PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO …...À Comadre Danta e o Compadre Ratinho conterrâneos...

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL ANTONIA MARCIA ARAUJO GUERRA URQUIZO VALDIVIA OS DESAFIOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO A ÁGUA NO SEMIÁRIDO DA CAATINGA DO SERTÃO CENTRAL CEARENSE MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2012

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    PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

    ANTONIA MARCIA ARAUJO GUERRA URQUIZO VALDIVIA

    OS DESAFIOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO A ÁGUA NO

    SEMIÁRIDO DA CAATINGA DO SERTÃO CENTRAL CEARENSE

    MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

    SÃO PAULO

    2012

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    PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM SERVIÇO SOCIAL

    ANTONIA MARCIA ARAUJO GUERRA URQUIZO VALDIVIA

    OS DESAFIOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO A ÁGUA NO

    SEMIÁRIDO DA CAATINGA DO SERTÃO CENTRAL CEARENSE

    MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

    Dissertação apresentada à Banca

    examinadora da Pontifícia Universidade

    Católica de São Paulo, como exigência

    parcial para obtenção do título de Mestre

    em Serviço Social, sob orientação da

    Professora Doutora Maria Carmelita

    Yazbek.

    SÃO PAULO

    2012

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    BANCA EXAMINADORA

    ________________________________________

    ________________________________________

    ________________________________________

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    DEDICATÓRIA

    Aos intelectuais orgânicos que contribuem para a

    construção de uma outra história da

    humanidade, sujeitos e sujeitas que expressam

    indignação com a “esculhambação social”, e que

    caminham pelas trilhas das possibilidades, como

    os agricultores e agricultoras itatirenses, ao

    procurar estratégias para superar a fadiga em

    tempos difíceis no inesquecível amado sertão.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos meus pais Francisco Eliseu Guerra (in memorian) e Antonieta de Araújo Guerra

    (Dona Antonieta), por acreditarem e me incentivarem a buscar o conhecimento

    cientifico enquanto ferramenta de transformação social.

    As minhas filhas Marianinha e Vivi por cotidianamente serem solidárias com o meu

    crescimento em todas as dimensões, meninas comprometidas com a vida e a esperança.

    São simplesmente lindas e fraternas!

    A minha amiga e companheirinha das minhas filhas Lili (Eliene dos Santos) Professora

    Baiana que dedica parte da sua vida para nos ensinar a viver e a conviver. Sem ela era

    impossível realizar não apenas este trabalho, mas a dinâmica da vida cotidiana.

    Aos meus irmãos e familiares pelo convívio e solidariedade na prática, inclusive com a

    construção desta pesquisa - Marcelo, Maria do Carmo, João Paulo, Pedro Paulo, Neula,

    Dudu, Gabrielle, Ernando, Viviane, Lara, Yves, Valter (im memorian), Sandra, Roberto,

    Rian, Sany e Rany.

    À minha companheira política, professora Maria Stela Santos Graciani, coordenadora

    do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC/SP, que me incentivou historicamente a

    fazer serviço social e a seguir na pesquisa cientifica, bem como me oportunizou a

    exercer a minha profissão por meio da formação, pesquisa, participação social e

    sistematização do conhecimento.

    A minha linda orientadora Maria Carmelita Yazbek, pela solidariedade na construção do

    conhecimento, não tem igual, ela é mansa, firme, assertiva e comprometida com a

    construção do conhecimento científico. Verdadeiramente ela acreditou não só no meu

    projeto, mas, sobretudo na minha capacidade humana.

    A coordenação da Pós Graduação do Serviço Social professora Raquel Raichelis e

    professora Yazbek pelo sério trabalho e dedicação nessa coordenação ao incentivarem

    os pesquisadores a publicarem seus conhecimentos e ao mesmo tempo lutarem para que

    esses sejam dinamizados na prática social. Esta intencionalidade política toda a

    diferença!

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    As queridas professoras que fizeram parte da minha Banca de Qualificação Rosalina

    Santa Cruz Leite, Mariângela Belfiore Wanderlei e Carmelita Yazbek ao acolherem

    com tanto carinho a minha história de vida apresentada no memorial e também pelas

    assertivas orientações que deram subsídios estruturais para a continuidade da

    dissertação.

    Aos meus professores que tive a oportunidade de conviver e aprender no período de

    mestrado – Luiz Eduardo Wanderlei, Marco Aurélio Nogueira, Lucia Barroco, Maria

    Lucia Rodrigues, Carmelita Yazbek, Mariângela Belfiore, Carola Carbajal Arregui; José

    Paulo Neto; além das trocas e alegrias ao dialogar com Maria Lucia de Carvalho e

    Maria Lucia Martinelli.

    A Vânia e Carlos da Secretaria de Pós graduação em Serviço Social, pela paciência e

    correria, são parceiros dos pesquisadores e orientadores garantem não somente os

    prazos acadêmicos, mas o compromisso como parte fundamental para se alcançar o

    sucesso na pesquisa.

    À Comadre Danta e o Compadre Ratinho conterrâneos itatirenses, que muito me

    ajudaram a colocar a lata d‟água na cabeça e a suportar tamanho peso na trajetória tão

    longínqua – meus amigos e companheiros de Açude Chico Gomes.

    Aos intelectuais orgânicos envolvidos nesta pesquisa, que contribuíram

    significativamente para a realização de uma análise crítica e propositiva sobre a

    construção do caminho em busca das águas – Claudia Guerra (Secretária Municipal de

    Agricultura e Recursos Hídricos de Itatira), Antonio Saturnino – TIO (Associação dos

    Usuários de Água e Esgoto de Lagoa do Mato) Antonio Anatércio (e todos os

    presidentes que compõem a Federação das Associações Comunitárias do Município de

    Itatira). O vereador Jacson Guerra e Ari Sales (Membros da Associação de Lagoa do

    Mato – infelizmente dado o tempo exíguo de conclusão da pesquisa não foi possível

    entrevistá-los “oficialmente”, conforme o previsto. No entanto, fiz conversas

    articulatórias). Agradeço ainda pelas contribuições nas articulações para o

    desenvolvimento desta pesquisa, o vereador Ci do município de Quixadá, o Padre

    Arruda da Paróquia Menino Deus de Itatira, Maria Nazaré Sales (Subsecretária de

    Saúde do Município de Itatita) e Bráulio Guerra Ex-secretário de Agricultura do

    Município de Itatira.

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    Ao Carlos Simão coordenador do Projeto Pingo D‟água, grande homem corajoso na luta

    pela democratização do acesso a água no Sertão. Trouxe para a agricultura familiar uma

    esperança viva e viável de irrigação comunitária, a partir da construção de poços

    aluviários. Imprescindível Tecnologia Social no enfrentamento da seca do semiárido

    nordestino.

    Ao João da mata fotografo e pesquisador popular do sertão cearense, que me

    “presenteou” um livro de 1914 de autoria do Dr. Arão e os três tomos da bibliografia de

    Celso Furtado, leituras fundamentais no desenvolvimento da pesquisa.

    Ao Dr. Antonio Claudio Ferreira Lima Ex-Secretário de Planejamento do Estado do

    Ceará e José Alberto de Almeida do DNOCS/CE – muito contribuíram para que eu

    tivesse acesso aos documentos oficiais relacionados à política da água.

    As minhas amigas (profissionais e companheiras): Graziela Graciani, Juliana Graciani e

    Analdeci Moreira pelo investimento histórico na construção de todos os aspectos da

    minha vida. Mulheres porretas que não medem esforços para construir um outro mundo

    possível.

    Aos profissionais, companheiros (educadores) de NTC-PUC/SP que contribuíram

    diretamente com a minha pesquisa de mestrado - Silvestre Rodrigues pela competência

    nas discussões e sugestões teóricas, a Rosangela Eugenia pelo tratamento dos mapas,

    Carla Casado pelas dicas artísticas, Sebastião Flavio e Rafael Werblowsky pelas

    inúmeras traduções do inglês para o português. Aos profissionais; Denise Bastos, Vilma

    Maciel, Carlos Dutra e Tiziu pelas correrias nas digitações e nos socorros quando o

    computador “dava pau”. A Graça e ao Arnaldo pela solidariedade na prática, no sentido

    mais amplo da palavra e a Berna pelos incentivos.

    As meninas animadas e inteligentes do mestrado e doutorado que conviveram, parte de

    suas vidas, embora que pequena, comigo – Janice, Elaine, Ana Paula, Maria Carolina,

    Alessandra Genu, Luziene, Dora, Conceição, Maria José.

    A Lucivania Sales por me ajudar a virar a noite digitando, além de fazer chás noturnos

    para enfrentar o cansaço que tomava conta do corpo e da mente.

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    Aos meus amigos Gustavo Cherumbine, Soares da Silva e Edilson Santana por me

    levarem para a luta da socioeducação libertadora e também para a participação social,

    principalmente na política da água.

    Aos intelectuais orgânicos que construíram o Fórum da Cidadania do município de

    Itatira: Raimundo Júnior (in memorian) Nazaré Sales, Bráulio Guerra, Carlos Simão, Zé

    Galdino, Ari Sales, Vereador Eliseu, Zé Luis, Chico Jucá e Zé Humberto, todos foram

    essenciais em prol da construção do caminho das águas.

    Aos homens porretas da justiça cearense – Dr. Francisco Gomes Câmera (Promotor de

    Justiça) e Dr. Duarte Pinheiro (Juiz de Direito) por exercerem as suas funções sociais

    com competência, seriedade e transparência. Homens que lutam pela justiça não para o

    povo, mas sim com o povo, para enfrentar a bandalheira da corrupção do dinheiro

    público.

    Ao professores do PROCAM-USP que muito favorecem a criação de espaços para a

    produção científica e troca de saberes entre diversos pesquisadores do mundo – Dr.

    Arlei Benedito Macedo, Ana Paula Fracalanza, Wagner da Costa Ribeiro e Pedro

    Jacobi.

