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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP Marco Alexandre Nonato Cavalcanti Educação Patrimonial e EJA: Instrumento para a Discussão Sobre Memória e Patrimônio Cultural MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL São Paulo 2015

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC SP

Marco Alexandre Nonato Cavalcanti

Educação Patrimonial e EJA: Instrumento para a Discussão

Sobre Memória e Patrimônio Cultural

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

São Paulo

2015

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC SP

Marco Alexandre Nonato Cavalcanti

Educação Patrimonial e EJA: Instrumento para a Discussão

Sobre Memória e Patrimônio Cultural.

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Dissertação de mestrado apresentada à Banca

examinadora da Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo, para obtenção do título de mestre

em História, no Programa de Estudos Pós

Graduados em História Social, sob a orientação

do Prof. Dr. Luiz Antônio Dias.

São Paulo

2015

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Banca Examinadora

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Agradecimentos

São muitos os agradecimentos, pois reconheço cada uma das pessoas que me

ajudaram a chegar à essa conquista.

Agradeço às minhas filhas. Muito obrigado Sofia e muito obrigado Sarah. A

minha força maior vem de vocês.

Ao meu pai Amaro Cavalcanti Neto e aos meus irmãos e que sempre

acreditaram e me apoiaram nos estudos e sempre torceram por mim.

Agradeço à minha mãe, Minerva Nonato e minha avó Francisca Nonato, que de

forma invisível me ajudaram a escrever cada uma dessas linhas.

Aos amigos da PUC-SP por estarmos numa constante reflexão da organização

dos nossos trabalhos e nesse processo colaborávamos uns com outros nas nossas

produções.

Aos professores da PUC-SP que me desafiaram a expandir conhecimento,

sempre com a responsabilidade de práxis e diálogo. Mais ainda, agradeço ao Professor

Luiz Antônio Dias por estimular, me auxiliar e me encorajaram e nessa trajetória de

busca do conhecimento.

Às pessoas que se dedicam à defesa da memória e do patrimônio de São

Bernardo do Campo, do ABC Paulista e de todo o país.

Aos companheiros educadores da Educação de Jovens e Adultos. Tenho muito

orgulho de fazer da Educação Popular e da luta por uma educação para a libertação.

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Dedicatória

Dedico este trabalho aos Jovens e Adultos desse país que tiveram seu direito à

educação negado e, mesmo assim, com todas as adversidades possíveis, não

desistiram de aprender ao longo da vida, encontrando na Educação de Jovens e

Adultos o espaço para o compartilhamento de saberes.

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Poema: Memória Consentida

Neste lugar sem tempo nem

memória,

nesta luz absoluta ou absurda,

ou só escuridão total, relances há

em que creio, ou se me afigura,

ter tido, alguma vez, passado

com biografia, onde se misturam

datas, nomes, caras, paisagens

que, de tão rápidas, me deixam

apenas a lembrança agoniada

de não mais poder lembrá-las.

Sobra, por vezes, um estilhaço

ou fragmento, como o latido

de um cão na tarde dolente

e comprida de uma remota

infância.

Ou o indistinto murmúrio de vozes

junto de um rio que, como as

vozes,

não existe já quando para ele

volvo, surpreso, o olhar cansado.

Insidiosas, rangem tábuas no

soalho,

ou é o sussurro brando do vento

no zinco ondulado, na fronde

umbrosa

dos eucaliptos de perfil no

horizonte,

com o mar ao fundo. Que soalho,

de que casa, que vento em que

paragens,

onde o mar ao longe que,

entrevistos,

os não vejo já ou, sequer, recordo

na brevidade do instante cruel?

De que sonho, ou vida, ou espaço

de outrem

provêm tais sombras melancólicas,

ferindo de indecifráveis avisos

este lugar em que, não sendo

consentido

o coração, se não consentem tempo

e memória?

Pausa ou pena, a seu oculto

propósito há-de

sempre opor-se, lenta, a inexorável

asfixia

desta luz absurda, ou só escuridão

total.

Rui Knopfli

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Resumo

O presente trabalho se refere a uma pesquisa de mestrado que abordou a análise de

patrimônio como representação cultural, uma construção simbólica de evocação de

memórias coletivas e sociais para afirmação de identidades de povos, num estudo de

matriz crítica, analisando as disputas de classes na interlocução da história. Para isso

houve uma pesquisa bibliográfica sobre patrimônio cultural e memória em que

ocorreu uma reflexão sobre o conceito significativo e contextualizado de patrimônio e

as disputas de memórias, observadas como conflitos e embates sociais. Em

continuidade ao estudo teórico, foi realizada uma aproximação a um território, com

uma abordagem social, cultural e econômica do local, observando as evidências da

história - memória desse espaço, resignificando o conceito de disputas de memórias e

como consequência a ausência de reconhecimento de determinados grupos em bens

tombados. Nesse eixo da pesquisa houve análise documental sobre os patrimônios

culturais do território em estudo, numa reflexão alinhada aos documentos de

abrangência nacional e com a temática em observação. Como condição de elucidar

possibilidades de superação dessa situação, a pesquisa aborda um conceito de

Educação Patrimonial e enquanto estudo documental se aproxima da proposta

curricular de história da modalidade EJA de São Bernardo do Campo - SP, observando

os limites e as possibilidades do estudo de história na perspectiva da memória

individual e coletiva. Com essa contextualização o estudo objetiva analisar as disputas

de organização e tratamento das memórias coletivas num território, por meio da

análise dos patrimônios culturais, observando as forças de poder, além disso, propõe

uma reflexão sobre Educação Patrimonial, como possibilidade de resistências às

forças hegemônicas de afirmação de memória de grupos, numa perspectiva de

provocar reflexão para lutas e afirmação de identidades coletivas.

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Memória, Educação Patrimonial.

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Abstract

This paper refers to a master's research which approached the heritage analysis as a

cultural representation, a symbolic construction that evoke collective and social

memories to assert peoples identities, a study of critical matrix analyzing the dispute

among social classes throughout history. To accomplish this, there was a

bibliographical research on cultural heritage and memory in which there was a

reflection on the significant concept in context of heritage and disputes memories,

observed as conflicts and social struggles. Continuing the theoretical study, an

approach to a territory was carried out, touching upon the social, cultural and

economy of the site, noting the evidence of history - memory of that space, redefining

the concept of dispute memories and consequently the lack of recognition of certain

groups in heritage goods. In this axis of the research, a document analysis was carried

out about the cultural heritage of the territory under study, in a reflection aligned to

nationwide documents and the subject under observation. As a condition to elucidate

possibilities of overcoming this situation, a research approaches a concept of heritage

education and while documentary study approaches the proposed curriculum EJA

history mode of São Bernardo do Campo - SP, observing the limits and the

possibilities of history study in the perspective of individual and collective memory.

In this context, the study aims to analyze the organizational disputes and treatment of

collective memories in a territory through the analysis of cultural heritage, observing

the forces of power, moreover, it proposes a reflection on Heritage Education, as the

possibility of resistance to hegemonic forces of group´s memory statement, in the

perspective of provoking thought for fights and affirmation of collective identities.

Keywords: Cultural Heritage, Memory, Heritage Education.

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Lista de abreviaturas

ABC – Conjunto de sete cidades da Região Metropolitana de São Paulo

ACISA – Associação Comercial de Santo André

COMPACH – Conselho Municipal Patrimônio Artístico Histórico e Cultural

EJA – Educação de Jovens e Adultos

ENEP – Plano Nacional de Educação Patrimonial

GIPEM – Grupo Independente de Pesquisadores da Memória

IPHAN – Instituto Patrimônio Histórico Artístico Nacional

MOBRAL – Movimento Brasileiro de Alfabetização

PAC – Programa de Alfabetização e Cidadania

PAMJA – Programa Municipal de Jovens e Adultos de São Bernardo do Campo

PCB – Partido Comunista Brasileiro

PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais

PEC – Projeto de Emenda Constitucional

PPP – Projeto Político Pedagógico

PROMAC – Programa Municipal de Alfabetização e Cidadania

OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público

SBC – São Bernardo do Campo

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

CAPÍTULO I ........................................................................................................... 24

1.1 PATRIMÔNIO CULTURAL ................................................................... 25

1.2 MEMÓRIAS E DISPUTAS ...................................................................... 34

1.3 MEMÓRIA DO TRABALHADOR ......................................................... 46

CAPÍTULO II .......................................................................................................... 54

2.1 SÃO BERNARDO DO CAMPO - UMA CIDADE INDUSTRIAL E

OPERÁRIA ................................................................................................ 55

2.2 ORGÃOS DE PRESERVAÇÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES ........ 61

2.3 EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E EDUCAÇÃO .................................... 71

CAPÍTULO III ........................................................................................................ 84

3.1 PLANO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM SÃO BERNARDO

DO CAMPO ................................................................................................ 86

3.2 EDUCAÇÃO DE JOVES E ADULTOS EM SÃO BERNARDO DO

CAMPO ...................................................................................................... 95

3.3 CURRÍCULO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA A CLASSE

TRABALHADORA ................................................................................. 102

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 110

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................ 113

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INTRODUÇÃO

Esse trabalho faz uma análise sobre patrimônio cultural, em que se observa a

negação da história-memória de determinados coletivos de sujeitos, como estuda

instrumentos que podem ser utilizados para garantir uma participação popular na

apropriação de participação na construção da identidade de uma comunidade.

Inicialmente, o objetivo de pesquisa que foi apresentado seria a realização de

uma análise das visões distintas sobre a identidade nacional no Brasil dos anos de

1930 fazendo um estudo sobre o Anteprojeto de Proteção do Patrimônio Artístico

Nacional, produzido por Mario de Andrade a pedido do então Ministro da Educação e

Saúde, Gustavo Capanema, que propunha a criação de um órgão específico para a

área que se tornaria o embrião do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional – IPHAN, frente à ideologia do Estado Novo de Getúlio Vargas.

Analisar o projeto estatal de identidade nacional na Era Vargas, nos permite

reconhecer a força de um Estado que concebia a necessidade de edificação de seu

projeto a partir da divulgação de uma cultura política, que legitimasse uma ordem

nacional coesa, unitária, pacífica e ordeira.

Porém, com o desenvolvimento da pesquisa, pode-se constatar as mais diversas

perspectivas que se relacionassem com o Patrimônio Cultural, e o trabalho foi se

transformando em uma análise mais específica da relação entre o Patrimônio, a

memória e a educação.

As primeiras reflexões sobre essa situação se apresentam em tempos em que se

é observado a ausência das histórias da classe trabalhadora em patrimônios culturais e

mais seriamente, ausentes no reconhecimento das identidades dos educandos para

quem leciono.

Essa observação ultrapassou o limite da sala de aula e atingiu diferentes

contextos de circulação e nessa condição, acabo por observar que as cidades ocultam

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determinadas memórias e por interesses expressam outras, representadas por

patrimônios que muitas vezes se quer são enxergados pelas comunidades.

Com essa reflexão que se constrói a cada dia, observando constantemente essa

realidade, é possível constatar um problema de ordem social que aproximo da pós-

graduação com a prerrogativa de analisar de forma mais ampla, a temática sobre

patrimônio cultural e uma ação educativa voltada para esse tema.

A ampliação desta reflexão se consolidou nas participações das aulas do

Programa de História Social, da PUC-SP, em que, junto com meus colegas de sala,

ampliei o pensamento sobre a formação da identidade com base no patrimônio

cultural, com leitura das disputas de memórias em decorrência das lutas de classe.

Esse caminhar permitiu a constituição da presente pesquisa que tem como

objetivo geral, evidenciar as disputas de memórias pelas representações de patrimônio

cultural e estabelecer uma análise sobre as contribuições da educação patrimonial para

construção de identidades coletivas, pela recuperação da memória representativa.

Com o aprimoramento desse pensamento o problema da pesquisa se concretiza

enquanto estudo, e para materializar a análise no questionamento: Quais os motivos

da ausência de memórias e de reconhecimentos dos sujeitos em contextos de

representações na história e nas memórias?

Nessa questão, a pesquisa se evidencia num movimento que vem como uma

contribuição importante para um tema mais crítico e se faz numa ligação direta com a

minha experiência de vida e dos problemas que enfrento em minha rotina de

trabalhador que não somente envolve a história, mas também a educação.

Assim, a dissertação se transforma e passa a ser apresentada como um debate

sobre a Educação Patrimonial com o título: “EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E EJA:

INSTRUMENTO PARA A DISCUSSÃO SOBRE MEMÓRIA E PATRIMÔNIO

CULTURAL”. A pesquisa então se consolida no enfoque tanto na história, como no

Patrimônio Cultural e na Educação Patrimonial, observando-os como questões que

podem provocar a sensibilização das comunidades quanto à preservação de seu

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patrimônio e de sua memória através da adoção de posturas preservacionistas, sendo

que um dos principais fatores de dano ao patrimônio histórico e cultural e sua

desqualificação como fonte de referência para a identidade local, na maioria das vezes

é derivada do desconhecimento de sua importância e consolidada pela invasão de

culturas estranhas. É nessa realidade que a Educação Patrimonial se apresenta como

um instrumento para aproximar a população do conceito de apropriação e

reconhecimento de patrimônio cultural brasileiro.

Para isso, há diálogo com diversos autores que possibilitem uma compreensão

maior sobre as principais questões levantadas durante esse estudo. Primeiramente ao

fazer um conceito sobre Patrimônio Cultural, foi feito estudos em análise do

pensamento. Para sustentação dessa abordagem, teve-se uma aproximação com as

ideias de Françoise Choay, ao conceituar patrimônio histórico e artístico; Sandra

Pesavento, que trata do sentimento de pertencimento; Maria Cecília Londres Fonseca

ao tratar de políticas de preservação. Com Michael Pollak pode-se fazer uma

observação sobre a memória. Canclini fala sobre a teoria social do patrimônio e J. Le

Goff, uma referência à definição de monumento, entre outros autores que tratam de

questões recorrentes ao tema.

Depois, com os debates ligados às disputas de memória e à memória da classe

trabalhadora, observada enquanto disputa de classes, a análise se centrou no

tratamento de memória como produção de E. P. Thompson, quando descreve a

questão sobre consciência de classe. Também é feita referência a Bourdieu quando

trata de mobilidade social.

Outra parte, quando é tratada a Educação e a Educação Patrimonial, há

observação com o processo de formação de sujeitos, compreendido numa reflexão de

que educação não é um ato neutro e que numa organização curricular,

intencionalidades de Currículo se apresentam. Assim, o estudo foi sustentado num

pensamento crítico e libertador, pautando a Educação Patrimonial como uma das

possibilidades de reconhecimento das memórias e de identidades de classes que vivem

processos de opressão social. Para esse pensamento de Currículo crítico houve uma

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reflexão sobre Currículo e educação embasada em Michael Apple, Paulo Freire entre

outros.

No primeiro capítulo, discute-se a noção e definição de Patrimônio Cultural.

Para entender como se define e como se desenvolveu a ideia de patrimonialização,

busca uma visão das motivações e necessidades de preservação do patrimônio

cultural, como também reconhece e sua longa trajetória histórica, percorrida desde

seus primórdios até sua consagração como de expressiva importância para a

comunidade brasileira.

Com o processo de conceituação de patrimônio cultural trilhando para

dimensões mais amplas, surge a importância de se preservar, além de monumentos

tidos como de valor histórico, também a diversidade de manifestações culturais que se

encontram presentes nos mais diversos espaços, uma nova forma de pensar a

preservação do patrimônio cultural que possa ter uma maior abrangência em sua

esfera de atuação, e que permita ampliar a valorização e a preservação das mais

variadas manifestações do patrimônio imaterial tão relevante para nossa sociedade.

E na observação das ações de construção de nossa identidade por meio do

patrimônio cultural, é possível confirmar, em grande parte dos casos, pouca ou quase

nenhuma participação de determinadas classes sociais nesse processo, levando a uma

consequente falta de valorização desses indivíduos se reconhecerem nessas memórias

preservadas, sendo isso um grande desafio nas ações de preservação.

Com essa definição em sistematização, é possível compreender que a cultura

compõe-se de significados, ideias e concepções, acompanhando o dinamismo da

própria vida. Esses significados se expressam através de práticas sociais, através do

discurso e das manifestações artísticas de um povo, levanto essas questões em uma

aproximação com um contexto territorial.

Com a leitura de que essa situação não é algo natural, mas fruto da organização

social desigual do país, pois enquanto contexto territorial que se estrutura

economicamente em condições de disputas de classes, os embates se afirmam, e

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nesses contextos, algumas histórias são mais fortes do que outras, a ponto de marcar

ausência de determinadas história-memórias.

Dessa forma, visualiza-se a possibilidade de percepção da comunidade dessa

situação, num processo coletivo e organizado por trabalhadores e pelos que pretendem

reconhecer e reivindicar a memória na construção do processo histórico da cidade.

Uma ação complexa de afirmação, pautado por conflitos para levantar a possibilidade

para a preservação e representação da memória operária.

A questão norteadora desta ação se pauta no distanciamento dos trabalhadores

de elementos de identidade cultural, levando em consideração a ausência de

conhecimento crítico e apropriação consciente dos bens culturais essenciais no

processo de preservação e reafirmação da identidade local.

No segundo capítulo, é lançada uma análise sobre a realidade encontrada na

cidade de São Bernardo do Campo, situada na Grande São Paulo, na região do ABC

Paulista, que é considerada o principal polo industrial e automotivo do Brasil e uma

referencia internacional no setor.

Nessa parte da pesquisa tem uma necessidade de fazer um referencial histórico

e de descrição dessa realidade para que se entenda como foi esse processo e para que

se evidencie a força industrial e trabalhadora nessa cidade. Nesse ponto do estudo há

uma análise da história, observando as relações econômicas e sociais entre os sujeitos

e suas interferências em toda a organização territorial da cidade, território esse,

observado como local que favorecia uma logística proveitosa, pela ligação entre São

Paulo e Santos, e favorecido com incentivos fiscais oferecidos pela administração

local, entre outras questões, aspectos fundamentais para vinda de muitas empresas

multinacionais que usufruíram dessas vantagens e criaram suas sedes em São

Bernardo do Campo.

Um contexto que ocasionou a atração de um imenso contingente migratório

para a cidade que passa a servir de mão-de-obra para essas indústrias. Há um

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acelerado processo de crescimento urbano que transforma essa localidade que antes

era uma pequena e bucólica cidade no início do século XX para uma metrópole.

Junto com essa imensa transformação do cenário da cidade, resultado da ação

direta desse crescimento do poder industrial, surge um sindicalismo, que se mostra

extremamente organizado e com imensa força de ação pela reivindicação, que

transforma a cidade em um referencial nacional, para em meio a momentos de crises

econômicas, servir de cenário para um dos mais belos exemplos de movimento

grevista que já ocorreu.

São Bernardo do Campo, na década de 1990, sofreu as consequências das

políticas neoliberais do mercado internacional. Em consequência disso, o setor

industrial, tão importante para a economia local, passou por transformações relevantes

tanto em sua organização, como em seus processos produtivos, além da reestruturação

do próprio mercado de trabalho. Esse setor perdeu um importante espaço abrindo a

economia da cidade a alternativas setoriais, como o de serviços, além da crescente

realidade do mercado informal.

E as heranças culturais que são guardadas do período de força industrial e da

ação ativa dos metalúrgicos, são representadas por meio de ações específicas e de

bens materiais nos tempos atuais, do que sobrou desse período distinto de crescimento

e ápice da indústria, e a necessidade de sua valorização é também a necessidade de

sua preservação como material e imaterial.

Em continuidade ao desenvolvimento da pesquisa, é indispensável conhecer a

história e o trabalho realizado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e

Cultural de São Bernardo do Campo (COMPAHC-SBC) que é um órgão que presta

uma assessoria aos mais diversos assuntos que venha a se relacionar com a

valorização do patrimônio cultural, sua proteção e sua preservação. Teve sua criação

em 1984 e tem seu vínculo à Secretaria de Cultura.

Dentre os assuntos tratados pelos conselheiros municipais para o Patrimônio

Cultural estão sugestões e realizações de tombamentos, consultoria de possibilidades

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de ações de tombamento, emissões de pareceres no que se refere à demolição e

construção, entre outras ações que trate de interesses diante de bens em potencial,

materiais e imateriais, de interesse da cidade. Esse conselho é composto por um

colegiado de vinte representantes, sendo metade pertencente à administração pública

municipal, representada por várias secretarias e a outra metade composta por

integrantes da sociedade civil. Um trabalho de extrema importância, que consiste na

identificação de construções e bens que representem, que transcrevam momentos e

características históricas da cidade.

Porém, nessa questão, cabe a observação, tendo em vista que, os locais

legitimados como patrimônios culturais pelo Conselho de Patrimônio de São Bernardo

não refletem a formação industrial da cidade e todo o desenvolvimento do município

nessa questão, sendo que apenas dois bens representam esse patrimônio industrial:

Torre da Elni e a Chaminé da Avenida Pery Ronchetti1.

O cenário econômico e a consideráveis transformações do setor industrial da

cidade são refletidas nos números de evasão desse setor e em consequência disso, uma

significativa mudança em sua paisagem e em seu modo de convívio social. Uma

situação que exige uma reflexão no que se refere a memória e seus espações, tanto do

setor industrial como do trabalhador e suas ações, muito importantes para escrever a

construção da cidade, e dessa forma também, torna-se necessário até para se figurar

possíveis possibilidades para o futuro econômico e social de São Bernardo do Campo.

Debater Educação Patrimonial nos faz observar o quanto o assunto está

ausente ou distante da sociedade, em particular do cotidiano escolar. Torna-se

necessário compreender sua intenção e abordagem educacional no trato com as

noções e práticas patrimoniais

Mais do que isso, a permanência dos resultados do processo educativo se dá a

partir da construção do conhecimento, concebido como resultado de uma interação

1A Chaminé da Avenida Pery Ronchetti é uma chaminé com 27m de altura foi construída na década de 1950,

por uma indústria siderúrgica chamada Usina Metalúrgica Itaetê S/A. A Torre da Elni é uma torre de

sustentação da caixa d’água da Empresa Sociedade Elni de Produtos Manufaturados Ltda., construída nos anos

1940.

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entre os diversos sujeitos sociais que compõem a comunidade: escola, família,

instituições, educandos, entre outros, na qual o sujeito-aprendiz é sempre um elemento

ativo, que procura compreender o mundo que o cerca e que busca resolver as

interrogações que esse mundo provoca.

E diante da importância da ação educativa que envolve a Educação Patrimonial

como instrumento fundamental, que essa relação que se deve estabelecer entre os

lugares de trabalho, a memória do trabalhador, a educação e o processo de

patrimonialização sejam articulados para que se objetive para São Bernardo do

Campo, o que deve ser preservado e como isso deverá ocorrer. Para isso evidencia-se

a necessidade de se refletir a cidade como um todo, considerando o processo histórico

que representa por formação, seu processo de industrialização e sua transformação

para a realidade atual.

A imensa contribuição que é possível ter por meio da Educação Patrimonial se

vê através de um contato direto e uma sistematizada observação (registro, exploração

e apropriação) entre sujeito e objeto para que possa conjurar com sua comunidade, no

acesso aos mais diferentes equipamentos culturais e na reflexão com vistas para a

apreciação e enriquecer do espaço que o rodeia.

A Educação Patrimonial é um instrumento efetivador desse movimento, que se

atenta para dois aspectos relevantes com que considera o potencial do conhecimento

relativo ao objeto e o valor afetivo que leva um bem a ser tombado e que vem, em

contra partida, valorizar aspectos de identificação comum a todos da comunidade. A

apropriação do patrimônio cultural só ocorre com o se identificar nele.

Deve-se entender que a Educação Patrimonial é importante instrumento de

ensino, que possibilitará uma participação de forma ativa de cidadãos que não se

identificam com o Patrimônio Cultural de suas comunidades, sendo também uma

forma de intervirem e se mostrarem como pessoas, que também possuem suas

memórias e a necessidade de igualmente construírem a identidade da sociedade em

que vivem. Um processo de troca em que se aprende e também transforma os bens

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que serão fontes de estudo. Uma forma de valorizar uma ação cidadã, servindo de

forma efetiva pela inclusão de todos os sujeitos.

Nessa perspectiva, a educação é vista como processo. Processo de apreensão de

conhecimentos através da reflexão constante, do pensamento crítico, criativo e da

ação transformadora do sujeito, constituindo-se uma atividade condicionada histórica

e socialmente.

Seguindo esse pensamento, concebe-se a educação patrimonial como os

processos educativos baseados na construção do conhecimento que envolva a

coletividade, pelo processo de diálogo que envolve diferentes atores sociais, que

possam deter referências da cultura e convivam com as diversas noções de patrimônio

cultural e a efetiva participação das diversas comunidades.

É de extrema importância trabalhar a questão do Patrimônio Cultural nas

escolas como uma ação de fortalecimento de toda a coletividade envolvida com a

comunidade escolar, por meio das heranças culturais, com a afirmação de uma relação

desse sujeito com os bens históricos e artísticos, construindo em si o papel de agente

ativo pela preservação e valorização dos bens tombados em uma ação de

fortalecimento de sua participação cidadã, num processo de considerável importância

de inclusão social.

