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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Gradução em Letras ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE: REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO Jorge Franca de Oliveira Belo Horizonte 2010

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-Gradução em Letras

ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A

TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO

Jorge Franca de Oliveira

Belo Horizonte

2010

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Jorge Franca de Oliveira

ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A

TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Linguística, linha de pesquisa LP6: Enunciação e processos discursivos. Orientador: Hugo Mari.

Belo Horizonte

2010

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Oliveira, Jorge Franca de O48a Análise do discurso e psicanálise: reflexões sobre a questão da topologia do

sujeito e a transferência de sentido na enunciação / Jorge Franca de Oliveira. Belo Horizonte, 2011.

172f. : Il. Orientador: Hugo Mari Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Análise do discurso. 2. Psicanálise. 3. Sujeito (Filosofia). 4. Enunciação

(Linguística). I. Mari, Hugo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.

CDU: 800.852

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Jorge Franca de Oliveira

ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:

REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A

TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO

Tese apresentada ao Programa de Pós-

graduação em Letras da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais,

defendida publicamente e aprovada pela

Banca Examinadora constituída pelos

seguintes Professores Doutores:

----------------------------------------------------------------------------------------------

Hugo Mari – PUC Minas Orientador

-----------------------------------------------------------------------------------------------

Eduardo Dias Gontijo - UFMG

---------------------------------------------------------------------------------------------- José Carlos Cavalheiro da Siveira - UFMG

---------------------------------------------------------------------------------------------- Márcia Marques de Morais - PUC Minas

---------------------------------------------------------------------------------------------- Paulo Henrique Mendes de Aguiar - PUC Minas

Belo Horizonte, 17 de dezembro de 2010.

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AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Hugo Mari, por sua inteligente e cuidadosa orientação, por seus

seminários avançados sobre Intencionalidade, Atos de fala e Análise do Discurso,

que muito contribuíram para a construção desta tese.

Aos professores – Dr. Eduardo Dias Gontijo, Dr. José Carlos Cavalheiro da Silveira,

Dra. Márcia Marques Morais e Dr. Paulo Henrique Mendes Aguiar – por aceitarem

participar desta banca examinadora.

Aos professores Dr. José Carlos Calheiro da silveira e Dra. Márcia Marques Morais

por suas valiosas sugestões ao meu exame de qualificação.

Aos professores Dr. Marco Antônio, Dr. Paulo Mendes e Dr. Milton Nascimento que

através de suas aulas e seminários avançados sobre fonologia, semântica e sintaxe

deram uma valiosa contribuição para a construção dessa pesquisa.

À PUC Minas pela concessão das 10 horas/aula – que muito contribuíram para o

desenvolvimento dessa pesquisa.

Às secretárias, da Pós-graduação em Letras, Berenice e Vera pelo atendimento

sempre acolhedor.

Ao pessoal da livraria Copec – Jair, Júlio, Leonardo e Cristiana pelo atendimento de

meus pedidos.

Ao Dr. Geraldo Kleinsorge pelo seu cuidado para comigo.

Aos meus irmãos, Oton e Sandra pela amizade e compreensão.

Aos meus amores Sandra e Eric pelo carinho, pelo respeito, pelo diálogo, pelos bons

momentos de sempre.

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RESUMO

No campo da psicanálise, tanto Freud, quanto Lacan refletiram sobre a questão da

linguagem, como um instrumento importante no tratamento de seus pacientes. Freud

deu mais ênfase ao símbolo e Lacan privilegiou o signo. Embora respeitando o

mérito desses autores e utilizando de seus modelos de pensamento sobre a

linguagem, avançamos nossa reflexão, levando também em consideração, as atuais

contribuições de outras disciplinas que têm a linguagem como objeto de estudo.

Partindo dos conceitos de sujeito e de linguagem, no contexto multidisciplinar –

Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência, Psicanálise e Topologia -,

nosso estudo faz uma reflexão sobre a questão da topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação. Nosso objetivo é compreender como se

produz em Psicanálise, o trabalho de interpretação da linguagem em transferência e

seus efeitos sobre a subjetividade do paciente. Nesse sentido, como conseqüência

de nossa pesquisa sobre a topologia do sujeito e a transferência de sentido na

enunciação propomos um novo conceito: sujeito-eu-reentrante.

Palavras-chave: linguagem, sujeito, topologia, transferência, sentido, enunciação,

sujeito-eu-reentrante.

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RÉSUMÉ

Dans le champ de la psychanalyse, tant Freud, combien Lacan ils ont reflété sur la

question de la langage, comme instrument important dans le traitement de leurs

patients. Freud a donné plus accent au symbole et Lacan a privilégié le signe. Bien

qu'en respectant le mérite de ces auteurs et en utilisant de leurs modèles de pensée

sur la langage, nous avançons notre réflexion, en prenant aussi dans considération,

les actuelles contributions d'autres disciplines qui ont la langage comme objet

d'étude. En partant des concepts de sujet et de langage, dans le contexte

multidisciplinaire - Analyse du Discours, Linguistique, Philosophie, Neuroscience,

Psychanalyse et Topologie -, notre étude fait une réflexion sur la question de la

topologie du sujet et le transfert de sens dans l'énonciation. Notre objectif est

comprendre comme se produit, dans Psychanalyse, le travail d'interprétation de la

langage dans transfert et leurs effets sur la subjectivité du patient. Dans ce sens,

comme conséquence de notre recherche sur la topologie du sujet et le transfert de

sens dans l'énonciation nous proposons un nouveau concept: Sujet-Je-rentrant .

Mots-clé: langage, sujet, topologie, transfert, sens, énonciation, Sujet-je-rentrant.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

FIGURAS

Figura 1: Kantaros – um copo de bebida, com homens em movimento de

dança, tipicamente usado pelo deus Dionísio. Segunda metade do século VI

a.C.........................................................................................................................

18

Figura 2: Andar supraglótico nos seres humanos................................................ 26

Figura 3: Áreas do cérebro destinadas à produção da fala................................. 27

Figura 4: Esquema da aquisição da fala.............................................................. 37

Figura 5: Um modelo de consciência primária..................................................... 38

Figura 6: Um esquema de consciência elaborada............................................... 39

Figura 7: Desenho neurológico feito por Freud, para identificar importantes

distúrbios da linguagem........................................................................................

42

Figura 8: Diagrama psicológico da representação de palavras........................... 42

Figura 9: Esquema feito por Freud sobre o caso Emma..................................... 46

Figura 10: Desenho de célula feito por Freud...................................................... 132

Figura 11: Aparelho psíquico na segunda tópica................................................. 133

Figura 12: sujeitos falante ................................................................................... 139

Figura 13: Esquema do aparelho psíquico no texto sobre a interpretação dos

sonhos...................................................................................................................

143

Figura 14: Desenho do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no

texto O Eu e o Id...................................................................................................

143

Figura 15: Diagrama do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no

texto da conferência XXXI.............................................................................. 145

144

Figura 16: Esquema Psicológico da representação de palavra, refere-se ao

texto A interpretação das Afasias, 1891, está presente no apêndice C do texto

O Inconsciente, 1915............................................................................................

144

Figura 17: Teoria dos gradientes......................................................................... 158

Figura 18: Fita de Moebius – Escher – Formigas – Xilogravura, 1963................ 165

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QUADROS

Quadro 1 - Posição bípede e seus desdobramentos.......................................... 32

Quadro 2 – Gêneros de persuasão.................................................................... 109

Quadro 3 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 114

Quadro 4 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 115

Quadro 5 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 115

Quadro 6 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 116

Quadro 7 - Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações

da analisanda e do analista.................................................................................

121

Quadro 8 - Esquematização da análise e da interpretação do sonho............... 124

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.............................................................................................. 10

2. QUESTÃO DA LINGUAGEM: DO BIOLÓGICO AO SIMBÓLICO. ............. 12

2.1 - A linguagem, o corpo, a alma e o cérebro..... ...................................... 16

2.1.2 - Corpo e alma de Homero à Platão ..................................................... 16

2.1.3 - A influência cartesiana na concepção corpo e alma ....................... 21

2.1.4 – Origem/natureza da linguagem ......................................................... 22

2.1.5 - A linguagem e o cérebro ..................................................................... 34

2.2 - A linguagem emocional e a linguagem simbólica ............................... 47

2.3 - Linguagem, símbolo e interpretação em psicaná lise......................... 51

2.4 - Linguagem e intencionalidade................. ............................................. 53

3. QUESTÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE........... ........................... 61

3.1 - A Metafísica da subjetividade ............... ................................................ 62

3.2 - Foucault – O sujeito e a verdade............. .............................................. 63

3.3 – A história da histeria: do corpo à linguagem. ..................................... 68

3.4 - Freud e a questão do sujeito no discurso da p sicanálise.................. 70

3.5 - O sujeito e a enunciação..................... ................................................... 78

3.5.1 - Enunciação: os efeitos da linguagem sobre a subjetividade......... . 78

3.6 - O sujeito e a linguagem nas perspectivas de C haraudeau e

Authier-Revuz...................................... ............................................................

84

3.7 - A análise do Discurso de Pêcheux e a Psicanál ise de Freud e

Lacan: controvérsias e aproximações em a forma-suje ito do discurso...

87

3.8 – A concepção de signo linguístico em Linguísti ca e em Psicanálise 98

3.9 - Pragmática e enunciação: Francis Jacques – pr agmática da

relação interlocutiva.............................. .........................................................

102

3.10- Enunciação e argumentação.................... ............................................ 104

3.11 - Atos de fala ilocucionais e a interpretação dos sonhos................... 113

3.12 - Análise do corpus – a interpretação do sonho – na perspectiva

da psicanálise freudiana em conjunto com a teoria d os atos de fala. ......

118

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4. SENTIDO, INCONSCIENTE, TRANSFERÊNCIA E TOPOLOGIA DO

SUJEITO...........................................................................................................

128

4.1 - A semântica linguística...................... .................................................... 128

4.2 - A questão da topologia do sujeito............ ............................................ 132

4.2.1 - O conceito de topologia.................... .................................................. 134

4.2.2 - Bruno Latour – da referência fixa à referên cia instável................. .. 136

4.3 - Semântica do discurso e topologia do sujeito ................................... 138

4.4 - Semântica do inconsciente: a problemática sob re inconsciente,

linguagem e a topologia do sujeito................ ..............................................

141

4.5 - Semântica do desejo.......................... .................................................... 151

4.6 - A transferência de sentido na enunciação e a topolo gia do sujeito. 155

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................ ............................................. 166

REFERÊNCIAS................................................................................... 172

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1. INTRODUÇÃO

Nossa proposta de pesquisa é, a partir de uma perspectiva transdisciplinar -

Análise do Discurso, Linguística, Filosofia e Psicanálise -, no que diz respeito ao

conceito de linguagem, refletir sobre a questão da topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação . Sobre a ideia de transdisciplinaridade,

estamos de acordo com Silva de que se trata de um intercâmbio com outros campos

de conhecimento, de um procedimento no qual ocorre a migração de conceitos. Em

outros termos, refere-se ao diálogo modificador com o diverso e o de outra forma,

processos que não se esgotam na partição de um mesmo objeto entre disciplinas

diferentes, prisioneiras de pontos de vista singulares, irredutíveis, estanques,

incomunicados. (SILVA. In: DOMINGUES, 2001, p.36-37). A aposta numa tal

abordagem se deve ao fato de compreendermos que não há, em relação ao nosso

objeto de estudo, uma resposta única, e sim aproximações possíveis. Nesse sentido,

através desse diálogo transdisciplinar sobre a linguagem, buscaremos verificar, por

um lado, os pontos de convergência e de distanciamento; por outro, fazer uma

análise crítica e construtiva sobre a questão da topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação . Desse modo, à luz dos conhecimentos

adquiridos e de nossas reflexões utilizaremos, a título de ilustração, um corpus

constituído de alguns fragmentos de relatos de sonhos e de casos clínicos

interpretados por Freud. Essa opção se justifica pelo fato de se tratar do registro de

uma situação dialógica, isto é, de uma interação entre analisando e analista. Não se

trata aqui de praticar uma teoria, mas de teorizar uma prática. Embora já cientes do

grande desafio a ser enfrentado, na medida em que nossa proposta não se restringe

em fazer uma compilação, buscaremos construir um artefato teórico que, apesar das

controvérsias, tanto no plano interno, quanto no externo, vise a uma interface entre

Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência e Psicanálise sobre o

conceito de linguagem e de sua implicação na questão da topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação.

Nosso problema é entender como se faz o trabalho clínico de interpretação da

linguagem transferencial do analisando e quais são os efeitos, dela decorrentes,

sobre sua posição subjetiva.

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Como sabemos, a Psicanálise Freudiana tem, como marco fundador, o texto

datado de 1900, A interpretação dos sonhos, como via real de acesso ao conteúdo

inconsciente. No capítulo VII desse texto, Freud apresenta um modelo de aparelho

psíquico. Em seguida, em 1905, faz uma interpretação da psicopatologia da vida

cotidiana, com seus chistes, atos falhos, esquecimentos e depois, em 1930, uma

interpretação do mal-estar na cultura. Em conformidade com Ricoeur, “Todas essas

“produções psíquicas” pertencem ao domínio do sentido e dizem respeito a uma

única questão: como a palavra surge no desejo? Como o desejo frustra a palavra e

fracassa em falar?” (RICOEUR, 1977, p.17). Trata-se, portanto, de uma

hermenêutica que visa a desvendar uma semântica do desejo.

Assim, em acordo com nossa formação acadêmica - psicologia clínica,

filosofia e letras - propomos uma investigação sobre A topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação.

Para isso, vamos nos reportar à obra de Freud e às reflexões filosóficas de

Ricoeur tanto sobre o referido autor quanto sobre o campo linguagem e ação,

lançando mão também do conhecimento das Ciências e Filosofia da Linguagem.

2. QUESTÃO DA LINGUAGEM: DO BIOLÓGICO AO SIMBÓLICO

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Conforme dissemos, o enfoque de nossa pesquisa é sobre a questão da

topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação. Nessa dimensão,

buscaremos entender como se dá o trabalho clínico de significação da linguagem

transferencial do analisando e quais os efeitos dela decorrentes sobre sua posição

subjetiva. Em outros termos, procuraremos explicar a transformação que a

linguagem produz na subjetividade do analisando, via relação transferencial com o

analista.

No campo da Psicanálise, tanto Freud quanto Lacan se debruçaram sobre a

questão da linguagem - como um instrumento importante no tratamento de seus

analisandos. O primeiro, dando ênfase ao símbolo; e o segundo, ao signo. Embora

respeitando o mérito desses autores e utilizando-nos de seus modelos de

pensamento sobre a linguagem, pretendemos avançar nossa reflexão, levando

também em consideração as atuais contribuições de outras disciplinas que têm a

linguagem como objeto de estudo, tais como: a Análise do Discurso, a Linguística, a

Filosofia e a Neurociência.

Nossa aposta é que tanto a Psicanálise, quanto as demais disciplinas que

tratam da questão da linguagem, possam reciprocamente, levando em consideração

suas respectivas diferenças e convergências, se beneficiarem deste diálogo.

Ao fazer uma pesquisa transdisciplinar sobre a linguagem, reconhecemos que

uma só disciplina e um só pesquisador quererem dar conta de uma questão tão

complexa é um objetivo fadado ao fracasso. Nesse sentido, nosso propósito é iniciar

um diálogo e dar nossa modesta contribuição, uma vez que este trabalho demanda

um exercício de inteligência coletiva.

Sabe-se que a linguagem verbal é uma característica muito específica da

espécie humana. O ser humano já é falado mesmo antes de sua concepção, de seu

nascimento. No entanto, nenhum indivíduo humano nasce falando. Assim, se ainda

não fala, como ele se comunica? Ao nascer, o ser humano chora, grita, gesticula de

forma desarticulada, sendo que é através dessa linguagem rudimentar, que ele irá

se comunicar com o outro. Ou não serão o choro, o grito e a gesticulação formas de

linguagem? Imaginemos se todo ser humano nascesse silencioso, inerte. Como

saberíamos de suas necessidades básicas, tais como fome, dor e demais

incômodos? Nessa interação entre o recém-nascido e seu responsável, cabe a este

último dar sentido ao que está sendo comunicado de forma primária. Vale perguntar,

então, quais as condições e possibilidades para que a criança passe a falar?

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Alguns pensadores com tendência a uma leitura mais genética, ou seja,

biológica, possivelmente, diriam que tudo depende do desenvolvimento cerebral do

ser humano. Outros, numa perspectiva mais próxima das ciências do espírito,

considerariam que, provavelmente, o falar depende do ouvir um outro falante, que o

falar depende do acesso ao simbólico. Mas tudo isso, embora necessário, não é

suficiente, pois falar não se reduz a um cérebro bem desenvolvido biologicamente,

nem a só repetir o que se ouviu. É preciso tentar entender o que essa fala quer

dizer. Sendo assim, não basta ouvir e repetir a fala, é preciso saber escutar, isto é,

dar sentido ao que foi enunciado.

Nada mais humano do que a busca por habitar a linguagem inscrita na cultura

e, simultaneamente, ser por ela habitado. Nesse aspecto, a linguagem está em

interação com o nosso ethos, nosso logos, nosso pathos, nossa práxis e, tem como

base, tanto o corpo - e nesse, o cérebro - quanto também, a língua, o simbólico e a

cultura. Desse modo, é preciso cultivar o corpo biológico, cuidar para torná-lo um

corpo afetuoso, libidinal, falante, dar-lhe um espírito, uma dimensão simbólica. Mas,

isto só se torna possível com a constituição de um eu que, via de regra, se dá

através de uma relação especular com o outro. Dito de outra maneira, o espelho é o

outro. Em conformidade com o pensamento de Lacan, o acesso ao simbólico passa,

necessariamente, pelo imaginário, isto é, não há sujeito simbólico sem um eu

imaginário. Portanto, não podemos reduzir a linguagem humana a uma localização

cerebral ou à fala, pois a linguagem é complexa, ou seja, está vinculada a outras

dimensões do ser humano: biológica, pulsional, inconsciente, desejante, sentimental,

emocional, gestual, imaginária, intencional, simbólica. De forma bem reduzida: há

uma linguagem verbal e outra não-verbal.

Numa psicanálise com crianças, o método de trabalho psicoterápico dá mais

ênfase, mas não exclusivamente, ao não-verbal, através do uso de técnicas de

desenhos, pintura, argila, massa de modelar, jogos etc.. Cabe sublinhar que essas

técnicas usadas para trabalhar com a expressão do não-verbal, podem ser

empregadas também com pacientes psicóticos. Para exemplificar, utilizaremos parte

do artigo de Ferreira Gullar, “Os inumeráveis estados do ser”, no qual ele afirma que,

em relação ao trabalho desenvolvido pela psiquiatra Dra. Nise da Silveira, o

propósito não era formar artistas, mas possibilitar aos pacientes se expressarem

através da pintura. Portanto, na impossibilidade de fazer uso da fala ou da escrita

tem-se a pintura como um outro espaço propício para a produção de significação. “É

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que, em geral, o doente mental tem dificuldade de se expressar logicamente, como o

exige a linguagem verbal. Já a linguagem pictórica, não-verbal, constituída de cores,

linhas, símbolos visuais, dispensa o logos para se estruturar.” Nesse sentido, Gullar

destaca o caso de um artista que, através da pintura, superou o mutismo e pode

dizer do

Desejo de voltar para casa. E o fez de maneira muito especial, ao dizer a Dra. Nise que, naquele Natal, queria como presente um guarda-chuva. Após um primeiro momento de surpresa, ela entendeu que, se queria um guarda-chuva, é que deseja sair do hospital, já que lá dentro não chove. (GULLAR, 2009).

Enfim, considero que tão importante quanto aprender a falar e saber

interpretar, é preciso saber sobre o sentido e a intenção inerente ao dito, quer seja

através de uma linguagem não-verbal, quer seja através da linguagem verbal.

Em relação à linguagem verbal, Freud nos esclarece que, numa psicanálise, o

mais importante não é o conteúdo manifesto, consciente, mas o conteúdo latente,

inconsciente. Devemos levar em consideração não somente o dito, como também o

não-dito e o interdito. Lacan, por sua vez, aponta tanto para uma dimensão

imaginária, quanto simbólica da linguagem e afirma que a análise é uma questão

“morcego”, isto é, da mesma forma que um morcego se guia pelo som que emite,

após encontrar um obstáculo; o analisando deve se guiar pelo que fala e pelo que é

pontuado pelo analista. Quanto à interpretação, cabe lembrar que o próprio Freud

dizia que a Psicanálise não é uma arte da interpretação, pois no tratamento analítico

há outras intervenções, tais como as descritas por Laplanche e Pontalis: “o

encorajamento a falar, a tranqüilização, a explicação de um mecanismo ou de um

símbolo, as injunções, as construções, etc..” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988,

p.320). Para eles, a elaboração secundária é uma forma de interpretação.

Entretanto, esses autores chamam a atenção para o fato de que o termo alemão

Deutung não se ajusta exatamente ao termo francês interprétation.

Deutung parece mais próximo de explicação, de esclarecimento, e apresenta em menor grau, para a consciência lingüística comum, o tom pejorativo que os termos português e francês podem assumir. A Deutung de um sonho consiste, escreve Freud, em determinar a sua Bedeutung, a sua significação. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p.320).

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A ênfase não está, portanto, na interpretação, mas na significação: através da

Deutung - da interpretação de um ato falho, de um esquecimento, do relato de um

sonho, do relato de um sintoma busca-se chegar à Bedeutung, à significação.

Ora, é importante destacar que há, inerente à interação discursiva entre

analisando e analista, um sentido e uma intencionalidade ou intenção que têm uma

significação. Alguns linguistas diriam que a ênfase não deve ser dada ao explícito,

mas ao implícito. Dentre os filósofos da linguagem, temos aqueles que sustentam

que é preciso prestar atenção tanto na intencionalidade quanto no sentido. Mas,

para que tudo isso ocorra, é necessário que o cérebro desenvolva sua gramática, tal

como descrita por Edelman, na seguinte sequência: fonológico, semântico e

sintático. No entanto, cabe perguntar se o domínio cerebral dessa seqüência daria

condições ao falante de dominar a intencionalidade? Há outra questão importante a

ser colocada: a linguagem é uma aquisição cultural ou um instinto, como propõe

Steven Pinker? Daí propormos uma reflexão sobre o percurso da linguagem: do

biológico ao simbólico.

2.1 A linguagem, o corpo, a alma e o cérebro

Para refletirmos sobre a linguagem, o corpo, a alma e o cérebro, partimos da

seguinte hipótese: o entendimento do que é a linguagem depende também de

nossas concepções sobre o que é o corpo e a alma. De onde herdamos os

conceitos de corpo e alma por nós utilizados? Seria a alma autônoma em relação ao

corpo? Qual órgão do corpo seria o responsável pelos nossos pensamentos, pela

linguagem, pelas nossas emoções?

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Portanto, cabe indagar sobre qual seria a concepção de corpo e alma em três

momentos importantes do pensamento humano: na Grécia antiga, no início de nossa

modernidade e agora em nossa modernidade tardia. Não é nosso intuito fazer um

histórico, mas sim um breve comentário sobre o percurso das concepções de corpo

e alma no pensamento ocidental, para um melhor esclarecimento sobre nossa

abordagem da linguagem numa psicoterapia de inspiração psicanalítica.

2.1.2 - Corpo e alma de Homero à Platão

Para Reale, os conceitos de psyche e de alma estão atrelados à concepção

de homem. Esses conceitos, de extrema complexidade, foram desenvolvidos pelos

gregos e se tornaram o núcleo sobre o qual se edifica o pensamento ocidental. O

autor sublinha que é um erro atribuir o conceito de alma ao cristianismo, pois o

cristianismo originário aponta para a ressurreição do corpo e não para a imortalidade

da alma. Foram os pensadores cristãos da Patrística, que fizeram uma releitura de

algumas concepções presentes no texto bíblico à luz do conceito grego de alma.

(REALE, 2002, p.12).

Reportando-se ao livro O corpo, de Galimbert, Reale (2002) nos diz que, para

esse autor, no momento atual, o conceito grego de psyche deveria ser descartado

pelas ciências do homem, principalmente, pela psicologia. Para Galimbert, é preciso

que a psicologia vá contra a representação de psyche que ela tomou de empréstimo

ao pensamento grego em sua aurora, pois há, nessa noção, uma autonomização da

psyche. Nesse sentido, esse autor vai nos esclarecer que “a psicologia não só não

chegará nunca a compreender a expressividade originária do corpo, mas será

constrangida a errar, porque ignora o erro que está na base da sua fundação

epistêmica, do seu nascimento como ciência.” (GALIMBERT apud REALE, 2002,

p.12).

Assim, no campo clínico da psicologia, em suas diversas abordagens sobre

subjetividade humana, há uma tendência em privilegiar o conceito de alma, em

detrimento do corpo, tal como concebido na tradição do pensamento filosófico.

Diante disso, Reale coloca como necessário e fundamental, o entendimento

sobre o nascimento e o desenvolvimento dos conceitos de corpo e psyche. Sua

proposta é iniciar por Homero, mais precisamente, a partir da Ilíada e da Odisséia.

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Em Homero, soma significa cadáver, isto é, o organismo privado de vida. No

cadáver, cessam as múltiplas funções diferenciadas dos órgãos, funções e órgãos

tornam-se iguais, ganham uma unidade: soma. No homem vivo, há uma

multiplicidade de órgãos e funções em atividade, não tendo, portanto, uma unidade,

mas membros no sentido de melea ou gyia. Segundo Reale,

[...] podemos considerar adquirido por sinédoque, que, à medida que o órgão individual exprime toda pessoa, o homem homérico sente a si mesmo dessa maneira: “eu sou esta minha mão”, “eu sou estas minhas pernas”, “eu sou estes meus joelhos”, “eu sou estes meus pés”, e assim por diante. (REALE, 2002, p.37).

Nesse contexto, melea indica membros, no sentido paratáxico, enquanto aparato

muscular, vigor e força.

Portanto, o homem homérico toma a parte, a atividade ou funções de seus

membros: as mãos, os pés, as pernas, a cabeça, para fazer referência a si mesmo.

É importante observar qui que é desse modo que ele será representado na arte:

uma pessoa em movimento.

Figura 1: Kantaros – um copo de bebida, tipicamente usado pelo deus

Dionísio com homens em movimento de dança. 2ª metade do século VI a.C.

Fonte: Museu Pergamon de Berlim.

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Para a compreensão da concepção de espírito humano em Homero se faz

necessário utilizarmos das reflexões feitas por Snell, Böhme, Pohlenz e Reale. 1 A

partir desses autores avançamos uma definição aproximativa dos termos coração,

thymos, phrenes, noos e psyche:

a) coração: órgão físico e também função responsável pelos sentimentos e

afetos;

b) thymos: órgão representante da dimensão emotiva e ligado com o

sentimento e a paixão, cujo termo mais próximo, em português, é ânimo;

c) phren: indica a mente conectada com sentimentos e emoções. Seu órgão

está situado no peito, perto do coração, no diafragma;

d) noos: considerado como órgão mais elevado tem como função o

discernimento, a inteligência;

e) psyche: imagem espectral do defunto, do sem vida, isto é, daquele que

não é mais capaz de sentir, de conhecer, de querer.

Convém ressaltar que a concepção, trazida por Reale, sobre a psyche

acompanha a que é dada por Otto: “[...] a psyche não é a ideia da vida enquanto tal,

mas é a ideia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto; [...] não

representa senão uma imagem emblemática que exprime o ser do ter sido.” (OTTO

apud REALE, 2002, p.78). É nesse sentido que psyche vai para o Hades.

Outro ponto importante a ser considerado é a localização da mente no

diafragma. De acordo com Reale, a descoberta do cérebro, como sede material do

conhecimento e do pensamento, foi feita somente em torno do ano 500 a.C. pelo

médico Alcméon. (REALE, 2002, p.65).

Em síntese, no contexto homérico, o corpo, como unidade, é cadáver; psyche

é a imagem do sem vida; e a mente está localizada no diafragma.

Ora, em Sócrates, vamos encontrar outro modelo de psyche, entendida como

algo interior e consciência intelectual e moral. É a alma que governa o corpo. Nessa

perspectiva, cabe ao homem cuidar de sua alma. Em seu estudo, Reale destaca que

1 Snell, Böhme, Pohlenz são os autores mencionados por Reale (2002), para refletir sobre a alma humana em Homero.

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a definição de alma feita por Sócrates tem um caráter fenomenológico, mas não

ontológico: “Sócrates falou da alma como de uma faculdade essencial do homem,

ilustrou as funções de conhecer o bem e o mal, de dominar e dirigir as ações

humanas, mas não chegou a definir sua natureza ontologica.” (REALE, 2002, p.

158). Esse autor destaca a abordagem feita por Havelock

[...] Em suma, em vez de significar o espírito ou o espectro, ou respiração ou sangue humanos, uma coisa desprovida de sentido e de auto-consciência, acabou por significar o espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única em todo o reino da natureza. (HAVELOCK apud REALE, 2002, p.141).

Assim, com Sócrates, a alma deixa de designar um espectro do homem morto e

ganha uma outra dimensão: a faculdade capaz de conhecer tanto o mundo externo,

quanto a sua própria interioridade, tornando o ser humano apto para governar suas

ações.

De acordo com Reale (2002), em Platão temos, dentre outras definições, que são

três as formas da alma:

a) a racional: parte da alma considerada divina, tem como função administrar

os desejos e as paixões. Os deuses a colocaram na cabeça;

b) a irascível: parte irracional e mortal, donde derivam os instintos de

agressão e ira. Foi colocada pelos deuses entre o diafragma e o pescoço;

c) a concupiscível: parte irracional e mortal cuja função é garantir a nutrição

do corpo. Foi posta pelos deuses entre o diafragma e o umbigo. (REALE,

2002, p.205-212).

Assim, na concepção platônica, temos a alma dividida em três partes: duas

irracionais e mortais - a irascível e a concupiscível - localizadas no corpo entre o

umbigo e o pescoço; e a parte da alma racional e imortal localizada

na cabeça - lugar privilegiado do logos, da razão discursiva. Desse modo, no

contexto platônico, o homem tem um corpo mortal e uma alma racional imortal.

Ora, para cuidar de si, Reale, por intermédio de Sócrates, nos esclarece que

é preciso conhecer-se a si mesmo. Nesse sentido, destacamos o seguinte fragmento

do diálogo entre Sócrates e Alcibíades,

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Sócrates – E então? Jamais poderemos saber qual é a arte de tornar melhores a nós mesmos, se ignoramos o que nós mesmos somos. Alcibíades – Impossível. Sócrates – E, portanto, conhecer a si mesmo é coisa fácil e era talvez um homem qualquer aquele que, no templo de Delfos, consagrou aquele mote? Ou é, ao invés, uma coisa difícil para todos? Alcibíades – A mim, Sócrates, amiúde pareceu ser coisa de todos, normalmente dificílima. Sócrates – Mas, ó Alcibíades, fácil ou não, para nós é assim: se nos conhecermos, saberemos talvez também qual é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecermos, jamais o saberemos. (SÓCRATES apud REALE, 2002, p.143).

No entanto, em Platão, seja o homem considerado corpo ou alma ou o

conjunto corpo e alma, o homem é sua Psyche, e, mesmo que ela tenha em si,

sentimentos e paixões, ela deve ser comanda por sua inteligência.

Cabe indagar, diante do exposto, se não estaríamos, aqui, diante de uma

primeira proposta de uma terapia da alma, isto é, de uma psicoterapia de cunho

filosófico? Em outros termos, tratar-se-ia de uma técnica de si , fundamentada no

cuidar de si , via conhecimento de si .

Segundo essa perspectiva filosófica, a razão deve governar o pathos, sua nau

interior, para que a alma alcance, assim, sua serenidade - condição indispensável

para que o homem, da época de Platão, tenha uma vida boa.

A Psicanálise, em conformidade com Foucault, é uma técnica de si que mais

se aproxima do cuidar de si. Entretanto, seja no discurso filosófico ou no discurso

psicanalítico, o que nos importa destacar, como pertinente à nossa pesquisa, é que

o cuidar de si , via conhecimento de si , se dá através de uma interação

discursiva . O que vai diferenciar tais discursos são seus conceitos de corpo e de

alma atrelados as suas respectivas concepções sobre o pensamento humano . Se

o enfoque de Platão foi dado ao pensamento racional; o de Freud, recai sobre o

pensamento inconsciente. Daí ser necessário refletirmos sobre a relação entre

inconsciente e linguagem. Mas, antes disso, torna-se imprescindível uma breve

investigação da concepção cartesiana sobre corpo e alma.

2.1.3 - A influência cartesiana na concepção corpo e alma

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A questão sobre corpo e alma é retomada por Descartes em suas

Meditações. Nela obtemos o esclarecimento de que o corpo é distinto da alma e esta

independe do corpo para existir. Para o autor, o corpo não pode ser compreendido

através das sensações de tato, visão, audição e olfato, pois o sentir nada é senão

pensar. (DESCARTES, 1983, p. 95). Em outros termos, isso significa que não é

através da visão e do tato que conhecemos os objetos, mas por concebê-los pelo

pensamento.

Quanto à imaginação, Descartes assegura que ela não é necessária à

essência do espírito. Um exemplo disso é que ele consegue pensar em um

quiliógono da mesma forma que concebe um triângulo, mas, segundo o autor, “não

posso imaginar os mil lados de um quiliógono como faço com os três lados de um

triângulo, nem, por assim dizer, vê-los como presentes com os olhos de meu

espírito.” (DESCARTES, 1983, p.130)

Em seu Tratado do homem, o autor sustenta a hipótese de que a sede de

união do corpo-máquina com uma alma racional é o cérebro. (DESCARTES, 1993,

p.158). Mais precisamente a superfície da glândula H “sede da imaginação e do

senso comum, que devem ser tomadas como idéias, ou seja, como formas ou

imagens que a alma racional considerará imediatamente, quando estando unida a

esta máquina imaginar ou sentir qualquer objeto.” (DESCARTES, 1993, p.182).

Desse modo, não concebemos os corpos pela imaginação nem pelos sentidos, mas

pela faculdade de entender. Assim, o pensar passa a ter a primazia sobre o corpo.

Essa concepção cartesiana é a responsável pela dicotomia corpo e espírito que irá

influenciar o pensamento ocidental moderno como um todo.

2.1.4 – Origem/natureza da linguagem

Ao indagarmos sobre a origem da linguagem temos que enfrentar, logo de

imediato, a seguinte questão: a linguagem é algo inato ou uma aquisição cultural?

Steven Pinker (2004), em seu texto O instinto da linguagem, afirma que

Chomsky, ao defender a tese de que a linguagem é um instinto, foi o responsável

pelas grandes mudanças ocorridas tanto na ciência cognitiva, quanto na ciência da

linguagem.