    As instituições públicas ANA, DENOCS e COGERH, que me acessaram uma serie de

    documentos necessários ao desenvolvimento desta pesquisa, sem nenhum tipo de

    burocracia. Ao contrário, do que muitos pensam, essas instituições produzem em larga

    escala conhecimento técnico-científico e colocam a serviço da pesquisa e da política

    pública todo seu arsenal.

    Ao CNPq por subsidiar esta pesquisa-ação, não somente financeiramente na medida em

    que me possibilita acessar novos conhecimentos e culturas por meio de livros, revistas,

    congressos, encontros e seminários.

    A Fundação Banco do Brasil, especialmente ao Marcos Fadanelli Ramos que me

    propiciou a contribuir com a construção do livro: “Educadores Sociais: a Importância da

    Formação na Implementação de Tecnologias Sociais”. E também a Vanilza Cipriano

    pela realização de um dos mais lindos e competentes projetos do Brasil - Projeto Olhos

    N‟água.

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    A força que nunca seca

    Já se pode ver ao longe

    A senhora com a lata na cabeça

    Equilibrando a lata vesga

    Mais do que o corpo dita

    Que faz o equilíbrio cego

    A lata não mostra

    O corpo que entorta

    Pra lata ficar reta

    Pra cada braço uma força

    De força não geme uma nota

    A lata só cerca, não leva

    A água na estrada morta

    E a força que nunca seca

    Pra água que é tão pouca.

    Chico César/Vanessa da Matta

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    LISTA DE SIGLAS

    ANA Agencia Nacional das Águas

    AUAELM Associação dos Usuários de Água e Esgoto de Lagoa do Mato

    CAGECE Companhia de Água e Esgoto do Ceará

    CAPES Coordenadoria Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

    CE Ceará

    CMA Conselho Mundial da Água

    CNRH Conselho Nacional dos Recursos Hídricos

    COGERH Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos

    CONERH Conselho Estadual de Recursos Hídricos

    CRH Conselhos de Recursos Hídricos

    DNH Divisão Hidrográfica Nacional

    DNOCS Departamento Nacional de Obras Contra a Seca

    ECO/92 Conferência Mundial para o Meio Ambiente e Desenvolvimento

    FACMI Federação das Associações Comunitárias do Município de Itatira

    EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

    FMA Fórum Mundial da Água

    IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

    IFOCS Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas

    IOCS Instituto de Obras Contra a Seca

    IPCC Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas

    LACEN Laboratório Central de Saúde Pública

    NTC-PUC/SP

    Núcleo de Trabalhos Comunitários da Pontifícia Universidade Católica de

    São Paulo

    OMM Organização Metereológica Mundial

    ONG Organização Não Governamental

    ONU Organização das Nações Unidas

    PMI Prefeitura Municipal de Itatira

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    PUC Pontifícia Universidade Católica

    PNRH Plano Nacional dos Recursos Hídricos

    PNUMA Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

    PROCAM/USP Programa de Ciências Ambientais da Universidade de São Paulo

    SIGERH Sistema Integrado de Gestão de Recursos Hídricos

    SISAR Sistema de Abastecimento Rural

    SMARH Secretaria Municipal de Agricultura e Recursos Hídricos

    SNGRH Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos

    SP São Paulo

    SUDENE Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste

    TC Tecnologia Capitalista

    TS Tecnologia Social

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    LISTA DE GRÁFICOS

    Gráfico 1 Distribuição das águas na Terra 46

  • 13

    LISTA DE TABELA

    Tabela 1 Distribuição da água doce superficial (Mundo, América e

    Brasil)

    47

    Tabela 2 A distribuição de água no Brasil por Bacias e Sub-Bacias 48

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    LISTA DE MAPAS

    Mapa 1 Biomas Brasileiros 38

    Mapa 2 Desvios negativos e positivos de chuvas nas regiões

    hidrográficas

    44

    Mapa 3 Situação hidrográfica do Estado do Ceará 49

    Mapa 4 Situação hídrica do distrito de Lagoa do Mato – Itatira/CE 52

    Mapa 5 Divisão Hidrográfica Nacional 60

    Mapa 6 Comitês de Bacias Hidrográficas do Estado do Ceará 61

    Mapa 7 Bacia Hidrográfica do Banabuiu 62

    Mapa 8 Bacia Hidrográfica do Curu 63

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    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Reunião do Fórum de Cidadania do Município de Itatira/CE 21

    Figura 2 Água compartilhada entre homens e animais 28

    Figura 3 Mulher carregando água na cabeça e nos braços 36

    Figura 4 Ciclo da água na Terra 42

    Figura 5 Fotografia translunar da Terra em 7 de setembro de 1972 43

    Figura 6 Abastecimento de carro-pipa em açude 51

    Figura 7 Crianças e adolescentes em busca das águas 67

    Figura 8 A guerra pela água na Bolívia 76

    Figura 9 Carregamento de água em jumento 77

    Figura 10 Mulher com crianças carregando água 87

    Figura 11 Tecnologia Social: construção de poços aluviários 118

    Figura 12 Tecnologia Social: sistema de abastecimento de água

    comunitária

    120

    Figura 13 Cisterna do Programa “Água Para Todos” do Governo

    Federal

    121

    Figura 14 Tecnologia Social: produção de frutas, a partir do sistema de

    irrigação comunitário

    130

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    RESUMO

    Esta dissertação traz importantes elementos constitutivos de análise crítica sobre

    os desafios para a democratização do acesso à água potável no semiárido da caatinga do

    sertão central cearense, ao defender veementemente que a “seca nordestina” (falta

    d‟água) não é um fenômeno meramente ambiental, e sim uma das expressões cabais da

    Questão Social.

    Para isso, a Teoria Social Marxista embasa a estrutura do desenvolvimento

    desta pesquisa, na medida em que coloca os conflitos pela água como inerentes ao

    sistema capitalista. Tem em sua base a exploração e a dominação, tanto dos

    trabalhadores como também de toda a riqueza natural.

    A argumentação teórico-metodológica sobre o estudo em questão é sustentada

    por diversos pilares, imprescindíveis para a construção desta dissertação desenvolvida

    por meio de quatro capítulos:

    1) CONJUNTURA POLÍTICA DA ÁGUA trata do histórico e distribuição da

    água na Terra, bem como da gestão política da água, a partir dos comitês de bacias

    hidrográficas, Fórum Mundial da Água e dos conselhos de recursos hídricos, além de

    problematizar o papel atual do Conselho Mundial da Água na comercialização da água.

    2) A ÁGUA ENQUANTO MERCADORIA NO SISTEMA CAPITALISTA

    aborda as facetas do sistema capitalista na expropriação da água para torná-la

    mercadoria e traz ainda a democracia capitalista da água, sobretudo a ofensiva do

    projeto neoliberal na América Latina – “A guerra pela água e pela vida”.

    3) A INVENÇÃO DO NORDESTE BRASILEIRO traz elementos para se

    analisar a formação sócio-histórica do espaço brasileiro, especialmente a Região

    Nordeste, resultado de pacto nacional numa intrínseca relação resistência-dominação;

    campo-cidade e desenvolvimento-subdesenvolvimento; tempo-espaço. Discute ainda os

    encontros e desencontros na “seca” nordestina, uma visão crítica sobre a

    heterogeneidade do DNOCS.

    4) O CAMINHO EM BUSCA DAS ÁGUAS apresenta a ética como parte

    estrutural da dinâmica sócio-histórica, construída numa disputa de poder, configurada

    pelos contraditórios interesses das classes sociais, além de socializar iniciativas contra-

    hegemônicas tendo como perspectiva a democratização do acesso à água.

    Considera-se ainda a importância desta pesquisa, não somente para o município

    de Itatira/CE (terra natal da autora), ao colocá-lo como importante no cenário da

    hidrografia nacional, mas para compor as discussões inerentes à contribuição do Serviço

    Social na luta pela democratização do acesso à água.

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    ABSTRACT

    This dissertation presents in itself important components of critical analysis about the

    challenge of democratization of the access to potable (drinkable) water at the seminar of

    the central wild drought and arid region of caatinga, in the state of Ceará, when

    defending with grate enthusiasm that the fact of “northeastern drought” (lack of water)

    is not a simple environmental phenomenon but it is, in truth, one of the most complete

    expressions (utterances) of the social question.

    To this, the social Marxist theory, takes as base the structure of development of this

    research the way that put the conflicts for water as part of the capitalist system. It is

    based on the exploration and domination, either, from the employees and of the natural

    richness.

    The theorethical methodological argumentation about the present study is supported by

    various pillars indispensable for the construction of this dissertation developed (divided)

    into four chapters:

    1) POLITICAL CONJUNTURE OF THE WATER

    It deals with the historic and distribution of water on the earth (ground), and also, the

    political management of the water, starting from the commitees of hydrographical

    basins, the world forum of the water and of the counsels of hydric resources, beside of

    problemize the current role of the world council of water in the commercialization of

    the water.

    2) THE WATER AS MARCHANDISE (COMODITY) IN THE CAPITALIST SYSTEM

    It discusses aspects of the capitalist system in the expropriation of the water to

    transform it into merchandise and yet exposes the capitalist democracy of the water,

    mainly the offensive of the neo-liberal project in Latin America. “The war for water and

    for the life”.

    3) THE BRAZILIAN NORTHEAST INVENTION

    It brings elements to analyse the socio-historical formation of the brazilian space in

    special the north-eastern Region, resultant of a national pact in intrinsical resistence-

    domination relation, country-city, and development-subdevelopment.; time space. It

    discusses yet the agreements and divergencies, respecting the North-eastern drought

    (seca) a critical vision about the heterogeneous condition of DNOCS.

    4) THE WAY OF LOOKING FOR WATER

    It shows the ethics as the structural part of the socio-historical dynamics emerged from

    the dispute to power, configured by the conflicting interests of the social classes,

    besides socialize antihegemonical, iniciatives, having as perspective the democratization

    of the water. Jet this reseach is regarded, of importance, not, only for the municipality of

    Itatira/CE (birth-place of the author) but, when taking in account the national

    hydrographical scenary making part of the discussions inherent to the social-service

    contribution, in the effort for the democratization of the access to water.