No terceiro capítulo, ocorre uma discussão do Plano Municipal de Cultura,

sobre Educação Patrimonial da cidade de São Bernardo do Campo. Nessa leitura há

uma análise da intencionalidade de proposições sobre preservação e memória de

patrimônios públicos coletivos. Essa leitura foi significativa para indicar uma

reflexão, de como a temática em pesquisa é evidenciada na Diretriz Curricular de EJA

do município citado e assim, tem–se um tratamento sobre a matriz curricular, que

permite o acolhimento de Educação Patrimonial como uma ação contra hegemônica,

para reflexão da identidade e memória de coletivos, formação histórica e cultural da

cidade de São Bernardo do Campo, observando como a Educação Patrimonial pode

contribuir para essa formação histórica e cultural. Ainda tem-se uma leitura das

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intencionalidades curriculares da Secretaria Municipal de Educação na formação de

educandos da EJA.

É certo afirmar que lugares de memória2 passam a ser considerados a partir do

momento em que percebe o esvaziamento de suas referencia. Na questão que envolve

especificamente o patrimônio industrial, isso vem a ocorrer no momento em que os

modos de trabalho, considerados tradicionais ou até obsoletos são, em um processo

natural, de evolução dos processos de produção, substituídos por novas tecnologias,

levando ao questionamento da utilidade e funcionalidade das antes fundamentais

máquinas para a produção, as edificações e espaços de trabalho, e os atos de produção

que existiam e que deixam de ser dinâmicos em comparação com as novas realidades.

Vale também ressaltar, como forma de aproximação diante do que se é

questionado no caso específico de São Bernardo do Campo, um olhar sobre o

patrimônio industrial no qual os bens materiais e imateriais que provenham desses

setores econômicos, depois de servirem em suas épocas como ferramentas e modos de

trabalho, possam servir de espaço de memórias específico de processos de produção,

tecnologias, relações sociais e de trabalho.

E ao se falar do patrimônio industrial deve-se atentar ao processo de constante

substituição dos modos de produção e suas tecnologias, que são um reflexo de

constantes mudanças que caracterizam o modelo econômico, sendo isso percebido por

meio de espaços que são transformados por suas características ultrapassadas para dar

lugar a algo mais moderno e funcional. O que já foi moderno passa a ser inutilizado e

perde o que representa de uma época. Uma chaminé que deixa de simbolizar o

2 “lugar de memória”, um conceito histórico posto em evidência do texto “Entre História e Memória. A

problemática dos lugares”, de Pierre Nora. Seriam eles espaços como monumentos, instituições, entre outros ou

manifestações, “criados com o intuito de preservar uma memória oficial, diferente do que acontecia em

sociedades nas quais a memória era algo vivido no cotidiano e a sua preservação, realizada pelos próprios

grupos sociais” (NORA, 1993). Esses lugares de memória surgem a partir do momento em que a memória se

torna o resultado de uma organização voluntária, intencional e seletiva. “Menos a memória é vivida do interior,

mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis, de uma existência que só vive através

delas” (NORA, 1993, p. 14). Eles surgem a partir do sentimento de que não há memória espontânea. Surge

desta forma a necessidade do acúmulo de testemunhos, vestígios, documentos que serão provas e registros

daquilo que já se foi. Museus, arquivos e bibliotecas possuem a finalidade de salvaguardar uma memória que

deixou de ser múltipla e coletiva, para se tornar única e sagrada. Nora ressalta que a memória produzida por

esses lugares é voluntária e seletiva.

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trabalho e o processo de produção e passa a ser apenas o sinal de que aquele lugar já

foi tomado por uma movimentação de pessoas e espaço de diálogos e conflitos.

Como pode uma cidade com essa memória industrial não ser representada por

meio de seus bens tombados? Como é possível sua grande população metalúrgica não

se identificar com seus espaços de memória? De que forma, o Conselho Municipal

que trata do Patrimônio Cultural se posiciona e age diante dessa tímida representação?

A metodologia da Educação Patrimonial é um instrumento que possibilita ao

indivíduo fazer a leitura de sua realidade, levando-o à compreensão do universo

sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido.

Todavia, mais do que isso, fica a pergunta principal dessa pesquisa: como a

Educação Patrimonial pode aproximar a população dos seus espaços e se fazer

pertencente a esses bens? O espírito crítico é trabalhado na Educação Patrimonial a

partir do momento que começa a investigar o Patrimônio Cultural, pois

contextualizando, analisando e apropriando, chega-se ao conhecimento das diversas

produções artísticas.

É a intenção, por meio da Educação Patrimonial, sendo ela mesma uma

proposta educacional, a apropriação dos bens e das manifestações, como uma ação

conscientizadora para o conhecimento. O educador passa a se utilizar desta prática

como forma de fazer, não somente o conhecimento do patrimônio cultural local, mas

também sua aproximação e reconhecimento em processo educativo, numa ação que

envolve uma atitude crítica diante da história e da realidade atual da cidade. Uma

relação que envolve não somente a memória e patrimônio, mas também os modos de

enfrentamento, atitudes e movimentos que possam sugerir a importância de preservar,

de se sentir pertencente e de se fazer representar. Questões fundamentais na

construção desse trabalho para a educação que vai além da fábrica ou da memória do

trabalhador, e sim as representações feitas a partir delas.

Desta forma, esta pesquisa apresenta uma reflexão sobre educação, Currículo e

as concepções voltadas para uma ação educativa que atenda trabalhadores e que se

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efetive de um modo a criar uma consciência de classe em busca de uma identidade

como categoria.

A necessidade de rever coletivamente a produção da memória de uma

comunidade é algo de extrema necessidade e isso pode acontecer com a colaboração

de uma política curricular que reconheça a organização social desigual do país,

representada em territórios, conforme os contornos culturais e sociais, organizados

historicamente pelos povos.

Essa perspectiva nos remete pensar um Currículo para Educação Patrimonial,

por meio de uma reflexão que evidencie a memória dos povos, objetivando os

diferentes grupos que compõem o contexto social.

Essa proposta se alinha a uma concepção crítica de Currículo, pois marca uma

indignação com as condições de opressão. Por estarmos em uma sociedade marcada por

disputas de poder, ao tratamos da formação de sujeitos é necessário ter claro que a escola

pode ter uma função de transformação social, rompendo com a ordem de reprodução do

modelo social e econômico desigual. Com essa abordagem o papel da escola para a

potencialização do modelo hegemônico se fragiliza e nesse sentido, permite a

democratização da construção de conhecimentos que venham diminuir o controle social

do saber social e histórico de determinados grupos.

A criticidade é um fator que se pretende desenvolver com as possibilidades de

tratamento da Educação Patrimonial. Porém essa proposta pauta-se por uma

concepção de educação libertadora que forma para a consciência histórica, em um

processo de apropriação e identificação da cultura local, servindo fundamentalmente

para que se possa também, compreender e transformar a sua realidade comunitária. E

para que isso ocorra, vai além da educação formal e fixado exclusivamente dentro da

unidade escolar. Deve-se considerar a amplitude desse trabalho educativo para um

ambiente que envolva a comunidade local e que possa dialogar com suas identidades,

valores, memórias e preservação.

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Nessa análise pretende-se ao final desse desafiador e gratificante trabalho de

pesquisa, marcar contribuições da Educação Patrimonial para a formação crítica da

classe trabalhadora, observando-a como uma realização coletiva para fortalecer o

exercício da cidadania.

Esse trabalho servirá para a observação de experiências desenvolvidas nos seus

diferentes contextos e demonstrará a importância de se investir na formação continuada

com foco no patrimônio histórico e artístico, bem como possibilidade de iniciar o trabalho

de educação patrimonial junto à classe trabalhadora, por meio de elaboração de atividades

voltadas ao tema e propostas para o desenvolvimento de ações que auxiliem e contribuam

para o reconhecimento das pessoas referente às questões do Patrimônio histórico e

artístico. Sempre que os sujeitos se juntam objetivando criar e compartilhar

conhecimentos novos e significantes, investigam para ampliar conhecimentos, na busca

pela compreensão de sua realidade e agindo com o compromisso para transformações na

comunidade em que vivem, por uma ação voltada para a educação e pela educação.

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CAPÍTULO I

É relevante considerar o quanto é importante o papel dos patrimônios culturais

na construção dos estados modernos como sendo fatores determinantes na concepção

de identidade de uma nação.

Uma análise do conceito de Patrimônio Cultural é importante para se entender

que abrange um campo maior do que já se descreveu anteriormente sendo Patrimônio

Histórico e Artístico. Isso ocorre pelo aumento da abrangência diante do tema que

acaba envolvendo outras questões relevantes, ligadas a características de uma

comunidade e que envolvam questões de sua cultura.

Um lugar é caracterizado por fatores que representam seu modo de viver,

modos de fazer, o valor que ele representa para suas pessoas pela sua valorização por

meio de uma identidade. Vai além do caráter físico a preservação da memória de um

lugar e envolve a subjetividade de itens muito específicos e particulares, que sirvam

de elementos que remetam essa comunidade a um passado constituído no coletivo. É

em um diálogo com o passado que um sujeito pode se reconhecer, se formar como um

cidadão consciente no presente.

É nessa ação que existe a criação de uma identidade, sendo o Patrimônio um

elemento de extrema importância nesse processo. O que é possível se questionar é, se

existe uma representatividade de determinadas classes sociais nesse processo de

representação de suas memórias. Uma parcela da população que não se reconhece nos

bens tombados, é o grande desafio em busca de valorização de um patrimônio cultural

tombado mas que não tem significado para certos grupos. Não existe um sentimento

de pertencimento ou um olhar de referência sobre esses bens, sendo muitas vezes

encarada como a preservação de uma cultura distante ou até estranha à realidade dessa

população.

Potencialmente há uma nítida divisão de grupos sociais, tendo de um lado

determinado grupo, possuidor de formação técnica e conhecimento legislativo, que

promove as ações de preservação conforme critérios distantes do outro grupo social,

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formado pela grande parte da população que não se vê representada e não cria seu

vínculo de identidade com a memória estabelecida como oficial, e não tendo espaço

para a formação e a definição de sua própria memória.

Por isso é importante descrever essa questão de um patrimônio cultural que não

reproduz significado para a coletividade de um determinado lugar e quais fatores

levaram à essa situação.

1.1 PATRIMÔNIO CULTURAL

A ideia de patrimônio constitui-se no contexto da construção dos estados

nacionais, período em que os Estados, após a revolução francesa, propuseram-se a

conservar os bens potencialmente capazes de firmá-los enquanto instância suprema:

A noção de patrimônio é, portanto, datada, produzida, assim como a ideia de

nação, no final do século XVIII, durante a Revolução Francesa, e foi precedida,

na civilização ocidental, pela autonomização das noções de arte e de história.

O histórico e o artístico assumem, nesse caso, uma dimensão instrumental,

e passam a ser utilizados na construção de uma representação de nação.

(CHOAY, 2003, p.128).

O patrimônio cultural, de acordo com Canclini, pode ser definido com um

“conjunto de bens e práticas tradicionais que nos identificam como nação ou como

povo é apreciado como um dom, algo que recebemos do passado com tal prestígio

simbólico que não cabe discuti-lo” (2003, p. 160).

A busca para se reforçar uma identidade nacional passa pelas políticas voltadas

ao patrimônio em uma ação de “mediação simbólica” (ORTIZ, 1998). Uma posição

que contou com o papel fundamental dos intelectuais nas políticas culturais e de

patrimônio. E o que ressalta Fonseca “prática característica dos estados modernos que,

através de determinados agentes, recrutados entre os intelectuais, e com base em

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instrumentos jurídicos específicos, delimitam um conjunto de bens no espaço público”

(FONSECA, 2005, p. 21).

Importante salientar que nos séculos XIX e XX, conforme Choay (2003, p.128-

142) afirma, o patrimônio histórico se tratava de monumentos apontados conforme

seus valores estéticos ou históricos.

O termo patrimônio histórico, cujo conceito foca a materialidade, o documento,

os monumentos e edificações, com o desenvolvimento dos debates acerca do tema,

vem incorporando um conceito mais abrangente, o que passa a ser chamado de

patrimônio cultural, que amplia o entendimento da preservação aos bens culturais,

referente às identidades coletivas de uma comunidade. Isso vem fortalecendo a noção

de patrimônio, no qual passam a fazer parte do mesmo valor as múltiplas paisagens,

arquiteturas, tradições, particularidades gastronômicas, expressões de arte,

documentos e sítios arqueológicos, que com isso, também passam a ter significação

por suas comunidades e a abrangência de sua conservação.

Nesse sentido, a reflexão estabelecida nesse estudo, aborda conceitos

relacionados aos espaços e sua importância como lugares de memória, por assumirem

significância à identidade de um grupo social. Um passado comum, que passa a

definir uma identidade social, proporcionando a esse grupo o sentimento de

pertencimento a esse lugar. Para Sandra J. Pesavento, a memória é a “presentificação

de uma ausência no tempo, que só se dá pela força do pensamento – capaz de trazer de

volta aquilo que teve lugar no passado” (PESAVENTO, 2004, p.26).

Dessa forma, quando os sujeitos históricos se contemplam em certos locais de

importância histórica, fazem referências a um passado que, mesmo distante, produz

sentimentos que fazem reviver fatos, momentos vividos e construídos.

Um processo de reencontro entre passado e presente, condição indispensável

para explicação e fundamentação da vida na atualidade. Essa necessidade humana

solidifica-se por intermédio de lembrar o modo de vida daqueles fizeram parte desses

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espaços no passado. Assim, edificações, monumentos entre outros itens, trazem algo

que vai além do material de que é constituído.

Uma construção que marca referências coletivas e individuais, Michael Pollak

descreve que a memória coletiva serve para “manter a coesão dos grupos e das

instituições que compõe uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua

complementaridade” (POLLAK, 1989).

Pelo sentimento de pertencimento, tendo como base um passado comum, o

lugar pode também reescrever seu passado inúmeras vezes, remontando e se

apresentando de outra forma. Como afirma Sandra Pesavento, “cada geração

reconstrói aquele passado e o sistematiza em uma narrativa”. Isso é observado por

todos nós, independente de idade ou de lugar. Todos vivemos de construções e

reconstruções do nosso passado em um processo constante de criação de significados

para nossas compreensões, nossas histórias e nossa gente.

[...] uma cidade inventa seu passado, construindo um mito das origens, descobre

pais ancestrais, elege seus heróis fundadores, identifica um patrimônio, cataloga

monumentos, transforma espaços em lugares com significados. Mais do que

isso, tal processo imaginário de invenção da cidade é capaz de construir utopias,

regressivas ou progressivas, através das quais a urbs sonha a si mesma.

(PESAVENTO, 2004, p.25).

Essa história comum passa a pertencer a cada uma das gerações que se seguem,

que em subsequência também a reconstroem. É importante ressaltar que a memória

parte de um presente, de uma realidade, para então produzir uma relação direta com as

novas formas de elaboração de outras realidades, marcando processos históricos de

formação de gerações.

Nesse sentido, importante retomar o já apresentado sobre a importância dos

lugares de memória, observando os contextos e as representações culturais marcadas

em determinados espaços de tempos e em locais que se materializam e contribuem

para uma memória coletiva em territórios. A autora Ecléa Bosi faz essa observação:

“[...] cada geração tem, de sua cidade, a memória de acontecimentos que são pontos

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de amarração de sua história” e acrescenta: “As lembranças se apoiam nas pedras da

cidade” (BOSI, 1994, p. 199).

Porém, os debates ligados ao patrimônio histórico e artístico e seus conceitos

relacionados aos espaços e sua importância como lugares de memória conforme sua

construção por gerações, não podem se desresponsabilizar das leituras de organização

social, pautada por disputas de classes.

Essa análise sustenta – se na interpretação de que a significação da memória,

muitas vezes, pauta – se por um determinado grupo social, esse, por sua vez,

conforme condições de poder valoriza o que é relevante em um determinado espaço e

em um determinado tempo.

Tal análise não se distancia do conceito de patrimônio como produção e

usufruto de uma comunidade que afirma memórias, o que reafirma patrimônio como

construções para além dos espaços físicos e concretos, sem significações, assim, como

tratou Françoise Choay ao se referir a patrimônio histórico:

Patrimônio histórico. A expressão que designa um bem destinado ao usufruto

de uma comunidade que se ampliou a dimensões planetárias, constituído pela

acumulação contínua de uma diversidade de objetos que se congregam

por seu passado comum: obras e obras-primas das belas artes e das artes

aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes dos seres humanos.

(CHOAY, 2003, p.117).

Conforme a autora, torna-se importante levantar essa questão diante do

desenvolvimento desse debate, onde a noção de patrimônio tem que ir além de uma

simples coleção de objetos, edificações e documentos, já que se apoia em processos

sociais mais abrangentes, envolvendo outras áreas do conhecimento como a

Antropologia, Sociologia. Não se fala aqui em Patrimônio Cultural simplesmente

parte estática de padrões artísticos ou históricos, até mesmo porque, é dessa forma que

corremos o risco de uma limitação de sua representação.

Com um olhar distante dessa abordagem, alguns homens dos tempos atuais,

observam as antigas construções, como objetos desatualizados e ultrapassados. Um

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olhar de grande distancia de sua representação, que devem ser demolidos para dar

lugar a novas edificações mais modernas e mais funcionais para o bem do progresso

de seu lugar. Essa ideia entra em choque com a perspectiva da preservação, pois ao

preservar a memória é necessário resguardar espaços historicamente constituídos,

representações artísticas e conhecimentos que evidenciam o modo de viver de uma

sociedade, com o passar do tempo.

Dessa forma, a noção crítica de patrimônio histórico, marca uma contraposição

ao pensamento macro econômica de superação do velho pelo novo. Em

fundamentação, recupero o que ressalta Maria Célia Paoli (1992, p. 25), discorrendo

sobre a possiblidade de evocar pelo patrimônio as diversas dimensões da cultura como

imagens de um passado vivo, de acontecimentos e coisas que merecem ser mantidos

na memória e preservados porque são coletivamente significativos para retomar

memórias e afirmar novas histórias.

Ao refletir nessa complexidade sobre patrimônio, coloca-se em evidência que

em condição massificadora não é exatamente isso que acontece, já que ao se falar em

patrimônio histórico, ele é relacionado à imagem congelada do passado, como um

museu de objetos antigos que estão nos contextos de vida, simplesmente, para atestar

uma herança de um tempo remoto que se esvaziou.

O tratamento que se contrapõe a esse pensamento compreende que a memória

está além de conservar coisas ou edificações antigas, mas a preservação de toda uma

história, pautada por um caminho percorrido por uma sociedade, desde seus tempos

mais remotos até os dias atuais.

Em observação, é importante ressaltar que a causa para desconsiderações aos

processos históricos vivenciados provém da organização estrutural do capital, no

contexto social e político, em que os interesses financeiros sobrepõe ao cultural.

No tratamento específico ao patrimônio isso se concretiza com a demolição do

que é considerado velho e impróprio, para dar lugar ao novo, com maior

funcionalidade e maior valor de mercado, para suprir, dessa forma, necessidades da

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contemporaneidade. Diante dessa realidade, cabe ao historiador o trabalho de

preservação desses lugares de memória por meio de uma ação crítica que

problematize, em condição contra hegemônica, a resistência para permanência da

memória de um coletivo.

As políticas para a preservação não devem apenas objetivar a preservação em

si. É importante a resistência às pressões dos interesses econômicos e especulativos ou

dos proprietários, deve também viabilizar a prevenção e os cuidados com a

deterioração desses bens que são causados tanto pela ação do homem como também

causas naturais.

Essa política de preservação merece ser mais abrangente, de acordo com Maria

Cecília Londres Fonseca, com o objetivo de não apenas proteger, mas ter uma visão

do todo que envolva essa preservação, como as justificativas para a proteção, critérios

de seleção e o compromisso dos principais envolvidos no processo de preservação de

um determinado bem, como a sociedade e os representantes do Estado:

[...] uma política de preservação do patrimônio abrange necessariamente um

âmbito maior que o de um conjunto de atividades visando à proteção de bens.

É imprescindível ir além e questionar o processo de produção desse universo

que constitui um patrimônio, os critérios que regem a seleção de bens e

justificam sua proteção; identificar os atores envolvidos nesse processo e os

objetivos que alegam para legitimar o seu trabalho; definir a posição do Estado

relativamente a essa prática social e investigar o grau de envolvimento da

sociedade. Trata-se de uma dimensão menos visível, mas nem por isso menos

significativa. (FONSECA, 2005, p. 36).

Com essa prévia definição de patrimônio, com entendimento das lutas de classe

nas questões de preservação de memória e com apontamentos de responsabilidades

sociais e políticas, tem-se nesse estudo, a evidência das construções que podem ser

tratadas como patrimônio, como os monumentos, os documentos, as produções

artísticas culturais, ambas observadas em condições eruditas e populares.

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No que se refere ao termo monumento, consta lembrar que seu significado vem

do verbo latino monere, que significa fazer lembrar, e que remete ainda a mausoléu.

Jacques Le Goff, ao referir-se ao termo monumento em latim, explica que:

[...] o monumentum é um sinal do passado. Atendendo suas origens filosóficas,

o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação,

por exemplo, os atos escritos. [...] O monumento tem como características o

ligar-se ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades

históricas “é um legado a memória coletiva” e o reenviar a testemunhos que só

numa parcela mínima são testemunhos escritos. (LE GOFF, 1994, p. 95).

A definição de monumentos tem como significado um conceito diretamente

ligado aos documentos, que são os testemunhos de uma época, mas testemunhos que

perpetuam uma visão, com base em uma interpretação.

A história oficial tende a preservar e cultuar a memória ligada aos vencedores e

uma classe dominante, produzindo documentos e valorizando edificações e

monumentos relacionados a uma história única, e nas homenagens às personalidades

de grande prestígio, sendo desta forma a memória de um lugar a preservação das

ações do dominador. Assim, é trabalho do historiador dar visibilidade àqueles que na

história oficial passam como anônimos, não devendo aceitar que essa inestimável

contribuição para a memória e para a preservação seja esquecidas e silenciadas.

A conservação dos patrimônios históricos deve possuir um significado para a

coletividade de um determinado lugar e não de um pequeno grupo, pois é um

instrumento de perpetuação da memória de toda uma sociedade, por meio dos espaços

utilizados por ela mesma na construção de sua história.

A preservação do patrimônio histórico, em condição contra hegemônica, vem

com a importância de relacionar a vida de grupos sociais com o seu passado, com suas

interações sociais, suas vivências e transformações ocorridas durante o tempo. É de

extrema importância fazer a relação dos indivíduos e de sua comunidade com as

edificações que passam a ser preservadas, em um reflexo de suas identidades sendo

representadas nesses espaços, sobrevivendo então em condições de existências

sociais. A preservação é criar a interação entre os indivíduos e a construção histórica

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de seus lugares de vivência. É atribuir sentidos ou significados a esse bem preservado

pelo grupo a que pertence e desta forma justificar a sua preservação. O trabalho pela

preservação deve incorporar os mais diversos significados e contextos em que esse

bem se insere. Significados esses que variam conforme os diversos grupos de

interesse, sendo econômico, cultural ou social, porém podendo em várias questões,

esses contextos se fundirem, pois, como descreve Roger Chartier (1990, p.24), todo

receptor é, na verdade, um produtor de sentido, e toda leitura é um ato de apropriação.

A partir disso, uma questão que deve ser tratada é a avaliação do alcance desses

bens dentro da sociedade. Percebe-se uma divisão de grupos, sendo um formado por

uma classe de intelectuais, que toma decisões referentes às ações sobre patrimônio,

amparado em critérios técnicos e legislações sobre o tema (GIDDENS, 1991, p.10), e

por outro, grupo formado pela grande maioria dos indivíduos da sociedade que não

fazem parte das construções dos processos simbólicos constitutivos, ligados ao

patrimônio, em uma realidade que mostra uma falta de diálogo entre o Estado e a

Sociedade.

E ao analisar o processo de construção do patrimônio nacional brasileiro, deve-

se fazer uma observação de que, em nossa história não existe uma participação

popular no trabalho de preservação, com exceções de alguns grupos sociais, sendo,

desta forma, um fator de impasses para as práticas de preservação (FONSECA, 2005).

A maioria dos indivíduos que compõem nossa sociedade não teve qualquer

participação no processo de construção da identidade nacional oficial, o que acarreta o

seu não reconhecimento no patrimônio (JEUDY, 2005).

Isso cria um afastamento de grande parte da população da cultura do

patrimônio e preservação, levando a uma sensação de estranhamento das pessoas em

relação aos bens patrimoniais.

E mesmo depois de muitas experiências do Estado diante das políticas públicas

para a área, investindo no patrimônio cultural, desenvolvendo legislações sobre o

tema e tendo como objetivo construir uma definição de identidade nacional, os bens

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tombados possuem significados específicos e restritos a uma parcela elitizada da

população, ficando a maioria do povo brasileiro à margem do processo de construção

do patrimônio nacional.

Essa omissão das camadas sociais populares no processo de criação de uma

identidade do coletivo, fez existir, em suas representações, uma ideia de um passado

muito distante, longe da realidade dessas pessoas. (GIDDENS, 1991).