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No início de sua conferência Novos horizontes no Estudo da Linguagem –

proferida em 18 de novembro de 1996, na Universidade Federal do Rio de Janeiro –,

Chomsky (1997) sustenta a hipótese de que podemos considerar a faculdade

humana de linguagem como uma propriedade da espécie. O autor concorda com

que a distinção entre o ser humano e os outros animais e as máquinas é a

habilidade humana no uso dos signos linguísticos para expressar pensamentos

formados livremente. Segundo Chomsky, há, na linguagem humana, uma

propriedade elementar: a da infinitude discreta. Essa propriedade não é aprendida,

mas é inerente à mente, ou seja, algo da ordem do biológico. Os números naturais,

o alfabeto, a quantidade finita de sons numa infinidade de expressões com sentido

são produtos da propriedade da infinitude discreta, fruto da evolução biológica sobre

a qual, teoricamente, nada sabemos.

Chomsky considera a faculdade de linguagem um órgão linguístico, isto é,

uma expressão dos gens e, tal como qualquer outro órgão do corpo, um subsistema

de uma estrutura complexa. No entanto, saber como isso acontece faz parte de um

projeto a longo prazo. O que se tem feito, no momento, é investigar o estado inicial

geneticamente determinado. Cada língua é o resultado de dois fatores: o estado

inicial e o curso da experiência. Podemos, então, conceber o estado inicial como um

mecanismo de aquisição de linguagem

que recebe como dados de entrada (input) a experiência, e fornece como saída (output) a língua – saída esta que constitui um objeto internamente representado na mente/cérebro. Tanto a entrada quanto a saída estão à nossa disposição para serem examinadas: podemos estudar o transcorrer da experiência e podemos estudar as propriedades das línguas que são adquiridas. (CHOMSKY, 1997, p.51).

Nota-se que essa concepção de língua é a de algo como “nosso modo de

falar e de compreender”. O enfoque dado pelo autor está voltado para a faculdade

de linguagem: “seu estado inicial, e os estados que ela assume.” Em outros termos,

de uma língua internalizada, capaz de determinar “um conjunto de expressões

infinito, cada um com seu som e sua significação.” (CHOMSKY, 1997, p.52). Essa

teoria da língua é denominada gramática gerativa. Trata-se de uma abordagem

mentalista, mas que leva em consideração “os aspectos mentais do mundo”. Seu

objeto de estudo é o cérebro, seus estados e funções, numa tentativa de integrar o

estudo da mente às ciências biológicas.

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A tese forte de Chomsky é a de que são duas as condições de uma teoria

genuína da linguagem humana: adequação descritiva e adequação explicativa. De

um lado, as pesquisas desenvolvidas pela abordagem da adequação descritiva têm

resultado numa crescente complexidade e variedade dos sistemas de regras. De

outro, as da adequação explicativa têm requerido “que a estrutura das línguas seja

invariante, exceto nas partes marginais.” (CHOMSKY, 1997, p.55). No entanto, o

autor nos adverte que estamos lidando com um programa de pesquisa e não com

um produto pronto. Sendo que, o objetivo “é descobrir e esclarecer os princípios e

parâmetros e a formação de sua interação, e estender o arcabouço para incluir

outros aspectos da língua e seu uso”. (CHOMSKY, 1997, p.57). Nesse sentido, “o

programa minimalista é um esforço para explorar estas questões”.

Embora admita explicitamente a influência da teoria de Chomsky sobre seu

trabalho, Pinker faz crítica tal como: a não aceitação, por parte de Chomsky, da

possibilidade de explicação das origens do órgão da linguagem através da teoria da

seleção natural, tal como proposta por Darwin ou que

as teses de Chomsky sobre a natureza da faculdade da linguagem baseiam-se em análises técnicas da estrutura das palavras e frases, muitas vezes expressas em abstrusos formalismos. Suas discussões sobre falantes de carne e osso são superficiais e muito idealizadas. (PINKER, 2004, p.17).

Contudo, Pinker destaca como pontos fundamentais na teoria de Chomsky:

primeiro, a capacidade do cérebro humano de produzir um conjunto infinito de

frases; segundo, as crianças desenvolverem gramáticas complexas sem instrução

formal.

Assim, inspirando-se, em parte, na teoria de Chomsky e também no

pensamento darwiniano de que a linguagem é um tipo de instinto, Pinker vai

sustentar a tese de que a linguagem verbal é um instinto humano, um produto

biológico. Sua justificativa é a de que não há nenhuma tribo, por mais primitiva, que

não tenha uma língua. Segundo o autor,

A universalidade da linguagem complexa é uma descoberta que enche os linguistas de admiração e temor, e é a primeira razão para suspeitar que a linguagem não é apenas uma invenção cultural qualquer mas produto de um instinto humano específico. (PINKER, 2004, p.21).

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Todavia, Pinker argumenta que, para céticos obstinados como o filósofo

Hilary Putnam, a tese de que a linguagem humana é inata, não prova nada. Para

demonstrar a pertinência de sua tese de que existe um instinto de linguagem, Pinker

vai se valer de sua própria especialidade profissional: o estudo do desenvolvimento

da linguagem nas crianças.

O ponto central da tese é que a linguagem complexa é universal porque as crianças efetivamente a reinventam, geração após geração – não porque a aprendem, não porque são em geral inteligentes, não porque é útil para elas, mas porque não têm alternativa. (PINKER, 2004, p.28-29).

Os indícios dessa reinvenção, segundo o autor, podem ser observados a

partir da mistura de línguas, deliberada ou não, pelos trabalhadores: do lado do

Atlântico, os escravos e, no sul do pacifico, o servos contratados. Tendo que cumprir

suas tarefas e não tendo como aprender a língua uns dos outros, esses

trabalhadores foram levados a desenvolver um jargão provisório: o Pidgin.

Pidgins são cadeias precárias de palavras tomadas da língua dos colonizadores ou donos de plantações, que variam muito em termos de ordem e são pobres no que se refere à gramática. Às vezes, um pidgin pode se tornar uma língua franca ganhando em complexidade, com o passar do tempo, como ocorreu com o “Pidgin English” do Pacífico Sul moderno. (PINKER, 2004, p.29).

No entanto, no uso mais complexo da linguagem, as crianças podem

transformar pidgin em crioulo, como foi o caso das crianças havaianas. “Crioulas são

línguas genuínas, com ordem de palavras padronizadas e marcadores gramaticais

que faltavam no pidgin dos imigrantes e que, afora o som das palavras, não foram

tomados da língua dos colonizadores.” (PINKER, 2004, p.33).

Em conformidade com Pinker, “o mesmo tipo de genialidade linguística está

presente cada vez que uma criança aprende sua língua materna.” (PINKER, 2004,

p.39).

Outro ponto que destacamos como importante nas reflexões desse autor é

sua afirmação de que é um absurdo sustentar que o pensamento é o mesmo que

linguagem. Se houvesse uma dependência do pensamento em relação à linguagem

como poderia surgir uma palavra nova? “Para começo de conversa, como uma

criança poderia aprender uma palavra? Como poderia ser possível a tradução de

uma língua para outra?” (PINKER, 2004, p.63).

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Ainda que sejam pertinentes as teses colocadas por Pinker sobre o instinto da

linguagem e que o pensamento e a linguagem são diferentes, temos que dialogar

com outros pensadores, para avançarmos um pouco mais em nossa reflexão sobre

a origem da linguagem. Cabe, no entanto, uma observação que consideramos

pertinente. Ora, se a linguagem é um instinto e o pensamento é anterior à

linguagem, não seria o pensamento também um instinto?

Embora reconheçamos os méritos das perspectivas, tanto, de Chomsky, que

coloca que a linguagem é inata, quanto, de Pinker, que propõe pensar a linguagem

como um instinto, é necessário aprofundarmos nossa discussão sobre a origem da

linguagem, no plano biológico. Nesse sentido, vamos tomar, como objeto de

reflexão, a teoria dos grupos neurais de Edelman, mais especificamente, seu texto

Biologia da consciência.

Admitindo a hipótese de que “a fala é um atributo específico e exclusivo do

Homo sapiens,” Edelman coloca a seguinte questão: “Podemos explicar” a fala “em

sua emergência sem criarmos um fosso entre a lingüística e a biologia? Sim, desde

que possamos explicar a fala em termos não só genéticos como também

epigenéticos.” (EDELMAN, 1995, p. 184).

Em conformidade com o autor, a origem da linguagem nos hominídeos está

vinculada à sua posição bípede. Mais particularmente, essa posição acarretou

alterações na estrutura da base craniana, de uma parte anatômica, exclusivamente

humana: o espaço ou andar supraglótico. É importante lembrar que fazem parte do

espaço supraglótico a laringe, a faringe, a epiglote, a cavidade oral e a cavidade

nasal.

Na criança, o espaço supraglótico atinge seu desenvolvimento evolutivo com

a descida da laringe, o que possibilita que o ar exalado faça vibrar as cordas vocais

e, sendo modulado, por sua vez, pela língua, dentes e lábios, produz sons

articulados: os fonemas. No caso da deglutição, a epiglote tem uma função

importante: a de fechar as vias respiratórias. Caso contrário, há o risco de

sufocação.

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Figura 2: o andar supraglótico nos seres humanos.

Fonte: EDELMAN, 1995, p. 185.

Especula-se que junto ou muito próximo à conquista da posição bípede - ao

surgimento do espaço supraglótico - despontam, no hemisfério esquerdo do cérebro

humano, as denominadas área de Broca e área de Wernicke. São elas que

estabelecem “a comunicação entre as áreas acústica, motora e conceptual do

cérebro, por intermédio de ligações reentrantes.” (EDELMAN, 1995, p. 184).

Figura 3: Áreas do cérebro destinadas à produção da fala.

Fonte: EDELMAN, 1995, p. 186.

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Para Edelman, a interligação das áreas de Broca e de Wernicke é “um

ordenamento sensitivo-motor mais sofisticado”, responsável pela produção e

categorização da fala. E mais ainda, elas criam um sistema de memória capaz de

recategorizar os fonemas. No entanto, cabe indagar sobre o que teria levado alguns

hominídeos a uma evolução tão significativa e que os possibilitou a se

transformarem em outra forma de animal humano? O que teria ocorrido para que se

colocassem de pé e o que os possibilitou a aquisição da inteligência e da

linguagem? Que outra especulação, que outra explicação teríamos para o

ocorrência de tal fenômeno?

Uma outra especulação sobre essa passagem de hominídeo a homem, bem

como a origem da linguagem nos é dada por Freud em companhia de seus colegas,

Fritz Wittels e Ferenczi. Trata-se de um manuscrito, aliás de uma correspondência

de Freud à Ferenczi. A carta começa assim: “Caro amigo, Envio ao senhor, aqui, o

rascunho do /ensaio/ XII, o qual certamente irá lhe interessar. Pode jogar fora ou

guardar. (...)” (FREUD, 1987, p.74).

“Foi o Dr. Wittels que primeiro enunciou a idéia de que o primata teria passado sua existência num ambiente extremamente rico, satisfazendo todas as suas necessidades. O eco dessa situação temos no mito do paraíso original. Lá, ele pode ter superado a periodicidade da libido, que é ainda inerente aos mamíferos. Ferenczi, naquele trabalho mencionado, rico de pensamentos, expôs que o desenvolvimento ulterior desse homem primitivo realizou-se sob a influência dos destinos geológicos da Terra e especialmente as agruras dos tempos glaciais teriam exercido o estímulo para o seu desenvolvimento cultural.” (FREUD, 1987, p.74).

No entanto, temos noutro texto de Freud (1930), O mal-estar na cultura, uma

nota de rodapé (1699), na qual o mesmo tema retorna com a contribuição, agora, de

Daly, C. D. sobre a mitologia hindu e o complexo de castração.

Tendo em vista o que foi apresentado, levando em consideração os textos

freudianos acima indicados, apresentamos a seguinte síntese: hominídeos viviam

sobre a face da terra em plena harmonia com a natureza, ou melhor, uma espécie

de mãe-natureza que lhes proporcionava os recursos alimentares necessários a sua

sobrevivência. Nesse período, movimentavam-se como quadrúpedes, sua

sexualidade era regida pelo olfato, e eles não falavam. Eis que, num determinado

momento, o planeta terra passou por um período de resfriamento, conhecido como

era glacial. Assim, os hominídeos tiveram que se adaptar aos novos tempos e

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passaram por transformações tanto físicas quanto no seu modo de vida. Os

alimentos, antes disponíveis no plano horizontal e ao alcance das mãos, estavam

agora soterrados pelo gelo. Restavam então os alimentos disponíveis em árvores, o

que exigiu dos hominídeos o desenvolvimento de uma postura bípede como também

de um olhar não mais para a superfície, mas para o alto - para um outro horizonte.

Essas mudanças, tanto climáticas quanto do corpo e do comportamento dos

hominídeos, trouxeram como consequências filogenéticas:

- primeiro, uma tristeza profunda, uma espécie de angústia real, devido à falta de

alimentos, antes fornecidos fartamente pela mãe-natureza. A partir de então, teriam

os hominídeos que procurar pelos alimentos.

- segundo, como não havia alimentos para todos, houve uma restrição à procriação,

como um dever social. Assim, o conflito entre prazer de procriar e a auto-

preservação, teve como resultados: por um lado, nas mulheres, a invenção da

conversão histérica, deixando sua sexualidade de ser regida pela natureza.

Kantianamente, não se trata mais de querer, de poder fazer sexo, mas de dever ou

não. Nesse momento, o homem ainda não falava. Em conformidade com Freud,

“quando, vencido pela necessidade, se impôs não procriar, portanto, ainda não havia

erguido o sistema pcs acima do ics. Sob a influência das proibições regridem para a

histeria de conversão os que tiverem com essa disposição, especialmente a mulher.”

(FREUD, 1987, p.76). 2

- terceiro, ao se colocar na posição bípede, houve uma modificação na sua

sexualidade, não sendo regida mais pelo olfato, mas pela visão. Em outros termos, a

sexualidade perde o ciclo intermitente, ligado às sensações olfativas e adquire,

através das sensações visuais, um caráter permanente.

- quarto, logo após aprender a reduzir sua atividade sexual, a inteligência ganha

para o homem o papel principal, o que possibilita o surgimento da linguagem verbal

e do próprio eu.

Aprendeu a pesquisar, a entender de alguma maneira o mundo adverso e a assegurar para si através das invenções um primeiro domínio sobre o mundo. Desenvolveu-se sob o signo da energia, formava os princípios da linguagem e precisava prestar grande importância às novas conquistas. A

2 Vale ressaltar que, no texto O inconsciente escrito em 1915, Freud nos esclarece sobre a diferenciação entre sistema Inconsciente e sistema pré-consciente. No sistema inconsciente (Ics) temos, como conteúdo, as representações de coisa; e, no sistema pré-consciente (Pcs), as representações de palavra.

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linguagem era para ele magia; seus pensamentos pareciam-lhe onipotentes; compreendia o mundo através de seu próprio eu. É a época da concepção anímica do mundo e de sua técnica mágica. (FREUD, 1987, p.76-77).

Encontramos aqui os traços característicos de uma neurose obsessiva:

“acentuação exagerada do pensar; a energia gigantesca, retornando na compulsão;

a onipotência do pensamento; a tendência para leis invioláveis.” (FREUD, 1987,

p.77).

Segundo nosso entendimento, para que surgisse a linguagem e a concepção

do próprio eu, houve a evolução e o desenvolvimento de um processo muito

complexo. A energia não gasta na atividade sexual foi transferida para a atividade

intelectual, ou seja, para as primeiras categorizações: as representações de coisa

presentes no sistema inconsciente. Só-depois é que surge a linguagem, por meio da

categorização das representações de palavra, formando o sistema pré-consciente. A

consciência vai depender das ligações reentrantes entre esses dois sistemas.

Nesse período surge, em hordas isoladas, a figura do pai primitivo: um

homem sábio, forte e brutal. Tendo se tornado o grande provedor, esse pai caminha

em direção ao desenvolvimento da cultura e, através de seu poder, estabelece

“as duas primeiras normas: sua inviolabilidade e que não pudesse ser negado a ele

dispor de todas as mulheres.” (FREUD, 1987, p.77). Como podemos observar, essas

novas regras de convivência beneficiam somente a um: o pai da horda. É isto que

vai levá-lo a sucumbir e, simultaneamente, se tornar uma “divindade”. Termina aqui

a primeira fase do desenvolvimento da cultura humana: a do pai cultural patriarcal.

Posteriormente, a morte desse pai primitivo pelos filhos dará origem à culpa e a uma

cultura fraternal. Assim, as disposições para as denominadas neuroses de

transferência -a neurose de angústia, a histeria de conversão e a neurose obsessiva

- estão atreladas ao desenvolvimento humano em sua primeira geração. Nas

palavras de Freud, a neurose é também uma aquisição cultural.

As neuroses narcísicas são produtos da segunda geração. No ínicio, dessa

fase, temos a seguinte relação entre o pai primitivo e seus filhos: ou nada é

permitido aos filhos ou, caso contrário, eles são expulsos ou castrados.

Desse modo, ao serem expulsos, os filhos aprendem, por meio de uma

relação fraterna, a sublimar sua homossexualidade e a lutar pela sobrevivência do

grupo, criando os sentimentos sociais tão caros à sociedade futura. Esses traços

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são encontrados na paranóia, “na qual não faltam alianças secretas e o perseguidor

representa um magnífico papel.” (FREUD, 1987, p. 79).

A castração leva à extinção da libido e à interrupção do desenvolvimento

individual. Conforme salienta Freud, “A demência precoce parece repetir esse

estado de coisas, e, principalmente na forma hebefrênica, leva à desistência de

qualquer objeto de amor, involução de todas as sublimações e volta ao auto-

erotismo.” (FREUD, 1987, p. 78).

Quanto à melancolia-mania, ela estaria vinculada, por um lado, ao triunfo

sobre a morte do pai primitivo; e por outro, ao luto pela mesma morte, que advém da

identificação com ele.

No entanto, o autor alerta: “Se o paralelo aqui esboçado não é mais que uma

comparação lúdica na medida em que não consegue iluminar o enigma das

neuroses, deve ceder o esclarecimento às futuras pesquisas e novas experiências.”

(FREUD, 1987, p.80).

Observamos, nessas especulações sobre a origem da linguagem no homem -

tanto na teoria de Edelman quanto na de Freud - que embora plausíveis, não

passam de contos filogenéticos, já que não há nenhum tipo de comprovação,

científica ou não, de tal acontecimento.

Partindo ainda da posição bípede em que se colocou o homem,

apresentamos uma terceira explicação e propomos um outro esquema baseado nas

especulações de Freud e Edelman.

POSIÇÃO BÍPEDE HUMANA

CONSEQUÊNCIA DESDOBRAMENTO

Na teoria de Edelman

Surgimento do espaço supraglótico

- Surge no hemisfério esquerdo do cérebro: as áreas de Broca e Wernicke. - Sistema de memória. - Comunicação entre essas áreas via ligações reentrantes. - Produção e categorização da fala. - construção da gramática: do fonético ao semântico e só depois, ao sintático.

Na teoria de Freud

- Inteligência: início do uso da linguagem.

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- Sexualidade: deslocamento do olfato para a visão. - Redução da atividade sexual.

- Surgimento do Eu. - Concepção anímica do mundo. - Aprende a pesquisar. - Começa a entender o mundo adverso. - Inventa um primeiro domínio sobre o mundo. - Tem origem a cultura.

Quadro 1 – Posição bípede e seus desdobramentos

Fonte: Elaborado pelo autor

Conforme vimos, foi a luta pela sobrevivência que levou parte dos hominídeos

a se colocar na posição bípede. Nota-se que esse novo modo de se postar diante do

mundo, acarretou mudanças substanciais. Dentre elas, houve uma redução da

atividade sexual, que deixou de ser regulada pelo olfato e passou para o domínio da

visão. Temos aqui literalmente, uma transferência de sentido: do olfativo ao visual.

Nessa dimensão, o olho ganha, assim, uma função a mais: além da capacidade de

visualização, ele se torna visual-erógeno. Com isso, não só o corpo-a-corpo da

relação sexual ganha com a nova posição, na medida em que surge uma atitude

outra – o face a face – a paixão.

(...) Processo maior de aquisição e de crescimento, a paixão nasce desses frente a frente, face a face, vis-à-vis e corpo a corpo. Adquire-se a palavra como eco muscular e nervoso, e o refinamento dos músculos requeridos por ela alcança o mesmo refinamento dos músculos recrutados pela escrita. (SERRES, 2004, p.24).

Tomando de empréstimo a Lacan o seu esquema L, podemos dizer que o

face a face corresponderia ao registro do imaginário, à imagem invertida do espelho.

Em Conformidade com Vallejo (1979), é um equívoco considerar que alguém se veja

no espelho. Para o autor, o sujeito se vê desde o espelho. Desse modo,

argumentamos que, no face a face, o espelho é o outro. Portanto, sem a interação

imaginária eu-outro , sem a construção da imagem subjetiva corporal, sem esse eu

imaginário que nos permite diferenciar o eu próprio e o outro , não é possível ter

acesso ao simbólico - à dimensão da linguagem, ao código, à cultura. Desse modo,

sem um eu imaginário, não há um eu simbólico.

Concomitantemente, segundo nos esclarece Edelman, a posição bípede

levou a uma alteração anatômica na estrutura da base craniana - o espaço

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supraglótico formado pela laringe, faringe, epiglote, cavidade oral e nasal. Logo em

seguida, surgem no cérebro as áreas acústica, motora e conceptual que passam a

se comunicar por meio de ligações reentrantes. Assim, tornou-se possível a

produção e categorização da fala, isto é, a construção da gramática humana:

fonológica, semântica e sintática.

No entanto, cabe observar que, em conformidade com Serres, na posição de

quadrúpede, a fêmea dos hominídeos “mostra seu sexo por trás, enquanto o macho

oculta o seu sob seu ventre; ao se erguerem, tudo se inverte, o macho passa a

mostrar o que a fêmea esconde.” (SERRES, 2004, p.24). No entanto, segundo o

autor, a aquisição da posição ereta depende mais dos ouvidos, que dos olhos, pois

para saltar, andar, correr e sustentar-se é necessária a sensação de equilíbrio sobre

os pés, regida pelo labirinto ou ouvido interno e, cabe-nos acrescentar, também pelo

cerebelo.

Entretanto, vale dizer que o labirinto é formado por dois sistemas:

a) o vestibular , responsável pelo nosso sentido de equilíbrio corporal;

b) o coclear , que possui um elemento imprescindível para o

desenvolvimento da linguagem verbal: o sentido da audição. Mas não só o

labirinto está também interligado à visão. Desse modo, uma coisa é,

estando numa posição fixa, termos a visão e/ou a audição de um ser ou

objeto em movimento; outra, é estarmos em movimento - saltando,

andando, correndo, visualizarmos e/ou ouvirmos um ser ou um objeto,

tanto em estado fixo, quanto em movimento. Em outros termos, é o

labirinto com seus sistemas vestibular e coclear - que integra o equilíbrio,

a audição e o olhar, que permite ao corpo se movimentar, se direcionar,

sem perder o foco.

Ora, podemos dizer, baseando-nos no pensamento do antropólogo Gordon

Hewes, que os hominídeos, ao passarem da posição quadrúpede à posição bípede,

tiveram suas mãos liberadas, isto é, as mãos que antes serviam para a locomoção,

passaram a ter novas funções, tais como: a comunicação gestual, a fabricação e o

manuseio de objetos.

Em conformidade com Fritjof Capra (2002), antes de começar a falar, as

crianças gesticulam e quando nós adultos não falamos uma determinada língua,

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recorremos aos gestos. Esse autor coloca a seguinte questão: “como é que os

nossos ancestrais hominídeos transpuseram o abismo que separa os movimentos

das mãos das correntes de palavras que saem da boca?” (CAPRA, 2002, p.64). Ele

nos diz que a resposta a esse enigma foi dada pelo neurologista Doreen Kimura,

que defende a ideia de que tanto a fala quanto os movimentos precisos, aparentam

ser controlados pela mesma região motora do cérebro. Essa descoberta de Kimura

levou Roger Fouts a afirmar “A linguagem de sinais faz uso de gestos das mãos; a

linguagem falada, de gestos da língua. A língua faz movimentos precisos e pára em

locais específicos da boca para que possamos produzir certos sinais”. (FOUTS apud

CAPRA, 2002, p.65).

Posteriormente, Fouts entendeu que a afirmação dos médicos sobre o

problema de linguagem nas crianças autistas deve ser entendido como problemas

com a linguagem falada e passou a utilizar com essas crianças a linguagem de

sinais. Com essa técnica houve uma mudança substancial na comunicação de

algumas crianças autistas.

2.1.5 - A linguagem e o cérebro

Para explicar como os processos fisiológicos se relacionam com os

psicológicos, Edelman vai propor sua complexa Teoria da Seleção dos Grupos

Neuronais (TSGN) que tem, como princípios fundamentais, a seleção de grupos

neuronais, reentrada e cartografia global, cujo objetivo principal é explicar a biologia

da consciência.

Dentre as características essenciais da construção teórica, preconizadas pelo

autor, destacamos a de “explicar a existência e as funções dos mapas cerebrais – a

sua oscilação e as generalizações das respostas perceptivas mesmo na ausência de

linguagem. Eventualmente, uma teoria deste tipo necessita também explicar a

emergência da própria linguagem.” (EDELMAN, 1995, p. 125).

No plano biológico, no que diz respeito às moléculas, o sistema imunológico,

por possuir uma forma de memória, tem a capacidade de reconhecimento, de

diferenciação entre eu e não-eu. Edelman nos esclarece que o sistema imunológico

é “o responsável pela distinção entre características químicas dos vários invasores

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virais e bacterianos (não-eu), e pelas reacções a elas; de outra forma, esses

invasores poderiam dominar os conjuntos de sistemas celulares de um organismo

individual (eu).” (EDELMAN, 1995, p. 114). Nesse sentido, ao injetar no corpo de um

indivíduo uma proteína estranha às que lhe são próprias, faz com que células

especiais - denominadas de linfócitos - produzam as moléculas especiais, os

anticorpos. De acordo com esse autor, há uma semelhança entre o sistema

imunológico e o sistema nervoso, o que lhe permite afirmar que o cérebro é um

sistema de reconhecimento seletivo, isto é, “a função cerebral segue princípios

seletivos.” (EDELMAN, 1995, p. 120). Portanto, sua proposta é, através dos

mecanismos seletivos, explicar as funções psicológicas, tais como: a percepção, a

memória e a consciência. Isso faz de sua teoria biológica do cérebro, uma ciência

de reconhecimento.

No entanto, há que se conciliar a variabilidade estrutural e funcional do

cérebro com sua tarefa de categorização. Dito de outro modo, como surgiu ao longo

da evolução a categorização perceptual e conceptual, da memória e da consciência.

De acordo com Edelman, de modo geral, a categorização tem, como referência,

critérios de valor internos, isto é, são respostas específicas, relacionadas à atividade

sensório-motora. Cabe esclarecer que a categorização perceptual é não consciente

e trata das mensagens advindas do exterior. De modo diferenciado, a categorização

conceptual, tendo como substrato as atividades de porções das cartografias globais,

advém do interior do cérebro e depende da categorização perceptual. Assim, a

interligação entre a categorização perceptual e a conceptual faz surgir na

consciência primária, uma cena, ou seja, uma imagem correlacionada. (EDELMAN,

1995, p.182).

São três os princípios básicos da teoria selecionista da função cerebral ou da

Teoria da Seleção de Grupos Neuronais, proposta por Edelman:

- O primeiro é o da Seleção no Desenvolvimento: envolve a divisão e a morte

celular, a extensão e eliminação dos prolongamentos celulares, o que implica

alterações no padrão anatômico. Estes grupos de neurônios, que surgem por

processo de seleção somática, estão implicados na competição topobiológica e

formam um repertório primário.

- O segundo não inclui mudança no padrão anatômico, determina, através de

processos bioquímicos específicos, o fortalecimento ou enfraquecimento das

conexões sinápticas. Este mecanismo, por meio da seleção, é o responsável, dentre

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outras coisas, pela variedade de circuitos funcionais na rede anatômica. Este

conjunto de circuitos é designado de repertório secundário.

- O terceiro é denominado por Reentrada. Trata-se do principio que rege a ligação

entre os mapas cerebrais. É considerado o mais importante, por estar “subjacente

ao modo como as áreas cerebrais que surgem ao longo da evolução coordenam

entre si o aparecimento de novas funções.” (EDELMAN, 1995, p.128). Sem o

princípio de reentrada não seria possível, por exemplo, a categorização perceptiva.

Para Edelman, a reentrada constitui a base do comportamento e forma, juntamente

com a memória, uma via para o entendimento da ligação entre a fisiologia e a

psicologia.

Em sua proposta de uma teoria epigenética da fala, Edelman afirma que não

há aquisição da fala sem consciência primária e que, sem a evolução de um meio

neuronal de criação de conceitos, não é possível o desenvolvimento de uma sintaxe

e gramática ricas. Em outros termos, a capacidade do cérebro de produzir conceitos

e agir sobre eles é anterior à evolução da linguagem.

Mas como se dá, hipoteticamente, a aquisição da fala? Essa aquisição é

epigenética e evolui na seguinte ordem: do fonológico ao semântico e desse ao

sintático. Em outros termos, por meio da aprendizagem, primeiramente há o

estabelecimento de um vínculo entre a capacidade fonológica e os conceitos e

gestos, o que vai permitir o surgimento da semântica e a “acumulação de um léxico:

palavras e frases com significado. A sintaxe emerge depois ligando a aprendizagem

conceptual preexistente e a aprendizagem lexical.” (EDELMAN: 1995, p.188). No

entanto, a comunicação direta e indireta entre o fonológico, o semântico e o sintático

só se torna possível graças à memória presente nas áreas de Broca e de Wernicke

e à formação de circuitos reentrantes que as interliguem. Nesse sentido, Edelman

nos esclarece ainda que

(...) o cérebro relaciona de forma recorrente seqüências semânticas com seqüências fonológicas, gerando depois correspondências sintáticas, não a partir de regras preexistentes, mas sim tratando as regras que vão se desenvolvendo na memória como objetos próprios para manipulação conceptual. A memória, a compreensão e a produção da linguagem interactuam de formas muito variadas por meio da reentrada. (EDELMAN, 1995, p.189).

Como o próprio Edelman admite, sua concepção da linguagem é nativista,

pois está baseada na evolução de estruturas cerebrais especializadas. Entretanto, é

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importante sublinhar que tão importante quanto a evolução dessas estruturas é a

interação com um outro falante. Essa interação com o outro não se reduz ao acesso

à linguagem, mas é ela que torna possível a constituição de um eu.

Figura 4: Esquema da aquisição da fala.

Fonte: EDELMAN, 1995, p. 187.

E o que dá origem à consciência primária? A consciência primária é um

estado mental que nos possibilita estar cientes do que ocorre ao nosso redor no

presente, isto é, na experiência atual. Trata-se de um circuito reentrante que

estabelece um vinculo entre a categorização perceptiva atual e a memória de Valor-

Categoria. Em outros termos, a memória conceptual depende da interação contínua

entre o eu, enquanto sistema interno, e o não-eu que são mensagens do mundo

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externo e que inclui a propriocepção.3 Esse trânsito de mensagens leva ao

surgimento de memória em áreas conceptuais. Vale sublinhar que a consciência

primária é não linguística e não semântica.

Figura 5: um modelo de consciência primária.

Fonte: EDELMAN, 1995, p. 176.

A aquisição da capacidade de nos tornarmos conscientes de ser conscientes

depende, no entanto, do estabelecimento do vínculo entre os sistemas de memória

com uma representação conceptual de um eu em sua interação com o meio. Isto

exige a construção, tanto de um modelo conceptual de ipseidade, quanto de um

modelo do passado e do futuro, o que implica numa alteração na forma do indivíduo

3 Propriocepção ou cinestesia é a capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação sem a utilização da visão.

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lidar com o presente imediato, isto é, surge aqui a capacidade de diferenciação entre

experiência perceptiva e modelo simbólico-conceitual. São repertórios cerebrais que

categorizam os próprios processos da consciência primária, que têm a capacidade

para o adiamento de respostas. Nessas elaborações feitas por Edelman, cabe

destacar que na aquisição da semântica temos o estabelecimento de “uma relação

dos símbolos da fala com a gratificação das necessidades afectivas fornecida por

con-específicos durante interacções de tipo parental, educativo ou sexual.”

(EDELMAN, 1995, p.191). Desse modo, a consciência elaborada requer um sujeito

pensante, capaz de refletir sobre seus atos e afetos.

Figura 6: um esquema de consciência elaborada.

Fonte: EDELMAN, 1995, p.192.

Em conformidade com Edelman,

Enquanto a incarnação do sentido e da referência pode ser relacionada com objectos e acontecimentos reais através das ligações reentrantes que

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existem entre a memória de valor-categoria e a percepção (consciência primária), podem também ocorrer interacções simultâneas entre uma memória simbólica e os mesmos centros conceptuais. Torna-se possível uma vida interior, baseada no aparecimento de linguagem numa comunidade de falantes. (...) trata-se de uma forma elaborada de consciência, com capacidade de criar um modelo de passado, presente e futuro, um eu e um mundo. (EDELMAN, 1995, p.192-193).

Em síntese, o esquema de consciência elaborada apresenta, hipoteticamente,

a relação das áreas da linguagem com as áreas conceituais, que são as

responsáveis pelo surgimento do conceito de eu e de consciência elaborada, em

suas interações com as relações sociais ou Boolstrapping Semântico.

Nesse sentido, tomaremos de empréstimo estas concepções teóricas de

Edelman e, na teoria freudiana, os conceitos de representação de coisa e

representação de palavra, para justificar nossa hipótese de que há tanto um pensar

inconsciente fora da linguagem, quanto um pensar pré-conciente/consciente que

depende da linguagem.

Em seu ensaio O olho e o cérebro: biofilosofia da percepção visual Meyer

(2002) destaca que, em 1861, o cirurgião Paul Broca, durante a autópsia do paciente

Leborge, localiza uma lesão no hemisfério esquerdo, mais precisamente, na terceira

circunvolução frontal esquerda do cérebro. Esta lesão cerebral seria a responsável

pela perda da linguagem articulada de Leborge. No entanto, acrescenta Broca que,

neste tipo de lesão, não há o comprometimento da faculdade da linguagem, da

memória das palavras, da ação dos nervos e músculos da fonação e da articulação.

Tal lesão, que afeta as imagens motoras de verbalização e acarreta a perda da

faculdade expressiva da capacidade de falar, é denominada por Broca de afasia

motora. Esta descoberta terá o mérito de colocar um novo paradigma no estudo do

cérebro: o das localizações das funções cerebrais. Dentro desse paradigma

localizacionista, outras contribuições importantes foram surgindo.

Em 1874, Karl Wernicke sublinha que não se deve reduzir o cérebro da

linguagem à afasia motora descrita por Paul Broca. Em seu estudo sobre o cérebro,

Wernicke descobre que uma localização, mais posterior e mais alta, participa da

percepção das palavras escritas ou faladas. Ela é a sede das representações

auditivas das palavras, ou seja, dos registros de cada palavra em particular.