  • 18

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO...................................................................................................... 20

    CAPÍTULO I

    1. CONJUNTURA POLÍTICA DA ÁGUA............................................... 37

    1.1. Histórico da água na Terra......................................................................... 39

    1.2. Distribuição da água na Terra.................................................................... 45

    1.3. Gestão política da água.............................................................................. 53

    CAPÍTULO II

    2. A ÁGUA ENQUANTO MERCADORIA NO SISTEMA

    CAPITALISTA........................................................................................

    63

    2.1. A água enquanto mercadoria...................................................................... 64

    2.2. A democracia capitalista da água............................................................... 70

    CAPÍTULO III

    3. A (RE)INVENÇÃO DO NORDESTE BRASILEIRO.......................... 79

    3.1. Formação política da Região Nordeste....................................................... 79

    3.2. Caminho e descaminho no enfrentamento da “seca” nordestina................ 88

    CAPÍTULO IV

    4. O CAMINHO EM BUSCA DAS ÁGUAS.............................................. 93

    4.1. Atuação social na esfera da política: tensão e possibilidade no

    movimento resistência-dominação para a democratização do acesso a

    água............................................................................................................

    94

    4.1.1. A importância da política............................................................................ 94

  • 19

    4.1.2 Em defesa da democracia participativa...................................................... 99

    4.2. A interlocução do saber técnico-científico com o saber popular: um

    movimento ético-político imprescindível à democratização do acesso a

    água............................................................................................................

    102

    4.2.1. Diferentes éticas na construção do conhecimento...................................... 103

    4.2.2. A importância do intelectual orgânico....................................................... 107

    4.3. Pressupostos da concepção de educação socioambiental numa

    perspectiva sócio-histórica..........................................................................

    112

    4.4. A relevância de Tecnologias Sociais no enfrentamento da “seca” no

    semiárido nordestino...................................................................................

    116

    CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 121

    REFERÊNCIAS..................................................................................................... 131

    GLOSSÁRIO.......................................................................................................... 138

    ANEXOS................................................................................................................. 145

  • 20

    INTRODUÇÃO

    Enfim, achei que tinha chegado a hora

    de fazer a minha grande viagem (...)

    Passa por catinga e por serrotes;

    por mata e cerrado,

    por léguas de campos e alagados.

    Dois rios se atravessam sempre secos no verão;

    mas no inverno eles correm encachoeirados,

    Essa é que era a referência importante (...)

    (...) recuperar aquele chão que valia mais do que ouro,

    com a sua água perene, com suas Terras frescas.

    Trechos extraídos da obra Memorial de Maria Moura,

    de Rachel de Queiroz

    Esta dissertação de mestrado em Serviço Social, defendida na PUC/SP, traz

    sistematizações que vão para além de cumprir exigências acadêmicas para a titulação de

    mestre. Mostra, sobretudo, a paixão de uma intelectual orgânica, que se aproxima da

    academia para melhor compreender as formas de injustiças que ocorreram na sua

    trajetória de vida, sobretudo com a “falta de água” impondo à sua infância carregar lata

    d‟água na cabeça por trajeto longínquo e, no auge da adolescência, o êxodo rural. Esta

    condição lhe custou muito caro, na medida em que muitos dos seus direitos de criança e

    adolescente foram violados.

    Foi na formação em Serviço Social na PUC/SP (iniciada em 1994) que buscou

    elementos profissionais (ético-político, teórico-metodológico e técnico-operativo) para

    que, imbuída deste saber imprescindível, pudesse voltar a sua inesquecível Itatira/CE e

    estabelecer diálogos com importantes segmentos sociais.

  • 21

    Com este intuito, contribuiu com o movimento pela cidadania do município de

    Itatira/CE, junto à Confederação das Associações Comunitárias, Ministério Público,

    Conselho de Saúde, Políticos não corruptos, Poder Judiciário, Conselho de

    Desenvolvimento Sustentável, com o apoio em especial dos cidadãos itatirenses e do

    articulador da Política Regional do Governo do Estado do Ceará, que não aguentavam

    mais os níveis de corrupção do Poder Executivo local. Portanto, resolveram criar o

    Fórum da Cidadania (1997), que esta pesquisadora teve a honra de coordenar.

    Figura 1– Reunião do Fórum da Cidadania do Município de Itatira/CE.

    Fonte: Nazaré Sales de Oliveira. Acervo pessoal de Nazaré Sales de Oliveira, 1997.

  • 22

    O Fórum da Cidadania discutiu várias problemáticas, mas destaca-se em

    particular a luta pela água1, que se deu numa disputa de poder intensa: de um lado os

    donos de empresas e políticos descomprometidos com o dinheiro público, que

    teimavam em executar a obra de abastecimento de água de forma inadequada; de outro,

    segmentos que integravam o Fórum da Cidadania denunciavam diversas mazelas

    envolvendo a execução da obra de sede municipal. Esta disputa se configurou em

    cenário público, o que permitiu debates populares de caráter ético-político, apontando

    para os desafios da democratização do acesso à água. E graças às tentativas do Fórum

    da Cidadania, o Governo do Estado do Ceará decidiu suspender a “obra ilegal” e criou

    novos procedimentos para garantir a execução da obra, conforme estabelecido em

    padrões previsto no projeto.

    É neste contexto sócio-histórico que a formação profissional em Serviço Social

    cria corpo e toma forma para a pesquisadora, pois “vê na prática” a importância do

    movimento da práxis da Teoria Social apresentar como campo de mediação, que não se

    dá apenas pelo conhecimento, mas também pela prática, que deve estar articulada com

    princípios e valores de um projeto societário radical democrático, conforme indica o

    atual Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais.

    Portanto, a construção dessa dissertação “OS DESAFIOS PARA A

    DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À ÁGUA NO SEMIÁRIDO DA CAATINGA

    DO SERTÃO CENTRAL CEARENSE” se realiza pelo movimento da práxis,

    rompendo assim com a dicotomização entre teoria e prática – a teoria ainda é vista por

    muitos como abstrata e a prática como campo de intervenção, apenas. Entretanto, uma

    não se segura sem a outra: a teoria é a luz guiadora da prática, que é o espaço concreto

    da ação, em que se imprimem convicções.

    Outro fundamento ético da profissão basilar para o desenvolvimento desta

    pesquisa foi a interdisciplinaridade, pois a análise crítica sobre os desafios para a

    democratização do acesso à água se deu pela interlocução de saberes entre o Serviço

    1 Diversas denúncias sobre a obra de abastecimento chegaram ao Fórum da Cidadania, das quais destacamos: canos usados fora do

    padrão estabelecido no projeto; espessura e profundidade das canaletas, que não eram adequadas; atraso no pagamento dos

    trabalhadores da obra; inexistência de um escritório local da obra, conforme previa o projeto; os poços artesianos não estavam dentro dos padrões estabelecidos no contrato, além da denúncia de subempreitagem da obra.

  • 23

    Social com outras áreas do conhecimento, tais como: geologia, hidrologia, geografia,

    economia, educação, sociologia, ciências políticas, antropologia, história, direito.

    Nesse sentido Raicheles (2009: 377) defende que:

    Ao contrário do que muitas vezes se considera, o trabalho

    interdisciplinar demanda a capacidade de expor com

    clareza os ângulos particulares de análise e propostas de

    ações diante dos objetos comuns a diferentes profissões,

    cada uma delas buscando colaborar a partir dos

    conhecimentos e saberes desenvolvidos e acumulados

    pelas suas áreas.

    A “SECA” COMO UMA DAS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL2

    Refletir a seca enquanto expressão cabal da Questão Social é negá-la como

    sendo Questão Ambiental. Desta forma, é possibilitar uma análise crítica ante a disputa

    pela água, especialmente no semiárido nordestino, pensado neste estudo não como

    fenômeno isolado meramente ambiental, mas, sobretudo, dentro de uma dinâmica sócio-

    histórica desencadeada pela hegemonia política do sistema capitalista.

    Para aprofundar e justificar o debate em pauta, tem-se que conceituar antes de

    tudo a terminologia Questão Social e Questão Ambiental. Para daí se intensificar a

    discussão dos veios ideológicos e políticos, de como se deu e ainda se dá a invenção

    enigmática da “seca” na região Nordeste.

    2 QUESTÃO SOCIAL (NETTO, 2004:45-46) é concebida pelo desenvolvimento capitalista que produz,

    compulsoriamente, a “questão social”. Portanto, a “questão social” é constitutiva do desenvolvimento do

    capitalismo.

    Segundo Iamamoto (2004: 17), a “questão social” diz respeito ao conjunto das expressões das

    desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do

    Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposto à apropriação privada da própria

    atividade humana – o trabalho.

    De acordo com Yazbek (2004:33), ao colocar a questão social [...], estou colocando a questão da divisão

    da sociedade em classes, cuja apropriação da riqueza socialmente gerada é extremamente diferenciada.

    Estou colocando em questão, portanto, a luta pela apropriação da riqueza social.

  • 24

    A terminologia Questão Ambiental por si só se alimenta de concepções

    conservadoras, na medida em que se coloca como matricial para responder aspectos

    relacionados a impactos socioambientais. Com efeito, esta terminologia se apresenta

    como categoria de análise da realidade socioambiental, o que contribui

    significativamente para escamotear os conflitos de classes sociais, bem como no

    encurtamento da análise crítica sobre o aviltamento socioambiental promovido pelo

    modo de produção capitalista. Exemplo disso é a invenção social e política do famoso e

    enigmático polígono das “secas” – o Nordeste brasileiro.

    No campo de análise crítica, o que equivocadamente é chamada de Questão

    Ambiental se configura apenas como uma das expressões cabais da Questão Social, pois

    se trata da “falta de água” potável para as populações, problema que se atribui somente

    a “secas” periódicas, e não à ausência de planejamento participativo integrado e a

    democratização de investimento em tecnologias para captação de água de chuva,

    extração de água subterrânea ou dessalinização de água salobra; e poluição das águas

    subterrâneas e superficiais, dentre outros citáveis problemas socioambientais.