Assim, a construção de uma identidade, ligada ao patrimônio cultural necessita

de um importante cuidado “ao modo como esse objeto tem sido construído e

ideologicamente elaborado por determinados sujeitos sociais, que têm tido, no Brasil,

o monopólio dessa construção” (FONSECA, 2005, p. 28). Monopólio esse que se

restringe a um pequeno grupo e que socialmente está muito distante de grande parte

da população do país.

Fonseca ainda considera o valor do patrimônio nacional, mas tem se tornado

pesado e mudo:

Pesado, não só por sua monumentalidade, pela solidez dos materiais e pelo

lugar que ocupa no espaço público. Pesado porque mudo, na medida em que, ao

funcionar apenas como símbolo abstrato e distante da nacionalidade, em que

um grupo muito reduzido se reconhece, e referido a valores estranhos ao

imaginário da grande maioria da população brasileira, o ônus de sua proteção e

conservação acaba sendo considerado como um fardo por mentes mais

pragmáticas. (FONSECA, 2005, p. 26-27).

Além disso, a autora faz diversos questionamentos sobre o tema, até mesmo

sobre os recursos públicos gastos com o patrimônio, sendo que apenas uma pequena

parcela da população se vê identificada e representada por esses patrimônios.

Patrimônios culturais que existem como elementos da construção de uma

identidade nacional, mas que nos mais diversos aspectos divergem e não consideram

as memórias coletivas e aspectos populares, havendo nessa questão um

distanciamento das tradições populares e a identidade oficial preservada pelo Estado.

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Mas também esse distanciamento do povo diante ao patrimônio cultural, em

grande parte se deve a constituição de todo um processo histórico, sendo a

participação popular secundária, como também não foi diferente nos períodos de

nossa história em que ocorreram debates sobre o tema e quando foi se consolidando o

pensamento preservacionista brasileiro, desde as primeiras décadas do século XX.

Canclini aponta para uma possível teoria social do patrimônio, no sentido de se

repensarem os usos sociais contraditórios do patrimônio cultural, que para este autor

é:

[...] dissimulado sob o idealismo que o vê como expressão o gênio criador

coletivo, o humanismo que lhe atribui à missão de reconciliar as divisões “em

um plano superior”, os ritos que o protegem em recintos sagrados? As

evidências de que o patrimônio é um dos cenários fundamentais para a

produção do valor, da identidade e da distinção dos setores hegemônicos

modernos sugerem recorrer a teorias sociais que pensaram essas questões de um

modo menos complacente (CANCLINI, 2003, p. 193-194).

Diante da questão que se aponta nesse texto, fica evidente o distanciamento da

grande maioria da população das políticas preservacionistas nacionais ao não

considerar expressões e a cultura popular na construção de uma identidade nacional

para todos, e o patrimônio cultural que acaba se restringindo a camadas minoritárias

de nossa sociedade.

1.2 MEMÓRIAS E DISPUTAS

Ao compreender que a memória é um elemento estruturante do universo

humano, pois expressa e conduz a constituição de representações mentais do real que

influi nas condutas sociais, construímos uma memória de sociedade pela inter-relação

singular e coletiva, por um processo que leva à construção das memórias no plural.

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Esse processo não se faz numa interlocução linear, em que os dispositivos

pautam-se pela interface entre o passado e o presente. A condição é muito complexa e

se compõe num percurso no qual se revelam múltiplas e diversas subjetividades, o que

a torna relativa. Nessa condição, há a compreensão que há um movimento de

interferência e reorganização mútua que interferem e reorganizam a memória

individual como a coletiva, ambas envolvidas, influenciadas e alimentadas pelas

experiências vividas.

Com o entendimento que essas ações são pautadas por interpelações, propomos

a reflexão que a memória é uma construção dinâmica, se movimenta e transforma na

dimensão espacial, concreta ou simbólica dos lugares e na dimensão temporal, se

volta para o presente. Uma memória que em uma constante tensão, transforma a

lembrança em atualização do passado conduzindo a percepção do atual e a ação que

transforma e projeta para o futuro.

Paul Ricoeur classifica como o dever de memória e a define como “dever de

fazer justiça pela lembrança a um outro que não o si” (RICOEUR, 2007, p. 101).

Dessa forma, devemos pensar que se cria uma relação com a ideia de dever a uma

dívida e herança, já que aquilo que somos, devemos ao que nos preservou. Porém,

como o autor complementa, devemos pagar a dívida e submeter à herança a um

inventário. O que sugere, que nem tudo que se refere ao passado, deva integrar a

história social. Mas quais seriam os reais sentidos dessa submissão? Em que medida

ele condiciona escolhas ou orientaria as ações de construção de memória coletiva?

Na memória histórica reside a possibilidade de construção de uma parcela de

substantivado conhecimento sobre as sociedades. Nas bibliotecas, arquivos, museus, e

nos mais diversos suportes físicos, a memória histórica está esticada não como objeto,

mas como informação. E se realiza socialmente quando transformado em

conhecimento, quando se transforma em suporte para a compreensão das coisas da

sociedade, por meio de processos de análise e de crítica.

No campo da História, esse processo, metodologicamente produzido, visa

transformar a informação em narrativa e por meio dessa forma de linguagem, levar a

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conhecer aspectos de um tempo que precedeu ao nosso. É como narrativa que se

constrói o passado da história. E foi como narrativa que se estabeleceu também a

memória desde tempos mais antigos.

Essa história pode dar suporte à construção da memória social. Assim, a

construção da memória da sociedade inclui acessibilidade a informações organizadas

e disponíveis para consulta, bem como a capacidade de produção do conhecimento

(nesse caso, historiográfico), além das memórias individuais e coletivas, que como

experiências vividas, permanecem no imaginário social e nos indivíduos.

Nos últimos anos, em condução de crescimento lento, a utilização da memória,

como fonte documental da História está sendo revista. Os depoimentos, sendo

testemunhais ou de narrativas de vida, todas repletas de subjetividades por razões

particulares têm apoiado essa abordagem da história em memória. Entre outros

fatores, isso se tornou possível, como mencionado, no dever da memória com a

valorização da subjetividade humana pela produção historiográfica, que então

ampliava seus objetos, propiciando a capacitação de veracidades contidas nas

memórias individuais e coletivas.

Isso é decorrente de um posicionamento que marca a significância da

promoção da rememoração como um campo diferenciado dos efeitos sociais dessas

experiências, acumuladas individual ou coletivamente. Uma leitura ao conhecimento

que se contrapõe a racionalidade do saber historicamente organizado.

Como esse tratamento à memória não se apresenta em condição hegemônica,

os registros, em sua grande maioria não vem atendendo essa finalidade de construção

da memória, o que estabelece uma confusão entre o compartilhamento de lembranças

e parte da memória histórica. As justificativas para essa condição são várias, mas o

imperativo de construção da história por uma narrativa racional e absoluta é a

determinante.

A compreensão que sustenta que se pode trazer a memória nessa interlocução,

singular e coletiva, configurada por processos dinâmicos, marcados pelas

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interferências culturais que também são reconstruídas, não desconsidera que pode esse

processo sofrer inferências com imperfeições, mas esse reconhecimento da

aproximação entre história e experiências vividas e registradas em forma de memória

é, extremamente positiva para reconhecimento de interpretações de realidades de

diferentes grupos.

Essa análise reconhece que a memória e história guardam lembranças e

semelhanças entre si, mas é importante salientar o cuidado de reconhecer que história

e memória são distintas e cada uma possui sua definição e função.

Ainda que ambas não possam ser tomadas como verdades sobre o passado, mas

como narrativas e construções parciais dele, motivadas por razões do presente, as

tramas e narrativas da memória e da história são diferentes. As tramas da memória são

descontínuas e muitas vezes tecidas involuntariamente, enquanto as da história se

fundamentam em fatos e buscam uma lógica racional em continuidades e rupturas que

representam as mudanças que vivemos constantemente.

Confiando à memória o destino das coisas passadas e à espera das coisas

futuras, pode-se incluir memória e espera num presente ampliado e dialetizado

que não é nenhum dos termos anteriormente rejeitados: nem o passado, nem o

futuro, nem o presente pontual, nem mesmo a passagem do presente.

(RICOEUR, 1994, P.28)

Ao contrário do apontado nos estudos realizados na primeira metade do século

XX, a memória e a história hoje não são percebidas como opostas, mas como

elementos de estudo que se complementam como vias de aproximação entre a

sociedade e seu passado. E subsidiam a criação das relações entre essa sociedade e o

tempo.

De qualquer modo, a memória tem uma função cognitiva e se tornou uma das

matrizes da história. Daí a importância de aliar a construção de memória da sociedade

à possibilidade de produção historiográfica, uma vez que, de acordo com Ricoeur

(2007, p. 108), a história pode esclarecer, reanimar ou ajustar memória a uma

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perspectiva mais equilibrada sobre o passado por meio de uma instância crítica

contribuindo assim para a estruturação de políticas de memórias mais justas.

Essa análise de ações justas, para Ricoeur (2007, p.99) se faz por priorizarem

os que reivindicam o reconhecimento das suas identidades e papel na construção da

sociedade. Um tratamento de mais justas, por incluírem memórias que foram

silenciadas em razão de seu caráter traumático. Em ressalva a categoria de mais justas,

se apresenta por várias razões, entre elas: por marcarem a contenção da passagem do

tempo por meio da atualização do passado no presente; por preservarem a

espacialização da memória e por preservarem o dever da memória em forma de

futuro. E ainda mais justas por incorporarem o caráter ético e político contido na

memória como ação, e através dela propiciar mudanças na conduta de grupos sociais.

Em condição de vida pautada pela ordem do capital, a vida não é única a todos,

visto que temos organizações de classes que disputam poderes, a história em

interlocução com a memória tem viés diferenciado de produções. Nesse sentido, a

ampliação da história passa por tratar as diferentes memórias, inclusive, algumas, que

outrora foram silenciadas.

O tratamento estendido a essa análise se pauta por evidenciar os embates que

envolvem enfrentar, hoje, o desafio do reconhecimento de experiências entre

gerações, em uma época em que vivemos uma crise das formas clássicas de

narrativas, uma narrativa que transmite a memória. Vivemos também uma limitação

da disposição de ouvir o outro.

A rememoração dolorosa de perseguições políticas, exclusões e de diversas

outras práticas de violência, nem sempre podem ser totalmente reparadas via

memória, e nisso residem inúmeros embates. Embates que também envolvem

enfrentar a manipulação da memória. Que pode se dar por intermédio de fenômenos

ideológicos e de ações simbólicas, que distorcem a realidade, legitimam a ordem

existente, o sistema de poder e promovem uma integração artificial ao mundo externo.

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Essa a abordagem admite os conflitos e os reconhece em condições de embates,

que não são marcados por uma única relação. Isso implica então, compreender que há

embates múltiplos, que possivelmente iluminem o sentido atribuído por Ricoeur

(2007, p.101) ao recomendar a submissão da herança ao inventário para a efetivação

do qual a história, desde que não oficial, pode ser uma importante aliada na

construção da memória de uma sociedade. Processo no qual é indispensável a

participação de seus sujeitos, uma vez que não se trata de uma celebração do passado,

mas de sua retomada reflexiva, com a finalidade de transformar o presente e traçar

uma nova história.

Nesse sentido, cabe tomar como exemplo enfrentar o esquecimento não como o

avesso da memória, pois como prática social, ele não é. Interpretando a construção da

memória, o esquecimento, é como ela, um percurso temporal e especial que atua nas

relações de poder por meio de imagens e narrativas diversas, incluídas as da própria

história. “Pode-se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as ênfases,

refigurando diferentemente os protagonistas da ação assim como os contornos dela”

(RICOEUR, 2007, p. 455). E essa escolha: qual será a história? Essa é uma escolha

indesejável, sendo essa história que exclui e acarreta a continuidade de antigas linhas

historiográficas que resulte no impedimento de atores sociais narrarem a si próprios.

Isso é o que Michel Pollak (1992, p.200) aponta como um trabalho constante

de enquadramento da memória. Existe uma constante escolha entre o que se deve ser

lembrado e o que se deve ser esquecido. Ele ainda complementa essa ideia apontando

que “as preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da

memória” (1992, p.204). É, segundo Pollak que a construção da memória é uma

estratégia para o ancoramento de identidades como uma estratégia de agentes sociais,

pois conforme ele, existe uma “ligação fenomenológica muito estreita entre a

memória e o sentimento de identidade” (1992, p. 204).

Conforme esse pensamento é destacado por Pollak, a disputa diante da

memória e a concepção dela diante da construção da identidade de grupos,

“disputadas em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente com conflitos que

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opõem grupos políticos diversos” (1992, p. 205). A ação de lembrar e esquecer são

formas estratégicas que grupos utilizam em campos de disputas, conforme Ecléia Bosi

(1994) aponta.

Desta forma, a construção da memória ocorre no presente, conforme os

interesses que se pautam nele e não necessariamente pelo passado. Uma construção

que é determinante na consolidação de um sentimento de pertencimento social.

Assim, a disputa pelo controle diante da construção da memória é o retrato dos atores

que com ela se envolvem e determinam o que será efetivamente preservado, em um

processo especificamente pautado pelos fluxos e circularidades. Esses atores então,

que participam desse processo de construção da memória, são agentes de um processo

de comunicação, pois é conferidos à eles o papel de emissores de informações e

mensagens dentro de uma rede, sendo conferidos uma identidade aos participantes

dessa rede. A memória é um processo construído na coletividade, por demandas e

necessidades do presente e por disputas no campo do controle da memória.

As ações do poder público e dos órgãos responsáveis pelo patrimônio, no

sentido de preservar a memória de uma sociedade, abrange um universo amplo e

diversificado tão quanto também são as próprias ações e relações humanas, já que são

a partir destas que emanam essas representações, porém, tem-se o entendimento que

as estruturas de poder estão num modelo de Estado.

Nessa condição a construção da memória passará por esse universo amplo, mas

em condições de resistência, passa por reconhecer registro de práticas sociais,

principalmente no segmento da população menos favorecida, ou mesmo medidas que

possibilitem a esse segmento tornarem-se sujeitos de suas próprias memórias.

E ao tratarmos desses atores sociais como, também, seres produtores de

memórias, deve-se ampliar a reflexão a uma leitura histórica, marcada por processos

históricos que em condições estruturais e superestruturais organizam arranjos que

configuraram sistemas sociais, políticos e econômicos em que as memórias de alguns

permaneceram mais de que outros grupos sociais.

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Para evidenciar esse pensamento, recuperamos a abordagem de análise de Karl

Marx, pensando o desenvolvimento histórico e econômico a partir do materialismo

(ou da cultura material), que trata de um conjunto de processos, procedimentos e

tecnologias que usamos em uma determinada organização social. Marx vai pensar o

escravismo clássico da Grécia e Roma, o feudalismo medieval e o capitalismo mais

contemporâneo a partir do que ele chama de “a revolução burguesa”, que é a

Revolução Francesa e a Revolução Industrial, que é a revolução tecnológica por

excelência. E o que difere a classe dos outros modos de organização social anteriores

é a mobilidade. Teoricamente, nos moldes do capitalismo, pode-se migrar de uma

classe social para outra. Existe uma mobilidade porque o conceito de classes está

ligado às relações econômicas

A classe social em Marx é uma constatação do próprio processo de organização

do trabalho. Ela começa a desenvolver, não apenas essa dicotomia entre burguesia e

proletariado, mas as diversas frações de classe que permeia esse relacionamento.

Porque não existe uma burguesia, existe sim, meios sociais burgueses (burguesia

industrial, financeira, além também de profissionais liberais que adotam um modo de

vida burguês). Marx trabalha também com frações dentro do próprio proletariado,

pois existe o proletariado da classe operária, que ele considera a classe revolucionária,

como também existe um item, que são aquelas frações sem profissão que orbitam, são

o excedente que permitem que o capitalista manipule as relações de trabalho. Existem

os camponeses e existem os pequenos burgueses que são aqueles agrupamentos de

funcionários públicos da pequena e média burocracia, que não têm estofo financeiro

para serem burgueses, mas conseguem, por uma série de rituais, se descolarem das

frações de classes proletárias.

Desta forma, Marx vai pensando as transformações tecnológicas e o modo

como impactam a economia de uma maneira que retrata o século XIX, bem

determinista, tem uma relação causa e efeito que é bastante previsível. Em um

determinado momento, em contraposição a aristocracia e a nobreza e ao clero

medieval, que eram profundamente conservadores e, uma série de comportamentos

arraigados e nocivos ao bem popular, Marx considera a burguesia revolucionária. É a

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burguesia que irá implantar o capitalismo superando aquele modo de produção feudal,

que estava muito ligado na terra e na prisão do trabalhador à terra. Em um primeiro

momento, essa burguesia é revolucionária. Uma burguesia que defende a liberdade, a

igualdade e a fraternidade e que tenta remodelar esse mundo à sua imagem, inclusive

ampliando os conceitos de família, cidadania e todos esses modelos que

acompanhamos socialmente até hoje.

Mas em um determinado momento, defende essa questão de que uma vez

realizada a sua vocação como classe, a burguesia se torna obsoleta do ponto de vista

em que ela se torna conservadora. Em que ela passa a querer conservar essa realização

de classe em detrimento do proletariado. E aí, a classe operária é que se tornaria a

classe revolucionária. Se a luta de classes é o motor da história, a classe, em Marx, é o

sujeito histórico, pois é ela que promove a mudança. E a consciência é o ponto mais

importante para identificar a classe.

Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre

vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circunstâncias

imediatamente encontradas, dadas e transmitidas. (MARX, 1980, p. 417).

A classe social, do ponto de vista histórico depende de dois fatores: identidade

e consciência. A identidade é o estofo cultural que nós dividimos com aqueles com

quem convivemos em nossa formação. Ela está em nossas origens, está no modo em

que fomos socializados e como é que vivemos com essa identidade. Já a consciência

de classe é o momento em que o integrante dessa classe passa a perceber seu papel

histórico e passa a batalhar politicamente por seus direitos. Esse é também o

argumento de Thompson:

Evidentemente, a questão é como o indivíduo veio a ocupar esse “papel social”

e como a organização social específica (com seus direitos de propriedade e

estrutura de autoridade) aí chegou. Estas são questões históricas. Se detemos a

história num determinado ponto, não há classes, mas simplesmente uma

multidão de indivíduos com um amontoado de experiências. Mas se

examinarmos esses homens durante um período adequado de mudanças sociais,

observaremos padrões em suas relações, suas ideias e instituições. A classe é

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definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é a

sua única definição. (THOMPSON, 1987, p.11).

No momento em que a classe operária inglesa toma a consciência de si e se

reconhece como classe, que possui uma identidade, que tem uma história em comum e

princípios a defender, ela passa a ter uma ação política, até com a formação de um

partido político. E para Thompson, no momento em que a classe se consolida dessa

maneira, sua história está feita, pronta. Abrindo um novo capítulo a partir daí.

Para Thompson, identidade é ligada a cultura e consciência é ligada a luta

revolucionária ou política. Mas, além disso, é também importante ressaltar a noção

das lutas de classes e seu importante papel no desenvolvimento da consciência de

classe.

As classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, acham

um inimigo de classe e partem para a batalha. Ao contrário, para mim, as

pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo (por meio de

relações de produção fundamentalmente), suportam a exploração (ou buscam

manter poder sobre os explorados), identificam os nós dos interesses

antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal

processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe, vindo, pois, a fazer

a descoberta da sua consciência de classe. Classe e consciência de classe são

sempre o último e não o primeiro degrau de um processo histórico real.

(THOMPSON, 2001, p.274).

Mas como se passa de identidade para consciência? Bourdieu (2001), com a

noção de poder simbólico, trata da mobilidade social que depois de tão defendida no

século XX, passa por um desgaste nos anos de 1970, principalmente graças a fatores

da economia mundial, a partir da crise do petróleo e a ascensão do neoliberalismo no

final dessa década. Cada vez mais os direitos trabalhistas são cerceados. Desta forma,

quando o operário não pode ascender socialmente, todo o princípio fundador do

capitalismo passa a ser revisto. Assim, Bourdieu ao estudar essa questão começa a

detectar uma série de capitais, em um sentido de bônus que a pessoa vai recebendo

socialmente, que é o capital cultural. A luta pela memória e, portanto, pela

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configuração das identidades, é uma disputa pela narrativa e pelo discurso, em suma,

pela posse da palavra.

Nesse sentido, Bourdieu define um campo de disputas entre os detentores de

um saber. Ele aponta como a autoridade sobre o mesmo designa uma identidade com

um valor determinado por certo grupo, que virá a ser como a determinante da

distinção social. Assim, “a distinção – no sentido corrente do termo – é a diferença

inscrita na própria estrutura do espaço social percebida segundo as categorias

apropriadas a essa estrutura” (Bourdieu, 2001, p.144).

O acesso ao capital cultural é visível por meio das diferenças socioculturais

como também diante das questões que envolvem as disputas de classe, servindo como

forma de distanciar os indivíduos de não seguem as orientações de padrões

determinados pela classe dominante burguesa.

Desta forma, Bourdieu percebe é que a classe não se reconhece mais porque a

mobilidade passou a ser necessária para atingir patamares de consumo e uma vida

melhor. O operário não quer sua melhoria de vida enquanto operário. Isso é aplicado

aos filhos dos operários para que esse ascendam socialmente buscando oportunidades

de estudo.

A ideia de que o estudo é importante como forma de emancipar e que

proporcionará uma vida melhor, nem sempre será o suficiente. E da forma que o

capitalismo se articula, a mobilidade social é cada vez menor. A identidade é

esmagada pela cultura massificada. A partir de uma padronização do modo de ser e de

viver, essas pautas são definidas por uma elite e não há uma identidade de classe em

que se produza uma cultura diferenciada.

Em arena de luta por afirmação de identidade para sobrevivência cultural, há a

reafirmação da memória como elemento indispensável nessa interlocução dinâmica

temporal, singular e coletiva.

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Um “outro nome da distinção” (Bourdieu, 2001, p.145), associado ao que é o

capital simbólico, se mostra em disputas pela autoridade, sendo feita aí uma ligação

direta entre a identidade que se estabelece e a hierarquia que se mantém dominante.

Na luta simbólica pela produção do senso comum ou, mais precisamente, pelo

monopólio da nomeação legítima como imposição oficial – isto é, explícita e

pública – da visão legítima do mundo social, os agentes investem o capital

simbólico que adquiriram nas lutas anteriores e, sobretudo todo o poder que

detêm sobre as taxionomias instituídas, como os títulos. (Bourdieu, 2001, p.

146).

Bourdieu faz referência às formas que tomam os discursos para a formação de

identidades, sendo elas uma ação de institucionalização, que busca uma objetivação

da realidade, necessitando, primordialmente de uma força de autoridade para legitimar

que o faz, sendo que é nesse mecanismo que “nas lutas pela identidade – esse ser

percebido que existe fundamentalmente pelo reconhecimento dos outros” – seria a

“imposição de percepções e de categorias de percepção” (Bourdieu,2001, p. 116-117).

E desta forma, é no campo das disputas das identidades que o discurso passa a

ocupar um espaço significativo, sendo nesse caso, descrita por Foucault uma

“genealogia dos saberes, dos discursos, dos domínios de objeto” (Foucault, 1986, p.7),

já que é nas disputas pelo poder por meio do discurso, que ocorrem as disputas pelo

controle da verdade.

O patrimônio, observado nessa interlocução com a vida passa por essas

disputas e, portanto, pode ser numa perspectiva crítica, um recurso de afirmação de

identidade de classes. Essa condição não é natural, passa por um processo de

conscientização, é construído por uma trama de ações de resgates históricos em

processos educativos, investigativos e problematizadores.

Ao entender esse órgão como condição de concretude, é importante salientar a

participação e a representação de diferentes sujeitos na afirmação das diferentes

memórias.

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Essa evocação é uma característica de cidadania, diferente da ideia de

promoção. Segundo Fonseca, existe uma contradição na promoção da cidadania3, na

qual se verifica compromissos políticos e intelectualizados para a construção de uma

identidade nacional, e a grande parte da população se encontra excluída do desejo da

promoção dos direitos e da cidadania pelas políticas culturais e dos patrimônios. Uma

política que em sua história vem mantendo distância da participação social.

E diante da questão de cidadania, diretamente ligada com a relação entre o

povo e o direito de participação nas decisões administrativas do Estado. Sendo

inquestionável o estabelecimento de vínculo com os direitos, sejam eles políticos,

econômicos ou sociais. Desta forma, a sua representação também como parte da

identidade deve ser respeitada, mas não é essa a realidade.

1.3 MEMÓRIA DO TRABALHADOR

É importante realizar um levantamento do que foi feito para se registrar um

posicionamento do trabalhador e a preservação de sua memória. Existem publicações

produzidas no início do século XX, material que retrata principalmente a militância da

classe operária brasileira. Mas deve-se considerar que esses primeiros trabalhos de

registro são frutos de pesquisas realizados prioritariamente não por estudiosos e

intelectuais, mas por pessoas que estavam diretamente ligadas a classe operária ou a

figuras da militância política. São registros caracterizados por apresentarem um olhar

mais ideológico, em grande parte, descrições sobre a realidade operária do período, a

influência e ensinamentos de trabalhadores imigrantes nas lutas operárias, estudos

sobre o anarquismo e sua participação ativa na estrutura sindical no Brasil Primeira

República. É possível afirmar que esses registros se apresentam sem uma preocupação

3 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. TÍTULO I Dos Princípios

Fundamentais Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: II - a

cidadania.