(MEYER, 2002, p.31). Este novo conhecimento da função cerebral permite afirmar a

existência da afasia sensorial como perda da lembrança visual da palavra, levando a

uma incapacidade para ler e escrever.

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Por sua vez, afirma Meyer, Ludwig Lichteim sublinha que a linguagem

procede de vários territórios do cérebro, da atividade cumulativa e complementar de

centros funcionais associados e interligados. Há centros mnêmicos específicos da

leitura e da escrita que armazenam os rastros mnêmicos de estímulos auditivos e

verbais anteriores, que permitem reconhecer letras, palavras e frases para exprimir

ou compreender uma idéia. Para Meyer, as afasias dependem de um defeito de

repescagem mnemônica, eventualmente associado a uma ruptura de transmissão

entre centros envolvidos na produção da fala. (MEYER, 2002, p.32).

Em síntese, consideramos pertinente a reflexão feita por Meyer sobre a

importância da contribuição dos teóricos defensores da localização cerebral, para o

entendimento da linguagem. Principalmente, por entendermos que ela implica uma

busca de aprofundamento sobre a memória.

Figura 7: desenho neurológico feito por Freud, para identificar importantes

distúrbios da linguagem.

Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p.112

No entanto, em sua abordagem, Meyer, tal como Edelman, deixa de levar em

conta uma outra contribuição sobre o tema das afasias. Essa outra perspectiva,

embora reconheça o valor das teses defendidas por Broca, Wernicke e Lichthein, se

contrapõe a elas e considera-as insuficientes. Trata-se da abordagem funcional

psicológica, proposta em A interpretação das Afasias. Um estudo crítico, escrito em

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1891, pelo então médico neurologista Dr. Sigmund Freud. O mérito desse texto de

Freud está em tratar, especificamente, da discussão sobre o aparelho da linguagem.

Embora seja uma abordagem neurológica da linguagem, isto é, dos distúrbios da

linguagem, muitos dos conceitos ali construídos, tal como a representação

psicológica da palavra, irão repercutir posteriormente na construção teórico-clínica

da Psicanálise Freudiana. Fazem parte da representação psicológica da palavra: as

representações de objeto - que são traços mnêmicos dos objetos - e as

representações de palavras - que também são traços mnêmicos.

Figura 8: Diagrama psicológico da representação de palavras.

Fonte: GAMWELL; SOLMS 2008, p. 108.

Acompanhando o pensamento de Edelman e Rosenfield, considero que esses

traços mnêmicos são formas de categorização que podem tanto ser conscientes,

quanto inconscientes. No esquema psicológico da representação da palavra, temos

que a representação de objeto é uma rede associativa de representações visuais,

táteis, gustativas, cinestésicas etc.. Já a palavra é uma representação complexa que

se constitui das seguintes imagens: acústica, visual da letra, motora da linguagem e

motora do escrever.

No entanto, afirma Freud que - pelo menos em relação aos substantivos -

para que haja significação, é necessária a ligação entre a imagem visual da

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representação de objeto e a imagem acústica da representação da palavra.

(OLIVEIRA, 1999, p.16-17).

Desse modo e segundo o nosso entendimento, a linguagem depende tanto da

representação de objeto, quanto da representação de palavra. Em outros termos,

não há linguagem verbal - com produção de sentido, com significação - sem

categorização na imagem e na palavra.

Em seu estudo sobre A invenção da memória: uma nova visão do cérebro,

Rosenfield (1994) chama a atenção para o fato de que existem dois argumentos

principais no trabalho de Freud, que têm escapado aos neurocientistas e psicólogos

contemporâneos. Primeiro, a reflexão freudiana estaria criando um outro paradigma

para a abordagem das afasias, contrária à localização das funções no cérebro;

segundo, a idéia de que os afetos estruturam as recordações e as percepções, isto

é, ao estabelecer a relação entre emoção e memória, Freud estaria dando um passo

fundamental rumo ao delineamento funcional do sistema límbico. Para Rosenfield,

[...] Mais recentemente, verificou-se que as estruturas límbicas afetam também a memória. Mas essas descobertas recentes foram prenunciadas muito tempo atrás, quando Freud assinalou o papel fundamental da emoção em todas as recordações. É bem possível que sua teoria tenha fornecido uma compreensão mais completa do sistema límbico e de seu papel no funcionamento do cérebro em geral do que muitos dos fragmentados estudos neuroanatômicos que são publicados hoje. (ROSENFIELD, 1994, p.6)

Outro argumento que se opõe à ideia da localização cerebral e que

Rosenfield considera como de importante contribuição para o entendimento da

memória é a do neurologista inglês John Hughlings-Jackson. A partir de seu estudo

sobre o funcionamento do cérebro, esse autor nos esclarece que, ao espetar o dedo

com um alfinete ou ao ver um tijolo vermelho, estes estímulos não se encontram

gravados no cérebro, mas resultam numa atividade que passa a ser associada com

o objeto externo. Esse tipo de atividade envolve dois estágios: o primeiro, é

denominado de subjetivo e nele aquilo que é sentido ou percebido desperta em nós

uma imagem; o segundo, é chamado de objetivo, isto é, trata-se de uma projeção

desta imagem despertada no ambiente, seja ele ideal ou real. Assim, se, para os

teóricos da localização, a atividade cerebral tem um objeto especifico; para

Hughlings-Jackson, a atividade cerebral só ganha sentido, se estiver relacionada a

um contexto ambiental específico.

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Em conformidade com Rosenfield, é a capacidade de criar sentidos inéditos

ou novos – rearranjando os estímulos em novos contextos – que é tão característica

da linguagem, em particular, e da função cerebral em geral.

No que se refere às emoções, destacamos no texto deste autor, duas

afirmações: uma, que as emoções, na verdade, são os organizadores poderosos

dos pensamentos e ações; outra, igualmente importante, que

[...] as emoções são essenciais para criar uma memória, porque a organizam, estabelecendo sua importância numa seqüência de eventos, exatamente como o sentido do tempo e da ordem é essencial para que uma memória seja considerada uma memória, e não um pensamento ou uma visão num instante particular, não relacionado com acontecimentos passados. (ROSENFIELD, 1994, p. 71).

Suas afirmações sobre o vínculo entre a memória e as emoções vão ao

encontro, segundo Rosenfield, tanto do pensamento de Hughlings-Jackson, quanto

do de Freud. Para Hughlings-Jackson, alguns pacientes “mudos”, em situações

emocionais intensas, podem vir a xingar, proferir palavras ou expressões

esquecidas. No tocante à teoria freudiana, tem-se que as lembranças, quando

desvinculadas do afeto, são irreconhecíveis, isto é, para recordar uma experiência

passada é necessária uma conexão com seu contexto emocional original.

Convém ressaltar que Rosenfield traz à tona um outro ponto importante a ser

considerado:

[...] As recordações analíticas são generalizações ou recategorizações de eventos passados, que derivam sua significação dos afetos a eles associados; são eventos que se tornam emocionalmente carregados e, com isso, são categorizados e “compreendidos”. De fato, para Freud, as recordações analíticas são significativas no contexto específico, no clima emocionalmente carregado da relação transferencial com o analista. (ROSENFIELD, 1994, p.77).

Essas passagens do texto de Rosenfield apontam para pontos que consideramos

relevantes para o entendimento da linguagem do analisando na relação

transferencial com o analista. É verdade que Freud afirmava que “os histéricos

sofrem de reminiscências”, isto é, de lembranças, mas cabe indagar: o que isso

significa?

Na verdade, trata-se de ideias que foram recalcadas por dois motivos

principais: o primeiro, por causar desprazer; e o segundo, por seu teor sexual.

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Ambos são responsáveis pela perturbação do pensamento pelo afeto. Um

analisando pode dizer que está, emocionalmente triste, pela ideia A e, no processo

analítico, descobrir que a tristeza é pela ideia B. Em conformidade com Freud, a

ideia A é um substituto da ideia B, isto é, A é símbolo de B. Nesse sentido,

concordamos com Rosenfield quando ele afirma que “as recordações analíticas são

recategorizações de eventos passados”. Podemos dizer que há um deslocamento

do afeto: o desinvestimento do quantum de afeto de A e seu reinvestimento em B.

Nessa perspectiva, as recordações analíticas são da ordem do desprazer.

Essas reflexões vão ao encontro de um caso clínico de uma paciente de

Freud, denominada por ele de Emma. Eis um resumo do caso: trata-se de uma

jovem que apresenta, como sintoma, uma compulsão de não entrar sozinha em loja.

Emma relata a Freud que, aos doze anos, quando entrava numa loja, observou que

os dois vendedores estavam rindo do seu vestido. Diante dessa cena, ela saiu dali

assustada. Para Freud, a recordação evocada não é capaz de explicar o sintoma.

Posteriormente, a paciente se lembrará de uma outra cena ocorrida aos seus 8 anos

de idade. Emma tinha ido à mercearia comprar guloseimas, e o vendedor passou-lhe

a mão sobre o vestido na região genital. Provavelmente, esse vendedor teria sorrido

durante o acontecimento. Ela se recrimina por ter voltado lá novamente, logo após o

ocorrido.

Figura 9: Esquema feito por Freud sobre o caso Emma.

Fonte: Edição eletrônica das Obras Completas de Freud (1969).

Freud então nos esclarece que o sorriso, dado pelos dois vendedores à jovem

adolescente, remeteu ao sorriso dado pelo outro vendedor durante a infância de

Emma. Portanto, é em sua adolescência que ela vai compreender que sofreu um

atentado sexual quando tinha oito anos de idade. Em outros termos, houve uma

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recategorização de um evento do passado, o que motivou, como sintoma, sua

compulsão a não entrar sozinha em loja.

Em síntese, podemos afirmar que, no relato transferencial dos analisandos,

temos que considerar tanto a linguagem emocional, quanto a linguagem simbólica,

pois elas estão entrelaçadas. Mas, o que estamos denominando linguagem

emocional e linguagem simbólica?

2.2 - A linguagem emocional e a linguagem simbólica

O estudo da relação entre linguagem e emoção, bem como suas respectivas

consequências para a subjetividade não é uma questão de interesse apenas para o

nosso trabalho clínico, mas também para o de alguns filósofos, neurocientistas,

linguistas e analistas do discurso.

Nesse sentido, sublinhamos que, em conformidade com Mari & Mendes,

(...) É impossível pensar que alguém fale sem emoção ou que colocar a linguagem em funcionamento seja um ato desprovido de quaisquer elementos emocionais; é possível que muitas vezes ela possa não ser um fator tão decisivo para o entendimento. Algum traço que possa, todavia, contaminar parte da pureza racional (fictícia) certamente será deixada pela emoção nas interações verbais. (MARI; MENDES, 2007, p.153).

Ora, a observação desses autores vem ao encontro do que constatamos

clinicamente: não há, no discurso do analisando, uma linguagem verbal pura,

desconectada da emoção. No entanto, precisamos aprofundar a discussão sobre o

que estamos denominando com o termo emoção ou por linguagem emocional.

Emoção e afeto estão, na teoria da psicanálise freudiana, vinculados ao

conceito de pulsão. Cabe dizer que a pulsão é um dos conceitos mais complexos e

controvertidos no campo psicanalítico e, por isso, não há um consenso sobre ele.

Portanto, trata-se de um conceito em esclarecimento. Para Freud, a pulsão é um

conceito limite entre o somático e o psíquico. Assim, levando em consideração a

denominada primeira tópica, não existe pulsão no aparelho psíquico. O que temos,

no aparelho psíquico, são o afeto e o representante-representação como os

representantes psíquicos da pulsão. O conceito de pulsão tem o significado de força

que impulsiona, isto é, que coloca o aparelho psíquico em funcionamento. A

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finalidade da pulsão, ou melhor, de seus representantes psíquicos é a busca de

satisfação que pode ser tanto da ordem do prazer, quanto da ordem do desprazer.

O afeto é o quantum de energia que acompanha o representante-representação. Na

minha perspectiva, esse representante-representação diz respeito tanto à

representação de coisa, inconsciente - ao processo primário regido pelo princípio de

prazer - quanto à representação de palavra, pré-consciente - ao processo

secundário, regido pelo princípio de realidade. O que nos permite assinalar o vinculo

entre pulsão e linguagem, isto é, não há linguagem sem quantun de afeto. Vale

acrescentar que, na teoria freudiana, referente à primeira tópica, os destinos

pulsionais no psiquismo são:

a) a reversão a seu oposto;

b) o retorno em direção ao próprio eu do indivíduo;

c) o recalque;

d) a sublimação.

Para mim, o quantun de afeto se torna emoção na passagem do processo

primário inconsciente ao processo secundário pré-consciente, pois, em

conformidade com o próprio Freud, não há emoção inconsciente, ou seja, toda

emoção é da ordem da consciência. Portanto, seguindo nosso raciocínio acima

colocado, não há linguagem verbal com produção de sentido, com significação, sem

categorização na imagem, na palavra e desvinculado de afeto e emoção. É nessa

dimensão que podemos refletir sobre um desejo pulsional, uma semântica do

desejo.

No campo filosófico, a linguagem emocional e a linguagem simbólica foram

objetos de reflexão por parte de Ernst Cassirer. Em seu livro Ensaio sobre o homem:

introdução a uma filosofia da cultura humana, mais precisamente, no capítulo II –

Uma chave para a natureza do homem: o símbolo -, o autor coloca a seguinte

questão: seria possível utilizar do esquema geral de pesquisa biológica proposto

Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? (CASSIRER,

2005, p.47).

Ao fazer uma revisão crítica dos princípios da biologia, Uexküll afirma que o

pensamento biológico difere do pensamento físico e do químico. A biologia enquanto

ciência natural deve fazer uso de métodos empíricos, tais como a observação e a

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experimentação. Seu enfoque vitalista defende o princípio da autonomia da vida. A

vida é uma realidade suprema e dependente de si mesma. Não pode ser explicada

nos termos da física ou da química. A partir desse ponto de vista, Uexküll

desenvolve um novo esquema geral de pesquisa biológica. (CASSIRER, 2005,

p.45).

Baseado em princípios empíricos, Uexküll afirma que a realidade não é a

mesma para todos os seres vivos. Cada espécie biológica tem sua própria

experiência do mundo e não há como compartilhá-la com uma outra espécie. Em

conformidade com Cassirer, a partir desse pressuposto geral, Uexküll desenvolve

um esquema engenhoso e original do mundo biológico. (CASSIRER, 2005, p.47).

A proposta de Cassirer é tomar de empréstimo o esquema geral de pesquisa

biológica de Uexküll como modelo para uma descrição e caracterização do mundo

humano. Seu argumento é que, tal como os demais organismos, a espécie humana

também é regida pelas regras biológicas. Mas há algo que somente encontramos

na espécie humana: o sistema simbólico.

[...] O círculo funcional do homem não é só quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim, dizer, um novo método para adaptar-se ao ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. (CASSIRER, 2005, p. 47).

É através dessa dimensão simbólica que o ser humano interage com a

realidade. Embora a linguagem esteja atrelada à razão, há que se levar em

consideração outro ponto importante: a existência, tanto de uma linguagem

emocional, quanto de uma linguagem da imaginação poética.

Isso porque, lado a lado com a linguagem conceitual, existe uma linguagem emocional; lado a lado com a linguagem científica ou lógica, existe uma linguagem da imaginação poética. Primariamente, a linguagem não exprime pensamentos ou idéias, mas sentimentos e afetos. (CASSIRER, 2005, p. 49).

A originalidade do pensamento de Cassirer está em sua defesa de que é

inadequado definir o homem como animal racional. Contrário a uma explicação

abstrata sobre o homem, o autor vai propor uma outra explicação fundamentada

numa abordagem empírica da natureza humana. Nisso consiste sua tese forte: o

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homem é um animal simbólico. (CASSIRER, 2005, p. 49). Dentro dessa perspectiva,

o homem não vive somente num universo físico, mas também num universo

simbólico, no qual estão baseados a linguagem, o mito, a arte, a ciência e a religião.

Cassirer, em sua reflexão sobre a fala, vai afirmar que não se trata de um

fenômeno simples e uniforme, pois há nela diversas camadas e diferentes

elementos, tanto biológicos, quanto sistematicamente, que não pertencem ao

mesmo nível. O problema apresentado aponta para um ponto primordial para o

entendimento da linguagem do ser humano: a diferença entre linguagem emocional

e linguagem proposicional. (CASSIRER, 2005, p.55). No intuito de melhor clarificar

essa questão, o autor faz menção ao seguinte pensamento de Koehler: que a fala,

enquanto fala simbólica, está fora do alcance dos macacos antropoides, o que os

impede de um mínimo de desenvolvimento cultural. Nesse sentido, é preciso fazer

uma distinção entre sinais e símbolos. Os sinais são operadores e pertencem ao

mundo físico do ser. Os símbolos são designadores, têm um valor funcional e dizem

respeito ao mundo humano do significado. Em síntese, escreve Cassirer, podemos

dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência práticas, enquanto o

homem desenvolveu uma nova forma: uma imaginação e uma inteligência

simbólicas. (CASSIRER, 2005, p.60). Donde concluímos que, primariamente, a

linguagem exprime afetos e sentimentos, os quais o autor define como linguagem

emocional; e, secundariamente, uma linguagem conceitual, simbólica. Nesse

sentido, numa psicoterapia de inspiração analítica como a nossa, torna-se

importante levar em consideração essas duas dimensões da linguagem, tendo em

vista que elas estão entrelaçadas.

Ricoeur (1977) reconhece que Cassirer, deu uma importante contribuição,

para o entendimento da concepção da função simbólica, ao definir o simbólico como

o modo humano de objetivar e de dar sentido à realidade. Em outros termos, a

função simbólica é a mediadora geral, que possibilita à consciência construir nossos

universos de percepção e de discurso. No entanto, Ricoeur considera tal concepção

de simbólico como muito ampla.

Com o intuito de melhor esclarecer a questão sobre o simbólico, Ricoeur, por

sua vez, propõe diferenciar signo e símbolo. No signo, a função significante é válida

para outra coisa. Há no signo linguístico o estrutural e o intencional. Desse modo,

palavras diferentes podem ter significações idênticas. No entanto, essas

significações podem designar qualquer coisa.

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“Ingressemos um pouco mais na análise semântica do signo e do símbolo. Em todo signo um veículo é portador da função significante que faz com que ele seja válido para outra coisa. Contudo, não direi que interpreto o signo sensível quando compreendo o que ele diz. A interpretação se refere a uma estrutura intencional de segundo grau que supõe que um primeiro sentido seja constituído onde algo é visado em primeiro lugar, mas onde esse algo remete a outra coisa visada apenas por ele”. (RICOEUR, 1977, p. 21).

No símbolo, há também um duplo sentido ou múltiplo sentido, mas vinculado

ao trabalho de interpretação, tal como ocorre em relação ao relato do sonho numa

psicanálise de estilo freudiano.

[...] “Direi que há símbolo onde a expressão lingüística se prestar, por seu duplo sentido ou por seus múltiplos sentidos, a um trabalho de interpretação. O que esse trabalho suscita é uma estrutura intencional que não consiste na relação do sentido com a coisa, mas numa arquitetura do sentido, numa relação do sentido com o sentido, do sentido segundo com o sentido primeiro, que essa relação seja ou não de analogia, que o sentido primeiro dissimule ou revele o sentido segundo. É essa textura que torna possível a interpretação, embora só o movimento efetivo da interpretação a torne manifesta”. (RICOEUR, 1977, p. 26).

No entanto, qual seria a relação entre linguagem, símbolo e interpretação em

Psicanálise?

2.3 - Linguagem, símbolo e interpretação em psican álise

Em seu livro, Da interpretação: ensaio sobre Freud, Paul Ricoeur (1977)

afirmava que, na atualidade, as pesquisas filosóficas estão voltadas para o problema

da linguagem.

Parece-me que há um domínio sobre o qual se entrelaçam, hoje em dia, todas as pesquisas filosóficas: o da linguagem. É aí que se cruzam as investigações de Wittgenstein, a filosofia lingüística dos ingleses, a fenomenologia oriunda de Husserl, as pesquisas de Heidegger, os trabalhos da escola bultmanniana e das outras escolas de exegese neotestamentária, os trabalhos de história comparada das religiões e de antropologia versando sobre o mito, o rito e a crença, enfim, a psicanálise. (RICOEUR, 1977, p. 15).

Ricoeur reconhece que a obra de Freud produz um outro conhecimento,

tanto sobre o psiquismo humano, quanto em relação à cultura. Há, na teoria

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freudiana, uma articulação entre sonho, neurose, cultura que inscreve a Psicanálise

no debate contemporâneo sobre a linguagem.

O que a Traumdeutung propunha, desde 1900, era que o sonho é a mitologia privada daquele que dorme, que o mito é o sonho desperto dos povos, que o Édipo de Sófocles e o Hamlet de Shakespeare dependem da mesma interpretação que o sonho. (RICOEUR, 1977, p.16).

Mas o que isso significa? Em conformidade com Ricoeur, na teoria de

Freud sobre sonho, há uma busca pela articulação do desejo e da linguagem. É o

texto do relato do sonho “que o analista quer substituir por um outro que seria como

a palavra primitiva do desejo; assim, é de um sentido a outro sentido que se move a

análise; não é o desejo enquanto tal que se encontra situado no centro da análise,

mas sua linguagem.” (RICOEUR, 1977, p.16).

Como foi assinalado, não devemos pensar que se trata de uma interpretação

do sonho, pois, numa psicanálise de inspiração freudiana, o que se interpreta, ou

seja, o que se busca é a significação do sonho relatado. Outro ponto importante é o

que Ricoeur designa por semântica do desejo: os destinos das pulsões atrelados ao

destino do sentido. O modelo de interpretação dessa semântica do desejo é a

Traumdeutung, a interpretação dos sonhos. Nesse modelo, a linguagem é distorcida:

“quer dizer outra coisa do que aquilo que diz, tem duplo sentido, é equívoca.” O

autor vai designar como símbolo a “expressão lingüística de duplo sentido que

requer uma interpretação”. Com efeito, sua proposta é “limitar um pelo outro o

campo símbolo e o da interpretação”, isto é,

a interpretação é um trabalho de compreensão visando decifrar os símbolos. A discussão critica versará sobre o direito de procurar o critério semântico do símbolo na estrutura intencional do duplo sentido, e sobre o direito de conservar essa estrutura como o objeto privilegiado da interpretação. (RICOEUR, 1977, p.19).

Nisso consiste sua afirmação: “a interpretação é a inteligência do duplo

sentido.” O que significa dizer que, na dimensão da linguagem, o lugar da

psicanálise está vinculado aos diversos modos de interpretação dos símbolos, isto é,

do duplo sentido.

No entanto, no intuito de entendermos o que seja uma interpretação dos

símbolos, ou conforme pensamos a significação dos símbolos, vale perguntar qual o

conceito de símbolo na teoria e na clínica de Freud? Mas por que dar tanta

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importância ao conceito de símbolo, já que não há um consenso sobre sua definição

em Psicanálise?

Ora, não podemos nos esquecer de que, por muitas vezes, Freud

denominou o sintoma como um símbolo, isto é, a expressão simbólica do desejo

inconsciente. Nesse sentido, Arrivé (2001) afirma que são três as concepções de

símbolo utilizadas por Freud:

a) símbolo mnêmico como inscrição corporal, como sintoma:

tosse, tiques histéricos, afonia, astasia (dificuldade de ficar em pé),

abasia (impossibilidade de andar) dentre outros. O que está em jogo,

na histeria, é a conversão corporal como um símbolo mnêmico;

b) símbolo onírico como uma unidade de duas faces:

uma face manifesta denominada, também, por símbolo; outra

designada como o conteúdo. Esse tipo de símbolo é comparado por

Freud à escrita ideográfica dos chineses ou aos hieróglifos egípcios;

c) símbolo como processo de simbolização:

como no caso do pequeno Hans em que o medo pelo cavalo está

substituindo o medo pelo pai ou, também, o cavalo ser o substituto

simbólico tanto da mãe, quanto do pai.

É nesse sentido, que entendemos a afirmação de Ricoeur de que “a

interpretação é um trabalho de compreensão visando decifrar os símbolos” e que

eles estão presentes nos processos psíquicos inconscientes tais como os sonhos e

os sintomas. Cabe frisar que o analista não tem um acesso direto ao sonho ou ao

sintoma, mas ao relato do sonho e do sintoma feito pelos analisandos.

Outro ponto que nos chama atenção na colocação acima feita por Ricouer,

diz respeito à questão sobre “o critério semântico do símbolo na estrutura intencional

do duplo sentido, e sobre o direito de conservar essa estrutura como o objeto

privilegiado da interpretação.” As observações feitas pelo autor vêm ao encontro de

nossas preocupações não só sobre o símbolo, mas também sobre o sentido e a

intencionalidade na linguagem transferencial do analisando. Daí nosso interesse

também em refletir sobre a linguagem e a intencionalidade.

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2.4 - Linguagem e intencionalidade

Etimologicamente, intencionalidade vem do latim Intentionalitas e implica a

referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele. Abbagnano (1999)

coloca que esta noção estava ligada à atividade prática, donde o significado

intenção.

No dicionário, para o termo intenção (do latim intentione), Ferreira (1986)

apresenta as seguintes acepções para o termo:

a) ato de tender, intento, tenção;

b) vontade, desejo, pensamento;

c) propósito, plano, deliberação.

Em seu texto Acciones e intenciones, Mosterín demonstra a importante

distinção entre os vocábulos intenção e intento. A intenção consiste no propor; em

tender a vontade como um arco em uma certa direção. O intento implica a intenção,

mas requer além: o disparo do arco, a execução do designo. (ANSCOMBE, 1991,

p.14).

Levando em consideração a etimologia da palavra intenção, parece permitido

afirmar que intenção é o ato de tender, dirigir a vontade, o desejo, o pensamento

para um objeto.

Segundo Abbagnano (1999), o neoplatonismo árabe estendeu o sentido de

intencionalidade para designar a relação entre o conhecimento e seu objeto,

chamando os conceitos de intenções. Ele afirma que, para Avicena, a diferença

entre a lógica e as ciências reais seria o seguinte: as ciências reais têm, por objeto

as primeiras intenções, isto é, conceitos que se referem às coisas reais. A lógica

tem, como objeto, as segundas intenções, ou seja, conceitos que se referem a

outros conceitos.

Ainda de acordo com Abbagnano, temos que:

a) Na escolástica medieval, a intencionalidade é pensada como referência

ao objeto, em outros termos, como referência do signo ao seu

designato;

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b) No século XIX, Brentano, em Psichologie von empirischen Standpunkt,

1874 retoma o conceito de intencionalidade, enquanto referência ao

objeto, como característica dos fenômenos psíquicos. Desse modo,

os fenômenos psíquicos podem ser classificados, segundo as

características de sua intencionalidade, em:

- representação : o objeto está simplesmente presente;

- juízo : o objeto é afirmado ou negado;

- sentimento : o objeto é amado ou odiado.

Como podemos observar, nos três casos, há ocorrência de atos intencionais,

que se referem a um objeto imanente.

Embora, inicialmente, Brentano considerasse que o objeto da

intencionalidade pudesse ser tanto real como irreal; posteriormente, em

Klassification der psychischen Phänomene, 1911, ele irá sublinhar que o objeto da

intencionalidade é sempre real e que a referência a um objeto irreal é indireta,

ocorrendo através de um sujeito que afirme ou negue o objeto. (ABAGNANO, 1999,

p. 577).

Husserl, influenciado pela noção de intencionalidade de Brentano, porpõe não

mais como fenômeno psíquico, e sim como a definição da própria relação entre o

sujeito e o objeto da consciência em geral. Mais tarde, Husserl irá falar de

intencionalidade atuante, significando que a vivência não se refere só ao objeto, mas

também a si mesma e é por isso ciência de si. (ABAGNANO, 1999, p. 577).

Nossas reflexões, feitas a partir dos textos de Fissete (1992), Pacherie (1993)

e Simons (1992) nos possibilitam tecer alguns esclarecimentos sobre alguns

aspectos que consideramos fundamentais para lidar, na atualidade, com a

complexidade e a polêmica em torno do debate sobre a intencionalidade.

Em seu texto - L’intentionalité: La décennie décisive, 1992 - Peter Simons

escreve que, enquanto, na filosofia do espírito, a questão central é discutir a relação

entre o pensamento e seus objetos; Brentano, em sua Psychologie von empirischen

standpunkt de 1874, pretende refletir sobre a diferença entre fenômenos mentais e

fenômenos físicos. Baseando-se no pensamento dos filósofos escolásticos da Idade

Média, Brentano sustenta a hipótese de que a característica de cada fenômeno

mental é a inexistência intencional de um objeto. É preciso salientar, no entanto,

que, por inexistência, não se deve entender não-existência, mas, existência-dentro.

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Em certo sentido, é lícito afirmar que, embora, num primeiro momento de seu

pensamento, Brentano admitisse duas possibilidades para o objeto - de ser ou não

real -, depois definirá o objeto da intencionalidade como “real”.

Sublinhamos que Husserl acolhe esse conceito de intencionalidade, isto é,

enquanto direcionalidade dos fenômenos mentais aos objetos - tal como concebido

por Brentano - porém, não numa dimensão fenomenal, mas noemática. Segundo

Fissete, a diferença entre essas abordagens está no fato de que, para Brentano, é o

“objeto” que dá ao ato a direcionalidade; e, para Husserl, é o “noema”.

Em seu artigo, Psychologie ordinaire et intentionnalité, Pacherie (1993) coloca

a seguinte questão: a intencionalidade é susceptível de um tratamento científico?

Para a autora, a psicologia ordinária postula a existência de estados mentais

intencionais, baseando-se na noção de intencionalidade como uma relação a um

objeto, tal como definida pelos escolásticos e retomada por Brentano. Contudo, “a

primeira dificuldade é saber qual estatuto conferir à este objeto.” (PACHERIE,1993,

p.7, tradução nossa).4 Pois, noções como inexistência intencional, orientação para

um objeto, objetivo imanente, ou, se a relação intencional é intra-psíquica, se o

objeto visado é uma realidade mental ou extra-mental mostram a ambiguidade do

estatuto do objeto, tal como definido, tanto pelos escolásticos, quanto por Brentano.

Conforme destaca Pacherie, a estrutura binária da intencionalidade da teoria

de Brentano não é mais preservada na contemporaneidade. Ela nos esclarece que

Husserl, ao introduzir um terceiro termo, o noema, operou uma mediação entre o

sujeito e o objeto. Em seu Dicionário de filosofia, Abbagnano define noema como o

objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado: o

percebido , o recordado , o imaginado . Portanto, o noema é distinto da coisa ou do

objeto próprio. Assim, em nossa atualidade, escreve Pacherie, a questão debatida

está vinculada às relações entre intencionalidade e significação linguageira.

(PACHERIE, 1993, P.15).

Adotando uma outra perspectiva, Fisette, em seu texto de 1992, - Le contenu

intentionnel et son contexte - vai também refletir sobre a questão da

intencionalidade. Ele argumenta que a fenomenologia de Husserl é a tentativa mais

radical para pensar a intencionalidade. Desse modo, o autor propõe discutir dois

tipos de teorias da intencionalidade. De acordo com ele, os dois principais motivos

4 Minha versão para: la premiére difficulté est de savoir quel statut confere à cet objet.

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que levaram Husserl a fazer a distinção entre noema e objeto foram, por um lado,

seu anti-psicologismo; e, por outro, as teorias que tiveram a influência de Brentano.

No entanto, a ideia de intencionalidade, enquanto direcionalidade dos fenômenos

psíquicos, é tomada de empréstimo da teoria de Brentano que afirma que é o objeto

que dá ao ato sua direção. Trata-se de um objeto intencional que inexiste

intencionalmente no ato. Em outros termos, o conteúdo de um ato, o sentido são

reduzidos a uma simples representação mental. A crítica que é feita a esta

concepção de intencionalidade é a seguinte: fazendo do conteúdo intencional um

objeto de representação, torna-se, às vezes, “impossível compreender a distinção

entre um objeto real e um objeto de pensamento (um objeto intencional), e da

objetividade de um conteúdo de pensamento.” (FISETTE, 1992, p.40). Nesse

sentido, Husserl retém a ideia de direcionalidade dos fenômenos mentais e introduz,

no intervalo da relação ato-objeto, um terceiro: o noema.

Assim, a análise desses textos nos possibilita afirmar que os impasses e

debates sobre a intencionalidade, na atualidade, giram em torno de duas vertentes:

a da dimensão do objeto, baseada no pensamento de Brentano e a da dimensão do

noema fundamentada no pensamento de Husserl.

Entretanto, para o entendimento da relação entre a intencionalidade e a

linguagem, consideramos pertinente refletirmos, primeiramente, a respeito do

princípio de intencionalidade.

Para o semioticista C. Bremond, toda sequência narrativa é ordenada pelo

princípio de intencionalidade, que é composto por:

a) um estado inicial de virtualidade da ação, na qual nasce uma falta, a qual

abre a possibilidade de um processo como busca de complemento da falta;

b) Um estado de atualização da busca que consiste em tentar obter o objeto

que complemente a falta;

c) Um estado final de realização do processo, que se fecha pela obtenção

(sucesso) ou não (fracasso) do objeto da falta. (BREMOND apud

CHARAUDEAU, 1992, p.729, tradução nossa). 5

5 “(a) Un état initial de virtualité d’action, dans lequel naît un Manque , lequel ouvre la possibilité d’un processus comme Quête de comblement de Manque . (b) Un état d’atualisacion de la Quête qui consiste à essayer d’obtenir l’objet qui comblera le Manque .

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Portanto, na perspectiva semiótica de Bremond, o princípio de

intencionalidade se compõe de uma falta e na busca de um objeto que a

complemente. Mas de que objeto se trata? Provavelmente, de um objeto real, haja

vista que o autor coloca, como finalidade do processo, o sucesso como obtenção

real do objeto e o fracasso como a não obtenção. Nesse sentido, considero que

esse princípio de intencionalidade estaria mais próximo do conceito de

intencionalidade, tal como proposto por Brentano, segundo o qual é o objeto que dá

direcionalidade ao ato. Contudo, está mais distante da abordagem de

intencionalidade de Husserl, para quem o que dá direcionalidade ao ato é o noema.

Sobre a relação entre linguagem e intencionalidade, Searle escreve que seu

objetivo é desenvolver uma teoria da intencionalidade. No entanto, não se trata de

uma teoria geral, pois tópicos como as emoções não são discutidos. A

intencionalidade faz parte de uma série de estudos correlatos sobre a mente e a

linguagem, tais como Speech Acts e Expression and Meaning. Para ele, o

pressuposto básico subjacente à sua abordagem dos problemas da linguagem é que

a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente. Outro ponto importante é a

afirmação de que a intencionalidade é intrínseca aos estados mentais.

Um agente usa uma sentença para fazer um enunciado ou fazer uma pergunta, mas não usa desse modo suas crenças e desejos – ele simplesmente os tem. (...) Tudo isso é compatível com o fato de ser a linguagem essencialmente um fenômeno social e serem as formas de intencionalidade a ela subjacentes formas sociais. (SEARLE, 2002, p.VIII).