    Para uma melhor compreensão, é imprescindível conceituar Questão Social, que

    no pensamento de Netto (2004: 45-46) é concebida pelo desenvolvimento capitalista

    que produz, compulsoriamente, a “questão social”. Portanto, a “questão social” é

    constitutiva do desenvolvimento do capitalismo.

    Para Iamamoto (2004: 17), a Questão Social diz respeito ao conjunto das

    expressões das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura,

    impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da

    produção, contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho.

    Acrescida da contribuição conceitual Yazbek ( 2004: 33) afirma que, ao colocar

    a questão social [...], estou colocando a questão da divisão da sociedade em classes, cuja

    apropriação da riqueza socialmente gerada é extremamente diferenciada. Estou

    colocando em questão, portanto, a luta pela apropriação da riqueza social.

    A partir da analise crítica sócio-histórica trazida pelos autores, é possível afirmar

    que a terminologia Questão Ambiental, por mais crítica que venha a ser, ancora-se no

    pensamento conservador. Quando essa terminologia aparece, por si só, se resume

    equivocadamente como se fosse um “novo fenômeno”, e que este pouco tem a ver com

    as contradições das classes sociais.

  • 25

    Para Leff (2002: 62):

    A problemática ambiental não é ideologicamente neutra nem é alheia

    a interesses econômicos e sociais. Sua gênese dá-se num processo

    histórico dominado pela expansão do modo de produção capitalista,

    pelos padrões tecnológicos gerados por uma racionalidade econômica

    guiada pelo propósito de maximizar os lucros e os excedentes

    econômicos em curto prazo, numa ordem econômica mundial

    marcada pela desigualdade entre nações e classes sociais.

    Nesse âmbito, é preciso colocar a “questão ambiental” dentro de uma estrutura

    sócio-histórica, podendo ser mencionada como uma das expressões perversas da

    “questão social”, pois são inúmeras as mazelas socioambientais provocadas pela

    (des)ordem do modo de produção do sistema capitalista.

    Para muitos intelectuais, essa discussão central (Questão Social e Questão

    Ambiental) trata-se apenas de um trocadilho de palavras, ou mais, de vaidades e de

    empáfias acadêmicas, em que determinado pesquisador precisa se sobressair em relação

    a outros para ter visibilidade na orla academicista. Mas atenção: no caso das questões

    em debate, trata-se de categorias de análise da realidade, e se não enxergadas

    criticamente, pode-se fortalecer um pensamento conservador com base alienadora, em

    que se perca a noção do que é essencial – a “seca” como invenção histórica e política

    demarcada por conflitos sociais e pela expropriação do capital pela riqueza natural e

    pela riqueza social historicamente produzida.

    CAMINHO PERCORRIDO

    O desenvolvimento desta dissertação se realiza por meio da metodologia de

    pesquisa-ação, definida por Thiollent (2007) ao dizer que este procedimento deve ser

    utilizado quando os pesquisadores não têm intenção, apenas, de fazer levantamento de

    dados ou de meros relatórios a serem arquivados, mas, ao contrário, querem que as

    pessoas implicadas tenham “algo a dizer” e a “fazer”. Assim, os pesquisadores

    pretendem desempenhar um papel ativo na própria realidade dos fatos observados.

  • 26

    Assim, este trabalho é balizado pela metodologia de pesquisa-ação

    fundamentada no pensamento de Thiollent (1996: 14), ao mencionar que a:

    Pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é

    concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a

    resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os

    participantes representativos da situação ou do problema estão

    envolvidos de modo cooperativo ou participativo.

    Para uma melhor compreensão do conceito de pesquisa-ação, devem-se buscar

    as contribuições teórico-metodológicas de René Barbier e Michel Thiollent, conforme

    indica Severino (120: 2008), ao definir que:

    A pesquisa-ação é aquela que, além de compreender, visa intervir na

    situação, com vistas a modificá-la. O conhecimento visado articula-se

    a uma finalidade intencional de alteração da situação pesquisada.

    Assim, ao mesmo tempo que realiza um diagnóstico e a análise de

    uma determinada situação, a pesquisa-ação propõe ao conjunto de

    sujeitos envolvidos mudanças que levam a um aprimoramento das

    práticas analisadas.

    Portanto, este trabalho se orienta numa perspectiva crítica e propositiva,

    objetivando contribuir com a construção coletiva de um outro conhecimento, a partir da

    interlocução do saber técnico-científico com o saber popular, propiciando, assim, novas

    possibilidades que atentem para a importância de se discutir a água na esfera política,

    inserida num cenário tenso e contraditório, configurado pela disputa entre os diversos

    interesses das classes sociais.

    Carece atentar-se para a metodologia utilizada neste trabalho, pois muitos

    podem atrelar o exíguo espaço de tempo – 2 anos – com a efetividade da metodologia

    em percurso, pesquisa-ação. Esta dúvida em relação ao processo metodológico foi

    campo de estudo e até mesmo de preocupação em todos os espaços de orientação –

    orientanda e orientadora e acrescido da pertinência do debate imprescindível na Banca

    de Qualificação.

  • 27

    Portando, o que guiou a determinação da metodologia foi o objetivo no qual se

    deu o processo metodológico e os resultados construídos coletivamente, na medida em

    que os procedimentos metodológicos propiciaram melhor compreensão da realidade,

    bem como apontaram sugestões de intervenção tendo como perspectiva a

    democratização do acesso à água no semiárido da caatinga do sertão central cearense.

    Assim, os outros procedimentos metodológicos serviram de apoio para a

    realização da pesquisa-ação, pois foram utilizadas a pesquisa participante, a pesquisa

    bibliográfica, a pesquisa documental, a pesquisa de campo.

    Nesta perspectiva é que se realizou este trabalho, que sem ser o único contribui

    para a construção de novos rumos na caminhada coletiva com os diversos segmentos –

    Subcomitê de Bacia Hidrográfica do Curu e do Banabuiú, Secretaria Municipal de

    Agricultura Recursos Hídricos de Itatira/CE, Federação das Associações Comunitárias

    de Itatira, Associação de Lagoa do Mato, Associação dos Usuários de Água e Esgoto de

    Lagoa do Mato, Associação Comunitária de Contendas3, Associação de Lagoa do Mato

    4

    e conversa com o representante do projeto Pingo D‟água, que atua no Sertão Central,

    dentre outros importantes atores sociais.

    O objetivo da pesquisa é contribuir para a democratização do acesso à água

    potável de qualidade no semiárido da caatinga do sertão central cearense, em especial

    no município de Itatira/CE, a partir do envolvimento de distintos atores sociais5, que em

    parceria com a pesquisadora são capazes de analisar as potencialidades e precariedades

    da região, para juntos proporem sugestões de enfrentamento à “falta d‟água potável”,

    num cenário tenso demarcado pela disputa de poder entre antagônicos interesses de

    grupos sociais.

    Este trabalho se desenvolveu a partir de diversos procedimentos metodológicos,

    a saber: conversa telefônica; jantar político; envio de e-mail; reuniões; e roda de

    conversa.

    3 Associação Comunitária de Contendas – local rural onde nasci – sertão.

    4 A Associação de Lagoa do Mato participou a partir de diálogos com o Ari Sales e uma conversa rápida

    com o Jacson Guerra (em sua casa). Infelizmente não houve tempo hábil para entrevistá-los conforme

    previsto no planejamento da pesquisa. Mas destaca-se o empenho e envolvimento dos participantes em

    contribuir com este estudo. 5 Atores sociais – instituições, pessoas, movimentos sociais que podem integrar objetivos ou correlacionar

    forças de acordo com seus interesses – uma das categorias de análise de conjuntura de Hebert de Souza

    (Betinho),

  • 28

    Estas estratégias possibilitaram a apresentação do projeto de pesquisa aos

    participantes; identificação dos principais conflitos em torno da água no município de

    Itatira, além do apontamento sobre os desafios para o enfrentamento do problema da

    “falta de água potável”.

    AVANÇOS E DESAFIOS PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À

    ÁGUA

    Figura 2 – Água compartilhada entre homens e animais

    Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=849728

    O município de Itatira não participa oficialmente do Comitê de Bacia

    Hidrográfica do Banabuiú, sendo que a maioria de suas águas vão para

    esta bacia.

    http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp

  • 29

    Disputa pelo abastecimento de água no distrito de Lagoa do Mato entre

    duas associações comunitárias do município de Itatira: ALM –

    Associação de Lagoa do Mato, AUAELM – Associação dos Usuários de

    Água e Esgoto de Lagoa do Mato, SISAR e CAGECE.

    Não há uma espécie de agenda pública no município para discutir

    sistematicamente as disputas pela apropriação da água advinda do

    entrave entre os distintos interesses de grupos sociais. Embora se

    reconheçam algumas iniciativas em determinados momentos de “crise”

    entre prefeitura, sociedade civil e outros órgãos públicos estaduais e até

    nacional, que é o caso do Exército Brasileiro.

    Conflitos entre CAGECE e proprietários de terras para a perfuração de

    poços artesianos em cima da serra, pois existem duas “necessidades”

    alegadas: o abastecimento de água na sede de Itatira exige

    obrigatoriamente, por parte da CAGECE, a ampliação de poços para

    suprir a carência de água, caso contrário o sistema de abastecimento

    entrará em colapso. De outro lado, os proprietários de terra alegam que,

    se abrirem poços para extrair águas subterrâneas em proporções altas,

    poderá baixar significativamente a área de recarga de água da serra, o

    que afetari, sobretudo a produção de banana-prata.