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de ter uma forma normativa, de caráter de estudo científico ou vinculação com

instituições de pesquisa.

Importante consideração é que esses textos surgiram e ainda são utilizados

como forma de comunicação dentro das categorias, o que serve de fonte primária

importante para entender as relações sociais e condições de trabalho, além dos

movimentos de lutas dos trabalhadores, mas agregando também abordagem mais

ampla diante de diversos assuntos que fazem parte do cotidiano dos trabalhadores.

Vale citar algumas produções do início do século diante da causa operária

como “Voz do Trabalhador”, “A Lanterna”, “La Battaglia”, entre outros jornais.

Outro importante material é um conjunto de artigos produzidos por Evaristo de

Moraes e publicados pelo Correio da Manhã, intitulado “Apontamentos de direito

operário” de 1905.

Também é rica a produção de materiais de cunho anarquista, valioso

instrumento de mobilização popular e de ação de luta. Exemplo disso é “I paesi nei

quali non si deve emigrare: la questione sociale nel Brasile (1920) de Gigi Damiani”.

Por outro lado, a partir dos anos 1920, passa-se a se consolidar no Brasil a área

acadêmica, principalmente com a instituição da Universidade do Rio de Janeiro em

1920 e posteriormente com a criação da Universidade de São Paulo em 1934. São os

espaços que inicialmente se colocam na posição de elite cultural e formadora de um

conhecimento dominante diante do restante da sociedade nacional, sendo por meio

dela, que o Estado brasileiro seria auxiliado na construção de seu conhecimento.

Um grupo que estaria apropriado ao saber das questões e problemas do país,

nos mais diversos campos de atuação e do conhecimento, produzindo um saber que

seria legítimo de ser utilizado e entendido somente por eles mesmos. Sendo assim, a

visão da classe trabalhadora para esses intelectuais, de formação positivista, como

indivíduos inconscientes ou sem uma cultura devidamente necessária para fazer

qualquer tipo de posicionamento diante da influência teórica gabaritada aos

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acadêmicos. Da classe trabalhadora só restava a condição de serem estudados para o

entendimento da realidade social do país da primeira metade do século XX.

É possível destacar, a fala de Plínio Salgado:

Não podemos de maneira nenhuma cortejar a massa popular. Ela é o monstro

inconsciente e estúpido [...] O povo já se escravizou, de há muito, aos seus

exploradores. Não devemos bajular o escravo e sim salvá-lo do cativeiro, não

com agrados, mas com a imposição de novas formas de mentalidade.

(SALGADO, 1930 apud PÉCAUT, 1990 p. 48.).

Seria a partir da elite que se construiria um ideal de nação e não por meio da

grande massa de trabalhadores.

E tendo essa formação de conceito sobre os trabalhadores é que não se

estabelece um estudo mais concreto sobre o modo de vida dessa classe social, muito

menos se registra pelos acadêmicos as movimentações ou movimentos populares que

não tinham qualquer valor para um país que precisava se formar como nação na

Primeira República, sendo essa realidade da classe operária desconsiderada. Mais

ainda por uma omissão completa dos movimentos anarquistas por parte dos

intelectuais, sendo esse modo de agir dos trabalhadores algo que chega a ser mais que

desconsiderável como condenável para a estrutura social.

Pode-se dizer que, por serem provenientes em grande parte da classe

dominante, esses intelectuais se colocavam em uma posição além do restante da

sociedade, sendo por excelência os detentores de um saber, responsáveis por

transformar a classe trabalhadora, que não tinha uma consciência, em parte de uma

classe social mais organizada e funcional para os interesses de toda a sociedade.

E de certa forma, esse conceito de uma intelectualidade, que se posicionava em

um patamar de superioridade do saber, juntamente com um Estado de caráter

organizador e autoritário que após 1930, passa a firmar o papel desses trabalhadores

como o papel de apenas os braços da nação.

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O olhar acadêmico diante da classe trabalhadora começa a ganhar mais atenção

e ser apresentado de forma mais sistêmica a partir dos anos de 1950, sendo fruto de

um trabalho de intelectuais da área de sociologia, que passaram a se preocupar em

construir grandes sínteses no campo da sociologia – chamadas “sínteses sociológicas”

– em que teorizavam as escolhas ideológicas a partir dos movimentos operários.

Foi na década de 1950, com um grande e acelerado desenvolvimento industrial

do país, também se observa um desenvolvimento na participação dos trabalhadores

com relação a sua participação social. São os operários, mesmo com sindicatos

atrelados ao poder do Estado, que começam a questionar condições de trabalho e de

vida por meio de um direcionamento mais a esquerda. Também se deve destacar que

as Ligas camponesas começam a surgir nesse período.

O próprio país passa por relevantes transformações estruturais. A população,

nos anos 1950, passa a ter uma população mais urbana. A Petrobras é inaugurada, a

indústria ganha força, mais ainda a indústria automobilística. Cresce

significativamente o consumo de eletrodomésticos e outros bens duráveis. Também é

importante lembrar que é nesse período que a mulher ganha mais espaço no mercado

de trabalho.

Essas questões foram bem observadas pelos intelectuais que passaram a

analisar e tentar compreender as causas e consequências dessas importantes e rápidas

mudanças que o Brasil passou nesse período. Foi nesse momento que se constitui uma

corrente teórica que estuda essa dinâmica social do Brasil, tendo um olhar sobre a

modernização como ponto de partida para entender a passagem de um país rural para

um outro urbano e industrial. Era um país que ficava no passado e o futuro industrial

parecia algo de se esperar e possivelmente acreditar. Paoli descreve esse momento:

Nos anos 50, constituiu-se uma corrente teórica que aborda a dinâmica da

sociedade brasileira vista com um processo de modernização, como passagem

do mundo rural tradicional para o urbano-industrial. Tratava-se da formulação

acadêmica de um momento vivido como transição. A sociologia dava forma à

percepção de um Brasil que havia ficado para trás após o reinado getulista, onde

a industrialização e a urbanização aceleradas já eram visíveis e a mudança

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social aparecia como inevitável. [...] A evidência de um Brasil moderno

conduzia este esforço de pensar as condições de implantação desta modernidade

e o conjunto de processo que adaptariam as populações a elas. (PAOLI;

SADER; TELLES, 1984: 133).

De acordo com o que diz Maria Célia Paoli (1987, p.55), o modo em que os

intelectuais fazem o estudo social dos operários mostra uma fala irritada dos

empresários brasileiros, que colocam a culpa tanto no Estado como nos teóricos por

serem os responsáveis pela formação da classe operária e a partir disso, o início da

luta de classes no país. Mais do que isso, para a autora, esse mesmo discurso proferido

pela classe de empregadores, coloca-os no papel de realizadores de favores para os

operários e surpresos com as atitudes de “caráter amoral” dos trabalhadores e também

da ação do Estado ser um criador dessa condição de lutas de classes.

Além disso, para a classe empresarial, fica clara a posição em que se colocam

de que quem tinha conhecimento de causa referente aos seus operários, deixando claro

que “eram os empresários que conheciam a realidade das fábricas, e não teóricos e

sonhadores que vivem à margem do próprio trabalho” (PAOLI, 1987, p.72), diante da

perda de competências por parte dos empresários, diante das relações de trabalho

industrial, por meio do Ministério do Trabalho, sendo esse tipo de discurso proferido e

com texto publicado em 1935 pela Associação Têxtil Empresarial de São Paulo.

Como também se pode destacar:

Não existem outros problemas de relevância a não ser estes, malgrado

afirmativas em contrário de certa imprensa e de teóricos impenitentes que não

conhecem a nossa vida fabril. "Para o operário nacional, o grande problema é o

salário. Para o patrão, o problema capital é a abundância de braços, a

estabilidade e o adestramento desses braços... Não existem outros problemas

relevantes a não ser estes." (NOGUEIRA,1935 apud PAOLI, 1987, p.72).

É nesse momento que passa a existir um novo olhar, mais cuidadoso, dos

intelectuais diante da força de mobilização e as movimentações da classe

trabalhadora, que se mostram capazes de transformar toda a sociedade do país. É

nesse rápido processo em que a indústria ganha força, que também passar a fervilhar

movimentos sociais ligados as questões operárias como de todos os demais

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trabalhadores. Uma força inegavelmente transformadora que passa a se reconhecer

como classe, mesmo que de uma forma ainda inicial.

E ganha força também o braço político ligado as causas operárias,

principalmente ligadas ao Partido Comunista. Entra-se nos anos de 1960 com

publicações importantes relacionadas ao tema e que merecem ser mencionadas como

“A Formação do PCB” de 1962 de Astrojildo Pereira, “O movimento sindical no

Brasil”, do mesmo ano e escrito por Jover Telles e a “Libertação Social” de Edgard

Leuenroth lançado em 1963. Mostra uma ligação direta das ideias marxistas e a lutas

de classes com a formação desses trabalhadores nesses novos tempos do país.

Foi a partir dos anos de 1970 que a História passou a se dedicar com mais

detalhe nos estudos da causa operária, que já era estudada pela Sociologia e pelas

Ciências Políticas. Podem-se destacar os estudos realizados por Boris Fausto e

também pelo cientista político Francisco Weffort no que tratou de um conceito por ele

formulado de “sindicalismo populista”.

Por meio dos estudos realizados por Weffort que pode se observar uma

transição, no que se refere aos estudos sobre a classe trabalhadora, entre o modo de

interpretá-lo por um olhar sociológico, para uma análise mais aprofundada de uma

interpretação política da questão. Isso é fundamental para entender que possíveis

questões de uma possível prostração das ações da classe trabalhadora, foram

originadas não de sua origem ou forma em que se estrutura, mas de questões ligadas a

possíveis orientações e ações das lideranças estabelecidas.

Foi nesse momento que foi aberto um amplo campo de estudo referente à

classe trabalhadora, sendo esse tema um atrativo para debates diante da realidade e

dos movimentos operários. A partir das greves dos trabalhadores de São Bernardo do

Campo e na região do ABC Paulista, nos anos finais da década de 1970 que se passou

a discutir as formas de organização operária e desenvolver teorias e novas

nomenclaturas para a nova realidade para época, considerada do “novo sindicalismo”.

Uma forma de romper com um histórico de lutas ultrapassado e que vinha carregado

de velhos hábitos e erros nos movimentos de luta.

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Deve-se registrar que os estudos sobre a classe trabalhadora e os registros de

sua realidade, começam a produzir vários trabalhos acadêmicos sobre o tema e

passam a se levantar a necessidade de formar e valorizar centros de documentação e

memória dedicados à história de trabalho e de lutas.

Em consequência, na década de 1980, surgiram novas ideias e trabalhos

acadêmicos referentes aos movimentos de luta dos trabalhadores, não somente diante

da nova realidade na qual o país descobria, por meio do “novo sindicalismo” ou pelo

impacto das greves dos metalúrgicos do Sindicato de São Bernardo do Campo, mas

também por uma leitura mais dedicada a uma produção de estudos de origem

estrangeira que foi fundamental ao enriquecer os debates pelos estudiosos brasileiros.

Foram importantes os estudos, baseados na historiografia marxista inglesa, de autores

como E. P. Thompson e Eric Hobsbawn. Mas, além disso, também foram muito

importantes os estudos e análises realizadas referentes às relações de poder de Michel

Foucault.

É com essa historiografia, sob a influência de pensadores da classe operária que

passasse a discutir questões significativas das realidades dos trabalhadores e das lutas

de classes, que passam a ser estudadas e refletidas as condições de vida, as relações de

trabalho, as leis trabalhistas, a cultura operária, as mulheres trabalhadoras, os modos

de organização sindical, as lutas, movimentos e revoltas trabalhadoras e populares,

entre outros temas.

É também nesse momento que ganha força a apropriação de outras diversas

fontes de pesquisa que vem a enriquecer o que já era trabalhado como, por exemplo, a

história oral.

Esses estudos sobre a classe operária ganham um novo fôlego nos anos de

1990, com o fortalecimento das políticas neoliberais, que comprometeram mais ainda

as condições de vida dos trabalhadores, com a releitura e revisão dos trabalhos até

então realizados diante do tema. São levantadas nesse momento novas preocupações e

também novas perspectivas diante do cenário de incertezas, o que fez esse tema se

atrelar anda mais ao campo das Ciências Sociais e da História. É o momento em que o

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trabalhador vem se questionar de forma mais crítica sobre seu papel histórico e sua

participação efetiva nessa nova realidade econômica. Os estudiosos necessitam dessa

forma, debater as fontes e analisar as novas condições impostas pelo poder

hegemônico.

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CAPÍTULO II

A proposta nesse capítulo é levantar a questão sobre qual é o papel da memória

na sociedade, observando um território e os contextos de disputas expressos nas

representações patrimoniais materiais ou não, abordando o tratamento de patrimônio

como produção histórica e social.

Esse tratamento esboça uma reflexão ao patrimônio na perspectiva de um bem

cultural de um povo que evoca memórias, porém observa em que medida o patrimônio

como conjunto de bens, produções e manifestações trazem a afirmação da identidade

dos diferentes grupos existentes nesse território. Assim, tem-se a problematização do

sentido simbólico de patrimônio, com quem e para quem.

Essa abordagem não desconsidera patrimônio enquanto uma condição de

preservação de recortes da história da humanidade, não como ideia de conservar o

passado, mas como condição que permite, através dos símbolos, o evocar das

memórias singulares e coletivas um pensamento de vida.

Ao refletir nessa complexidade sobre patrimônio, haverá uma abordagem do

perfil das políticas públicas na sistematização de memórias patrimoniais, observando

as forças das representações sociais nessa organização.

A análise expressa das políticas está além da ideia de preservação do bem

histórico, enquanto leitura de contextos, pela análise de patrimônio, o estudo

observará a resistência às pressões dos interesses econômicos e especulativos de

grupos que buscam afirmar uma única história.

Nesse sentido, tem-se uma abordagem das ações, a criação de instituições,

principalmente as que incluem eventos considerados de cultura, compreendida como

fruto da memória. Uma abordagem que observa as contribuições das políticas

patrimoniais para favorecer ações de abstração, projetação de pensamentos e

linguagens para expandir ideias e promover mudanças.

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Além disso, e diante da realidade específica, é feita uma descrição conceitual

da educação, e mais especificamente da educação patrimonial, no processo de

aproximação de determinadas camadas da sociedade dos patrimônios tombados como

também em um sentido inverso, como a população pode se representar em suas

memórias e por meio dos patrimônios como forma de criar uma consciência de suas

realidades, de seus espaços e condições de vida. Uma importante ação que tem como

objetivo fazer o educando/cidadão fazer-se perceber como um sujeito histórico, em

uma constante construção coletiva.

2.1 SÃO BERNARDO DO CAMPO - UMA CIDADE INDUSTRIAL E

OPERÁRIA

Ao trazer um contexto em análise como um território em estudo, o conceito que

fundamenta a reflexão está marcado na ideia de territorialidade, em que há o

reconhecimento de vidas numa relação social, política e histórica, na qual se tem o

desenvolvimento por parte dos sujeitos do sentimento de pertencimento, assim, como

apresentou Milton Santos que “por território entende-se geralmente a extensão

apropriada e usada. Mas o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de

pertencer àquilo que nos pertence”. (SANTOS, 2011, p.17).

Com essa compreensão de território em convivência humana, a análise de

patrimônio nesse trabalho, se faz sob o ângulo histórico-sócio-político.

(WANDERLEY, 2010, p.26). Nesse sentido tem-se uma observação de um contexto

urbano na região do ABC, um local que tem um percurso histórico e nos tempos

atuais passa por grandes reorganizações políticas e produtivas, evidenciando rápidas

transformações.

Essa realidade não é um fato isolado, mas reflete um processo de organização

de vida urbana, que em análise cosmopolitana, passou por contextos históricos onde

grupos sociais, com forte poder político, marcaram um perfil cultural hegemônico que

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deixou marcos para evidenciar suas memórias, afirmando suas representações por

patrimônios históricos.

O modelo de desenvolvimento de São Bernardo do Campo não recua da

contextualização internacional, em referência ao pensamento cientifico, político,

histórico de patrimônio cultural, visto que nesse território teve uma construção de vida

e de memória pautada por um perfil de desenvolvimento, diferenciando espaço central

de produção e contexto periférico. Essa organização produtiva pautou a organização

de vida das pessoas e conforme a acumulação de riqueza tem-se as representações de

grupos em patrimônio material e imaterial.

Uma cultura compõe-se de significados, ideias e concepções, acompanhando o

dinamismo da própria vida. Esses significados se expressam através de práticas sociais,

através do discurso e das manifestações artísticas de um povo, levanto essas questões em

um estudo de caso. Desta forma, é lançada uma análise sobre o caso específico da cidade

de São Bernardo do Campo, situada na Grande São Paulo, na região do ABC Paulista,

que é considerada o principal polo industrial e automotivo do Brasil e uma referência

internacional no setor.

Nessa parte da pesquisa tem-se a necessidade de fazer um referencial histórico

e de descrição dessa realidade, para que se entenda como foi esse processo e para que

se entenda a força industrial nessa cidade. E dentre os fatores, é possível citar alguns

que envolvem a presença de mão-de-obra no local, a logística proveitosa da

localização da cidade proporcionada pela via de ligação entre São Paulo e Santos,

incentivos fiscais oferecidos pela administração local, entre outras questões. Muitas

empresas multinacionais se favoreceram dessas vantagens e criaram suas sedes em

São Bernardo do Campo. E dentre tantas empresas, se concentraram na cidade as

principais indústrias de automóvel do mundo, além de tantas outras que se relacionam

com a indústria automobilística, como as fábricas de autopeças, transformando a

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cidade, entre as décadas de 1950 e 1970, além de um dos principais polos industriais

do país também a capital nacional do automóvel4.

Ocorre a atração de um imenso contingente migratório para a cidade, que passa

a servir de mão-de-obra para essas indústrias. Há um acelerado processo de

crescimento urbano que transforma essa localidade que antes era uma pequena e

bucólica cidade no início do século XX para uma metrópole, visível em seu

crescimento populacional, que passa de 29 mil habitantes em 1950, para 425 mil em

1980, sendo mais da metade (292 mil) imigrantes.

Novos aglomerados são criados em lugares que antes eram pacatos núcleos

coloniais. Sítios, chácaras e um cenário de uma cidade rural vão sendo transformados

por uma ocupação urbana, tanto de forma regulamentada ou não, por casas e

ocupações Como resultado da expansão populacional, as chácaras e a paisagem

bucólica passou a dar lugar a novos loteamentos urbanos, regulares ou irregulares, e o

crescimento populacional é rápido e irreversível.

Junto com essa imensa transformação de cenário da cidade, resultado da ação

direta desse crescimento de poder industrial, surge um novo sindicalismo, que se

mostra extremamente organizado e com imensa força de ação pela reivindicação, que

transforma a cidade em um referencial nacional, para, em meio a momentos de crises

econômicas, servir de cenário a um dos mais belos exemplos de movimento grevista

que já ocorreu.

Foi em uma manhã de maio de 1978, que mais de 2.500 trabalhadores da Saab-

Scania do Brasil entraram para trabalhar, bateram seus cartões de ponto, vestiram seus

habituais macacões, ocuparam seus postos de trabalho e diante das máquinas que

permaneceram desligadas, cruzaram seus braços dando início a uma greve branca que

veio como uma afronta, tanto à indústria metalúrgica como também ao governo

4 No final da década de 1970, a Região do ABC representava cerca de 80% da produção nacional de veículos.

Além da General Motors, que já estava no ABC desde o final da década de 1920 (montando veículos que

chegavam desmontados pelo porto), dez montadoras instalaram fábricas na Região do ABC entre meados da

década de 1950 e final da década de 1960: Willys Overland (1954, sendo em 1969 adquirida pela Ford),

Mercedes-Benz (1956), Volkswagen (1957), Simca (1958), depois adquirida em 1969 pela Chrysler que, por sua

vez, foi comprada pela Volkswagem em 1981, International Harvester (1959), vendida à Chrysler em 1966,

Karmann-Guia (1960), Scania Vabis (1962) e Toyota (1962). (CONCEIÇÃO, 2008, p.72)

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militar vigente. Uma atitude que deu início a uma história de lutas, com vitórias e

derrotas, mas com o reconhecimento de todo um país e do mundo.

Foi uma greve que ocorreu de forma a surpreender, comparada com o histórico

de lutas trabalhistas até então, já que, de forma inesperada, os trabalhadores ocuparam

as dependências internas da fábrica, inabilitando os instrumentos de repressão, que

não puderam agir para conter as ações grevistas. A própria diretoria da fábrica não

soube como reagir ao ato de luta. A greve branca veio como uma elaborada

engenharia de ações para que pudesse concretizar de forma eficaz as ações de

mobilização.

Essa elaboração é fruto do “novo sindicalismo”, que passa a dar uma maior

representação e autonomia aos líderes operários, agrega aos movimentos lideranças de

movimentos sociais, sendo muitas ligadas aos movimentos operários católicos.

Também é característica dessa nova forma de organização sindical, discursos e

manifestações que faziam um atrelamento entre as condições vividas pelos operários

em suas realidades na fábrica, com a situação econômica e social que o país vivia.

Essa formação para a realidade e que contestava as situações limites vividas pelos

trabalhadores, servia como forma de criar uma maior consciência crítica diante da

causa grevista. Isso foi possível graças à reestruturação das comissões de fábrica e da

organização de um sistema de comunicação próprio.

Emir Sader (1988) destaca a autonomia com uma das mais importantes

características desse novo modo de sindicalismo, surgido ao final da década de 1970.

Novo sindicalismo, que se pretendeu independente do Estado e dos partidos,

eram os “novos movimentos de bairro”, que se constituíram num processo de

auto-organização, reivindicando direitos e não trocando favores como os do

passado; era o surgimento de uma nova sociabilidade em ações comunitárias

onde a sociabilidade e autoajuda se contrapunham aos valores da sociedade,

inclusive, eram os novos movimentos sociais que politizavam espaços antes

silenciados na esfera privada. (SADER, 1988, p.35-36).

Era uma nova forma de agir de um sindicato, que se pauta em um modelo

sindical livre e não mais mantida uma estrutura sindical atrelada. Como ressalta Sader

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(1988, p. 167) “organizações partidárias foram debilitando cada grupo e deixando

sempre resíduos de militantes que não aderiam a nenhuma das facções”; uma forma

de organização que se desliga e cria uma maior independência com relação ao Estado

e um movimento de lutas desvinculado aos partidos políticos, principalmente o PCB

(Partido Comunista Brasileiro), que tradicionalmente sempre esteve envolvido com as

lutas dos trabalhadores.

A partir dessa primeira greve, que lutava com o objetivo de negociar melhores

condições salariais, da necessidade de serem reconhecidas as comissões de fábrica,

pela garantia na manutenção dos empregos, e também, ou até mais ainda, pelo direito

a liberdade de expressão, negociação e reinvindicação, sucederam-se outras nos anos

seguintes que sempre tiveram uma repercussão nacional por meio dos órgãos de

imprensa, das forças do governo e da opinião pública. Elas influenciaram ações

também em outros setores produtivos, fazendo com que trabalhadores de outras

categorias também se organizassem nesse novo modelo de luta.

No ano de 1980, muitos sindicalistas e representantes da sociedade civil, de

movimentos populares e intelectuais foram responsáveis pela fundação do Partido dos

Trabalhadores, com a vontade de fazer chegar ao poder um governo representativo da

classe trabalhadora.

Não ousaria afirmar que o país São Bernardo possa anexar o país Brasil. Mas

cabem dúvidas de que o tempo tende a tornar o Brasil mais parecido com São

Bernardo. (CARTA, 1981).

São Bernardo do Campo, com a década de 1990, sofreu com as consequências

das políticas neoliberais do mercado internacional. Em consequência disso, o setor

industrial, tão importante para a economia local, passou por transformações relevantes

tanto em sua organização, como em seus processos produtivos, além da reestruturação

do próprio mercado de trabalho. Esse setor veio a perder um importante espaço

abrindo a economia da cidade a alternativas setoriais, como o de serviços, além da

crescente realidade do mercado informal.

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As heranças culturais que são guardadas do período de força industrial e da

ação ativa dos metalúrgicos são representadas por meio de ações específicas e de bens

materiais nos tempos atuais do que sobrou desse período específico de crescimento e

ápice da indústria, e a necessidade de sua valorização é também a necessidade de sua

preservação como material e imaterial.

Nessa condição histórica, em que as diferentes classes sociais estiveram

presentes, São Bernardo do Campo ainda sente a necessidade de dar visibilidade a

uma classe operária por meio de suas histórias de luta e de construção de suas

conquistas, o que é constatado por seu orgulho de fazer parte dessa categoria de

trabalhadores.

