fato há
uma participação direta de Deus no evento da Paixão, sendo ela compreendida pela
comunidade nascente como revelação de Deus, como entender o seu sofrimento, mediante o
conceito grego de impassibilidade da divindade? Apenas Cristo sofreu abandonado por Deus,
o seu Pai, ou o próprio Deus, em Cristo, também sofre?104
A realidade dos fatos coloca em confronto duas concepções acerca de Deus: a que o
isenta de dor e sofrimento, temendo limitá-lo ou identificá-lo excessivamente à condição
humana, e a que entende como possível ao ser divino o envolvimento com a criação,
sofrendo-a, sendo acessível a ela, amando-a a tal ponto de apaixonar-se, sem que isto o
impeça de continuar sendo divino.
Percebe-se na história da tradição cristã um esforço, principalmente da Patrística, por
conciliar tais conceitos: apatia e paixão. Como resultado, obteve-se o paradoxo, isto é, o
104
MOLTMANN, Jürgen. O caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões messiânicas. Petrópolis: Vozes,
1994, p.236-247. Para o autor, a teologia da entrega, no Novo Testamento, é tratada por alguns de forma
precoce, visto que, em geral apontam apenas para o significado e a intensão da entrega do Filho: por nós (Rm 8,
32; 2Cor 5,21; Gl 3,13), porém, distinguem na entrega do Filho, a entrega também do Pai. Da mesma forma, a
entrega do Pai e do Filho acontece “pelo Espírito”(Hb 7,16; 9,14) o qual é o unidor na separação, aquele que une
a união original vivida e a separação do Pai e do Filho sofrida na cruz. Finalmente, à questão „onde estava Deus
no abandono do Filho‟, Moltmann responde: Deus não estava oculto, Deus não estava permitindo, Deus não
estava querendo; Deus estava em Cristo, reconciliando consigo o mundo.
51
“sofrimento do Deus impassível”. Afirma-se ao mesmo tempo o axioma da filosofia grega (a
apatia), como também o tema central do Evangelho (a Paixão de Cristo)105
.
Segundo Moltmann, ocorre uma justaposição de conceitos. Justapor, porém, conceitos
tão díspares, inevitavelmente implica em desequilíbrios e consequente prejuízo para uma das
proposições. É o que a história da Teologia constata até os dias atuais. O axioma da apatia tem
marcado os conceitos fundamentais da Teologia de modo mais expressivo do que a história da
Paixão de Cristo o fez106
.
Na Teologia cristã, o axioma da apatia significa propriamente que Deus não está
sujeito ao sofrimento da mesma forma que estão as criaturas. Desta maneira, não há um
axioma em questão (Deus não pode sofrer), porém, um enunciado analógico (não sofre como
o ser humano), tendo em vista a tentativa de compreender um conceito mediante uma
comparação.
Deste modo, a Teologia cristã - ao admitir a capacidade de amar em Deus -, admite
também, as consequências dessa possibilidade. Caso fosse impassível, Deus seria incapaz de
amar ou amaria somente a si próprio. Assim, teologicamente, Deus não apenas ama, mas é
essencialmente amor, e esta condição o torna passível ao que uma relação de amor pode
proporcionar, inclusive, o sofrimento. Moltmann, no entanto, ainda apresenta importante
observação:
Todavia, se ele tem a capacidade de amar a outro, então se abre ao sofrimento que lhe é
proporcionado pelo amor desse outro, e coloca-se acima da dor que daí nasce em virtude do seu
amor. Deus não sofre como sofre a criatura, por carência de ser. Neste sentido, sim, ele é
impassível. Mas sofre em seu amor (caritas est passio), que outra coisa não é senão a
superabundância do seu ser. Neste sentido, ele é passível.107
105
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.36. 106
Ibid., p.36. Moltmann questiona se a influência da impassibilidade divina não teria prejudicado uma
formulação, na Teologia, de um conceito de Deus mais cristão. Se na cruz há apenas um sofrimento humano,
então ela representa apenas mais uma tragédia humana, revelando a frieza e a distância da divindade. Moltmann
conclui que, na formação da doutrina de Deus, a influência metafísica grega, também conhecida como Teologia
Natural, deveria ser reexaminada à luz de uma nova perspectiva cristológica pela qual se estabelecesse um
axioma da paixão de Deus. 107
Ibid., p. 37. Moltmann, em sua pesquisa sobre a passibilidade em Deus, informa que apenas Orígenes, dentre
todos os pais do Ocidente e do Oriente, na Igreja Antiga, reconheceu e utilizou tal distinção, ousando falar, em
termos teológicos sobre o “sofrimento em Deus”. Na concepção de Orígenes, o Pai quando desce entre os
homens, sofre a dor humana (Dt 1,31). Assim, Deus assume a nossa condição, do mesmo modo que o Filho de
Deus assume a nossa dor. O Pai não é impassível (Ipse pater non est impassibilis). Ele padece do sofrimento do
amor, passando a ser o que não pode pela magnitude da sua natureza, e suporta por nosso amor o humano
padecimento.
52
Na reflexão de Moltmann, o Deus do Antigo Testamento não pode ser representado
como um poder frio e silencioso no céu. Pelo contrário, o Antigo Testamento o apresenta
como um Deus comprometido com a criação, com a humanidade e com o futuro. Por esta
condição apaixonada108
o Deus dos Patriarcas estabelece aliança com eles, tornando-se
vulnerável a ela e ao amor que ela representa.
Para Moltmann, Abraham Heschel (1962) é um dos primeiros a contestar,
expressivamente, a teologia do Deus apático. Denominava a teologia dos profetas do Antigo
Testamento de teologia do pathos divino, pela qual se afastava da filosofia religiosa judaica,
influenciada pelo Helenismo de autores como Filon, Jehuda Halevi, Maimônides e
Espinoza109
.
O que está em discussão é a questão hermenêutica determinante para compreender as
representações de Javé no Antigo Testamento interpretar expressões como pai, mãe, amigo,
amante, enganado, ter ciúmes ou ira? Jehuda Halevi as interpretava como alusões
excessivamente antropomórficas de Deus. Alegava, no entanto, que todas elas referem-se à
natureza humana e demonstram a fraqueza da alma. Da mesma forma pensavam Maimônides
e Espinoza, o qual chegou a afirmar que Deus nem ama nem odeia. Estabelecia-se, assim,
uma corrente da apatia de Deus na teologia judaica110
.
Heschel, utilizando-se como ponto de partida o pathos divino, revelado na experiência
judaica de Deus, busca desenvolver uma hermenêutica teológica denominada teologia bipolar
da Aliança. Esta, encontra-se estruturada sobre três conceitos ou bipolaridades fundamentais:
a liberdade divina, a simpatia do homem e do espírito e a doutrina rabínica da Shekinah, que
Heschel utiliza para aprofundar seus conceitos anteriores111
.
Na primeira bipolaridade, afirma que Deus em si mesmo é livre e não está sujeito a
nenhuma fatalidade ou limitação. No entanto, ao mesmo tempo que é livre, predispõe-se a
estabelecer uma Aliança com um pequeno povo. Uma segunda bipolaridade, em função do
pathos divino, corresponde à simpatia do homem à oferta divina por Aliança
108
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p. 15,16. Moltmann apresenta uma definição para o termo paixão,
conforme o utiliza em seu pensamento: “Não se trata de meros desejos da alma por uma vida sem dores no céu
nem de um amor pelo Reino de Deus no além, nem ainda a aspiração pela permanência da vida depois da
morte, mas, isso sim, da vontade de viver a plenitude da vida mesmo antes da morte, até mesmo contra a morte,
que transborda da vida de Jesus. Nesta paixão pela vida vê-se a paixão do próprio Deus, o inimigo da morte
que deseja a vida e a liberdade, e rejeita a escravidão. A paixão que quer o amor e desconhece a apatia”. 109
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.39. 110
Ibid., p.40. 111
Ibid., p.41.
53
(relacionamento). Simpatia que só é possível em virtude do espírito que procede de Javé
(simpatia de Deus), por isso um profeta que estabelece Aliança entre Deus e seu povo é
chamado de ish-há-ruah (um homem cheio de espírito).
Embora Deus seja uno (O único Deus) não o é, porém, no sentido monístico (mônada)
por isso, pode-se reconhecer uma autodistinção divina. Assim, a partir da experiência do
pathos divino, ocorre uma espécie de projeção de Deus em direção da sua criação e do seu
povo (simpatia de Deus); é a sua Shekinah que o vincula à caminhada histórica de sofrimento,
exílio e dor. Tais questões são esclarecidas e aprofundadas por Heschel, que propõe a análise
da antiga teologia rabínica da Shekinah112
. Segundo esta, a história do mundo ocorre mediante
uma serie de auto-humilhações divinas, como a criação, a escolhas dos patriarcas, a Aliança
com o povo, o êxodo, o exílio e até o final dos tempos o Todo-Poderoso se humilha.
Diante dessa reflexão, a Shekinah configura-se a auto-humilhação divina que
representa a acomodação do Excelso e Todo-Poderoso às peculiaridades mínimas da sua
criação (efetiva habitação do Senhor no meio do seu povo); são adaptação do amor eterno
para coabitar com os seus amados (condescendência do Eterno), como verdadeira antecipação
da universal coabitação de sua glória vindoura, a ser estabelecida nos novos céus e nova terra
(prenúncio da glória daquela de há de vir)113
. A doutrina da Shekinah, portanto, é a
consequência logica do pressuposto do pathos divino.
Na linguagem da mística judaica, na sua Shekinah - ou seja, na descida de Deus sobre
os homens e sua habitação entre eles -, Deus aliena-se para estar junto ao seu povo e o
acompanha em suas dores. Ocorre como que uma divisão ou ruptura misteriosa no seio do
próprio Deus (senão na substância certamente em sua vida e em sua atuação), visto que se
projeta para fora de si, tornando necessária, Nele, uma autodistinção. E na sua identificação e
solidariedade radical passa a necessitar também de salvação114
.
A doutrina da Shekinah enfrenta desde então a questão da superação da alienação divina.
Neste sentido, o pensamento místico entende que a oração e a profissão de fé podem
112
MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação: doutrina ecológica da criação. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 32-36. A
doutrina da Shekinah também é tratada por Moltmann em sua obra Doutrina Ecológica da Criação, na qual
reflete sobre a imanência de Deus no mundo. Moltmann adverte para o perigo de conceber-se uma diferenciação
entre Deus e o mundo de tal forma que ele não seja mais revelado nele e através dele. 113
JUNGES, José Roque. Ecologia e Criação: resposta cristã à crise ambiental. São Paulo: Loyola, 2001, p. 51-
54. Junges, nesta obra comenta que tudo foi criado em vista do Sábado, a festa da criação. Nela, porém, também
acontece a antecipação celebrativa da consumação da criação. No Sábado, é celebrada antecipadamente a
plenitude da criação, ocasião na qual a Shekinah encerrará seu significado, o Sábado de Deus. 114
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.42.
54
corroborar com a unificação de Deus. A oração, assim, consiste na confissão de fé na unidade
divina. Moltmann cita Franz Rosenzweig que afirma que este era o sentido da oração do
Shemá, Israel (Dt 6,4) durante o Exílio. Através da oração que professa a fé na unidade
divina, a Shekinah perseguida reúne-se a Deus, e Deus é reunificado em sua Shekinah
alienada115
.
A doutrina da Shekinah materializa importantes conceitos Moltmannianos acerca da
natureza do Deus cristão. Primeiro, uma identificação radical de Deus com a sua criação que
em nada o vincula ao conceito de apatia. Apenas a compreensão do pathos divino pode
explicar a sua auto-humilhação. Segundo, na simpatia do seu espírito, na qual é possível a
simpatia humana na adesão à Aliança, torna-se evidente uma autodistinção no seio do próprio
Deus, não em sua substância divina, mas em sua atuação redentora. Por fim, a doutrina da
alienação de Deus em prol da sua criação e da sua Aliança revela o profundo amor divino,
para com a liberdade de tudo que criou. Moltmann conclui assim seu pensamento:
O amor procura um parceiro, que corresponda livremente e retribua o amor de espontânea
vontade. O amor humilha-se por respeito à liberdade do parceiro. Aos olhos de Deus, a
liberdade do homem, por ele querido e amado, é tão grande quanto o poder da paixão e da
condescendência divinas. O amor pela liberdade constitui a base mais profunda da
“autodistinção de Deus”, da “bipolaridade divina”, da “entrega espontânea de Deus” e da
“ruptura”, presente na vida e nas obras de Deus, até a consumação salvífica.116
115
Ibid., p. 43. 116
Ibid., p. 43 ver também: MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da Vida: Uma pneumatologia integral. Petrópolis:
Vozes, 2010. p. 55-59. Retornando às origens da doutrina da shekinah, Moltmann informa que na literatura
rabínica primitiva “Espírito Santo” tem o significado de “espírito do santuário”, indicando mais um meio de
revelação ou capacitação de Deus, do que uma referência ao próprio Deus. Dessa forma, a Shekinah não é uma
propriedade de Deus, mais sim a sua presença; não é a sua onipresença, que faz parte da essência de Deus, mais
sim uma presença especial que indica a presença de Deus em determinado lugar e em determinado tempo, ou
seja, a Shekinah é a presença terrena, temporal e espacial de Deus; identifica-se com Ele, porém, dele também se
distingue. Isso é o que se denomina: autodistinção de Deus.
55
2.1.1-A liberdade de Deus
Diante da Teologia da Paixão advém um questionamento: como compreender o tema da
liberdade divina?117
Ou mesmo quanto à questão determinista do sofrimento: Deus se permite
sofrer ou sofre como prisioneiro da sua própria história? Qual a natureza da liberdade em
Deus?
Moltmann recorre, inicialmente, a um debate entre a posição Nominalista tradicional e
a teologia dialética, em karl Barth. Os nominalistas afirmam categoricamente que Deus é livre
por potentia absoluta, isto é, pode fazer e deixar de fazer o que ele aprouver e a nada se
obriga. Karl Barth, por sua vez, na tentativa de superá-la, expõe a sua doutrina da decisão
originaria de Deus, que ainda evidencia traços do Nominalismo118
.
Segundo Barth, embora Deus, em sua imperturbável glória e felicidade poderia bastar-
se a Si mesmo, assim não o fez. Escolheu, porém, o homem como seu companheiro de
Aliança; ou ainda, bastando a Si mesmo, e não estando sujeito a nenhuma necessidade, por
sua bondade decide coexistir com uma realidade distinta dele, ou seja, com o mundo criado.
Neste debate, Moltmann intervém de forma incisiva. Dirige-se ao conceito de potentia
absoluta, questionando sua veracidade ante o conceito de sua verdade e bondade. Seus
argumentos se expressam da seguinte forma: Deus não pode revelar-se diferentemente daquilo
que constitui sua real natureza e o que Ele revelou de si mesmo não atesta que “bastar-se-ia
na sua imperturbável glória”. Desta maneira, afirmar que Deus decide não bastar-se a si
mesmo, embora pudesse permanecer nessa autossuficiência, revela uma contradição entre sua
essência e sua manifestação. Conclui que o raciocínio pelo qual argumenta “Deus poderia”,
“Deus decidiu” é confuso e não ajuda a compreender a liberdade de Deus, visto que a
liberdade de Deus jamais poderá contradizer a verdade que Ele revela de si mesmo. Portanto,
ainda que Deus seja amor e ama até a possibilidade de abandonar o seu Filho, como poderia
permanecer em estado de não-amor? E ainda questiona de forma retórica: “Poderia Deus
satisfazer-se, realmente, comprazendo-se consigo mesmo, se é amor? Como pode um Deus
que se gloria na cruz do Filho possuir uma tal glória imperturbável?”119
117
COMBLIN, José. Vocação para a liberdade. São Paulo: Paulus, 1998, analisando os textos de João 4, 23
(Deus é espírito e aqueles que o adoram deve adorá-lo em espírito e verdade) e 2Cor 3, 6 (a letra mata, mas o
Espírito dá vida), Comblin conclui que a liberdade está vinculada à figura do Espírito. Ele é a energia de vida
que não aceita limitações de lugar (templos, cidades) e convenções (leis ou credos) que contradigam o seu livre
agir. Deus é espírito e, por isso, é livre por que age pelo seu Espírito e por ele e transfigurado de glória em glória
(2Cor 3, 18; 7-11). 118
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.66. 119
Ibid., p. 67. Moltmann afirma que Deus, em sua imperturbável glória, teria tomado uma decisão: implica em
introduzir na eternidade de Deus uma estrutura temporal do “antes” e do “depois” ou mesmo que seria necessário
56
Desta forma, Moltmann rejeita a ideia de que um conceito de liberdade divina possa estar
vinculado a uma concepção de poder absoluto. Rejeita, portanto, qualquer liberdade em Deus
que encontre expressão através de um poder absoluto que lhe permita fazer, agir ou dispor de
tudo, a seu bel-prazer. No âmbito dessa linguagem, só Deus é livre. Porém, Deus não age
apenas por livre autodeterminação, concluiria Barth, mas também por livre superabundância
do seu amor120
.
Moltmann, em busca de um conceito que possa melhor refletir a natureza da liberdade em
Deus, propõe duas reflexões básicas: primeira, a necessidade de se determinar,
teologicamente, o sentido da liberdade em si mesma. Segunda, buscar a compreensão da
natureza desta liberdade à luz da essência do próprio Deus: o amor. Afirma, nesse contexto,
que o sentido teológico de liberdade não consiste em uma potentia absoluta de escolha entre o
bem e o mal; quem é verdadeiramente livre não precisa mais escolher, visto que sempre está
precisando escolher, também está sempre ameaçado pelo mal que subjaz a qualquer escolha.
Portanto, a liberdade não é o tormento da dúvida (a possibilidade de escolha), mas é a alegria
pura do bem (a liberdade do amor).
A liberdade consiste essencialmente na superação de toda a relação de dominação para
estabelecer uma participação interativa da vida concebida para além dos limites da
individualidade, compreendida a partir do amor relacional que o Deus triuno revela, na
comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Portanto, a liberdade de Deus consiste na relação harmoniosa entre sua essência e a sua
manifestação: “A misericórdia e a verdade se encontram” (Sl 85,10). A liberdade é a
manifestação da essência divina: o amor. Este transcende a imobilidade, a acomodação e a
satisfação em si mesmo e caminha na direção do outro, como abertura à comunhão, à
amizade, e à redenção, em prol da qual sofre e se oferece. Deste modo, por meio do seu
sofrimento e auto-sacrifício, em seu amor e entrega, Deus manifesta a sua liberdade.
admitir uma natureza divina “anterior” à decisão (Deus autossuficiente) e de outra natureza divina “posterior” a
ela (Deus que não basta a si mesmo), o que incorreria em admitir duas naturezas em Deus. 120
Ibid., p. 68.
57
2.1.2- A “morte de Deus” como origem da teologia cristã?
A reflexão de Moltmann parte do princípio da cruz de Cristo como base e crítica da
Teologia Cristã. Nela, a Teologia da Cruz crucifica o cristão. Ela questiona todos os modelos
e representações sobre o homem, sobre Deus e sobre a sociedade. Ela obriga o cristão a
possuir uma identidade que não pode ser projetada num modelo político, religioso e de um
futuro imanente da história. Ela destrói tudo isso e deixa o homem nu, como o Crucificado na
cruz121
. Moltmann procura situar a morte de Jesus a partir dessa visão, questionando em que
ela revela sua identidade última que é a identidade cristã. Mostra o processo de Jesus, no qual
Ele foi condenado como blasfemo e sedutor messiânico. Sua morte é consequência de uma
vida coerente. Para Moltmann não basta dizer que Jesus morreu como um profeta ou um
mártir. Mas é preciso chegar à última verdade que identifica a identidade, que reside para
além da rejeição dos judeus e dos romanos, na rejeição de Deus mesmo. Deus rejeitou seu
Filho. O grito de abandono e de desespero na cruz traduz a rejeição do Pai122
. Esta
compreensão destrói todos os nossos conceitos de Deus e revela que o Deus de Jesus Cristo
ama, regozija-se e sente dor. É um Deus do pathos, não da apatia. Neste sentido, a cruz não
assina a morte de Deus, mas, antes, que há morte em Deus.
A morte de Cristo, Filho de Deus, revela uma possibilidade de Deus de morrer e de ser
crucificado. Na cruz se revela, pois, a Santíssima Trindade, o Pai que rejeita, o Filho que é
abandonado e o Espírito como força com a qual tudo acontece e se mantém na unidade. Nela
se manifesta a História do Filho, do Pai e do Espírito, portanto, “a cruz é história trinitária de
Deus” 123
. Na cruz no Gólgota se manifestou o coração eterno da Trindade124
.
Esta compreensão destrói os conceitos de Deus. Não mais o Deus, pleníssimo de Ser,
que nos defende contra todos os que querem tirar os seus filhos. Ele passa a ser um Deus que
“aniquila”. Que se revela no seu contrário: sua graça nos pecadores, sua justiça nos maus, sua
divindade num crucificado.125
O Deus de Jesus Cristo revela-se na impotência e não na
potência, por isso, destrói e tornam idolátricas todas as imagens humanas de Deus. Moltmann
na linha do pensamento de Barth recusa-se a aceitar todo tipo de religião, cristã ou pagã. Se
elas não passam pelo crivo da cruz, logo, são pulverizadas.
121
Cf. BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo paixão do mundo, p. 179. 122
Ibid., p.180. 123
FORTE, Bruno. A Trindade como História: Ensaio sobre o Deus Cristão, p. 37. 124
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p. 41. 125
Cf. BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo paixão do mundo, p. 180.
58
Persiste uma pergunta ao longo da história: quem morre na cruz? É Jesus, o Filho de
Deus. Portanto, a cruz e a morte guardam uma relação estreita com Deus. Deus é atingido pela
morte. Daí o título do livro, do qual se pode compreender a Teologia da Cruz de Moltmann,
sem vírgula entre as palavras: O Deus crucificado126
. Nesta obra, Deus é o sujeito e o objeto:
crucifica e é crucificado. Crucifica porque Ele amaldiçoa o Filho e o rejeita. Este morre como
um Deus abandonado. Deus sofre a morte do Filho na dor de seu amor127
.
A paixão do mundo é assumida por Deus não de forma exterior, mas interior ao
próprio Deus. Entretanto, não devemos pensar, assevera Moltmann, que a morte e os motivos
que levam à morte como o ódio e a violência sejam assim eternizados porque pertencem a
Deus. Deus deve ser pensado em processo, Deus é vulnerável e mutável, exatamente porque
pode sofrer e amar128
. No fim, quando Deus mesmo chegar a sua identidade, e o Filho
entregar o Reino ao Pai, então Deus será tudo em todas as coisas, e o mal e a morte não
vigorarão mais. O próprio Deus terá superado o rejeitar, o matar, o crucificar e o ser
crucificado, pois será Deus em sua glória.
As novas convergências no pensamento teológico concentram a questão e o
conhecimento a respeito de Deus sobre a morte de Cristo na cruz e tentam compreender a
essência de Deus a partir de sua morte. A “teologia da morte de Deus” - que de certa forma
parece patética -, teve o mérito de obrigar a Igreja a começar pela Cristológica e a falar de
Deus por causa de Jesus, isto é, a desenvolver uma teologia no ouvir do clamor da morte de
126
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã. Santo
André: Academia Cristã, 2011. 127
Ibid. p. 15. Moltmann reconhece que não foi o primeiro e nem o único a tomar para si, como inspiração, a
Teologia da Cruz no séc. XX. Em 1949, o teólogo japonês Kazoh Kitamori publicou seu livro “A dor de Deus”.
Em 1951, as cartas de Dietrich Bonhoeffer, escritas na prisão (Resistência e Submissão), foram publicadas.