    Acesso insuficiente à água potável pelos trabalhadores rurais, pois houve

    reivindicação por parte das lideranças integrantes da Confederação das

    Associações Comunitárias do Município de Itatira/CE junto ao Exército

    Brasileiro, pedindo maior atenção para ampliar imediatamente a

    distribuição de águas nas “Comunidades Rurais”, considerando que o

    volume de distribuição estava sendo insuficiente para todas as famílias

    inscritas no Programa Água para Todos.

    O Sistema de Abastecimento de Água do distrito de Lagoa do Mato traz

    dois problemas: não atende universalmente a demanda e ainda não

    existem mecanismos sociais para integrar ao sistema aqueles que não

    podem pagar pelos serviços. Ademais, existe alto consumo de água,

    sobretudo pelas construções civis, irrigação, lava-rápido e desperdiço de

    água no consumo doméstico.

  • 30

    As cisternas construídas pelo Programa Água Para Todos do Governo

    Federal se colocam fundamentais para compor ações de enfrentamento à

    “falta de água” pela captação de água de chuvas, no entanto, o município

    precisa considerar os seguintes aspectos: as cisternas deste programa

    atendem apenas a zona rural; o número de cisterna é pouco, se

    relacionado à demanda e este reservatório requer a captação de água de

    chuva, o que nem sempre é sistemático devido à escassez de chuvas na

    região.

    Conflitos estabelecidos entre governo, empresas, movimentos sociais e

    universidades, devido à “extração de urânio”, na medida em que a maior

    jazida do Brasil de rochas fosfáticas encontra-se na região. E Itatira será

    um dos municípios mais impactados, além das bacias hidrográficas que o

    compõem.

    Soterragem e erosão nas nascentes dos rios impactam diretamente na

    vazão de água nas bacias hidrográficas do Curu e do Banabuiú, além da

    diminuição da metragem de água nos principais açudes do município.

    A falta de monitoramento sistemático no controle da qualidade da água é

    um forte indicador para o abastecimento do município de Itatira, embora

    se reconheçam esforços já realizados pela Secretaria Municipal de

    Agricultura e Recursos Hídricos, em parceria com a CAGECE, ao

    realizarem um estudo sobre a qualidade dos principais reservatórios de

    água do município – Açudes João Guerra, Oiticica, Suçuarana e São

    Joaquim.

    Alta inadimplência da população em relação ao pagamento dos serviços

    prestados no abastecimento de água pelo SISAR e pela AUAELM, o que

    ocorre por dois aspectos: o baixo poder aquisitivo financeiro de alguns

    usuários e pela não cultura de outros em pagar pelos serviços prestados.

    A distribuição de água realizada por meio de carro-pipa, muitas vezes

    chega nos reservatórios domésticos à deriva, sem controle sistemático de

    qualidade no percurso de seu trajeto (do açude aos potes, filtros,

    cisternas, tanques) ou tratamento adequado para o consumo humano.

  • 31

    Embora também se reconheçam esforços para enfrentar este problema

    por meio de ação feita em parceria entre PMI, Laboratório LACEM,

    Exército Brasileiro e CAGECE.

    Ampliação do Açude João Guerra e tratamento adequado de esgoto do

    espaço urbano, para que não polua os mananciais.

    Construção de aterro sanitário com tratamento adequado, além da

    implantação de coleta seletiva.

    Implantação efetiva do Projeto Caminho das Águas desenvolvido pelo

    Governo do Estado do Ceará.

    Construção da Adutora do Açude em Umari, no Município de Madalena,

    para bombear água para o distrito Lagoa do Mato.

    Estes avanços e desafios relacionados acima foram apenas aqueles

    citados no decorrer da pesquisa, o que não significa a inexistência de

    outros.

    PROPOSTA DE INTERVENÇÃO: OBSERVATÓRIO SOCIOAMBIENTAL DA

    ÁGUA

    A “falta de água” potável não ocorre apenas em Itatira/CE, mas também na

    região, daí a necessidade de se agregar esforços para dar continuidade ao levantamento

    de problemas e potencialidades, bem como construir intervenções socioambientais

    participativas, pois a realidade em que se insere este problema é múltipla e complexa.

    Esse problema se agrava ainda mais com o escamoteamento dos conflitos advindos dos

    diversos interesses de grupos sociais, o que aparentemente nos levar a crer que todos os

    nordestinos querem a democratização da água potável, independentemente de sua

    condição social, o que é um equivoco no campo de análise, pois as contradições das

    classes sociais geram, dentre outras coisas, o não acesso à água potável.

  • 32

    Não existe um receituário pronto e acabado para se destacar com precisão o que

    deve ser feito para se garantir a democratização do acesso à água potável. Pois este

    objetivo não requer apenas uma forma de intervenção, ao contrário, impõe aos

    governos, movimentos sociais, intelectuais, políticos, entidades sociais, uma certa

    atenção para a incompletude de políticas públicas e tecnologias sociais aplicadas com

    vistas a solucionar o problema. Em outras palavras, não existe “a boa”; o que existe são

    ações que devem se integrar e serem repensadas a partir das peculiaridades de cada

    hidrografia.

    Portanto, este Trabalho de Mestrado, sem ser o único, vem contribuir para

    integrar o movimento de avanços e desafios constituído historicamente pelo Estado do

    Ceará, pois são muitas as contribuições deste Estado, inclusive no cenário nacional, ao

    protagonizar a legislação estadual dos recursos hídricos, trazendo na sua gênese a

    principiologia da Constituição Federal de 1988, acrescido do experimento da criação do

    Comitê de Bacia Hidrográfica do Curu, além dos distintos movimentos sociais que

    lutam incessantemente pela democratização do acesso à água, que sem serem os únicos,

    pode-se citar – Pastoral da Terra e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra,

    além de organizações da sociedade civil que desenvolvem tecnologias sociais de alta

    relevância para se enfrentar os problemas observados, como a ASA – Articulação do

    Semiárido, que dentre outras lutas, propalou a campanha de “um milhão de cisterna”. E

    pode-se citar também a importância do Projeto Pingo D‟Água, que traz como elemento

    fundante a democratização da água do subsolo por meio da construção de poços

    aluviários, para que os agricultores tenham acesso ao sistema de abastecimento de água

    doméstica e também se possa potencializar, por meio de irrigação, a agricultura

    familiar.

    É nesse sentido que o processo participativo da construção desta pesquisa aponta

    para a necessidade de se criar um espaço potencializador capaz de produzir mecanismos

    políticos participativos a fim de socializar experiências desenvolvidas em tecnologias

    sociais, apontar projetos para que sejam gestados no âmbito das políticas públicas;

    promover ações integradas que tenham por objetivo central a democratização do acesso

    à água no município de Itatira/CE, além de incentivar os diversos segmentos a participar

    nos espaços democráticos de construção de políticas e fortalecer as reivindicações

    coletivas, tais como:

  • 33

    1. Potencializar a participação pública dos distintos atores sociais

    envolvidos com a problemática da “falta de água”, para juntos pensarem

    ações que enfrentem tal problema;

    2. Criar um banco de dados vivo sobre a violação dos direitos

    socioambientais, identificando o direito violado, o violador, o ator

    violado, os procedimentos tomados, bem como as sugestões inerentes ao

    enfrentamento do problema, dentre outros aspectos que podem integrar

    um diagnóstico sobre a “falta de água potável”;

    3. Promover debates públicos sobre os desafios para se democratizar o

    acesso à água potável por meio de reuniões, seminários, oficinas,

    encontros, de forma descentralizada e participativa.

    4. Criar Grupos de Trabalhos (GTs) para fazer levantamento participativo

    sobre a hidrografia local, das legislações existentes; experiências bem

    sucedidas (do Estado ou da Sociedade Civil); e construir propostas

    inovadoras capazes de apontar para a democratização do acesso à água

    potável.

    5. Divulgar as ações promovidas pelo coletivo por meio de publicações em

    revistas, livros, jornais, apresentação de trabalhos em encontros,

    seminários e conferências.

    6. Dinamizar o “Fórum da Água” por meio da interlocução com Ministério

    Público, Defensoria Pública, Judiciário, Executivo, Legislativo, ONGs –

    Organizações Não Governamentais, Movimentos Sociais, Empresas,

    Universidades, Fundações públicas e privadas, OSCIPs – Organização da

    Sociedade Civil de Interesse Público, Associações Comunitárias,

    Sindicatos, etc.

    7. Fortalecer o controle social da gestão das políticas públicas em relação à

    água, acompanhando o orçamento público municipal, participando das

    reunião dos conselhos municipais de recursos hídrico e de assistência

    social (responsável pelo carro-pipa), promovendo debates com o prefeito

    e suas secretarias, para contribuir com a feitura de projetos que visem a

    democratização do acesso à água.

  • 34

    8. Criar Comissões Descentralizadas, por distrito, bairro ou povoados

    (comunidades) para integrar o OSA – Observatório Socioambiental da

    Água.

    9. Realizar Mostras Socioambientais envolvendo professores e estudantes

    de escolas públicas e privadas, ou de projeto sociais para demonstrarem

    aspectos relacionados à água.

    10. Elaborar revistas em quadrinhos e panfletos sobre a importância da

    hidrografia da Itatira no cenário do Ceará, enfatizando a importância de

    cuidar.

    11. Promover ações que integrem os diversos conselhos setoriais e de

    direitos, políticas e movimentos sociais, tendo em vista a

    intersetorialidade e integralidade de ações voltadas à garantia do acesso à

    água.

    12. Estudos e reaplicabilidades de tecnologias sociais que podem ser

    apoiadas por diversos setores e organismos sociais.

    13. Seminário Municipal Anual para socialização das ações descentralizadas,

    avaliação dos trabalhos realizados e construção participativa de propostas

    que integrarão as ações voltadas à democratização do acesso à água.

    14. Dentre outros aspectos a serem discutidos e sugeridos pelos diversos

    atores sociais do OSA.

    A propósito, este instrumento precisa ser mais bem estudado e compreendido

    dentro das forças locais, para daí se pensar no seu formato, ou seja, o OSA pode ser um

    movimento social que agrega as diversas forças existentes, pode ser também uma

    espécie de política pública ou um projeto de extensão universitária. O que mais importa

    é que não perca sua essência, que é unir diversas forças imprescindíveis à

    democratização do acesso à água.