Para avaliar o vínculo entre intencionalidade e linguagem, consideramos que

é preciso que se leve em conta o conceito de Background, tal como estabelecido por

Searle. Background são as capacidades, aptidões e know-how que possibilitam a

atuação de nossos estados mentais. (SEARLE, 1997, p.249). Essa hipótese,

defendida por Searle, antes restrita ao sentido literal, também é válida tanto para os

significados intencionais do falante, quanto para qualquer outra forma de

intencionalidade, seja ela linguística ou não linguística. Diferentemente dos

fenômenos intencionais, o Background não é intencional. As condições de satisfação

de um estado intencional estão atreladas ao Background que lhes é adequado. No (c) Un état final de la réalisation du processus, qui se clôt par l’obtention (réusssite ) ou non (échec ) de l’objet de la Quête ."

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entanto, os estados intencionais têm um funcionamento em Rede, pois, não há

crença ou desejo desvinculados de outras crenças e desejos. Por não serem auto-

interpretativos ou auto-aplicáveis, os elementos da Rede são dependentes de um

Background. (SEARLE, 1997, p.250). A hipótese forte do autor é a seguinte: o

Background é um conjunto de capacidades; e a Rede é inerente aos estados

intencionais. Entretanto, ele afirma que não faz sentido a distinção entre Rede e

Background, pois a Rede é aquela parte do Background que descrevemos em

termos de sua capacidade para causar intencionalidade consciente. (SEARLE,

1997, p.268). Embora o Background seja a condição de possibilidade dos estados

intencionais, ele só se manifesta na presença de conteúdos intencionais. O

Background é uma característica inerente do nosso modo de representar a realidade

e não de uma realidade representada. (SEARLE, 1997, p.268).

Assim, a interpretação de uma sentença é feita com base em um Background

de capacidades humanas. Embora possam ter o mesmo significado literal, o que

diferencia o modo de compreensão de sentenças, por exemplo, com o verbo cortar:

corte a unha, corte o salário, corte a conta bancária, corte a luz, corte o pão, são

condições de verdade diferentes vinculadas a diferentes pressuposições de

Background.

Vale perguntar - qual o interesse dessa reflexão sobre a interpretação de uma

sentença e o background, para uma abordagem clínica do ato de fala do

analisando?

Calligaris, durante uma entrevista com Searle - publicada no Jornal Folha de

São Paulo, em 05 julho de 1998 - afirma que situaria o inconsciente no Background

– pano de fundo. “Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que

são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na

consciência quando o ato é produzido.” Para Searle, o Background não é um

sistema de crenças. “É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de

posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no

trato com o mundo.” O autor se diz surpreso, pois sempre entendeu que o

inconsciente da teoria freudiana fosse intencionalista, isto é, concernente a

crenças e desejos. Em conformidade com Calligaris, a intencionalidade é

sempre consciente. Portanto, “a aparência de uma intencionalidade inconsciente é

produzida a posteriori, pela interpretação.” Na perspectiva de Searle, muitas vezes,

as patologias não estão vinculadas às crenças e aos desejos, mas à

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capacidade de Background. Daí, segundo Calligaris, a importância que tem o

Background para “uma terapia pela palavra”.

Ora, embora seja interessante esse breve diálogo entre Calligaris e Searle

sobre a aproximação entre Background e inconsciente, temos algumas ressalvas a

fazer:

a) Primeiro, o conceito de inconsciente da teoria de Searle é algo puramente

biológico, o que não ocorre na teoria freudiana, onde temos que o inconsciente é

um sistema que faz parte do aparelho psíquico;

b) Segundo, na visão de Searle, o desejo e a crença são um meta-predicados e

são inerentes a uma intencionalidade consciente. Para Freud, o desejo pulsional

é o que coloca o aparelho psíquico em funcionamento, ou seja, não existe pulsão

no aparelho psíquico, mas sim representantes psíquicos da pulsão: o quantun de

afeto e o representante representação que são inconscientes.

Restringindo-nos a esses dois aspectos, podemos afirmar que o Background

faz parte do inconsciente, mas não corresponde ao sistema inconsciente freudiano.

Assim, podemos dizer que o desejo pulsional inconsciente tem, como intenção - a

satisfação, seja ela regida pela pulsão de vida ou pulsão de morte, isto é, da ordem

do prazer ou do gozo. Mas a sua intencionalidade - e aí estamos de acordo com

Calligaris - é produzida “só-depois”, na interação dialógica entre analisando e

analista.

Pensamos que, na escuta daquilo que é relatado pelos analisandos, torna-se

importante levar em consideração não somente o sentido ou duplo sentido, mas

também o Background e a intencionalidade - crenças e desejos. O próprio Freud

salientava que, ao invés de afirmar que o sonho é uma realização de desejo, seria

mais interessante dizer que o sonho tem uma intenção e um sentido . Em outros

termos, o sonho, em si, é uma realização de desejo, no entanto, em seu relato,

temos que buscar quais são os seus sentidos e sua intenção. Nessa perspectiva,

estamos propondo não uma interpretação – Deutung - das formações inconscientes

ou a busca de um sentido, mas a procura da significação - Bedeutung - quer seja do

ato falho, dos chistes, dos esquecimentos, como também dos relatos dos sonhos ou

dos sintomas.

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No entanto, o enfoque de nossa pesquisa não se limita a entender como se

faz o trabalho clínico de significação da linguagem transferencial do analisando, mas

busca também explicar quais são os efeitos dela decorrentes sobre sua posição

subjetiva. E, para isso, consideramos pertinente uma reflexão sobre a questão do

sujeito e da subjetividade.

3. QUESTÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE

Nos campos filosófico, psicanalítico, e linguístico e em outras áreas do

conhecimento são muitas as definições de eu ou de sujeito, não havendo, de modo

geral, um consenso. Nesse sentido, não há uma teoria do sujeito ou do eu, mas uma

questão sobre o sujeito ou sobre o eu.

Não é nosso objetivo traçar um histórico do conceito de eu ou de sujeito na

tradição filosófica, mas apenas indicar sua origem na modernidade. Esse critério nos

possibilitará indagar sobre sua influência, os pontos de convergência e de

divergência no confronto com as concepções posteriores, tanto dentro, como fora,

do campo filosófico.

3.1 - A Metafísica da subjetividade

A discussão sobre a metafísica da subjetividade, isto é, a concepção de

“sujeito” ou “eu”, na modernidade, tem seu início no século XVII, com a tese forte de

René Descartes (1983): “penso, logo sou”.

À questão “o que sou eu?” Descartes responde: “sou uma coisa que pensa”

ou melhor, “eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu

a enuncio ou que a concebo em meu espírito”. (DESCARTES, 1983, p.92-94). Há,

na tese cartesiana, um ponto importante que cabe destacar: “eu sou, eu existo, é

necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncio.” Mas a pergunta que

colocamos é: enuncia à quem? A si mesmo e não a um outro. Sua tese não inclui a

alteridade. Trata-se de um diálogo consigo mesmo, portanto, solipsista. Em resumo,

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na metafísica da subjetividade, tal como concebida por Descartes, “o eu é

consciência, relação consigo mesmo, subjetividade”. (ABBAGNANO, 1999, p. 388).

Ora, para Tugendhat (1993) é pertinente perguntar se “existe algo que

merece ser chamado “o EU”? Nesse sentido, o autor nos esclarece que “A pessoa

que identifico dizendo “eu” outros identificam dizendo “tu” ou “ele”. [...] A palavra

“eu”, por conseguinte, não designa um objeto em mim, um eu, mas, simplesmente,

identifica-me, se bem que somente quando uso essa palavra”. (TUGENDHAT, 1993,

p.10). Assim, para o autor, há um mal entendido na filosofia, que utiliza a expressão

“eu” para designar algo, sendo que, na verdade, trata-se de uma expressão

indexical.

Nossa hipótese é que essa concepção metafísica do sujeito racional, tal como

proposta por Descartes, tem, ainda na modernidade tardia, influenciado o modo de

pensar de grande parte da filosofia da linguagem e da linguística. Assim, o sujeito da

linguagem é sempre da ordem da consciência. Temos aqui um problema a ser

enfrentado em nossa pesquisa, pois, para a psicanálise, é preciso que se leve em

consideração o conceito de inconsciente. Nesse sentido, tem-se, por um lado, na

abordagem filosófica e na abordagem linguística, um eu racional e consciente; e, por

outro, na concepção da psicanálise freudiana, em sua segunda tópica do aparelho

psíquico, um eu que é tanto consciente, quanto inconsciente.

No entanto, cabe dizer que, na questão do sujeito da linguagem, está

implicada também a questão da verdade, isto é, nos termos de Foucault, a questão

do sujeito do conhecimento e do conhecimento do sujeito por si mesmo.

3.2 - Foucault – O sujeito e a verdade

Mas, como se dá esta relação entre o sujeito e a verdade? É a ascese, nos

diz Foucault (2006), que estabelece o vínculo entre o sujeito e a verdade, isto é, a

ascese “constitui o sujeito como sujeito de veridicção.” Trata-se de uma problemática

técnica e ética de discursos verdadeiros: da “comunicação entre quem os detém e

quem deve recebê-los e deles fazer um equipamento para a vida.” (FOUCAULT,

2006, p.449). Nesta interação, temos de um lado, o mestre a quem é dada a

responsabilidade, a atitude ética e o procedimento técnico do franco-falar, da

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parrhesía. De outro, temos o discípulo a quem cabe, como dever moral e

procedimento técnico, o silêncio organizado e atencioso, a escuta que, em conjunto

com uma técnica e uma ética da leitura e da escrita, são considerados como

exercícios de subjetivação do discurso verdadeiro. Esta forma de interação e

expressão verdadeira é denominada de discurso do mestre. Entretanto, esse

discurso de mestria - o franco-falar, a parrhesía tem dois grandes oponentes: um

moral, a lisonja; e outro técnico, a retórica. Foucault nos esclarece que há uma

parceria entre retórica e lisonja: “pois o fundo moral da retórica é sempre lisonja, e o

instrumento privilegiado da lisonja é, bem entendido, a técnica, e eventualmente as

astúcias da retórica.” (FOUCAULT, 2006, p. 451). A lisonja está atrelada ao ganho

de poder que o inferior pode alcançar junto ao superior, isto é, favores,

benevolência, etc.. Para isso, o inferior utiliza-se do logos, ou melhor, da fala para

conseguir o que deseja de seu superior. A retórica é uma técnica que visa a

persuadir o interlocutor, convencê-lo tanto de uma verdade, quanto de uma mentira.

No entanto, como diz Foucault, o que define a retórica como arte, segundo o

pensamento de Cícero e de Quintiliano, não são as características da própria língua,

mas o assunto tratado.

[...] É este o jogo, o do assunto tratado, que definirá para a retórica o modo como deve ser organizado o discurso, como deve ser feito o preâmbulo, como deve ser feita a narratio (a narração dos acontecimentos), como se deve discutir os argumentos pró e contra. É o assunto, o referente do discurso por inteiro que deve constituir, e de onde devem derivar, as regras retórica deste discurso. (FOUCAULT, 2006, p. 463).

Portanto, nem a lisonja, nem a retórica estão comprometidas com a verdade,

tal como ocorre no franco-falar, na parrhesía.

Outra diferença entre a retórica e o franco-falar (a parrhesía) está no seu agir

sobre o outro. A função da retórica é agir sobre o outro em benefício de quem fala.

Segundo Foucault, em Filodemo, a parrhesía, o franco-falar, é também uma forma

de ação sobre o outro, mas governada pela generosidade e visa ao benefício de

quem escuta, o que abre a possibilidade de constituição de um sujeito sábio,

virtuoso. Há aqui uma transferência do franco-falar, da parrhesía do mestre à

parrhesía dos alunos, tal como proposta pela filosofia de Epicuro. A partir de então,

o falar livremente dos alunos terá, como consequência, o desenvolvimento da

benevolência e da amizade entre eles.

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Desse modo, Foucault nos esclarece que a lisonja e a retórica não têm um

compromisso com a verdade. A finalidade de ambas é beneficiar aquele que fala. No

entanto, o acesso à verdade torna-se possível somente através do franco-falar do

discurso do mestre que, generosamente, beneficia a quem escuta.

Ora, a Psicanálise tem também um compromisso com a verdade. Mas de qual

verdade se trata? Trata-se de uma verdade da ordem da subjetividade, uma verdade

do desejo. No entanto, o discurso utilizado para esse fim não é o discurso filosófico

do mestre, mas o discurso clínico do analista. No discurso do mestre, o acesso

subjetivo à verdade se dá através do franco-falar do mestre e da escuta do aluno.

No caso do discurso clínico do analista, é o inverso: o acesso à verdade do desejo

se constrói através do franco-falar do analisando e da escuta do analista. O que há,

em comum, entre o discurso do mestre e o discurso clínico do analista é saber que a

linguagem pode ser usada também para convencer, enganar, mentir, trapacear, tal

como podemos constatar através do uso da lisonja e da retórica. Entretanto, cabe

observar que, diferentemente do discurso do mestre, no discurso clínico do analista,

a verdade pode vir à tona através do equívoco, do erro, da contradição e até mesmo

da mentira. Portanto, na questão do sujeito e da verdade, está implicada a noção de

cuidado de si mesmo.

Em seu seminário/curso, pronunciado no ano de 1982, Foucault se propôs a

refletir sobre a questão entre o sujeito e a verdade, tendo como ponto de partida a

noção de cuidado de si mesmo.6 Segundo o autor, (...) Pode-se objetar que, para

estudar as relações entre sujeito e verdade, é sem dúvida um tanto paradoxal e

passavelmente sofisticado, escolher a noção de epiméleia heatoû para a qual a

historiografia da filosofia, até presente, não concedeu maior importância.

(FOUCAULT, 2006, p.4) Desse modo, epiméleia heautoû é o cuidado de si mesmo,

o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc. No entanto, ele sublinha

que, de modo geral, no pensamento ocidental, mais precisamente na história da

filosofia, a questão das relações entre sujeito e verdade, isto é, do sujeito do

conhecimento ou do conhecimento do sujeito por ele mesmo tem sua origem num

preceito outro: a prescrição délfica do gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo).

Embora presente no culto de Apolo, o preceito délfico conhece-te a ti mesmo surge

no pensamento filosófico através de Sócrates. A tese forte defendida por Foucault é

6 Por seminário/curso denominam-se as aulas do Prof. Michel Foucault pronunciadas no Collège de France, em 1982 e editadas por Frédéric Gros com o título de A hermenêutica do sujeito.

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que o conhece-se a ti mesmo (gnôthi seautón) está subordinado ao princípio cuida

de ti mesmo (epiméleia heautoû).

De forma bem sintética o cuidar de si implica:

- uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo;

- estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento;

- ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos,

nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos.

Em outros termos, como afirma Foucault,

Enfim, com a noção de epiméleia hautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. (FOUCAULT, 2006, p. 15).

Foucault nos esclarece que nos termos de Epicuro, esse cuidar de si remete

ao ocupar-se com a saúde da alma, bem próximo de cuidados médicos, isto é,

therapéuin, num de seus significados: terapia da alma. Nesse sentido, Fílon

denomina de terapeutas aqueles que cuidam da alma - sua prática é therapeutiké,

enquanto os médicos cuidam do corpo – sendo sua prática denominada de iatrike.

Esta diferenciação entre aqueles que cuidam da alma e aqueles que cuidam

do corpo vai ao encontro das reflexões de Laín Entralgo, mais precisamente, em seu

livro La curación por la palabra en la antigüedad clásica. De acordo com o autor - e

como início de uma longa discussão - há no canto XII de Eneida uma adjetivação

curiosa sobre a arte médica. Ao cuidar de Enéas, Iapix afirma que “prefere conhecer

as virtudes das ervas e os usos do curar e exercitar sem glória as artes mudas.

Desse modo, fiel a esta virgiliana caracterização de sua preferência, Iapix, sem

palabras, só com suas mãos e suas ervas, tenta em vão a cura de Enéas, até que

Vênus se move a prestar-lhe ajuda invisível e decisiva.” 7 (LAÍN ENTRALGO, 1987,

P. 7, tradução nossa).

7 prefirió conocer las virtudes de las hierbas, y los usos del curar, y ejercitar sin gloria las artes mudas. Desse modo, fiel a esta virgiliana caracterizacion de su preferência, Iapix, sin palabras, con solo sus manos y sus herbas, intenta en vano la curacion de Enéas, hasta que Vênus se mueve a prestarle ayuda invisible y decisiva. . .

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Embora percorra a filosofia grega, helenística, romana e, também, a

espiritualidade cristã, a noção de cuidado de si vai perder seu prestígio para o

conhece-te a ti mesmo. A razão para essa mudança se deve ao que Foucault

denomina de momento cartesiano que, filosoficamente, por um lado, requalifica o

conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón); e, por outro, desqualifica o cuidado de si

(epiméleia heautoû). Assim, na perspectiva cartesiana, o conhecimento de si é

tomado como uma forma de consciência.

Torna-se, portanto, necessário explicar a noção de espiritualidade, tal como

focalizada por Foucault.

A espiritualidade postula:

a) que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito;

b) a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque,

torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo,

para ter direito a [o] acesso à verdade;

c) a verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo

do sujeito;

d) não pode haver verdade sem conversão ou sem transformação do sujeito;

e) tal como ele é, o sujeito não é capaz de verdade.

f) A verdade é o que ilumina o sujeito;

g) A verdade é o que lhe dá tranqüilidade de alma.

Para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito. (FOUCAULT, 2006, p. 21).

Desse modo, em conformidade com Foucault, na Filosofia Antiga, mais

precisamente, para os pitagóricos, para Platão, para os estóicos, para os cínicos,

para os epicuristas e outros, a questão filosófica de como ter acesso à verdade

estava vinculada à questão da espiritualidade. No entanto, o mesmo não ocorre na

Filosofia Moderna, como se pode depreender da passagem seguinte:

Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que

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a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito. (FOUCAULT, 2006, p.24).

Embora não se proponha a desenvolver sua afirmação, Foucault vai pontuar

que esta espiritualidade ressurge em duas formas de saber de nossa modernidade

tardia: o Marxismo e a Psicanálise. Em relação à Psicanálise, ele coloca que a

questão das relações entre sujeito e verdade está presente no pensamento tanto de

Freud, quanto de Lacan. Mais precisamente em relação à epiméleia heautoû, o

cuidar de si, propriamente espiritual, Foucault nos esclarece que Lacan a faz

ressurgir na Psicanálise. “A questão do preço que o sujeito tem que pagar para dizer

o verdadeiro e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse,

de que pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio.” (FOUCAULT, 2006, p.41).

Nesse sentido, para Foucault, a Psicanálise de Freud e a de Lacan fazem ressurgir

a questão do sujeito e da verdade, via o cuidar de si, a epiméleia heautoû.

Em síntese, tanto o discurso filosófico do mestre, quanto o discurso clínico da

Psicanálise visam ao sujeito e à verdade. No entanto, podemos diferenciá-los da

seguinte forma: no discurso filosófico do mestre, a verdade está vinculada ao sujeito

do conhecimento; e, no discurso clínico da Psicanálise, a verdade está atrelada ao

conhecimento do sujeito por si mesmo.

No entanto, cabe perguntar no contexto filosófico e médico do cuidar de si, da

epiméleia heautoû, quais foram as abordagens e os tratamentos dados à histeria.

3.3 – A história da histeria: do corpo à linguagem

Para uma abordagem histórica da histeria utilizaremos do texto de P. Julien

(1996), presente no Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. Desse modo, vamos

traçar um breve histórico do diagnóstico e do tratamento da histeria - tanto pelo

discurso filosófico, quanto médico - e avaliar a contribuição dada por Freud à

teorização e ao método psicoterápico da histeria,

Na Grécia Antiga, a histeria era diagnosticada, de acordo com Hipócrates e

também Platão, como uma doença do útero, isto é, do mau posicionamento desse

órgão ou pela agitação causada por sua ociosidade. As mulheres acometidas dessa

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doença eram as solteiras e as viúvas. Os tratamentos indicados eram: voltar o útero

à sua posição original, fazer trabalhos manuais, manter relações sexuais ou ter

filhos.

Na Idade Média, a histeria era tida como uma possessão demoníaca. O

tratamento se restringia ao exorcismo e à condenação à fogueira.

A partir do Renascimento, organicistas como Jorden, Burton e Culen colocam

que a histeria é decorrente de um distúrbio nervoso do cérebro.

Mas foram o inglês Sydenham e o francês Pinel que deram o estatuto de

sintoma psíquico à histeria. Como afecção do espírito e não como doença do

cérebro, o tratamento indicado era o moral ou psíquico.

Os estudos da hipnose realizados, na Grã-Bretanha, por Braid e, na França,

por Mesmer e Charcot demonstraram a possibilidade de se tratar e induzir a histeria

através da hipnose. Charcot, com quem Freud foi estudar em Paris, no ano de 1885,

definiu a etiologia da histeria como hereditária e causada por um agente provocador

ocasional. O tratamento recomendado era a sugestão proibitiva via hipnose.

Com Breuer, Freud aprende que o sintoma somático histérico é causado por

um afeto ligado a lembranças inconscientes.

Vale dizer que, em relação ao método de tratamento clínico das neuroses,

Freud teve Charcot e Breuer como mestres.

O primeiro método de tratamento da histeria utilizado por Freud (1895),

conforme o texto Estudos sobre a Histeria, foi o da terapia catártica via hipnose,

descoberta por Breuer. Esse método possuía dois requisitos básicos: primeiro, que a

pessoa fosse hipnotizável; segundo, que, durante a hipnose, o campo de

consciência se tornasse mais amplo. Breuer e Freud consideravam o sintoma como

um substituto de processos psíquicos, que tinham seu acesso à consciência negado.

O objetivo desse método, na eliminação do sintoma, era levar a pessoa a se

recordar daquilo que lhe causou o trauma, isto é, das ideias e impulsos que foram

afastados da consciência e, então, comunicá-los ao médico. Tal método de

tratamento psicoterápico foi denominado pela paciente de Breuer, Ana O., como “a

cura pela fala”. O obstáculo encontrado, neste tipo de intervenção psicoterápica, foi

o de que o sintoma não tem uma causa única, mas que ele é sobredeterminado por

uma série de causas. O que ocorria, então, é que havia, posteriormente, um

deslocamento do sintoma. A diferença do método catártico de Breuer e Freud, para

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o método hipnótico de Charcot, é que a eficácia terapêutica independe da sugestão

proibitiva do médico.

A substituição do método catártico pelo psicanalítico tornou-se possível pela

descoberta de Freud, por um lado, de que a hipnose encobria a resistência, ou seja,

o desvelamento daquilo que, no psiquismo, seria responsável pelo processo de

recalque; por outro, de que as amnésias produzidas pelo recalque têm, como

função, evitar o desprazer. O objetivo do método psicanalítico seria, então, o de

superar as resistências, suprimir as amnésias, destruir os recalques, em outros

termos, tornar acessível à consciência o que estava inconsciente. Para a realização

desse trabalho, Freud aponta, como princípios básicos: por parte do analisando, a

associação livre; e, por parte do analista, a escuta flutuante. Em síntese: o

tratamento psicanalítico se propunha a possibilitar à pessoa o restabelecimento de

sua capacidade de trabalho e gozo.

A Psicanálise era indicada, nesta época, para o tratamento da histeria e da

neurose obsessiva e colocava, como pré-requisito, as seguintes condições ao

analisando: ser capaz de um estado psíquico normal, ser inteligente e ter um certo

nível ético.

Em relação aos métodos de tratamento psicoterápicos desenvolvidos por

Charcot, Breuer e Freud8, pode-se dizer que:

a) há no método catártico de Breuer uma renúncia à sugestão proibitiva do

método de Charcot;

b) na associação livre do método psicanalítico de Freud, há uma renúncia à

hipnose utilizada nos métodos propostos por Charcot e Breuer.

3.4 - Freud e a questão do sujeito no discurso da P sicanálise

A noção de sujeito, na teoria da psicanálise freudiana, aparece implícita e

indefinida. Vale dizer que Freud, raramente, emprega esse termo - sujeito - em seus

escritos e, quando o faz, é para se referir ao registro pulsional. Nesse sentido, nossa

intenção é colocar que a questão do sujeito, no discurso da psicanálise freudiana,

8 Este tema é objeto de uma reflexão, muito pertinente, feita por Renato Mezan (2002), em seu texto A medusa e o telescópio: Freud e o olhar.

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passa, necessariamente, pela reflexão crítica dos modelos de aparelho psíquico e

da linguagem, ambos ligados à ordem das representações: pulsional, de objeto, de

coisa e de palavra, em seus respectivos períodos - pré-psicanalítico, primeira e a

segunda tópicas.

No intuito de tornar um pouco mais clara essa hipótese, cabe definir,

inicialmente, os termos: Psicanálise, teoria ou metapsicologia e aparelho psíquico.

Assim, a Psicanálise é definida por Freud como sendo:

a) um procedimento de investigação dos processos psíquicos inconscientes;

b) um método psicoterápico;

c) uma teoria, denominada, também, metapsicologia.

O conceito de teoria tem muitos significados. Segundo Domingues (2000),

"teoria vem de Theoròs, sujeito que, na Grécia, via, contemplava, observava as

regras dos jogos. Portanto, na base da teoria, nós temos a visão". 9 Proveniente da

Filosofia Grega, esse termo pode ser entendido: por um lado, como razão discursiva,

fruto da atividade teorética; e, por outro, como intuição, essa forma privilegiada e

direta de conhecer um objeto qualquer, que independe da representação.

No campo científico atual, temos, por um lado, a ilusão de uma teoria ideal,

isto é, de uma correspondência entre os dados empíricos e os princípios

explicativos. Muito próximo, portanto, do critério de verdade, da Filosofia Clássica,

como adequação do intelecto e da coisa. Por outro lado, há uma outra tendência que

considera a teoria como uma construção intelectual que visa à descrição e à

explicação dos fenômenos.

Levando em consideração os pontos de vista da Filosofia Grega e da Ciência

atual, pode-se dizer que teoria é uma construção do espírito humano que tem como

função explicar os fenômenos. Vale sublinhar que uma teoria pode englobar vários

modelos. A propósito, o modelo, enquanto instrumento do conhecimento, não é uma

tradução do real, mas uma interpretação da teoria.

Em Psicanálise, fazer teoria ou metapsicologia significa explicar os processos

psíquicos em seus aspectos: tópico, dinâmico e econômico. 9 Conforme anotação de caderno, curso Epistemologia, FAFICH/UFMG, ministrado no primeiro

semestre de 2000, pelo professor Dr. Ivan Domingues.

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Quanto ao conceito de aparelho psíquico, pode-se dizer que ele corresponde

a todo processo psíquico desconhecido, logo inconsciente, que se passa entre o

cérebro e a consciência. Portanto, há na teoria psicanalítica vários modelos de

aparelho psíquico e da linguagem que nos remetem à questão do sujeito no

discurso.

Como sabemos, a tradição filosófica aponta que o estudo da mente e do

conhecimento estão fundamentados numa consciência de si reflexiva, o que faz do

sujeito cognoscente um sujeito da consciência. Podemos citar, como exemplos,

Aristóteles e Descartes. De acordo com Vaz, Aristóteles nos propõe a ideia de ser

humano como "animal possuidor do logos (palavra e significação), capaz de auto-

significar-se e de significar o mundo no logos." (VAZ, 2000, p.17). Quanto a

Descartes, é válido dizer que, para ele, a consciência é o que rege o psiquismo

humano.

A psicanálise, a partir do conceito de inconsciente elaborado por Freud,

aponta para uma divisão do psiquismo em dois sistemas: um consciente e outro

inconsciente, sendo que, para esse autor, o inconsciente é a essência da vida

psíquica e a consciência uma qualidade desta. Em outras palavras, o inconsciente

(Ics) é o conceito fundamental da psicanálise na primeira tópica. Sem ele, não

teríamos como explicar processos psíquicos que, independentemente da

consciência, são elaborados, tais como: os sintomas neuróticos, os sonhos, os atos

falhos, os esquecimentos, os chistes, algumas criações artísticas e intelectuais

denominadas insights (vislumbres).

A proposta de Freud é a de que o psiquismo é governado, não pela

consciência, mas pelo inconsciente. No entanto, só conhecemos o inconsciente

através do consciente. Desse modo, o conceito de inconsciente rompe com o

paradigma que reduzia o conhecimento sobre o psiquismo humano ao registro da

consciência. Segundo esse autor, o conceito de inconsciente, em Psicanálise, está

vinculado ao de recalque, que consiste em impedir que uma ideia, que represente

uma pulsão, torne-se consciente. Isso sem destruí-la ou suprimi-la. Embora, todo o

recalcado esteja inconsciente, ele é apenas uma parte do conteúdo do sistema

inconsciente. De acordo com Freud “O inconsciente tem um alcance mais amplo, o

recalcado é, portanto, uma parte do inconsciente". (FREUD,1981, p.2061).

Fazendo uma analogia com o pensamento kantiano, Freud sublinha que, da

mesma forma que Kant nos convidou a não confundir nossa percepção como

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idêntica ao objeto, a Psicanálise nos convida a não confundir a percepção da

consciência com os processos psíquicos inconscientes, objetos da mesma. Ele

sublinha que “tampouco o psíquico tal como o físico necessita ser em realidade tal

como o percebemos” (FREUD, 1981, p.2064). Isto nos possibilita dizer que Freud

não está propondo fazer um estudo sobre a teoria do conhecimento, isto é, da

relação sujeito – objeto visando à produção de um saber ligado a uma consciência

reflexiva, mas em investigar o pensar inconsciente, ligado a uma verdade do desejo.

Verdade essa parcial, uma vez que não há rede significante capaz de decifrar todo o

inconsciente, isto é, a verdade inconsciente é da ordem da incompletude .

Assim, para que se tenha conhecimento do inconsciente, num trabalho

psicanalítico, é necessário, portanto, que o analisando vença as resistências que

recalcaram a representação pulsional, afastando-a da consciência.

No texto, O Inconsciente (1915), Freud reconhece que suas explicações

sobre o modo de ocorrência dos processos de pensamento no aparelho psíquico

podem parecer obscuras e confusas. Nessa dimensão, o autor vai propor outro

modelo teórico. Para isso, ele vai resgatar o esquema psicológico da

representação de palavra , presente no seu texto A interpretação das afasias: um

estudo crítico, escrito em 1891, época em que ele ainda exercia sua profissão de

neurologista . Baseando-se no registro do simbólico, Freud constrói a tese principal

de seu estudo crítico: o esquema psicológico da representação da palavra, no qual

se demonstra que a palavra alcança sua significação por meio da ligação entre a

imagem acústica da representação de palavra e a imagem visual de objeto , o

que aponta para uma dupla inscrição do objeto na memória : como

representação de palavra e representação de objeto . Esse modo de conceber o

que seja a significação permite deduzir que o conceito de memória não é tratado por

Freud da mesma maneira como entendem os teóricos da neurologia localizacionista:

como simples receptáculo de imagens, isto é, como se a representação, enquanto

uma réplica do objeto, estivesse localizada numa célula nervosa do córtex. Para

Freud, não há nenhuma semelhança entre os elementos mnésicos e os objetos, o

que aponta para uma ruptura na relação palavra-objeto e, em seu lugar, ele coloca

a significação como resultado da relação entre representação de palavra e

representação de objeto. Tem-se, nessa mudança de paradigma – do biológico, dos

teóricos localizacionistas, para o simbólico de Freud, uma passagem do

conhecimento como reprodução do mundo das coisas, para o conhecimento como

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produzido pelo mundo das palavras, o qual dá ao mundo das coisas uma

significação. (OLIVEIRA, 1999).

Em resumo: no período pré-psicanalítico, isto é, no texto sobre as Afasias,

Freud concebe o aparelho psíquico como um aparelho de linguagem e,

implicitamente, o sujeito como da ordem da significação. Mas o que seria, então, o

outro modelo teórico, proposto pelo autor na primeira tópica?

Esse novo modelo está baseado tanto no conceito de representação de coisa,

denominado, no texto das Afasias, por representação de objeto - quanto no de

representação de palavra. O motivo que levou Freud a fazer a substituição de

representação de objeto por representação de coisa reside no fato de que, no

referido texto representação de objeto diz respeito ao que é externo e, no texto O

Inconsciente (1915), representação de coisa se refere ao inconsciente (ASSOUN,

1996, p. 78).

Cabe ressaltar que, no sistema inconsciente, temos os traços mnêmicos da

representação de coisa; e, no sistema pré-consciente, os traços mnêmicos da

representação de palavra, ou seja, os resíduos de percepções de palavras. De

acordo com Freud, a diferença entre uma representação consciente e uma

inconsciente não é, como ele supunha, “registros diferentes do mesmo conteúdo em

diferentes localidades psíquicas, nem tão pouco diferentes estados funcionais na

mesma localidade.” (FREUD, 1981, p. 2081). O pensar inconsciente está restrito à

relação entre representações de coisa. Já o pensar consciente consiste na ligação

da representação de coisa com a representação de palavra. Em outros termos, é a

representação de palavra que possibilita a passagem do processo primário, da

identidade de percepção – dominante no sistema inconsciente – para a identidade

de pensamento, do processo secundário, que regula o sistema pré-consciente. O

impedimento da ligação entre representação de coisa e representação de palavra

denomina-se recalque.

Assim, com a Teoria do Aparelho Psíquico na Primeira Tópica, a psicanálise

freudiana admite, além de um pensar consciente, um pensar inconsciente e que ela

busca, não o saber ligado a um eu consciente e reflexivo, mas uma verdade, ainda

que parcial, que diz respeito ao belo, e, por vezes, trágico desejo humano. Segundo

Garcia-Roza, "a psicanálise não vai colocar a questão do sujeito da verdade, mas a

questão da verdade do sujeito". (GARCIA-ROZA, 1983, p.23). Há, aqui, uma

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inversão. O que interessa a Freud não é o sujeito do conhecimento, mas o

conhecimento do sujeito desejante inconsciente.

Em síntese: na Primeira Tópica, o aparelho psíquico é dividido em instâncias:

inconsciente, pré-consciente/consciente, sendo que o eu pertence à ordem da

consciência e, implicitamente, o sujeito pertence à ordem do inconsciente.

A primeira tópica freudiana diz respeito, de acordo com Kristeva, a um

"modelo otimista da linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.71) no qual o inconsciente

estaria sob domínio do pré-consciente, ou seja, o que vai permitir a interface entre

inconsciente e consciente é a linguagem. E aponta que é "nessa formulação que

Lacan encontrará apoio, sem nunca citar Freud, para afirmar que o inconsciente é

estruturado como linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.72). Em outros termos, pode-se

dizer, que foi essa forma de pensar que possibilitou a Lacan afirmar que o sujeito do

inconsciente é o sujeito da enunciação.