“Somente o Deus sofredor pode ajudar”, escreveu ele e, com isso, convocava: “Cristãos, se coloquem ao lado
de Deus no sofrimento”. Após a publicação de “O Deus crucificado”, ocorreu uma discussão longa e frequente,
de âmbito internacional e interconfessional. Um primeiro livro de discussão foi publicado em 1979 por Michael
Welber pela editora Christian Kaiser. Nele tratou-se fundamentalmente das seguintes questões: Deus é capaz ou
incapaz de sofrer? Se Deus é amor, como diz o Novo Testamento, então toma parte do sofrimento e aflição de
seus filhos amados? Outra controversia é sobre a questão da dor divina do Pai quando da paixão e morte de seu
Filho na cruz. Deve se pensar teopaticamente ou patripassionamente? Ou a dor do Pai pertence ao mistério
trinitário da cruz de Cristo? A discussão perdura até hoje e perpassa as diferentes confissões. 128
O Teólogo ortodoxo, o romeno Dumitru Staniloae, encontrou na teologia da cruz de Moltmann uma
interpretação para a misericórdia divina. O Papa João Paulo II em sua Encíclica Dominum ete Vivificantem, de
18 de maio de 1986, escreve: “Se o pecado fez aparecer o sofrimento, então a dor de Deus no Cristo crucificado
encontrou por meio do Espírito Santo a sua mais plena expressão humana. Aqui temos diante de nós um
mistério paradoxal do amor: Em Cristo, Deus sofre”. O Papa Bento XVI, expressou isso em sua Encíclica Salvi
Spe, de 2007, dizendo: “Bernado de Claraval fez a maravilhosa afirmação: Impassibilis est Deus sed nom
incompassibilis - Deus mesmo não pode sofrer, mas ele pode ter compaixão. O ser humano é tão importante para
Deus, que ele mesmo se fez humano, para poder sofrer junto com o ser humano, plenamente real em carne e
sangue, exatamente como nos foi mostrado na história da paixão de Jesus”.
59
Jesus. Como afirma É. Jüguel: “Qualquer confissão cristã deve ser compatível com o clamor
de morte de Jesus – ou ela não confessa a fé em Deus” 129
.
As tradições teológicas vêem a cruz e a ressureição de Jesus no horizonte da
Soteriologia. Moltmann afirma que até mesmo os estudos das igrejas protestantes só
perguntam pela cruz de Jesus quando procuram o “motivo da salvação”. Para ele, isso não é
errado, mas não é suficientemente radical. É preciso perguntar, além disso: “Qual o
significado da cruz de Cristo para o próprio Deus?” “Antes de morrer por nós, Jesus morreu
por Deus”.
Na teologia católica, em 1960, Karl Rahner entendeu a morte de Jesus como a morte
de Deus, no sentido de que, por meio de sua morte, nossa morte se tornou a morte do próprio
Deus imortal. Rahner fez um convite para pensar a morte de Jesus por si mesmo, e não apenas
em seu efeito salvífico. Uma vez que não é possível aceitar que essa morte “não afete” Deus,
é preciso aceitar que “essa morte manifesta Deus”. “A morte de Jesus pertence ao âmbito das
declarações de Deus a respeito de si mesmo” 130
.
O teólogo H. Urs v. Balthazar também adotou a dúbia fórmula da “morte de Deus”,
desdobrando-a no “mysterium paschale” sobre o título: A morte de Deus como fonte da
salvação, revelação e teologia. Ele explica o conhecimento de Deus e o recebimento da
salvação a partir do crucificado, compreende a Igreja como igreja “sob a cruz” e “a partir da
cruz”, e desenvolve a doutrina de Deus como uma teologia trinitária da cruz. Isso o conduziu,
com todas as ressalvas, à theologia crucis de Lutero, a Hegel e a Kierkegaard, aos teólogos
quenóticos alemães, ingleses e russos do século XIX, chegando a Karl Barth131
.
Para Moltmann, Balthazar explica de maneira mais teológica do que Karl Rahner, a
entrega, a dor e a morte do Crucificado, recorrendo ao mistério inerente ao próprio Deus e
encontra a plenitude das relações trinitárias do próprio Deus nessa morte de Jesus. Moltmann
enfatiza que as questões sobre a mutabilidade de Deus, sua capacidade de sofrimento e sua
“morte‟, entretanto, não foram convertidas em tema desse trabalho. A tentativa dessa tarefa
coube a H. Mühlen, em um pequeno trabalho sobre “A mutabilidade de Deus como horizonte
de uma cristologia futura” e a H. Küng, em digressões no seu livro sobre Hegel,
129
Cf. MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia
cristã, p. 246. 130
RAHNER, Karl. Sacramentum Mundi II, 1968, 951s: In MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz
de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 247. 131
Ibid., p. 249.
60
“Humanização de Deus”. Introdução ao pensamento teológico de Hegel. Como prolegômeno
para uma cristologia futura, a respeito das perguntas “Deus pode sofrer?” e “Imutabilidade de
Deus”132
?
Na Teologia Protestante, Moltmann afirma que K. Barth, depois de A. Schlatter e P.
Althaus, desenvolveu uma theologia crucis nas doutrinas da predestinação e reconciliação em
sua Dogmática. O “Jesus crucificado é a imagem do Deus invisível”133
. Sua concentração
cristológica da teologia o levou a combinar as tradicionais doutrinas das duas naturezas de
Cristo, a divina e a humana, e doutrina da posição de Cristo à posição de humilhação e de
exaltação na sua doutrina da reconciliação. Conforme essa combinação, a divindade de Jesus
se revela exatamente na sua humilhação e a sua humanidade, na sua exaltação. Com isso,
Moltmann confirma que Barth marcou o conceito de Deus com a dureza da cruz134
.
A crítica de Barth a uma theologia crucis, luterana o levou a aceitar e a aprofundar a
Teologia da Cruz, pois é somente na relação com a ressureição de Jesus que a teologia da cruz
pode ser teologia e, ainda, um conhecimento radical do abandono do Crucificado. Por ter
pensado de maneira consequente no “Deus em Cristo”, Barth pôde pensar a essência de Deus
historicamente, pôde falar quase teopaticamente sobre o sofrimento e a compaixão de Deus na
cruz do Filho e, finalmente, pôde falar sobre a “morte de Deus”, senão literalmente, pelo
menos na essência da matéria. Barth afirma que o próprio Deus é, no propósito divino,
rejeitado em seu Filho, pois, Deus prefere perder para que o homem ganhe. A está afirmação
Moltmann identifica a limitação crítica de Barth no fato de que ele ainda pensa de maneira
muito teo-lógica e não está totalmente decidido a pensar de maneira trinitária. Na sua
constante e acertada ênfase de que “Deus estava em Cristo”, que Deus humilhou-se a si
mesmo e que Deus mesmo estava na cruz, ele aplica um conceito simples de Deus que ainda
não foi desenvolvido trinitariamente.
Na concepção de Moltmann, tanto Barth como K. Rahner, precisam distinguir no
“Deus estava em Cristo”, entre o Deus que em sua decisão original sai de si mesmo e, de
novo, o Deus que está previamente em si mesmo em sua impassibilidade em relação ao mal.
Isso pode ser evitado se falarmos sobre o evento na cruz de maneira trinitária. Aqui se
132
Ibid., p. 249. 133
BARTH, Karl. Kirchliche Dogmatik II, 2 und IV, 1-4. In MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz
de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 249. 134
Em Barth, a rejeição do paradoxo na cristologia tem a função e a intensão de pensar a theologia crucis,
consistentemente ao ponto de elevar a cruz ao conceito de Deus. Isso mostra a teologia, como o falar sobre Deus,
que o seu lugar original é na cruz, ou seja, na Terra. Ibid. p. 250.
61
encontra o ponto essencial desta pesquisa: o de pensar a cruz com um evento trinitário. O
Filho padece e morre na cruz. O Pai padece com ele, mas não da mesma maneira. O Paradoxo
do Deus que está “morto” na cruz, mas na verdade não está, pode ser resolvido de maneira
trinitária, deixando-se o conceito simples de Deus do lado de fora. Quanto mais se entende
todo o evento da cruz como um evento de Deus, mais facilmente rompe-se com um evento
simples de Deus. Ele se apresenta a que se analise de maneira trinitária, a uma mudança de
posição: passa-se do exterior do mistério, chamado “Deus”, para o seu interior, que é
trinitário. Essa é a “revolução no conceito de Deus” que o Crucificado revela135
.
A morte de Jesus na cruz é o centro de toda a teologia cristã. Ele não é o único tema
da Teologia, mas é a porta para os seus problemas e respostas na Terra. Todas as declarações
cristãs a respeito de Deus, criação, pecado e morte apontam para o Crucificado. Todas as
declarações cristãs a respeito da história, Igreja, fé, santificação, futuro e esperança procedem
do Crucificado. Em sua complexidade, o Novo Testamento aflui para o evento da
Crucificação e Ressurreição de Jesus e torna a partir dele. Trata-se de um evento, de uma
pessoa. A soma de “cruz e ressureição” denota apenas a sequência temporal inevitável do
discurso, mas não uma justaposição de fatos, pois cruz e ressureição não são fatos do mesmo
nível; a primeira, expressa um acontecimento histórico em Jesus; a segunda, um evento
escatológico. Por isso, “cruz e ressureição” não ocupam o centro, mas, sim, a ressureição do
Crucificado, que qualifica sua morte por nós e a cruz do Ressuscitado, que revela e torna a
sua ressureição dentre os mortos, acessível aos mortais136
.
Tudo que a teologia cristã diz sobre “Deus” se fundamenta, em seu cerne, no evento
de Cristo. O evento de Cristo na cruz é o evento de Deus. Inversamente, o evento de Deus é o
evento na cruz do Ressuscitado. Portanto, Moltmann afirma que a nova Cristologia que se
esforça em pensar a “morte de Jesus como morte de Deus” precisa adotar os elementos da
verdade da quenótica (da doutrina da renúncia de Deus). Esta Cristologia não pode colocar o
ser divino somente em relações dialéticas com o ser humano, deixando que ambas
permaneçam inalteradas, mas precisa compreender o ser divino no seu caminho ao ser
humano e vice-versa. Ela precisa compreender o evento da cruz no ser de Deus trinitário e
pessoalmente137
. Por isso, ela precisa, em contraposição com a doutrina tradicional das duas
135
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 252. 136
Ibid., p. 253. 137
Ibid., p. 254.
62
naturezas da pessoa de Cristo, partir da totalidade da pessoa de Cristo e compreender a morte
do Filho na sua relação com o Pai e o Espírito.
A doutrina quenótica da autorrenúncia de Deus continuava pensando dentro do
contexto da distinção das duas naturezas de Deus e do homem. Ela tentava, no entanto,
compreender o ser de Deus em movimento. Segundo Moltmann, esta doutrina teve poucos
adeptos, pois a estrutura do pensamento mantido levou à declarações difíceis e impossíveis138
.
Para Moltmann, a “teologia mística da igreja oriental” pôde seguir sem dificuldades
pela doutrina das duas naturezas, com a qual Deus e o homem são distinguidos: e disse: “A
quenose... (e) a obra do Filho humanizado é a obra da santíssima Trindade, da qual não se
pode separar Cristo”139
. Mas, se a quenose do Filho até a morte na cruz é a “revelação de
toda a Trindade”, então esse evento só pode ser apresentado como um evento trinitário de
Deus.
Portanto, no evento da cruz são reveladas as relações de Jesus, o Filho, para com o Pai
e vice versa. Do evento da cruz e o do seu efeito libertador nos é revelada a saída do Espírito,
a partir do Pai. A cruz está no meio do ser trinitário de Deus, separa e vincula as pessoas em
suas relações umas com as outras e as mostra concretamente. Pois, para Moltmann, a
dimensão teológica da morte de Jesus na cruz é o evento entre Jesus e seu Pai, no espírito do
abandono e da entrega. Nessas relações, a pessoa de Jesus, em sua plenitude como Filho,
passa ao primeiro plano, e a relação da divindade e humanidade em sua pessoa passa a ser o
plano de fundo. Por isso, Moltmann afirma que quem realmente fala da Trindade, fala sobre a
cruz de Jesus e não especula em enigmas celestiais140
.
Concluindo, Moltmann afirma que a morte de Jesus não pode ser compreendida como
“morte de Deus”, mas somente como a morte em Deus. A “morte de Deus” não pode ser
descrita como a origem da Teologia Cristã, mesmo que essa designação indique algo correto,
mas apenas a cruz da morte em Deus e Deus nessa morte de Jesus. E aconselha a abandonar o
conceito de Deus e falar - no espaço que caberia a Deus -, sobre as relações do Filho, do Pai e
do Espírito. Moltmann critica as declarações a respeito da compreensão especificamente cristã
do discurso sobre “a morte de Deus” por não terem a dimensão da Trindade. Citando Cirilo de
Alexandria, “Deus estendeu seus braços na cruz para abraçar os limites do globo terrestre”,
138
Ibid., p.254. 139
Ibid., p.255. 140
Ibid., p.256.
63
Moltmann explica que isso se trata de uma expressão simbólica. Cirilo nos convida a entender
todo o mundo, sua história de sofrimento e suas esperanças nos braços estendidos do
Crucificado, isto é, em Deus.
2.1.3- A doutrina das duas naturezas e a Paixão de Cristo
Para Moltmann, a dificuldade central da Cristologia primitiva era o reconhecimento
honesto do desamparo de Jesus. Concordam com esta afirmação as mais recentes exposições
protestantes e católicas a respeito da história dogmática da Igreja antiga. A afirmação Paulina
leva-nos à compreensão do discípulo da “Paixão do meu Deus” (Rm 6,3) e até o louvor do
Crucificado nas liturgias da Sexta-Feira Santa demonstram algo parecido com uma “religião
da cruz” 141
.
Em sua opinião, Moltmann expressa que a reflexão teológica não estava em posição de
identificar o próprio Deus com o sofrimento e a morte de Jesus. Como resultado disso, a
Cristologia tradicional aproximou-se bastante do docetismo, de acordo com o qual Jesus não
teria realmente sofrido, mas apenas aparentemente, e não teria sido realmente abandonado por
Deus e morrido. Daí surge uma barreira intelectual advinda do conceito filosófico de Deus, de
acordo com o qual o ser de Deus é incorruptível, imutável, indivisível, incapaz de sofrer e
imortal; a natureza humana, por outro lado, é transitória, mutável, divisível, capaz de sofrer e
mortal142
.
A doutrina das duas naturezas em Cristo começou com essa distinção fundamental, a fim
de ser capaz de conceber a união pessoal das duas naturezas em Cristo. De outro lado, a
barreira intelectual devia-se ao anseio pela Salvação. Pois, onde mais pode o homem
transitório imortal achar salvação, senão na perenidade e imortalidade, isto é, na participação
no ser divino, na comunhão com Deus? Moltmann condena a crítica à estrutura metafísica da
Cristologia da igreja primitiva para substituí-la pela estrutura moral, tal como o fizeram os
historiadores do dogma e dogmáticos do final do século XIX143
. Para ele, se o pressuposto
onto-teológico não é mais valido, então, a esperança escatológica na semelhança com Deus
não tem peso, e o que permanece é o modesto consolo de que o Jesus moralmente sem
pecados permite aos seus seguidores que vivam bem e com mais facilidade.
141
Ibid., p.284. 142
Ibid., p.285. 143
Essa tendência soteriológica na doutrina das duas naturezas na igreja primitiva é ignorada no esboço liberal
da metafisica, um esboço que tem sido constantemente repetido desde A. Ritschl, “Theoloie und Metaphysik”
(1881). A consequência é uma redução da soteriologia à moralidade, que encontra um lugar em uma cristologia
que está livre da metafísica. In MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica
da teologia cristã, p. 285.
64
Desta forma, segundo Moltmann, a doutrina das duas naturezas se tornou a estrutura para
a Cristologia, não somente pela visão de mundo, e sim muito mais, por causa da esperança
transcendente da Salvação: Deus se tornou homem, para que nós, homens, pudéssemos
participar de Deus (Atanásio). O conceito teísta de Deus, de acordo com o qual Deus não
pode morrer, e da esperança da salvação - de acordo com a qual o homem pode ser imortal -,
impossibilitou a contemplação de Jesus como realmente Deus e, ao mesmo tempo, como
abandonado por Deus144
.
Moltmann propõe que, se considerarmos o evento da cruz entre Jesus e o seu Deus - no
contexto da doutrina das duas naturezas -, então, o axioma platônico da apatheia essencial de
Deus levanta uma barreira intelectual contra o reconhecimento do sofrimento de Cristo, pois,
um Deus que está sujeito ao sofrimento como todas as outras criaturas não pode ser Deus. Por
isso, Deus-homem Cristo só pode ter sofrido “de acordo com a carne” e “na carne”, ou seja,
em sua natureza humana. Para Moltmann, é verdade que a controversa fórmula teopática
afirmou que “um da santa Trindade sofreu na carne”145
, mas para ele o ataque cristológico à
predominância do axioma da apatheia na Cristologia não foi além. Essa fórmula teopática foi
rejeitada. Segundo Moltmann, até mesmo Cirilo de Alexandria - que acima de todos
enfatizava a unidade pessoal de Cristo contra os representantes da diferença das duas
naturezas -, não foi capaz de preencher a “lacuna”146
que a Teologia cristã primitiva como um
todo demonstrava até este ponto. Como consequência da sua cristologia de unidade, Cirilo
realmente teve de relacionar o grito de Cristo abandonado na cruz à pessoa completa, divina e
humana do Filho.
Moltmann compreendeu o grito de Cristo, em Cirilo, como um último vacilo diante do
axioma da apatheia. Também, conforme Tomás de Aquino, o sofrimento pertence a um
suppositum da natureza divina em relação à natureza humana assumida e que era capaz de
sofrer; ela não se relacionava à natureza divina em si, pois essa era incapaz de sofrer147
.
Para aprofundar a discussão, Moltmann propõe situar-nos diante dos pressupostos da
Cristologia da igreja primitiva e da Cristologia tradicional e nos perguntarmos: realmente foi
impossível atribuir o sofrimento de Cristo ao próprio Deus e foi necessário dissolver a união
pessoal das duas naturezas de Cristo no grito do seu abandono?148
144
Ibid., p.286. 145
Ibid., p.286. 146
Ibid., p.287. 147
Ibid., p.287. 148
Ibid., p.287.
65
Em primeiro lugar, Moltmann recorda o Concílio de Nicéia (325) que segundo o autor,
falou corretamente contra Ário (250-336) ao afirmar: Deus não é mutável. Porém, para
Moltmann essa declaração não é absoluta, mas uma comparação. Deus não é mutável como as
criaturas o são. Não se deve concluir, no entanto, que Deus é absolutamente imutável, pois
essa definição negativa simplesmente diz que Deus não está submetido a nenhum
constrangimento por algo não divino. A negação da mutabilidade, pela qual uma distinção
geral é levantada entre Deus e o homem, não pode levar, portanto, à conclusão de que ele é
intrinsecamente imutável. Se Deus não é passível de mudança por outras coisas, tais como
suas criaturas, isso não significa que ele não está livre para mudar a si mesmo ou, até mesmo,
livre para permitir que ele mesmo seja mudado por outros, de acordo com sua livre vontade.
Na concepção de Moltmann149
, Deus não pode ser dividido como a sua criação, entretanto, ele
ainda pode se comunicar. Assim, a definição relativa da sua imutabilidade não leva à
afirmação da sua imutabilidade absoluta e intrínseca.
Segundo, Moltmann apresenta a postura da Igreja contra os Monofisistas sírios, mantendo
sua afirmação de que era impossível que Deus sofresse. Deus não pode sofrer como criaturas
que são expostas à enfermidades, à dor e à morte. E questiona se Deus deve ser pensado como
impassível em todos os sentidos. Ele compreende que a Teologia da Igreja Primitiva só
conhecia uma alternativa para o sofrimento e esta era a incapacidade de sofrer (apatheia), o
não-sofrimento. Porém, afirma que existem - entre o sofrimento involuntário, resultado de
uma causa estranha e a impassibilidade substancial -, outras formas de sofrimento e elas são o
sofrimento ativo, o sofrimento do amor, no qual voluntariamente alguém se entrega para a
possibilidade de ser afetado por outro. E salienta que há sofrimento involuntário, há o
sofrimento aceito e há o sofrimento do amor. E conclui que se Deus fosse incapaz de sofrer
em qualquer aspecto e, portanto, em um sentido absoluto, então ele também seria incapaz de
amar. Portanto, se o amor é a aceitação do outro sem considerar o seu próprio bem-estar,
então, ele contém em si mesmo a possibilidade da compaixão e da liberdade de suportar a
alteridade do outro150
.
Desta forma, a incapacidade de sofrer contradiz a afirmação cristã fundamental de que
“Deus é amor”, com o qual se rompeu com o encanto da doutrina Aristotélica de Deus. Quem
é capaz de amar, também é capaz de sofrer, pois este também se abre aos sofrimentos
acarretados pelo amor, mantendo-se, por causa do seu amor, superior a eles. Citando H. Küng,
Moltmann afirma que a negação justificável de uma capacidade de sofrimento de Deus
149
Ibid., p.288. 150
Ibid., p.288.
66
causada por uma carência em seu ser, não pode levar-nos a uma negação de sua capacidade de
sofrer a partir da plenitude do seu ser, ou seja, do seu amor151
.
Finalmente, Moltmann questiona se a Salvação, pela qual a fé espera, pode ser
expressa de maneira significativa pelos predicados gerais de Deus da via negativa, tais como
eternidade, a imortalidade e a imutabilidade. Se a transitoriedade, a mortalidade e a
mobilidade são experimentadas como perdição e miséria, então, a Salvação pode ser descrita,
aqui, somente por frases que neguem o negativo152
. A esse ponto, Moltmann refere-se a essas
frases como simplesmente paráfrases, pois a posição positiva não surge por mágica ou
milagrosamente da negação do negativo. Se não se pode dar nenhuma informação sobre o
conteúdo da fé e se as paráfrases negativas são encaradas como conteúdo em si, então, em
última analise, a eternidade e a imortalidade não parecem ser especialmente desejáveis, mas,
ao contrário, parecem ser aterrorizantes e entediantes. Elas negam com a miséria da
“transitoriedade” a bondade relativa da criação e a felicidade transitória imortal dessa vida.
Para falar seriamente sobre a salvação da comunhão com Deus, Moltmann propõe
irmos além das distinções gerais entre Deus e o mundo, ou entre Deus e o homem, penetrando
nas relações especiais entre Deus e o mundo e entre Deus e o homem na história de Cristo.153
Ele afirma que a fórmula de Atanásio se transforma no sentido da de Lutero: Deus se tornou
homem, a fim de que dos monstros surgissem verdadeiros homens. Tornamo-nos verdadeiros
homens na comunhão com o Deus humano encarnado, sofredor e amoroso, ou seja, com o
Deus humano. Essa salvação também é exteriormente permanente e imortal da humanidade de
Deus, mas, em si mesma, é uma nova vida cheia de movimento interior, com sofrimento e
alegria, amor e dor, dando e oferecendo, portanto, mutabilidade em seu mais alto grau de
vitalidade154
.
Portanto, Moltmann afirma que a doutrina das duas naturezas na Cristologia não se
restringiu apenas a uma tentativa de uma separação clara entre as naturezas da divindade e a
da humanidade, mas, ao mesmo tempo, tentando pensar e afirmar sua unidade na pessoa de
Cristo esta doutrina colocou as duas naturezas em unio personalis, em uma relação mútua que
151
Ibid., p.289. 152
Ibid. p.289. E. Brunner, Das Ewige als Zukunft um Gegenwart, 219-221, observações na forma do estilo da
negação do negativo: “O negativo é claro e indica que “a forma deste mundo está se desfazendo”, que a morte e
a transitoriedade não mais existirão. Porém, longe de tudo o que diz respeito ao novo ser do homem e da
humanidade, o elemento positivo continua quase que completamente indeterminado. Evidentemente, só
precisamos saber uma coisa sobre isso, que também haverá um “mundo” na eternidade”. Moltmann difere aqui, a
negação do negativo é formulada na antecipação histórica do positivo escatológico, pois só aqui a experiência da
negatividade do negativo emerge. 153
Ibid., p.290. 154
Ibid., p.290.
67
não deveria ser admitida em termos abstratos e sim em termos concretos ao Deus-homem
Cristo. Nesta concepção, a natureza divina é originalmente idêntica à pessoa de Cristo na
medida que a pessoa de Cristo é a segunda pessoa da Trindade, o eterno Filho de Deus.155
Em
outras palavras: a natureza divina é operante em Cristo não como uma natureza, mas como
uma pessoa. A segunda pessoa da Trindade é o centro formador da pessoa no Deus-homem
Cristo. A natureza humana de Cristo não é originariamente idêntica à pessoa de Cristo, mas é
presumida pela pessoa divina do Filho de Deus, por meio da sua encarnação e, na pessoa de
Cristo, se torna a existência concreta de Jesus Cristo.