Uma cidade em que as expressões dessa classe de trabalhadores que se

apresenta em todo o território, não há de ordem oficial o reconhecimento das suas

forças de lutas e resistências. Isso não significa que as comunidades não guardam seus

patrimônios culturais, em que por forças de expressões, sem reconhecimentos oficiais,

não determinam suas produções como patrimônios culturais comunitários.

Em trajetos de grande circulação, os patrimônios comunitários vão cedendo

seus espaços às grandes construções e chamadas dos interesses econômicos. Essa

situação é fruto da ausência de mais espaços de reflexões sobre a importância das

memórias de diferentes povos. Em análise geral, essa leitura de poucos espaços com

representações sociais diversas é fruto de uma história que tentou preservar um

processo imigratório de italianos, negando assim, a memórias dos diferentes povos

que vem constituindo essa cidade.

Com a leitura de contextualização, São Bernardo do Campo passa por tempos

diferenciados, em que por condição de resistências existem diálogos, perspectivas e

indicativos para evocar as memórias de uma cidade de muitos sujeitos e uma

identidade que se sente necessária a se consolidar.

Com esse breve histórico é inegável a relação direta da formação da cidade e

do que ela é na contemporaneidade com seus trabalhadores. São Bernardo do Campo

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é uma cidade operária. É nela que, nos tempos mais sombrios da história recente do

Brasil, se fez ecoar a voz de milhões de trabalhadores que questionavam suas

condições de trabalho e de vida.

Como pode uma cidade com uma relevante memória industrial não ser

representada por meio de seus bens tombados? Como é possível sua grande população

metalúrgica não se identificar com seus espaços de memória? De que forma, o

Conselho Municipal que trata do Patrimônio Cultural, se posiciona e age diante dessa

fatia pequena de representação?

2.2 ORGÃOS DE PRESERVAÇÃO E SUAS REPRESENTAÇÕES

COMPAHC – SÃO BERNARDO DO CAMPO

Na cidade de São Bernardo do Campo, é indispensável conhecer a história e o

trabalho realizado pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de São

Bernardo do Campo (COMPAHC-SBC), órgão que presta assessoria aos mais

diversos assuntos que venham a se relacionar com a valorização do patrimônio

cultural, sua proteção e sua preservação.

Por resultados de uma série de debates que se realizavam no ABC Paulista

diante do tema Patrimônio Histórico Cultural, e após diversos estudos e debates, esse

conselho é então criado em 1984 por meio da Lei Municipal 2.608, com seu vínculo à

Secretaria de Cultura.. Seu primeiro presidente do Conselho foi Enrique Ricardo

Lewandowski, que teve participação ativa em todo o projeto de instauração.

Dentre os assuntos tratados pelos conselheiros municipais para o Patrimônio

Cultural, estão sugestões e realizações de tombamentos, consultoria de possibilidades

de ações de tombamento, emissões de pareceres no que se refere à demolição e

construção, entre outras ações que tratem de interesses diante de bens em potencial,

materiais e imateriais da cidade.

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Esse conselho é composto por um colegiado de vinte representantes, sendo

metade pertencente à administração pública municipal, representada por várias

Secretarias e a outra metade composta por integrantes da sociedade civil5.

Voltado ao Patrimônio Cultural da cidade de São Bernardo do Campo, esse

Conselho vem em um constante trabalho de debates baseados em diversas questões

ligadas à preservação e conservação. Para que isso se efetive, ele instituiu sua

subdivisão em grupos técnicos com o objetivo de focar em estudos e pesquisas, além

de dinamizar questões de pareceres técnicos, tendo em vista uma forma de valorizar e

fortalecer os trabalhos do grupo de conselheiros que formam esses eixos. Eles são os

seguintes:

a) Grupo Técnico de Vistoria;

b) Grupo Técnico de Assuntos Jurídicos;

c) Grupo Técnico de Arquitetura;

d) Grupo Técnico de História;

e) Grupo Técnico de Educação;

f) Grupo Técnico de Área Envoltória;

g) Grupo Técnico de Meio Ambiente;

De forma efetiva, essa ação é muito significativa para que os estudos para a

preservação sejam dinamizados, já que serve de parâmetros de identificação, estudos e

procedimentos para que se realize os tombamentos de lugares importantes para

descrever a história da cidade.

5 Representantes da Prefeitura: Secretaria de Educação; Secretaria de Assuntos Jurídicos; Secretaria de Obras;

Secretaria de Planejamento e Tecnologia da Informação; Secretaria de Desenvolvimento Econômico e Turismo;

Secretaria de Habitação e Meio Ambiente; Secretaria de Esportes; Secretaria de Serviços Urbanos; Secretaria de

Cultura - Seção de Memória e Patrimônio Histórico e Cultural; Representantes da Sociedade Civil: Ordem dos

Advogados do Brasil - 39ª Subsecção de São Bernardo do Campo; Universidade Metodista de São Paulo -

UMESP; Diretoria de Ensino - Região de São Bernardo do Campo; Associação dos Engenheiros e Arquitetos de

São Bernardo do Campo; Instituto do Patrimônio do ABC; Núcleo de Estudos, Desenvolvimento e Pesquisa

Científica e Jurídica sobre Meio Ambiente; Associação dos Artistas e Artesãos de São Bernardo do Campo;

GIPEM - Grupo Independente de Pesquisadores da Memória do Grande ABC; Terra Viva - Movimento de

Resistência Ecológica de São Bernardo do Campo; Instituto Histórico e Geográfico São Paulo; Historiador;

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Mas é importante se ressaltar que não é somente por meio de leis e ações dos

órgãos públicos que se faz a construção da memória de uma comunidade. Isso só se

concretiza por meio de uma apropriação de seus sujeitos desses bens, quando esses

lugares passam a fazer parte da vida social de forma relevante e efetiva. O que

também não deixa de ser uma preocupação do COMPAHC-SBC nesse sentido, sendo

que o próprio Conselho debate essa questão, chegando a produzir um documento com

as premissas essenciais para a sua atuação:

a) ampliar o conceito de patrimônio para além dos bens de caráter monumental,

englobando também, aqueles que são significativos e representativos da

memória dos diversos grupos sociais;

b) considerar que a visão contemporânea de patrimônio cultural engloba,

também, os bens naturais, entendidos como objeto de ação cultural;

c) levar em conta a relação afetiva da comunidade com os bens, o que implica

em reconhecer valor naquilo que se apresenta como o típico dentro dos diversos

grupos sociais;

d) reconhecer a pluralidade existente na memória coletiva, composta por

diferentes manifestações e relações dos grupos sociais;

e) considerar a importância das manifestações culturais, das técnicas e saberes

que compõem o chamado patrimônio imaterial, para o qual cabe uma atuação

diferenciada de tombamento;

f) garantir maior representatividade da sociedade civil nas decisões relativas à

proteção do patrimônio, através da ampliação de sua participação nas

discussões;

g) considerar o patrimônio como um direito social fundamental, definido pela

Constituição Brasileira, artigo 216, e que, portanto, implica em interesses

coletivos superiores aos interesses individuais e na garantia destes por parte do

Poder Público;

h) permitir a continuidade no trabalho de preservação, independente de

mudanças político-administrativas que possam inviabilizar a garantia desse

direito social fundamental;

i) promover a realização dos mais diversos meios e estratégias para a

preservação, sejam eles: a identificação dos bens e manifestações de valor

cultural, a proteção física destes bens através de fiscalização e obras de restauro

e conservação, a proteção legal através da implementação de instrumentos

legais de proteção destes bens e a divulgação para a garantia efetiva de inserção

do patrimônio na vida da cidade. (SÃO BERNARDO DO CAMPO, 2006).

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Partindo dessas premissas e retomada a leitura dos bens preservados e

tombados, observa-se que São Bernardo do Campo possui uma lista de 21 bens6 que

atualmente, são estimados como patrimônios da cidade. Cada um desses bens traz

características relevantes conforme a sua relação com a cidade, como os pavilhões e

estúdios da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz, Cidade da Criança,

Chácara Silvestre, 6 igrejas (sendo 5 católicas e 1 presbiteriana), Edifício Alfa da

Universidade Metodista de São Paulo, entre outros.

Nessa questão cabe uma observação que nos leva ao questionamento, tendo em

vista que os locais tombados como patrimônios culturais pelo Conselho de Patrimônio

de São Bernardo não representam a formação da cidade, com base na sua

industrialização e na memória operária, sendo que são apenas dois bens que

representam esse patrimônio industrial: Torre da Elni e a Chaminé da Avenida Pery

Ronchetti.

Enquanto caracterização desses bens patrimoniais ressalva-se o perfil de cada

um:

Torre da Elni – Uma torre de sustentação da caixa d’água

da Sociedade Elni de Produtos Manufaturados Ltda., foi construída na

década de 1940. Naquele período, a Elni representou para a cidade, com

seus equipamento e instalações avançadas, uma inovação no setor têxtil,

sendo essa uma atividade muito importante para a cidade, juntamente

com o setor moveleiro. Essa torre é parte de uma estação de tratamento

de água, possuindo ela galerias por onde circulava a água que era

6 São os 21 bens tombados pelo Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de São Bernardo do

Campo: Pavilhões e estúdios da antiga Companhia Cinematográfica Vera Cruz; A antiga Escola Municipal

Santa Terezinha; Câmara de Cultura Antonino Assumpção; Torre da Elni; Árvore dos Carvoeiros; Edifício Alfa

da Universidade Metodista de São Paulo; Cidade da Criança; Obelisco do Soldado Constitucionalista; Painel da

Fonte de Água no Bairro Baeta Neves; Chácara Silvestre; Casa do Comissário do Café; Chaminé da Avenida

Pery Ronchetti; Capela de Nossa Senhora da Boa Viagem; Capela Santo Antonio; Capela São Bartolomeu;

Igreja Santa Maria; Capela Santa Filomena; Igreja Presbiteriana Independente; Chácara Lauro Gomes; Jatobá

da Vergueiro; Painel Memórias de uma Cidade, do artista plástico Adélio Sarro.

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acrescida de sulfato de alumínio, para que servisse como forma de

tratamento no alvejamento dos fios utilizado na produção dos tecidos.

Chaminé da Avenida Pery Ronchetti – Uma construção da

década de 1950, por uma indústria siderúrgica - Usina Metalúrgica

Itaetê S.A. -, que nem chegou a iniciar suas atividades. Mas sua

construção se utilizou de uma técnica de obriga que os tijolos se

disponham no formato trapezoidal. É esse bem uma edificação singular

a todo o processo de industrialização da cidade, sendo que ele é também

um referencial a paisagem urbana da cidade.

O cenário econômico e as consideráveis transformações do setor industrial na

cidade são refletidas nos números de evasão desse setor na cidade e em consequência

disso uma significativa mudança em sua paisagem e em seu modo de convívio social.

Uma situação que exige uma reflexão no que se refere à memória e seus

espações, tanto do setor industrial como do trabalhador e suas ações, muito

importantes para escrever a construção da cidade, e dessa forma também, torna-se

necessário até para se figurar possíveis possibilidades para o futuro econômico e

social de São Bernardo do Campo. O patrimônio cultural e mais especificamente o

Patrimônio Industrial e a memória do trabalhador e do trabalho são fundamentais para

se refletir a formação histórica e cultural da cidade.

Mas é necessário definirmos o que vem a ser Patrimônio Industrial. Foi em

julho de 2003, em Nizhny Tagil, Rússia, realizada a XII Conferência Internacional do

TICCIH (The International Committee for the Conservation of the Industrial

Heritage). Nela foi elaborada e aprovada a Carta de Nizhny Tagil Sobre Patrimônio

Industrial, que se refere e passa a definir a arqueologia industrial, o patrimônio

industrial, bem como os valores, a proteção legal, os meios de manutenção e a

conservação desse patrimônio. Deste modo, ficou definido da seguinte forma o

patrimônio industrial:

O patrimônio industrial compreende os vestígios da cultura industrial que

possuem valor histórico, tecnológico, social, arquitetônico ou científico. Estes

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vestígios englobam edifícios e maquinaria, oficinas, fábricas, minas e locais de

tratamento e de refinação, entrepostos e armazéns, centros de produção,

transmissão e utilização de energia, meios de transporte e todas as suas

estruturas e infraestruturas, assim como os locais onde se desenvolveram

atividades sociais relacionadas com a indústria, tais como habitações, locais de

culto ou de educação. (Carta de Nizhny Tagil, 2003, p.3)

Um questionamento referente ao patrimônio industrial, sendo até mesmo um

debate muito recente no Brasil, faz menção à responsabilidade diante de um dever de

memória, diante de processo constante de transformações ou destruição de vestígios

desses bens que potencialmente deveriam ser preservados como lugares de memória,

no âmbito de seus espaços, como também de seus equipamentos e ferramentas que

trazem as informações sobre o processo de mudanças que ocorreram em um processo

histórico.

Por mais que, em muitos casos, possa parecer menos importante e não havendo

reconhecimento por parte da sociedade, os espaços urbanos ainda trazem vestígios de

locais que com o tempo foram tomados por mudanças constantes ou até mesmo o seu

desaparecimento, e nesse caso, se refere aos locais de trabalho e de produção, como

fábricas com galpões e prédios abandonados, vias e instalações do setor ferroviário,

embarcações ou até mesmo somente muros ou fachadas do que um dia já foi um

imponente espaço fabril.

Há nisso, conforme concepção já em desuso referente a patrimônio, pouca ou

nenhuma beleza ou referencial artístico, sendo apenas resquícios de processos de

produção, arte de fazer que já não se efetiva ou até mesmo espaços de encontros e

conflitos das relações humanas. Lugares que são referencias importantes para a

memória de uma sociedade e carregada de história e representações que vão muito

além do que já foi funcional.

Ter uma noção de que um espaço passa a ser um lugar de memória o que antes

tinha como finalidade apenas a ação de trabalho de um grupo social e uma

determinada categoria. E a busca por transformar esse lugar em seus sentidos tão

ambíguo, que causa estranhamento nessa possibilidade, diante de interesses

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comerciais e financeiros que consideram esses espaços mais lucrativos diante da

especulação imobiliária. Pode-se apresentar diversos casos de indústrias ou regiões

industriais que depois de abandonadas passaram por um processo de

patrimonialização e tiverem seus cenários revitalizados, e o retorno de ordem

financeira foi considerável, tanto para o proprietários desses espaços como para a

comunidade local ou para o Governo. Não sendo apenas, um espaço que se destine

apenas a espaços culturais.

Transformar esses espaços de trabalho em espaço de memória, dando a eles um

caráter de funcionalidade que vai além do abandono em que se encontram, é um

desafio de extrema importância para garantir uma significação e uma aproximação

pela identidade que cerca toda uma comunidade, que um dia já teve nesse ambiente

um lugar de trabalho grande agitação e produção.

Ao tratar de patrimônio industrial, importante relaciona-los aos vestígios do

processo produtivo, material ou imaterial, de atividades que nesses lugares, um dia

ocorreram em um processo de transformação e que venha a explicar a evolução das

técnicas, das máquinas e das relações de trabalho, das edificações. Também se pode

citar que faz parte do objetivo de proteção os modelos empresariais, e formas de

produção ou até mesmo as matrizes de caráter tecnológico que em um ciclo de

existência, vieram para auxiliar na forma de trabalhar, mas caíram em desuso

conforme foram surgindo novas formas.

São os testemunhos de uma ação para o trabalho que necessita de um

tratamento mais cuidadoso de preservação de sua memória E patrimônio, por

assumirem significância à identidade de um grupo social, ao assumir uma reflexão

sobre esse tema, deve se atentar à rápida necessidade de ações a fim de que não se

perca cada vez mais sinais do que já foi um modo de trabalho, seus espaços e suas

relações.

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GIPEM – GRUPO INDEPENDENTE DE PESQUISADORES DA

MEMÓRIA

A partir de uma inciativa da Sociedade Civil da região do ABC Paulista em

prol do Patrimônio Histórico e Artístico, surge em 1987 o GIPEM (Grupo

Independente de Pesquisadores da Memória). Diversos moradores da região e não

necessariamente profissionais ligados à área de memória e patrimônio, após cursos e

debates oferecidos pela prefeitura de Santo André para a área de Patrimônio Cultural,

uniram-se para concretizarem ações efetivas voltadas ao tema.

Dentre os integrantes que participaram de sua formação, estão acadêmicos

como Luiz Roberto Alves, Alexandre Takara e José de Souza Martins, trabalhadores

metalúrgicos como Philadelpho Braz, Paschoalino Assumpção e José Duda Costa, o

jornalista Ademir Médici e figuras políticas como Enrique Ricardo Lewandowski e

Celso Daniel, além de outros tão importantes ativistas, que já nos primeiros encontros

compunham um grupo de mais de 50 pessoas.

Eles tinham reuniões periódicas, onde traçavam ações de preservacionismo na

região das sete cidades do ABC Paulista, incluindo São Bernardo do Campo. Era um

modo de exigir do poder público, atitudes referentes à preservação de pontos

significativos da memória local.

Já no ano seguinte, o grupo passa a adotar a atual nomenclatura em que se

deixa claro que o grupo tem uma ação independente das ações de qualquer entidade,

empresa ou órgão público. E não somente isso, esse grupo independente de memória

não é registrado de forma oficial em nenhum registro de pessoa jurídica. Não possui

sede, seus encontros se realizam nos mais diversos espaços culturais da região. Nem

possui uma diretoria fixa e eleita por seus integrantes.

Seus encontros ocorrem com definição de ações e pautas para a realização de

cursos, seminários, pesquisas, mas de forma que a iniciativa e decisões se

fundamentam na coletividade e pelo interesse mútuo pela preservação da memória.

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Tanto é que, por iniciativa do GIPEM, e com o apoio de órgãos públicos e

entidades, que efetivaram a realização na região dos “Congressos de História do

Grande ABC”. O primeiro congresso ocorreu em Santo André em 1990 e ele ocorre a

cada dois anos de forma que as sedes são as sete cidades da região, determinadas de

forma rotativa. São Bernardo do Campo já organizou e realizou esse evento em duas

oportunidades7.

Nesses congressos, são debatidas ideias, apresentadas estudos e pesquisas e

tornaram-se espaço de reflexão sobre a história e a memória da região, sob os mais

diversos temas. São nesses congressos também que partem ações práticas como já

ocorreu, por iniciativa do próprio GIPEM, que em 1992 fez o levantamento de verbas,

por meio de pedágio, para a realização de restauro do prédio que foi a primeira sede

da Prefeitura e da Câmara Municipal de São Bernardo do Campo e que é um bem

tombado pelo COMPAHC- SBC.

Esse grupo de pessoas é um exemplo de luta pela memória e pelo patrimônio,

chegando com suas iniciativas, a ocupar espaços dentro de órgãos oficiais para levar

suas ideias e anseios para as agendas das políticas municipais, inclusive em São

Bernardo do Campo, quando a partir de 1993 passou a compor o COMPAHC-SBC,

como um significativo representante da sociedade civil.

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO DO ABC

O IPABC é uma organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP)

de direito privado, no qual suas ações englobam além de São Bernardo do Campo,

toda a região do ABC.

Ele surgiu, até com a participação de alguns integrantes do GIPEM, dos

constantes debates realizados nos Congressos de História do ABC, sobre questões e

7 São Bernardo do Campo realizou por duas vezes o Congresso de História do Grande ABC, sendo em 1992 o

segundo congresso com o tema “Caminhos e Rumos: índios, escravos e operários” e em 2007 o nono congresso

com o tema “A classe operária depois do paraíso”.

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problemas que envolviam tombamento, restauro e manutenção dos bens

patrimonializados da região.

Sua fundação ocorreu em 2002, na sede da Associação Comercial de Santo

André (ACISA) e tem como objetivo conciliar desenvolvimento, através de atividades

produtivas em conjunto com a preservação dos patrimônios culturais do ABC

Paulista. Uma iniciativa que visa à sustentabilidade com o desenvolvimento da

ciência, tecnologia e desenvolvimento econômico em função das questões sociais e

ambientais.

Suas principais atividades são a preservação e conservação dos bens tombados

e também de bens que ainda não tiveram seus tombamentos efetivados. Também a

qualificação de mão de obra especializada para a realização desses trabalhos, que

nesse caso pode-se citar o projeto “Reviver o Patrimônio” que teve início em 2008 e

que proporciona a formação de jovens trabalhadores para o trabalho com o restauro e

manutenção do patrimônio cultural.

Esse instituto realizou um trabalho ativo em São Bernardo do Campo,

juntamente com outros representantes da sociedade civil e o próprio COMPAHC-

SBC, para que o poder público pudesse tomar providências emergenciais para a

preservação da Chácara Silvestre. E desta forma, também integra o Conselho

Municipal de Patrimônio como um representante da Sociedade Civil.

Não se pode deixar de fazer a relação importante e fundamental entre

patrimônio Cultural e Educação. Problematizar a distância entre a população e os

Patrimônios preservados pede também que sejam refletidos os instrumentos e métodos

para se resolver, mesmo que não entendendo ser um processo lento, essa questão.

Dessa forma, é necessário ver a ação prática em que se deve agir sobre esse debate. E

isso ocorre dentro da escola e por meio dela.

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2.3 EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E EDUCAÇÃO

O trabalho com o Patrimônio Cultural dentro das escolas é extremamente

necessário para o fortalecimento das relações dos cidadãos com suas heranças

culturais, e assim estabelecer um vínculo com estes bens, com a responsabilidade pela

valorização e preservação do Patrimônio, e desta forma também fortalecer sua prática

para a cidadania.

Desta forma, fica a pergunta principal desse trabalho: como a Educação

Patrimonial pode aproximar a população dos seus espaços e se fazer pertencente a

esses bens? O espírito crítico é trabalhado na Educação Patrimonial a partir do

momento que começa a investigar o Patrimônio Cultural?

No Brasil é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)

que cuida do Patrimônio Cultural, tendo ele surgido como secretaria durante o

governo Vargas, é um órgão que tem uma atuação em concretizar o reconhecimento

pela sociedade de seu Patrimônio Cultural e tem como instrumento para esse fim as

ações educacionais. Desta forma, elaboraram um Guia Básico de Educação

Patrimonial, contendo diversas propostas para o desenvolvimento de ações que

auxiliem e contribuam para o reconhecimento das pessoas referente às questões do

Patrimônio Cultural.

Assim, é necessário discutir o conceito de Educação Patrimonial e observar

subsídios para a implementação de ações de reconhecimento do Patrimônio Cultural

nos anos iniciais da Educação Básica. Só em 1983 que se iniciam de forma concreta

ações de Educação Patrimonial, no qual podemos citar, como uma das primeiras ações

no Brasil, o I Seminário de Educação Patrimonial, em que se desenvolveu uma

metodologia para o trabalho educacional em museus e monumentos históricos,

podendo ser encontrada no “Guia Básico de Educação Patrimonial”. (HORTA;

GRUNBERG; MONTEIRO, 2006). A Educação Patrimonial é:

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(...) um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no

Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento

individual e coletivo. A partir da experiência e do contato com as evidências e

manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos, sentidos e

significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar crianças e adultos

a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua herança

cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando a

geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de

criação cultural. (HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO,2006, p. 6).

Desta forma, a Educação Patrimonial sendo um elemento mediador, possibilita

a interpretação dos bens culturais, tornando-se um instrumento importante de

promoção e vivência para a cidadania e como consequência a ideia pautada na busca,

na valorização e preservação do Patrimônio. A importância da ação educativa que

envolve a Educação Patrimonial como instrumento fundamental, que faz estabelecer

entre os lugares de trabalho, a memória do trabalhador, a educação e o processo de

patrimonialização, seja articulada para que não se perca o objetivo para São Bernardo

do Campo, a função e seus interesses de serem preservados e como devem ser

preservados, devendo se refletir a cidade como um todo e todo o processo histórico

que é representado por sua formação, seu processo de industrialização e sua

transformação para a realidade atual.

A metodologia observada sobre Educação Patrimonial aplica-se nos mais

diversos âmbitos, mas neste trabalho o enfoque será em escolas, já que este tema tem

como característica a interdisciplinaridade, com o objetivo de dar o valor à inserção

deste nos Currículos escolares como um tema transversal.

Com base nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)8, podem-se analisar

suas propostas para o trabalho com os temas transversais e as variadas formas de se

desenvolver a interdisciplinaridade.

8 Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN - são as referências de qualidade para os Ensinos Fundamental e

Médio do Brasil, sendo eles elaborados pela Federação e instituídos no parecer da Câmara de Educação Básica

do Conselho Nacional de Educação número 04/98 de 29 de janeiro de 1998. Serve como subsídios para a

elaboração dos Currículos, com base em um projeto pedagógico na busca da cidadania dos educandos em uma

escola em que se aprende mais e melhor. São eles que criam novos laços entre ensino e sociedade e apresentam

ideias do "que se quer ensinar", "como se quer ensinar" e "para que ensinar". Não são regras, mas referências

para a transformação de objetivos, conteúdo e didática do ensino.