  • 35

    ESTRUTURA DO TRABALHO

    Esta dissertação traz importantes elementos constitutivos de análise crítica sobre

    os desafios para a democratização do acesso à água potável no semiárido da caatinga do

    sertão central cearense, ao defender veementemente que a “seca nordestina” (falta

    d‟água) não é um fenômeno meramente ambiental, e sim uma das expressões cabais da

    Questão Social.

    Para isso, a Teoria Social Marxista embasa a estrutura do desenvolvimento

    desta pesquisa, na medida em que coloca os conflitos pela água como inerentes ao

    sistema capitalista. Tem em sua base a exploração e a dominação tanto dos

    trabalhadores como também de toda a riqueza natural.

    A argumentação teórico-metodológica sobre o estudo em questão é sustentada

    por diversos pilares, imprescindíveis para a construção desta dissertação desenvolvida

    em quatro capítulos:

    1) CONJUNTURA POLÍTICA DA ÁGUA trata do histórico e distribuição da

    água na Terra, bem como da gestão política da água, a partir dos comitês de bacias

    hidrográficas, Fórum Mundial da Água e dos conselhos de recursos hídricos, além de

    problematizar o papel atual do Conselho Mundial da Água na comercialização da água.

    2) A ÁGUA ENQUANTO MERCADORIA NO SISTEMA CAPITALISTA

    aborda as facetas do sistema capitalista na expropriação da água, para torná-la

    mercadoria e traz ainda a democracia capitalista da água, sobretudo a ofensiva do

    projeto neoliberal na América Latina – “A guerra pela e pela vida”.

    3) A (RE)INVENÇÃO DO NORDESTE BRASILEIRO traz elementos para se

    analisar a formação sócio-histórica do espaço brasileiro, especialmente a Região

    Nordeste, resultado de pacto nacional numa intrínseca relação resistência-dominação;

    campo-cidade e desenvolvimento-subdesenvolvimento; tempo-espaço. Discute ainda os

    encontros e desencontros na “seca” nordestina, uma visão crítica sobre a

    heterogeneidade do DNOCS.

    4) O CAMINHO EM BUSCA DAS ÁGUAS apresenta a ética como parte

    estrutural da dinâmica sócio-histórica, construída numa disputa de poder, configurada

  • 36

    pelos contraditórios interesses das classes sociais, além de socializar iniciativas contra-

    hegemônicas, tendo como perspectiva a democratização do acesso à água.

    Para uma melhor compreensão da situação da “falta d‟água no sertão”,

    apresentam-se imagens do decorrer de todo o trabalho, com o objetivo de ilustrar por

    meio da arte os diversos aspectos que englobam as vulnerabilidades socioambientais

    vividas por grupos sociais que não detêm as condições financeiras para obter a água

    potável de boa qualidade.

    Figura 3 – Mulher carregando água na cabeça e nos braços

    Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=849728

    http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=849728

  • 37

    CAPÍTULO I

    1. CONJUNTURA POLÍTICA DA ÁGUA

    Enfim, achei que tinha chegado a hora

    de fazer a minha grande viagem (...)

    Passa por catinga e por serrotes;

    por mata e cerrado,

    por léguas de campos e alagados.

    Dois rios se atravessam sempre secos no verão;

    mas no inverno eles correm encachoeirados,

    Essa é que era a referência importante (...)

    (...) recuperar aquele chão que valia mais do que ouro ,

    com a sua água perene, com suas terras frescas.

    Trechos extraídos da obra Memorial de Maria Moura,

    de Rachel de Queiroz.

    Discutir os desafios para a democratização do acesso à água no semiárido da

    caatinga do sertão central cearense requer não apenas análise crítica da conjuntura

    política, mas, sobretudo, reconhecer que a seca (falta de água) não é um fenômeno

    meramente ambiental, e sim uma das expressões cabais da Questão Social.

    Nesse sentido, a água precisa ser mencionada dentro de um cenário tenso,

    configurado pelos diversos interesses sociais de manutenção do modo de produção

    capitalista, que se dá pela expropriação das águas superficiais e subterrâneas a partir do

    consumo, da contaminação causada pelos efluentes e da apropriação econômica da água

    como mercadoria.

    Além do contexto sócio-histórico, uma análise procedente da água pressupõe

    também associar as peculiaridades de cada território, que se expressam pelos diversos

    continentes, países, regiões geográficas, estados e municípios. Assim, é importante

    caracterizar a região do semiárido brasileiro onde se realiza esta pesquisa, pois devido a

  • 38

    sua vulnerabilidade e sustentabilidade hídrica, requer enfrentamentos dos problemas que

    são causados por diversos fatores como: escassez hídrica superficial; monopólio

    econômico e tecnológico de extração de águas subterrâneas, além da contenção das

    águas superficiais pelos latifundiários, empresários e outros grupos de domínio

    econômico da região, acrescido da ausência de políticas públicas que promovam a água

    potável como elemento da sustentabilidade da vida humana e que assegurem a

    biodiversidade do bioma – caatinga brasileira.

    Mapa 1 – Biomas Brasileiros

    Fonte: http://www.ibama.gov.br/ecossistemas/home.htm - Acesso em: 20 mar 2012.

    Muitos são os elementos necessários para constituir esta complexa e multifacetada

    análise sobre a conjuntura política da água. Contudo, neste capítulo se discutirão

    aspectos relativos à distribuição da água; histórico do marco legal, social e político da

    http://www.ibama.gov.br/ecossistemas/home.htm

  • 39

    água; forma de governança da água; vários usos da água; indicadores de qualidade da

    água; e conflitos sociais relacionados a apropriação da água

    De acordo com Vieira e Filho (2006: 489), pode-se observar que em determinadas

    regiões como o semiárido, a disponibilidade e a escassez da água são fatores que geram

    problemáticas, pois estas possuem características econômicas e se tornam mais

    complexas e diferenciadas motivadas pela determinação do valor da água, assim como

    seu uso, sua forma, sua oferta, seu nível de garantia, sazonalidade e situação climática.

    1.1. Histórico da água na Terra

    Para se compreender o histórico da água na Terra, partiu-se de sua origem por meio

    de estudos e pesquisas geológicas, e eticamente é obrigatório dizer que o capítulo 1 do

    livro Águas Doces no Brasil6, de autoria de Aldo Rebouças, deu subsídios a esta

    discussão. A propósito, este autor é cearense e, sem sombra de dúvidas, foi um dos

    maiores geólogos da humanidade, que dedicou incansavelmente sua vida acadêmica em

    prol das grandes descobertas sobre a água na Terra.

    Para Rebouças (2006: 8 e 9), foi a partir da década de 1960 que astronautas e

    cosmonautas em órbita, ao olharem para o lugar onde vivem, distinguiram mares,

    continentes e calotas de gelo em cada um dos pólos geográficos da Terra. Salienta-se

    que os conhecimentos geológicos adquiridos nas décadas de 1960 e 1970 foram

    superiores aos de duzentos anos anteriores da história das ciências geológicas.

    Nesse sentido, Rebouças (2006: 9) afirma ainda que:

    Ao longo da história geológica da Terra, as erupções

    vulcânicas, associadas à “Tectônica de Placas7”,

    lançaram na sua atmosfera grandes quantidades de

    oxigênio (O), hidrogênio (H2) e gases como hidróxido de

    6 REBOUÇAS, Aldo; BRAGA, Benedito; TUNDISI, José Galizia. Águas Doces no Brasil - Capital

    Ecológico, Uso e Conservação. 3. Ed. São Paulo: Escrituras, 2006. 7 Tectônica de Placas é uma teoria da geologia que descreve os movimentos de grande escala que ocorrem

    na litosfera terrestre.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Teoriahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Geologiahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Litosferahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Terrestre

  • 40

    carbono (CO2), nitrogênio (N2), dióxido de enxofre (SO2)

    monóxido de carbono (CO).

    O oxigênio e o hidrogênio assim lançado, rapidamente

    combinaram-se para dar origem ao vapor de água da

    atmosfera. No começo, as temperaturas e pressões

    reinantes na Terra só possibilitaram a ocorrência de água

    na forma de vapor.

    À medida que as temperaturas baixaram, os vapores de

    água da atmosfera condensaram-se e formaram nuvens,

    as quais foram atraídas pela gravidade e caíram na forma

    de chuva, principalmente, na superfície da Terra. A água

    que escoava pela superfície da crosta provocava erosão

    das rochas, cujas partículas transportadas foram se

    acumular e formar depósitos nas suas depressões. As

    rochas mais antigas, formadas em ambientes

    subaquáticos, datam de 3,8 bilhões de anos, indicando

    que, pelo menos desde então, a água na forma líquida

    existe na Terra. Assim, a “atmosfera” e a “hidrosfera”

    foram formadas pelos gases expelidos pelos vulcões

    associados à “Tectônica de Placas”

    (...) Nesse processo, parte do CO2 contida nas rochas

    fundidas é novamente lançada à atmosfera pelos vulcões.

    O ciclo todo – ligando vulcão a erosão das rochas, a

    bactérias do solo, a algas oceânicas, a sedimentação de

    carbonáticos e novamente a vulcões – atua como um

    gigantesco processo de realimentação, que contribui para

    a regulação da temperatura da Terra (Lovelock, 1991).

    Esses processos engendraram, certamente, as condições

    propícias à existência de água na Terra nos três estados

    físicos fundamentais – líquido, sólido e gasoso – e ao

    desenvolvimento da vida.

    Analisar a situação da água na Terra atualmente pressupõe pesquisar sobre

    muitos elementos, inclusive aqueles de cunho político, a exemplo das drásticas

    mudanças climáticas, advindas, sobretudo, do “aquecimento global”, traduzido pelo

    aumento da temperatura média dos oceanos e do ar perto da superfície da Terra, que se

    tem verificado nas décadas mais recentes.