A natureza divina se apresenta em Cristo hipostaticamente como pessoa, porém, a
natureza humana se apresenta de maneira contrária, não hipostática, como existência concreta
da pessoa divina. Diante dessa reflexão, Moltmann questiona: se o centro formador da pessoa
em Cristo é de natureza divina, como, então, podemos dizer, a respeito de toda a pessoa
divina e humana de Cristo, que ela sofreu e morreu abandonada por Deus?156
A Teologia
Escolástica perguntou se, em virtude da unidade das duas naturezas, a pessoa de Cristo, os
predicados da natureza divina poderiam ser transferidos para a natureza humana, e se os
predicados na natureza humana poderiam ser transferidos para a natureza divina.
Moltmann faz um resumo crítico da tradição a partir de sua reflexão sobre a doutrina
das duas naturezas de Jesus Cristo. Por meio da doutrina do communicatio idiomatum, Lutero
tentou superar a barreira intelectual contra a percepção de Deus na morte de Cristo, uma
barreira que surgiu da doutrina das duas naturezas. Segundo Moltmann, essa doutrina fez
distinções externas entre Deus e o homem, e, ao fazê-lo, destruiu todas as tentativas do
homem de autodivinização. Nesse sentido, o communicatio idiomatum penetrou nas relações
interiores entre Deus e Jesus e examinou cuidadosamente a vida interior do Deus-homem
Cristo, o mediador da comunhão entre Deus e o homem157
.
Essa doutrina possibilitou a reflexão sobre o próprio Deus no abandono de Cristo e a
atribuição do sofrimento e morte na cruz à pessoa divina e humana de Cristo. A este ponto,
Moltmann conclui que se a natureza divina na pessoa do eterno Filho de Deus é o centro
formador de Cristo, então, ela também sofreu e morreu158
.
Para Moltmann é importante distinguir entre a natureza divina in genere e a segunda
pessoa da Trindade in concreto, distinção que Lutero, a seu ver, renovadamente trazia à
mente, embora nem sempre. Lutero usou essa distinção para reconhecer Deus no sofrimento e
155
Ibid., p.290. 156
Ibid., p.291. 157
Ibid., p. 295. 158
Ibid., p. 295.
68
na morte de Cristo. Mas, para Moltmann, às vezes, Lutero não atentava para as relações nas
quais entrava essa pessoa do Filho, que sofre e morre, com as pessoas do Pai e do Espírito.
Isto é, ele pensava sua cristologia em termos da encarnação e da teologia da cruz, mas nem
sempre desenvolvida em termos trinitários159
.
Moltmann conclui que a cristologia de Lutero do Deus crucificado permanece no
contexto da doutrina da Igreja antiga sobre as duas naturezas, representando um
desenvolvimento importante da doutrina da communicatio idiomatum, e radicaliza a doutrina
da encarnação na cruz. Uma vez que pressupunha, em sua cristologia, o conceito de Deus a
partir da distinção geral entre Deus e o mundo, assim como entre Deus e o homem, ele
seguramente chegou, na teologia da cruz, a uma mudança sustentável do conceito de Deus160
.
Mas, para Moltmann, Lutero não chegou a uma desenvolvida doutrina cristológica da
Trindade.
2.2 – Teologia da Cruz em perspectiva Trinitária
A Teologia da Cruz e a Doutrina Trinitária constituem símbolos identificadores da fé
cristã. Apresentam o que o Cristianismo possui de mais específico e controvertido diante das
demais religiões. Por isso, não sem propósito, que o Islamismo, historicamente, sempre
acusou os cristãos de criarem um novo Deus a partir da fé monoteísta161
.
Moltmann aprofunda essa temática propondo pertinentes respostas para tão
importantes e decisivas questões: há uma conexão lógica e interna entre a fé no Crucificado e
no Deus triuno? É necessário pensar trinitariamente para compreender o Deus humano, isto é,
o Deus crucificado? Como compreender a cruz trinitariamente? O que aconteceu entre Cristo
e Deus na cruz?
Para Leonardo Boff, a tese mais difícil de Moltmann - e também em boa parte de
Balthasar -, é que o Pai realiza o sacrifício do Filho na cruz, onde o Pai faz aquilo que Abraão
não fez, este tentou sacrificar o filho Isaac. O Pai foi mais longe: matou o Filho.162
Para Boff,
Moltmann fica fascinado com tal ato, pois estamos diante de uma radical teologia da cruz.
159
Ibid., p. 296. 160
Ibid., p. 296. 161
Ibid. 162
BOFF, Leonardo. Paixão de Cristo paixão do mundo, p. 190.
69
Não mais na teoria freudiana, o Filho que mata o Pai, porém, é o Pai que mata o Filho. Isso
ressalta a cruz como escândalo163
.
Moltmann busca estabelecer as bases epistemológicas necessárias e adequadas para o
tratamento da temática trinitária após revisar suas principais questões históricas164
. Deste
modo, entende que um conceito sólido da doutrina trinitária deve ser estabelecido a partir de
uma perspectiva teológica da cruz. Assim, estabelece-se uma mutualidade pela qual a
Doutrina Trinitária deve dialogar necessariamente com a Teologia da Cruz e esta com a
Trinitária, sob pena de prejuízo para a compreensão de ambas, especialmente para o
significado pleno da cruz165
.
Portanto, a cruz é um profundo evento trinitário. Por meio dela o Pai abandona o Filho
que se entrega à vontade do Pai pelo Espírito que o acolhe em seu amor. Sem eufemismos,
poder-se-ia afirmar que a Primeira pessoa da Trindade lança e destrói a Segunda. A theologia
crucis, desta forma, se expressa em sua mais definitiva radicalidade166
. Em função disso,
Moltmann propõe que o estudo da natureza trinitária da cruz comece pela vinculação desta
natureza a uma interpretação teológica do termo abandono.
No Novo Testamento o termo utilizado para indicar abandono é paradidónai que
significa: entregar, abandonar, rechaçar, matar. Termo que na Teologia Paulina encontra
espaço especial. Na Carta aos Romanos, Paulo o utiliza em conexão com a ira e juízo de Deus
(Rm 1,18-32). Por causa da impiedade e da injustiça praticadas por homens e mulheres
rebeldes, Deus os entrega (cf. vs. 24,26,28) às suas próprias concupiscências e paixões. Deste
modo o juízo divino realiza-se no ato do abandono de todos os idólatras167
.
Na concepção Paulina, esse é o contexto no qual a justiça de Deus se manifestou,
primeiro aos judeus e também aos gregos, para, enfim, revelá-la no Cristo crucificado (Rm
163
Ibid., p. 191. Para Leonardo Boff o escândalo da cruz, tanto na perspectiva de Moltmann quanto em
Balthasar, gera uma dúvida, pois não se sabe mais: ou a cruz é escândalo em face de uma compreensão humana
(religiosa dos judeus e filosófica dos gregos) ou deve ser um escândalo tão absoluto que o é também para Deus?
Em sua Concepção parece que tudo é dito para romper com qualquer possibilidade de o logos funcionar. Para
ele, não ha mais controle por nenhuma instância. Trata-se de um fato bruto, um dogmatismo o mais radical. Tal
dogmatismo está a um passo do ateísmo. Fideísmo e ateísmo possuem a mesma estrutura, por isso, se entende
que não há mais nada para obviar um total ateísmo ou reduzir o cristianismo a um dogmatismo fanático que se
afirma como pura vontade de poder. Para Boff, apresentar tal realidade da cruz como libertação e crítica a todos
os projetos libertadores é a forma como se universaliza uma escravidão. Afirma, portanto, que liberta-se, fazendo
todos escravos de um conceito tirano de Deus, absurdo sem qualquer instância de racionalidade e de luz como
pura escuridão e arbitrariedade, pois Ele resolveu em seu eterno arbítrio instaurar a cruz pela cruz, a
sacarificação do Cordeiro por pura determinação. 164
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 300 –
307. Neste ponto de sua obra, Moltmann apresenta importantes elementos históricos sobre o desenvolvimento do
dogma trinitário que já utilizamos como subsídio na estruturação do tema na primeira parte desta pesquisa. 165
Ibid., p. 309-310. 166
Ibid., p. 303. 167
Ibid., p. 304.
70
3,22;5,8-11;6,1-3), por Ele abandonado, como dizem as Escrituras: “Quem não poupou seu
próprio filho e entregou por todos nós, como não nos haverá de agraciar em tudo junto com
ele?” (Rm 8,32).
Moltmann reconhece que Paulo, embora reconheça o abandono histórico de Jesus na
cruz, emprega o termo paradidónai em relação a Jesus em outro sentido teológico. Desta vez
Deus, o Pai, abandona seu Filho em favor de uma humanidade ímpia e extraviada. Por isso,
não o poupa, para poupar os outros, abandona-o para acolher os perdidos. Este é o
fundamente teológico da justificação dos ímpios e do acolhimento dos inimigos de Deus.
Contudo, pode-se dizer que o Pai entrega o seu Filho na cruz para tornar-se Pai de todos os
abandonados168
.
O abandono do Filho não apenas aponta para o fundamente teológico da justificação,
que possibilita o acolhimento do pecador, como também para a dimensão trinitária da cruz. E
isso impede qualquer concepção patripassionista169
de Deus. O Filho é quem experimenta a
morte, o Pai é quem o abandona e o Espírito é quem o acolhe. No entanto, o Filho sofre a
morte essencialmente na angústia do abandono, não na morte em si. Na morte não se pode
sofrer, uma vez que o sofrimento pressupõe a vida. Quem de fato sofre a dor infinita da morte
do Filho é o Pai. Pois Este participa do sofrimento do Filho, porém, como Pai, e assim, de
forma diferente. Para compreender o que ocorreu na cruz é preciso entendê-la trinitariamente.
168
Ibid., p. 306. 169
KELLY, J.N.D. Doutrina centrais da fé cristã: origem e desenvolvimento, p.89-91. O patripassionismo
advoga a ideia de que a Palavra (logos) ou Filho não era outro senão o Pai. Haveria apenas uma divindade que
poderia ser indiferentemente designada como Pai ou Filho; não apresentam distinções reais os termos sendo
meros nomes aplicáveis em épocas diferentes. O termo está diretamente ligado ao fato de que só o Pai, portanto,
poderia ter sofrido na cruz, visto não haver possibilidade de nenhuma divisão na divindade.
71
2.2.1-O Deus crucificado
Em sua obra O Deus Crucificado, Moltmann propõe desenvolver uma teologia da cruz.170
Mesmo, assim, ele não oferece uma renúncia à perspectiva escatológica, já estabelecida em
sua obra Teologia da Esperança, porém, realiza uma integração importante que enriquece
decisivamente sua cristologia. Moltmann, neste momento, destaca o mistério da cruz
integrando-o sempre ao mistério da ressurreição e qualificando-o171
.
Batista Mondin afirma que tal integração era indispensável visto que a ressurreição
não diz respeito a um homem qualquer, mas àquele que morreu na cruz, Jesus de Nazaré.172
Na compreensão de Moltmann a ressurreição não esvazia a cruz173
(1Cor 1,17), mas, ao
contrário, a preenche de significado escatológico e soteriológico.174
Deste modo, toda
interpretação do sentido da sua morte que não tenha como premissa a sua ressureição dos
mortos é um dado sem esperança175
.
Na formulação de sua Teologia da Cruz, Moltmann tem como objetivo aprofundar e
fundamentar melhor sua esperança escatológica, bem como suas perspectivas cristológica e
trinitária. Para ele, a cruz de Cristo, constitui definitivamente a base de todas as aberturas de
horizonte que se dá na sociedade e que se cobra da Igreja. Sua obra O Deus Crucificado é,
170
RATZINGER, Joseph. Introdução ao Cristianismo: preleções sobre o símbolo apostólico com um novo
ensaio introdutório. . São Paulo: Loyola, 2006, p. 170-172. Ratzinger informa que na história da fé cristã, dois
enfoques cristológicos se destacam: a teologia da encarnação e a teologia da cruz. O primeiro, de origem grega,
enfatiza a questão ontológica do Deus-homem, tendendo a uma visão estática e otimista, isto é, a condição de
pecado do ser humano não é tão relevante quanto a sua integração homem-Deus. O segundo projeta suas raízes
para o apóstolo Paulo, e a tradição reformada. Sua ênfase recai sobre o acontecimento da cruz, isto é, a atuação
de Deus na cruz a na ressurreição. A teologia da cruz tende a uma visão mais atual-dinâmica do Cristianismo, o
qual, por uma atitude crítica diante do mundo, se reconhece como uma ruptura descontínua, sempre renovada e
atual, com a segurança e a certeza que o ser humano e as instituições, inclusive a Igreja, têm de si mesmos. Para
Ratzinger, os referidos enfoques cristológicos precisam ser mantidos como polaridades que se corrigem
mutualmente, na incessante busca pela unidade de ambas as abordagens. 171
FORTE, Bruno. Teologia da História: ensaio sobre a revelação, o início e a consumação. São Paulo:
Paulus,1995, p. 316-317. O autor trata da integração entre os eventos da ressurreição e o evento da cruz,
denominando esta integração de “identidade da contradição”. Para ele, tal vinculação ressalta a consequente
identidade estabelecida na contradição entre o presente do mundo e o futuro de Deus. Desta relação emerge,
portanto, uma forte densidade tanto cristológica quanto trinitária. 172
MONDIN, Batista. Os grandes teólogos do Século Vinte, p.199. 173
TAMEZ, Elza. Contra toda condenação: a justificação pela fé, partindo dos excluídos. São Paulo: Paulus,
1995, p. 256-259. No mesmo sentido, a autora conclui que tanto na cruz quanto na ressureição houve juízo: as
autoridades romanas julgam e condenam um inocente, Deus, porém, julga e sentencia o mesmo inocente à
ressureição. Assim, firma-se a estreita relação cruz-ressurreição. 174
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.256. 175
CARAVIAS, José L. Fé e Dor: respostas bíblicas diante da dor humana. São Paulo: Paulinas, 1997, p.154-
156. Conduzindo sua pesquisa para a superação das chamadas „teologias da cruz‟, o autor insiste que somente a
partir da perspectiva da ressurreição é que a cruz de Jesus pode ser interpretada. Esta perspectiva corrige o
símbolo da cruz para ser compreendida acima de tudo como vitória sobre o sofrimento e a morte. Nesse sentido,
a cruz não significa mera satisfação ou glorificação da dor, mas fim do seu reinado. Cf. também, SEGUNDO,
Juan Luis. A história perdida e recuperada de Jesus de Nazaré: do sinóticos a Paulo. São Paulo: Paulus, 1997,
p.592-596. Para Segundo, o evento da ressureição em Paulo constitui o eixo central para a compreensão tanto da
obra justificadora de Cristo quanto do problema da história humana. Por isso, a ressureição é a vitória sobre a
constante ameaça de transitoriedade de todo o projeto histórico.
72
portanto, a sua contribuição à tradição de uma teologia centrada em Cristo e sua cruz, porém,
sua obra visa a evitar o que denomina de tradição sem muito êxito.
Para Moltmann, como já vimos anteriormente, uma teologia da cruz já remonta a uma
significativa tradição, que tem seu início na pregação do apóstolo Paulo. Lutero a menciona e
esteve sempre presente nas comunidades perseguidas e pobres. Teve sua marca em
Zinzendorf e Martin Kähler, o qual declarou ser a cruz de Cristo o fundamento e medida da
Cristologia, passando pela Teologia Dialética nos Anos Vinte, em sua primeira fase.
Em sua concepção, Moltmann afirma que a teologia da cruz padeceu de um recorrente
reducionismo temático ao longo da tradição histórica. A miséria humana e a salvação sempre
foram o objeto primordial de sua preocupação. Faltou-lhe, no entanto, abrir-se a outras
fronteiras da realidade humana e teológica, uma vez que a Soteriologia não poderia aprisiona-
la. Pois, uma teologia da cruz deve sempre produzir profunda reflexão da fé cristã sobre o
conceito que tem de Deus (Teologia) e do próprio homem (Antropologia): quem é Deus ante a
cruz de Cristo e do seu abandono?176
Quem é o verdadeiro homem à luz do Filho do homem,
abandonado e ressuscitado por Deus?177
Na teologia da cruz de Moltmann encontra-se outra questão preliminar que diz
respeito a um princípio crítico-reformado (Eclesiologia): eclesiam reformada semper
reformanda. À luz da cruz, a Igreja deve reavaliar constantemente sua teologia e sua práxis.
A crítica da Igreja deve converter-se em crítica da sociedade e a crítica da sociedade deve
converte-se em crítica da Igreja. Para tanto, Moltmann propõe que a Teologia da Cruz seja
critério definitivo de cristicidade178
tanto da Teologia quanto da Igreja. Para tanto, ele não
visa elaborar uma teologia abstrata da cruz e do sofrimento, se não uma Teologia do
Crucificado.
A Teologia da Esperança e a Teologia da Cruz constituem um estudo indispensável
para completar a compreensão adequada dos elementos de aproximação à teologia de
Moltmann. A Teologia da Cruz, expressa em O Deus Crucificado, além de aprofundar a
temática da esperança escatológica (com ênfase no princípio da antecipação), contribui
176
MURAD, Afonso. Este cristianismo inquieto: a fé cristã encarnada, em J. L. Segundo, p.58-60. Para Murad,
numa compreensão teológica Latino-americana, a cruz significa tanto lugar de revelação do mistério do amor
divino e de sua ação libertadora, quanto lugar de encontro com o sofrimento dos povos empobrecidos e
crucificados. 177
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.62. 178
Ibid. p.45. Para Moltmann a identificação cristã com o crucificado significa ser solidário com o sofrimento
dos pobres e com a miséria dos oprimidos e opressores. Por outro lado, essa solidariedade irrestrita,
desinteressada e consequente, já é por si só uma identificação com o Crucificado que “se fez pobre, embora fosse
rico, para vos enriquecer...” (2cor 8,9). No que a identificação cristã com o crucificado se afasta das
inevitabilidades e trivialidades deste mundo alienado, ela leva o crente necessariamente para a solidariedade com
os alienados deste mundo, com os desumanizados e com os indivíduos cruéis.
73
decisivamente para aportá-la junto aos desafios modernos tanto da Humanidade quanto da
própria Cristologia (com ênfase no princípio da Encarnação), ao mesmo tempo em que
também contribui para a introdução do estudo da perspectiva trinitária da fé cristã. Para
Moltmann, a Doutrina da Trindade deixa de ser mera especulação quando entendida como
descrição da situação de Deus na cruz de Cristo179
.
2.2.2- O diálogo entre a Doutrina Trinitária e Teologia da Cruz
Para Moltmann, o teólogo karl Rahner avançou na tese sobre as distinções entre a
Trindade imanente e a trindade econômica, afirmando que ambas as distinções são
inapropriadas a partir do seu axioma180
. Desta maneira, a unidade e a Trindade de Deus
devem ficar juntas em um só tratado. Não se pode, primeiro, descrever a unidade da natureza
de Deus e, depois, distinguir entre as três pessoas divinas ou hipóstases, pois, assim, haveria
quatro seres. O ser de Deus, então, se torna a hipóstase de Deus, de modo que as três pessoas
podem ser renunciadas e seja possível pensar em termos monoteístas.
Moltmann adverte que se deve olhar para o contexto particular, no qual o pensamento
trinitário é necessário, caso contrário, essas considerações poderiam facilmente se tornar uma
nova visão do ensino tradicional sob as novas condições dos tempos modernos. Citando
Schleiermacher, Moltmann diz que qualquer nova versão da doutrina da Trindade deve ser
uma transformação que volta para o seu estado inicial181
. O lugar da doutrina da Trindade não
é no “pensar do pensamento”, mas na cruz de Jesus. Deste modo, a percepção do conceito
trinitário de Deus é a cruz de Jesus. O conceito teológico para a percepção do Crucificado é a
doutrina da Trindade. Em outras palavras, Moltmann afirma: o princípio material da doutrina
da Trindade é a cruz de Cristo e o princípio formal do conhecimento da cruz é a doutrina da
Trindade182
.
Na concepção de Moltmann a teologia da cruz deve ser a doutrina da Trindade e a
doutrina da Trindade deve ser a teologia da cruz, pois, caso contrário, o Deus humano e
179
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p.62. 180
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.302. O
axioma consiste em afirmar que “a Trindade é a essência de Deus e a essência de Deus é a Trindade”; “A
Trindade econômica é a Trindade imanente e a Trindade imanente é a Trindade econômica”. Para Rahner o
relacionamento de Deus conosco é composto de três partes. E esse relacionamento (livre e imerecido) de três
partes conosco não é uma mera imagem ou analogia da Trindade imanente, é essa Trindade em si, mesmo sendo
compartilhada como graça. 181
Ibid., p.302. 182
Ibid., p. 303.
74
crucificado não pode ser plenamente compreendido183
. Na história do Filho, do Pai e do
Espírito, a cruz é história trinitária de Deus, pois, “na cruz erguida no Gólgota se manifestou o
coração eterno da Trindade” 184
. Por isso, Balthasar afirma que somente no sentido trinitário
pode ser compreendida até o fim a teologia da entrega185
. O que tradicionalmente se chamava
de “expiação vicária” deve ser compreendido, transformado e exaltado como acontecimento
trinitário. A figura da Trindade se dá sobre a cruz na unidade do Filho, que se entrega, do Pai,
que o entrega, do Espírito, entregue pelo Filho e acolhido pelo Pai186
.
Portanto, na cruz a pátria entra no exílio para que o exílio entre na pátria: nela consiste
a chave da história. A história de Deus, concretizada na morte de Jesus no Gólgota, contém
todas as profundezas e abismos da história humana e poderá ser compreendida como a
“história da história”. Toda a história humana, embora marcada pela culpa e pela morte, é
assumida nesta “história de Deus”, na Trindade, e integrada no futuro da “história de
Deus”187
.
183
Ibid., p.303. BALTHASAR, H.Urs. von, afirma que “o escândalo da cruz é tolerável para os que crêem,
somente como uma ação do Deus triuno e, de fato, é a única coisa da qual os que creem podem se orgulhar” 184
MOLTMAN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.41. 185
Cf. FORTE, Bruno. A Trindade como História: Ensaio sobre o Deus Cristão, p. 38. 186
Ibid., p.38. Comentando Moltmann, Bruno Forte, diz que na cruz a Trindade faz o exílio do mundo subjacente
ao pecado, para que esse exílio entre pela Páscoa na pátria da comunhão comunitária, portanto, a cruz é historia
nossa porque é historia trinitária de Deus. A cruz não proclama a blasfêmia de uma morte de Deus, que abre
espaço à vida do homem prisioneiro da sua autossuficiência, mas a boa nova da morte em Deus, para que o
homem viva da vida do Deus imortal, na participação da comunhão trinitária, tornada possível graças àquela
morte. 187
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 310.
75
2.2.3- A crise de relevância e de identidade do Cristianismo
Em sua obra O Deus Crucificado, Moltmann reflete sobre a relevância e identidade do
Cristianismo e inicia uma ampla discussão. Ele entende que a cruz é critério decisivo tanto
para a Teologia quanto para o Cristianismo. Para ele, no Cristianismo, a cruz prova tudo que
merece chamar-se cristão e, distingue dele, todo elemento estranho e sincrético.
Nesta perspectiva, a fé cristã que se lança em busca de relevância histórica não deve
fazê-lo à custa de sua identidade188
, assim como o “enclausuramento conservador”,
excessivamente preocupado com a manutenção de uma identidade própria, não deve impedir a
necessidade de relevância da fé cristã. Moltmann afirma que deve haver um equilíbrio nesta
questão, e esta o exige de uma relevância a partir da identidade e de uma identidade com
relevância. Para ele, a crise da Igreja na sociedade contemporânea não é apenas uma crise de
sua adequação ou isolamento, mas é uma crise de sua própria existência como igreja do Cristo
crucificado. A cada crítica externa que lhe atinge é apenas mais um indicativo de sua crise
cristológica interior189
.