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O processo educativo, em qualquer área de ensino/aprendizagem, tem como

objetivo levar os alunos a utilizarem suas capacidades intelectuais para a aquisição e o

uso de conceitos e habilidades, na prática, em sua vida diária e no próprio processo

educacional. Esse instrumento de educação se utiliza de processos de cultura para

causar uma provocação no educando no que permeia sua realidade e situações limites,

tanto individual como coletivamente. Em seu entorno, e por meio de um olhar mais

crítico de seu espaço em que se trabalha um olhar de descobertas e de

questionamentos como forma de ele se refletir nessas questões como um agente ativo

de sua realidade.

Desta forma, a Educação Patrimonial em suas formas de mediação, possibilita

a interpretação dos bens culturais, tornando-se um instrumento importante de que a

participação popular diante do patrimônio cultural se efetive, promovendo a

cidadania.

A Educação Patrimonial possui grande importância na aproximação das

camadas populares do debate sobre patrimônio e identidade, ao propor ações de

aprendizado para o tema, gerando um maior interesse no debate de questões

significativas tanto para o indivíduo como para sua comunidade. O patrimônio

artístico, histórico e ambiental, material ou imaterial são fontes de observação e

debate em que o aluno começa a identificar nesses elementos seus significados.

Deve-se, desta forma, utilizar a educação patrimonial como forma de construir

os significados dos bens diante do que eles representam para a sociedade. Mais do que

algo imposto por uma elite, é no patrimônio observado que se deve investir um novo

trabalho cultural, pelo qual esse bem adquire novo uso e novas significações.

Ao se pensar em preservação do patrimônio cultural é necessário,

primeiramente, conhecer e se identificar com esse patrimônio, sendo importantes as

ações educativas para esse fim. Serão os alunos criando e recriando esses significados

e será o educador um elemento de grande importância no debate da importância da

preservação, tentando aproximar a população dessa questão e sendo uma forma de

rever a atuação social dos que sempre estiveram distante do tema.

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Em busca dessa educação, com o objetivo de se repensar a participação na

sociedade, que Duarte escreve:

Repensar as formas de obtenção do conhecimento sensível e mesmo o

entendimento do que seja ele, constitui um desafio da contemporaneidade,

imersa nessa crise e cujo substrato parece ser mesmo o ato humano de conhecer

o mundo e, a partir daí nele atuar. (DUARTE, 2001, p57).

As escolas podem e devem participar deste processo de apropriação, através de

visitas a museus, arquivos e bibliotecas públicas. Em muitos casos, estas práticas

podem se tornar difíceis, mesmo que a cidade possua importância histórica, pela

existência de um rico acervo, mas conta com um precário estado de conservação. Isso

decorrente a falta de políticas públicas efetivas de preservação. Além disso, também

ocorrem situações de cidades que não contam com nenhum museu, um arquivo

público ou uma biblioteca.

Ou então, Secretarias de Educação que não desenvolvem ações efetivas

educacionais que envolvam toda a comunidade escolar. Mas existem, no caso da falta

de ferramentas para esse fim, outras possibilidades importantes que podem ser

trabalhadas, como, por exemplo, utilizar objetos que potencialmente contribuam para

o debate sobre patrimônio em sala de aula, ou nos locais onde estão localizados, como

forma de debate ou desenvolvimento dos Currículos, muito além de uma simples

ilustração das aulas. Na maioria das ações, são trabalhados com objetos culturais da

própria comunidade com o objetivo do patrimônio continuar vivo, tanto na criação de

identidade como nas transformações mentais e expressivas. Mas também até mesmo

dentro da própria casa que carrega toda uma história familiar. Ou seja, pretende-se

trabalhar com os legados deixados no presente, que se referem a uma história,

costumes e culturas de uma região.

A partir da identificação desses bens que compõem esse patrimônio, tanto

individual como coletivo dos cidadãos envolvidos e ligados à comunidade escolar,

ainda de importância local, tombados ou em estudo de tombamento, muitas atividades

deverão ser empreendidas, com o objetivo de descrever, registrar, difundir os valores,

tomar medidas para manter, conservar e restaurar esses tais bens culturais.

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Para a consecução desses objetivos, adota-se a metodologia apresentada pelo

Guia de Educação Patrimonial do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional (Iphan), prevendo quatro etapas:

1. Observação: Identificação do objeto, sua função e significado;

desenvolvimento da percepção visual e simbólica. Exercícios de

percepção visual e sensorial por meio de perguntas,

experimentações, medições, anotações, jogos, etc.

2. Registro: Fixação do conhecimento percebido, aprofundamento da

observação e análise crítica; desenvolvimento da memória e do

pensamento lógico, intuitivo e operacional. Desenhos; descrição

verbal ou escrita; gráfico; fotografias; maquetes; mapas e plantas

baixas.

3. Exploração: Desenvolvimento da capacidade de análise e julgamento

crítico; interpretação das evidências e significados. Análise do

problema; levantamento de hipóteses; discussão; avaliação;

pesquisa em outras fontes como bibliotecas, arquivos, cartórios,

jornais e revistas.

4. Apropriação: Envolvimento afetivo; internalização; desenvolvimento da

capacidade de auto expressão; apropriação; participação criativa;

valorização do bem cultural. Recriação, releitura, dramatização;

interpretação por meio de diferentes formas de expressão como

pintura, escultura, drama, dança, música, poesia, texto, filme e

vídeo.

Esse trabalho é algo complexo numa ação educativa, pois envolve diagnóstico

de perfil dos sujeitos, observando suas relações com as memórias locais, seu

reconhecimento e pertencimento às memórias e territórios e a relação dos patrimônios,

observados como objetos concretos com essa comunidade educativa. Com esse

levantamento que marca sentido e o significado do estudo, tem-se a relação de

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reaproximação do educando com o patrimônio e isso não se faz sem pesquisa, análise

e tratamento de informação em contextualização.

A contextualização em ação de construção favorecerá a aproximação em novas

releituras de vida e significado. Como o processo é educativo as estratégias devem ser

pensadas em diferentes linguagens de leitura e releitura.

Entretanto o trabalho com o Patrimônio Histórico é mais facilmente

compreendido no âmbito da disciplina que mais tem relação com o tema, que é a

História. Trabalhar o Patrimônio, por meio de qualquer outra área do conhecimento,

muitas vezes não é percebido, pelos professores:

A educação patrimonial nada mais é do que uma proposta interdisciplinar de

ensino voltada para questões atinentes ao patrimônio cultural. Compreende

desde a inclusão, nos Currículos escolares de todos os níveis de ensino, de

temáticas ou de conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a

conservação do patrimônio histórico, até a realização de cursos de

aperfeiçoamento e extensão para os educadores e a comunidade em geral, a fim

de lhes propiciar informações acerca do acervo cultural, de forma a habilitá-los

a despertar, nos educandos e na sociedade, o senso de preservação da memória

histórica e o consequente interesse pelo tema. (ORIÁ, 2005).

Outra dificuldade encontrada frequentemente pelos professores é a de pensar

interdisciplinarmente, porque sua aprendizagem ocorreu por meio de um Currículo

extremamente fragmentado. Eles não se sentem aptos ou não tem o hábito de

desenvolverem projetos temáticos, que demandam um complexo trabalho coletivo e

que podem levar a perda da predominância de tarefas e avaliações individualizadas.

Também se deve destacar que os Currículos escolares são consideravelmente

sobrecarregados, com disciplinas que sofrem pela limitação do tempo em sala de aula

e pelas normas oficiais estabelecidas. Os objetos patrimoniais, os monumentos, sítios

e centros históricos, ou o Patrimônio imaterial e natural, devem ser considerados

como recursos educacionais importantes, pois permitem a ultrapassagem dos limites

de cada área do conhecimento, e o aprendizado de habilidades e temas que

constantemente serão tratados na vida dos educandos. Desta forma, podem ser usados

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como motivadores para qualquer área do Currículo ou para reunir áreas aparentemente

distantes no processo ensino/aprendizagem (HORTA, 2004, p. 3).

Maneiras de se trabalhar o conhecimento buscando uma reintegração de

aspectos que ficaram isolados uns dos outros pelo tratamento disciplinar, em uma

relação mantida e importante entre a transversalidade e a interdisciplinaridade. “Com

isso, busca-se conseguir uma visão mais ampla e adequada da realidade, que tantas

vezes aparece fragmentada pelos meios de que dispomos para conhecê-la e não

porque o seja em si mesma” (GARCIA, 2001).

Segundo os PCNs, interdisciplinaridade e transversalidade são:

A interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os diferentes campos de

conhecimento produzido por uma abordagem que não leva em conta a inter-

relação e a influência entre eles – questiona a visão compartimentada

(disciplinar) da realidade sobre qual a escola, tal como é conhecida,

historicamente se constitui. Refere-se, portanto, a uma relação entre disciplinas.

A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática

educativa, uma relação entre aprender na realidade e da realidade de

conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade) e as

questões da vida real (aprender na realidade e da realidade). (MEC/SEF, 1998,

p. 40).

Uma relação importante na prática pedagógica, pois os temas transversais

promovem diante dos vários objetos de conhecimento um modo mais abrangente de

compreensão, como também a percepção na produção de um sujeito e de seu

envolvimento significativo em sua ação. “Por essa mesma via, a transversalidade abre

o espaço para a inclusão de saberes extraescolares, possibilitando a referência a

sistemas de significado construídos na realidade dos alunos” (MEC/SEF, 1998, p. 40).

Acreditamos que alguns assuntos são transversais às diversas disciplinas e o

debate em torno do patrimônio histórico-cultural constitui um deles. Interessa tanto

aos profissionais da educação, das áreas de história, e de geografia e por que não, da

literatura. A química e a biologia não podem ficar de fora. (FIGUEIREDO, 2002, p.

52).

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É importante salientar que os PCNs inovaram ao trazer modos de trabalhar a

transversalidade e a interdisciplinaridade nos Currículos escolares, ressaltando que a

temática da Educação Patrimonial está prevista nos Parâmetros Curriculares

Nacionais para o ensino de História.

Com o estabelecimento dos Parâmetros Curriculares Nacionais, por meio da

Lei Federal número 9394/96, os professores tiveram que repensar suas práticas

pedagógicas. Por isto ressalta-se a importância deste trabalho nas escolas, propondo a

todos os educadores grande importância da temática Educação Patrimonial nos

Currículos escolares como forma de motivação da comunidade escolar nas práticas de

valorização e preservação do Patrimônio Cultural. E deste modo, faz surgir uma

reflexão no que refere à escola, sobre modos e utilidades sobre como e para que

ensinar e aprender.

E deve-se considerar que tão importante quanto às medidas a serem tomas para

a inserção desta temática nos Currículos, prestar atenção na formação dos futuros

educadores, para todas as áreas do conhecimento. Reconhece-se que os professores

formados nas universidades sejam elas públicas ou particulares, têm um preparo

limitado e, em muitos casos, nenhuma formação específica sobre as temáticas

referentes às discussões e reflexões relativas ao Patrimônio (FIGUEIREDO, 2002, p.

52). Desta forma todo um esquema de ações necessita ser posto em prática. Uma delas

é fornecida por Paulo Freire:

(...) a educação ou ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela

alienante transferência de conhecimento, é autentico ato de conhecer, em que os

educandos – também educadores – como consciências ‘intencionadas’ ao

mundo, ou como corpos conscientes, se inserem com os educadores –

educandos também – na busca de novos conhecimentos, como consequência do

ato de reconhecer o conhecimento existente. (FREIRE , 1984, p. 99).

Nesse sentido, o trabalho transversal e interdisciplinar deve ser muito mais

difundido nas práticas pedagógicas. Para se desenvolver um trabalho referente à

Educação Patrimonial é imprescindível que estes dois temas sejam aproveitados,

resultando assim em um debate enriquecedor, numa ação integradora das mais diversas

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áreas do conhecimento, e também de permitir o desenvolvimento de ações tanto na

escola como na comunidade em que se insere. A Educação Patrimonial pode ser

explorada pelo seu potencial em diversas áreas possibilitando aliar a História, as Artes,

a Matemática, a Geografia, a Educação Física, as Ciências, enfim, as mais diversas

áreas do conhecimento. Os professores podem utilizar como peças-chave nas suas aulas

os objetos culturais da comunidade e dos seus vizinhos: as próprias edificações da

escola, as celebrações, as criações artísticas, as crenças, as músicas entre outras formas

de expressão. É fundamental em todas as áreas do ensino a utilização dos objetos

culturais, podendo cada qual explorar e investigar conforme a especificidade de cada

área.

Os professores do século XXI, diferente das gerações anteriores, não podem

mais repetir um programa já pré-estabelecido, reproduzir um Currículo oficial para

todas as escolas do país, sem se preocupar com a realidade de cada lugar. Os

professores desses novos tempos devem selecionar saberes e fazeres que sejam

significativos para suas comunidades.

Desta forma, cada planejamento de ensino é particular, uma reflexão e prática

que deve articular especificidades de um grupo de educandos aos objetivos traçados

pelo professor. E essa prática pode se utilizar de algumas metodologias. José Carlos

Libâneo diz que “em resumo, podemos dizer que os métodos de ensino são as ações

do professor pelas quais se organizam as atividades de ensino e dos alunos para atingir

objetivos do trabalho docente em relação a um conteúdo específico”. (LIBÂNEO,

1990, p.152).

As metodologias de ensino são esquemas de ações que propõem a sequência de

determinadas etapas na execução de uma determinada tarefa. Utilizar uma

metodologia para o planejamento e execução de uma atividade pedagógica não pode

ser entendido como a anulação da criatividade do professor. Antes, significa traduzir

para o campo prático uma sequência lógica de ações previamente pensada e testada.

Desta forma, a Didática também tem seus métodos para atingir seus objetivos, como

qualquer outra ciência.

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Já quando tratado a metodologia para o ensino de História, pode-se discutir a

Educação Patrimonial como possibilidade para esse fim, servindo como proposta de

ensino, enfatizando aspectos que privilegiam a história local. A Educação Patrimonial

pode ser como propõe Paulo Freire, um instrumento-chave para a leitura do mundo e

para a comunicação com o outro.

O ensino de História baseado simplesmente no livro didático serve para

contribuir com o empobrecimento, limitação dessa área do conhecimento e restrição

do conhecimento. Os conteúdos apresentados pelos manuais didáticos não levando em

consideração as particularidades regionais e as especificidades locais. Bittencourt

(2008) adverte que o livro didático é:

(...) um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma

ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstram como textos e

ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos

dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com

os preceitos da sociedade branca burguesa. (BITTENCOURT, 2008, p 72).

A Educação Patrimonial surge como um complemento ou até uma alternativa

ao uso do livro didático, no qual nos permite aprofundar questões da prática do ensino

de história nas salas de aula da Educação Básica.

O educador passa a se utilizar desta prática como forma de fazer, não somente

o reconhecimento do patrimônio cultural local, mas também sua transmissão, além de

uma ação que envolve uma atitude crítica diante da história e da realidade atual da

cidade. A Educação Patrimonial sendo um instrumento que desperta o senso crítico e

a tomada de consciência para a importância da valorização do patrimônio cultural pela

sociedade, como também possibilita contribuir para a construção de uma identidade e

da cidadania. Ao trabalhar com os bens culturais tangíveis aos educandos possibilita a

ampliação das noções de valorização, resgate e preservação dos patrimônios

histórico/culturais locais, de toda comunidade envolvida. (MACHADO; HAIGERT;

POSSEL, 2003, p. 48). Uma educação libertadora que forma para a consciência

histórica, em um processo de apropriação e identificação de sua cultura local servindo,

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fundamentalmente, para que se possa também compreender e transformar a sua

realidade comunitária.

Conforme Machado; Haigert; Possel (ibid., p. 52) é “por meio da valorização e

promoção da cultura local e regional” que a história se torna mais próxima da

realidade dos alunos e nesse contexto o professor deve fazer a ligação entre o saber

escolar e o saber da comunidade. Dessa forma é fundamental que os professores se

utilizem da realidade dos alunos ao trabalharem os conhecimentos de História. E em

consequência tornar o ensino dinâmico e mais interessante, na busca por novas

possibilidades pedagógicas de construção de conhecimentos e de transformação das

condições de vida dos alunos.

Os manuais didáticos padronizam uma transmissão de saberes e pressupõem a

cultura como homogenia, em um processo de aprendizagem que reserva aos alunos

apenas a função de memorizar informações. O aluno não se torna sujeito no processo

ensino e aprendizagem e a escola reforça a ideia que Freire (1987) denominou de

Educação Bancária9, ou seja, a de depositar conteúdos, não tornando a aprendizagem

significativa. Nesse modelo educacional o papel do educador se restringe ao de um

narrador, e o papel dos educandos consiste em memorizar o que está sendo narrado e

reproduzir, repetir. “Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que

os educandos são os depositários e o educador o depositante.” (FREIRE, 1987, p. 33).

Nessa situação, o conhecimento deixa de ser um processo de busca, indagações e

questionamentos.

Daí a importância da Educação Patrimonial que se mostra como uma

possibilidade para a mudança dessa prática, ao fazer o aluno se perceber como sujeito

histórico, em um processo coletivo de constante construção. E ela pode se desenvolver

no ambiente formal de ensino ou informal, e também se adequar a qualquer

9 A concepção bancária distingue a ação do educador em dois momentos, o primeiro o educador em sua

biblioteca adquire os conhecimentos, e no segundo em frente aos educandos narra o resultado de suas pesquisas,

cabendo a estes apenas arquivar o que ouviram ou copiaram. Nesse caso não há conhecimento, os educandos

não são chamados a conhecer, apenas memorizam mecanicamente, recebem de outro algo pronto. Assim, de

forma vertical e antidialógica, a concepção bancária de ensino "educa" para a passividade, para a acriticidade, e

por isso é oposta à educação que pretenda educar para a autonomia. Freire denuncia que a narração e a

dissertação são características marcantes da educação bancária. "Narração ou dissertação que implica num

sujeito - o narrador - e em objetos pacientes, ouvintes - os educandos" (ibid, p. 65).

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patrimônio cultural, “qualquer evidência material ou manifestação da cultura”.

(HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 2006, p.06).

Ao oferecer ao aluno o acesso a métodos, técnicas e práticas concretas que

contribuam para estabelecer relação significativa entre os conceitos abordados e a

realidade, tendo em vista a complexidade de assimilação por meio do abstrato, o

professor que estimula o contato com objetos concretos na construção do

conhecimento permite uma melhor compreensão do tema pelos alunos, que passam a

construir conhecimento em lugar de memorizá-lo, sendo “incentivados na sala de aula

a serem sujeitos da História, portanto efetivos cidadãos”. (MACHADO; HAIGERT;

POSSEL, 2003, p. 87).

Ainda conforme Machado; Haigert; Possel (2003):

Despertar a curiosidade dos educandos e fazer com que eles procurem novas

informações é incentivar que formulem e identifiquem, em conjunto com os

educadores, novos conhecimentos e também que tomem contato com os

patrimônios de suas localidades, no intuito de fundamentar uma identidade

cultural. (MACHADO; HAIGERT; POSSEL, 2003, p. 89).

A participação dos alunos como agentes ativos no processo de construção do

conhecimento, resulta na valorização de sua herança cultural que ocorre com a ação

do estudo dos objetos pertencentes ao cotidiano das comunidades, no qual os

indivíduos passam a se apropriar de seu patrimônio cultural, produzindo e adquirindo

conhecimento, pois os objetos passam a ter significado. Segundo Machado; Haigert;

Possel (2003, p. 88), além de despertar a curiosidade dos educandos, a Educação

Patrimonial também deve “fazer com que observem um objeto concreto da cultura

material e, a partir dele, recolham informações para construir um conhecimento

elaborado”. Um simples objeto do cotidiano, uma paisagem, uma cidade, uma

manifestação festiva ou religiosa, contém um complexo sistema de relações que

devemos interpretar a fim de ampliar nossa capacidade de compreensão do mundo.

(HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 2006, p. 09). O objeto real é fonte de

informação sobre o contexto histórico em que foi produzido e utilizado.

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Tornar o ambiente de ensino mais propício ao questionamento, reflexão,

descobertas, a troca de experiências e construção de conhecimento, são elementos

essenciais para a aplicação dos Currículos para o ensino de História, devendo se

aproveitar dos diversos aspectos e significados presentes nos objetos culturais por

meio da Educação Patrimonial.

A Educação Patrimonial deve provocar situações de aprendizado sobre o

processo cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o

interesse em resolver questões significativas para sua própria vida, pessoal e coletiva.

(HORTA; GRUNBERG; MONTEIRO, 2006, p. 08).

A Educação Patrimonial se torna uma importante ação na construção de uma

identidade cultural na medida em que promovem o diálogo entre professores, alunos e

toda a comunidade por meio de uma ação da coletividade. Acreditando que na troca de

experiências se constrói aprendizado almejamos, que essas reflexões possam de algum

modo, contribuir para o exercício de uma prática pedagógica efetivamente construtora de

saberes em um processo continuo de criação cultural. É viável propor um processo de

ensino e aprendizagem em História mais atrativa e significativa para os alunos através da

ligação entre essa área do conhecimento e a Educação Patrimonial. Na busca de novas

formas de se ensinar e aprender História, é que todos os indivíduos passam a ser sujeitos

ativos no processo de construção histórica e que, partindo de suas vivências e

experiências cotidianas, possam ampliar as descobertas da sala de aula abrangendo a

comunidade local e, assim, construir, valorizar e preservar a memória coletiva.

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84

CAPÍTULO III

Esse capítulo se destina a observar as linhas indicadoras das políticas públicas

para Educação Patrimonial no município de São Bernardo do Campo, entendendo-a

dentro de um contexto curricular.

Para isso há uma análise das intencionalidades políticas de formação histórica e

cultural, como linha de planejamento no Plano Municipal de Cultura, um documento

que observa o papel regulador do Estado para fortalecimento da identidade cultural e

memória coletiva dos grupos sociais.

Essa abordagem se atentou a compreender as linhas elementares de política

pública de Educação Patrimonial, tendo como referência a análise para

reconhecimento da história dos trabalhadores da cidade. Uma proposição difícil de ser

realizada numa sociedade marcada pelas desigualdades de classes.

Em linha da práxis, o estudo se adentra nas orientações curriculares da

modalidade Educação de Jovens e Adultos, um tempo de formação de trabalhadores

que não terminaram seus estudos no tempo que lhes era oportuno e portanto, uma

modalidade de ensino que se marca pelo retorno à escola na fase jovem ou adulta.

Nesse contexto é necessária uma análise do perfil da política pública,

observada pelas intencionalidades de Educação ao longo da vida, em que a

diversidade, as ações intersetoriais e o compromisso do Estado para Educação de

todos são observados. Com essa leitura, se teve uma reflexão mais aprofundada para

observar se a Educação Patrimonial estava como linha de preocupação da Diretriz

Curricular dessa modalidade de Ensino.

Ao entender que Educação Patrimonial, na perspectiva de reconhecimento das

identidades e memórias de todos os coletivos em um território cultural, é alvo de

resistência, tem-se uma abordagem de matriz curricular que pode ser a linha de

fortalecimento para que essa temática venha ser tratada nos Currículos escolares.

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85

Ao se pensar em uma ação educativa, que se volte com um olhar cuidadoso ao

Patrimônio Cultural, torna-se necessário uma análise do contexto teórico e prático,

numa metodologia curricular que permite a práxis. O ponto de referência, tanto para

as práticas de preservação, como também para olhares e identificação é o contexto

escolar e comunitário, reconhecido pelas vivências dos educandos e da comunidade.

Esse reconhecimento observa os sujeitos como agentes ativos que intervirão na

constituição de diálogo, metodologia intrínseca na Educação Popular, na qual a

Educação Patrimonial torna se um instrumento para construção do conhecimento com

significância.

Essa abordagem de estudo cria um panorama em que é possível visualizar a

importância do papel social dos espaços de memória, na construção e na afirmação

das identidades coletivas dos movimentos sociais, dos trabalhadores e da vida de uma

comunidade.

Além disso, é importante destacar que nessa concepção de educação haverá

oportunidades de troca e construção do conhecimento para todos os envolvidos em

uma relação constante de diálogos e questionamentos. Nesse sentido, é

necessário mostrar a possibilidade de se trabalhar de outra forma as temáticas já

presentes no cotidiano escolar, de modo a romper com o modo tradicional do fazer

educativo, que ainda é uma forte realidade dentro de várias realidades escolares.

Essa perspectiva está baseada em Paulo Freire, no pensamento crítico e

libertador, onde reconhece que os sujeitos humanos vivem condições de opressão e o

processo educativo observa as diversas realidades de vida dos sujeitos, na busca de

leitura de contexto histórico limitador. Isso ocorre por um processo de

problematização temática, visto que os sujeitos vivem contextos sociais temáticos.

Esse tratamento do saber não se resume a uma abordagem didática com conteúdo pré-

definido, mas demanda uma ação de criticidade e de um trabalho interdisciplinar com

o conhecimento.

Nessa configuração é fundamental que ocorra a ação das instituições de ensino

e a atuação dos órgãos responsáveis pelo Patrimônio Cultural. Esse modo de trabalho

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86

se atenta a uma educação como forma de socialização e reconstrução do

conhecimento. Uma ação educativa que permite a democratização do conhecimento,

visto que expressa as mais diversas realidades socioculturais.