Portanto, na primeira tópica, Freud nos diz que:

a) o aparelho psíquico é constituído pelos sistemas inconsciente, pré-

consciente/ consciente;

b) clinicamente, o objetivo é tornar consciente os processos psíquicos

inconscientes;

c) em termos metapsicológicos, o que possibilita o pensar consciente é a

ligação entre representação de coisa e representação de palavra.

Posteriormente, os impasses clínicos com os quais Freud se depara levaram-

no a questionar: por um lado, o modelo otimista da linguagem, pois não era mais

suficiente tornar consciente o inconsciente, e, por outro, a rever a ideia de que o

aparelho psíquico busca o prazer. Mediante isso, o que ele descobre, em sua

experiência clínica, é que, em muitos casos, o que se busca não é o prazer, mas o

prazer na dor. O que tornava insustentável a hipótese de que o aparelho psíquico é

regido pelo princípio de prazer. Assim, para dar conta desses novos dados clínicos,

Freud é levado a elaborar os conceitos de princípio de nirvana, pulsão de morte,

pulsão de vida, de compulsão à repetição e a propor uma segunda tópica, isto é, um

outro modelo de aparelho psíquico constituído por três instâncias: o Isso, o Eu e o

Supereu, sendo que o Eu é tanto consciente quanto inconsciente.

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Tal abordagem veio demonstrar contudo, a complexidade do psiquismo

humano e que, embora a linguagem tenha função fundamental na clínica, há algo

fora dessa ordem que diz respeito ao registro pulsional e que deve ser considerado

no tratamento psicanalítico. Implicitamente, podemos considerar, então, o sujeito

como pertencente à ordem do pulsional.

Ao tratar também da questão da linguagem, na segunda tópica freudiana,

Kristeva (2000) aponta para pontos importantes do que denomina como

significância, dentre os quais destacamos os seguintes:

a) "Em 1915, o termo sujeito, oposto a objeto, aparece sob a pena de Freud a

propósito da pulsão. O sujeito, diz ele, é o sujeito da pulsão, e não o sujeito

da linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.84);

b) "Além de as palavras poderem permitir às coisas internas tornar

conscientes, inversamente podem ser fonte de erros, e criar alucinações; elas

não são tão seguras quanto parecem para viajar da percepção à consciência

e vice-versa; com isto, a linguagem cessa de ser um terreno seguro para

conduzir à verdade" (KRISTEVA, 2000, p.88);

c) a segunda tópica é herdeira "do sujeito das pulsões, bem como do

complexo paterno, tal como foi colocado por Édipo, mas principalmente por

Totem e Tabu" (KRISTEVA, 2000, p.89);

d) Freud tem "a ambição de buscar a essência superior do homem"

(KRISTEVA, 2000, p.89);

e) "apesar de não se limitar a uma única sublimação, o psiquismo é fundado

inteiramente nela, pois é a capacidade de significância (representação -

linguagem - pensamento), baseada na sublimação, que estrutura todas as

outras manifestações psíquicas" (KRISTEVA, 2000, p.99);

f) "Freud abandonou a linguagem, abordada no sentido estrito de um sistema

gramatical ou retórico, para falar dela como de uma dinâmica inter- e

intrasubjetiva" (KRISTEVA, 2000, p.103);

g) "às duas cenas do consciente e do inconsciente se acrescenta uma

terceira, a do extrapsíquico. Existe, além do psíquico, um horizonte do ser

onde a subjetividade humana se inscreve sem a ela se reduzir, onde a vida

psíquica é excedida por essa significância. Freud define a capacidade de

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idealizar e de sublimar formando um ego a partir do id" (KRISTEVA, 2000,

p.104);

h) "Em todo caso, a "linguagem" para o analista não é a linguagem dos

linguistas. No entanto, que porte, que tensão, que ternura" (KRISTEVA, 2000,

p.112).

O texto de Kristeva (2000) sobre a significância, juntamente com nossas

investigações sobre a questão do sujeito na teoria do aparelho psíquico na obra

freudiana, permite-nos fazer as seguintes colocações:

a) na segunda tópica da psicanálise freudiana, a noção de sujeito não está

ligada à ordem da consciência, mas à do Id inconsciente;

b) Freud não considera o psíquico como idêntico ao consciente, pois,

segundo ele, o eu não tem um domínio completo sobre as pulsões e os

processos psíquicos inconscientes, isto é, "o eu não é senhor de sua própria

casa".

Nesse sentido, o que se busca demonstrar aqui é que a afirmação lacaniana

"o inconsciente é estruturado como linguagem" é equivocada, já que o aparelho

psíquico não está submetido, unicamente, à linguagem, mas também à ordem do

desejo pulsional inconsciente. Assim, não há como reduzir o aparelho psíquico

unicamente à ordem da linguagem. Em outros termos, diríamos que o ego e o

superego se originam, segundo Freud, de restos mnêmicos de palavras e são os

responsáveis diretos pelo nosso Logos, enquanto o Id, pólo pulsional, é a morada de

Eros e Tânatos, ou seja, esta instância é a sede de nosso Pathos.

Em síntese, esperamos ter demonstrado que, para uma reflexão crítica sobre

a questão do sujeito no discurso da psicanálise freudiana, cabe levar em

consideração que, implicitamente, temos um sujeito da significação no período pré-

psicanalítico; um sujeito do inconsciente na primeira tópica e um sujeito pulsional na

segunda tópica.

Assim, no nosso trabalho clínico de inspiração psicanalítica, consideramos a

linguagem do sujeito como pathos-psico-lógica: é tanto emocional, quanto simbólica;

tem uma dimensão inconsciente e outra pré-consciente-consciente, isto é, a

linguagem é movida pelo desejo pulsional atrelado a determinadas crenças.

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Cabe-nos agora buscar compreender e explicar, na interação transferencial

entre analisando e analista, quais as condições de possibilidade dos efeitos da

enunciação sobre a posição subjetiva do analisando, o que implica uma investigação

sobre o sujeito e a enunciação.

3.5 - O sujeito e a enunciação

Vale dizer que o estudo da enunciação, em linguística, é muito recente. Em

conformidade com Kerbrat-Orecchioni (2006), embora as conversações sejam

objetos de linguagem, foi somente a partir de 1980 que a linguística se dedicou à

pesquisa sobre a enunciação. Nesse sentido, iremos refletir sobre o sujeito e a

enunciação, a partir da Linguística, da Análise do Discurso, da Psicanálise e da

Filosofia da Linguagem.

3.5.1 - Enunciação: os efeitos da linguagem sobre a subjetividade

Em seu texto “O aparelho formal da enunciação”, Benveniste (1989) nos

ensina que é preciso diferenciar as condições de emprego das formas, inerentes à

ordem morfológica e gramatical, das condições de emprego da língua, pois elas não

são idênticas. “[...] São em realidade, dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir

nesta diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma

outra maneira de as descrever e de as interpretar.” (BENVENISTE, 1989, p.81).

Para melhor entendimento dessa diferença entre o emprego da forma e o

emprego da língua, tal como proposto por Benveniste, tomaremos de empréstimo o

esquema apresentado por Mari e Mendes, no qual encontramos as seguintes

definições:

“Emprego da forma: a partir de algum modelo teórico - empregar um som na construção de uma sílaba; - empregar um morfema na construção de um vocábulo; - empregar um sintagma na construção de uma sentença; - empregar uma sentença na construção de período.

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Emprego da língua: a partir de uma prática de linguagem (contrato, gênero...) - mobilizar um conjunto de formas em razão de um tipo de prática; - o emprego da forma permite isolar um fator lingüístico (fonológico, morfológico etc.); o emprego da língua requer a mobilização de todos esses fatores simultaneamente.” 10

Embora reconheça o valor dos diversos modelos sobre o emprego das

formas, Benveniste foca sua reflexão no emprego da língua. Sua investigação está,

portanto, voltada para a enunciação:

O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a fala? - É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. (BENVENISTE, 1989, p.82).

Para Benveniste, a enunciação é o ato do locutor colocar em funcionamento a

língua, de tomá-la por um instrumento. Nesse processo, há diversos aspectos:

a) a realização vocal da língua: ato singular e único de um falante;

b) o mecanismo de produção, conversão individual da língua em discurso:

trata-se da busca do entendimento de como o sentido se forma em palavras,

isto é, de uma semantização da língua, na qual está implicada a teoria do

signo e a análise da significância;

c) a enunciação no quadro formal de sua realização: o locutor faz da língua

um discurso direcionado a um ouvinte, provocando neste outra enunciação de

retorno. Individualmente, a enunciação é um processo de apropriação. No

entanto, toda enunciação implica um alocutário.

Em conformidade com o autor, na enunciação, deve-se levar em

consideração: o próprio ato, a situação na qual está inserido e os instrumentos de

realização. A relação eu-tu se produz na e pela enunciação. O eu como locutor e o

tu como alocutário. A temporalidade não é inata ao pensamento. Ela é produzida na

e pela enunciação no presente. É da categoria do presente que nasce a categoria do

tempo. Nesse sentido, Benveniste nos esclarece que o ego é o centro da

enunciação e está vinculado às formas temporais.

10 Anotações: Disciplina “Análise do Discurso”, ministrada pelos professores Dr. Hugo Mari e Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes. Programa de Pós-graduação em Letras – PUC Minas, 2008.

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Na enunciação, o locutor dispõe, além das formas que comanda, de um

aparelho de funções, tais como:

a) a interrogação, para suscitar uma resposta;

b) a intimidação, para fazer cumprir uma ordem;

c) a asserção, o uso do sim e do não numa proposição.

A estrutura do diálogo é composta de duas figuras necessárias: uma, origem,

outra, fim da enunciação. No entanto, Benveniste reconhece que se pode objetar

que há diálogo fora da enunciação, como também, enunciação sem diálogo.

Na disputa verbal praticada por diferentes povos e da qual uma variedade típica é o hain-teny dos Merinas, não se trata na verdade nem de diálogo nem de enunciação. Nenhum dos dois parceiros se enuncia: tudo consiste em provérbios citados e em provérbios opostos citados em réplica. Não há uma única referência explicita ao objeto do debate. (BENVENISTE, 1989, p.87).

Baseando-se em Malinowski, Benveniste vai sublinhar que, na comunhão

fática, a linguagem não funciona como meio de transmissão do pensamento. Nela, o

sentido das palavras, seja num salão europeu ou numa tribo selvagem, é quase que

indiferente. Em resumo, na comunhão fática, a linguagem é usada como um modo

de ação e não como um instrumento de reflexão. Igualmente importante é a

afirmação de Benveniste de que o monólogo é um diálogo interior, no qual o ego se

divide em dois: um eu locutor e um eu ouvinte. Nessa dimensão, o que caracteriza a

enunciação é a relação discursiva com o outro, real ou imaginário, individual ou

coletivo.

Em relação aos efeitos da linguagem sobre a subjetividade, convém ressaltar

que a tese principal defendida por Benveniste está centrada em torno da seguinte

afirmação: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como

sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a

do ser, o conceito de “ego”, (BENVENISTE,1995, p. 286). Para o autor, ao enunciar,

o locutor se apropria da língua para expressar uma relação com o mundo, isto é,

introduz aquele que fala em sua fala, e simultaneamente, postula uma interação com

um alocutário, um co-locutor. O que significa que, tanto a auto-referência, quanto a

referência são integrantes da enunciação, sendo o Ego o seu centro.

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Outro ponto importante, sublinhado por Benveniste, é o fato real de a

enunciação ser a responsável pela instauração do presente, donde nasce a

categoria do tempo, ou seja, o ser humano vive o agora através do discurso.

Em síntese, convém sublinhar que a originalidade de Benveniste está em sua

proposta de fundar a subjetividade e a alteridade na linguagem. Isso se explica da

seguinte forma: ao dizer eu, o locutor, isto é, o sujeito da enunciação se auto-

referencia e coloca em cena o outro, seu alocutário, mas, simultaneamente, dele se

diferencia. Trata-se de um argumento lógico, tendo em vista que não há EU sem TU,

nem sujeito sem linguagem e vice-versa. Nesse sentido, a reflexão de Benveniste

sobre a conversão da língua em discurso, nos permite afirmar que a enunciação é

da ordem do singular, momentânea, contempla alguma coisa e se direciona ao

outro, produzindo significância. Mas de que forma as reflexões feitas por Benveniste

poderiam contribuir para a nossa pesquisa sobre o trabalho clínico com a

enunciação do analisando?

As reflexões desse autor têm muito a contribuir, principalmente, levando em

conta também o texto Observações sobre a função da linguagem na descoberta

freudiana. Daremos destaque, a seguir, a que julgamos importantes:

- Primeiro, o fato de nos ter esclarecido o equívoco de Freud que, ao se

basear no estudo do filólogo Karl Abel, estabelece um paralelo entre “o processo do

sonho e a semântica das línguas primitivas, nas quais um mesmo termo enunciaria

uma coisa e igualmente o seu contrário.” (BENVENISTE, 1995, p.86). Em

conformidade com Benveniste, “é fácil mostrar que nenhuma das provas alegadas

por Abel pode ser conservada.” (BENVENISTE, 1995, p.87). Portanto, nesse

aspecto, a tentativa de Freud, embora válida, de fundamentar o sonho como

processo psíquico inconsciente apropriando-se de conceitos do campo linguístico,

não foi - hoje sabemos - nem pertinente, nem coerente. Assim, o erro de Freud,

segundo Benveniste, foi tentar justificar a origem da linguagem. Para esse autor, a

pergunta formulada por Freud à linguagem histórica teria mais pertinência se

colocada ao mito ou à poesia. (...) “Certas formas de poesia podem aparentar-se ao

sonho e sugerir o mesmo modo de estruturação, introduzir nas formas normais da

linguagem essa indeterminação do sentido que o sonho projeta nas nossas

atividades. (...)” (BENVENISTE, 1995, p.90).

- Segundo, sendo o conflito nuclear no psiquismo, não faz sentido a noção de

“original”. Para Benveniste, o próprio Freud aponta para essa questão no texto - “A

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negativa” - no qual demonstra que a negativa é uma forma de aceitação do

recalcado, não se tratando, portanto, de uma negação, mas de uma afirmação.

Assim, “(...) Reduz a polaridade da afirmação e da negação lingüísticas ao

mecanismos biopsíquico da admissão em si ou da rejeição para fora de si, ligado à

apreciação do bom e do mal. (...).” (BENVENISTE, 1995, p.91).

Ora, no trabalho clínico, a negativa tem uma importância fundamental, pois é

uma forma que o analisando tem de admitir o pensamento inconsciente recalcado.

Desse modo, para Freud, quando (...) “O paciente diz: “Agora o sr. deve estar

pensando que eu queria dizer algo ofensivo, mas realmente não é essa minha

intenção. Entendemos essa fala do paciente como uma maneira de repelir a idéia

que acaba de aflorar em sua mente.” (FREUD, 2007, p.147). Portanto, um

pensamento inconsciente pode adentrar à consciência, desde que seja negado.

Como exemplifica a passagem seguinte: “O senhor me pergunta quem poderia ser

essa pessoa no meu sonho. Não é a minha mãe.” (FREUD, 2007, p.147). Enfim, em

conformidade com o pensamento freudiano, temos que desconsiderar a negativa na

interpretação desse tipo de enunciação.

Um terceiro aspecto a ser ressaltado é que Benveniste nos esclarece os

pontos de convergência e divergência entre Psicanálise e Linguística em relação ao

simbolismo. A convergência é que a Psicanálise está fundamentada na teoria do

símbolo, e a linguagem é apenas simbolismo. A divergência é que, na Linguística,

“É preciso acrescentar que a linguagem se realiza necessariamente numa língua, e então surge uma diferença, que define para o homem o simbolismo lingüístico: consiste em que ela é aprendida, é coextensiva à aquisição que o homem faz do mundo e da inteligência, com os quais acaba por unificar-se.” (BENVENISTE, 1995, p.92).

Em Psicanálise, os símbolos inconscientes são regidos por outra lógica: a da

sucessão, que significa também causalidade, motivação. A simbólica inconsciente é

infra e supralinguística.

“(...) Infralinguística, tem sua fonte numa região mais profunda que aquela em que a educação instala o mecanismo linguístico. (...) É supralinguística pelo fato de utilizar signos extremamente condensados, que, na linguagem organizada, corresponderiam mais a grandes unidades mínimas. E entre esses signos estabelece-se uma relação dinâmica de intencionalidade que se reduz a uma constante motivação (a realização de um desejo recalcado) e que segue os desvios mais singulares.” (BENVENISTE, 1995, p.93).

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O autor faz uma comparação entre a simbólica do inconsciente e os

processos estilísticos do discurso. Nesse dimensão, o inconsciente faz uso também

da “retórica” que, tal como o estilo, tem suas figuras. Tanto num, quanto noutro,

encontramos as modalidades da metáfora (substituição dos elementos), da

metonímia (combinação dos elementos), da sinédoque (parte pelo todo). Para

Benveniste, “na verdade, aquilo que chamamos inconsciente é responsável pela

maneira como o indivíduo constrói a sua pessoa, afirma, recalca ou ignora isto

motivando aquilo.” (BENVENISTE, 1995, p.94).

Esses argumentos de Benveniste vêm responder à uma parte de nossa

pesquisa: a hipótese de que a simbólica inconsciente, presente no discurso do

analisando, está vinculada à relação dinâmica entre intencionalidade e desejos

inconscientes.

3.6 - O sujeito e a linguagem nas perspectivas de C haraudeau e Authier-Revuz

Quanto à questão sobre o sujeito e a linguagem, Charaudeau escreve que

“aquilo sobre o qual se insistiu talvez pouco até agora é que essa nova competência

implica a existência de um sujeito da linguagem que precisa ainda ser teorizado.”

(CHARAUDEAU, 1999, p.27). De acordo com o autor, esse sujeito da linguagem “se

encontra em uma dupla relação de intersubjetividade ao outro e de sua subjetividade

a si. Assim, podemos dizer, como os filósofos da linguagem, que o ato da linguagem

traz a marca da intencionalidade”. (CHARAUDEAU, 1999, p.30). Como podemos

observar, a abordagem do sujeito e do sentido do discurso, proposta por

Charaudeau, é complexa, pois leva em consideração tanto a dimensão

intralinguística, como extralinguística da enunciação.

Em seu texto Uma Teoria dos Sujeitos da Linguagem, Charaudeau (2001)

aponta que a reflexão sobre a questão do sujeito da linguagem é algo recente e

ainda pouco explorada. Para ele, uma teoria do discurso, ao estudar a dimensão

psicossocial da linguagem, deve levar em consideração “uma definição dos sujeitos

do ato de linguagem”, pois, nela, são abordadas as identidades, os estatutos, os

papéis dos sujeitos falantes em sua interação discursiva. (CHARADEAU, 2001,

p.27).

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Sobre a Nova Análise do Discurso, Charaudeau sublinha que a significação

discursiva é uma resultante de dois componentes: o linguístico e o situacional.

Nesse sentido, Mari e Silva afirmam, conjuntamente, que

Pode-se dizer, em linhas gerais, que a perspectiva de análise do discurso proposta, na dimensão da Teoria semiolingüística de Patrick Charaudeau, representa um avanço no domínio dos estudos sobre a linguagem, visto que pretende ser um modelo radicalmente integrador das diferentes dimensões que constituem o processo enunciativo, contemplando, de forma orgânica, não só os elementos que se situam numa dimensão estritamente lingüística, mas também os elementos inseridos numa instância extralingüística e, sobretudo, as relações que uns e outros mantêm entre si. (MARI; MENDES; SILVA,1996, p.52)

De acordo com Charaudeau, o ato de linguagem implica, por um lado, o fazer,

como instância situacional, isto é, o espaço ocupado pelos participantes. Por outro, o

dizer, como instância discursiva, o lugar de encenação dos seres de palavra. Esses

dois aspectos são indissociáveis: o dizer, relacionado ao circuito interno; e o fazer,

ao circuito externo: ambos constituem, assim, o ato de linguagem. Enquanto

interação e busca de significação, o ato de linguagem implica um duplo processo: de

produção e de interpretação. Nesse jogo de linguagem, a encenação do dizer

depende das estratégias discursivas. (CHARAUDEAU, 2001, p.30). O que implica

uma relação contratual dependente dos seguintes componentes:

a) comunicacional: o quadro físico da situação interacional;

b) psicossocial: os estatutos dos parceiros envolvidos;

c) intencional: o imaginário do conhecimento prévio, que os parceiros

possuem um do outro e o que está sendo colocado em questão.

O sujeito, neste contexto, não é um ser individual, nem coletivo, mas “uma

abstração, sede da produção/interpretação da significação, especificada de acordo

com os lugares que ele ocupa no ato linguageiro.” Têm-se então:

a) os parceiros no circuito externo:

- o sujeito comunicante: o agente/parceiro do processo de interpretação, que

encena o dizer através das estratégias discursivas;

- o sujeito interpretante: o outro/parceiro do processo de interpretação, que

constrói uma interpretação através da percepção do ritual linguageiro;

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b) os protagonistas no circuito interno:

- o sujeito enunciador: ser de fala da encenação do dizer;

- o sujeito destinatário: ser de fala interpretante.

As colocações feitas por Charaudeau sobre a abordagem do sujeito numa

perspectiva psicossocial são muito pertinentes. Poderíamos dizer que parte dela

corresponde a uma situação de cunho psicoterápico, que poderíamos assim

correlacionar:

a) o componente comunicacional: o consultório como quadro físico da

situação interacional;

b) o psicossocial: o analista e o analisando;

c) o intencional: o analisando supõe um saber no analista.

Podemos também observar, no ato linguageiro, a presença do sujeito

abstrato, proposto por Charaudeau, tanto dos protagonistas no circuito interno,

quanto dos parceiros no circuito externo.

Ora, o ato de linguagem ocupa um lugar preponderante no tratamento

psicoterápico e implica, nos termos de Charaudeau, tanto o fazer, como instância

situacional, isto é, o espaço ocupado pelos participantes, quanto o dizer, como

instância discursiva, o lugar de encenação dos seres de palavra. No entanto, numa

psicoterapia de inspiração psicanalítica, é preciso que se leve também em

consideração a dimensão inconsciente do sujeito. No campo linguístico, Authier-

Revuz, à luz da teoria lacaniana, tem discutido essa questão.

Baseando-se nas categorias de discurso como produto de interdiscursos e de

sujeito em sua relação com a linguagem da psicanálise lacaniana, a autora vai

refletir sobre a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso.

Fazendo referência a Pêcheux, Authier-Revuz (1990) destaca o

questionamento feito às teorias linguísticas da enunciação, do risco de reproduzir no

plano teórico, a ilusão do sujeito enunciador capaz de escolhas, intenções e

decisões, isto é, o Eu como imaginário e responsável pela reconstrução da imagem

de um sujeito autônomo, mas ilusório. Ela afirma a importância para a Análise do

Discurso de romper com a categoria de Eu, fundamento da subjetividade clássica

concebida como o interior diante da exterioridade do mundo, e levar em

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consideração a categoria de sujeito: deslocado, desalojado, “em um lugar múltiplo,

fundamentalmente heterônimo, em que a exterioridade está no interior do sujeito”.

Nesta afirmação de que, constitutivamente, no sujeito e no seu discurso está o

Outro.” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.29).

Nesse sentido, para um melhor esclarecimento desse sujeito enunciador

como ilusório, faremos uma reflexão dessa questão à luz da Análise do Discurso e

da Psicanálise, a partir do texto de Pêcheux, A forma-sujeito do discurso (1988).

3.7 - A Análise do Discurso de Pêcheux e a Psicanál ise de Freud e Lacan: controvérsias e aproximações em a forma-sujeito do discurso.

A Análise do Discurso Francesa tem como importantes pilares de sua

fundação os pensamentos de Foucault e Pêcheux. Contudo, não podemos deixar de

mencionar, que ambos foram influenciados pelo filósofo Louis Althusser. Sobre

Foucault temos a seguinte afirmação de Dosse (...) “Nesse início dos anos 50, a

grande máquina de pensar é o marxismo, e Althusser inicia seus ouvintes, entre os

quais Michel Foucault, no pensamento de Marx.” E quanto a Pêcheux, que

coordenando um pequeno grupo de trabalho vai “tentar a aplicação das teses

althusserianas à lingüística.” (DOSSE, 1993, p.347).

No entanto, nossa intenção se limita, aqui, a refletir sobre algumas passagens

do texto “A forma-sujeito do discurso”, de Michel Pêcheux. Sua proposta é tomar “o

discurso” como objeto de estudo, tendo, como referencial teórico, três campos

distintos de conhecimento: o Materialismo Histórico, a Linguística e a Psicanálise,

contribuindo, desse modo, para a fundamentação teórica de um novo campo de

produção e de investigação do conhecimento: a Análise do Discurso.

Consideramos pertinente a afirmação de Pêcheux de que o sentido das

palavras, das expressões e das proposições não é literal, mas dependentes das

formações ideológicas. De acordo com o autor, a formação discursiva é aquilo que,

a partir da formação ideológica, “pode e deve ser dito.” Logo, a formação discursiva

dissimula a objetividade material de que “algo fala” sempre antes, em outro lugar e

independentemente. Desse modo, o Ego, por ser da ordem do imaginário e “sob a

forma de autonomia”, não reconhece sua subordinação-assujeitamento ao Outro. O

idealismo é o funcionamento espontâneo da “forma-sujeito”, do Ego-imaginário,

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como sujeito do discurso. Pêcheux (1988) define o intradiscurso como o

funcionamento do discurso com relação a si mesmo, isto é, o conjunto dos

fenômenos de co-referência, que constituem o fio do discurso, enquanto discurso de

um sujeito. Assim, o ato de linguagem implica o desconhecimento da determinação

do sujeito no discurso, que, de forma especular, reproduz o discurso do outro.

Ora, tal proposta, como podemos perceber, vai ao encontro da forma de

pensar de Louis Althusser, apontada por Dosse:

Essa descentralização do ego, sua subordinação a uma ordem que lhe escapa se junta à leitura que Althusser faz de Marx, segundo a qual a história é um processo sem sujeito. Assim, um althussero-lacanismo podia ganhar impulso e fazer do par Marx/ Freud a grande máquina de pensar dos anos 60, dando a um marxismo renovado um segundo fôlego de que iria se beneficiar sobretudo no pós-68. (DOSSE, 1993, p.361).

Em seu texto Análise do discurso: controvérsias e perspectivas, Charaudeau

considera como radical a posição da Análise do Discurso proposta por Michel

Pêcheux em relação à definição de sujeito como ilusão. Para o autor, há também um

paralelismo abusivo entre ideologia e inconsciente. Nesse sentido, ele escreve que,

na abordagem de Pêcheux,

o sujeito é apenas o resultado de um produto, ele não se pertence, ele é falado por um ailleurs que será denominado ora ideologia (Althusser), ora inconsciente (Authier-Revuz). Em ambos os casos, o sujeito não é um “eu”, mas um “isso” (ideológico ou inconsciente) que fala através de um sujeito falante. (CHARAUDEAU, 1999, p. 37).

Entretanto, em relação a esse texto de Pêcheux, temos também o objetivo de

refletir sobre alguns dos pontos que consideramos problemáticos, no que diz

respeito aos conceitos que ele toma de empréstimo à Psicanálise de Freud e de

Lacan. Não se trata, aqui, de uma crítica desconstrutiva do pensamento do autor,

pois reconhecemos a importância de seu trabalho para a Análise do Discurso.

Buscamos, sobretudo, a partir de nossa interpretação dos textos de Freud e Lacan,

elucidar melhor tais conceitos e desse modo, ir contribuindo para tornar mais

pertinente e coerente o diálogo entre Psicanálise e Análise do Discurso.

Em relação ao diálogo de Pêcheux com o texto de Freud, destacamos dois pontos: Primeiro ponto: a questão do pré-consciente-consciente como uma zona autônoma

em relação ao inconsciente.

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Pêcheux toma o seguinte fragmento do texto freudiano sobre a Interpretação

dos Sonhos, escrito em 1900:

(...) parece que a seqüência de pensamento que foi assim iniciada e abandonada pode continuar a desenrolar-se sem que a atenção seja novamente voltada para ela, a menos que, num ou noutro ponto, ela atinja um grau especialmente alto de intensidade, que força a atenção para ela. Dessa maneira, se uma seqüência de pensamento é inicialmente rejeitada (conscientemente, talvez) por um julgamento de que ela é errada ou inútil para os propósitos intelectuais imediatos em vista, o resultado pode ser que essa seqüência de pensamento avance, inobservada pela consciência, até o início do sono. Para resumir: chamamos uma seqüência de pensamento como esta de ‘pré-consciente’; encaramo-la como completamente racional (...). (PÊCHEUX, 1988, p.174).

E faz a seguinte análise:

As formulações precedentes nos parecem, hoje, insuficientes, na medida em que levam a fazer do pré-consciente-consciente uma zona autônoma com relação ao inconsciente, delimitado pela barreira do recalque e da censura; portanto, uma vez mais, a ilusão de um império dentro de um império, da luta entre o império da razão e da consciência contra o império do inconsciente. De fato, essa ilusão da autonomia não passava de uma nova formula da ilusão de autonomia do pensamento com respeito ao inconsciente, isto é, do processo secundário com relação ao processo primário. (PÊCHEUX, 1988, p.174-175).

Ora, provavelmente, Pêcheux teria sido melhor sucedido em sua abordagem

da Psicanálise Freudiana se tivesse, por exemplo:

a) Entendido que, neste mesmo texto freudiano e conforme nossa

interpretação,

os pensamentos que no período da vigília são rechaçados, ou seja, não são objeto da atenção psíquica e por esse motivo não se tornam conscientes, continuam em processamento, independentemente da consciência, e podem, desse modo, surgir nas idéias latentes do sonho. (OLIVEIRA, 1997, p.157-158).

Em outros termos, o conceito de inconsciente pode ser compreendido, por um

lado, como descritivo, temporariamente inconsciente, sendo, portanto, da

ordem do pré-consciente e acessível à consciência. Por outro, como

inconsciente sistêmico, do qual faz parte o que é recalcado e enquanto tal,

inacessível à consciência. Estamos de acordo com Ricoeur (1977, p.96), de

que na “Interpretação dos sonhos”, o problema colocado por Freud não é

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discutir o processo secundário, tal como, podemos observar, pensa Pêcheux,

mas explicar o trabalho do sonho;

b) Observado que a noção de atenção já estava presente no manuscrito

denominado “O Projeto de 1895”, e de acordo com nossa análise, “para que

um pensamento se torne consciente é preciso que ele seja objeto da

atenção.” (OLIVEIRA, 1997, p. 158). Assim, um pensamento depende da

atenção para tornar-se consciente, mas não pré-consciente;

c) Utilizado da concepção de inconsciente, pré-consciente/consciente, tal

como presente no texto “O inconsciente” escrito em 1915. Nesse texto, Freud

nos esclarece que a representação consciente do objeto ou representação

objeto se subdivide em:

- representação-de-palavra;

- representação-de-coisa.

Conforme se pode perceber no trecho que se segue:

Uma representação consciente abrange a representação-de-coisa acrescida da representação-de-palavra correspondente. Representação inconsciente é somente a representação-de-coisa. O sistema Ics contém os investimentos de energia referentes à coisa que faz parte o objeto. Na verdade, estes são os primeiros e verdadeiros investimentos de energia no objeto. O sistema Pcs surge quando essa representação-de-coisa é vinculada às representações-de-palavra que lhe correspondem, recebe um sobreinvestimento. (FREUD, 2006, p. 49).

Portanto, não podemos concordar com a afirmação de Pêcheux de que “o

pré-consciente-consciente é uma zona autônoma com relação ao inconsciente,

delimitado pela barreira do recalque e da censura.” Ao contrário, há uma co-

dependência, uma continuidade, uma bidirecionalidade. O que o texto freudiano nos

indica é que só sabemos do inconsciente através do pré-consciente/consciente, e

que tudo que é consciente depende também do registro, da memória inconsciente.

Em outros termos, só há representação consciente do objeto, se houver o vínculo

entre a representação-de-coisa pertencente ao sistema inconsciente e a

representação-de-palavra presente no sistema pré-consciente. Sendo que, o

recalque corresponde ao impedimento deste vínculo, isto é, a tradução da

representação inconsciente em palavras. Se houvesse essa autonomia do sistema

pré-consciente, tal como colocada por Pêcheux, em relação ao inconsciente

seríamos todos esquizofrênicos. Pois, de acordo com o mesmo texto de Freud, há,

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na esquizofrenia, um desinvestimento na representação-de-coisa inconsciente e

intenso investimento na representação-de-palavra. Assim, no trabalho psíquico dos

esquizofrênicos, as coisas concretas são tratadas como se fossem abstratas. Esse

mesmo raciocínio serve como crítica à ideia lacaniana de que um significante remete

a outro significante, sempre descolado de um significado, e mais ainda, de um

referente. É o próprio Lacan que diz: “o significante é o que representa um sujeito

para um outro significante.” Não que eu discorde, inteiramente, de Lacan. Para mim,

um significante pode remeter não só a um outro significante, mas a muitos outros

significantes e, simultaneamente, não só a um significado, mas a muitos significados

e muitas vezes, não só a um referente, mas a vários referentes. Enfim, trata-se de

um pensamento em rede que é muito complexo.

Cabe dizer que a atividade psíquica, na concepção de Freud, atua em duas

direções opostas:

a) “parte das pulsões, atravessa o sistema inconsciente e dirige-se para a

atividade consciente de pensamento;”

b) “parte de um estímulo oriundo de fora e passa pelo sistema do Cs e Pcs

até chegar aos investimentos de carga ics do eu e dos objetos.”

No entanto, mesmo quando há recalque, essa segunda direção continua

aberta e passível de ser percorrida.

O que este fragmento do texto freudiano nos permite afirmar é que as

palavras pertencem ao sistema pré-consciente e só através delas temos, por um

lado, acesso aos conteúdos presentes no sistema inconsciente. Por outro, são elas

que tornam possível tomarmos consciência, isto é, pensarmos sobre os

acontecimentos e eventos da realidade.

Segundo ponto: o esquecimento e o recalque inconsciente.

Para pensar as categorias de “esquecimento 1 e esquecimento 2”, Pêcheux

diz se apoiar na primeira tópica freudiana.

De acordo com Gregolin (2007), no artigo publicado em Langages 37,

Pêcheux faz uma auto-crítica ao conceito de sujeito. “Pêcheux acusa-se de lá haver

sugerido a aproximação entre a idéia filosófica do esquecimento (ou de

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apagamento) e o conceito psicanalítico de recalcamento; isso foi um equívoco,

porque “os traço inconscientes do Significante não são jamais ‘apagados’ ou

‘esquecidos’, mas trabalham sem descanso na pulsação sentido/não sentido do

sujeito dividido.” (GREGOLIN, 2007, p. 146)

O que vamos discutir, aqui, se resume à analogia, feita pelo autor, entre o tipo

de esquecimento 1 e o recalque inconsciente.

Por outro lado, apelamos para a noção de “sistema inconsciente” para caracterizar um outro “esquecimento”, o esquecimento nº1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento nº1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior determina a formação discursiva em questão. (PÊCHEUX, 1988, p. 173).