O conceito de Deus, por exemplo, ajudaria a situar e compreender tanto a crise de
identidade quanto a de relevância. Deus morreu? Quem é, de fato, Deus (identidade), ou como
falar de Deus depois de Auschwitz (relevância)? Questões legítimas, porém, tratadas sem a
devida acuidade exegética e histórica. Para Moltmann, este fato motivou a muitos a
abandonarem a Igreja em busca de ideologias e métodos que se identificassem mais
claramente com a luta por um mundo mais justo e mais humano190
.
Portanto, para Moltmann, não pode haver fé revolucionária sem revolução no conceito de
Deus. Muitos conceitos acerca de Deus seriam mais bem definidos como verdadeiras imagens
idolátricas, resultantes da ansiedade e da hybris humana191
, ou seja, um Deus criado como
projeção dos próprios anseios e desejos da criatura. Deste conceito deturpado emerge,
inevitavelmente, a crise cristológica - quem é Jesus Cristo? (identidade), que repercutirá
188
Ibid., p.18. No prólogo de sua obra na edição brasileira, Moltmann faz uma crítica sociológica, psicológica e
ideológica à Igreja e à Teologia. Esta crítica só pode se recebida e radicalizada por meio de uma teologia da cruz.
Pois há um critério inerente a toda teologia e a toda igreja que se afirma cristã e esse critério transcende a toda
crítica política, ideológica e psicológica de fora. Esse critério é o próprio Cristo crucificado: “Quando as igrejas,
teologias e modos de fé recorrem a ele, elas estão recorrendo ao juiz mais rigoroso e ao mais radical libertador
da mentira e vaidade, libertador da luta por poder e do medo”. Há, portanto, uma necessidade da Igreja e da
Teologia em recorrer ao Cristo crucificado se elas querem ser cristãs. 189
Ibid., p.19. 190
MOLTMANN, Jürgen. Paixão pela vida, p.49. 191
Hybris: termo clássico da cultura grega que designa a atitude humana que não aceita ou admite seus próprios
limites e acaba por se considerar divino.
76
diretamente na projeção política e social da Igreja cristã - quem é Jesus Cristo hoje?
(relevância)192
.
Conclui-se que crise de relevância e a crise de identidade são mutuamente
complementares. Ao encontrar a identidade a relevância é questionada. Quando se alcança a
relevância, a identidade é questionada. Moltmann afirma que podemos precisar esta crise
dupla que afeta a fé cristã de tal forma que cada uma dessas crises seja apenas o reverso da
outra e, por isso, ambas podem ser levadas a um denominador. A teologia cristã é teologia da
cruz, quando ela enquanto teologia cristã é identificável no Cristo. Ao passo que a teologia da
cruz é uma teoria crítico-libertadora de Deus e do ser humano193
. Desta forma a existência
cristã no discipulado do Crucificado é uma práxis que transforma o próprio ser humano e as
circunstâncias.
2.3 – História e Ressurreição
Partindo do pressuposto de que toda teologia é histórica, reflete-se sobre Deus em um
determinado tempo histórico. A história é, portanto, o locus theológicus. Neste sentido, a
história é viva. A experiência pascal marcou a vida dos homens das origens cristãs que eles
não puderam deixar de reler à sua luz, o passado, o presente e o futuro da história194
.
Para Moltmann, a primeira questão sobre a realidade da ressurreição de Cristo sempre
se refere ao objeto narrado e anunciado pelas testemunhas pascais. Este objeto se refere a um
evento, isto é, à “ressurreição de Jesus dentre os mortos por obra de Deus”, a questão da
realidade deste evento assume imediatamente a forma de uma questão histórica195
.
A ressurreição é compreendia como ação de Deus sobre o morto para trazê-lo à vida.
A comunidade relê em primeiro lugar, à luz do evento trinitário da Páscoa, o dado histórico
do Nazareno, o que se confessa a respeito do termo de sua existência terrena e do novo início
da sua vitória sobre a morte, se reconhece presente no primeiro início dos dias de sua carne196
.
Deste modo, cruz e ressureição se assimilaram como duas obras de Deus, dois
acontecimentos básicos da única história de Deus com o mundo. Sua leitura nos remete ao
caminho que Jesus percorre desde a Galiléia até Jerusalém e nos conduz ao encontro do
192
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.43. 193
Ibid., p. 45. 194
FORTE, Bruno. A Trindade como História: Ensaio sobre o Deus Cristão, p. 41. O autor afirma que a
memória dos cristãos tornou-se memória pascal, a consciência do presente, consciência pascal, a espera do
futuro- esperança da Páscoa. E como a explicitação do evento primordial da morte e ressurreição do Senhor é a
confissão trinitária, pode-se dizer que a memória, a consciência e a esperança da Igreja nascente são
propriamente uma memória, uma consciência e uma esperança trinitárias. 195
MOLTMAN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.221. 196
FORTE, Bruno. A Trindade como História: Ensaio sobre o Deus Cristão, p. 41.
77
Senhor ressuscitado para a sua parusia e nova criação. Na história, esta sequência confirma
uma categoria da fé cristã que é a cruz de Cristo. Nela, o homem se enxerga amparado e
motivado a se transcender com ele que se rebaixou até o mundo. Pois a Trindade não é um
circulo fechado no céu, mas um processo escatológico aberto para o homem na Terra, que
deriva da cruz de Cristo. Pela cruz secular no Calvário, compreendida como uma
vulnerabilidade aberta e como o amor de Deus pelo homem sem amor, não amado e
desumanizado, o ser de Deus e a Sua vida estão acessíveis ao verdadeiro homem197
.
A assimilação existencial desse evento liberta o homem dos ídolos do poder para o
“vínculo” sincero com Deus. Nesse sentido, concentra-se uma problemática referente à
ressurreição e à história. A história não pode ser lida a partir de um ponto fixo e pequeno, mas
em profundidade e abrangência universal. Em maior e menor escala qualquer ato ou omissão
atinge o futuro198
. Surge uma nova decisão que “reinicia”, de certa forma: a história de uma
pessoa que não mais conhecerá ocaso em toda a eternidade. Ainda, na história, ela encontra
Deus na ardente e calorosa chama dos olhos de Cristo como máxima realização da capacidade
humana de amar.
A teologia cristã reflete sobre a realidade do encontro da pessoa com o próprio Jesus
Cristo. Ele é o homem da esperança que chamou a si os regenerados e fracos, os pecadores e
os que se encontravam com suas opções fundamentais malogradas. Ele é o próprio Deus
quem, mediante o sacrifício da Cruz, reconcilia os pecadores consigo e que graciosamente
fundamenta suas vidas para que eles as consagrem e lhe deem graças199
. Mesmo no
sofrimento Cristo os chamou sem levar em conta a crítica que muitos doutores da Lei e
fariseus lhe fizeram, alegando que, no seu desejo de igualar a todos, contrapunha-se à “justiça
divina”, que era o parâmetro para os seus acusadores. Aqueles que se abrem ao seu amor
escutam suas palavras benditas: “Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do
vosso fardo e eu vos darei descanso” (Mt 11,28).
Na perspectiva da cruz instaura-se uma mística do sofrimento que descobriu uma
verdade de Cristo que não pode ser ignorada por uma compreensão superficial. Essa mística
se expressa de tal maneira que os sofrimentos podem ser superados por sofrimentos e feridas
podem ser curadas com feridas. Pois o sofrer no sofrimento é a falta de amor, as feridas nas
feridas são o abandono, e a fraqueza na dor é a descrença. Por isso, Moltmann afirma: o
sofrimento do abandono é superado pelos sofrimentos do amor, que não assusta o doente e o
197
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.313. 198
BLANK, Renold. Escatologia da Pessoa. São Paulo: Paulus, 2006, p.161. 199
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.65.
78
infeliz, mas que, para curar, os recebe e os toma sobre si200
. Portanto, por ter sido abandonado
por Deus, o Crucificado leva Deus aos abandonados dele. Por meio do seu sofrimento, ele traz
cura aos sofredores. Por sua morte, traz vida eterna aos que morrem. Moltmann conclui que o
Cristo atacado, repelido, sofredor e mortal tornou-se o centro da religião dos oprimidos e da
piedade dos carentes de salvação.
A metafísica, a partir do século XVIII, deu lugar à história que ganhou estatuto de
ciência universal. Nesta, os homens se encontram e nos aspectos fundantes se evidenciam
uma tentativa de reintegrar a fé cristã na ressurreição e no conceito novo de história. A
entronização da Teologia, no horizonte da história - onde a razão procura conciliar, as visões
diferentes de mundo sem, contudo, abdicar da fé -, alimenta o mundo de esperança e confirma
que a última palavra pertence a Deus201
.
Neste aspecto histórico ocorre o abandono do que ficou para lançar-se em direção do
futuro promissor. O estágio da fé é aceso por uma centelha da esperança, pois, a última
palavra na história é a de Deus, que refaz todas as coisas202
. Pode-se concluir que a totalidade
da libertação deu-se na Ressurreição, como afirmativa de que, por ela, a verdade utópica do
reino torna-se tópica e advento da certeza, e que a Ressurreição é a entronização total da
realidade humana na esfera divina, por isso, completa e total humanização e libertação.
Portanto, a vida e morte de Jesus adquirem um sentido libertador, totalmente revelado após a
Ressureição203
.
200
Ibid., p.70. 201
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.14. Para Moltmann, a esperança sempre foi o sujeito da Teologia. Ele não mais teorizava
sobre a esperança, mas a partir dela. Pensar teologicamente, a partir da esperança, significa colocar o conjunto da
teologia sob esse foco, e a partir daí, à luz dessa esperança, enxergá-la nova. Para ele, todas as doutrinas da
teologia cristã, não somente a Escatologia, mas desde a criação, passando pela história e até a consumação,
aparecem sob uma luz diferente e assim precisam ser repensadas novamente por inteiro. 202
MOLTMANN, Jürgen. O Caminho de Jesus Cristo: Cristologia em dimensões messiânicas, p.323. 203
SILVA, Maria Freire da. Trindade: Criação e ecologia, p.80.
79
2.3.1- O significado da cruz do Cristo Ressuscitado
Na compreensão de Moltmann a morte na cruz é que produz significado à ressureição de
Cristo por nós. Por outro lado, porém, toda a explicação da morte de Cristo204
, sem considerar
o evento da sua ressureição dentre os mortos, constitui algo sem esperança. Esta reflexão
expressa sua pretensão por situar o sentido da cruz205
a partir de uma Teologia da Cruz. Isso
expressa que é a entrega na cruz para a reconciliação do mundo que projeta sentido histórico à
ressureição206
.
Essas conclusões são elaboradas por Moltmann após percorrer um longo processo de
fundamentação. A sua pesquisa exegética estrutura-se a partir de constatações bíblico-
teológicas decisivas para as suas pretensões de compreender o significado da cruz de Cristo
dentro dos limites de uma Teologia da Cruz.
O teólogo da esperança reconhece que a comunidade nascente utilizou-se do evento pascal
para situar-se ante a vida e a morte de Jesus. Os textos neotestamentários demonstram que a
ressureição foi interpretada como uma ação predecessora e antecipadora de Deus realizada na
pessoa de Jesus em favor dos discípulos e de toda humanidade (At 2,24; Rm 8,11; Fp 3,10).
Os primeiros hinos cristológicos já indicavam que a visão do Cristo ressurreto projetaria uma
espécie de sombra sobre a visão do Cristo crucificado e humilhado. O entusiasmo
escatológico deslocava as expectativas para o mundo vindouro, ou seja, o futuro do Senhor
que despertava maiores interesses que o seu passado. Por isso, a Cristologia prestaria
relevantes serviços à Escatologia207
.
204
BARTH, Gerhard. Ele morreu por nós: a compreensão da morte de Jesus Cristo no Novo Testamento. São
Leopoldo: Sinodal, 1997, p.159-165. Depois de analisar com precisão as principais tentativas de explicação para
a morte de Jesus, como ato de Deus (como sofrimento do justo, como destino de profeta, como expiação vicária,
como resgate, como vitória sobre os poderes da morte e como revelação do amor de Deus), Barth conclui que o
Novo Testamento não oferece apenas uma resposta, tendo em vista a limitação da linguagem humana; que as
possibilidades de respostas se completam e se corrigem mutuamente e, por isso, nenhuma deve ser isolada. No
entanto, do ponto de vista da proclamação, um núcleo essencial deve ser buscado entre o que deve ser
preservado em cada resposta e o que de modo alguém pode ser perdido, a saber: que a morte foi deliberadamente
por nós (não foi um acidente), nela Cristo nos deu algo (que não seria possível conquistar), que uma culpa
objetiva e subjetiva precisa ser removida pela soberania do ato salvador. Assim, a cruz projeta a compreensão de
quem é Deus e de quem é o ser humano. 205
FORTE, Bruno. Teologia da História, p.280-282. Para o autor se o ser é o ato de deixar-se amar, é o evento
da gratidão, é o receber que abre espaço para dádiva do outro, ser é devir, então a cruz é a radical expressão do
ser divino. A cruz revela até que ponto o Criador respeitou a liberdade da criatura de inclusive rejeitar o seu
amor. A morte de Jesus Cristo na cruz é, ao mesmo tempo, julgamento do mal que há no mundo, inclusão no
amor redentor do sofrimento que devasta a terra e revela o amor infinito que vence a morte. 206
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.262. 207
SILVA, Maria Freire da. Trindade: Criação e ecologia, p.67. A autora afirma, na perspectiva de Moltmann,
que a esperança cristã para o futuro provém da observância do único evento: a ressureição de Cristo. A
escatologia cristã fala do futuro de Cristo que ilumina todo homem e o mundo. Desta afirmação, portanto, surge
um questionamento: como interrelacionar o histórico e o escatológico? Maria Freire apresenta duas experiências
contraditórias: a experiência da cruz; e a experiência de ressureição de Jesus. A Experiência da Cruz, para os
80
Moltmann constata que a luz da ressurreição não ilumina apenas a dimensão escatológica
(o futuro de Deus). Também ilumina retrospectivamente o próprio mistério da Paixão e Morte
do Senhor exaltado, revelando, assim, o significado da cruz. Isto se dá porque, se apenas na
Ressurreição já se tem começado o futuro de Deus, que sentido então teriam a Paixão e Morte
de Jesus? Qual seria o sentido das fórmulas de adoção: “Declarado Filho de Deus em poder,
segundo o espírito de santificação, pela ressureição dos mortos...” e das fórmulas de
entronização: “... Jesus Cristo nosso Senhor” (Rm 1,4)?
Essas perspectivas parecem fragmentar a identidade do Filho de Deus: uma terrena e outra
escatológica. A unidade em sua pessoa, porém, exige afirmar que Jesus de Nazaré, crucificado
fora exaltado como kyrios de Deus. Nessa perspectiva, a Páscoa não estabelece, mas atesta e
reconhece como Senhor208
.
A partir da ressureição, Moltmann analisa o sentido da cruz à luz da Teoria Expiatória ou
Doutrina da Justificação, a partir das expressões: “Por nós” (Rm 5,8) e “por nossos pecados”
(1Cor 15,3). A ressureição é estabelecida como instrumento decisivo para qualificar a pessoa
do crucificado como o Cristo e a sua paixão e morte como acontecimento que produz salvação
para nós e para o mundo. Desta forma, a ressureição qualifica a morte de Jesus na cruz como
redentora por nós. Ela não esvazia a cruz (1Cor 1,17), mas lhe confere sentido escatológico e
salvador209
.
Moltmann propõe analisar a Teoria Expiatória, levando em consideração as principais
contribuições: primeiro esta teoria situa-se no contexto da Lei e da Aliança. O sacrifício
expiatório propicia justificação perante a Lei e a restauração ante a Aliança violada, tanto para
as pessoas individualmente quanto para a comunidade. Nesse sentido, encontram-se as raízes
das afirmações do Novo Testamento sobre o caráter expiatório de Jesus (1Cor 10,16; Rm
3,25). Segundo, o sentido expiatório revela a extrema limitação e impotência do transgressor
ante sua culpa. Para livrar-se dessa culpa depende mais de quem lhe possa perdoar e restaurar,
pois não há como ser justo sem o outro que o justifique e o acolha. Terceiro, a Teoria
Expiatória permite salientar o caráter solidário da cruz que vai ao encontro da humanidade
culpada, carente de restauração, perdida em seus próprios caminhos, propondo mediação e
discípulos, significou a experiência do abandono, a experiência de ressureição significou a força definitiva de
Deus. A proclamação do Senhor Ressuscitado como aquele que foi crucificado mostra a continuidade numa
radical descontinuidade. Portanto, a cruz e a ressureição de Jesus constituem uma dialética em abertura que
encontrara sua síntese na eschaton de todas as coisas. 208
Jürgen MOLTMANN, Teologia da Esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.198-199. 209
MOLTMANN, Jürgen. O Deus Crucificado: a cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.258.
81
salvação. Essa teoria informa ainda que Deus é quem se dispõe e age em favor do culpado,
promovendo-lhe justiça e perdão na cruz de Cristo210
.
Para compreender o sentido da cruz de Cristo é necessário ultrapassar as ideias
tradicionais sobre o sacrifício expiatório. Nesse sentido, Moltmann propõe a leitura da história
da cruz e da ressureição escatologicamente, isto é, o presente compreendido a luz do futuro211
.
Segundo Moltmann, toda perspectiva teológica equivoca-se quando emprega apenas sentido
futuro a morte da cruz em detrimento do histórico. Como antecipação do futuro (sentido
escatológico) a cruz também rememora a encarnação como sua condição necessária (sentido
histórico). Pois, a encarnação revela tanto a solidariedade histórica de Deus com a sua criação
quanto o desfecho do embate profético de Jesus com as estruturas político-sociais e religiosas
de violência e opressão212
.
2.3.2- O Espírito e a cruz
O Espírito de Deus está imerso na história e através dele o ser humano é colocado na
presença do Deus vivo e na dinâmica do amor maior. Na perspectiva da doutrina social
trinitária de Moltmann, em Trindade e o Reino de Deus - que fundamenta o desenvolvimento
de O Espírito da Vida -, encontra-se a intenção principal de assinalar que a vida deve ser
libertada e redimida. Esta ação do Espírito confere relevância universal às ações de Cristo.
O segredo messiânico de Jesus se expressa nas respostas enigmáticas e misteriosas com
que Jesus responde às questões relativas à sua identidade e à identidade de Deus revelado por
ele. A revelação feita por Jesus causa escândalo. As autoridades querem matá-lo, e o fazem.
Alguns discípulos são contrariados pelas atitudes de Jesus. Seu messianismo entra na
contramão de um suposto programa triunfalista. Seus ouvintes não se tranquilizam com
muitas respostas de Jesus. E a missão do Espírito não consiste em livrá-lo da cruz e nem ser
crucificado no lugar do Filho. Consiste, portanto, em ser a força que o sustenta até a cruz. O
Espírito ampara-o na morte e, através dele, o Pai o torna dentre os mortos. O mesmo Espírito
age na história, encorajando os discípulos a proclamarem que o Crucificado é o Ressuscitado.
Viver segundo a carne conflita com a vida no “espírito”, pois no homem o conflito
não se mede platonicamente como se considere o corpo o cárcere da alma e o espírito sua
parte nobre213
. O termo sarks, que Paulo utiliza, possui vários significados. Como esfera do
mundo, apresenta-se finita, frágil, vaidosa, e em outro sentido, na “esfera do tempo”, do
210
Ibid., p.233. 211
Ibid., p.234. 212
Ibid., p.237-239. 213
MOLTMANN, Jürgen. O Espirito da Vida: Uma pneumatologia integral, p.93.
82
mundo que passa. Encontra-se aí uma oposição entre carne e vida, enquanto a aspiração da
carne é a morte214
, que esvazia o amor e gera o conflito.
Em sua obra, O Espírito da Vida, Moltmann afirma que o tom cristão do Espírito não é
outro senão a nova vida215
. Ao aprofundar o conflito entre “carne” e “espírito” em Paulo, ele o
considera um antropólogo apocalíptico e um apocalíptico antropólogo, pois revela o Espírito
de Deus como força de vida da Ressurreição, em cujo acontecimento o Espírito amoroso de
Deus se derrama sobre o ser humano, tornando-o partícipe da vida eterna.
Para Moltmann, o Cristianismo não assume este conflito em termos gnósticos216
. Até
mesmo o próprio Agostinho tematizou este conflito de forma profunda. E em sua seriedade
místico-teológica pode entender que o coração humano encontra-se irrequieto até o encontro
com Deus, no qual pode repousar tranquilamente. Sendo o homem um todo, e não partes
fragmentadas, em seu coração ele encontra sua transcendência imanente, porque Deus o criou
para si.
Desse modo, a esperança é a alavanca que move o coração do homem para Deus.
Move-se na esperança enquanto luta e porque espera na dinâmica da vida que, no amor
transforma a dor em força motriz contra o rancor, o ser humano pode esperar:
Quem espera em Cristo não pode mais se contentar com a realidade dada, mas começa a sofrer
devido a ela, começa a contradizê-la. Paz com Deus significa inimizade com o mundo, pois o
agulhão do futuro prometido arde implacavelmente na carne de todo presente não realizado... O
fato de não nos satisfazer, o fato de entre nós e as coisas da realidade não existir harmonia
amigável é fruto de uma esperança inextinguível.217
A esperança, de que fala Moltmann, nos desinstala e, por consequência da fé, nos abre
para o mundo futuro, isto é, a fé une o ser humano a Cristo, a esperança abre essa fé para o
vasto futuro de Cristo218
. E porque Deus é mistério, nunca hermético, mas aberto, jamais
mônada impermeável, mas mistério trinitário de amor encarnado em Jesus de Nazaré, a
experiência do Espírito desperta novas e inimagináveis expectativas de vida que afetam a
214
Moltmann concorda com Bultmann quando este define o pecado como revolta contra Deus, a fonte criadora
da vida, donde brota o mandamento da vida. O amor que se volta única e exclusivamente para a carne se
expressa em paixão que mira o que não é divino. Trata-se do ídolo endeusado que estabelece a finitude da
beleza, tornando-a perecível conduzindo o amante estrito das coisas que passam a perecer com ela. 215
Ibid., p.87. 216
Ibid., p.93. Moltmann afirma: “Até os dias de hoje o dualismo platônico tempo-eternidade retira de cena o
conflito apocalíptico passado-futuro e o reduz ao silêncio. Com isto, o dualismo corpo-alma sempre de novo, e
ainda em nossos dias, desloca o conflito impulso de vida/impulso de morte, e o suprime. Mas isto acarreta a
entrada em cena de uma espiritualidade “mais ou menos branda, hostil ao corpo, não sensível, distanciada do
mundo e da política - numa palavra, gnóstica -, em vez da original vitalidade judaica e cristã da vida que
renasce do Deus criador”. 217
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.36-37. 218
Ibid., p.37.
83
totalidade da vida e, de modo particular, o homem. Nele, dá-se um conflito caracterizado
como nova criação de todas as coisas que se inicia com a ressurreição de Cristo219
.
A esperança em Moltmann tem marcas profundas de dor, promessa, protesto, êxodo e
busca por libertação. E contemporaneamente à teologia da história de Pannemberg, à teologia
da libertação de Gutierrez, a teologia da esperança surge como libertação de um pensamento
meramente existencialista e personalista para assumir a história humana dos conflitos,
sofrimentos e esperanças.
A dor no Espírito tem dimensões positivas e negativas. Embora no coração humano
tenha o anseio por liberdade, quando essa se aproxima, as algemas começam a doer. Então, as
marcas negativas crescem quando murcha a esperança. Quando isso acontece os escravos se
acostumam com o dobrar e o curvar-se diante das forças prepotentes. Ironicamente, a dor
produz um canto “feliz” como saudade da pátria perdida em contentamento pelo
esquecimento do que não se pode mudar220
. Afirmar o negativo, para Moltmann, significa
negar a possibilidade do bem em si.
Por outro lado, crer, esperar e se empenhar, na dimensão positiva, consiste em negar o
negativo que nega a vida e quem opera isso no homem não é outro senão o Espírito como
início e penhor do Reino da glória.
O aspecto pneumatológico contido no símbolo da ressurreição provoca no homem
ressuscitado uma reação debaixo, humano-existencial, à ação de cima, de Deus mesmo221
.