    A respeito desta intercorrência, que não é inesperada, o Painel

    Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), estabelecido pelas Nações

    Unidas e pela Organização Meteorológica Mundial em 1988, em seu relatório mais

    recente diz que grande parte do aquecimento observado durante os últimos 50 anos se

    deve muito provavelmente a um aumento do efeito estufa, causado pelo aumento nas

    concentrações de gases estufa de origem antropogênica (incluindo, para além do

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Oceanohttp://pt.wikipedia.org/wiki/Na%C3%A7%C3%B5es_Unidashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Na%C3%A7%C3%B5es_Unidashttp://pt.wikipedia.org/wiki/Organiza%C3%A7%C3%A3o_Meteorol%C3%B3gica_Mundialhttp://pt.wikipedia.org/wiki/1988http://pt.wikipedia.org/wiki/Efeito_estufahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Gases_do_efeito_estufa

  • 41

    aumento de gases estufa, outras alterações como, por exemplo, as devidas a um maior

    uso de águas subterrâneas e de solo para a agricultura industrial e a um maior consumo

    energético que gera poluição).

    Embora se concorde que o processo derivado da atividade humana tenha

    impacto nas mudanças climáticas, o que afeta diretamente a distribuição e a qualidade

    da água na Terra, é necessario atribuir a esse contexto a dinâmica social que

    desencadeia tal processo. A ação humana não pode ser analisada em si, tampouco para

    si, requer refleti-la num contexto sócio-histórico, em que a forma de produção do

    sistema capitalista é, em sua gênese, predatória a outros sistemas, no caso específico ao

    dos Recursos Hídricos, que por sua vez seus ecossistemas sustentam diversas formas de

    vidas.

    Assim, Leff (2002: 62) é categórico ao afirmar que:

    “A problemática ambiental não é ideologicamente neutra

    nem é alheia a interesses econômicos e sociais. Sua

    gênese dá-se num processo histórico dominado pela

    expansão do modo de produção capitalista, pelos padrões

    tecnológicos gerados por uma racionalidade econômica

    guiada pelo propósito de maximizar os lucros e os

    excedentes econômicos em curto prazo, numa ordem

    econômica mundial marcada pela desigualdade entre

    nações e classes sociais”.

    Com efeito, o aquecimento global “atual” não pode ser visto sem os principais

    elementos constitutivos da sua engendragem político-ideológica, que se dá justamente

    pela irresponsabilidade na emissão de gases8 liberados, principalmente pela combustão

    de combustíveis fósseis – carvão, petróleo, gás natural –, que ocorre, sobretudo, com a

    poluição industrial e automotiva e com o desflorestamento.

    Como citado acima, na origem da água na Terra, pode-se perceber que o dióxido

    de carbono é um dos compostos essenciais para regulação da temperatura na Terra,

    8 Os gases, em particular o dióxido de carbono (CO2) emitido em grande quantidade, ocasionam o efeito

    estufa na atmosfera, grande potencializador do aquecimento global.

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Agriculturahttp://pt.wikipedia.org/wiki/Polui%C3%A7%C3%A3o

  • 42

    processo esse propiciador da água nos três estados fundamentais – líquido, sólido e

    gasoso –, bem como ao desenvolvimento da vida.

    Figura 4 – Ciclo da água na Terra

    Fonte: http://www.cprm.gov.br

    No entanto, o modo de produção capitalista promove em grande escala o

    consumismo exacerbado de produtos que emitem descontroladamente gases tóxicos na

    atmosfera, contribuindo para impactar a fina camada de ozônio, protetora da radiação

    ultravioleta.

    http://www.cprm.gov.br/

  • 43

    Figura 5 – Fotografia translunar da Terra em 7 de dezembro de 1972

    Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Bolinha_Azul - Acesso em: 21 mar 2012

    Os efeitos do aquecimento global são os mais drásticos e inconvenientes para

    toda a comunidade de vida existente no globo terrestre, entre os quais se pode citar o

    forte aumento da temperatura no mundo inteiro, gerando vários impactos

    socioambientais, como a diminuição a cada ano das geleiras e dos Alpes, que

    literalmente estão desaparecendo; chuvas ácidas e elevação da temperatura nos oceanos

    – e quando os oceanos ficam mais quentes, é possivel observar as grandes e irreparáveis

    tempestades, denominadas furacões e tornados.

    Rebouças (2004: 88) diz que durante a segunda metade do século XXI ocorrerá a

    elevação do nível dos mares em cerca de 30 centímetros, mudanças nas correntes

    marinhas e ventos, acumulação de neve e gelo nas calotas polares, aumento da

    frequência das tempestades, extensão das epidemias e outros processos que afetam a

    saúde das pessoas; alteração dos padrões de precipitações atmosféricas – chuvas,

    neblina e neve, principalmente; alterações das terras encharcadas, pantanais, florestas e

    http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Bolinha_Azul

  • 44

    outros ecossistemas naturais; variação de disponibilidade das águas doces, dentre outros

    aspectos.

    Mapa 2 – Desvios negativos e positivos de chuvas nas regiões hidrográficas

    Mapa 9 – Anomalias de chuvas no Brasil

    Fonte: Relatório Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil. Acervo, ANA, 2011. Legenda organizada

    pela a autora.

    Este emaranhado de consequências traz muitas transformações socioambientais,

    pois milhares de espécies deixam de existir e outras poderão se reproduzir em grande

    1. Desvios positivos nas Regiões Hidrográficas do Paraná, Atlântico Sul,

    Uruguai, Atlântico Sudeste e Paraguai.

    2.Desvios negativos nas Regiões Hidrográficas

    Amazônica, Tocantins-Araguaia, Atlântico

    Nordeste Ocidental e Parnaíba.

  • 45

    quantidade, acrescido de milhões de pessoas vítimas desses impactos, tornando-se

    desabrigadas pelas enchentes e alagamentos ou vulneráveis com a falta de água pela

    estiagem de chuvas, dependendo de sua classe social.

    Nesta perspectiva, Aldo Rebouças (2004: 88) continua sua análise ao afirmar

    que não é possível, atualmente, se fazer uma previsão precisa dos efeitos da mudança

    global nos climas da Terra. Grosso modo, pode-se esperar uma sensível expansão da

    faixa de clima tropical e redução das faixas ocupadas pela agricultura de clima

    temperado. Este fator é por demais preocupante em termos de produção de alimentos,

    tendo em vista que os países correm o risco de perder a hegemonia agrícola para os

    países da faixa tropical. Além disso, o processo de aquecimento global deverá ocasionar

    a subida dos níveis dos mares, elevando os custos das obras de proteção em muitas

    cidades costeiras.

    Considera-se, portanto, que não se pode analisar a relação do ser humano com a

    natureza, sem antes identificar a causa central da “esculhambação mundial”, que chega

    a ser imoral, dos que detêm o poder do monopólio político e financeiro sobre a

    expropriação da qualidade do ar, da água, das florestas, dentre outros recursos naturais

    essencialmente relacionados à vida no Planeta Terra.

    1.2. Distribuição da água na Terra

    Embora se apresentem dados estatísticos sobre a distribuição da água na Terra,

    pode-se afirmar que estas medidas não são estáticas, pois se alteram devido a diversos

    fatores, dentre eles as mudanças climáticas, que a afetam significativamente.

    Contudo, é notória a desigualdade da distribuição da água na Terra, na medida em

    que 97,5% da água é salgada e apenas 2,5% é água doce. No entanto, desta “pequena”

    quantidade de água doce, 68,9% localizam-se nas calotas polares ou geleiras; 29,9% são

    subterrâneas; 0,9% se encontram em outros reservatórios; e 0,3% estão nos rios e lagos.

  • 46

    Gráfico 1 – Distribuição das águas na Terra

    Fonte: http://www.drm.rj.gov.br/index.php/projetos-e-atividades/subterraneas - Acesso em: 19 mar 2012.

    A desigualdade na distribuição da água doce superficial na Terra se agrava ainda

    mais quando analisada a partir dos continentes, pois 39,6% estão na América, 31,8% na

    Ásia, 15% na África, 15% na Europa e 9,7% na Oceania. E somente o Brasil detém

    13,7% de toda água doce do planeta Terra.

    http://www.drm.rj.gov.br/index.php/projetos-e-atividades/subterraneas

  • 47

    Tabela 1– Distribuição da água doce superficial (Mundo, América e Brasil)

    Distribuição da água doce superficial no mundo

    Àfrica 9,48%

    Ásia 31,59%

    Europa 6,79%

    Oceania 5,61%

    América 46,53%

    Distribuição da água doce superficial no continente

    americano

    América do Norte 32,20%

    América Central 6,50%

    América do Sul 61,30%

    Distribuição da água doce superficial no Brasil

    Em relação ao continente americano 34,90%

    Em relação ao mundo 13,70% Fonte: UNESCO, apud

    http://www.ana.gov.br/bibliotecavirtual/arquivos/20070129082304_AAguaNoBrasilENoMundo.pdf -

    Acesso em: 26 de jan 2012. Tabela organizada pela autora.

    Ribeiro (2008: 24), em sua obra Geografia Política da Água, aponta que há

    diversos estudos indicando para uma crise da água, principalmente por razões políticas.

    A falta dessa substancia natural fundamental à vida em determinados locais poderia ser

    resolvida por meio de uso de técnicas conhecidas de estocagem e reaproveitamento da

    água. Porém, o que se vê é a poluição e degradação de corpos d‟água e aquíferos de

    maneira crescente em escala internacional. O que recentemente era encarado como um

    problema de países pobres, a falta de acesso a água de qualidade, passou a ser vista

    como um problema mundial, dado que ela também se torna rara para países ricos.