Essa abordagem da Educação Patrimonial permite que os bens e os espaços

sejam tratados tanto pela materialidade, como pela imaterialidade, em ambos os

tratamentos há no estudo atenção e respeito aos fatos, visto que trazem os indícios da

vida do convívio coletivo, a qual expressa as diferentes marcas da cultura histórica de

determinados grupos.

Nesse trabalho há uma construção dialética da memória, em que permite a

diferentes grupos recuperarem seus percursos e reconstruírem suas identidades. Isso é

uma demanda necessária à classe trabalhadora e o Patrimônio Cultural se coloca como

um instrumento importante na construção de sua memória histórica. Em observação,

apontamos que a construção dessa memória não se dá apenas, por questões que dizem

respeito aos limites dos bens tombados e definidos por um grupo de técnicos

especializados no assunto.

A intenção nesse estudo é abordar a Educação Patrimonial como uma temática

numa política curricular que valorize e passe a reconhecer as mais diversas classes e

organizações sociais representadas em territórios, de acordo com múltiplos contornos

culturais e sociais, organizados historicamente pelos povos.

Para fazer essa abordagem a Educação Patrimonial, esse capítulo retoma um

contexto territorial, observando as intenções políticas com a Educação Patrimonial e

uma discussão sobre Currículo voltada a Educação de Jovens e Adultos.

3.1 PLANO DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM SÃO BERNARDO DO

CAMPO

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87

O Patrimônio Cultural não pode se consolidar como algo que exista

isoladamente aos espaços em que ele se inclui. Sua existência está diretamente

relacionada a algo que o sustente ou que defina seu significado.

Por meio dos patrimônios culturais é possível conscientizar os indivíduos,

proporcionando aos mesmos a aquisição de conhecimentos para a compreensão da

memória coletiva, sendo objetos e representações que servem a eles e deve ser

construído por eles.

O Plano Municipal de Educação Patrimonial de São Bernardo do Campo é

desenvolvido com a vontade de consolidar uma política pública da cidade e é o

resultado importante de um movimento, que conta com a participação de diversos

agentes, em um processo democrático, com o objetivo de dar condições e ferramentas

para a inclusão do cidadão, em um debate amplo e significativo em razão do

Patrimônio Cultural local.

A elaboração do Plano Municipal de Educação Patrimonial ficou sobre a

responsabilidade da Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo juntamente com

a Sociedade Civil, cuja competência atribui-se à condução das políticas de

preservação e de cultura do município.

O debate sobre esse plano de São Bernardo do Campo propõe uma ação

específica de Educação Patrimonial, sendo ele parte importante dentro de um plano

maior, que é o Plano Municipal de Cultura, mais especificamente do setorial de

História, Memória e Patrimônio. O processo para a implementação do Sistema

Municipal de Cultura começou, em novembro de 2012, com a assinatura do termo de

adesão do município ao Sistema Nacional de Cultura10

.

A forma em que pretende desenvolver os programas ligados à Educação

Patrimonial amplia-se além do espaço escolar e envolve toda a comunidade em que

10

Aprovada na Câmara dos Deputados, em 30 de maio de 2012 o Projeto de Emenda Constitucional, PEC

416/2005, que foi conhecida como PEC da Cultura, que faz o acréscimo ao art. 216-A da Constituição Federal

da regulamentação do Sistema Nacional de Cultura. Ela prevê uma legislação específica nos estados e

municípios, que garante a criação dos Sistemas Estaduais e Municipais de Cultura e a elaboração dos Planos

Estaduais e Municipais de Cultura.

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88

ela se insere, as famílias, instituições, associações e entidades que serão importantes

participantes nesse processo de desenvolvimento e ampliação das práticas voltadas à

Educação Patrimonial, nas mais diversas representações e manifestações, material ou

imaterial, sendo as fontes de um modo de ensinar e aprender, com educandos das

diversas etapas e modalidades de ensino, tendo sua clara definição dentro do

Currículo e diretamente ligada às áreas de conhecimento e à realidade dos educandos,

sendo ela uma prática dialógica e voltada para a formação para a cidadania.

Para isso, torna-se necessário a elaboração de um documento que fundamente

esse pensamento e vontade de realização, sendo que esse é a base substancial para

elaboração de estratégias com definição de diretrizes que devem ser adotadas em

eixos de ação. É também importante salientar a importância de uma ação como

política pública que pense em uma continuidade de prática.

O plano municipal marca como objetivo a efetivação de políticas de Educação

Patrimonial por um decênio, para que a partir disso, se avalie as práticas, os acertos e

o que possa a vir a ser melhorado. É um documento que tomou como base estratégias

e perspectivas que constam no Plano Nacional de Educação Patrimonial - ENEP11

.

Esse plano, de amplitude nacional, foi elaborado com a intenção de estabelecer

subsídios para que os mais diversos profissionais, comunidade, instituições e

sociedade civil organizada, juntamente com as escolas, educadores e principalmente

os educandos pudessem fazer uma união de forças e a valorização em conjunto de

Patrimônio Cultural Nacional, fazendo dele um elemento importante para a afirmação

das identidades que constroem esse país.

A intenção mencionada vai criando formas e essas se estruturam e se subsidiam

no Encontro Nacional de Educação Patrimonial, em que foram determinadas diretrizes

e metas que deveriam nortear o Plano Municipal de Educação Patrimonial. Um

documento com estruturação, prazos definidos e abordados sobre vertentes tempos. O

tempo, das ações, é avaliado pela demanda do coletivo.

11

Documento elaborado no “II Encontro Nacional de Educação Patrimonial: perspectivas e estratégias para uma

política nacional”, sediado em Ouro Preto, entre os dias 17 e 21 de julho de 2011.

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89

Desse indicativo se constrói o Plano Municipal de Educação Patrimonial que

está organizado em quatro eixos temáticos, os quais marcam linhas direcionadoras da

política municipal. Assim, seguem os eixos:

1. Análises práticas e teóricas em educação, memória e patrimônio

cultural e aplicação;

2. Sustentabilidade e participação dos grupos sociais;

3. Espaços e ações educativas;

4. Avaliação e planejamento

Por meio desses eixos é possível o desenvolvimento de práticas que pretendem

se firmar como políticas de ações permanentes para um período de dez anos, visando

uma política de estado e não limitada a um governo, deixando o município, conforme

as necessidades e demandas que ocorrerão nesse período, com poder de delinear os

objetivos e os modos de ação, respeitando toda uma contextualidade e realidade tanto

dos educandos como do coletivo da cidade, levando sempre em consideração, as

condições humanas, de finanças e materiais que caberá às Secretarias envolvidas com

a Educação Patrimonial como com a Sociedade Civil envolvida.

É importante salientar que o processo de construção desse documento

dependeu diretamente da participação da Sociedade Civil com respeito a um processo

democrático de construção coletiva. Para isso, foi necessária a adoção de todo um

procedimento que, demanda o respeito a um processo que envolve a convocação de

todos os interessados para a composição de grupos de trabalhos e a participação de

audiências públicas, constantes debates e reuniões para a organização dos trabalhos e

composição das ideias para o coletivo, e mais ainda, uma ampla divulgação juntos aos

órgãos de imprensa para que todos pudessem ter a ciência da importância da

participação e que todos pudessem contribuir de alguma forma para a elaboração

desse Plano Municipal de Educação Patrimonial. Um interessante processo que

fundamenta a sua efetivação.

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90

Na fundamentação do Plano Municipal, observa-se que nesse documento há

indicativos de se organizar uma Educação Patrimonial por meio do conhecimento

prévio que o educando traz consigo, suas experiências de vida e da relação direta e

significativa com as evidências, objetos e manifestações da cultura, em todos os seus

múltiplos aspectos, sentidos e significados.

Um indicativo de trabalho que pode fazer pela Educação Patrimonial um

processo de apropriação, reconstrução e valorização de conhecimento por parte dos

educandos. Uma ação educativa que permitirá o reconhecimento das representações

do coletivo da comunidade, tornando-a bens preservados.

Esse registro passa por metas de indicação ações que permitirão à Educação

Patrimonial concretizar uma ação didática na observação direta e na análise das

evidências dos fatos sociais e históricos de diferentes grupos.

A execução das metas depende de um compromisso político para que mobilize

questões essenciais a fim de chegar a esse propósito, como por exemplo, de formações

de educadores; projetos que permitam à criança ou ao adulto redescobrir e observar os

patrimônios como produção histórica.

Essa intencionalidade em condição concreta não se faz sem uma metodologia

didática que permita a experiência de construção de conhecimento de todas as etapas

de ensino por práticas pedagógicas, organizadas em referenciais aos modos e métodos

definidos previamente. É uma aprendizagem que surge de leitura e reflexão dos

elementos levantados, com a intenção de desenvolver habilidades e práticas, deduzir,

criar hipóteses, comparar as informações encontradas e levantar os possíveis

problemas com as possibilidades de soluções viáveis ao caso para a elaboração de

uma atitude voltada para o coletivo.

Um processo educativo, como consta ressaltar, visa à construção de uma visão

crítica e a uma maior conscientização, por parte das comunidades e de seus

indivíduos, de sua memória, elemento fundamental no processo de identidade e

construção de uma atitude voltada à cidadania.

Page 91: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC SP Marco Alexandre … Alexandre N… · Marco Alexandre Nonato Cavalcanti Educação Patrimonial e EJA: Instrumento para a Discussão

91

É por meio dessa prática que busca a construção de conhecimento que se traz,

para o território de São Bernardo do Campo, um novo referencial de como ver a

história e memória pela classe trabalhadora, pois poderão os educandos reconhecer

elementos que compõem a riqueza e diversidade da identidade desse coletivo, algo

não presente nos dias atuais, conforme já expresso nos capítulos anteriores dessa

pesquisa.

Essa estratégia política pedagógica provinda da Educação Patrimonial permitirá

para esse território, o reconhecimento de diferentes grupos e culturas que formam essa

cultura da cidade, visto que contribuirá para reconhecimento às identidades para

respeito às diferentes expressões e formas de expressões culturais que por muitas

vezes, pelas forças hegemônicas, pautadas pelo conceito de cidade uniforme, algo

improvável num território que possui diferenças na linguagem, hábitos e costumes. A

percepção dessa diversidade favorecerá o desenvolvimento do espírito de tolerância,

de valorização e de respeito das diferenças.

O diálogo permanente implícito neste processo educacional que servirá de

forma efetiva ao estímulo e ao processo comunicativo direto para uma maior interação

entre os indivíduos que fazem parte da comunidade e os responsáveis técnicos e

agentes públicos ligados aos bens preservados e objetos de estudos, garantindo uma

forma de conhecimentos em torno desse tema.

A Educação Patrimonial passa a ser uma “educação para o olhar” oferecendo

possibilidades aos educandos fazerem uma leitura crítica de seu espaço e de seu

cotidiano. Um modo de fazer educação que, como propõe Paulo Freire em sua ideia

de emancipação, por meio de processo de superação das condições opressoras. Essa

ação educativa para libertação não se faz sem o diálogo.

Quando pensamos por uma perspectiva dialógica (FREIRE, 2006), recorremos

ao conjunto das representações sociais para o estabelecimento de negociações

construindo a priori a possibilidade de se optar a respeito das memórias, das

identidades que significam o patrimônio social a ser conservado e preservado. Para

observar possíveis percursos que esse território pode vir a constituir, em condição

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contra hegemônica, ao tratar o conhecimento como possibilidade de leitura do real e

subsídio para a intervenção social.

O debate sobre a educação das classes populares e sua inserção nas políticas

educativas está profundamente vinculado às transformações sociais e as de trabalho.

Uma situação que problematizará a estrutura conservadora da política de estado.

Nesse sentido, tem-se a compreensão que a educação sozinha não fará essa grande

intervenção, mas poderá fazer em articulação com os movimentos sociais. Em estudo

recente sobre os caminhos da Educação Popular e a importância dos Movimentos

Sociais no Brasil, Reinaldo Matias Fleuri destaca que:

A primeira vertente de educação popular é a que se identifica com a ampliação

da educação escolar para todos os cidadãos. A expressão educação popular é

usada pela primeira vez por intelectuais, militantes e educadores latino-

americanos, entre fins do século passado e começo deste. Uma outra vertente

significativa de educação dirigida às camadas populares é a educação de adultos

(FLEURI, 2002, p.53).

Então se sabe que a educação não pode carregar a culpa por todas as mazelas

sociais, todavia é compreendido pela maioria dos educadores e das educadoras que

sem a educação não há processo de transformação social.

Para um processo constitutivo de conhecimento pela leitura das memórias de

diferentes grupos, interessa-nos evidenciar questões históricas, onde as sombras, os

restos, as figuras, as fotografias, as falas, os objetos sejam instigados a revelar algo

mais sobre distintos processos culturais. Testemunhos do tempo, os artefatos

apresentam com singularidade o imaginário social, apontam para as singularidades e

subjetividades da experiência humana.

Dessa forma, tratar Educação Patrimonial com condição formativa que

aproxima os sujeitos de contextos que implicam manufatura e uso, em uma

aproximação que dará aos educandos informações de base da cultura material. Mas

isso não determina que o estudo por si só dos artefatos determinará as informações

culturais suficientes para que os sujeitos acessarem sua cultura. A cultura é um

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processo em que sujeito faz a leitura do mundo e por meio dela constrói condições

para atuar no mundo.

Logo a cultura tem a ver fundamentalmente com a maneira como a pessoa atua

e compreende o mundo. Para Lev Vygotsky (2001) no campo semântico, o significado

das coisas corresponde às relações que a palavra pode empreender apoiando-se na

dimensão de pensamento e linguagem. Na perspectiva da leitura do artefato, ou da

cultura material, como fonte indiciária, o suporte conceitual centra-se na ideia de

signo, portanto a mediação cognitiva entre a cultura material e imaterial e a linguagem

é realizada pela ação da educação. Para Bakthin (1999), as palavras são tecidas por

uma multidão de signos ideológicos servindo como trama em todas as dimensões

sociais. Através da análise dessas fontes, pode-se, contudo, acompanhar a tortuosa

articulação entre polêmicas político-ideológico e saberes constituídos, seja no sentido

da construção do passado ou por processos de apropriação desse passado no presente,

pois a imagem se transforma na lembrança e muitas vezes a lembrança se fixa na

imagem. Quanto ao olhar, o que se vê, depende de quem olha e de quem os ensinou.

A Educação em condição formal é uma linha condutora para o processo

cultural, e ainda, pode influenciar continuidade ou descontinuidade das estruturas

sociais. Neste caso, a educação é concebida como um processo sociocultural que traz

em sua gênese um conjunto de práticas, em heranças cognoscitivas e representações

ideológicas. Tal problemática, meio que na contramão da história, exige que se inclua

a cultura dos "objetos" como elementos indispensáveis para a releitura e reflexões

contextuais, onde passado e presente se mesclam na tentativa de elaborarmos

discursos de apropriação desses passados, materializados pela ação educativa.

Aparentemente, escola e o patrimônio cultural se compõem de cenários

distintos. Mas vale ressaltar que “não lemos regras e nos tornamos membros do

rebanho de alunos, na escola; são as estruturas materiais de controle, no edifício

’Escola’ que nos transforma em rebanho” (FUNARI, 1995). É através do mundo

material que a criança, na escola, e os adultos de um modo geral, tomam contato com

a ordenação social.

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94

Em nosso movimento dialógico com as referências e fontes pôde se perceber a

complexidade presente nas análises sobre a memória social ou coletiva, evidenciada a

partir dos registros, vestígios e fragmentos, considerados conceitualmente como bens

culturais de uma dada sociedade. Se vivemos numa era que tende ao esquecimento, é

ainda mais imperativo expandir as fronteiras do político para incluir não apenas

práticas culturais anteriormente marginalizadas, mas também uma nova política da

representação das diferentes desigualdades sociais. As ações da vida cotidiana, o

comportamento corrente, levado a cabo em um mundo construído pelos seres

humanos está no centro dos processos de criação de consciência. Vygotsky (2001)

lembra-nos que a atividade humana é sempre significada. “No agir humano sempre

realiza uma atividade externa e uma interna”. Mas o que internalizamos não é o gesto

como materialidade do movimento, mas a sua significação, a qual tem o poder de

transformar o natural em cultural (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 14). Assim a

mediação teórico-metodológica educativa pode constituir-se em instrumento

emancipatório das referências e identidades culturais humanas em diferentes

contextos sociais, políticos.

Assim, podemos observar que com a concretização do plano municipal de

Educação Patrimonial pode ser aplicada a qualquer evidência material ou

manifestação da cultura, seja um objeto ou conjunto de bens, um monumento ou um

sítio histórico ou arqueológico, uma paisagem natural, um parque ou uma área de

proteção ambiental, um centro histórico urbano ou uma comunidade da área rural,

uma manifestação popular de caráter folclórico ou ritual, um processo de produção

industrial ou artesanal, tecnologias e saberes populares, e qualquer outra expressão

resultante da relação entre os indivíduos e seu meio ambiente. Outro aspecto de

fundamental importância no trabalho da Educação Patrimonial é o seu caráter

interdisciplinar, podendo ser aplicado como método em todas as áreas do

conhecimento.

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95

3.2 EDUCAÇÃO DE JOVES E ADULTOS EM SÃO BERNARDO

DO CAMPO

A Educação de Jovens e Adultos é uma modalidade de Ensino reconhecida pela

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), um tempo de ensino, em que

os sujeitos retornam ao banco escolar na fase jovem ou adulta. Uma modalidade que é

fruto da desigualdade social, pois historicamente o direito à educação foi negado à

muitas pessoas, pois essas para conseguirem sobreviver tiveram, enquanto classe que

abandonar a escola.

O objetivo de observar a EJA nessa pesquisa, que tem como ponto primordial

evidenciar a importância e possibilidades de trabalho com a Educação Patrimonial, se

faz por duas vertentes, a primeira porque toda a ação de trabalho com a EJA é uma

ação política de reparação, devido à dívida histórica que temos com as pessoas que

tiveram o direito à educação negado e segundo porque, atualmente, essa modalidade

tem sido tratada pela administração, vigente no município de estudo, como um

compromisso de Estado para Educação para todos, reconhecendo os educandos dessa

modalidade como trabalhadores e cidadãos.

Essa evidência se apresenta, pois há um estudo do percurso da política pública

nesse município, em que educação e trabalho estiveram em linha articulada. Ao tratar

essa articulação recupero um período histórico a partir da década de 1950, em que

houve, nesse território, um avanço da rápida industrialização e reorganização

demográfica.

Nesse período a cidade passava a abrigar um enorme fluxo migratório, à

procura de emprego e para determinados postos de trabalho era necessário um mínimo

de formação, sendo necessário o início do atendimento efetivo desse público na

Educação de Jovens e Adultos. Foi considerável a quantidade de educandos atendidos,

chegando aos anos da década 1970, ao atendimento de mais de sete mil educandos por

ano letivo, em mais de 180 salas de aulas espalhadas pela cidade.

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Por meio do Governo Federal, chega a São Bernardo do Campo o Movimento

Brasileiro de Alfabetização – MOBRAL, que aconteceu no período de 1970 a 1985.

Muito distante de ser uma política pública, ele serviu como um movimento e uma

campanha de alfabetização, atingindo cerca de 500.000 alunos em todo o Brasil nos

seus primeiros quatro meses de funcionamento. Mas deu mostras de que precisava

aplicar uma maior profundidade ao trabalho educativo e a urgência de oferecer cursos

de continuação. Foi, em seus mais de 20 anos de ação, um movimento pobre do

sentido crítico e contextualizador. Na década de 1980, com a extinção do Programa

Federal MOBRAL, o município firmou convênio com a Fundação Educar, buscando a

continuidade do atendimento.

É nesse período, em que o país passava por um processo de redemocratização,

que a Educação de Jovens e Adultos volta a fazer parte da agenda municipal para a

educação, mesmo que de forma limitada. Ela é efetivada por meio PAMJA -

Programa Municipal de Jovens e Adultos, destinado aos funcionários municipais e o

PAC - Programa de Alfabetização e Cidadania, destinado a todos os munícipes.

Em 1993, o PAC e o PAMJA se juntam e passam a ser denominados

PROMAC - Programa Municipal de Alfabetização e Cidadania. Sendo que dois anos

mais tarde, esse programa é reconhecido pela Divisão Regional de Ensino, passando

desta forma, a ter condições de oferecer a certificação de seus educandos concluintes.

Mais especificamente o PROMAC – Programa Municipal de Alfabetização e

Cidadania - foi um Programa oferecido pela prefeitura para atender esse público. Mas

como é tratada, a EJA como um simples programa municipal, transmite a ideia da não

efetivação da garantia do direito à educação na idade que seria a ideal para muitos

jovens e adultos. Ela também se apresenta na postura de um educador que passa seus

conhecimentos de uma forma verticalizada, sem levar em consideração as

características individuais dos educandos, que chegam à escola com conhecimentos

prévios sobre suas vidas e sobre o mundo, sendo desta forma um dificultador à

apreensão do que é estudado na escola e sua relação com seu cotidiano, pois não há

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espaço no contexto escolar para que consigam fazer a transposição de suas

experiências. (ABRANTES, 1992).

Pode-se dizer que por muito tempo (e em certos casos, até hoje) a Educação de

Jovens e Adultos teve sua política de trabalho ligada a recuperação do tempo perdido

de seus educandos, sendo desta forma um depreciador do ensinamento apresentado

tão quanto causando prejuízos na qualidade do ensino-aprendizagem.

Por meio de um simples programa municipal foi organizado aos educandos um

conhecimento distante tanto de seus perfis socioeconômicos, de suas culturas e sem

qualquer relação com suas necessidades reais. É visível uma organização do Currículo

tecnicista e disciplinador quanto como à constante fragmentação do conhecimento.

Uma deficiência diante de um maior diálogo entre as experiências vividas, os

saberes dos educandos os conhecimentos trabalhados na escola.

Uma de minhas tarefas centrais como educador progressista é apoiar o

educando para que ele mesmo vença suas dificuldades na compreensão ou na

inteligência do objeto e para que sua curiosidade, compensada, vença e

gratificada pelo êxito da compreensão alcançada, seja mantida e, assim,

estimulada a continuar a busca permanente que o processo de conhecer implica.

Que me seja perdoada a reiteração, mas é preciso enfatizar, mais uma vez:

ensinar não é transferir a inteligência do objeto ao educando, mas instigá-lo no

sentido de que, como sujeito cognoscente, se torne capaz de inteligir e

comunicar o inteligido. É nesse sentido que se impõe a mim escutar o educando

em suas dúvidas, em seus receios, em sua incompetência provisória, e ao

escutá-lo, aprendo a falar com ele. (FREIRE, 2006 p.134).

Também é relevante a falta de investimento na qualificação dos educadores,

que no caso de São Bernardo do Campo eram contratados por meio de uma parceria

com a FUNDUNESP e sem relação com o quadro efetivo de funcionários da

Prefeitura.

Em 2009, a EJA passa a ser efetivada como uma modalidade sob a

responsabilidade do Poder Público Municipal. É nesse momento que é possível se

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observar uma mudança das ações para a Educação de Jovens e Adultos, quando passa

de um programa municipal para uma política publica voltada para essa modalidade de

ensino.

As Políticas Públicas são o resultado da competição entre os diversos grupos ou

segmentos da sociedade que buscam defender seus interesses. Tais interesses podem

ser específicos ou gerais. Para se desenvolver boas Políticas Públicas, entretanto, é

necessário planejamento, envolvimento dos setores da sociedade e recursos, que

sempre serão menores que as demandas (por isso a necessidade de se estabelecer

prioridades de acordo com um plano de longo prazo).

A Educação de Jovens e Adultos deve ser tratada juntamente com outras

políticas públicas e não isoladamente.

Mesmo reconhecendo a disposição do governo em estabelecer uma política

ampla para EJA, especialistas apontam a desarticulação entre as ações de

alfabetização e de EJA, questionando o tempo destinado à alfabetização e à

questão da formação do educador. A prioridade concedida ao programa

recoloca a educação de jovens e adultos no debate da agenda das políticas

públicas, reafirmando, portanto, o direito constitucional ao ensino fundamental,

independente da idade. Todavia, o direito à educação não se reduz à

alfabetização. A experiência acumulada pela história da EJA nos permite

reafirmar que intervenções breves e pontuais não garantem um domínio

suficiente da leitura e da escrita. Além da necessária continuidade no ensino

básico, é preciso articular as políticas de EJA a outras políticas. Afinal, o mito

de que a alfabetização por si só promove o desenvolvimento social e pessoal há

muito foi desfeito. Isolado, o processo de alfabetização não gera emprego,

renda e saúde. (VIEIRA, 2004, p. 85-86).

Com a prefeitura assumindo a Educação de Jovens e Adultos, passa a existir a

necessidade da construção de todo o processo de formulação de Políticas Públicas

voltadas especificamente para a essa modalidade de ensino.

É nesse momento que se faz quebrar a estigma do educando jovem e adulto,

que o lugar que ele ocupa na sala de aula não é uma distorção de uma realidade, mas

um direito garantido que deve se efetivar. Atividades, ações educativas e

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contextualização devem ser específicas dos Jovens e Adultos e não mais um copiado

da educação aplicada para as crianças. Agora eles deverão ser vistos como sujeitos

excluídos, por uma falha do passado de acesso a escolarização que deve ser corrigida,

seja por sua saída da educação regular, a necessidade da suplência a fim de retomar

seus estudos.