Nesse aspecto, a ressureição é o outro lado da morte. Por isso, o Espírito que age em Cristo
não somente o conduz em sua entrega livre até a morte de cruz, mas liberta-o da morte. É esta
proclamação querigmática dos cristãos que fez difundir o Evangelho.
A glória e o poder, na experiência do Espírito, se expressam na doxa e na dynamis.
Desde a profecia de Ezequiel (cf. Ez 37) até a radical força restauradora que ocorre em Jesus
de Nazaré, o Espírito é garantido como aquele que torna vivente o que estava morto. Por isso
que com o Pai e o Filho, o Espírito merece a mesma isotimia222
.
219
MOLTMANN, Jürgen. O Espirito da Vida: Uma pneumatologia integral, p.92. 220
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.42. 221
MOLTMANN, Jürgen. O Caminho de Jesus Cristo: Cristologia em dimensões messiânicas, p.332. 222
BASÍLIO, São: Basílio de Cesaréia: Tratado sobre o Espirito Santo. São Paulo: Paulus,1999, p.102.
84
A honra e a dignidade do Espírito já aparecem na concepção de Israel que o conhece
como a sabedoria de Deus. Indiretamente, ele é luz refletida do rosto de Cristo que é a luz. O
Espírito como força e Cristo como vivificado exprimem uma dupla pericorese na
comunicação da inabitação do Espírito em Cristo e de Cristo em nós. Portanto, o segmento de
Cristo no Espírito é o seguimento no sofrimento de sua morte e, ao mesmo tempo, de sua
ressurreição (Rm 6; Fl 3). Cristo é esperança da glória (Cl 1,27). O poder que glorifica o
homem na glória de Deus é o Espírito Santo (Rm 8,23; 2 Cor 5,5). Através da união de Cristo
no Espírito, a vinda da glória já se transforma na eficácia na vida presente223
. Nesse
movimento de glorificação, a experiência do Espírito é entendida como a luz do futuro.
Portanto, a história trinitária de glorificação aponta para a meta da história trinitária de
Deus e suas relações com o mundo. A glória de Deus será completa quando a criação do
início for consumada na nova criação no fim. É o sentido escatológico da missão messiânica
de Cristo no Espírito, na glorificação de Deus e na libertação do mundo. O Espírito glorifica
Cristo no mundo e o mundo em Cristo para Glória do Pai224
.
2.3.3- A transfiguração do Espírito
Quanto à participação do Espírito na Ressurreição, durante o período denominado pré-
pascal, a atuação do Espírito concentrou-se exclusivamente na pessoa de Jesus. Pela força do
Espírito, após o seu batismo, Jesus exerceu um ministério pneumático (Lc 3,22), efetuando
curas, expulsando espíritos malignos e pregando o Reino de Deus (Mt 12,28). O evangelho de
João, porém, afirma que os discípulos não haviam ainda recebidos o Espírito, como Jesus
recebera, e isto por uma razão especifica: “Porque o Espírito Santo ainda não fora dado, por
Jesus ainda não ter sido glorificado” (Jo 7,39)225
.
Subtende-se que João fazia referencia à experiência pós-pascal da ressurreição. Isso
porque, segundo o relato dos Atos dos Apóstolos (At 2), a experiência da glossolalia entre os
discípulos no Cenáculo está vinculada ao derramamento do espírito profetizado por Joel (Joel
2), o qual só ocorreu após o evento da ressurreição, inaugurando o tempo escatológico.
223
SILVA, Maria Freire da. Trindade: Criação e ecologia, p.87. 224
Ibid., p.88. 225
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus: uma contribuição para a teologia, p.132-137.
85
Portanto, é preciso compreender a natureza dessa glorificação bem como o papel do Espírito
em sua realização e a sua estreita relação cristológica.
Nos escritos paulinos o tempo escatológico é explicado em termos cristológicos. Segundo
Paulo, a ressurreição de Jesus fora possível em virtude da ação direta do Espírito, vivificando-
o dentre os mortos (Rm 8,11), e que também ressuscitará a “nós”, fazendo referência aos seus
seguidores (1 Cor 6,14). Deste modo, relaciona-se a figura do Espírito à àquele que de fato
ressuscita os mortos. Ele é, portanto, a força divina da nova criação226
.
O apóstolo Paulo ensina acerca de algumas inversões de papéis entre Jesus ressuscitado e
o Espírito. O próprio Jesus é também chamado de Espírito (2 Cor 3,17) e em seguida, de ser
aquele através do qual o Espírito enviado sobre a comunidade dos discípulos (Tt 3,5-6), sendo
por isso chamado de Espírito do Senhor (2 Cor 3,17), Espírito de Cristo (Fl 1,19), Espírito do
seu Filho (Gl 4,6) e Espírito de Deus (Rm 8,9).
Para Moltmann, o termo ressuscitar significa não apenas despertar, porém, pode admitir
também o sentido mais amplo de transfigurar, visto que, na ressurreição, o ressuscitado
supera a figura e o estado de humilhação e abandono para outro estado de glorificação e
transformação. Desse modo, a transfiguração, experiência relatada nos sinóticos (Mt 17, 1-9;
Mc 9,2-9; Lc 9,28-36), abarca tanto os sentidos de glorificação quanto de transformação e
deve ser interpretada como uma prefiguração da experiência pascal dos discípulos, isto é, a
glorificação de Jesus junto à brilhante luz divina227
.
Quanto ao sentido de transformação, a ressurreição pode ser interpretada como a mudança
do corpo limitado e sujeito à morte, em corpo incorruptível e glorificado. Desse modo, o
trabalho escatológico do Espírito está vinculado à doação e restauração da vida, à
ressuscitação corporal, à transfiguração e transformação da forma existencial física. Por isso,
o ressuscitado, em sua glorificação é também, agora o Espírito vivificador (1 Cor 15,45). O
mesmo “Primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,29), também o transforma e os glorifica na
conformação da sua imagem (2 Cor 3,18). Assim, como Ele é o Senhor da glória vindoura (1
Cor 2,8), o seus serão conformados à ela, reinando com Ele eternamente (Ap 20,4; 22,5).
Esse acontecimento se torna possível em virtude da obra do Espírito Santo228
.
226
Ibid., p.132. 227
Ibid., p.133. 228
Ibid., p.134.
86
Com a glorificação de Jesus - sua ressurreição, transfiguração e transformação - o
derramamento universal do Espírito Santo sobre toda a carne (Joel 2,28), tem seu início: o
início da glória. As comunidades primitivas sempre interpretaram essa experiência fundante
em seu mais profundo sentido escatológico. O discurso de Pedro, relatado nos Atos dos
Apóstolos (At 2,14-36), faz a imediata vinculação da experiência pentecostal do Espírito com
a promessa do profeta Joel (At 2,16-18), a qual apontava para o seu derramamento sobre toda
a carne nos últimos dias. O Espírito é, portanto, “primícias” de um novo começo (Rm 8,23) e
“penhor” de suas plenificação (2 Cor 1,22). No Espírito, já agora se experimenta o que ainda a
de vir229
.
A experiência do Espírito é caracterizada pela manifestação da liberdade, da alegria e do
amor. Se a experiência é genuinamente no Espírito que trouxe à existência o tempo, o espaço
e a liberdade, naturalmente sua expressão exterior há de produzir, também, plenitude do
tempo, do espaço e da liberdade. O que evita a formação de um grupo seleto pneumatizado
segregado do mundo e de seus desafios. Para Moltmann, com a experiência do Espírito
aprofunda-se também a experiência com o Deus Trino: “Com a experiência do Espírito, tem
início a consumação da criação do homem e de todas as coisas no seio da divindade uma e
trina. Pela habitação do Espírito, seja no coração, na comunidade, ou na nova criação, Deus
se torna cada vez mais familiar no seu próprio mundo”230
.
Moltmann apresenta outra questão importante acerca do Espírito no que diz respeito a sua
natureza enquanto sujeito pessoal: como deve ser entendido? Como distinguir, nele, a
verdadeira essência do seu ser? As funções exercidas pelo Espírito o qualificam como
pessoa/sujeito autônomo e divino ou, simplesmente, como agente de Deus Pai e de Deus
Filho?
O teólogo enfatiza, inicialmente, que a perspectiva da personalização do Espírito é
apresentada na exegese dos escritos do apóstolo João. Segundo ele, em João há uma espécie
de delineamento que, progressivamente, constrói a imagem da personalidade do Espírito. No
entanto, entender o Espírito tanto dinâmica quanto personalisticamente não define a questão
da sua natureza essencial. Ser o Espírito de Deus ou Espírito de Cristo indica apenas que ele
representa a ação de sujeitos distintos e autônomos, no caso o Pai e o Filho. Por isso, torna-se
229
Ibid., p.134. 230
Ibid., p.135.
87
possível reconhecer no Espírito seu caráter autônomo e pessoal à medida que a sua ação for
também reconhecida como autônoma e pessoal. Essa qualificação no Espírito torna-se
possível e visível (revelada) na medida em que o Pai e o Filho sejam afetados pela ação do
Espírito231
.
A obra escatológica do Espírito representa importante expressão teológica dessa realidade
pneumatológica. A transformação do mundo, das estruturas e das pessoas corrompidas, indica
apenas parte dessa ação escatológica do Espírito. A libertação da sociedade humana, a
restauração da criação e plenificação de todas as coisas em Deus, implicam, em última
análise, a glorificação do próprio Deus Criador (Fl 2,10-11), e em sentido estrito, há uma
afetação na divindade: Deus é glorificado (At 1,6), isto é, a alegria divina é completada na
plena correspondência do seu amor, pela meditação do Espírito que, por sua transformação
transfiguradora, conduz toda a criação ao seio da glória intratrinitária do Filho e do Pai. O
Espírito afeta a vida intratrinitária na medida em que possibilita a permanente unificação de
Deus: o Pai com o Filho, o Filho com o Pai, Deus com a sua humanidade (Jo 17,21). O
Espírito é, portanto, o Deus glorificador e o Deus unificador232
.
O Espírito é uma pessoa divina e autônoma. Ele é o Espírito de Deus e o Espírito de
Cristo, que age em consonância com as iniciativas do pai e do Filho. Porém, ele é também o
Deus glorificador e o Deus unificador que age autonomamente plenificando todas as coisas
para a glória de Deus e a consequente unidade divina. Existem outras ordens de manifestação
da Trindade pela atuação do Espírito Santo. Moltmann as determina como no Derramamento
do Espírito e Glorificação pelo Espírito, a glorificação da Trindade.
No derramamento do Espírito, a Trindade abre-se pelo envio do Espírito Santo. Há uma
abertura ad extra com vistas à restauração da criação. A Trindade encontra-se aberta à
renovação da vida; na segunda ordem ocorre uma inversão no movimento. Pela plenificação,
a humanidade e toda a criação se voltam para o Deus-abertura, formando o seu mundo, o
verdadeiro templo do Deus Eterno233
.
231
Ibid., p.135. 232
Ibid., p.136. 233
Ibid., p.137.
88
No derramamento do Espírito sobre a humanidade ocorre um movimento de envio do
Espírito, pelo Pai, através do Filho. Disto provém a sua designação Espírito de Deus, Espírito
de Cristo. Na glorificação o Espírito é quem proporciona ao Pai o louvor e a unidade do Filho.
Desta maneira, toda a iniciativa pertence ao Espírito e Nele toda a criação tem acolhimento
junto ao Pai, através do Filho234
(Ef 2,18).
234
Ibid., p.137.
89
Conclusão
Este capítulo teve como proposta refletir o aspecto cristológico da morte na cruz e
ressureição com o futuro de Jesus na perspectiva da promessa. Reflete Deus em Cristo no
evento da cruz e ressurreição na promessa escatológica do futuro. Avalia a cruz como um
momento do processo em torno de Jesus e da Trindade. Nesse processo, Moltmann distingue
o aspecto histórico e as razões pelas quais, Jesus é morto; o aspecto apocalíptico, situando a
abrangência da dor de Jesus e o aspecto subjetivo.
Na articulação dialética cruz e ressurreição, na perspectiva escatológica em termos
trinitários, traspassa como fio condutor esta Cristologia. Desse modo, elabora-se uma doutrina
trinitária da cruz, afirmando-a como lugar no qual Deus manifesta-se Trindade, na qual as
pessoas divinas constituem-se no seu amor recíproco. O abandono de Jesus na cruz é visto
como abandonado pelo próprio Deus. A crucificação manifesta o amor intratrinitário, no qual
Deus revela-se passível na dor, solidário com os crucificados da História. Revela-se uma
tensão entre o Deus que afeta o mundo e que se deixa afetar por ele.
Da esperança escatológica, Moltmann volta sua atenção para a Teologia da Cruz e através
desta, busca fundamentalmente, integrar o princípio da antecipação escatológica, firmado a
partir da ressurreição, e ao princípio da encarnação, estabelecido a partir da paixão de Cristo.
Dessa forma ele não desvia o eixo de sua reflexão teológica, mas o aprofunda. O futuro da
promessa, firmado como fonte de esperança, encontra inserção, pertinência e relevância
históricas. O tema da cruz não se torna alheio ao tema da ressurreição e tão pouco o tema da
ressurreição é alheio ao tema da cruz. Pois a cruz deve ser interpretada à luz e no contexto da
ressurreição e, consequentemente, da liberdade e da esperança.
Portanto, a paixão do mundo é assumida por Deus, não exterior, mas interior ao próprio
Deus. Entretanto, não se pode pensar, afirma Moltmann, que a morte e os motivos que levam
à morte - como o ódio e a violência -, sejam eternos, porque pertencem a Deus, pois Deus
deve ser pensado em processo. Deus é vulnerável e mutável, exatamente porque pode sofrer e
amar. No fim, quando Deus mesmo chegar a sua identidade, e o Filho entregar o Reino ao Pai,
então Deus será tudo em todas as coisas e o mal e a morte não vigorarão mais (1 Cor 15.24-
26).
90
CAPÍTULO III: A PARTICIPAÇÃO HUMANA NO MISTÉRIO TRINITÁRIO
REVELADO NA CRUZ
Introdução
A partir da Teologia da Cruz de Moltmann pode-se questionar: qual a participação dos
seguidores de Cristo em sua cruz e o que nela é restrição e exclusividade? Esta questão evoca
a reflexão sobre a natureza do seguimento proposto por Jesus e como os períodos de conflito
entre igreja e sociedade realçam o seguimento como verdadeira entrega de vida. Por isso,
Marcos, em seu evangelho, situa o chamado dos discípulos no contexto do anúncio da Paixão
(Cf. Mc 8, 31-38).
O seguimento é, deste modo, estabelecido a partir de um chamado radical e
incondicional. Interesses pessoais e nem mesmo laços familiares poderiam interpor-se como
impedimentos a ele. O chamado para integrar-se ao Reino era mais legítimo que tudo (Mc
8,35). Envergonhar-se do seguimento implicaria ser rejeitado pelo Filho do Homem quando
vier em sua glória (v.38). Portanto, a adesão ao discipulado encontrava motivação
escatológica235
. Nessa perspectiva, Moltmann afirma que o chamado ao seguimento é o
mandamento da „hora escatológica‟236
, que marca o tempo messiânico de anúncio, entrega,
conflito e sofrimento.
O chamado ao seguimento envolvia mais os discípulos que a participação no Reino
vindouro. Nele estava incluída também a solidariedade dos sofrimentos implicados na cruz.
Porém, pode-se perguntar, que sofrimentos? Citando Bonhoeffer, Moltmann afirma que o
sofrimento de Jesus consistiu, de fato, em padecer e ser recusado por seus patrícios e ainda
salienta que tais experiências não são idênticas237
.
3.1- A experiência da vida humana no pathos de Deus
Para Moltmann, o sentido da cruz consiste em sofrer e morrer como um marginalizado
e abandonado, ou seja, sentido de entrega e abandono. Esta é, de fato, sua paixão. O
235
BOFF, Leonardo. A cruz nossa de cada dia: fonte de vida e de ressurreição. Campinas: Versus, 2003, p. 69-
70. 236
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 84. 237
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 42.
91
sofrimento pode ser reconhecido e celebrado como ato heroico. O abandono, porém, retira
toda dignidade do sofrimento e o torna degradante. Portanto, a cruz é a expressão e símbolo
da paixão do Cristo abandonado. Por ela, o próprio Deus se identifica e se solidariza com
todos os abandonados, oprimidos e perdidos da história.
No seguimento, os discípulos encontram a própria cruz. Uma cruz personalizada,
estabelecida para o contexto de cada um e distinta da natureza radical da cruz de Cristo238
.
Apesar de todas as implicações e semelhanças, uma é a cruz dos discípulos e outra a de Jesus
Cristo. Ele teria sofrido e morrido em solidariedade, enquanto os seguidores teriam também
sofrido e morrido, porém, em comunhão. Portanto, um é o sofrimento do abandono e outro é
o sofrimento na comunhão239
.
Moltmann afirma que o homem desenvolve a sua humanidade na relação da Divindade
do seu Deus. Ele experimenta sua existência na relação com aquele que o ilumina como o ser
supremo. Suas decisões fundamentais são pautadas com aquilo que incondicionalmente diz
respeito a ele. Desse modo, o divino é a situação na qual o homem se experimenta, se
desenvolve e se molda240
. Portanto, para Moltmann, a Teologia e a Antropologia estão
envolvidas num relacionamento recíproco.
Nesta perspectiva, a Teologia do “Deus crucificado” também leva a uma antropologia
correspondente241
. Uma comparação da teologia cristã com a teologia apática da antiguidade
grega e a teologia pática da posterior filosofia judaica da religião, pode ajudar a definir o
contexto de forma mais clara. Moltmann afirma que a adoção do conceito filosófico grego do
“Deus incapaz de sofrer” da igreja primitiva, gerou dificuldades na Cristologia, as quais só a
teologia mais recente procurou combater. Porém, antes que “o Deus que sofre” fosse tomado
por tema da teologia cristã no presente, a teologia judaica já estava discutindo esse assunto.
238
O Evangelho de Marcos corrobora com esta percepção. No capítulo em que o apóstolo Pedro profere uma
confissão de messianismo sem sofrimento para Jesus, Marcos logo trata de esclarecer a questão. Afirma que não
somente o Cristo padecerá, mas todos os que se dispuserem a segui-lo: “... quem quiser vir após mim, negue-se a
si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.” (Mc 8,34). 239
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 86. 240
Ibid. p. 338. 241
SÁNCHEZ, José Sánchez. Jesus, Constituído Filho de Deus pela ressurreição (Rm 1,4). In VIGIL, José Maria
(org); Descer da Cruz os pobres: cristologia da libertação. Comissão Teológica Internacional, Associação
Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 256-257. O autor afirma que os seres
humanos, por serem contingentes e criaturas, não possuem a perfeição do ser, mas vão-se fazendo,
desenvolvendo suas potencialidades à medida que vão crescendo, o que se pode chamar de “o ser histórico”.
Todo ser humano é histórico, tem um princípio e tende a chegar ao ponto mais elevado de maturidade. Ser
histórico é consequência do nosso ser de criaturas. Sánchez afirma que Deus levou em conta essa característica e,
para levar a cabo o seu plano de redenção, revela-se na história dos povos e os salva através de acontecimentos
históricos. Este pressuposto se faz necessário para compreender a preocupação de Moltmann em indagar sobre a
situação de Deus dentro do desenvolvimento da humanidade do homem.
92
3.1.1. A apatia de Deus e a liberdade do homem
Para Moltmann, a teologia cristã deve aprender com a nova exegese judaica da história
de Deus no Antigo Testamento e no sofrimento presente do povo judeu242
. Para ele, a
apatheia243
era vista pelo Cristianismo no mundo antigo como um axioma metafísico e um
ideal ético com força irresistível. Da mesma forma, concentravam-se a adoração à divindade
de Deus e a luta humana pela liberdade244
. Desde Platão e Aristóteles, a perfeição metafísica
e ética de Deus foi descrita como apatheia.
Para Platão, Deus é bom, portanto, não pode ser a causa de nenhum mal, punição ou
lamento245
. Portanto, é inapropriado apresentar Deus como o auctor malorum (o autor de). A
divindade não necessita de nada como aquilo que é perfeito. Logo, se não possui
necessidades, é, portanto, imutável, pois, qualquer mudança mostra uma deficiência no ser.
Deus não precisa dos serviços ou das emoções do homem para a sua própria vida246
. Por ser
perfeito, não precisa de amigos e tão pouco os terá.
Na concepção de Aristóteles, amizade ocorre quando o amor é oferecido em retorno.
Mas, em amizade com Deus, não há espaço para que o amor seja oferecido em retorno, na
verdade, não existe nem espaço para o amor. Pois seria absurdo alguém dizer que amava a
Zeus. Como o semelhante só é conhecido e amado pelo semelhante, a Divindade é
autossuficiente247
.
Moltmann afirma que desde os tempos de Aristóteles o princípio metafísico tem sido o
“Deus apático”. Como actus purus e pura casualidade, nada pode acontecer a Deus de modo
que sofra. O ser perfeito não possui emoções. Raiva, ódio e inveja são estranhos a ele. Assim
como são estranhos o amor, a compaixão e a misericórdia. Se for a ideia moral do homem
sábio o tornar-se semelhante à divindade e participar de sua esfera, ele deve superar
242
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 339. 243
Ibid. p. 340. Para Moltmann, assim como pathos, a palavra apatheia possui conotações. Significa “a
incapacidade de ser afetado por influência externa, incapaz de sentir, como no caso das coisas mortas, e a
liberdade do espírito das necessidades internas e dos danos externos”. No sentido físico, apatheia significa
imutabilidade; no sentido psicológico, insensibilidade; e no sentido ético, liberdade. Em contraste a isso pathos
denota necessidade, compulsão, desejo, dependência , paixões inferiores e sofrimento indesejados. 244
Ibid., p. 340. 245
As concepções poéticas dos deuses como caprichosos, invejosos, vingativos e punitivos, que tinham intenção
de despertar emoções, pathe, no público da tragédia, o que levava à Katharsis são rejeitadas como
“inapropriados para Deus”. Estas não se encaixam nas “pautas para a doutrina dos deuses” morais e políticas. 246
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p. 340. 247
Ibid., p. 341.
93
necessidades e desejos e levar uma vida livre de problemas e medo, de raiva e amor, em
apatheia248
. O homem encontrará descanso em Deus, no pensar do pensamento. Ele
encontrará a presença eterna de Deus na vontade eterna.
O judaísmo antigo e o cristianismo antigo se apropriaram desse ideal da apatheia na
teologia e na ética, buscando cumpri-lo e ir além dele. Para Moltmann, Filo, um dos
expoentes desta perspectiva, vai atribuir a Abraão como o modelo da apatheia, mas também
louva a sua metriopatheia. Para Filo, a apatheia ó o objetivo da perfeição. Porém, o homem
não luta para livrar-se de si mesmo e para se contentar consigo mesmo, mas para se tornar
livre e sem necessidades no serviço de Deus que, sozinho, oferece o poder para alcançar a
apatheia. Para Filo, a apatheia almejada é, na verdade, pretendida de forma a levar à
similaridade com Deus249
.
Moltmann faz um exame da discussão da apatheia na Grécia antiga, no judaísmo e no
cristianismo e constata que ela não significa a petrificação do homem, nem denota os
sintomas de enfermidade de que são descritos hoje como apatia, indiferença e alienação. Pelo
contrário, ela denota a liberdade do homem e a sua superioridade ao mundo, correspondendo
à liberdade perfeita e autossuficiente da divindade250
. Por outro lado, somente os desejos
inferiores e as compulsões eram compreendidos como pathos. A descrição que se tem hoje
como pathos da vida, o significado que enche a vida, que a vivifica e a melhora, não estava
incluso em pathe.
O que o Cristianismo proclamou como ágape de Deus - e que foi proclamado pelo
crente -, foi raramente traduzido como pathos. Porque o verdadeiro ágape deriva da libertação
dos grilhões internos e externos da carne (sarx) e ama sem se buscar a si mesmo e sem
ansiedade, sem ira et studio. Deste modo, apatheia pode ser entendida como um fundamento
capacitador desse amor, podendo ser plena dele: o amor surge do espírito e da liberdade, não
do desejo ou da ansiedade251
. O Deus apático poderia ser compreendido como o Deus livre,
que livrou os outros de si mesmo. Assim, a negação da necessidade, do desejo e da
248
Ibid., p.341. Moltmann recorda a escola dos céticos que exigiu retenção do julgamento (epoche). A partir da
mesma o homem de entendimento deve permanecer firme em ataraxia (ausência de inquietude) e o homem
sábio possui apatheia, pois seu conhecimento não é perturbado por nenhuma emoção da alma ou por qualquer
interesse do corpo. Portanto, ele vive na alta esfera do Logos. Não considera nada como bom ou mal. Ele usa
todas as coisas como se tivessem valor, embora não atribua nenhum valor a elas. 249
Ibid., p. 342. 250
Ibid., p. 342. 251
Ibid., p. 343.