Detectamos, nesta afirmação de Pêcheux, alguns pontos polêmicos, quais sejam:

a) reduzir o sistema inconsciente ao recalque inconsciente. Ora, logo no

início de seu texto, O Inconsciente (1915), Freud faz a seguinte colocação:

Embora tudo o que foi recalcado precise permanecer inconsciente, esclarecemos de antemão que o recalcado não abarca todo o inconsciente. Ou seja: o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado, este é apenas uma parte do inconsciente. (FREUD, 2006, p.19).

Assim, não devemos tomar a parte, no caso, o recalque, como se

correspondesse a todo o sistema inconsciente;

b) estabelecer o vínculo entre recalque e esquecimento.

Em conformidade com Freud,

a essência do recalque não reside em suspender a idéia que representa uma pulsão, mas em impedir que a idéia se torne consciente. Nesses casos, dizemos que a idéia está recalcada e se encontra em estado “inconsciente”. Contudo, temos fortes evidências de que mesmo permanecendo inconsciente a idéia recalcada é capaz de continuar a produzir efeitos sobre a psique e de alguns dos seus efeitos acabam por alçar-se à consciência do sujeito. (FREUD, 2006, p. 19).

Portanto, não se trata de esquecer, mas de estorvar, de bloquear o vínculo

entre a representação-de-coisa inconsciente e a representação-de-palavra pré-

consciente, isto é, evitar a possibilidade de uma transposição, de um ligar ou religar,

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de uma ideia inconsciente em algo da ordem do pré-consciente, o que a tornaria

capaz de estar consciente. Na primeira tópica da Psicanálise Freudiana,

inconsciente e pré-consciente/consciente constituem o aparelho psíquico e possuem

funções distintas. O sistema inconsciente não é nenhum arquivo morto, mas uma

forma de funcionamento primário do nosso aparelho psíquico, isto é, trata-se de um

processo psíquico dinâmico regido pelo princípio de prazer e que tem, como

conteúdo, as representações-de-coisa. Já o pré-consciente faz parte do processo

psíquico secundário, é governado pelo princípio de realidade e tem, como conteúdo,

as representações-de-palavras. Mas o que significa representação-de-coisa e

representação-de-palavra? Qual a diferença entre elas?

Em nosso entendimento do texto freudiano, afirmamos que, enquanto modelo

teórico, a representação deve ser entendida como imagem, traço mnêmico dos

objetos, das palavras e dos estímulos do corpo. Se sinto fome, é necessário, por um

lado, um traço mnêmico relacionado a esse estímulo somático; por outro, é preciso

um traço mnêmico, vinculado à imagem de algum objeto, no caso um alimento,

capaz de produzir satisfação. Até aqui, tem-se um processo primário. Se

acrescentarmos, a esse processo um traço mnêmico da representação de palavra,

tal como ao pensar ou dizer - quero comer um salmão - teremos um processo

psíquico secundário. Em outros termos, é a representação de palavra que possibilita

a passagem do processo primário, da identidade de percepção – dominante no

sistema inconsciente – para a identidade de pensamento, do processo secundário,

que regula o sistema pré-consciente. Entretanto, este aparelho psíquico tem que se

haver não somente com representações, mas também com uma força pulsional que

o coloca em funcionamento.

Em outros termos, trata-se da trajetória dos representantes psíquicos do

desejo pulsional, de sua transposição da linguagem das imagens relacionadas à

Coisa, do sistema inconsciente à linguagem das imagens das palavras, do sistema

pré-consciente/consciente.

Em relação ao esquecimento, acrescentamos que, em seu texto Múltiplo

interesse da psicanálise, Freud afirma que as parapraxias e os sonhos são

processos psíquicos normais, que possuem um significado e uma intenção.

Portanto, não se pode dizer que, em Psicanálise, a compreensão desses processos

está baseada nos processos psíquicos tidos como patológicos. Em outros termos, os

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processos psíquicos normais e aqueles descritos como patológicos seguem as

mesmas regras.

As parapraxias estão relacionadas a conflitos psíquicos que impedem a

expressão direta desta intenção, que a faz buscar caminhos indiretos, ou seja, é

para evitar o desprazer que uma intenção é recalcada. Assim, o esquecimento de

nomes e palavras conhecidas, de algo que deveríamos fazer, de assuntos

conhecidos, de gestos e movimentos habituais ou a perda de objetos, os lapsos de

linguagem e escrita são exemplos de parapraxias.

Em relação ao recalque é preciso compreender que não se trata somente do

destino do representante representação ou ideia que está em jogo, mas também o

destino do afeto. Mas de que afeto se trata?

Em seu texto metapsicológico As pulsões e seus destinos, Freud (1915, 2004)

define a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático. O autor

afirma que a pulsão está fora do aparelho psíquico, isto é, o que temos, no aparelho

psíquico, são os representantes psíquicos da pulsão: o representante representação

ou ideia e o afeto enquanto quantum de energia. O autor nos esclarece ainda que,

para o entendimento das neuroses, o mais importante destino das representações

pulsionais, não é o do representante representação, cujo destino comum é o

recalque, mas o destino do afeto.

Desse modo, temos em relação ao destino do afeto:

- na histeria de conversão, o afeto é descarregado numa inervação do corpo;

- na neurose obsessiva, há uma fixação do afeto a uma ideia;

- na neurose de angústia, há transformação do afeto em angústia.

Portanto, do nosso ponto de vista, qualquer análise do mecanismo de recalque

que desconsidere o destino do afeto está fadada ao equívoco. No entanto, vale

sublinhar que o recalque é um dos possíveis destinos dos representantes da pulsão;

os outros seriam o retorno libidinal ao próprio Eu, a inversão ao contrário e a

sublimação.

Entretanto, Pêcheux, além da teoria freudiana vai dialogar também com a

teoria lacaniana e, em alguns momentos, fará uma leitura de Freud via Lacan.

Assim, destacamos, a seguir, dois pontos:

Primeiro ponto: a comparação entre textos freudianos e lacanianos feitas por

Pêcheux.

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É evidente que cada autor tem o direito de refletir da maneira que bem

entender, de tomar por empréstimos conceitos de outros campos. No entanto,

temos também o direito de discordar. O principal ponto de discordância é, não só em

relação a Pêcheux, mas a qualquer outro pensador que tenha a crença de que, ao

ler Lacan, estamos lendo Freud. Não, não estamos. Penso que, para bem do campo

psicanalítico e imagino que Freud concordaria comigo, Freud não é Lacan, isto é, as

concepções teóricas de Freud, por exemplo sobre o inconsciente, sobre a pulsão

diferem integralmente das concepções, também válidas, que Lacan tem desses

conceitos. Mas, muitas vezes, esse tipo de exercício epistemológico se desloca para

uma falácia que beira ao desrespeito, como a seguinte afirmação de Miller:

(...) Cabe objetar a Lacan que Freud nunca disse que o inconsciente está estruturado como linguagem. Freud, é verdade, nunca o disse. Mas a tese de Lacan é que se pode demonstrar que o descobrimento freudiano só encontra sua coerência a partir do axioma o inconsciente estruturado como linguagem. Freud descobriu o inconsciente, expôs as conseqüências de sua descoberta na medida em que lhe foram aparecendo as implicações desta. A teoria de Freud é uma verdadeira barafunda. Para qualificá-la, há uma palavra que aprendi ontem, que cai como uma luva, uma palavra que é típica do castelhano como se fala na Venezuela: diria que há um zaperoco freudiano. Pois bem, desse zaperoco freudiano Lacan quis fazer um passeio ordenado, claro e lógico. Sua tese é de que as descobertas discordantes de Freud encontram seu fundamento na idéia de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. (MILLER, 1988, p.13).

Penso não ser este o melhor estilo de se fazer teoria em Psicanálise. Não

basta criticar, é preciso usar de argumentos não sofísticos, menos políticos e mais

da ordem da razão demonstrativa. Para concordar com Miller, há uma condição

indispensável: desconhecer a obra de Freud.

E por que Freud não disse que o inconsciente está estruturado como

linguagem? Porque o que temos, no sistema inconsciente, são traços mnêmicos de

representações de coisa. A linguagem, isto é, os traços mnêmicos das

representações de palavras pertencem ao registro do pré-consciente.

Quanto à clareza dos conceitos da Psicanálise, o próprio Freud escreve que

Ouvimos muitas vezes a opinião de que uma ciência deve se edificar sobre conceitos básicos claros e precisamente definidos, mas na realidade, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste muito mais na descrição de fenômenos que são em seguida agrupados, ordenados e correlacionados entre si. (...) Entretanto, o progresso do conhecimento não suporta que tais definições sejam rígidas, e como ilustra de modo admirável o exemplo da física, mesmo os conceitos básicos que já foram fixados em

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definições sofrem uma constante modificação de conteúdo. (FREUD, 2004, p.145).

Portanto, a atitude cientifica de Freud nos demonstra que os conceitos não

estão livres de contradição, mas cabe ao pesquisador buscar sempre um melhor

esclarecimento sobre eles. Se não fossem assim, ele não teria proposto suas duas

tópicas do aparelho psíquico. Vale dizer que teoria é denominada, na Psicanálise

Freudiana, de metapsicologia, que significa tratar do acontecimento psíquico em

suas dimensões tópica, dinâmica e econômica. Mas, o que é Psicanálise?

No entendimento de Freud, Psicanálise é um procedimento de investigação

de processos psíquicos inconsciente, uma psicoterapia e uma teoria. O que é

Psicanálise para Lacan? É a pergunta, o que é a Psicanálise? E o conceito de

inconsciente em Lacan, seria o mesmo que o é para Freud? Nesse sentido, nos

esclarece, em História do Estruturalismo, que Lacan utiliza-se da antropologia

estrutural de Lévi-Strauss, para fazer uma releitura dos textos freudianos.

(...) O inconsciente lévi-straussiano é estranho, portanto, aos afetos, ao conteúdo, à historicidade do indivíduo. Reencontra-se o predomínio concedido à invariante sobre as variações, à forma sobre o conteúdo, ao significante sobre o significado, próprio do paradigma estrutural. Lacan, como se verá, retomará essa abordagem do inconsciente que lhe permite lançar as bases de uma álgebra significante em psicanálise, da mesma maneira que Lévi-Strauss o realizou em antropologia. (DOSSE, 1993, p.141).

Sendo assim, podemos afirmar que o inconsciente lacaniano está mais

próximo do conceito de inconsciente proposto por Lévi-Strauss e, por isso, mais

distante do conceito de inconsciente freudiano. Isso não significa, que não se possa

levá-los conjuntamente em consideração, mas que não podemos tomar um pelo

outro.

Outro ponto que consideramos importante discutir é a possível influência do

esquema L de Lacan na concepção de Pêcheux sobre o ego imaginário como sujeito

do discurso.

Segundo ponto: sobre o ego-imaginário como sujeito do discurso

Em seu texto, Pêcheux faz a seguinte afirmação:

Somos, assim, levados a examinar as propriedades discursivas da forma-sujeito, do Ego-imaginário, como sujeito do discurso. Já observamos que o

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sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto pré-construído e processo de sustentação) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito. (PÊCHEUX, 1988, p.163).

Levando em consideração o esquema L, da teoria de Lacan, salientamos a

presença de dois eixos cruzados: o do imaginário a-a’ que implica a relação Eu –

outro (pequeno outro) e o eixo simbólico da relação sujeito – Outro (grande outro).

Portanto, o Eu tem uma dimensão imaginária consciente e o sujeito uma dimensão

simbólica, inconsciente.

No entanto, em suas conferências caraquenhas, Miller destaca que o

simbólico tem duas vertentes: a da palavra e a da linguagem. A vertente da palavra

tem, em relação à dimensão imaginária, uma função pacificadora. É preciso, em

relação ao sintoma, simbolizá-lo, dar-lhe uma palavra, uma significação. A vertente

da linguagem é denominada, pelo autor, diacrítica, pois nela os elementos adquirem

valor uns com relação aos outros, isto é, trata-se de uma estrutura feita de sem-

sentido. Mas, em seguida, o autor faz a seguinte colocação: “A tese de Lacan é que

o significante atua sobre o significado, e inclusive, em um sentido radical, o

significante cria o significado, e é a partir do sem-sentido do significante que se

engendra a significação.” (MILLER, 1988, p.11-39).

Entretanto, cabe assinalar que temos - nesse enfoque lacaniano do Eu, do

sujeito e da linguagem - apenas dois registros: o do imaginário e o do simbólico. Só-

depois, Lacan irá levar em consideração um outro registro: o do real.

Assim, retomando a noção de forma-sujeito, proposta por Pêcheux, podemos

afirmar que, ao falarmos de linguagem no contexto do esquema L, é preciso

diferenciar a dimensão imaginária do sujeito do discurso, da dimensão simbólica do

discurso do sujeito. No entanto, implícita à discussão do sujeito do discurso e do

discurso do sujeito, temos a questão da concepção saussuriana de signo, não só no

Campo Linguístico e na Psicanálise tanto de Freud quanto de Lacan.

3.8 - A concepção de signo linguístico em Linguísti ca e em Psicanálise.

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Para pensar o conceito de significante, Lacan parte da concepção do signo

em Saussure. Ora, nós sabemos que no texto freudiano, A interpretação das

Afasias, um estudo crítico, escrito em 1891, há uma concepção de aparelho de

linguagem. Nesse texto, Freud nos esclarece sobre o esquema psicológico da

representação de palavra, no qual a palavra só adquire significado em seu vínculo

com a representação de objeto. O que queremos frisar é que há, no pensamento

freudiano anterior ao surgimento da Psicanálise, uma concepção sobre uma

produção do sentido, uma semântica. Portanto, anterior ao Curso de Lingüística

Geral de Saussure, resultado de seminários apresentados no período entre 1907 e

1911, no qual encontramos a definição, o algoritmo de signo linguístico, como a

união entre um significante e um significado, isto é, entre uma imagem acústica e um

conceito.

Vale sublinhar que, segundo nossas pesquisas, as concepções de

representação de palavra e representação de objeto e, posteriormente,

representação de coisa irão percorrer toda a obra de Freud. Em nosso

entendimento, embora a concepção de signo saussuriano tenha sua pertinência e

grande importância para o campo linguístico e tenha servido, de forma modificada, a

Lacan, consideramos o esquema psicológico da representação de palavra, proposto

por Freud, como mais complexo e mais pertinente para se pensar o signo linguístico

em Psicanálise.

O signo saussuriano diz respeito ao vínculo do conceito com sua imagem

acústica, ou seja, do significado (So) com o significante (Se). A significação é uma

função que liga Se e So; e o valor linguístico é a contraposição entre os signos. Na

teoria freudiana, o signo ou a palavra é composto por uma rede de imagens: imagem

da leitura, imagem da escrita, imagem motora integradas à imagem acústica. A

significação se torna possível através da ligação da imagem acústica da palavra com

a imagem visual das associações de objetos que, por sua vez, é responsável pela

integração com a rede de imagens das associações de objeto: tátil, olfativa,

gustativa, acústica.

Se Lacan era tão freudiano como dizia, o verdadeiro herdeiro de Freud, o que

o teria levado a optar pelo signo saussuriano em detrimento do signo freudiano?

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Nesse sentido, Miller, ao referir-se ao Seminário 11 de Lacan, realizado no

ano de 1964, faz a seguinte afirmação:

Lacan levanta questões epistemológicas sobre os conceitos psicanalíticos, mas ao fazer isso ele está realmente perguntando se os conceitos de Freud devem permanecer os únicos válidos em Psicanálise. (...) durante os primeiros dez anos de seu seminário, Lacan sempre adotou um texto de Freud (...) desta vez ele não faz isso. (...) De vez em quando discute um texto, mas não constrói seu seminário inteiramente em torno dos livros ou artigos de Freud. Em vez disso, a cada ano elabora um de seus próprios esquemas ou conceitos. (...) No interior dessas questões epistemológicas e dessa celebração de Freud, vemos não um desprestígio de Freud, mas o que poderíamos chamar de uma substituição. Uma espécie de reescrita de Freud, uma versão de Freud que Lacan adota; mas isso é feito em segredo, ou ao menos discretamente, porque ao mesmo tempo ele tem que provar que é o herdeiro de Freud. A isso se poderia chamar de estratégia do seminário. (MILLER, 1997, p.21)

Vale dizer que, embora nem sempre bem sucedido, Freud também fez uso de

conceitos oriundos do campo da linguística. Na verdade, ele tenta estabelecer um

diálogo entre Psicanálise e Linguística. Conforme escreve Arrivé, os linguistas

“Sperber e Abel são visivelmente utilizados por Freud para suturar as falhas da sua

teoria das relações entre linguagem e inconsciente.” (ARRIVÉ, 1999, p.17).

Assim, em seu texto O interesse filológico da psicanálise, Freud sublinha que,

Nos sonhos, são acima de tudo os órgãos e as atividades sexuais que são representados simbolicamente, em vez de sê-lo de modo direto. Um filólogo de Upsala, Hans Sperber, apenas recentemente (1912) tentou provar que as palavras que originalmente representavam atividades sexuais, sofreram, com base em analogias dessa espécie, uma modificação de grandes e extraordinárias conseqüências em seu significado. (FREUD, 1981, p.1858)

O autor é categórico, ao afirmar que os sonhos são representados por

imagens visuais, algo próximo a uma escrita pictográfica, tais como os hieróglifos

egípcios e não por palavras. Sendo assim, nem todos os elementos serão

interpretados ou lidos, mas servem como ‘determinativos’, para estabelecer o

significado de algum outro elemento. É isto que permite explicar a ambigüidade dos

diversos elementos dos sonhos, como também, a omissão de várias relações, sendo

que nesses casos, elas são supridas pelo contexto.

Se esta concepção do método de representação nos sonhos ainda não foi levada avante, isto, como facilmente se compreenderá, deve ser atribuído ao fato de os psicanalistas ignorarem completamente a atitude e o

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conhecimento com que um filólogo abordaria um problema como o apresentado pelos sonhos. (FREUD, 1981, p.1858).

Trata-se de um forte argumento de Freud, a favor do diálogo entre Psicanálise

e as demais disciplinas do campo das ciências da língua(gem).

No entanto, Freud nos esclarece que o inconsciente fala mais de um dialeto,

isto é, são muitas as formas de expressão do inconsciente. A linguagem pictórica

dos sonhos é uma delas, mas temos outras, tais como: a linguagem dos gestos da

histeria, a linguagem de pensamento das neuroses obsessivas e das parafrenias.

Assim, o recalque do desejo de engravidar, seria expresso por representações

diferentes desse desejo:

a) na histeria, através do vômito;

b) na neurose obsessiva, por meios de medidas de proteção contra

infecções;

c) na parafrenia, pela queixa ou suspeita de ser envenenado.

Desse modo, em conformidade com Freud, temos que, por fala deve-se

entender não somente a expressão do pensamento por palavras, mas também, a

linguagem dos gestos, da escrita, isto é, todos os demais métodos pelos quais a

atividade psíquica se expressa. Cabe perguntar se haveria como pensar a

linguagem no campo psicanalítico, desconsiderando o conceito de pulsão e seus

respectivos destinos.

A resposta será afirmativa, se levarmos em consideração o pensamento de

Lacan, de um inconsciente estruturado como linguagem. Mas será negativa, se

tomarmos como objeto de reflexão o pensamento de Freud. Ora, propor um diálogo

entre a Psicanálise e o campo linguístico não significa reduzir uma à outra, mas

compartilhar conhecimentos.

O sentido das palavras, das expressões e das proposições, nos esclarece

Pêcheux, não são literais, mas dependentes das formações ideológicas. Já a

formação discursiva é aquilo que, a partir da formação ideológica, pode e deve ser

dito. Logo, a formação discursiva dissimula a objetividade material de que algo fala

sempre antes, em outro lugar e independentemente.

Desse modo, o Ego, por ser da ordem do imaginário e sob a forma de

autonomia, não reconhece sua subordinação-assujeitamento ao Outro. O idealismo

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é o funcionamento espontâneo da forma-sujeito, do Ego-imaginário, como sujeito do

discurso. O autor define o intradiscurso como o funcionamento do discurso com

relação a si mesmo, isto é, o conjunto dos fenômenos de co-referência, que

constituem o fio do discurso, enquanto discurso de um sujeito. O ato de linguagem

implica o desconhecimento da determinação do sujeito no discurso que, de forma

especular, reproduz o discurso do outro. Metaforicamente, podemos dizer que o

tecido é o resultado da trama dos fios, atravessados pela lançadeira.

Quanto à Psicanálise, temos que diferenciar a psicanálise freudiana das

psicanálises pós-freudianas. Não se trata, aqui, da busca de nenhum purismo, seja

do freudismo, do lacanismo ou de outra vertente subjetivista qualquer da psicanálise,

mas de colocar que, na atualidade, a Psicanálise é um campo de conhecimento.

Cabe a essas diversas propostas se perguntarem pela pertinência e coerência de

suas teorias, de suas práticas clínicas e suas pesquisas pois, se refletirmos bem,

veremos que elas partem de uma situação cultural, de uma clínica, de conceitos

teóricos e métodos de pesquisas muito diferentes. Nisso, a Filosofia da Ciência

pode, em muito, colaborar.

3.9 - Pragmática e enunciação: Francis Jacques – pragmática da relação interlocuti va

No texto Do dialogismo à forma dialogada. Sobre os fundamentos da

abordagem pragmática, Francis Jacques (1985) afirma que há um paradoxo na

concepção filosófica de discurso, pois, de forma geral, os filósofos “fixaram para o

diálogo condições de possibilidades não dialógicas.” (JACQUES, 1985, p.23). É o

que encontramos no saber como reminiscência em Platão, na concepção de razão

cartesiana, nas mônadas de Leibniz ou na categoria trans-subjetiva de Kant e

Husserl.

Para o autor, o diálogo é pensado de modo acrítico: “como a produção de

dois discursos paralelos cujos segmentos são proferidos um por vez por

interlocutores supostamente constituídos.” (JACQUES, 1985, p.23). Isto seria reduzir

a enunciação à tríade: uma frase, um contexto e um locutor. Dito de outra forma:

dois solilóquios não fazem um discurso.

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Francis Jacques argumenta que é preciso saber que o dialogismo do discurso

é diferente de diálogo. Temos tanto discursos com estrutura dialógica, mas sem

retórica de diálogo, quanto diálogos falsos. Em seu entendimento, os diálogos

platônicos são monológicos. É o que se observa, por exemplo, com Sócrates, pois

independentemente do interlocutor, os critérios de verdade sempre pertencem a ele.

É preciso também diferenciar a relação interlocutiva da imagem que cada um

faz de si mesmo e do outro. “Uma coisa é falar com um interlocutor real, outra é falar

com a imagem que dele fabricamos, ou conforme à que imaginamos que alguém se

fez de nós mesmos”. (JACQUES, 1985, p.30).

É preciso esclarecer, no entanto, que Francis Jacques considera que, no

dialogismo, o proferimento do locutor leva o alocutário a compor e convergir com ele.

A mensagem é então emitida segundo a escuta do outro, mas também segundo o que reconstituo da voz do outro enquanto calculo sua reação verbal. Uma tal mensagem não está somente presa a dois contextos e a duas codificações, ela assume sua tensão. É a sede de uma dialogização que se estende a todos os fenômenos discursivos. (JACQUES, 1985, p.42).

Assim, em conformidade com Francis Jacques, o dialogismo presente no

discurso requer, por um lado, uma relação de reciprocidade atual entre os

interlocutores; e, por outro, a convergência como “condição necessária para que a

bivocidade seja dialógica”. (JACQUES, 1985, p.42). Mais ainda, inclui outros efeitos

de sentido, tais como a plurivocidade, movimentos de bi-contextualização e de bi-

codificação: conceitos-chave para uma pragmática da relação interlocutiva.

Ora, de nossa perspectiva consideramos como muito pertinentes e coerentes

as reflexões de Francis Jacques sobre a interação comunicativa e cremos que elas

possam trazer uma contribuição para o entendimento da interlocução entre

analisando e analista. Em outros termos, trata-se de uma questão importante para

uma clínica inspirada na Psicanálise, haja vista que, imaginariamente, se coloca o

analisando como aquele que fala e o analista como aquele que escuta. É comum

ouvirmos: “vou para a análise, falo, mas meu analista não diz nada”. O que nos

remete a um mal-entendido da regra fundamental da Psicanálise Freudiana:

associação livre por parte do analisando e escuta flutuante por parte do analista.

Tem-se aqui uma concepção de uma análise como um solilóquio, isto é, nos termos

de Francis Jacques “condições de possibilidades não dialógicas.” Portanto, é

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necessário entender a interlocução como “interação efetivamente comunicativa”. De

acordo com o autor, dizer que o discurso se dirige a alguém é insuficiente, pois o

importante é considerar “o ouvinte como verdadeiro co-enunciador”. (JACQUES,

1985, p.23). Apropriando-nos dessa perspectiva e transpondo-a para a situação

psicoterápica, podemos dizer que, na enunciação, é importante levar em

consideração não só a atividade exercida por aquele que fala, mas também por

aquele que escuta. Trata-se de uma atividade conjunta de uma relação entre locutor

e alocutário que, compartilhando do sentido dos enunciados de pertencimento

comum, podem, em sua interação discursiva, discutir, concordar ou discordar. Para

nós, o analista ocupa o lugar de co-enunciador. No entanto, cabe destacar que, na

abordagem de Francis Jacques, a ênfase não recai sobre o ego, mas sobre o

fenômeno relacional; e na nossa perspectiva, isto é, no caso de uma psicoterapia, a

ênfase também não recai sobre o eu, mas sobre um tipo especial de relação: a

relação transferencial do analisando a um sujeito suposto saber - o analista. Assim,

é a partir do relato do analisando, ou seja, da interação discursiva com o analisando,

que cabe ao analista, como co-enunciador, a função de pontuar, interpretar,

construir em conjunto uma significação.

3.10 - Enunciação e argumentação

Ora, a enunciação nos remete, de forma lógica, à argumentação. Como nos

esclarece Plantin, ao levar em consideração a argumentação como um fato de

discurso, ligado à prática da linguagem no contexto, são possíveis duas opções. Por

um lado, a fala, como resultado concreto da enunciação em situação, é sempre

necessariamente argumentativa. Pois, “todo enunciado trata de atuar sobre seu

destinatário, sobre o outro, trata de transformar seu sistema de pensamento. Todo

enunciado obriga e incita o outro a crer, a ver, a fazer, de forma diferente.”

(PLANTIN, 1998, p.29). Por outro, temos a posição das teorias clássicas da

argumentação retórica, que defendem que só alguns discursos são argumentativos.

O autor sublinha, ainda, que o estudo da argumentação pode tomar como objeto de

estudo, tanto o discurso monológico para extrair dele as estruturas, quanto a

situação dialógica , o debate, a conversação.

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Mas, em relação à argumentação, haveria um logos, isto é, uma razão

discursiva, sem ethos, sem pathos? Ou, um pensamento e um discurso isentos de

emoções e independentes do ethos do orador e do pathos do auditório? Afinal o

pathos e o ethos são internos ou externos? Haveria uma argumentação sem

intencionalidade?

A tese forte defendida por Eggs (2005) é que “o ethos constitui praticamente a

mais importante das três provas engendradas pelo discurso – logos, ethos e pathos.”

Quanto à relação entre ethos e discurso, o autor afirma que os temas e o estilo

escolhidos devem ser apropriados (oikeia) ao ethos do orador, a saber, a sua héxis,

ao seu habitus – ao seu tipo social.

Sobre o conceito de ethos, Maingueneau (2006) enfatiza que “o ethos de um

discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos

discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos de texto em que o

enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito).” Baseando-se na dimensão

do discurso e nos escritos de Aristóteles sobre a retórica, Mainguenau escreve que

há um ethos retórico, ligado à própria enunciação. (MAINGUENAU, 2006, p.53-55).

A retórica, escreve Reboul, é a arte de persuadir pelo discurso. Em outros

termos, persuadir é levar alguém a crer em alguma coisa e o discurso é toda

produção verbal, escrita ou oral que tenha começo e fim e apresente certa unidade

de sentido. No entanto, Reboul observa que nem todo discurso visa à persuasão,

tais como: o puramente cientifico ou técnico, o poema lírico, a tragédia, o

melodrama, a comédia, o romance, os contos, as piadas. Quanto à afetividade, ele

sublinha que o etos está relacionado ao caráter do orador e o patos às tendências,

desejos e emoções do auditório. (REBOUL, 2000, P. XIV-XVII). De acordo com o

autor, para Aristóteles, a retórica utiliza, como meios de persuasão, três tipos de

provas: o patos que está ligado ao auditório e o etos ao orador como pertencentes à

dimensão afetiva, e o raciocínio como resultante do logos, isto é, como inerente à

dimensão racional, constituindo o elemento propriamente dialético da retórica.

(REBOUL, 2000, p.36).

Grize destaca que, na argumentação, o interlocutor não deve ser considerado

como um objeto a ser manipulado, mas um alter-ego , com o qual se partilha uma

visão. Em, Essais sur l’argumentation, Plantin (1990) sublinha que, ao argumentar, o

enunciador visa à modificação do sistema de crenças e representações de seu

interlocutor.

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Em seu texto, Ethos e experiência do discurso: algumas observações, Auchlin

propõe ver a noção de ethos, não na dimensão teórica, mas prática.

Em nossa prática ordinária do discurso, o ethos responde às questões empíricas efetivas que têm como particularidade serem mais ou menos coextensivas ao nosso próprio ser, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de nossa relação com a linguagem, onde nossa identificação introduz estratégias de proteção. (AUCHILIN, 2001, p. 222).

Sobre esta noção de ethos proposta por Auchlin, temos o seguinte comentário

feito por Mainguenau: “o importante, quando se é confrontado com essa noção, é,

pois, definir por qual disciplina ela é mobilizada, com qual ponto de vista, e no

interior de qual rede conceitual.” (MAINGUENEAU, 2006, p.71). Cabe lembrar que

Auchlin coloca, da seguinte forma, seu posicionamento teórico: “Apoiando-nos na

posição de Aristóteles, o ethos possui duas características centrais, inalienáveis:

a) ele é dialogal e reflexivo;

b) ele é casualmente dependente do discurso, ou emergente em relação ao

discurso.” (AUCHILIN, 2001, p.211).

Em nosso entendimento, o ethos, o pathos e o logos são inerentes à definição

de alma, em Aristóteles. Para ele, são três as funções da alma: duas irracionais, a

vegetativa e a sensitiva, e uma racional. A função vegetativa é responsável pela

nutrição, crescimento, reprodução e sem nenhuma interferência sobre a razão. A

função sensitiva, pelo conhecimento sensível-sensorial, seria da ordem do desejo,

do pathos e pode influenciar a razão. Já a função racional ou razão discursiva,

responsável pela atividade intelectual, tem a seguinte subdivisão:

a) razão teorética, que busca o conhecimento; a sapiência;

b) razão prática, que visa à ação ética do agente, o bem e a justiça, enfim a

sabedoria;

c) razão poiética ou técnica, responsável pelo saber fazer.

Considerando que o termo Logos tem vários significados, destacamos, dentre

eles, o de razão discursiva, isto é, a capacidade humana de saber pensar e falar.

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Essa problemática do pensar e do falar já estava presente em Platão (2001), que

narra no Teeteto, dentre outros, um diálogo entre os personagens Sócrates e

Teeteto sobre a questão: o que é conhecimento. Basendo-se na tese de Protágoras

“o homem é a medida de todas as coisas”, Teeteto afirma que “conhecimento é

sensação” (151e), isto é, há uma “perfeita identidade entre conhecimento e

sensação” (160e). Utilizando-se de sua maiêutica, Sócrates pede a Teeteto que

reflita um pouco mais e responda: “vemos com os olhos, ou por meio dos olhos? E

ouvimos com os ouvidos, ou por meio dos ouvidos?” Teeteto responde a Sócrates

“que é por meio dos órgãos, não com eles, que percebemos alguma coisa.” (184c).

Assim, é através dos órgãos do corpo e de suas funções que percebemos todo o

sensível. Mas o que nos permite diferenciar uma sensação de outra não pode ser

uma outra sensação, e sim através da ideia ou da alma “ponto de convergência

delas todas, por meio da qual, usada como instrumento, percebemos todo o

sensível.” (184d). Portanto, afirma Sócrates que não há conhecimento nas

impressões, “mas no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece,

para atingir a essência e a verdade; de outra forma é impossível.” (186d). Há nesse

diálogo de Platão uma diferenciação entre corpo e alma. O corpo como da ordem do

sensível, do desconhecimento, e a alma racional como da ordem do conhecimento.

O termo pathos pode ser entendido como sofrimento, paixão e passividade.

Sofrer é ser afetado por alguma coisa; a paixão está relacionada às emoções.

Condillac escreve que “uma paixão é um desejo dominante”. (CONDILLAC, 1963,

p.89). Mas a paixão está também relacionada à imagem que o outro faz de mim.

Quando somos tomados por paixão, ficamos passivos, tendo, como conseqüência, a

desmesura, o mesmo que perder a razão. Nesse sentido, Berlinck (2000) nos

esclarece que o pathos não é inerente ao corpo, vem de fora e rege nossas ações.

No entanto, cabe lembrar que Freud denominou o Id, como sede das paixões.

Em sua origem grega, o termo ethos tem o sentido de morada. Essa morada

simbólica humana tem duas vertentes: uma singular, o caráter, que é o modo como

o indivíduo administra o conflito entre a razão e o pathos. Outra social, intersubjetiva.

Tanto numa dimensão, quanto noutra, trata-se de uma relação eu-outro. Mas não se

pode pensar em ethos, sem levar em consideração a práxis, a ação, para consigo

mesmo e para com o outro. O ethos serve de base para a práxis, mas pode por ela

ser modificado.

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Em seu ensaio La curación por la palabra em la antigüidad clásica, Laín

Entralgo (1987) sublinha que, no pensamento platônico, encontramos uma

diferenciação entre logos dialético, que visa conhecer ou reconhecer a verdade e

logos retórico que busca, através da persuasão, suscitar crenças.

Outro ponto importante, destacado por Laín Entralgo, é o argumento

aristotélico de que o logos dialético e logos retórico são gêneros diferentes de

persuasão. Na verdade, Aristóteles afirma que são três os gêneros de persuasão

retórica: o gênero judicial, o gênero deliberativo, o gênero epiditico ou demonstrativo.

Assim, de acordo com nosso esquema, temos:

GENEROS DE PERSUASÃO

GÊNERO

FIM

DESTINATÁRIO

TEMPO

JUDICIAL

Justo ou injusto

Juiz

Passado

DELIBERATIVO

OU

POLÍTICO

Conveniente

ou

danoso

Membro

da

assembleia

Futuro

EPIDÍTICO

OU

DEMONSTRATIVO

Belo ou feio

Pessoa

elogiada

ou

vituperada

Presente

Quadro 2 – gêneros de persuasão

Fonte: Elaborado pelo autor

Como podemos observar:

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- no gênero judicial, o orador, baseando-se em algo do passado, tenta persuadir o

juiz de que determinada ação foi justa ou injusta;

- no gênero deliberativo, o orador, levando em consideração alguma ação futura,

tenta persuadir a assembleia de que tal decisão será conveniente ou danosa;

- no gênero epiditico ou demonstrativo, o orador tenta convencer seu destinatário de

que, no presente, algo é belo ou feio.