Desta forma, é em uma perspectiva de educação popular, fundamentada nos

ensinamentos de Paulo Freire que começa a se estabelecer as Políticas Públicas da

Educação de Jovens e Adultos de São Bernardo do Campo, por meio de suas

Diretrizes Curriculares que foram construídas em um processo de participação

democrática de todos os envolvidos com a EJA. Os princípios da Educação de Jovens

e Adultos e Educação Profissional na rede de São Bernardo do Campo fundamentam-

se nos princípios da Educação popular, na perspectiva de Paulo Freire.

E com base no pensamento de Freire (apud MOURA, 2006), São Bernardo do

Campo tenta compreender o pedagógico da ação política e o político da ação

pedagógica, reconhecendo que a educação é essencialmente um ato de conhecimento

e de conscientização e que, por si só, não leva uma sociedade a se libertar da opressão.

Desta forma, a EJA ofereceu uma organização e concretização do planejamento

do processo de ensino e aprendizagem, com leitura de que a ação educativa contribui

e respeita aos princípios de igualdade, justiça e inclusão.

O passo inicial para que isso fosse conquistado em São Bernardo do Campo, a

EJA é considerada como política pública, está protegida pelo direito positivado

presente na ordem o direito municipal e dever do Estado, que congrega suas ações

com base no direito de educação ao longo da vida, devendo garantir o acesso, a

permanência a gestão democrática e a qualidade social na formação integral dos

sujeitos para sua emancipação.

A política pública de Educação de Jovens e Adultos em São Bernardo do

Campo tem como diretriz o conceito de EDUCAÇÃO PARA TODOS E TODAS,

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conforme o texto descrito nas Diretrizes Curriculares da EJA, de 2012, em que pauta o

direito e suas dimensões: social; pessoal e profissional, conforme descrição abaixo.

SOCIAL que implica em aprender com a experiência de cada um e na relação

com os outros sujeitos, para então saber conviver com as diferenças e contribuir

para melhorar a sociedade, enfim, de educarmo-nos para viver em grupo com

respeito à diversidade.

PESSOAL que nos coloca como um ser que se constrói ao longo da vida, na

busca do desenvolvimento das nossas potencialidades, no desafio maravilhoso

de crescer, de evoluir mais em todas as áreas, de tornarmo-nos pessoas mais

livres, de aprender a conviver com as dificuldades, de aprender a conviver com

as pessoas, com os animais, com o planeta e com o universo.

PROFISSIONAL que se faz na oportunidade de desenvolvimento constante em

relação ao trabalho e na lógica de uma qualificação profissional social. (SÃO

BERNARDO DO CAMPO, 2012, p.6).

Diante das políticas públicas oferecidas, o conteúdo das Diretrizes

Curriculares parte do histórico da EJA no Brasil e na cidade para reafirmar o sentido

da oferta de uma modalidade educativa, que prima por uma construção de saber que

considera as diversidades, necessidades e expectativas dos sujeitos, organizando o

conhecimento em três dimensões: ciência, cultura e trabalho.

Essas dimensões foram orientadoras para que a plataforma de organização da

ação didática se efetivasse por eixos de conhecimento em ação integradora.

Nessa fundamentação, faz-se a apresentação da concepção curricular de

construção de conhecimento em quatro eixos, sendo esses:

1. Memória e territorialidade: possibilita pensar nas dimensões da

vida articulando e relacionando diversos conhecimentos: linguagens e

códigos, ciências da sociedade e da natureza, todos trabalhados de forma

integradora e ao mesmo tempo destacando os conhecimentos específicos

das áreas da história e da geografia. A memória dos educandos narrada e

registrada revela a história do território onde vivem e de onde vieram,

condição para estudar as relações sociais e ambientais das quais participam

e que interferem na vida de cada um.

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2. Linguagens: (escrita, oral, matemática, corporal, tecnológica): A

importância das linguagens para os seres humanos não reside somente nas

possibilidades de comunicação, porém por serem sistemas de

representações da realidade, elas dão suporte para a realização de diferentes

operações intelectuais, organizando o pensamento, possibilitando o

planejamento das ações e apoiando a memória.

3. Meio Ambiente: A questão ambiental, não só identificada como

natureza, mas também como sociedade humana inserida em meio rural ou

urbano e metropolitano em pleno século XXI, enseja ainda mais as

variações no pensamento humano e, importante, estimula a ideia força de

mudança.

4. Cultura e Trabalho: É necessário ao homem produzir sua própria

vida, como também que ele aprenda como fazê-lo, para que construa e

garanta a própria existência e a da humanidade. Assim, a educação está

ontologicamente ligada ao processo de trabalho que se realiza numa

organização cultural. O homem aprende a produzir sua existência

produzindo-a e, ao fazê-la, o homem produz conhecimento e cultura.

A Diretriz Curricular da EJA de São Bernardo do Campo não trata de

Educação Patrimonial, mas possui elementos de prioridade elementar para uma

proposta de Educação Patrimonial, visto que tem como prioridade curricular organizar

um Currículo a partir da realidade dos sujeitos, numa perspectiva crítica, nos

pressupostos da Educação Popular.

Além disso, faz um alinhamento curricular pautado por Eixos, nos quais a

Educação Patrimonial pode ser observada nas suas linhas prioritárias: recuperação da

memória de um grupo e construção de conhecimento para evidenciar e priorizar

patrimônios a partir dos indicativos de uma comunidade de patrimônios. Isso poderia

ser abordado pela linha de debate da memória e por todos os eixos, uma vez que a

reflexão de patrimônio pode ser evidenciada pela perspectiva territorial, ambiental,

sabendo que esse tratamento poderia ser construído em ação integradora.

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A política de EJA tem como foco prioritário a cultura e o trabalho, como

dimensões de ação, reflexão e ação na vida, em processo de criticidade, dando ao

sujeito a condição de pertencimento em ação territorial e em condição cultural,

buscando suas memórias e construindo identidades.

3.3 CURRÍCULO E EDUCAÇÃO PATRIMONIAL PARA A

CLASSE TRABALHADORA

A necessidade de rever coletivamente a produção da memória dos povos que

convivem em um território é algo de extrema necessidade e isso pode acontecer com a

colaboração de uma política curricular que reconheça a organização social desigual do

país, representada em territórios, conforme os contornos culturais e sociais,

organizados historicamente pelos povos.

Essa perspectiva nos remete pensar um Currículo para Educação Patrimonial,

por meio de uma reflexão que evidencie as memórias dos povos, objetivando os

diferentes grupos que compõem o contexto social.

Essa proposta se alinha a uma concepção crítica de Currículo, pois marca uma

indignação com as condições de opressão. Por estarmos em uma sociedade marcada

por disputas de poder, ao tratarmos da formação de sujeitos é necessário ter claro que

a escola pode ter uma função de transformação social, rompendo com a ordem de

reprodução do modelo social e econômico desigual.

Com essa abordagem, o papel da escola para a potencialização do modelo

hegemônico se fragiliza e nesse sentido, permite a democratização de construção de

conhecimentos que venham diminuir o controle social do saber social e histórico de

determinados grupos.

Michael Apple (2008) postula que, na sociedade de classes, os sujeitos vivem a

hegemonia do capital que faz a saturação do senso comum para que os sujeitos

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procedam conforme valores determinados e a escola é uma instituição importante para

reafirmar esses valores. Segundo o autor:

As escolas parecem contribuir para as desigualdades por serem tacitamente

organizadas a fim de distribuir diferentemente determinados tipos de

conhecimento. Isso se relaciona em grande parte tanto ao papel da escola na

maximização da produção de “mercadorias culturais e técnicas” quanto à

função de escolha ou seleção das escolas na alocação de pessoas para a

ocupação requerida pelo setor econômico da sociedade (...) (APPLE, 2008).

Nessa reflexão de revisitar o papel da escola, que em composição secular viveu

para saturação da hegemonia, necessitará marcar a complexidade do saber e isso não

se faz sem a recuperação dos saberes prévios e as memórias de grupos. Tal

pensamento marca uma orientação política para se contrapor às condições de opressão

de uma determinada classe sobre a outra.

Para essa organização, a instituição escolar imprime um formato de Currículo

que não é neutro e se faz numa ótica de reconhecimento do contexto histórico,

material que os educandos vivem.

Assim, ao falar de Currículo para educação e com uma valorização da memória

do trabalhador, deve-se pensar o contexto histórico dos sujeitos e dos seus povos,

recuperando os conhecimentos de uma coletividade nas dimensões: filosófica,

política, pedagógica.

A discussão para essas dimensões se faz num paradigma de Currículo

dinâmico, dialógico, que tem o foco na praxiologia do conhecimento e se faz numa

orientação de matriz crítica de Currículo, além de apontar que as ações educativas

podem se organizar para a transformação social.

Para tanto, o Currículo envolve uma organização estrutural que se faz em

variáveis e essas precisam se direcionar para ter o educando como foco do processo,

ter o educador como um leitor da realidade e a partir dessa, esse mediador possa

contextualizar os conhecimentos históricos produzidos e então favorecer a

reconstrução do saber pelo educando para a transformação social.

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Ao tratarmos sobre práticas pedagógicas de forma contextualizada, é de

fundamental importância estabelecer um debate da organização das mesmas numa

correlação curricular. Essa intenção advém da análise de que as práticas pedagógicas

revelam uma intenção formativa que está presente no Currículo, o grande organizador

dos processos educativos.

Quando estabelecemos um debate sobre Currículo, a concepção conservadora,

que o compreende como um produto social organizado numa lista de conteúdos

formatados em disciplinas de status diferenciados é a primeira ideia que nosso

pensamento evoca sobre esse percurso formativo, que se faz em todas as variáveis da

ação educativa.

A reflexão estabelecida nesse texto se distancia dessa ordem de pensamento e

dialoga sobre Currículo como a organização do processo de ensino e aprendizagem,

que tem a intenção da construção de conhecimento com dimensões epistemológicas,

filosóficas e políticas para transformação, e essas aparecem nas práticas pedagógicas.

Com a possibilidade de perceber o Currículo enquanto dimensão filosófica,

estamos por tratar o conceito de homem enquanto sujeito histórico, inacabado que vai

se constituindo pelas suas necessidades formativas éticas, que andam de mãos dadas

com a estética, à qual se relaciona com uma dimensão técnica num contexto político.

(FREIRE, 2006). Essa dimensão nos coloca a possibilidade de respeitar o educando

como pessoa capaz de refletir sobre o conhecimento que se faz nas relações sociais e

culturais.

Nessa reflexão, o sujeito é reconhecido como um ser ético, político, pensante,

crítico e transformador, o que ocasiona a organização de práticas pedagógicas, que

recuperam o que os educandos já têm enquanto necessidade, ou situações sociais e

culturais que são limites para si e precisam ser tratadas na escola para que possam ser

analisadas e sistematizadas.

Essas práticas se formatam num contexto que percebe os educandos, jovens e

adultos enquanto homens e mulheres que possuem necessidades éticas, estéticas e

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técnicas; estas podem ser trazidas para uma ação educativa de integração do

conhecimento.

A possibilidade de integração a partir do respeito ao educando deve ser tratada

pela articulação da ciência, cultura e trabalho12

, com a possibilidade de se efetivar a

partir do reconhecimento de si, com a criação da consciência do mundo, não como um

objeto, mas como sujeitos que refletem sobre suas condições temporais e locais.

Freire, já fazia esse debate ao colocar a especificidade da humanidade:

Imersos no tempo, em seu mover-se no mundo, os animais não se assumem

como presença nele; não optam, no sentido rigoroso da expressão, nem

valoram. Seres históricos, inseridos no tempo e não imersos nele, os seres

humanos se movem no mundo, capazes de optar, de decidir, de valorar. Têm

sentido de projeto (...) (FREIRE, 1987)..

A reflexão filosófica sobre o Currículo direciona uma organização de prática

pedagógica em que o educador se observa no educando e nessa possibilidade o

respeita; isso procede com ação educativa pautada na dimensão epistemológica do

conhecimento, marcada pelo diálogo que se faz pela linguagem que, além da função

da comunicação, possibilita a decodificação dos fatos.

O diálogo, reconhecido como a condição de estabelecer a troca que se faz com

ética e respeito, prevê a possibilidade da construção do conhecimento para além do

paradigma racionalista técnico. Essa concepção orienta uma prática pedagógica, que

se organiza na efetivação da práxis e se faz na problematização dos fatos e contexto

em que os sujeitos da ação educativa estão envolvidos.

Dessa forma, as práticas pedagógicas precisam ser reorganizadas enquanto

situações problematizadoras, mas, ao pensar nessa organização, as questões precisam

estar próximas dos educandos. Nesse formato, a ação educativa deixa de ser neutra e

se contextualiza. Ao pensar em prática contextualizadora que passa a ter significância,

12 Ver Marise Ramos “Concepção de Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, Seminário da

Superintendência de Ensino Médio da Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Norte, 2007”.

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estamos por tratar da dimensão política do Currículo, em que há a organização do

conhecimento em contextos sociais com intenções de transformação.

Essas intenções políticas críticas só se constituem quando se tem leitura de

realidade pela possibilidade de retomar os fatos, entendê-los em debates com os

contextos econômico-culturais, de modo a colocar em reflexão a organização

estrutural da sociedade.

Licínio Lima (2012) já abordava que a Educação não pode reduzir o seu papel

em pensar numa formação técnico-científica que responda a uma ordem de sociedade

que prepara para situação do trabalho. A Educação precisa recuperar as raízes da

Educação Permanente, sob o viés crítico que prevê a formação integral para

transformação sob os preceitos da Educação Popular.

Esse alerta se faz principalmente no contexto atual, em que o contexto

territorial deixa de ser considerado frente aos marcos de extensão global, orientadores

para formação individual, organizados pela racionalidade estratégica para ordem do

capital com o Estado mínimo.

Um aspecto importante a mencionar é que o Estado, para se constituir, teve que

ser legitimado pelo povo, que assumiu o status da cidadania. Porém, essa cidadania,

nesse momento de globalização em que o Estado tem seus papeis reduzidos, se torna

frágil, como aponta Boaventura Sousa Santos:

A nova divisão internacional do trabalho, conjugada com a nova economia

política “pró-mercado”, trouxe também algumas importantes mudanças para o

sistema interestatal, a forma política do sistema mundial moderno. Por um lado,

os Estados hegemônicos, por eles próprios ou através das instituições

internacionais que controlam (em particular as instituições financeiras

multilaterais), comprimiram a autonomia política e a soberania efetiva dos

Estados periféricos e semiperiféricos, com uma intensidade sem precedentes

(...). (SANTOS, 2002 p. 25).

Nesse formato social, em que os aspectos econômicos inferem

significativamente sobre os políticos, de modo a pensar um Estado mínimo em que a

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responsabilidade com a educação precisa atender as ordens do mercado, a

funcionalidade educativa se limita a oferecer conhecimentos aos educandos que

respondam aos interesses da organização de produção; é preciso uma reflexão do

papel da escola e a organização das suas práticas.

Isso, na prática da EJA, é de fundamental importância, pois o modelo

direcionador homogeneizador direciona para um Currículo que prevê a formação

utilitarista para o trabalho, por meio de práticas pedagógicas que, em vez de promover

a construção por inteiro, ocasiona o fazer educativo reducionista.

É devido a isso que, a dimensão política do Currículo se firma, pois, conforme

já dito, nenhuma ação educativa das diferentes variáveis que compõem o Currículo é

neutra, mas tem intenções formativas e tem poder de inferência social. As inferências

sociais se fazem com práticas pedagógicas, que permitam a construção do

conhecimento pela contextualização dos aspectos culturais.

No momento atual, a perspectiva hegemônica de formação para a cidadania

tem uma finalidade, que é a formação pela racionalidade para sustentar um perfil de

homens e mulheres dependentes da produção e do consumo. Porém, a sociedade não é

uniforme, ela se compõe de grupos que possuem outros objetivos, que consistem em

comprometer a educação escolar com práticas pedagógicas para desenvolver

processos educativos em que ocorra o domínio público, para o aprofundamento da

educação para cidadania e para a busca da igualdade e justiça. Licínio Lima colocava

que essa organização é possível com o exercício de reorganização escolar:

(...) a natureza política e educativa das práticas organizacionais e

administrativas escolares se alia à reflexão sobre políticas alternativas, a

construção de modelos de governação mais democráticos, comprometidos com

a emancipação e a autonomização dos sujeitos, com os pensamentos de Freire

emergem forças. Neste exercício de resistência à despolitização (e tantas vezes

à privatização) da escola pública (...). (LIMA, 2012).

O Currículo, no seu sentido oficial, expressa o interesse de grupos que têm

poder de direcionar a organização social. Essa relação de poder não é transparente no

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Currículo, mas se efetiva pela ideologia que camufla a realidade, que é direcionada

pela visão de hegemonia.

O conceito em discussão pode ser entendido numa percepção de ação cotidiana,

em que todas as oportunidades de ensino e aprendizagem se efetivam e revelam seu

posicionamento hegemônico ou contra hegemônico.

Numa visão contra hegemônica, se tem como compreensão que a

responsabilidade da ação educativa para a produção e reconstrução de conhecimento

deve ser vista numa perspectiva cultural transformadora, pois uma das grandes

responsabilidades da escola é a possibilidade de reconstrução do saber cultural da

humanidade.

Com a ideia de que a educação não faz tudo, mas sem ela não é possível fazer

mudança de algo, estamos por salientar a importância das práticas pedagógicas a se

encharcarem de significância e de proximidade com os educandos.

Ao organizar ações de proximidade e de contextualização, não se tem a

intenção de reduzir conhecimento; pelo contrário, com essas ações, os conhecimentos

históricos ganham sentido e se articulam com as vivências sociais dos educandos ou

as denominadas, por Freire (2006), “situações-limites”.

Nesse propósito a Educação Patrimonial se fortalece com a concepção crítica,

pois é a possibilidade de se retomar memórias que configura identidades coletivas e

individuais.

Em todo o processo de gestão do patrimônio cultural há necessidade de ações

educativas. Não uma estrutura instrucionista relegada aos técnicos que dirão a uma

comunidade o que é patrimônio e como se deve preservar o patrimônio. Deve ser um

trabalho de construção coletiva.

Quando todos os indivíduos de uma comunidade passam a discutir o que é

patrimônio, existe também um campo de conflito, no qual o que é patrimônio depende

das noções diferenciadas de cada um.

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Desta forma, deve se pensar como se discute um determinado patrimônio do

passado para que seja valorizado nos dias de hoje. Deve-se entender como se usar esse

passado, as formas de representação desse passado, a simbologia desse passado para

se discutir as questões do presente. Um caminho para entender o Patrimônio Cultural

como parte de nossa vida e com as pessoas passando a ter um sentimento de

pertencimento em relação esse patrimônio. Uma construção coletiva e compartilhada

do que é patrimônio cultural.

Isso requer um importante exercício do diálogo. E para isso, é importante se

valer do princípio de uma educação dialógica, como é referido por Paulo Freire. Não

se deve tratar os conhecimentos, e nesse caso os patrimônios culturais, produto de um

dono do saber e que deposita nos indivíduos aquilo que se deve ou não saber, o que se

deve ou não ser valorizado como patrimônio. Uma postura que já ter sido superada,

principalmente no que se refere ao Brasil, que tem em seu coletivo pessoas que sabem

o que é seu patrimônio e sabem o valor que representam para o coletivo.

O que necessita, em todo caso, são de situações de aprendizagem que sejam

geradas por uma ação educativa, que podem ter o apoio das instituições gestoras do

patrimônio. Cabe a elas serem mediadoras no fomento desses ambientes de

aprendizado, rodas de conversas, para a construção de um sentido coletivo de

patrimônio.

Não é uma metodologia impositiva já que se trabalhar a educação patrimonial

em uma postura autoritária e verticalizada. Não se faz depois dos processos de

tombamento do patrimônio material ou do registro do patrimônio imaterial, nem

depois dos processos de conservação que se deve ensinar para os educandos o que é

patrimônio. O processo vem antes, baseado na ação de identificação junto à

comunidade. Desde o início deve ter o envolvimento de todos, deixando a

comunidade definir o que é patrimônio e o que é referência cultural para ela.

Isso deve vir junto com um modelo de gestão pública compartilhada entre

parcerias, sendo um trabalho em conjunto entre o Estado e a Sociedade Civil que se

propõe a fazer essa preservação e a valorização do patrimônio cultural.

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Os marcos legais na área de educação são fundamentais. Existe um processo de

construção coletiva, mas falta algum documento e legislação que defina o que vem a

ser educação patrimonial. Isso é um entrave considerável e torna-se importante a

criação de estratégias e diretrizes para possa ser possível mediar esses processos de

ações educativas junto à sociedade e poder colaborar com uma visão ampliada do que

é patrimônio.

Trabalhar com educação patrimonial e com o patrimônio cultural como um

todo, traz consigo um conceito de sustentabilidade e de desenvolvimento local, pois é

a partir da memória e da cultura local que os indivíduos passam a se sentir

pertencentes a essa comunidade, em um processo de construção de uma memória

coletiva, gerando um processo de reconhecimento, de autoestima e de consciência

dentro dessa comunidade. Elementos importantes para definir os caminhos de

desenvolvimento desse lugar. Assim, o processo de valorização de patrimônio cultural

por meio da educação patrimonial serve como um indutor dos processos de discussões

e reflexões sobre o desenvolvimento de toda uma comunidade. Abrir a possibilidade

de um desenvolvimento além do consumo e do capital, mas que leva em consideração

a memória local e as histórias de vida dos indivíduos que compõem esse espaço.

Só se valoriza aquilo que se conhece, mas, além disso, a valorização do que se

sente pertencendo e do que se constrói no conjunto de toda a comunidade. Se não

reconhece como sendo de todos, não haverá valorização e não vai se efetivar a

conservação. Só quem está no local entende o que é patrimônio para ele naquele

espaço.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Educação Patrimonial, não é um pacote curricular, não pode ser observada

como coletânea de conteúdos, descrita numa única disciplina, é uma ação educativa

complexa que recupera a memória de um coletivo como possibilidade de

reconhecimento e afirmação de identidade.

É um fazer pedagógico que tem objetivos claros de formação para libertação

dos sujeitos no coletivo, os quais se encontram em condições de limitações das suas

potencialidades.

Dessa forma, a possibilidade de se organizar uma educação patrimonial passa

pela leitura de uma proposta ampla de educação, a qual se compromete com a

emancipação do sujeito, ou seja, uma formação integral, que para acontecer deve ser

vista em ação interdisciplinar.

A possibilidade de ocorrer uma proposta crítica Educação Patrimonial passa

por uma linha indicadora de Currículo, que tem intencionalidades claras em relação à

formação de professores, tratamento diversificado de material didático e de estudo;

reconhecimento da realidade do educando com linha inicial de um trabalho educativo.

Além disso, é fundamental uma ação intersetorial entre Educação e Serviço de

Patrimônio, numa estruturação que não se limite à políticas de Governo, mas que se

configure em políticas de Estado.

Essa proposta para Educação de Jovens e Adultos em São Bernardo do Campo

é algo ainda a ser construído, pois embora a proposta curricular trate da memória dos

sujeitos e dos seus coletivos ela não reconhece a produção cultural e histórica

enquanto bens patrimoniais.

Nesse sentido, como linha de indicação de trabalho em Educação Patrimonial

para essa modalidade de ensino nessa cidade, é a possibilidade da Coordenação do

Serviço junto aos professores da rede, reconhecer o papel da Educação Patrimonial

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com instrumento de fortalecimento da memória individual e coletiva que tanto se

afirma na proposta curricular.

Esse pensamento pode ser observado na experiência política de EJA de São

Bernardo do Campo em ação intersetorial com as equipes de tratamento das políticas

públicas de patrimônio em ação conjuntiva com a comunidade, com a perspectiva

crítica, a qual é a linha direcionadora da organização curricular da EJA.

A possibilidade dessa articulação passa pela organização e alinhamento de um

planejamento intersetorial, direcionado pelo Plano Municipal de Patrimônio, com

objetivo de se concretizar intencionalidades políticas. Nessa concretização algumas

ações, em condição conjuntiva se fazem necessárias. Entre tantas, podemos citar

formação de professores; atuação em leitura de patrimônios identificáveis pela

comunidade; cuidados e publicações de patrimônios já tombados.

Para isso acontecer é fundamental organizar um plano específico atrelado ao

Plano de Coordenação de Serviços, em que se tenha claro objetivos de formação de

professores, junto com as discussões de Currículos que já acontecem na rede de

ensino, além das orientações ao Projeto Político Pedagógico da escola (PPP), o qual

vem marcando os cuidados e atenção ao território.

Em ação pedagógica essa questão estaria nos estudos de memória e território,

meio ambiente e as diferentes linguagens que são os Eixos temáticos do Currículo da

EJA.

Nesse sentido, a Educação Patrimonial se aproximaria dos sujeitos e esses a

observaria como produção cultura de afirmação de identidade.

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