94
compulsão, expressos pela apatheia, foram excluídos e preenchidos com um novo conteúdo
positivo. Diz Moltmann:
Um Deus imóvel e apático não pode ser colocado como fundamento da liberdade
humana. Um soberano absolutista no céu não encoraja nenhuma liberdade sobre a
terra. Somente o Deus sofredor e apaixonado, e por força da sua paixão pelo homem, é
capaz de fazer com que exista a liberdade humana. Ele que realiza o reino da sua
glória em uma história de criação, libertação e glorificação, deseja a liberdade
humana, alicerça a liberdade humana e dispõe o homem incessantemente para a
liberdade. A teologia trinitária oferece a possibilidade de fundamentar uma doutrina
da liberdade abrangente e pluridimensional.252
Para Moltmann, a teologia apática da Antiguidade foi aceita como uma preparação
para a teologia trinitária do amor de Deus e do homem. Somente uma longa história de uso no
Judaísmo e no Cristianismo mudou a palavra e deu à mesma um novo contexto de
significados253
. Esta teologia associou paixão com amor fora da liberdade pelos outros e por
aqueles que eram diferentes, e ensinou uma compreensão do significado do sofrimento do
amor, a partir da história da paixão de Israel e de Cristo.
3.1.2 - O eterno sacrifício do amor254
O tema da passibilidade divina encontrou na força dinâmica do amor o fundamento
necessário para a sua formulação255
. Deus é amor, e porque é amor, ele não é um Deus
apático. E, porque é amor, acomoda-se e adapta-se à sua criação, sofre com e por ela. E,
porque é Deus entrega-se totalmente. A única onipotência em Deus é, portanto, a onipotência
do seu amor padecente, revelado radicalmente na cruz de Cristo256
.
252
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p.221. 253
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.343. 254
CARAVIAS, José Luis. Fé e Dor, p. 153-154. Para o autor, o sofrimento é inerente à própria condição
humana, frágil, limitada e finita. Citando João Paulo II, recorda que “o sofrimento parece particularmente algo
essencial à natureza humana (...); parece pertencer à transcendência do homem” (Salvifici Doloris, 2). No
entanto, embora inevitável, muitas dores e muitas mortes podem ser evitadas, e não o são, em função da
condição de pecado do próprio ser humano. Porém, toda dor evitável ou inevitável, pessoais ou sociais, inocentes
ou culpáveis serão iluminadas por Jesus em sua cruz e ressurreição. Em sua cruz Jesus ensina tanto a
solidariedade quanto a luta contra toda dor, por amor, e a vencer a dor como fruto do amor. Desta forma, a cruz
se torna instrumento de revelação; por ela Jesus revela definitivamente a imagem de Deus: o Deus que ama e se
coloca ao lado de sua criação. 255
BLANK, Renold J. Deus na História: centros temáticos da Revelação. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 263.
Para Blank, Deus sofre por causa de seu amor por nós e este é o resultado das reflexões sobre o Deus humilde
que se manifesta em Jesus Cristo. 256
KITAMORI, Kazoh. Teologia del dolor de Dios. Salamanca: Sigueme, 1975, p. 199-206. A Teologia do
Sofrimento de Deus surge no ano seguinte ao fim da Segunda Guerra Mundial (1946) através da obra Theology
of the Pain of God. Refletindo sobre a dor de Deus e a escatologia, Kitamori entende, a partir do texto de Mateus
95
A base para assumir uma teologia da passibilidade, contrariando a estrutura filosófico-
teológica estabelecida, foi encontrada na tradição anglicana desenvolvida nos séculos XIX e
XX. Moltmann informa que C.E. Rolt, ao escrever a obra The World‟s Redemption (Londres,
1913), conseguiu desenvolver - ao mesmo tempo em que fundamentava a teologia da
passibilidade divina, enfocando o tema da doutrina da onipotência divina (derivado da cruz
de Cristo) -, importante concepção acerca da essência de Deus (o amor padecente)257
.
Para Rolt, o conceito de uma onipotência em Deus deve derivar-se da cruz de Cristo.
É, assim, a onipotência do amor padecente, isto é, o amor consumado pelo sofrimento
voluntário, nisso residindo a essência da soberania divina: “Aquilo que Cristo, o Deus feito
homem, fez no tempo, Deus, o Pai celeste, faz na eternidade, e deve fazê-lo. Pois o „mistério
da cruz‟ é o mistério que reside no coração do ser eterno de Deus”. Desta forma, na estrutura
da teologia anglicana acerca do sofrimento divino, encontra-se a cruz manifestando o
“coração eterno da Trindade”. Isto implica afirmar que a paixão histórica de Jesus revela a
paixão eterna de Deus: o autossacrifício do amor constitui a eterna essência de Deus258
.
Por paixão eterna Rolt entende a existência de um sacrifício não causado ou
provocado por algum elemento externo a Deus, como o pecado humano. Da mesma forma,
não representa uma ação espontânea, como algo que pudesse não ter ocorrido. Não há, assim,
uma causalidade histórica para a cruz. O Gólgota é a inevitável revelação da sua essência em
um mundo atingido pelo mal e pelo sofrimento. O autossacrifício é a essência divina. Deus é
Deus porque eternamente entrega-se completamente e sofre com aquilo que contraria a sua
natureza: o mal, a força bruta que o amor padecente redime em força de vida 259
.
24, 3, que o grande sinal do fim é a proclamação do evangelho a todos os povos, isto é, somente com a difusão
do amor de Deus é que o fim virá. No entanto, o fim também será precedido por uma tribulação generalizada.
Esta relação evangelho-tribulação (ou amor-cruz-tribulação) evidencia a essência do próprio evangelho: a cruz,
como símbolo do sofrimento de Deus. Assim, a tribulação é a expressão da ira e do sofrimento de Deus, a qual
será acompanhada pela proclamação do evangelho, como testemunho do amor que liberta o homem da ira de
Deus. O seu pensamento consiste no seguinte círculo: 1) A ira de Deus: utilizada como testemunho de sua dor;
2) A dor de Deus: que se desenvolve ou encaminha ao amor; 3) O amor de Deus: que liberta o crente de sua ira. 257
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p. 45. 258
Ibid., p. 46. 259
Ibid., p. 46-47. É a partir do axioma “Deus sacrifica-se eternamente, e nessa postura se contém toda sua
essência. Ele é o amante, o amado e o amor” que C. E. Rolt desenvolve a sua doutrina trinitária como legítimo
representante da teologia inglesa que, contrariamente à teologia continental europeia, dedicou-se ao tema da
passibilidade divina. Segundo análise de Moltmann, a argumentação teológica dessa concepção tipicamente
anglo-saxã parte do conceito de sacrifico eucarístico, passando pela cruz histórica do Gólgota, e remontando
finalmente à eterna essência de Deus. Deus é amor e a passibilidade do amor realiza-se na entrega e no
autosacrifício do amante.
96
3.1.3 - A plenitude da vida na história trinitária de Deus
Partindo do pressuposto de que a fé cristã não acredita em uma nova “ideia” de Deus,
Moltmann afirma que na comunhão do Crucificado, a fé se encontra em uma nova “situação
de Deus” e participa com toda a sua existência. A teologia cristã só pode adotar a visão e o
anseio da teologia apática helenista como uma pressuposição para o conhecimento da
liberdade de Deus e para a liberdade do homem cativo260
.
A teologia cristã inverte a direção da teologia apática quando afirma que não se trata da
ascensão do homem a Deus, mas da revelação de Deus no seu esvaziamento de si no
crucificado, o que abre a esfera da vida de Deus para o desenvolvimento do homem nele. Essa
situação relaciona-se com o Judaísmo, pois o pathos de Deus percebido e proclamado pelos
profetas é a pressuposição para a compreensão cristã do Deus vivo a partir da paixão de
Cristo. Há, portanto, uma correspondência direta entre o pathos de Deus e a sympatheia do
homem. Com base na pressuposição da eleição, da Aliança e do povo, Moltmann diz que é
necessário desenvolver uma teologia dipolar que fale da paixão de Deus e do mover do
Espírito no sofrimento e na esperança do homem. O que não existe para o cristão, pois
enquanto para Israel a proximidade com Deus está fundamentada na pressuposição da
Aliança,para os cristãos, é o próprio Cristo que comunica a paternidade de Deus o poder do
Espírito261
.
Neste sentido, afirma Moltmann, a teologia cristã não pode desenvolver qualquer
teologia dipolar do relacionamento recíproco entre Deus que chama e o homem que responde.
Ela deve desenvolver uma teologia trinitária, pois, somente em Cristo e por Ele, esse
relacionamento dialógico com Deus é acessível. Por meio de Cristo o próprio Deus cria as
condições para se entrar nesse relacionamento de pathos e sympatheia262
. Por meio Dele,
Deus cria esse relacionamento para aqueles que não podem satisfazer essas condições: os
pecadores, os ímpios e os abandonados. Portanto, em termos cristãos, nenhum relacionamento
de proximidade entre Deus e o homem é concebível sem a pessoa e a história de Jesus Cristo.
260
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.350. 261
Ibid., p. 350. 262
Ibid., p. 350.
97
O próprio Deus cria as condições para a comunhão com ele por meio de sua
autohumilhação na morte do Crucificado e pela exaltação do homem na ressurreição de
Cristo. Essa comunidade se torna uma comunidade graciosa, sem pressuposições, e universal
de Deus com todo o homem, em toda a sua miséria263
. Moltmann salienta que por amor à
incondicionalidade e universalidade da comunidade da graça de Deus, a teologia cristã deve
pensar simultaneamente em termos cristocêntricos e trinitários264
. Somente a aliança feita
unilateralmente por Deus e acessível a todos na cruz de Cristo, possibilita os relacionamentos
de diálogo da aliança em espírito, em sympatheia e em oração.
Para Moltmann, a afirmação “Deus está em Cristo” é a pressuposição para a comunhão dos
pecadores e dos ímpios com Deus, já que abre a esfera de Deus para o homem como um todo
e para todos os homens. A constatação “vivemos em Cristo” é a consequência para a fé que
experimenta a plena comunhão com Deus em comunhão com Cristo. No hino cristológico em
Fl 2, a teologia cristã fala sobre a auto-humilhação final e completa de Deus no homem e na
pessoa de Jesus. Deus, na pessoa do Filho, penetra na situação limitada e finita do homem.
Ele não somente entra nela, desce à ela, mas, também a aceita e abraça toda a existência
humana com o seu ser265
.
Moltmann acentua a cruz como expressão do amor de Deus ao tratar da Kenosis266
. Por
vezes o exagero de se colocar o homem como absolutamente livre como pensou Sartre, ou
como Bloch, que levou avante tal argumento pró-ateísmo, no pensar cristão, contrariamente, a
liberdade se insere na esperança que é o horizonte do Cristianismo.
Quando Deus se torna homem em Jesus de Nazaré, ele não somente entra na finitude do
homem, mas, em sua morte na cruz, também entra na situação do abandono do homem. Em
Jesus, ele não morre a morte natural de um ser finito, mas a morte violenta de um criminoso
na cruz, a morte em um completo abandono por Deus. O sofrimento de Jesus é o abandono e a
rejeição por Deus, seu Pai. Assim afirma Moltmann:
... Deus não se torna uma religião, para que o homem participe dele, ao
corresponder pensamentos e sentimentos religiosos. Deus não se torna uma
lei, para que o homem participe nele pela obediência da Lei. Deus não se
torna um ideal, para que o homem alcance comunhão com ele pelo esforço
constante. Ele se humilha e toma sobre si a morte eterna do ímpio e do
desamparado, para que todos os ímpios e desamparados possam experimentar
a comunhão com Ele.267
263
Ibid., p.351. 264
Ibid., p.351. 265
Ibid., p.352. 266
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p.129. 267
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.352.
98
O Deus encarnado está presente e pode ser experimentado na humanidade de todo
homem e na plena corporeidade humana. Por isso, afirma Moltmann, ninguém precisa
dissimular ou aparentar ser outro para perceber a comunhão do Deus humano consigo. Pode-
se deixar tudo o que não se é, tornando-se aquilo que verdadeiramente é nesse Deus humano.
Além disso, o Deus crucificado está próximo a ele no desamparo de cada homem268
.
Agostinho diz que Deus é mais íntimo nosso do que nosso próprio íntimo. Na experiência do
Espírito Santo, sentimos o próprio Deus. No interior do homem, ele é o Espírito do Pai em
nós que nos une ao Filho269
.
O homem desamparado e rejeitado pode se aceitar exatamente aonde ele vem a
conhecer o Deus crucificado, que está com ele e já o aceitou. Pois, se Deus tomou sobre si a
morte na cruz, ele também tomou sobre si toda a vida e vida real, à medida que elas estão sob
a morte, a lei e a culpa270
. Desse modo, o homem é levado, sem limitações e condições, à
vida e ao sofrimento, à morte e à ressurreição de Deus e, na fé, participa fisicamente da
plenitude de Deus. Pois, não há nada que possa excluí-lo da situação de Deus entre a dor do
Pai, o amor do Filho e o mover do Espírito271
.
Portanto, a vida na comunhão com Cristo é vida plena na situação trinitária de Deus.
Morto em Jesus e ressurreto em uma nova vida, como afirma Paulo em Rm 6,8: aquele que
crê participa do sofrimento de Deus no mundo, pois tem parte no sofrimento do amor de
Deus. Inversamente, ele tem parte no sofrimento do mundo, pois Deus fez desse o seu
sofrimento na cruz do seu Filho. O Deus humano que encontra o homem no Crucificado
envolve o homem em uma divinização realista (theosis)272
. Em comunhão com Cristo pode-se
realmente dizer que os homens vivem em Deus e a partir de Deus, “que vivem, movem e
subsistem nele” (At 17,28).
3.2 - A teologia política da cruz
Os primórdios do Cristianismo foram marcados com a perseguição impiedosa e hostil
pelo Estado, tanto pelas autoridades romanas, quanto pelos filósofos pagãos. Apologistas
cristãos estavam mais preocupados em diminuir a força dessas acusações e em apresentar a
268
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.352. 269
MOLTMANN, Jürgen. Trindade e Reino de Deus, p.178. 270
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.352. 271
Ibid., p. 353. 272
Ibid., p. 353.
99
religião cristã como a religião que realmente sustentava o Estado273
. Uma teologia imperial
de Eusébio de Cesaréia foi desenvolvida, antes de Constantino, e pretendia assegurar a
autoridade do imperador cristão e a unidade espiritual do império. Ela consistia em duas
ideias básicas, uma hierárquica e a outra, com uma filosofia chiliástica da unidade: um Deus-
um Logos- um Nomos – um imperador – uma igreja- um império. O seu império cristão foi
bem recebido em termos chiliásticos, como o prometido reino da paz. A Pax Christi e a Pax
Romana deveriam ser ligadas pela Providentia Dei274
.
Deste modo, o Cristianismo se tornou a religião unificadora do Estado unitário Romano,
deixando para o plano de fundo a lembrança do destino do Crucificado e dos seus seguidores.
Moltmann denuncia que, como geralmente acontece na história, os perseguidores se tornaram
os governantes. Essa primeira tentativa de uma teologia política cristã fracassou pelo poder da
própria fé cristã e dividiu-se em duas partes, uma na teologia e outra na prática.
O monoteísmo275
político-religioso foi vencido pelo desenvolvimento da doutrina da
Trindade no conceito de Deus. O mistério da Trindade pode ser encontrado somente em Deus
e não pela reflexão, na criação. Na doutrina da Trindade a teologia cristã descreve a unidade
essencial de Deus, o Pai, com o encarnado, o Filho crucificado, no Espírito Santo. Este
conceito não pode ser usado para desenvolver o plano de fundo religioso para um imperador
divino276
.
Segundo Moltmann, a identificação da Pax Romana com a Pax Christi se desfaz na
escatologia. Porque nenhum imperador pode garantir a paz de Deus que excede todo
entendimento. Somente Cristo é capaz de fazer isso. E afirma que a consequência política é
uma luta para a libertação e a independência da Igreja do imperador romano.
Com o desenvolvimento da doutrina da Trindade, da escatologia e da luta pela liberdade
da igreja no Estado cristão, a teologia cristã realizou um rompimento fundamental com toda
religião política e sua ideologia na teologia política. Citando Erik Peterson, Moltmann afirma
273
Ibid., p.400. 274
Ibid., p.401. 275
BOFF, Leonardo. A santíssima Trindade: é a melhor comunidade, p. 157. O autor define que monoteísmo é a
afirmação da existência de um e único Deus. O Antigo Testamento conhece um monoteísmo pré-trinitário,
anterior à revelação da Santíssima Trindade. Pode haver, depois da revelação do mistério da Trindade, um
monoteísmo a-trinitário que fale de Deus sem tomar em conta a trindade de Pessoas, como se Deus fosse uma
realidade única e existindo só em sua substância. Boff afirma que existe o monoteísmo trinitário: Deus é um e
único por força da única substância que existe no Pai, no Filho e no Espírito Santo ou em virtude da comunhão
eterna e a pericórese que vigora desde o princípio entre as três divinas Pessoas. 276
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.401.
100
que a fé cristã não pode mais ser usada de maneira errada, a fim de justificar uma situação
política277
, pois, os sistemas teológicos e político-religiosos são fundamentalmente separados.
Surge uma nova “teologia política” e uma “hermenêutica política” que pressupõe a
crítica da igreja primitiva à teologia política das religiões políticas. De acordo com Moltmann
elas se tornam ainda mais radicais quando buscam recuperar, a partir da tradição bíblica, a
noção de um julgamento entre a mensagem escatológica de Jesus e a realidade social e
política278
. A teologia cristã que deseja estar ciente das restrições políticas e das funções
presentes em sua linguagem, seus ritos, suas instituições e sua prática irá se esforçar para
lembrar-se da crucificação política, da ressurreição divina do Cristo que foi executado como
um “revolucionário” e da consequência do discipulado279
.
A memória da Paixão e da ressurreição de Cristo é, ao mesmo tempo, perigosa e
libertadora. Perigosa porque ameaça uma Igreja que está adaptada à política religiosa da sua
época e a leva à comunhão com os sofredores da sua época. Libertadora porque livra a Igreja
das estruturas, puramente, político-religiosas, para uma teologia cristã crítico-política280
.
Para Moltmann, a consequência para a teologia cristã é a de que ela deve adotar uma
atitude crítica diante das religiões políticas na sociedade e nas igrejas:
A teologia política da cruz deve libertar o Estado do serviço político dos ídolos e deve
libertar o homem da alienação política e da perda de direitos. Deve procurar
desmitologizar o estado e a sociedade. Deve preparar-se para a revolução de todos os
valores que estão envolvidos na exaltação do crucificado, na demolição dos
relacionamentos de dominação política.281
Nesse sentido, para uma atual teologia política crítica, Moltmann afirma que a mesma
deve tomar o rumo da dessacralização, da revitalização e da democratização, pois se as igrejas
se tornarem “instituições para a crítica da sociedade”, elas devem vencer não só a idolatria
privada, mas também a idolatria política, e devem estender a liberdade humana às situações
do Deus Crucificado, não somente na superação de sistemas de apatia psicológica, mas
também na superação da mística dos sistemas de domínio político e religioso, que tornam o
homem apático282
. Moltmann recorda que o Cristianismo não surgiu como uma religião
277
Ibid., p.402. 278
Ibid., p.402. 279
Ibid., p.403. 280
Ibid., p.403. 281
Ibid., p.405. 282
Ibid., p.405.
101
nacional ou de classe. Como uma religião de governantes dominante deve negar sua origem
no Cristo crucificado, perdendo, assim, sua identidade:
O Deus crucificado é, na verdade, um Deus sem Estado e sem classe social.
Porém, isso não quer dizer que Ele seja um Deus sem política. Ele é o Deus do pobre,
do oprimido e do humilhado. O domínio do Cristo que foi crucificado por razões
políticas só pode ser estendido por meio da libertação de formas de domínio que
tornam o homem servil e apático e pelas religiões que lhe dão estabilidade.283
Para Moltmann, desenvolver uma doutrina trinitária é preciso visar, objetivamente, à
superação do monoteísmo religioso, do cristianismo monoteísta e do monoteísmo cristão284
,
como influentes expressões monárquicas do conceito de Deus. A ideia de uma monarquia
divina é geradora de arquétipos de poder e soberanias terrenos285
. Por isso, o desenvolvimento
de uma doutrina trinitária de cunho histórico-social não pode esquivar-se de um tema tão
desafiador. O compromisso teológico com a liberdade impõe uma cuidadosa análise dos
processos históricos de acomodação e consolidação dos mútuos interesses políticos e
religiosos286
.
3.2.1 - Círculos viciosos da morte
A hermenêutica política não é apenas um desenvolvimento teórico da tradição, nem é
alcançada somente em nível ideológico e religioso, segundo Moltmann. Ela se coloca como
hermenêutica da vida na situação da Paixão de Deus287
e, portanto, inclui tanto a prática
283
Ibid., p. 405. 284
MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus, p.197. 285
BOFF, Leonardo. O caminhar da Igreja com os oprimidos. Petrópolis: Vozes, 1988, p.245-246. Refletindo
sobre a experiência desintegrada da Santíssima Trindade, o autor afirma que a desintegração social das
sociedades divididas em classes, e, como no Terceiro Mundo, a existência de imensas maiorias marginalizadas,
propiciou uma compreensão desintegrada das Três Divinas Pessoas. Quase nunca aparece a comunhão entre elas
e, por isso, sua unidade significa unicidade, ou seja, cada pessoa é Deus por si só. Cada Pessoa está na base de
uma religião: a religião do Pai, a do Filho e a religião do Espírito Santo. 286
MOLTMANN, Jürgen. Progreso y precipicio: recuerdos del futuro del mundo moderno. Revista Isidorianum.
V.18. N.18/ 2000, p. 289-311. Neste artigo, Moltmann elabora importante análise histórica desde a Renascença,
passando pelo expansionismo imperialista europeu do século XIX, até os horrores da Segunda Guerra. Reflete
sobre o futuro da Revolução Industrial e democrática à luz do futuro da esperança cristã. 287
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. O Deus desarmado: A teologia da Cruz de J. Moltmann e seu impacto
na teologia Católica in Estudos de Religião. São Paulo: Universidade Metodista. V.23, n. 36, jan- jun/ 2009,
p.230-248. Neste artigo a autora define que o problema de Deus surge no mais profundo do ser humano a partir
da dor pela injustiça no mundo e pelo desamparo no sofrimento. São muitos os movimentos e as lutas sobre os
quais a história busca explicação: luta pelo poder, luta de classes, lutas raciais etc. Para conceber a categoria
exata de intelecção da história humana universal percebe-se que se faz necessário encontrá-la, entre todos os
movimentos e conflitos que a abalam, na “história da paixão do mundo”. Maria Clara afirma que no poder os
homens se diferenciam entre si, mas na pobreza todos são solidários. No positivo se separam e no negativo são
102
quanto a alteração da prática. A libertação rumo a uma humanidade sympathetica é praticada
em círculos viciosos particulares que impedem que os homens sejam homens. Da mesma
forma que há formulações de padrões psicológicos que adoecem os homens, também existem
formulações de padrões econômicos, sociais e políticos inúteis que levam da vida à morte.
Nessas formulações há um número de ciclos viciosos que se contribuem mutuamente. Por
isso, Moltmann afirma que não faz sentido falar sobre uma “teologia da libertação” e sim falar
sobre “libertações”, no plural, e avançar os processos de libertação nas várias dimensões de
opressão ao mesmo tempo288
.