Assim, em cada gênero, o orador irá se utilizar dos argumentos próprios de

sua arte. O destinatário estará persuadido quando acreditar, admitir como verdade,

aquilo que o orador lhe diz.

Todavia, Laín Entralgo, partindo da retórica aristotélica, vai aventar a

possibilidade de mais um gênero: o terapêutico. Para o autor, dentre os gêneros de

persuasão da retórica, o que mais se aproxima do gênero terapêutico ou curativo é o

gênero deliberativo. Esta justaposição está baseada no fato de que a persuasão

deliberativa tem, como objeto, o possível no sentido daquilo que depende de nós.

Contudo, outro ponto importante da retórica aristotélica é a arte do orador,

que consiste nas três provas técnicas: o caráter ou ethos do orador; a disposição do

ouvinte e o que é dito com o discurso. Portanto, a persuasão só se torna eficaz

quando o discurso do orador toca as paixões dos ouvintes. Para Aristóteles, o

pathos provoca uma mudança tanto no corpo, quanto no modo de julgar e opinar.

Inspirando-se nesses argumentos aristotélicos, Pedro Alain Entralgo se pergunta: “si

no es este el caso del “orador médico” o sanador por la palabra, tal como Antifonte lo

fue em Corinto a fines del siglo V a.C., y tal como hoy lo son quienes a si mismos se

llaman psicoterapeutas.” (ALAÍN ENTRALGO, 1987, p.206). Em conformidade com o

autor, embora não saibam, os psicoterapeutas se utilizam da retórica aristotélica. É o

que se pode observar nas histórias, nos relatos dos casos clínicos de Freud.

Assim, tomando como base, os pressupostos teóricos acima relacionados,

iremos analisar, parcialmente, o seguinte discurso de Freud sobre a interpretação do

sonho de seus pacientes.

Como já expliquei [em [1]], quando empreendo o tratamento analítico de um paciente psiconeurótico, seus sonhos são invariavelmente discutidos entre nós. No decurso dessas discussões, sou obrigado a dar-lhe todas as explicações psicológicas que permitiram a mim mesmo chegar a uma compreensão de seus sintomas. A partir daí, fico sujeito a uma crítica implacável, por certo não menos severa do que a que tenho de esperar dos membros de minha própria profissão. E meus pacientes invariavelmente contradizem minha asserção de que todos os sonhos são realizações de

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desejos. Eis aqui, portanto, alguns exemplos do material de sonhos apresentados contra mim como provas em contrário. (FREUD, 1981, p.436).

Como podemos observar, o argumento freudiano de que os sonhos são

realizações de desejos, é contestado por seus pacientes. Ao caso que vamos nos

referir, a paciente, enquanto enunciador, antes de relatar o sonho, coloca o seguinte

contra-argumento: “vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto —

um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra

isso em sua teoria?”

Para nós, essa tese freudiana tem aqui uma intencionalidade, o desejo de

provar sua crença, baseada em sua Psicanálise, isto é, em sua razão-discursiva:

teorética, prática e poiética, de que “a análise nos demonstra, em todo caso, que o

sonho possui realmente um sentido e que este é a realização de um desejo”.

(FREUD, 1981, p. 436). Há, portanto, no sonho um pathos - o desejo - e um logos -

o sentido. Nota-se que Freud busca, com seu argumento, persuadir não só sua

analisanda, mas seus colegas de profissão, seus novos interlocutores e também,

seus futuros leitores.

Eis o sonho da paciente:

Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia. (FREUD, 1981, p.436).

No relato do sonho da paciente, está presente um desejo de oferecer uma

ceia e a crença de não poder realizá-lo, por ter apenas “um pequeno salmão

defumado”.

Antes de nos apresentar, a primeira análise do sonho feita pela paciente,

Freud nos mostra um perfil do marido dela. Trata-se de um açougueiro atacadista,

que está engordando muito e, por esse motivo, se propõe a fazer regime e a não

aceitar mais convites para cear.

Em sua primeira análise de seu sonho, a paciente diz sobre seu desejo de

comer, todas as manhãs, um sanduíche de caviar. Mas pede ao marido que não

atenda a sua demanda, como motivo para continuar a provocá-lo. Freud considera

essa análise feita pela paciente como “pouco convincente”.

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Após uma curta pausa, como que para vencer uma resistência, inicia-se a

segunda análise do sonho , realizada pela paciente, a pedido de Freud. Ela fala

que, na véspera, havia visitado uma amiga e que sente ciúmes do seu marido com

essa amiga, pois ele tem o hábito de elogiá-la. Mas, felizmente, sua amiga é magra

e seu marido gosta de mulheres mais cheiinhas. Quando indagada por Freud a

respeito do assunto sobre o qual conversava com a amiga, a paciente diz do desejo

da amiga de engordar um pouco e de ser convidada para jantar em sua casa. Freud

considera que o sentido do sonho, agora está claro. Convidar a amiga para jantar é

colaborar para que ela se torne mais cheiinha e chame, mais ainda, a atenção do

açougueiro.

Nesse diálogo da paciente com a sua amiga, observa-se a presença:

a) do pathos - ciúme, como estado psicológico dominante da cena do

sonho;

b) da crença que, ficando mais cheiinha, a amiga atrairia o desejo do

marido;

c) daí o desejo, presente no sonho, da impossibilidade de oferecer uma

ceia, pois só tinha um pedaço de salmão.

Ora, como podemos observar, na primeira análise do sonho feita pela

paciente, está implicado seu desejo, ou melhor, a não satisfação de seu desejo de

comer caviar. Na segunda análise feita por ela, o que está em jogo é o desejo de

sua amiga de ficar mais cheiinha e ser convidada para jantar. Em outros termos, o

temor de que, ficando a amiga mais cheiinha, atice a admiração, isto é, o desejo do

açougueiro. Quando Freud pergunta sobre o salmão, a paciente responde que, “oh”,

salmão defumado é o prato predileto da minha amiga.

Para que haja um diálogo esclarecido, Freud dá à analisanda as explicações

teóricas sobre os sonhos, capacitando-a a criticar, a contra-argumentar: vou lhe

contar “um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor

enquadra isso em sua teoria?”

E o que faz Freud? Convida a analisanda, para juntos, numa interatividade

discursiva, analisarem o sonho. É a partir dessa reflexão discursiva entre analisanda

e analista, isto é, do encontro dialogal entre a fala, o argumento de um e as

considerações do outro, que se desvelam a intencionalidade e os sentidos dos

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sonhos. Em nosso entendimento, o desejo pulsional de um sonho pertence à ordem

do pathos; o sentido de um sonho, ao logos. Desse modo, podemos afirmar que

este desvendar do pathos, pelo logos discursivo, ou seja, a descoberta da

intencionalidade e dos sentidos, até, então, inconscientes, relacionados à realização

desejante do sonho, é o que transforma o ethos, isto é, a subjetividade da

analisanda. Em outros termos, através da interação discursiva, possibilitar à

analisanda, àquela que fala, entender o que está dizendo, pensando, desejando: a

produzir uma significação. O que nos permite afirmar que há, na Psicanálise

Freudiana, o que designamos como uma “semântica dos sonhos”, vinculada à

realização de um desejo pulsional inconsciente. Esta prática psi, esse modo de

cuidar de si, o falar do pathos, do não verbal, do desejo pulsional inconsciente,

através do logos, da atividade verbal, possibilita à analisanda uma outra

identificação, uma outra imagem de si, uma mudança subjetiva, a criação de um

outro ethos. Temos, assim, a invenção de uma estilística existencial produzida

pelos efeitos do discurso na subjetividade.

Outro ponto importante a ser considerado é a relação entre os atos de fala

ilocucionais e a interpretação dos sonhos.

3.11 - Atos de fala ilocucionais e a interpretação dos sonhos

Vamos, portanto, dar continuidade à nossa reflexão sobre o sonho, acima

relatado, à luz da teoria freudiana e das propostas de Austin, Searle, Vanderveken e

Mari, relativas à intencionalidade e aos atos de fala ilocucionais.

Conforme nos indica Mari, para Austin, na compreensão de um ato de

linguagem é preciso que se leve em consideração:

a) o ato locutório: domínio das convenções linguísticas;

b) o ato ilocutório: domínio das convenções interlocutivas;

c) o ato perlocutório: domínio de intenções interlocutivas.

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Atos de fala ilocucionais - tais como asserções, ordens, promessas, perguntas

- são unidades constitutivas da conversação ou diálogo da forma F(p), onde F é uma

força ilocucional e p é uma proposição. Portanto, cabe à teoria lógica dos atos de

fala ilocucionais esclarecer quais são as forças ilocucionais de enunciações

possíveis.

São sete os componentes de cada força ilocucional:

a) um ponto ilocucional;

b) um modo de realização;

c) um conteúdo proposicional;

d) condições preparatórias;

e) condições de sinceridade;

f) grau de intensidade do ponto ilocucional;

g) grau de intensidade das condições de sinceridade.

Por (π) ponto ilocucional de uma força ilocucional, entende-se o que o falante

pretende fazer quando executa um ato com tal força. No entanto, há somente cinco

pontos ilocucionais e a cada um corresponde uma força ilocucional primitiva. Outro

componente importante da força ilocucional é o (µ) modo de realização. Nesse

sentido, são vários os modos de realização do ponto ilocucional. Em seu seminário

sobre Os aspectos da teoria dos atos de fala, Mari apresenta um esquema da

tipologia dos modos associados aos pontos ilocucionais de uma força.

Esquema dos pontos e modos de uma força ilocucional:

a) O (π) ponto assertivo consiste na representação de um estado de coisas

como real. π assertivo; com uma força ilocucional de asserção que se realiza

no modo indicativo.

Modos do assertivo;

µ: afirmação – afirmar, garantir, assegurar, firmar.

µ: testemunho – testemunhar, depor, jurar.

µ: predição – prever, predizer, adivinhar, imaginar.

µ: dúvida – supor, duvidar, desconfiar.

µ: negação – negar, contestar, refutar, recusar.

A seguir, apresentamos exemplificações colhidas do texto freudiano.

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Ato de fala Estrutura Freud: o fato de os sonhos realmente terem um significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser provado novamente pela análise em cada caso específico.

π: assertivo. Reporta a um estado de coisa. Pressuposto: o fato é verdadeiro. µ: afirmação

Quadro 3 – ato de fala - estrutura

Fonte: Elaborado pelo autor

b) π comissivo: com uma força ilocucional de comprometimento do falante

com uma ação futura.

Modos do comissivo:

µ:desejo - pretender, querer, ansiar.

µ: expectativa – esperar, ter expectativa de...

µ: recusa – recusar, evitar, deixar de...

µ: aceite – aceito, acato.

µ: promessa – prometer, intencionar.

Ato de fala Estrutura

Pois bem, vou lhe contar um sonho

cujo tema foi exatamente o oposto —

π: comissivo. Projeta uma ação

futura.

Pressuposto: o locutor é capaz de

realizar a ação.

µ: promessa.

Quadro 4 – ato de fala - estrutura

Fonte: Elaborado pelo autor

c) diretivo: com uma força ilocucional que se realiza no modo imperativo.

Consiste em fazer uma tentativa de levar o ouvinte a fazer alguma coisa.

π:diretivo

µ: ordem – ordenar, instruir, impor.

µ: comando – determinar, comandar.

µ: pedido – pedir, demandar.

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µ: solicitação – solicitar, requer.

µ: súplica – suplicar, implorar, rogar.

Ato de fala Estrutura

Perguntei-lhe o que significava isso, e

ela explicou que há muito tempo

desejava comer um sanduíche de

caviar todas as manhãs, mas relutava

em fazer essa despesa.

π: diretivo. Posição hierárquica entre

os interlocutores. Levou a analisanda

a dar explicações.

µ: pedido.

Quadro 5 – ato de fala - estrutura

Fonte: Elaborado pelo autor

d) declarativo: com uma força ilocucional de asserção que se realiza (inglês)

no modo indicativo. Consiste em produzir um estado de coisas em virtude da

enunciação.

π: declarativo

µ : mais formal – casar, batizar, declarar culpado ou inocente, etc.

µ: menos formal – definir, declarar, demitir, despedir.

Ex: “Eu vos declaro marido e mulher”. Quando dito por um padre, um pastor;

e) expressivo: com uma força ilocucional expressiva, que consiste na

expressão de atitudes ou estados psicológicos do falante a propósito de um

estado de coisas.

Modos do expressivo

π: expressivo µ:exaltativo – animação:Vamos! Vai! Coragem!

- surpresa: Ah! É? Opa! Oba!

- cumprimento: Bom dia! Salve!

π: expressivo µ:depreciativo – irritação: Sei, lá!

- xingamento: Merda! Sacana!

- deboche: Bobagem!

π: expressivo µ:dubitativo – Acho que-P - Penso que-P.

π: expressivo µ:sensitivo – Vejo que –P - Sinto que –P.

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Ato de fala Estrutura

“Oh”, exclamou ela, π: expressivo

µ: surpresa

Quadro 6 – ato de fala – estrutura

Fonte: Elaborado pelo autor

A partir da explicação filosófica destes cinco pontos de atos de fala

ilocucionais, buscamos demonstrar as vinculações possíveis entre o conteúdo

proposicional de uma ilocução e o mundo. Assim,

a realização de um ponto ilocucional de uma força F é essencial à execução bem sucedida de um ato ilocucional F(P). Na execução de um ato ilocucional F(P), o ponto ilocucional de F é sempre realizado sobre o conteúdo proposicional P. Por exemplo, numa asserção que P, o falante representa como real o mundo da enunciação o estado de coisas representado por P, numa promessa de P, o falante compromete-se a realizar no futuro a ação representada por P. Diferentes pontos ilocucionais têm diferentes condições de realização. Consequentemente, cada ponto ilocucional induz e pode ser identificado como uma relação π entre contextos possíveis de enunciação i e uma proposição. (VANDERVEKEN, 1985, p. 176).

Tal como num jogo, uma jogada restringe o número de contra-jogadas

possíveis; numa conversação, o ato ilocucional também vai restringir a forma de atos

ilocucionais possíveis. Em outros termos, trata-se de um jogo de linguagem. Assim,

diante da pergunta “que horas são”? O ouvinte pode, ou não responder quantas

horas são, porém, não faz parte ou não é esperado, que ele responda à esta

pergunta com o teorema de Pitágoras.

Entretanto, as forças ilocucionais podem impor condições relativas ao

conteúdo proposicional de um ato ilocucional. O conteúdo proposicional de uma

predição implica uma proposição futura em relação ao tempo da enunciação. Já o

conteúdo proposicional de um relato deve ser fixado no tempo de sua realização

verbal presente ou passado.

As condições preparatórias de uma força ilocucional estão atreladas ao

conjunto de fatos e estados de coisa, atribuídos tanto ao locutor, quanto ao

alocutário como pressuposto necessário para o desempenho de um ato. Nesse

sentido, Vanderveken afirma que “uma condição preparatória de uma asserção é

que o falante tenha evidências da verdade do conteúdo proposicional. Uma condição

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preparatória de uma promessa é que o falante seja capaz de realiza-la.”

(VANDERVEKEN, 1985, p. 177).

Sobre as condições de sinceridade, o autor nos esclarece que, na realização

dos atos ilocucionais, o locutor ou o falante expressa também estados psicológicos,

vinculados ao estado de coisas - representado pelo conteúdo proposicional. “Por

exemplo, um falante que afirma, expressa uma crença na verdade do conteúdo

proposicional. Um falante que promete fazer alguma coisa expressa uma intenção

de fazê-la. O falante é sincero se e somente se seu estado psicológico corresponde

àquele expresso, e é por isso que falamos de condições de sinceridade de forças

ilocucionais.” (VANDERVEKEN, 1985, p. 177).

3.12 - Análise do corpus – a interpretação do sonho – na perspectiva da psicanálise freudiana em conjunto com a teoria dos atos de fala.

A tese de Freud de que o sonho tem um sentido secreto e representa uma

realização de desejo é contestada por uma de suas pacientes, ao que ele responde

que a única forma de decidir, quanto ao sentido do sonho é analisa-lo. Nesse

sentido, Freud pede a sua analisanda que estabeleça um vínculo entre o relato do

sonho e os acontecimentos da véspera.

Assim, de acordo com a nossa interpretação, apresentamos o quadro 3 –

Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações da analisanda e do

analista - a seguir:

Loc./Aloc.11 Atos de fala Estrutura Freud O fato de os sonhos realmente terem um

significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser

π: assertivo. Reporta a um estado de coisa. pressuposto: o fato é

11 Locutor e Alocutário correspondem aos interlocutores envolvidos na interação comunicativa.

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provado novamente pela análise em cada caso específico.

verdadeiro. µ: afirmação

Analisanda O senhor sempre me diz que o sonho é um desejo realizado.

π: assertivo. Reporta a um estado de coisa . pressuposto: o fato é verdadeiro. µ: afirmação

Analisanda Pois bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto —

π: comissivo. Projeta uma ação futura. Pressuposto: o locutor é capaz de realizar a ação. µ: promessa

Analisanda um sonho em que um de meus desejos não foi realizado.

π: assertivo µ: negação

Analisanda Como o senhor enquadra isso em sua teoria?

π: diretivo µ: questionamento

Analisanda Foi este o sonho: “Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado.

π: assertivo µ: afirmação

Analisanda Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas.

π: assertivo µ: afirmação

Analisanda Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito.

π: assertivo µ: afirmação

Analisanda Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”

π: assertivo µ: afirmação π: assertivo µ: afirmação

Analista O marido de minha paciente (um açougueiro atacadista) (...) comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se (...) não aceitar mais convites para cear.

π: assertivo µ: hipótese

Analista —Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.

π: assertivo µ: afirmação

Analista Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa.

Reconstrução enunciativa do ato: esse ato teve a seguinte realização - π: diretivo. Posição hierárquica entre os interlocutores. Levou a analisanda a dar explicações.

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µ: pergunta Analista Naturalmente, o marido a deixaria obtê-

lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso. Essa explicação me pareceu pouco convincente.

π: assertivo µ: condição desconfiança do analista em relação à interpretação da analisanda. Reconstrução enunciativa do ato: π: diretivo µ: pedido

π: assertivo µ: impressão

Após uma pausa curta, como a que corresponderia à superação de uma resistência, ela prosseguiu dizendo que, na véspera, visitara uma amiga de quem confessava ter ciúmes porque seu marido (de minha paciente) estava constantemente a elogiá-la.

π: assertivo µ: afirmação

Felizmente, essa sua amiga é muito ossuda e magra, e o marido de minha paciente admira figuras mais cheinhas.

π: assertivo µ: afirmação

Perguntei-lhe o que havia conversado com sua amiga magra. Naturalmente, respondeu, sobre o desejo dela de engordar um pouco.

Reconstrução enunciativa do ato: π: diretivo µ: pergunta) π: asssertivo µ: afirmação

A amiga também lhe perguntara: “Quando é que você vai nos convidar para outro jantar? Os que você oferece são sempre ótimos.”

π: assertivo µ: afirmação

Agora o sentido do sonho estava claro, e pude dizer a minha paciente:

π: assertivo µ: afirmação

“É como se, quando ela fez essa sugestão, a senhora tivesse dito a si mesma: Pois sim!

π: assertivo µ: confirmação

Vou convidá-la para comer em minha casa só para que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais!

π: comissivo µ: desejo/intenção

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Prefiro nunca mais oferecer um jantar.’ π: comissivo µ: afirmação

O que o sonho lhe disse foi que a senhora não podia oferecer nenhuma ceia, e assim estava realizando seu desejo de não ajudar sua amiga a ficar mais cheinha.

π: assertivo µ: afirmação

O fato de que o que as pessoas comem nas festas as engorda lhe fora lembrado pela decisão de seu marido de não mais aceitar convites para jantar, em benefício de seu plano de emagrecer.”

π: assertivo µ: afirmação

Só faltava agora alguma coincidência que confirmasse a solução. O salmão defumado do sonho ainda não fora explicado.

π: assertivo µ: afirmação

“Como foi”, perguntei, “que a senhora chegou ao salmão que apareceu em seu sonho?"

π: diretivo µ: pergunta

“Oh”, exclamou ela,

π: expressivo µ: exaltativo – surpresa

“salmão defumado é o prato predileto de minha amiga!”

π: assertivo µ: afirmação

Quadro 7 - Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações da analisanda e do

analista Fonte: Elaborado pelo autor

Em conformidade com a Teoria dos Atos de Fala, temos, observando o

quadro acima:

π: ponto de realização:

a) assertivo;

b) diretivo;

c) comissivo;

d) expressivo.

µ: modo de realização:

a) afirmação, pergunta, dúvida, confirmação, impressão, por parte de Freud;

b) afirmação, promessa, negação, questionamento, surpresa, pedido, por

parte da analisanda,

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Θ: condição de conteúdo proposicional

- o tempo da ação é o passado.

∑: condição preparatória:

Locutor – Freud, enquanto psicanalista e autor da tese de que o sonho tem um

sentido oculto e representa uma realização de um desejo, é capaz de dar uma

interpretação/significação para o relato do sonho da analisanda.

Alocutário: a analisanda, baseando-se em seu próprio sonho, contesta a tese de

Freud.

Ψ: condição de sinceridade: Freud comprova, a partir da análise e da interpretação

feita em conjunto com a analisanda, a pertinência e a coerência de sua tese.

Quanto ao modo de ajustamento, temos que levar em consideração tanto os

argumentos de Freud sobre os sonhos, quanto os de Searle sobre intencionalidade

e atos de fala.

Em seu texto Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917), ao

abordar a finalização do processo onírico, Freud escreve que

Esta consiste no fato de o conteúdo do pensamento que havia sido regressivamente modificado – e que foi transformado numa fantasia que expressa um desejo – agora tornar-se consciente na forma de uma percepção sensorial. Contudo, cabe mencionar que, como ocorre com qualquer conteúdo perceptivo, também este foi objeto de uma elaboração secundária. Dizemos nesse caso que o sujeito alucina o desejo do sonho e, por conseqüência, acredita que esse desejo está se realizando de fato. (FREUD, 2006, p.85).

De acordo com o autor, temos, como partes essenciais, mas não exclusivas,

do trabalho onírico:

- formação de uma fantasia que expressa um desejo;

- regressão dessa fantasia até a alucinação.

Cabe, portanto, sublinhar que a proposta de Freud é esclarecer como ocorre

o processo de sonho no aparelho psíquico. De maneira bem sintética, já que o

sonho é algo complexo, podemos dizer que na formação do sonho:

a) há uma regressão dos resíduos diurnos pré-conscientes;

b) os pensamentos são transformados em imagens predominantemente

visuais, isto é, há um reenvio das representações de palavra às suas

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representações de coisa correspondentes. Trata-se, aqui, de um processo

de figurabilidade ;

c) há investimento nas lembranças-de-coisa do sistema Inconsciente;

d) as lembranças-de-coisa são regidas pelo processo primário;

e) estão presentes os mecanismos de condensação e de deslocamento que

movimentam os investimentos de energia entre as lembranças-de-coisa,

configurando, assim, o conteúdo manifesto do sonho. (FREUD, 2006, p.84).

Buscando compreender o fenômeno onírico e, respectivamente, seu relato e

sua interpretação, tendo em vista a Teoria dos Atos de Fala, apresentamos as

seguintes considerações:

a) Sobre o fenômeno sonho, por se tratar de um mecanismo de

transformação das palavras em imagens e ser algo inerente somente

ao sonhador, não temos como analisar;

b) Embora seja uma realização de desejo, o sonho não tem nenhum

sentido, isto é, o sonhador ignora a significação de seu sonho;

c) A realização do desejo no sonho é uma fantasia, trata-se de uma ficção

e não uma realização objetiva, social;

d) Para que ocorra o relato manifesto do sonho é necessário que haja a

transformação das imagens em palavras, a passagem do processo

primário ao processo secundário. Assim, as lembranças-de-coisas do

sonho são processadas, secundariamente, pelas representações de

palavras, pré-conscientes, isto é, a partir de então, podem ser

enunciadas;

e) No entanto, o que interessa ao analista não é o conteúdo do relato

manifesto, mas seu conteúdo latente, que remete à intenção e ao

múltiplo sentido do desejo pulsional presente no fenômeno do sonho;

f) Só a partir do relato manifesto do sonho, por sua dimensão dialógica

de endereçamento do analisando (como locutor) ao analista (como

alocutário), é que podemos nos utilizar da Teoria dos Atos de Fala;

g) Todo relato manifesto do sonho, independentemente do conteúdo,

corresponde a um ato de fala macro-assertivo, pois remete a algo

anterior a sua enunciação, embora possa conter, em seu interior,

outros padrões de atos. Em conformidade com Dijk, (...) “as seqüências

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de atos de fala devem também ser analisadas em um nível global. Isto

significa que a seqüência de atos de fala é mapeada como um todo de

atos globais ou macro-atos de fala.” (DIJK, 2004, p. 94);

h) Esses relatos são as condições de possibilidades para as traduções de

uma comissividade do próprio sonho, isto é, do sonho como uma

realização de um desejo inconsciente;

i) Quanto ao modo, pode ser de afirmação, testemunho, predição,

dúvida, negação;

j) O sonho, como uma realização ficcional do desejo , é essencialmente

comissivo; o relato de um sonho, enquanto reporta esse comissivo, é

assertivo, porém, enquanto um processo de interação analista-

analisando, ele não representa uma força específica, mas qualquer

uma.

Em resumo, no relato do sonho temos, portanto, uma sequências de atos de

fala, que demandam uma macrocompreensão. Como observa Dijk

Uma das importantes funções da macrocompreensão é a de permitir ao falante/ouvinte estabelecer associações entre os atos da fala em relação a um macroato de fala. Do contrário, não seríamos capazes de planejar e monitorar um longo discurso ou conversação, nem seríamos capazes de, durante a compreensão, entender as ações dos falantes durante todo o tempo da interação. (DIJK, 2004, p.94).

Nossa abordagem é, portanto, uma tentativa de ampliação da abordagem

freudiana do sonho, na medida em que buscamos compreender o relato do sonho,

enquanto ato de linguagem comissivo/desejante, isto é, como um discurso.

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↑↑↑↑ ↑↑↑↑ ↑↑↑↑

Análise I Feita pela analisanda

Análise II feita pela analisanda

Interpretação de Freud

Quadro 8 – Esquematização da análise e da interpretação do sonho

Fonte: Elaborado pelo autor

Como podemos observar, no esquema acima, Freud não explica o sonho

relatado pela analisanda. Ele pede a ela que reflita sobre o conteúdo apresentado na

cena onírica e que faça uma conexão com os acontecimentos do dia anterior ao

sonho, conforme as análises I e II das conversas da analisanda com o marido e com

a amiga. Só-depois é que Freud faz uma interpretação, isto é, produz uma

significação do que foi dito pela analisanda. Trata-se de um modelo de como ele

fazia a interpretação de um relato do sonho, isto é, através de uma reflexão

conjunta, de uma interação dialógica entre analisanda e analista. Desse modo, a

interpretação de um relato de um sonho é um processo inverso ao trabalho do

sonho. Então, para a interpretação do sonho, temos o que denominamos uma

enunciação terceirizada, onde passa a existir algum esforço, alguma intervenção por

parte do analista. Sendo assim, nossa hipótese é que a enunciação do sonho tem

um duplo aspecto de ficção e de realidade.

De acordo com Searle “o discurso ficcional oferece-nos uma série de atos de

fala simulados (como um faz-de-conta), em geral assertivas simuladas, e o fato de o

ato de fala ser apenas simulado rompe os compromissos palavra-mundo das

assertivas normais.” (SEARLE, 2002, p.24). Assim, tomando de empréstimo a

SONHO:

Desejo de oferecer salmão numa ceia

Regime do marido

para não engordar → não aceitar convite

para ceiar

Desejo da amiga de

ficar mais cheinha →mais admiração do seu

marido → Ciúme.

Desejo de não oferecer ceia à amiga →salmão

prato predileto da amiga

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noção de discurso ficcional, podemos dizer que o desejo de oferecer uma ceia,

como primeiro relato do sonho feito pela analisanda, corresponde a esse aspecto

ficcional. Ainda, segundo o autor, “(...) alguns de nossos estados Intencionais são

exercícios de fantasia e imaginação, mas, analogamente, alguns de nossos atos de

fala são ficcionais.” (SEARLE, 2002, p.24). Assim, nesse primeiro relato da

analisanda, as condições de satisfação e as condições de verdade são simuladas,

ou seja, são frutos da realização de uma fantasia inconsciente do desejo. No

entanto, é pedido à analisanda, em seguida, que pense nos acontecimentos do dia

anterior ao sonho. Aqui, não se trata mais de uma ficção, mas de algo referente a

um estado de coisas.

Tomando de empréstimo a Husserl o conceito de noema, podemos dizer que

o sonho deixa de ser apenas um fenômeno e ganha uma dimensão noemática. Pois,

em conformidade com Abbagnano (1999), o noema não é a coisa ou o objeto

próprio, mas a reflexão sobre a coisa, o objeto em seus diversos modos: o

percebido, o recordado, o imaginado.

Passamos, assim, da tese de que o sonho é uma realização de desejo,

(P:comissivo/M:desejo) algo inerente ao sonhador - mas, sem sentido -, para a tese

de que o relato do sonho tem uma intenção e um sentido, algo da ordem da

enunciação, do encontro dialogal entre analisanda e analista. Trata-se de uma

enunciação que terceiriza, porque implica a ‘interferência’ do analista. O que vem ao

encontro de nossa tese de uma topologia Eu-sujeito e a transferência de sentido na

enunciação.

Outro ponto relevante diz respeito à imaginação, tal como proposta por Searle

e a concepção freudiana do devaneio ou sonho diurno. Nesse sentido, Searle

escreve que “não é falha da asserção ficcional o seu caráter inverídico e não é falha

de um estado de imaginação que nada no mundo a ele corresponda.” (SEARLE,

2002, p.25). Sobre o fantasiar, Freud nos esclarece que “o homem feliz jamais

fantasia, somente o insatisfeito. As pulsões insatisfeitas são as forças impulsoras

das fantasias, e cada fantasia é uma satisfação de desejos, uma retificação da

realidade insatisfatória.” (FREUD, 1981, p.1344 -1345). Como ilustração dessa tese,

o autor dá o exemplo de um pobre órfão que está à procura de um emprego. No

caminho até à empresa, ele se permite um devaneio adequado à situação. O

conteúdo de sua fantasia é o seguinte: “consegue a colocação desejada, conquista

seus chefes, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com

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sua bela filha e passa a ser sócio de seu sogro, e depois, seu sucessor no negócio”.

Em conformidade com Freud, “esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma

ocasião do presente para projetar, segundo moldes do passado, um quadro do

futuro”. (FREUD, 1981, p.1344 -1345).

Portanto, há um vínculo entre tempo e fantasia que são perpassados pelo

desejo. Em outros termos, o trabalho anímico, isto é, psíquico, faz um

entrelaçamento entre um evento do presente que desperta o desejo através de uma

lembrança de uma experiência de satisfação anterior e cria uma situação imaginária

de satisfação futura.

Freud afirma que tanto os sonhos, quanto os devaneios são satisfações do

desejo, mas da ordem da fantasia e aponta para um importante detalhe: o excesso

de fantasias cria as condições para o desencadeamento de uma neurose ou de uma

psicose. Nos termos de Searle, fantasias e imaginações, embora tenham um

conteúdo, não de crença, mas estocado, têm suas condições de verdade e

condições de satisfação suspensas.

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4. SENTIDO, INCONSCIENTE, TRANSFERÊNCIA E TOPOLOGIA DO SUJEITO 4.1 – A semântica linguística

A discussão sobre o sentido, o significado, a significação e a interpretação

das palavras, de seu uso na interação dialógica humana é antiga. Encontramos, no

diálogo Crátilo de Platão (2001), uma proposta de investigação sobre o nomear as

coisas. Enquanto o personagem Crátilo sustenta que “ cada coisa tem por natureza

um nome apropriado” (383a), seu interlocutor, Hermógenes, defende o contrário:

“nenhum nome é dado por natureza a qualquer coisa, mas pela lei e o costume dos

que se habituaram a chamá-la dessa maneira.” (384d).

Por um lado, Sócrates vai demonstrar a Hermógenes a pertinência do

argumento de Crátilo. De acordo com Sócrates, os nomes não são atribuídos por

acaso, mas possuem certa justificativa. Por exemplo: o nome antropos significa o

que contempla o que vê. Característica exclusiva do animal homem. Psique é a

faculdade de respirar e de refrescar, isto é, a força que movimenta e mantém a

natureza. (400a). "Quando está presente ao corpo é causa da vida; quando o

abandona, ele perece e morre” (399e). “Uns afirmam que o corpo (soma) é a

sepultura (sema) da alma, por estar a alma em vida sepultada no corpo, ou então,

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por ser por intermédio do corpo que a alma dá expressão ao que quer manifestar

(semainei), é muito apropriado esse mesmo nome (sema) com o significado de sinal,

que lhe foi dado.” (400c).

Por outro lado, Sócrates vai mostrar a Crátilo que Hermógenes tem razão

quando sustenta que os nomes não têm, necessariamente, que ser iguais às coisas

que representam. Nesse sentido, Sócrates conclui que “a convenção e o costume

contribuem igualmente para exprimir o que temos no pensamento, no instante em

que falamos” (435b). Assim, o que Platão nos esclarece, através do personagem

Sócrates em seu diálogo com Crátilo e Hermógenes, é que a palavra pode tanto

nomear as coisas por natureza, quanto por convenção.

Ora, a reflexão dos filósofos antigos sobre a palavra - a linguagem - não se

restringia ao seu sentido, ao seu significado, mas também ao uso da palavra - da

linguagem - no tratamento dos males do corpo e da alma, isto é, numa psicoterapia

verbal.

Todavia, a psicoterapia verbal, o tratamento dos males do corpo e do espírito,

por meio da linguagem, não é uma novidade, uma invenção pertencente a nossa

modernidade tardia, ou melhor, uma invenção de Ana O., paciente de Breuer e

Freud.

A ação da linguagem sobre o psiquismo humano já estava presente nas

especulações dos pensadores da Grécia antiga. Nos termos de Laín Entralgo, “com

a morte de Aristóteles acaba na Grécia a especulação psicológica da palavra

humana, e portanto, acerca do poder curativo desta. (LAÍN ENTRALGO, 1987, p.