    Como se pode observar, o Brasil é privilegiado do ponto de vista da distribuição

    da água na Terra e no continente americano. No entanto, também existem fortes

    desigualdades na distribuição da água nas bacias hidrográficas brasileiras.

    http://www.ana.gov.br/bibliotecavirtual/arquivos/20070129082304_AAguaNoBrasilENoMundo.pdf

  • 48

    Tabela 2 – A Distribuição de água no Brasil por Bacias e Sub-Bacias Hidrográficas

    Fonte: ANA, Embrapa e Pnuma, apud

    http://www.ana.gov.br/bibliotecavirtual/arquivos/20070129082304_AAguaNoBrasilENoMundo.pdf

    Acesso em: 26 jan 2012.

    Além destes aspectos relativos à desigualdade na distribuição da água no Brasil,

    também há outros elementos importantes constitutivos na análise sobre a conjuntura

    política da água, pois há diferença no que diz respeito à demanda e disponibilidade de

    água por microbacias hidrográficas. O Relatório realizado pela ANA - CONJUNTURA

    DOS RECURSOS HÍDRICOS NO BRASIL, de 2011, aponta que, das doze regiões

    hidrográficas brasileiras, quatro se encontram com stress hídricos em relação à demanda

    e à disponibilidade hídrica superficial, a saber: Bacias da Região Semiárida (baixa

    disponibilidade de água); Bacia do Tietê (alta demanda para abastecimento urbano) e

    Sub-Bacias das Regiões Uruguai e Atlântico Sul (demanda de água extremamente alta

    para irrigação) – Anexo 1.

    http://www.ana.gov.br/bibliotecavirtual/arquivos/20070129082304_AAguaNoBrasilENoMundo.pdf

  • 49

    A análise sobre a distribuição e qualidade da água se intensifica ainda mais,

    quando se coloca uma “lupa” para chegar mais perto da hidrografia estudada, como o

    caso do semiárido da caatinga do sertão central cearense, que apresenta stress em

    relação ao montante das bacias hidrográficas brasileiras. Devido a sua disponibilidade

    hídrica, o sertão central cearense, em especial o município de Itatira/CE, se configura

    como área vulnerável nesta conjunta, conforme demonstra o mapa a seguir.

    Mapa 3 – Situação hidrográfica do Estado do Ceará

    Fonte: http//portal.cogerh.com.br. Acesso em: 20 fev 2012. Ilustração do município de Itatira/CE.

  • 50

    O Município de Itatira/CE apresenta séria criticidade na distribuição e qualidade

    da água, pois seu abastecimento advém de reservatórios superficiais e subterrâneos, seus

    rios são intermitentes e os principais açudes – João Guerra, Oiticica, Suçuarana e São

    Joaquim – apresentam problemas em diferentes escalas na qualidade e quantidade da

    água, de acordo com a estiagem de chuvas. Além dos poços artesianos, principal

    manancial de abastecimento da sede municipal, passaram por stress hídrico em 2011, o

    que ocasionou um colapso no abastecimento de água, pois ficou aproximadamente dois

    meses sem abastecimento de água encanada. Acrescido ao fato de que esta água não é

    100% doce, pois apresenta níveis consideráveis de salobridade. Seguramente, é possível

    afirmar que quem consome esta água para beber é a população que não detém condições

    econômicas para adquirir água de “boa” qualidade.

    Outro agravante sobre o acesso à água potável no município de Itatira/CE é o

    caso do distrito de Lagoa do Mato, que tem aproximadamente 8 mil habitantes e cuja

    capacidade hídrica do seu principal reservatório – açude Oiticica – é de 901.782,32 m³,

    que em 2010 disponibilizou apenas 28%9 de sua capacidade total. Ademais, o

    abastecimento de água encanada não é universal aos habitantes, pois apenas pouco mais

    da metade tem acesso ao abastecimento de água encanada. Além desta peculiaridade na

    incapacidade do abastecimento, acrescem-se os diversos usos e até abusos, na medida

    em que há muitas construções civis, irrigação, lava-rápidos e muito desperdício no

    consumo da água.

    Com efeito, para a outra parte significativa desta população, que fica excluída do

    abastecimento de água – por falta, sobretudo das condições financeiras para pagar pela

    prestação dos serviços –, há outras iniciativas para o enfrentamento do problema, como

    exemplo a disponibilidade do acesso à água através do carro-pipa. Este vulnerabiliza

    ainda mais o acesso à água potável, tendo em vista que a água muitas vezes chega aos

    reservatórios domésticos à deriva, sem controle sistemático de qualidade no percurso de

    seu trajeto (do açude aos potes, filtros) ou tratamento adequado para o consumo

    humano.

    9 Dados da capacidade e disponibilidade obtidos pelo Relatório de Análises de Alternativas Hidrológicas

    para o Abastecimento de Água no Distrito de Lagoa do Mato, Município de Itatira, Estado do Ceará,

    COGERH, 2010.

  • 51

    Figura 6 – Abastecimento de carro-pipa em açude

    Fonte: Alexander Koch. Acervo Projeto Pingo D‟água, 2005.

    Contudo, reconhecem-se esforços estabelecidos entre Secretaria Municipal de

    Agricultura e Recursos Hídricos de Itatira/CE, Exército Brasileiro, CAGECE –

    Companhia de Água e Esgoto do Ceará e Laboratório LACEN, na realização de laudo

    para assegurar os mínimos estabelecidos de qualidade da água para o consumo humano,

    advinda desta forma de abastecimento.

  • 52

    Mapa 4 – Situação hídrica do distrito de Lagoa do Mato – Itatira/CE

    Fonte: Relatório de Análises de Alternativas Hidrológicas para o Abastecimento de Água no Distrito de

    Lagoa do Mato, Município de Itatira, Estado do Ceará, COGERH, 2010.

    O Relatório de Análises de Alternativas Hidrológicas para o Abastecimento de

    Água no Distrito de Lagoa do Mato, Município de Itatira, Estado do Ceará, realizado

    pela COGERH – Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, 2010, aponta que nos

    últimos anos houve um crescimento acentuado da população de Lagoa do Mato, em

    proporção fora do padrão da região, conforme estimativa do IBGE, que é de um

    aumento médio de 2,5% ao ano. No entanto, o distrito atualmente apresenta uma

    população de cerca de 8.000 habitantes, com base em cálculo nas ligações referentes ao

    sistema de abastecimento administrado pelo SISAR (Sistema de Abastecimento Rural),

    que informou a quantidade de 1951 ligações, com a justificativa de que a construção de

    uma Indústria de Beneficiamento de Fosfato e Urânio na região polarizou em Lagoa do

    Mato um aumento de população, ainda pelo fácil acesso relativo aos outros povoados

    da região, inclusive à sede do município de Itatira/CE.

  • 53

    Este estudo hidrológico foi imprescindível, na medida em que indicou

    alternativa de construção de uma adutora no açude João Guerra para resolver o

    problema, em curto prazo, do abastecimento do distrito de Lagoa do Mato, ainda que

    em termos quantitativos. A médio e longo prazos, a solução é a utilização da adutora do

    açude Umari, localizado no município de Madalena/CE, com a alternativa de derivação

    para Lagoa do Mato, com uma vazão corrigida do projeto original para a realidade

    populacional atual, a fim de complementar a demanda total e a localidade suprir seus

    usos múltiplos de água.

    1.3. Gestão política da água

    Analisar a conjuntura política da água exige pensar estratégias relacionadas ao

    “Estado Democrático de Direitos” a partir da construção do marco legal, social e

    político sobre as águas do Brasil.

    Mas a gestão das águas no Brasil não pode ser vista nem somente a partir dela,

    tampouco meramente para ela, na medida em que são diversos os fatores sociopolíticos

    (território, religião, hidrografia, política local e global, cultura e interesses econômicos

    que geram disputa de poder) que implicaram na construção histórica da atual forma de

    gestão das águas no Brasil.

    Para melhor compreensão sobre esses conflitos entorno da gestão da água,

    aprofunda-se esta temática nos capítulos II, III e IV deste trabalho, pois a água é

    discutida no âmbito da (re)produção do sistema capitalista, sobretudo da sua ofensiva

    em dominar a água como mercadoria, a partir do uso e do abuso da força estatal e pela

    cooptação de grupos sociais, através de discursos e ações alienantes. São discutidas

    também as iniciativas contra-hegemônicas que correlacionam forças, tendo como

    perspectiva a democratização do acesso à água potável.

    É nesse intrincado de correlações de forças, quase sempre desigual, que se

    apontam os avanços e desafios históricos na construção dos marcos legais, sociais e

    políticos no entorno da água. A propósito, toda e qualquer ação – técnica, popular,

    cientifica ou profissional – que constitui este campo de gestão não é neutra nem

    despretensiosa politicamente, pois exerce pressupostos ético-políticos de acordo com o

    seu projeto societário, inclusive esta pesquisa.

  • 54

    É nesta perspectiva que se apresenta a importância dos mecanismos

    internacionais, nacionais, estaduais e municipais para a preservação e democratização

    da água.

    No âmbito internacional citam-se:

    Conferencia Del Plata realizada em 1977: ação pioneira internacional, pois

    envolveu muitos países para discutir temas relacionados à água. Para Ribeiro (2008),

    esta Conferência foi importante, na medida em que integrou o primeiro ciclo das

    grandes conferências da ONU, tais como Conferência de Estolcomo sobre meio

    ambiente, de 1972; a de Bucareste, que tratou da população, de 1974; a de Roma, que

    abordou a fome, também de 1974; a de Vancouver, sobre assentamentos humanos,

    conhecida como Habitat I, de 1976; e as de Nairóbi, a primeira sobre desertificação, em

    1977, e a segunda discutindo recursos energéticos renováveis, em 1979.

    A resolução 35/18 de 1980 da Assembleia-Geral da ONU, declarou que o período de

    1981 a 1990 seria a Década Internacional da Água, como forma de sensibilizar os

    diferentes segmentos sobre a importância da água para o planeta Terra.

    A década de 1990 foi marcada por importantes debates no entorno da água, talvez pela

    efervescência dos movimentos sociais, que intensificavam lutas em prol da garantia dos

    direitos. Assim, Ribeiro (2008: 78-110) menciona distintas ações em nível

    i