A partir desta constatação surge a preocupação: como formular uma doutrina trinitária
de cunho histórico-social sem que os elementos fundamentais da narrativa bíblico-teológica
sejam compreendidos à luz das principais questões sócio-politico-culturais da época? Qual a
relação entre o ideal religioso e os sistemas jurídicos e políticos das sociedades289
? Essas são
questões decisivas e que devem ser discutidas dentro da proposta de uma análise crítica da
recíproca relação entre o monoteísmo político e os ideais religiosos.
Nesse sentido, a unidade de Deus não pode ser utilizada para construir a figura de um
onipotente monarca do mundo, inspirado na imagem dos potentados terrenos290
. O poder do
Pai não consiste na possibilidade de tudo submeter a si, mas na capacidade de autorrestringir-
se e plenamente solidarizar-se com tudo que é objeto do seu amor. Sua realeza, nesse sentido,
não se esgota no triunfo dos vencedores, mas na face do crucificado e da sua comunidade de
fiéis. Ao Deus uno e trino não se adequam as imagens de uma monarquia dominadora, mas as
de uma comunidade que se estabelece e se reconhece pelas suas relações recíprocas em
detrimento dos arquétipos de poder, dominação e posse.
A sociedade das três pessoas divinas apresenta-se como modelo antagônico ao do
Deus monoteísta, Senhor do mundo291
. O conceito de uma pericórese divina ajusta-se melhor
todos iguais. A experiência e a percepção da dor no e do mundo conduz então a teologia cristã mais à frente do
teísmo ou do ateísmo. 288
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.406. 289
METZ, Johann Baptist. A fé em História e Sociedade: estudos para uma teologia fundamental prática. São
Paulo: Paulinas, 1980, p. 80. Para Metz, a ideia de Deus não deve desprezar ou oprimir o ser sujeito histórico-
social do homem, pelo contrário, deve contribuir para o seu equilíbrio, mantendo a responsabilidade social
através da culpa e da rejeição a toda forma de opressão. 290
MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus, p. 203. 291
BLANK, Reinold J. Deus na História, p. 4–41. Segundo Blank, em seu estudo acerca da revelação histórica
de Deus, a grande descoberta inicial estabelecida a partir da história dos patriarcas é que o Deus verdadeiro não
está ao lado do poder. Yahveh não é o Deus que escolhe os caminhos dos senhores para revelar como ele é ou o
que ele quer. Os deuses de outras culturas, no entanto, apresentam curiosamente uma característica em comum:
estavam ao lado e sustentavam o poder vigente, que por sua vez, os promoviam como entidades de culto
permanente.
103
ao Deus revelado em Jesus Cristo e em toda a história da salvação292
. Sua imagem e
semelhança só se percebem na dimensão comunitária e social da vida humana e quando nestas
coexistem harmoniosamente tanto a pluralidade quanto a diversidade. Personalismo e
socialismo, desta forma, não são conceitos antagônicos, antes elementos de uma possibilidade
mais rica e profunda293
: o personalismo social e seu correlativo, o socialismo pessoal294
.
Por isso, Moltmann afirma que não se pode libertar uma área específica ao estabelecer
ditaduras em outro lugar. É preciso buscar libertação do homem em uma série de esferas e
dimensões. Moltmann introduz as dimensões que não podem ser reduzidas a outras e salienta
que em cada instância concreta, essas dimensões trabalham juntas. Embora não tenha uma
gradação em forma de pirâmide ou uma sequência histórica entre ela, é preciso distingui-las
para fornecer diretrizes para ações em instâncias específicas295
. Nesse sentido, Moltmann
apresenta uma influência mútua das dimensões da opressão.
Nas dimensões econômicas da vida, há o círculo vicioso da pobreza. Este consiste em
fome, enfermidade e mortalidade, sendo provocado pela exploração e dominação da classe.
Há círculos viciosos de pobreza em sociedades individuais, entre as nações industriais
desenvolvidas, em países agrários subdesenvolvidos e nos antigos territórios coloniais. Para
os grupos individuais dentro de um povo e para povos inteiros, o resultado é um círculo
vicioso de pobreza, trabalho, enfermidade e exploração, diante de uma perspectiva global, em
que os sistemas econômicos funcionam em espiral, enriquecendo as nações ricas e
empobrecendo os pobres296
.
Na dimensão política, o círculo vicioso da força está ligado ao círculo vicioso da
pobreza. Ele é produzido em sociedades específicas, pela dominação de tiranias, classes altas
292
SILVA, Maria Freire da. Espiritualidade e mística em perspectiva trinitária in Revista de Cultura Teológica.
São Paulo, v. 13, n. 50, p.77-100. Para a autora, o amor para com a criatura pertence à essência do próprio Deus.
Desta essência deriva o autovinculamento que vai até a cruz. No Cristianismo, Jesus é o lugar privilegiado da
revelação de Deus na história da salvação. A ressurreição de Jesus é, assim, reconhecida como revelação
suprema da Trindade. Neste sentido, a espiritualidade cristã implica plena obediência de amor a Deus mediante a
oração e a ação permanentes, uma vez que a verdade do homem vem revelada na criação (Gn 1,1) e se torna
nova criatura, um novo ser em Cristo. 293
MOLTMANN, J. Esperanza y planificación del futuro. Salamanca: Segueme, 1971, p. 342-351. Segundo
Moltmann, todas as teorias sócio-políticas possuem a marca da provisoriedade histórica ante a meta definitiva do
“reino da liberdade”. Dessa forma sugere que cristãos e marxistas devem solidarizar-se naquilo que possuem em
comum: a busca de superação do sofrimento ante a miséria do homem. Ambos buscam a mesma experiência de
transcendência, quer da opressão capital-trabalho (emancipação) quer da limitação pecado-culpa (redenção).
Ambas representem a tensão dialética pela qual se apresenta a história da liberdade humana. Assim, a
emancipação é o lado imanente da redenção; a redenção, o lado transcendente da emancipação. A redenção,
portanto, não é o cansaço transcendente da opressão, se não o contrário, é o estímulo transcendente da libertação
aqui na terra. 294
MOLTMANN, J. Trindade e Reino de Deus, p. 205. 295
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.407. 296
Ibid., p.407.
104
e por alguns privilegiados. O mesmo se dá nos relacionamentos entre nações poderosas e
fracas. Neste contexto, os direitos humanos de autodeterminação e codeterminação políticas
são suprimidos e só podem ser afirmados em termos revolucionários297
, onde o crescimento
da força organizada e da reação espontânea é sinal ameaçador298
.
O círculo vicioso da alienação racial e cultural também está envolvido com os
círculos viciosos da pobreza e da força. Nele, o homem é adaptável e condescendente, uma
vez que tem sua identidade e características roubadas sendo degradado a ponto de se tornar
um fator manipulável do sistema. Então, ele é moldado à imagem dos seus dominadores.
Moltmann afirma que não se pode vencer a pobreza e a opressão sem a libertação do homem
da sua alienação racial, cultural e tecnocrata299
.
Os círculos viciosos da pobreza, da força e da alienação estão ligados a um círculo
maior, o círculo vicioso da poluição industrial da natureza, em que a fé irracional no
progresso destruiu de maneira irreparável o equilíbrio da natureza pela industrialização.
Diante de uma orientação unilateral sobre valores econômicos e sobre a esperança da
libertação, que as gerações anteriores depositavam com um fervor messiânico no trabalho, nas
máquinas, no lucro e no progresso, revelam uma inversão nos sistemas do homem e da
natureza, de uma orientação sobre a vida, para uma orientação sobre a morte300
.
Nos círculos viciosos econômicos, políticos, culturais e industriais é possível ver um
mover mais profundo e mais abrangente: o círculo vicioso da insensibilidade e do desamparo
por Deus, onde o futuro se tornou obscuro e no presente as pessoas se tornam perplexas, sem
coração e o homem perde o seu senso de propósito. Alguns buscam um refúgio nos prazeres
do presente e outros procuram pela paz no mundo dos sonhos. Há ainda aqueles que
297
MOLTMANN, Jürgen. O Espírito da vida, p. 107-110. Para Moltmann, a partir das revoluções Americana e
Francesa, o princípio revolucionário da liberdade passou a ser a base ideológica do mundo burguês. A antiga
sociedade clerical e feudal foi substituída por uma sociedade competitiva e igualitária, cuja soberania emana do
povo e para o povo. É o surgimento da cidade secular e dos movimentos por libertação. No entanto, embora tais
movimentos pró-libertação tenham emergido em consonância com a ideia de Deus (Kant e Hegel), o processo
histórico logo se mostrou contrário. A ligação do clero em alguns países, especialmente França e Itália, com as
classes dominantes, evocou o surgimento de um ateísmo laicista, sob a divisa: “ni Dieu-ni maître”. Dessa forma,
o ateísmo passa a representar a base religiosa para o desejo de liberdade. Surge a alternativa: Deus ou liberdade.
A reação conservadora é denominada o princípio autoritário (Deus-Rei-Pátria). A “doença da revolução” deve
ser combatida através da “Santa Aliança”, a fim de salvar o Estado e o Cristianismo europeu. Moltmann conclui
afirmando que a radicalização “Deus vincula-se à autoridade e ateísmo à liberdade” não procede e se mostra
prejudicial para ambos. A fé acaba perdendo sua dimensão bíblico-messiânica e a liberdade humana sua mais
forte força impulsionadora. Ver também: PIXLEY, George V. O Reino de Deus. São Paulo: Paulinas, 1986, p.
117-120. 298
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.408. 299
Ibid., p.409. 300
Ibid., p.409.
105
antecipam o declínio pelo terrorismo. A partir da experiência e da insensibilidade surge a
apatia e desta, um desejo inconsciente de morte301
.
3.2.2 - Caminhos para a libertação
Moltmann afirma que onde os cinco círculos viciosos, trabalham juntos, é
desenvolvida uma síndrome geral de decadência. Esses círculos trabalham juntos como
sistemas interligados e levam a vida humana envolvida neles a um estado de desumanização e
morte. A ação libertadora deve localizar esses círculos viciosos, reconhecendo a maneira
como trabalham juntos. Agindo ativamente em todas as cinco dimensões ao mesmo tempo, se
pretende libertar da opressão a vida como um todo302
.
Na dimensão econômica da vida, a libertação significa a satisfação de necessidades
materiais do homem por saúde, alimentação, vestuário e moradia. Sucedido de uma justiça
social capaz de dar a todos os membros da sociedade uma parte satisfatória e justa dos
produtos de seus trabalhos303
. Onde o círculo vicioso da pobreza é produzido pela exploração
e dominação de classe, a justiça social só pode ser alcançada pela distribuição do poder
econômico. Moltmann aponta o Socialismo como símbolo para a libertação do homem do
círculo vicioso da pobreza304
.
Na dimensão política da vida, a libertação da opressão também significa democracia,
na qual a dignidade humana é aceita pela responsabilidade política. Segundo Moltmann, o
círculo vicioso da força só pode ser quebrado, dando a cada indivíduo a responsabilidade
política e uma parte ativa nos processos de decisão. Caso contrário, o exercício de poder não
está livre de privilégios e de hegemonias de classes ou grupos específicos. Somente por meio
301
Ibid. p.410. 302
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. O Deus desarmado: A teologia da Cruz de J. Moltmann e seu impacto
na teologia Católica in Estudos de Religião, p.230-248. Nesse sentido, a autora afirma que uma fé que justifica o
sofrimento e a injustiça do mundo, e não protesta contra eles, é desumana e aparentemente satânica. Mas, por
outro lado, o protesto contra a injustiça perde toda energia se cair em um corriqueiro ateísmo para o qual tudo
ficasse reduzido a este mundo e a situação intra-histórica concreta e limitada. 303
PAPA FRANCISCO, Evangelli Gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013, n. 203. Ao falar sobre Economia e
distribuição de renda, o Papa afirma que a dignidade de cada pessoa e o bem comum são questões que deveriam
estruturar toda a política econômica, e critica que “às vezes parecem somente apêndices adicionais de fora para
completar um discurso político sem perspectivas nem programas de verdadeiro desenvolvimento integral.
Quantas palavras se tornaram molestas para este sistema! Molesta que se fale de ética, molesta que se fale de
solidariedade mundial, molesta que se fale de distribuição dos bens, molesta que se fale de defender os pontos
de trabalho, molesta que se fale da dignidade dos fracos, molesta que se fale de um Deus que exige um
compromisso em prol da justiça...” E denuncia que outras vezes acontece que “estas palavras se tornam objeto
de uma manipulação oportunista que as desonra. A cômoda indiferença diante destas questões esvazia a nossa
vida e as nossas palavras de todo o significado.” 304
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.411.
106
de uma distribuição justa e igual das responsabilidades políticas é que a alienação do povo por
parte do poder público e a sua apatia política poderão ser superadas. Assim, a democracia se
torna o símbolo para a libertação do homem do círculo vicioso da violência, pois ela é
indispensável para a abolição de sistemas militares opressores e a construção de sistemas para
a paz política e de controle305
.
Na dimensão cultural da vida, a libertação do círculo vicioso da alienação significa a
identidade no reconhecimento dos outros, como uma “emancipação humana do homem”
(Marx), na qual o homem adquire autoconfiança no reconhecimento de outros e na comunhão
com ele, onde o reconhecimento de diferenças raciais, culturais e pessoais e o reconhecimento
da própria identidade do individuo devem permanecer juntos. Essa integração não pode levar
a uma massa “cinza” de homens uniformes. Desse modo, a identidade não pode significar
uma separação definitiva, antes, ela e o reconhecimento devem caminhar juntos, pois não são
possíveis uma sem o outro. A emancipação humana do homem da autoalienação e de relações
alienadoras só será possível quando duas pessoas sem medo, superioridade ou sentimentos
reprimidos de culpa, trabalharem juntas de maneira produtiva306
.
Na relação da sociedade com a natureza, a libertação do círculo vicioso da poluição
industrial da natureza significa a paz com a natureza. Moltmann enfatiza que nenhuma
libertação do homem da angústia econômica, da opressão política e da alienação humana irá
ser bem sucedida, se não houver a libertação da natureza da exploração desumana e se não
satisfazer a natureza307
. Os modelos da libertação da natureza e da sua dominação pela
exploração levam à sua morte ecológica e também à morte da humanidade. Desse modo, a
natureza não é um objeto, e sim, um ambiente do homem. Por isso, a natureza tem os seus
direitos e seu equilíbrio. O homem deve, portanto, trocar sua apatia de dominação quase
sempre hostil sobre a natureza por uma relação compassiva de parceria com o mundo
natural308
.
305
Ibid., p.412. 306
Ibid., p.412. 307
BENTO XVI. Caritas in Veritate. São Paulo: Paulinas, 2009, n.48. O Papa associa ao tema do
desenvolvimento os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este fora dado
por Deus a todos “constituindo uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a
humanidade inteira”. Bento XVI afirma que quando a natureza, começando pelo ser humano, é considerada
como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas
consciências: “Na natureza, o crente reconhece o maravilhoso resultado da intervenção criadora de Deus, de que
homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências, materiais e imateriais, no
respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação”. O Papa adverte que se falta esta perspectiva o homem
pode considerar a natureza um tabu intocável ou pelo contrário, pode abusar dela. Qualquer uma dessas atitudes
não corresponde à visão cristã da natureza, fruto da criação divina. 308
Ibid., p.413.
107
Na relação do homem, da sociedade e da natureza para o sentido da vida, a libertação
se caracteriza numa vida significativa e plena. Uma sociedade que é oprimida pelos círculos
viciosos econômicos, políticos, culturais e industriais é sempre uma sociedade “fria”. No
plano de fundo da consciência pessoal e pública, a perplexidade, a resignação e o desespero
são amplamente difundidos. Moltmann afirma que esse envenenamento interior da vida se
estende não somente às sociedades pobres, mas também às sociedades ricas. Portanto, esta
libertação não pode ser tomada simplesmente pela vitória sobre a necessidade econômica, a
opressão política, a alienação cultural e a crise ecológica. Tão pouco, pode ser reduzida a
essas esferas e dimensões. A crise de sentido oprime uma vida vazia e uma vida plena, cada
uma de um jeito específico. Moltmann conclui que a liberdade dos filhos de Deus e a
libertação da natureza escravizada (Rm 8,19) são consumadas na chegada da morada
completa e universal de Deus309
. Em uma situação de desamparo por Deus e de
insensibilidade, o conhecimento da presença oculta de Deus no Cristo desamparado na cruz,
já nos dá “coragem de ser”, apesar do vazio e de todas as experiências aniquiladoras310
.
3.2.3- As transformações de Deus nas libertações do homem
Moltmann diz que se olharmos para as relações que condicionam os vários processos de
libertação e tentarmos realizar um contra teste, descobre-se que o socialismo é impossível sem
a democracia e a democracia é impossível sem um socialismo. Para o autor, qualquer tentativa
de estabelecer uma justiça social com o auxílio de uma ditadura de meritocracia de elite ou
com o auxílio de uma ditadura nacional, simplesmente serviria para “exorcizar um diabo com
o outro”311
. A justiça social transformaria movimentos democráticos em ditaduras socialistas.
309
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 221-222. A autora pontua alguns elementos que se
apresentam relevantes nos temas atuais da criação e ecologia na perspectiva trinitária no pensamento de
Moltmann. Este aproxima a doutrina da casa (Oikos-logos, ou seja, ecologia) à doutrina da criação, uma vez que
Deus habita sua criação e as suas criaturas na forma de Espírito, habitando-as no ato de criar e descansar. Desse
modo, a transcendência torna-se imanência e sua imanência está na encarnação. Esta via opõe-se à relação
unilateral de domínio, inerente à condição de um Deus monoteísta, rigidamente transcendente, incomunicável, e
se abre a perspectiva de um Deus-Trindade, que em sua pericórese amorosa, é solidário com sua criação. Maria
Freire afirma que Moltmann desenvolve uma doutrina ecológica da criação denotadora de caráter messiânico de
futuro da qual procede a perspectiva escatológica da criação vista como processo. Moltmann articula aliança,
reino de Deus, num reconhecimento do mundo como parábola do mundo futuro, onde cristologia e
pneumatologia são interconectadas em perspectiva escatológica. E associa o repouso sabático com a doutrina da
justificação judaica e a justificação cristã, propondo interligar o sábado ao domingo da ressurreição de Cristo
“antecipando a participação no descanso de Deus e na festa da ressurreição e da recriação do mundo. A essa
festa Moltmann associa a categoria dança, metáfora que expressa à liberdade e redenção do corpo, relacionada
com uma nova visão ecológica e universal orientada para o futuro, numa visão evolucionista da criação”. 310
Ibid. p.415. 311
Ibid. p. 415.
108
Por outro lado, se se estabelecesse uma democracia política à custa de uma justiça social, ela
se tornaria desacreditada e levaria a uma aristocracia daqueles com privilégios econômicos,
onde movimentos socialistas seriam estabelecidos logo.
A emancipação humana, até mesmo a identidade racial são impossíveis se as relações
econômicas e políticas são ignoradas312
. Inversamente, a democracia social ou o socialismo
democrático não podem ser postos em pratica se não estiverem ligados pelo reconhecimento
um do outro, em uma identidade racional, cultural e pessoal. Ou seja, não pode haver
democracia social sem uma identidade no reconhecimento e não pode haver emancipação
humana sem democracia política e social.
Além disso, afirma Moltmann, nenhuma sociedade digna do nome pode ser construída
sem paz com a natureza313
. E, inversamente, não haverá um sistema cooperativo de paz com a
natureza, enquanto o homem não se organizar em uma sociedade totalmente humana314
, pois,
uma solução tecnocrata dos problemas da humanidade sem uma solução dos problemas
ecológicos não leva à vida. E não pode haver paz entre o homem e o homem, e entre a
humanidade e a natureza sem a superação do desespero pela esperança de uma existência de
sentido em tudo.
Moltmann conclui que a libertação deve se dar em todas as cinco dimensões,
simultaneamente, em cada situação específica. Em qualquer teologia de libertações, o
universal deve ser compreendido no particular e o escatológico no histórico. Caso contrário, é
impossível pensar concretamente sem se tornar pragmático e é impossível pensar
universalmente sem se tornar abstrato. Assim:
Até agora, permitimos que o conceito de libertação corra pelas
dimensões da opressão e descobrimos que nos círculos viciosos da
pobreza, a libertação deve ser chamada de justiça social; no círculo
312
Para Moltmann, as limitações dos movimentos de libertação antirracistas e das teologias se encontram na
subestimação dessas conexões. Donde o racismo está intimamente ligado à injustiça social e à privação política
de direitos. 313
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.416. 314
Nesse sentido, uma compreensão trinitária da doutrina de Deus pode oferecer importante contribuição para a
humanização das sociedades modernas. Bruno Forte instado a apresentar o caráter funcional da doutrina trinitária
frente aos desafios dos problemas cotidianos, políticos e sociais, argumenta que a realidade trinitária encontra-se
em permanente relação com a dimensão social da existência humana. Tal correspondência foi conceituada por
Carl Schmitt de teologia política. Após avaliar as possibilidades e as limitações dos processos de influência dos
conceitos teológicos sobre os eventos políticos, Bruno Forte recorre à crítica ao monoteísmo político de
Moltmann para, a partir dela, formular suas conclusões. Nesse sentido, admite a necessidade de se buscar um
sistema social capaz de integrar o personalismo ocidental e o socialismo oriental, em uma espécie de
personalismo social ou um socialismo pessoal. No entanto, conclui recusando qualquer funcionalismo teológico
que tente presumir ou mesmo definir fórmulas especulativas para a dinâmica da realidade social. Mais prudente
seria manter a fé trinitária como verdadeira “reserva escatológica” capaz de oferecer-se como parâmetro crítico e
inspirador de todas as possíveis realizações sociais, motivando-as a serem capazes de estabelecerem relações
mais autênticas e libertadoras. Cf. FORTE, Bruno. Trindade para ateus. São Paulo: Paulinas, 1998, p. 93-111.
109
vicioso da violência, ela deve ser chamada de direitos humanos
democráticos; no círculo vicioso da alienação, deve ser chamada de
identidade no reconhecimento; no círculo vicioso da ecologia, deve
ser chamada de paz com a natureza; e no círculo vicioso da falta de
sentido deve ser chamada de coragem para ser o também de fé315
.
Moltmann chama essas identificações de símbolos, pois mostram a libertação em
termos reais, em várias esferas e, ao mesmo tempo, convidam ao pensamento mais profundo.
O símbolo no pensamento é ligado pela concepção da realidade como um sacramento, ou seja,
como uma realidade qualificada pela Palavra de Deus e que passa a ser a portadora da sua
presença. Essas realidades não são um reino separado de Deus, nem são apenas símiles e
equivalências do seu Reino, e sim, são presenças reais da sua onipresença vindoura. Por isso,
uma teologia da libertação não pode sobreviver sem materializações correspondentes da
presença de Deus, se não pretende permanecer idealista316
. Para a teologia da libertação as
identificações da presença de Deus com a questão envolvida na libertação dos ciclos viciosos,
são símbolos reais, cifras reais e antecipações materiais da presença física de Deus.
Moltmann diz que se permitirmos que a linguagem teológica da presença real de Deus
corra por essas dimensões de miséria, alcançamos a seguinte sequência de identificações:
No círculo da pobreza, pode-se dizer: “Deus não está morto. Ele é
pão”. Deus está presente como pão, sendo incondicional que
aproxima, no sentido presente. No círculo vicioso da força, a
presença de Deus é experimentada como a libertação para a
dignidade humana e a responsabilidade. No círculo vicioso da
alienação, sua presença é percebida na experiência da identidade
humana e do reconhecimento. No círculo vicioso da destruição da
natureza, Deus está presente na alegria, na existência e na paz entre
o homem e a natureza. No círculo vicioso da falta de sentido e do
desamparo, finalmente, Ele aparece na figura do Crucificado, que
comunica a coragem para ser.
De acordo com a tradição teológica, Moltmann afirma que é possível ver essa presença
real de Deus, apontando para além de si, como na história do Shekinah vagando pelo pó,
como a historia do espírito que vem à carne. Esta história é compreendida no processo da
história trinitária de Deus, onde as presenças reais de Deus adquirem o caráter de uma
“Praesentia explosiva”. Portanto, a fraternidade com Cristo significa o sofrimento e a
participação ativa na história desse Deus. Seu critério é a história do Cristo crucificado e
315
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.417. 316
Ibid., p. 418.
110
ressurreto. Seu poder é o Espírito de Deus que geme e liberta. Sua consumação se encontra no
Reino do Deus triuno que liberta todas as coisas e as enche de sentido317
.
3.3- Perspectivas escatológicas da cruz
A partir da Teologia da Esperança, Moltmann direciona sua reflexão à Teologia da Cruz,
em sua obra O Deus Crucificado (1972), que desperta as mais diversas reações. Segundo
alguns críticos, o olhar do teólogo da esperança, sempre voltado para o futuro da humanidade,
parece vacilar em sua proposta escatológica e filosófica. Outros afirmam que seu novo
trabalho é um livro inesperado ou mesmo um salto mortal. Uma indagação, porém, pode
sintetizar todo o clima de surpresa: “Por que será que Moltmann, da altissonante música de
Bloch, passou gradualmente a uma escatologia crucis mais amena?” 318
.
Tais reações não são sem propósito. De fato, uma nova intenção e outro eixo dialogal
estruturam a atual postura teológica de Moltmann. A cristologia escatológica, desenvolvida
em sua Teologia da Esperança319
, parece não comunicar satisfatoriamente todo o seu espectro
escatológico. Nela, o homem é apresentado como um ser de esperança, a partir da categoria
de “futuro” e de “possibilidade”, como História. Na doutrina teológica da esperança - com a
escatologia -, Moltmann desenvolve em sua teologia a esperança ligada ao reino da liberdade.
Desta forma, Moltmann busca em O Deus Crucificado aprofundar a temática da esperança
cristã, que se estabelecera fundamentalmente através do princípio da antecipação
escatológica, firmado a partir da ressurreição de Cristo. Em O Deus Crucificado, por sua vez,
envida esforços no sentido de compreender o princípio da encarnação desse futuro, mediante
a paixão de Cristo pelo mundo320
.
A base da doutrina trinitária de Moltmann é, portanto, a história de Jesus na dialética
cruz-ressurreição, na qual o conceito de escatologia está associado. Enquanto a escatologia
317
Ibid., p.418. 318
GIBELLINI, Rosino. A Teologia do Século XX, São Paulo: Loyola, 1998, p. 292. 319
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.199-212. Moltmann, ao escrever sobre o entusiasmo cristão-primitivo do cumprimento e a
escatologia crucis, afirma que a teologia da esperança pretendia caracterizar a experiência de Deus no interior da
história da divina promessa do reino de Deus. Para Moltmann, a promessa revela que o presente ainda não é
reino de Deus. Nesse sentido, ela contradiz a sacralidade presente onde o Espírito é o mediador, historicamente,
entre a história messiânica de Jesus e a vinda do reino de Deus. 320
MOLTMANN, Jürgen. O Deus crucificado: A cruz de Cristo como base e crítica da teologia cristã, p.41.
111
cristã tem seu fundamento e origem em Jesus Cristo, o conhecimento de Cristo determina a
essência da escatologia cristã321
.
Seu novo interesse teológico, portanto, visa a situar a cruz do ressuscitado no conjunto de
sua escatologia. Moltmann realiza, para tanto, uma necessária integração em sua cristologia
escatológica, afirmando a necessidade de percorrer, agora, de forma inversa, uma escatologia
cristológica; e isto é feito em seu trabalho O Deus Crucificado.
Em sua obra, Moltmann deu impulsos importantes para reflexões novas e diferentes sobre
a cruz e para reconhecê-la como uma imagem do Deus verdadeiro e de um ser humano que
seja humano. Dessa forma, Moltmann propõe uma constante reflexão sobre a cruz para
fazermos jus à palavra paulina da cruz, pois na cruz decidem-se nossa imagem de Deus e
nossa imagem do ser humano. Ela nos impede de nos contentarmos com uma imagem de
Deus inofensiva, uma imagem da qual foram coados todos os elementos do tremendum e
fascinosum, daquilo que ao mesmo tempo, assusta e atrai322
.
A cruz revela donde partem as autoimagens erradas acerca do ser humano que destoam da
humanitas verdadeira, como foi revelada em Jesus Cristo: “Quando a bondade e o amor de
Deus, nosso salvador, se manifestaram, ele salvou-nos” (Tt 3, 4). Portanto, a cruz revela a
imagem do verdadeiro ser humano, o ser humano misericordioso, simpatético, vulnerável. A
partir de sua teologia da cruz e da compreensão paulina de escatologia323
, Moltmann
desenvolve uma nova escatologia. Com a ressurreição originou-se e foi posto em andamento
um processo histórico determinado, o qual tem como meta o aniquilamento da morte pelo
domínio da vida a partir da ressurreição e que se orienta para a justiça na qual Deus terá seus
direitos reconhecidos em tudo, e na qual a criatura chegará a sua salvação. Para Moltmann,
em 1Cor 15, somente a partir da escatologia presente ou da teologia da eterna presença é que
o pensamento escatológico e antecipatório de Paulo pode ser visto como uma recaída na
321
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 240. 322
GRÜN, Anselm. A cruz: imagem do ser humano redimido. São Paulo: Paulus, 2010, p.83. 323
MOLTMANN, Jürgen. Teologia da Esperança: Estudos sobre os fundamentos e as consequências de uma
escatologia cristã, p.208. Moltmann afirma que o pensamento escatológico de Paulo une o perfeito da
ressurreição de Jesus com o futuro da escatologia. As duas perspectivas são vistas como um nexo de causalidade
mútua. O cristianismo primitivo confessa que “Jesus morreu e ressuscitou”. Esta confissão recebe uma
explicação totalmente diferente daquela realizada no culto de mistério da divindade que morre e ressuscita. O
evento de Cristo é apresentado dentro da moldura da expectativa escatológica, em relação com aquilo que há de
vir, e a espera do futuro é baseada no evento de Cristo. “Cremos que Jesus morreu e ressuscitou por isso Deus
também ressuscitara os que dormiram...” (1Ts 4,14), é, sob esse aspecto, tão típico como a explicação da fórmula
de confissão de 1Cor 15, 3-5 em 1Cor 15,20ss. O nexo entre a ressurreição de Jesus e o futuro esperado não é
nem unilinearmente apocalíptico nem unilinearmente cristológico, mas recíproco: se não há ressurreição dos
mortos, também Cristo não ressuscitou; se Cristo ressuscitou, também os mortos ressuscitarão, e assim Cristo
“deve” dominar sobre todos os inimigos, também sobre a morte. Não se trata, portanto, de um “dei/histórico-
salvífico”, mas de uma fé que descobre a necessidade e a tendência de futuro no evento da ressurreição de Jesus.
Essa compreensão não se relaciona com a expectativa fatalista da apocalíptica, mas com o título de Kyrios de
Jesus.
112
mitologia apocalíptica superada324
. Para superar essa mitologia é necessária uma escatologia
da promessa, segundo a qual se pode vencer a forma mítica e ilusória de ver o mundo e a
existência humana, pois somente esta toma realmente a sério a hostilidade, a contradição e a
impiedade deste mundo, dando-lhe seu verdadeiro sentido.
Essa visão escatológica, segundo Moltmann, não exige a fé e a obediência nesse mundo
pelo fato de tornar insignificantes as contradições, mas torna possível a fé e a obediência por
meio da esperança na vitória de Deus sobre essas contradições. Assim afirma Moltmann:
A fé não se alcança por uma radical desmundanização, mas pela
exteriorização cheia de esperança no mundo, ela se torna vantagem também
para o mundo. Ao aceitar a cruz, o sofrimento e a morte juntamente com
Cristo, recebendo em si a contradição e o combate da obediência no corpo, e
ao entregar-se à dor do amor, a fé anuncia o futuro da ressurreição, da vida e
da justiça de Deus no dia-a-dia do mundo. O futuro da ressurreição vem a
essa fé se ela tomar sobre si a cruz325
.
Nessa perspectiva a escatologia futurística e a teologia da cruz se entrelaçam, pois,
segundo Moltmann, não se toma isoladamente a escatologia do futuro, como no apocaliptismo
do judaísmo tardio, nem a cruz, como em Kierkegaard, se torna o sinal da presença paradoxal
da eternidade em cada instante. A expectativa escatológica do domínio universal de Cristo
sobre o mundo corporal e terreno traz consigo a percepção e a aceitação das contradições da
cruz e da ressurreição326
.
Em sua compreensão escatológica, Moltmann afirma que Deus não está em alguma parte
do além, mas ele vem e está presente como aquele que vem e promete um novo mundo de
vida plena, de justiça e de verdade. Com essa promessa, propõe novamente em questão o
próprio mundo, pois este ainda não é aquilo que está colocado a sua frente. Por serem
questionados, o mundo e a existência humana se tornam “históricos”, pois são postos em
“jogo” e colocados na crise do futuro prometido: “Quando o novo aparece, o velho se
manifesta. Quando algo de novo é prometido, o antigo se torna passageiro e superável.
Quando é esperado e aguardado algo novo, o antigo pode ser abandonado”327
.
Na compreensão de Moltmann a “historia” resulta a partir de seu término, ou seja, a
história daquilo que acontece, o qual é percebido na promessa prévia e iluminadora. Assim ele
diz:
324
Ibid., p. 210. 325
Ibid., p. 210. 326
Ibid., p. 211. 327
Ibid., p. 211.
113
A escatologia não é soterrada pela areia movediça da história, mas, ao
contrário, mantém a história viva por meio da crítica e da esperança; ela é,
por assim dizer, a própria areia movediça da história que vem do fim. A
impressão da transitoriedade universal, que é tão evidente ao triste olhar de
quem olha para trás, para o que não pode ser segurado, na realidade não tem
a ver com a história. A história é, ao contrário, aquela transitoriedade que
resulta da esperança, do êxodo e da irrupção do encontro com o futuro
prometido que ainda não é visível328
.
Nesta concepção, a Igreja de Cristo não tem aqui sua “cidade permanente”, pois está em
busca da “cidade futura”, por isso, ela sai do acampamento para carregar o opróbrio de Cristo.
Ela não tem aqui uma cidade permanente porque dentro da história simplesmente não existe
nada de permanente. Para a esperança cristã é passageiro não só aquilo que está sujeito ao
destino de passar, mas também aquilo que sempre existe e que precipita toda a vida na
transitoriedade, a saber, a morte e o mal. Moltmann conclui que a morte se torna transitória na
ressurreição prometida, o pecado se torna passageiro na justificação do pecador e na justiça
esperada329
.
No entanto, aquele que queira falar cristãmente de Deus deverá “contar” e pregar a história
de Cristo como história de Deus, como história entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo, a partir
da qual se estabelece quem é Deus e isso não somente para o homem, mas também no seio da
própria existência. Pois o ser de Deus é histórico e existe nessa historia concreta. A “história
de Deus” é assim a história da história do homem330
. Portanto, na história humana mesmo o
mal causado pela violência, continua tendo redenção e estando incluído na misericórdia
infinita de Deus.
Contudo, por meio da elaboração de uma teologia da cruz como proposta de sentido e com
sentido a partir da vinda do Reino de Deus, Moltmann apresenta um possível caminho para a
uma conversão da teologia cristã: na cruz, o sofrimento é visto como não sendo uma
contraposição a Deus, pois o ser de Deus está no sofrimento331
, uma vez que Deus só se
328
Ibid., p. 212. 329
Ibid., p. 212. 330
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. O Deus desarmado: A teologia da Cruz de J. Moltmann e seu impacto
na teologia Católica in Estudos de Religião, p.230-248. 331
SILVA, Maria Freire da. Trindade, criação e ecologia, p. 240. Maria Freire, no epílogo de sua obra, afirma
que a ideia de Moltmann é fundir e normatizar a escatologia vista em moldes estritamente cristológicos.
Moltmann não fala de futuro em geral e tão pouco de uma futuridade abstrata. Seu pensar teológico faz
referência a realidades históricas determinadas. Segundo a autora, Moltmann, deslocou a escatologia da periferia
para o centro, interligando escatologia cosmológica com a existência escatológica do ser humano, descrevendo o
futuro em termo de futurum, ou seja, o que irá ser. O futuro de Cristo é feito presente na promessa.
114
manifesta como “Deus” no seu contrário, na impiedade e no abandono. Ele se manifesta na
cruz do Cristo abandonado por Deus. Sua misericórdia se manifesta nos pecadores. Sua
justiça se manifesta nos injustos e naqueles que não têm direitos e sua eleição gratuita, nos
condenados.
Conclusão
A cruz é a identificação de Deus com o sofrimento do mundo, através do sofrimento de
Cristo. Com isto, Moltmann tenta reconfigurar a compreensão sobre a imagem do Deus
cristão (a partir de sua experiência e a história da Alemanha, durante e no período pós-guerra,
abandonando um discurso demasiado fácil sobre ressurreição e sobre a história da salvação.
Uma vez que a história continua sendo salva, não obstante o abismo a que chegou com a
Segunda Guerra.
Moltmann compreende a cruz como um acontecimento no próprio Deus e, por isso, um
acontecimento revelador do próprio Pai. Deus passa a ser visto como o Deus que crucifica e
que é crucificado, ao ponto de agir e sofrer em Jesus morrendo na cruz. Na contemplação da
cruz de Cristo dá-se um passo para além da história concreta de Jesus de Nazaré,
interpretando-a como a morte de um profeta (perspectiva religiosa), de um escravo
(perspectiva política) e a morte de um Filho (perspectiva teológica).
Os aspectos da discussão trinitária de Moltmann são apresentados na compreensão da
crucificação como um acontecimento trinitário interior entre o Pai e o Filho, em que o que
acontece na cruz foi um acontecimento entre Deus e Deus. Trata-se de uma profunda divisão
no próprio Deus, na medida em Deus abandonou Deus e se contradisse e, ao mesmo tempo, é
uma unidade em Deus, onde Deus era um com Deus e se correspondia.
Ao falar do sofrimento do Pai, Moltmann afirma que o conceito da dor de Deus capta mais
fielmente o dinamismo da linguagem bíblica sobre Deus e prevê uma resposta significativa
para os ateus que insistem em afirmar que o mal neste mundo prova a inexistência do Deus
cristão. O Deus de Jesus Cristo ama, regozija-se e sente dor. É um Deus do pathos, não da
apatia. A cruz não assina a morte de Deus, mas, antes, que há morte em Deus.
Outro conceito moltmanniano é que a história do mundo, incluindo seu sofrimento, é
assumida por Deus: “A vida de Deus na Trindade como “história de Deus” (Hegel), esta
história contém em si todo o abismo do desamparo de Deus, da morte do não-Deus”. Como
esta morte aconteceu na história entre o Pai e o Filho na cruz do Gólgota, dela procede o
espírito da vida, do amor e da escolha para a salvação. A “história de Deus” concreta na morte
115
de Jesus na cruz contém em si as profundezas e abismos da história humana e pode ser
compreendida como história da história. Toda a história humana determinada ou não pela
culpa e pela morte, é assumida nesta “história de Deus”, isto é, na Trindade, e integrada no
futuro da “história de Deus”.
Os conceitos de Moltmann convergem em sua compreensão da vida cristã donde a
irmandade com Cristo significa o sofrimento e a participação ativa na história deste Deus. Seu
critério é a história do Cristo crucificado e ressuscitado. Seu poder é o sussurrante e libertador
Espírito de Deus. Sua consumação encontra-se no reino de Deus uno e trino, que liberta todas
as coisas e as enche de significado.
116
CONCLUSÃO
O ponto alto da revelação divina do Novo Testemunho é declaração "Deus é amor" (1
Jo 4:8,16), ele se entende perfeitamente à luz do grito de Jesus moribundo, que também
significa " Meu Deus, porque me abandonastes? ". O Verbo eterno de Deus pregado na cruz
dá lugar à "super-palavra", que por amor do Pai, e no esplendor de sua fraqueza, Jesus
manifesta o novo rosto do amor. Desde então, tudo o que pode aparecer como fracasso,
fraqueza, “não-Deus”, é o espaço privilegiado onde o Pai pode atuar operando tudo o que tem
operado no Filho crucificado332
.
O Deus que se revela nas páginas da Escritura, é um Deus que desde os primordios de
sua revelação se revela como solidário com os últimos da sociedade. Deus é o go‟el (defensor,
o porta voz) do pobre, da viúva, do estrangeiro. Fala por eles, caminha ao seu lado e faz da
prática da justiça para com esses desfavorecidos, condição de possibilidade do verdadeiro
culto.
Em sua teologia trinitária, Moltmann impulsiona novas e diferentes reflexões sobre a
cruz e para reconhecê-la como uma imagem do Deus verdadeiro e de um ser humano que seja
humano. Pois, nela coicidem nossa imagem de Deus e nossa imagem de ser humano. A cruz
revela-nos onde partimos de auto-imagens erradas, onde seguimos uma imagem do ser
humano que já não tem nada a ver com a humanitas verdadeira, assim como ela nos apareceu
em Jesus Cristo (cf. Tito 3,4).
A cruz é definitivamente o lugar de encontro com o Deus tri-uno. Sua realização
histórica fundamenta não apenas a importante doutrina da justificação, como também a
própria compreensão trinitária de Deus. A cruz é o gesto reconciliador de Deus com os seus
inimigos, mas quem nela, de fato, experimenta a realidade da morte é o Filho. O Pai a
vivencia na dor do seu abandono e o Espírito, por sua vez, no acolhimento do abandonado.
Estabelece-se radicalmente o diálogo entre uma theologia crucis e uma theologia trinitatis.
Admitir, portanto, tal passibilidade em Deus implica para Moltmann na grande questão da
teologia fundamental moderna enquanto acesso hermenêutico à doutrina trinitária. Estrutura-
se, assim, uma chave hermenêutica histórica de natureza cristológica (cristologia aberta)
332
LUPO, Angela Maria. Dio-amore “Gridato” Da Gesù Abbandonato. La Sapienza dela croce. Roma, anno
XXVI, n.2, maggio-agosto 2011, p. 251-270. [nossa tradução] .
117
capaz de reconhecer no testemunho histórico das Escrituras uma narrativa trinitária de
redenção e libertação.
A cruz é a identificação de Deus com o sofrimento do mundo, através do sofrimento
de Cristo. Com isto, Moltmann tenta re-configurar a compreensão sobre a imagem do Deus
cristão (a partir de sua experiência e a história da Alemanha, durante e no período pós-guerra)
abandonando um discurso demasiado fácil sobre ressurreição e sobre a história da salvação.
Uma vez que a história continua sendo salva, não obstante o abismo a que chegou com a
Segunda Guerra. Moltmann compreende a cruz como um acontecimento no próprio Deus e,
por isso, um acontecimento revelador do próprio Pai. Deus passa a ser visto como o Deus que
crucifica e que é crucificado, ao ponto de agir e sofrer em Jesus morrendo na cruz. Na
contemplação da cruz de Cristo dá-se um passo para além da história concreta de Jesus de
Nazaré, interpretando-a como a morte de um profeta (perspectiva religiosa), de um escravo
(perspectiva política) e a morte de um Filho (perspectiva teológica).
Os aspectos de sua discussão teológica são apresentados na compreensão da
crucificação como um acontecimento trinitário interior entre o Pai e o Filho, onde o que
acontece na cruz foi um acontecimento entre Deus e Deus. Trata-se de uma profunda divisão
no próprio Deus, na medida em Deus abandonou Deus e se contradisse e ao mesmo tempo, é
uma unidade em Deus, onde Deus era um com Deus e se correspondia.
Ao falar do sofrimento do Pai, Moltmann afirma que o conceito da dor de Deus
capta mais fielmente o dinamismo da linguagem bíblica sobre Deus e prevê uma resposta
significativa para os ateus que insistem em afirmar que o mal neste mundo prova a
inexistência do Deus cristão. O Deus de Jesus Cristo ama, regozija-se e sente dor. É um Deus
do pathos, não da apatia. A cruz não assina a morte de Deus, mas, antes, que há morte em
Deus.
A história do mundo, incluindo seu sofrimento, é assumida por Deus. “A vida
de Deus na Trindade como “história de Deus” (Hegel), esta história contém em si todo o
abismo do desamparo de Deus, da morte do não- Deus”. Como esta morte aconteceu na
história entre o Pai e o Filho na cruz do Gólgota, dela procede o espírito da vida, do amor e da
escolha para a salvação. A “história de Deus” concreta na morte de Jesus na cruz contém em
si as profundezas e abismos da história humana e pode ser compreendida como história da
história. Toda a história humana determinada ou não pela culpa e pela morte, é assumida nesta
“história de Deus”, isto é, na Trindade, e integrada no futuro da “história de Deus”.
118
Os conceitos teológicos de Moltmann convergem em sua compreensão da vida
cristã donde a irmandade com Cristo significa o sofrimento e a participação ativa na história
deste Deus. Seu critério é a história do Cristo crucificado e ressuscitado. Seu poder é o
sussurrante e libertador Espírito de Deus. Sua consumação encontra-se no reino de Deus uno
e trino, que liberta todas as coisas e as enche de significado.
Entre os mistérios da cruz e da ressurreição há um laço especial que os une. São Paulo
afirma: “Se cristo não ressuscitou, então é vã a nossa pregação, é vã a nossa fé” (1Cor
15,14). Por isso, o mistério da ressurreição ocupa lugar primordial na pregação dos apóstolos.
Porque o mistério da ressurreição proclama a vitória do amor e desmascara a vaidade, isto é, a
ineficácia de qualquer inveja e de qualquer ódio, os quais não podem ter ação destrutiva e sua
vitória não pode ir além de aparente. Jesus, a quem a inveja e o ódio queriam fazer
desaparecer, este mesmo Jesus ressuscitou com um poder de influencia que pode exercer-se
de maneira ainda mais perfeita do que antes. Pelo mistério de sua ressurreição, não somente
“a morte não exerce mais nenhum poder sobre ele” (Rm 6,9), mas seu corpo glorificado
conhece uma vida nova, que nenhuma contingência pode mais limitar. O amor serve-se até
das vitórias momentâneas da inveja e do ódio, a fim de exaltar ainda mais plenamente aquele
que fora humilhado e crucificado333
.
A presente pesquisa tentou demonstrar a contribuição de Moltmann à tradição de uma
teologia centrada em Cristo e sua cruz; porém evitando o que ele denomina de tradição sem
êxito. Diante do “esquecimento” dos teólogos contemporâneos em relação à doutrina
trinitária, Moltmann na teologia da cruz objetiva aprofundar e fundamentar melhor sua
esperança escatológica, bem como suas perspectivas cristológicas e trinitárias.
Contudo, pode-se concluir que o caminho para Deus não é uma subida, mas uma
descida ao encontro dos marginalizados e sofridos. Diante da maturidade e da culminância da
trajetória teológica de nossos dias, Moltmann continua a convocar-nos a encontrar a Deus no
suplício das vítimas do pecado e falarmos dele a partir da cruz de Jesus de Nazaré que ilumina
a vida e o destino de todos os que perecem injustamente na historia da humanidade. Pois, o
amor do ponto de vista cristão é inesperável da cruz, a qual é expressão máxima do amor (cf.
Fl 2,5-11).
333
PHILIPPE, M.D. O Mistério de Cristo Crucificado. São Paulo: Paulinas, 1970. p.227-263.
119
Oxalá, que a partir dessa compreensão trinitária da cruz, o testemunho dos cristãos
seja coerente como o do apóstolo Paulo: “quanto a mim, que eu me glorie, a não ser na cruz
de Nosso Senhor Jesus Cristo, por meio do qual o mundo foi crucificado para mim, e eu para
o mundo”(Gl 6, 14); e incansável como o de Santo Agostinho:
Senhor meu Deus, única esperança minha, faze que eu, cansado, não desista de buscar
a ti, mas busque a tua face sempre com ardor. Dá-me a força para buscar, tu que te
deixaste encontrar, e me deste a esperança de sempre mais encontrar a ti. Diante de ti
estão minha força e minha fraqueza: conserva aquela e cura esta última. Diante de ti
estão minha carência e minha ignorância; sempre que me abrires, acolhe-me quando
eu entrar; sempre que me fechares, abre-me quando eu bater. Faze que eu me recorde
de ti, que eu procure a ti, que eu ame a ti. Amém.334
334
AGOSTINHO, Santo. A Trindade. São Paulo: Paulus, 1995, XV, 28,49.
120
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VIII- Artigos complementares
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