270, tradução nossa). 12 O autor aponta para importância social, na Grécia pós-

homérica, da palavra persuasiva, melhor dizendo, do discurso persuasivo capaz de

encantar, de enfeitiçar o ser humano. Daí a intenção de Gorgias e Antifonte de

utilizar, tecnicamente, a persuasão como método para a cura de certas

enfermidades. Em Platão, a palavra sugestiva, persuasiva é denominada de

Catarse. No sentido platônico, a catarse nos liberta do que, em nós, é estranho, que

nos perturba ou corrompe. (ABBAGNANO, 1999, P.120).

Laín Entralgo nos esclarece ainda que a utilização somente dos fármacos,

embora necessária, não é suficiente para a cura das enfermidades do corpo.

“Portanto, não seria “técnicamente” completo o saber de um médico, se este não é

12 “Con la muerte de Aristóteles se acaba en Grécia la especulacción psicológica de la palabra humana, y por tanto acerca del poder curativo de ésta.”

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capaz de produzir sophrsyme mediante sua palavra na alma de seus enfermos.”

(LAÍN ENTRALGO, 1987, p. 272, tradução nossa).13 Por sophrsyme entende-se,

aqui, o equilíbrio das crenças, sentimentos, impulsos, saberes, pensamentos e

estimações presentes no psiquismo humano. Desse modo, a sophrsyme, enquanto

virtude da alma humana, é uma condição prévia para que os fármacos produzam

efeitos somáticos benéficos para a saúde integral do corpo humano. No entanto, os

médicos hipocráticos não souberam incorporar, em sua atividade clínica, esse

legado de Platão.

Aristóteles utiliza o termo Catarse, tanto para se referir ao significado médico

de purificação, quanto à serenidade da alma humana provocada por um fenômeno

estético tal como a poesia, o drama, a tragédia, a música. (ABBAGNANO, 1999,

p.120).

Segundo Lain Entralgo, nesta operação sobre o ouvinte,

há três logoi distintos: um logos dialético ou convincente, outro retórico ou persuasivo e outro trágico, purgativo ou catártico. O estudo aristotélico do logos persuasivo se acha implicitamente referido à psicoterapia verbal; por contraste, o logos purgativo ou catártico tem na obra do filósofo uma essencial e expressa relação com a medicina. (LAÍN ENTRALGO, 1987, p. 272-273, tradução nossa).14

Transpondo essas reflexões para uma psicoterapia verbal, podemos dizer que

nela, o analisando pode se beneficiar, tanto daquilo que diz, quanto do que é dito por

seu analista. Lembrando que o contrário também pode acontecer, isto é, causar ao

analisando um malefício. É assim que entendemos o argumento de Platão, de que a

linguagem é um fármaco: remédio, veneno e cosmético. Em outros termos, numa

psicoterapia, um ato de fala - dependendo de seu sentido e intenção - pode curar,

matar ou não servir para, absolutamente, nada.

Da Grécia antiga a nossa modernidade tardia, surgiram vários modelos de

pensamento, tanto filosóficos quanto linguísticos, dedicados à reflexão sobre o

estudo do significado.

13 “Por tanto, no seria “tecnicamente” completo el saber de un médico, si este no é capaz de producir sophrsyme mediante su palabra en la alma de sus enfermos.” 14 há tres logoi distintos: un logos dialético o convincente, otro retórico o persuasivo y otro trágico, purgativo o catártico. El estúdio aristotélico del logos persuasivo se halla implícitamente referido a la psicoterapia verbal; por contraste, el logos purgativo o catártico tiene en la obra del filósofo una esencial y expresa relación con la medicina.

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A partir da leitura de Charles Taylor, Medina (2007) escreve que há, na

filosofia da linguagem, duas diferentes tradições semânticas: a designativa e a

expressiva.

A tradição designativa, voltada para a denotação, para a relação palavra-

objeto, para as relações representacionais entre a língua e o mundo, enfim para a

função de comunicação referencial ou representativa.

Em seu desenvolvimento, a tradição designativa contou com a contribuição de

dois pensamentos filosóficos importantes:

a) o naturalismo, tal como o proposto por Condillac, que aborda a linguagem

como fenômeno natural, explicável empiricamente, através de um observador

e do método científico;

b) o nominalismo que sustenta, contra o quadro ontológico da realidade, que

a linguagem é o lar do universal, isto é, que o significado geral de um termo

não é independente da linguagem. Em conformidade com Medina (2007),

para os nominalistas, as generalidades são produtos do uso da linguagem.

O que caracteriza a tradição designativa é o extensionalismo, que “identifica o

significado de um termo com sua extensão, isto é, aquilo do qual o termo é

verdadeiro, com a região do mundo que corresponde a ele (seja ele um indivíduo ou

conjunto de indivíduos, uma propriedade ou um conjunto de propriedades).”

(MEDINA, 2007, p.51).

No entanto, a tradição designativa tem sido criticada por tratar a linguagem

como um instrumento, por estar focada na designação e por não levar em

consideração os aspectos constitutivos da linguagem.

Para os filósofos românticos do século XIX, a tradição expressiva nos

esclarece que a linguagem tem, não só um valor instrumental, mas também um valor

“constitutivo, uma vez que ela constitui quem somos nós, como pensamos e como

vivemos.” (MEDINA, 2007, p.51). Sua característica principal é o enfoque

“intensionalista, isto é, os significados não residem no que existe lá fora

independentemente da linguagem, mas sim, no que é criado ou constituído pela

linguagem.” (MEDINA, 2007, p.51).

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Ora, embora nosso enfoque esteja voltado para a linguagem verbal,

consideramos um equívoco reduzir a linguagem, quer ao da tradição designativa,

quer ao da tradição expressiva.

4.2 - A questão da topologia do sujeito

Nossa topologia do sujeito é um modelo teórico para pensar a relação entre o

sujeito-eu, o inconsciente, a transferência e a linguagem.

Lynn Gamwell (2008), em seu texto O papel dos desenhos científicos na

pesquisa do século XIX e início do século XX, afirma que os desenhos eram

utilizados como registros, por cientistas do século XIX, para descrever as

observações feitas através do microscópio. Entretanto, não sendo possível essa

observação, eles faziam uso de diagramas para formular hipóteses. Esses

procedimentos científicos foram utilizados por Freud em seu percurso da neurologia

à psicanálise.

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Figura 10: desenho de célula feito por Freud

Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p. 20.

[...] Uma década após ter desenhado suas primeiras células, Freud estava diagramando processos mentais, mas, dada a fisiologia de seu tempo, não dispunha de ferramentas para observar o presumido substrato físico. Puramente especulativo, ele usava seus diagramas para guiar sua pesquisa e antecipar um efeito passível de ser observado. [...] à medida que foi se concentrando em funções mentais cada vez mais complexas, como distúrbios da linguagem e memória, Freud colocou de lado as tentativas de diagramar a estrutura fisiológica subjacente, como as vias neurológicas, e pôs a fazer imagens esquemáticas de estruturas psicológicas hipotéticas. (GAMWELL; SOLMS, 2008, p.22).

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Figura 11: Aparelho psíquico na segunda tópica

Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p. 142.

Todavia, a autora ressalta que a ciência daquela época, principalmente na

Inglaterra e na França, só considerava como científico, o método de observação

direta e rejeitava o método especulativo. Por outro lado, na Alemanha, cientistas

inspirados na tese kantiana de que o conhecimento do mundo natural não se faz

diretamente, mas por meio de construções mentais, fizeram uso em suas pesquisas

de modelos teóricos, como os diagramas de mundos/domínios não vistos.

(GAMWELL; SOLMS, 2008, p.142). Nesse sentido, o cientista alemão Herman von

Helmholtz defendia a idéia de que era necessário ao cientista fazer uso, em

conjunto, da especulação teórica e dos dados observados. Esse pensamento de

Helmholtz teve influência sobre Freud, tanto em suas pesquisas - como médico

neurologista -, quanto em sua metapsicologia - na construção de sua psicanálise -,

como médico psicanalista.

A topologia não é um conceito estranho nem à psicologia, nem à psicanálise.

No campo das ciências psicológicas, os precursores no uso do conceito de topologia

foram Kurt Lewin e Lacan. Kurt Lewin (1973) nos esclarece, em seu livro Princípios

de Psicologia Topológica (1936), que o termo topologia é uma referência à busca de

fundamentação teórica da psicologia em conceitos da topologia matemática e

complementada pela psicologia vetorial. No seu intuito de tornar a psicanálise uma

ciência, Lacan, em seu percurso teórico-clínico, sempre fez uso de conceitos

topológicos tais como: a banda de Moebius, o toro, o cross-cap, a garrafa de Klein, o

nó borromeano. Em nossa contemporaneidade, MD Magno tem se utilizado do

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conceito topológico da banda de Moebius ou contra-banda para explicação de seu

conceito de revirão.

Reconhecemos o mérito dos respectivos autores e suas contribuições para o

campo tanto da Psicologia, quanto da Psicanálise. No entanto, só iremos recorrer a

eles caso possam trazer algum esclarecimento para nossas questões.

Ao tomar também de empréstimo à matemática seus conceitos topológicos,

não temos a pretensão de “matematizar” nossa noção de sujeito, mas de tomá-lo

como metáfora, isto é, como um instrumento de raciocínio lógico. Nosso objetivo é

tentar, portanto, em conjunto com a Topologia e os diversos conceitos de sujeito eu -

oriundos da Filosofia, da Linguística, da Análise do Discurso, da Neurociência e da

Psicanálise - produzir um outro modo de pensar o sujeito na enunciação.

4.2.1 - O conceito de topologia

Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia, define Topologia como o "estudo

das propriedades das figuras geométricas que não variam mesmo quando as figuras

são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas propriedades

métricas e projetivas." (ABBAGNANO,1999, p.963).

Para Granon-Lafont (1990), a topologia geral é a ciência dos espaços e de

suas propriedades. De acordo com a autora, foi Leibnitz que, definiu em 1679, esse

novo ramo da matemática, como o estudo do lugar. Porém, sua consolidação

tornou-se viável com o primeiro Teorema de Euler em 1750. “Na perspectiva desses

trabalhos, em 1861, Moebius descobre a figura que passará à posteridade sob seu

nome: a banda de Moebius.” (GRANON-LAFONT, 1990, p.7). A autora afirma que,

no campo das denominadas Ciências Humanas, Lacan foi o precursor na utilização

da topologia de Moebius.

De acordo com Vallejo (1979), o termo Tópica vem de topos - lugar -, mas

não se trata de um lugar no sentido físico; não pertence à espacialidade coisa e,

portanto, não está colocado dentro das coordenadas da geometria euclidiana. No

entanto, destaca o autor, o termo tópica pode ser entendido como:

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a) re-presentação fundada na similitude e biunivocidade concreta, isto é,

numa duplicação homeostática do espaço, tal como uma mancha dobrada

sobre um eixo imaginário;

b) projeção que possibilita a formação dos objetos variando apenas a

quantidade fática do espaço a cobrir;

c) transformação que possibilita-nos pensar um quadrado como representante

de um círculo, isto é, “um círculo que é exatamente o mesmo quadrado com

as mesmas propriedades, mas em outra conformação. Esta Tópica que

executa um objeto passando-o pelas transformações que esse objeto

possibilita é a Tópica psicanalítica." (VALLEJO, 1979, p. 23-24).

Em outros termos,

A tópica psicanalítica é uma construção de um lugar pertinente ao objeto em questão e de acordo às transformações que esse objeto possibilita. Não tem importância nesta Tópica nem onde nem como, porque o que verdadeiramente importa é a transformação, a transformação executante. Poderíamos falar de um efeito de metáfora. (VALLEJO, 1979, p.25).

A topologia, principalmente aquela proposta por Moebius, serviu no campo da

psicanálise, a Lacan e a MD Magno para explicarem, respectivamente, o sujeito e o

modo de funcionamento do psiquismo humano. Em conformidade com Granon-

Lafont, na topologia de Moebius,15 o que é interno está em continuidade com o que é

externo. Não há mais dentro ou fora, mas dentro e fora estão em continuidade. No

entanto, podemos localizar, nesse percurso da fita de Moebius, um ponto limite, um

ponto de passagem de um dentro para um fora ou vice-versa, que não é nem dentro,

nem fora: é vazio. (GRANON-LAFONT, 1990, p.26-35).

Em sua entrevista a Bruno Latour, Serres (1999) diz que considera a

topologia como a ciência das proximidades e dos rasgos, portanto, diferente da

geometria métrica, ciência bem definida e estável. Desse modo, ele afirma que você

pode pegar um lenço e nele definir distâncias e proximidades fixas.

15 De acordo com Granon-Lafont (1990), para construir, materialmente, uma banda de Moebius, basta pegar uma tira retangular de papel, aplicar-lhe uma meia torção e uni-la, o que faz com que ela tenha uma só margem. Assim, ao percorrer a banda de Moebius, partindo do seu lado direito, após darmos uma volta, iremos chegar a seu lado esquerdo. Moebius a definiu como superfície unilátera. O direito e o esquerdo se diferenciam somente através de um acontecimento temporal. “O tempo, como um contínuo, é que faz a diferença entre as duas superfícies. Se não há mais duas medidas para a superfície, mas somente uma margem, o tempo se impõe para dar conta da banda.”

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Em torno de um pequeno círculo que você desenha próximo a um lugar, você pode marcar pontos próximos e medir, pelo contrário, distâncias longínquas. Tome em seguida o mesmo lenço e amasse-o, pondo em seu bolso: dois pontos bem distantes se vêem repentinamente lado a lado, até mesmo superpostos; e se além disso, você o rasgar em certos lugares, dois pontos próximos podem se afastar bastante. (SERRES, 1999, p.82).

Portanto, enquanto um modelo matemático, a topologia possibilita pensar, em

relação ao tempo e ao espaço, o que está próximo, como estando distante. Trata-se

de uma dobradura.

4.2.2 – Bruno Latour – da referência fixa à referên cia instável

Para Bruno Latour (2001), a Filosofia da Linguagem tende a reduzir a lacuna

existente entre as esferas díspares das palavras e do mundo à busca de

correspondência e referência. Em sua perspectiva, as noções fixas de coisas e

palavras são obsoletas, pois

O conhecimento, é de crer, não reside no confronto direto da mente com o objeto, assim como a referência não designa uma coisa por meio de uma sentença verificada por essa coisa. Ao contrário, a cada etapa reconhecemos um operador comum, que pertence à matéria num dos extremos e à forma no outro, entre uma etapa e a seguinte, há um hiato que nenhuma semelhança pode preencher. (LATOUR, 2001, p.86).

Em conformidade com o autor, o equívoco da tradição filosófica, mais

precisamente de Kant, foi adotar o modelo bipolar - no qual as coisas em si estão

num extremo; o entendimento humano, noutro e o fenômeno como ponto de

encontro entre ambos.

O mérito de Latour está em defender um outro modelo, no qual “os

fenômenos são aquilo que circula ao longo da cadeia reversível de transformação,

perdendo a cada etapa algumas propriedades a fim de ganhar outras que as tornem

compatíveis com os centros de cálculo já instalados.” (LATOUR, 2001, p.86). Nesse

modelo, a referência é instável e avança do centro para as extremidades de modo

contínuo.

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Para Latour, “Jamais conseguirei verificar a semelhança entre minha mente e

o mundo, mas posso, se pagar o preço, estender a cadeia de transformação sempre

que a referência verificada circular ao longo de substituições constantes.” Diante

disso, ele pergunta se “essa filosofia “deambulatória não será mais realista e

certamente mais realística que o antigo acordo?” (LATOUR, 2001, p. 86).

Dentro dessa perspectiva, a Ciência não é uma pintura realista que nos

proporciona uma cópia exata do mundo, mas vincula-nos a um mundo transformado,

construído. Não se tem aqui adequação, e sim sequência de mediadores, cadeias

de transformações.

Para darmos prosseguimento às nossas reflexões, as categorias de topologia,

acima descritas, em especial a de Moebius, serão utilizadas por nós para pensarmos

a categoria de sujeito em seu vínculo com a transferência de sentido na enunciação.

4.3 – Semântica do discurso e topologia do sujeito

Ora, a noção de sujeito, no quadro de uma semântica do discurso, é algo da

ordem da complexidade e de uma multiplicidade de perspectivas, na maioria das

vezes, incongruentes. Não é nosso interesse, neste momento, discutir tal questão,

mas nos aproximarmos das teorias, que estão na rota de convergência com o tema

de nossa pesquisa. Aqui, vamos restringir nossa reflexão sobre o lugar do sujeito na

linguagem tomando como ponto de partida, no campo da Análise do Discurso, as

considerações de: Charaudeau, Adan e Mari.

Para Charaudeau, o sujeito do discurso é polifônico, dividido em vários tipos

de saberes, conscientes, não conscientes e inconscientes. O sujeito se desdobra em

desempenhar dois papéis alternadamente: por um lado, o de sujeito que produz um

ato de discurso e imagina a reação de seu interlocutor; por outro, o de sujeito

receptor e interpretante deste ato de linguagem. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,

2004, p.458). No entanto, a teoria de Charaudeau tem um alcance mais amplo. Em

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conformidade com Adan, não se deve pensar em sujeito falante, para nos referirmos

a todo indivíduo que produz linguagem. Pois nela não estão presentes diferenças

importantes sobre o sujeito que produz, que recebe e que interpreta a linguagem.

Figura 12: Sujeito falante Fonte: CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.459.

Para melhor esclarecimento, temos:

Dizemos então que o sujeito falante tem uma competência lingüística, ou seja, que ele possui a capacidade de utilizar os sistems de uma determinada língua para construir ou reconhecer corretamente as formas (morfologia), respeitando as regras de combinação (sintaxe) e levando em consideração o sentido das palavras (semântica). (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.459.).

Em seu texto Os lugares do sentido, Mari (1991) aponta para o fato de que a

análise da significação numa língua natural está cercada de controvérsias. A partir

dessa constatação, o autor coloca a seguinte questão: “De onde vem o sentido?”

(MARI, 1991, p.4). Para ele, são três os lugares privilegiados da produção de

sentido: o sistema, o sujeito e a história. Aqui, daremos ênfase à análise feita sobre

a concepção de sujeito, tendo em vista que ela está entrelaçada, tanto ao sistema,

quanto à história. Para Mari,

Aqui o sujeito se delineia, então, como prerrogativa de linguagem, o que garante, em decorrência, a sua presença em qualquer forma discursiva. (...)

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a hipótese do sujeito como lugar de produção de sentido faz, portanto, ressaltar dois pontos importantes: (a) o sujeito como tensão entre usuários e o sistema e (b) o sujeito como prerrogativa de linguagem. (MARI, 1991, p.20-21).

Podemos destacar, nas hipóteses defendidas por Mari, dois pontos

importantes: primeiro, não há discurso sem sujeito; segundo, o sujeito como lugar de

produção de sentido. No entanto, o autor vai sustentar que são três as idéias de

sujeito como prerrogativas da linguagem:

- Primeira ideia: o sujeito tem a linguagem como condição.

Em sua interpretação do pensamento de Benveniste, Mari salienta que a

constituição do sujeito se dá em decorrência do conflito entre a cadeia significante e

os significados: “mas o que institui o sujeito é sua inscrição na cadeia significante”.

(MARI, 1991, p.22).

Os psicanalistas, de modo geral, dizem que a linguagem dos linguistas nada

tem a ver com a linguagem em Psicanálise. O próprio Lacan, para se diferenciar

daquilo que faziam os linguistas, criava neologismos, tais como: a-lingua,

linguisteria. Para Lacan, o significante é aquilo que representa um sujeito para outro

significante e o sujeito é aquilo que um significante representa para outro

significante.

Ora, qual seria a diferença entre a categoria de sujeito proposta por

Benveniste e Lacan? Talvez, o fato de Lacan ter dado ênfase ao significante e

abolido o significado. Por sua vez, Mari sublinha que a criatividade linguística está

vinculada às novas cadeias significantes. Contudo, o significado não se torna alheio

à proliferação das cadeias significantes. Assim, por um lado, temos que a avaliação

analítica, ao visar aos processos de produção do sentido, dá maior ênfase ao

predomínio do significante sobre o significado. Por outro, os interesses pragmáticos,

visando aos efeitos de sentido, priorizarão o significado.

Penso que, numa psicoterapia verbal, é necessário se levar em consideração,

tanto a produção de sentido, quanto os efeitos de sentido. Em minha concepção, a

significação do discurso do sujeito pode aflorar, quer por meio do predomínio do

significante, quer do significado. Em síntese, no plano discursivo, a linguagem é

condição de existência do sujeito.

Segunda idéia: o sujeito se constitui como uma condição para linguagem.

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Em conformidade com Mari, o sujeito, ao se confrontar ou reproduzir o

sistema, torna-se um participante ativo na construção do sentido; o qual é

considerado pelo autor como um intermediário entre o sujeito e o objeto. Em outros

termos “o sentido passa aqui a construir a realidade que, ainda que não se preste a

uma verificação fatual, pode ser analógica e alguma admissível.” (MARI, 1991, p.25).

Ora, numa psicoterapia verbal, por meio do discurso, o analisando passa da

posição passiva para a ativa. É o sujeito que constrói o sentido de seu sofrimento,

de sua angústia, de seu sintoma, via transferência com seu psicoterapeuta ou seu

psicanalista.

Terceira idéia: a condição na linguagem para a constituição do sujeito.

Trata-se da emergência do sujeito sob condições históricas. Nesse sentido, “o

sujeito flutua assim entre componentes aléticos (o poder dizer) e compromissos

deônticos (dever dizer) e é nessa flutuação e pela própria opacidade dos limites

desses compromissos que se estabelece a tensão que mais uma vez marca o

sujeito.” (MARI, 1991, p.25).

Tendo em consideração a questão da linguagem no campo psicanalítico,

pode-se dizer que as reflexões de Mari sobre a relação do sujeito com a linguagem

estão muito mais próximas de um possível diálogo com a teoria de Lacan sobre a

linguagem - isto é, as teses de Lacan de que “o inconsciente é estruturado como

uma linguagem”; “o inconsciente é o discurso do Outro” - do que com o

pensamento freudiano. Desde o texto das Afasias (1891) até suas duas tópicas, a

ênfase dada por Freud diz respeito à ligação da representação de palavra, quer com

a representação de objeto, produzindo uma significação, quer com a representação

de coisa inconsciente, tornando-a pré-consciente.

Ora, numa psicoterapia verbal, inspirada na psicanálise, temos no discurso do

sujeito, tanto processos psíquicos conscientes, quanto inconscientes, como também

processos sociais, ideológicos entrelaçados pelo desejo pulsional. Nesse sentido,

cabe-nos perguntar: o que seria uma semântica do inconsciente?

4.4 – Semântica do inconsciente: a problemática sob re inconsciente, linguagem e a topologia do sujeito

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Na obra freudiana há duas tópicas do aparelho psíquico, nas quais

encontramos uma topologia do sujeito. Na verdade, a denominada segunda tópica é

uma reformulação conceitual, isto é, teórico-clinica, da primeira tópica. Nesse

sentido, por termos já trabalhado questões atinentes à primeira tópica do aparelho

psíquico, nossa reflexão estará voltada para o texto O Eu e o Id, escrito por Freud e

publicado em 1923.

O autor inicia seu texto delimitando no psíquico a diferença entre duas

categorias: consciente e inconsciente. Estar consciente tem, como característica, ser

breve e refere-se a uma percepção imediata. No entanto, sua experiência clínica

com as neuroses de transferência, com as interpretações de sonhos e também com

a hipnose, levaram-no a apontar para a existência de processos psíquicos

inconscientes que afetam, de modo significativo, a vida psíquica, sem que haja

nenhuma interferência da consciência. Embora estas ideias inconscientes tenham

uma considerável intensidade, elas encontram resistências que não permitem que

se tornem conscientes.

Entretanto, se tais idéias pudessem se tornar conscientes, seria possível constatar quão pouco elas diferem de outros elementos reconhecidamente psíquicos. Ocorre que, pela técnica psicanalítica, é possível, sim, suspender a ação das forças opositoras e trazer à tona essas idéias, torna-las conscientes. (FREUD, 2007, p.29).

Nessa dimensão, o que mantém essas ideias no estado inconsciente é o

recalque . Portanto, ele funciona como um protótipo para o entendimento do

conceito de inconsciente. Dentre as instâncias psíquicas: o Id, o Eu e o Supra-eu, o

responsável pelo processo de recalque é o Eu. No entanto, aponta Freud, na

análise, o Eu terá que se confrontar com o que foi recalcado. Assim, toda vez que,

numa análise, a cadeia associativa feita pelo analisando se aproximar do recalcado,

ele pára sua associação, isto é, ele se depara com uma resistência. Desse modo,

por um lado, o Eu é a instância que recalca uma ideia e, por outro, que coloca

resistência a essa mesma ideia. A partir de então, Freud nos diz que a neurose não

é somente um conflito entre o consciente e o inconsciente, mas sim, um conflito

entre o Eu coeso e um recalcado que dele se cindiu. Temos aqui uma diferenciação

importante:

- o Eu, na primeira tópica, pertence ao sistema pré-consciente/consciente:

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Figura 13. Esquema do aparelho psíquico no texto sobre a interpretação dos sonhos. Fonte: FREUD, 1969.

- na segunda tópica, o Eu é tanto consciente, quanto inconsciente:

Figura 14. Desenho do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no texto O Eu e o Id.

Fonte: FREUD, 1969.

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Figura 15. Diagrama do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no texto da conferência XXXI.

Fonte: FREUD, 1969.

Para Freud, todas as percepções são conscientes, sejam elas externas -

como as percepções sensoriais, ou internas como os sentimentos.

Mas, e quanto aos processos de pensar? Ora, os processos psíquicos

inconscientes ou processos de pensar, tendo como conteúdo as representações de

coisa, só tornam-se conscientes quando vinculados às representações de palavra do

pré-consciente. O que nos remete ao esquema psicológico da palavra, presente no

texto A interpretação das afasias: um estudo crítico, escrito por Freud em 1891,

época em que exercia a função de médico neurologista.

Figura 16: Esquema Psicológico da representação-de-palavra, refere-se ao texto A interpretação das Afasias, 1891, está presente no apêndice C do texto O Inconsciente, 1915.

Fonte: FREUD, 1969. Cabe perguntar, no entanto, o que são representações de palavra? São

traços mnêmicos de percepções acústicas. Com exceção dos sentimentos, todo

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conteúdo interno do aparelho psíquico, para se tornar consciente depende destes

traços mnêmicos de percepções acústicas, isto é, das imagens sonoras das

palavras. O que leva Freud a afirmar que “a palavra é essencialmente o resto-de-

recordação da palavra ouvida.” (FREUD, 2007, p.36).

Aqui, cabe fazer uma distinção que consideramos importante para o

entendimento de nossa pesquisa sobre a linguagem e seus efeitos na subjetividade.

Baseando-nos no esquema psicológico da representação de palavra, podemos

afirmar; por um lado, que os processos internos do pensar tornam-se pré-

conscientes, isto é, sua significação se dá através do vínculo entre a representação

visual dos objetos e as imagens sonoras das palavras; por outro, que o ato de fala

depende do entrelaçamento da imagem sonora da palavra, com a imagem motora.

Esta seria, então, a diferença entre a função da linguagem no pensar e no falar. O

mesmo raciocínio valeria tanto para o escrever, no qual a imagem sonora aciona a

imagem da escrita; quanto para o ler, onde temos a imagem sonora ativando a

imagem da leitura.

Nossa tese é que o pensar inconsciente é um processo psíquico primário, no

qual temos, como categorizações, as representações de coisas. O pensar pré-

consciente é um processo psíquico secundário, no qual temos, como

categorizações, as representações de palavra.

Outro ponto importante a ser destacado é que os mecanismos de

condensação e deslocamento fazem parte do processo psíquico primário

inconsciente .16 Nosso intuito a seguir é buscar uma aproximação entre os pares de

conceitos condensação e deslocamento, tal como proposto por Freud – e os

conceitos de metáfora e metonímia, advindos de um outro campo - o linguístico -,

mais precisamente de uma abordagem inovadora, proposta por Lakoff e Johnson

(2002).

Em Metáforas da vida cotidiana (2002), esses autores, seguindo a trilha

iniciada por Reddy, sustentam que nossas metáforas não são simples abstrações da

linguagem, mas estão ligadas, tanto as nossas percepções do mundo, quanto as

nossas vivências corporais. Assim, eles assumem que “as teorias do sentido

dominantes até então na filosofia e na linguística ocidentais eram inadequadas e que 16 Cabe lembrar que Lacan fez uma aproximação entre condensação e deslocamento, respectivamente, com metáfora e metonímia. No entanto, não é nosso objetivo, nesse momento, refletir sobre tal perspectiva.

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o termo “sentido” nessa tradição tem muito pouco a ver com o que as pessoas

consideram significativo em suas vidas.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 43). Em

outros termos, o nosso sistema conceptual ordinário é metafórico e normalmente

não consciente:

Um dos meios de descobri-las é considerar a linguagem. Já que a comunicação é baseada no mesmo sistema conceptual que usamos para pensar e agir, a linguagem é uma fonte de evidência importante de como é esse sistema. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.46)

Desse modo, a metáfora faz parte da vida cotidiana, não se restringindo ao

uso que dela se faz na poesia, mas ela está presente, também, em nossos

pensamentos e nas nossas ações.

Destacamos, a seguir, alguns exemplos fornecidos por Lakoff e Johnson

(2002, p. 46-51).

Discussão é guerra:

a) Seus argumentos são indefensáveis;

b) Ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação;

Tempo é dinheiro:

a) Você está desperdiçando meu tempo;

b) Tenho investido muito tempo nela.

Ora, numa situação psicoterápica, os analisandos fazem uso constante de

metáforas. Trata-se, aqui, segundo nosso entendimento, das proposições teóricas

feitas por Lakoff e Johnson, de metáforas orientacionais, relacionadas com a

orientação espacial de nosso corpo: “para cima – para baixo, dentro – fora, frente –

trás, em cima de – fora de (on-off), fundo – raso, central – periférico.” (LAKOFF;

JOHNSON, 2002, p.59). Em conformidade com os autores, “mesmo que nossa

experiência emocional seja tão fundamental quanto nossa experiência espacial e

perceptiva, nossas experiências emocionais são muito menos claramente descritas

em termos do que fazemos com nossos corpos.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002,

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p.129). Para exemplificar, podemos destacar alguns enunciados, colhidos ad hoc, de

nossa prática clínica:

a) “Hoje estou muito deprimido, meio pra baixo;”

b) “Estou mais contente com meu trabalho e isso me deixa mais pra cima;”

c) “Agora, tenho a impressão que cheguei ao fundo do poço;”

d) “Parece que tirei um peso da minha cabeça;”

e) “Sinto que dentro de mim, algo mudou;”

f) “Falei para ele tudo o que estava entalado na minha garganta, acho que

coloquei tudo para fora;”

g) “Antes eu me considerava o centro do mundo;”

h) “Sempre fiquei para trás, depois de muito sofrer, aprendi, à força, me

colocar sempre à frente, a disputar meu lugar ao sol;”

i) “Ela é muito bonita, mas sem conteúdo, muito rasa, intelectualmente;”

j) “Quando ele terminou comigo, fiquei rastejando, agora estou de pé

novamente e pronta para um amor diferente;”

k) “No início de nosso casamento nós éramos muito unidos, agora estamos

cada vez mais distantes”.

Podemos observar, nesses enunciados, o uso de metáforas orientacionais

corporificadas sendo usadas para descrever estados emocionais.

Na teoria de Lakoff e Johnson a metonímia tem, por um lado, uma função

referencial, o que torna possível usarmos uma entidade para representar outra; por

outro lado, ela resguarda a função de propiciar o entendimento. Vale destacar

alguns exemplos, apresentados pelos autores:

a) “Ele gosta de ler o Marquês de Sade. (= o que o Marquês escreveu);”

b) “Ele está na dança/Ele dança. (= na profissão da dança);”

c) “O acrílico invadiu o mundo da arte. (= o uso de tinta acrílica);”

d)“O Times ainda não chegou à coletiva. (= o repórter da Times).”

Exemplos clínicos:

a) “Descobri que ele é um cara de pau.” (= mentiroso);

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b) “Acho que ela não está batendo bem da bola.” (= do juízo);

c) “Quando me apaixonei, não sabia que ele era um D. Juan.” (= um

conquistador, um sedutor).

No entanto, podemos ampliar um pouco mais nossa reflexão sobre a

importância da metáfora, em companhia do pensamento de Ricoeur. Em seu livro A

metáfora viva, de modo específico, no capítulo sobre A metáfora e a semântica do

discurso, o autor nos chama a atenção para os seguintes pontos:

a) a definição de metáfora, como transposição do nome, não é falsa, mas,

como coloca Leibniz, somente nominal e não real. O que vai diferenciá-las é

que “a definição nominal permite identificar uma coisa; a definição real mostra

como ela se dá.” Assim, “a retórica não considera somente a palavra, mas o

discurso. Uma teoria do enunciado metafórico será uma teoria da produção

do sentido metafórico”. (RICOEUR, 2005, p.107-108);

b) em conformidade com Benveniste, “a ordem do signo deixa fora de si a

ordem do discurso.” (RICOEUR, 2005, p.113);

c) baseado também em Benveniste, “todo discurso se produz como um

acontecimento, mas se deixa compreender como sentido”;

d) em sua teoria sobre a significação, Grice aponta para a distinção entre a

significação do enunciado , da enunciação e de quem enuncia . E mais:

que tal diferenciação vai ao encontro das diferenças sublinhadas, por

Benveniste, entre a instância de discurso ou o significado como contrapartida

do significante, tal como proposto por Saussure e a intenção de discurso, isto

é, o que o locutor quer dizer. “O significado é de ordem semiótica, a intenção,

de ordem semântica: é esta que Paul Grice visa em sua análise.” (RICOEUR,

2005, p.115).

Com esses argumentos, esperamos ter apontado a pertinência de nossa tese,

de que as metáforas, presentes na linguagem, dependem das categorizações das

representações de coisa inconscientes. Em outros termos, as metáforas estão

vinculadas a um processo de reentrada entre representações de coisa e

representação de palavra.

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Em resumo, as metáforas usadas pelos analisandos, na situação

psicoterápica ou analítica, são um modo de expressão de seus sentimentos, de suas

emoções, de seus desejos, de seus processos psíquicos, tanto conscientes, quanto

inconscientes. Sendo assim, podemos afirmar que as metáforas têm um efeito de

sentido sobre o sujeito do discurso. Como reconhece Ricoeur, via o pensamento de

I.A. Richards, o exemplo da psicanálise, nos possibilita perceber “o horizonte do

problema retórico: se a metáfora consiste em falar de uma coisa nos termos de

outra, não consistirá também em perceber, pensar ou sentir, a propósito de uma

coisa, nos termos de outra?” Tal consideração aproxima a metáfora do conceito de

transferência.

Portanto, em relação às metáforas, é preciso considerar tanto seus

significados, quanto seus sentidos e intenções e que dizem respeito, segundo nossa

proposta, à topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação.

Em sua abordagem filosófica da Psicanálise de Freud, mais especificamente,

em sua proposta de uma Arqueologia do Sujeito, Ricoeur nos esclarece que

Podemos agora compreender, sob o título de Arqueologia do Sujeito, essa problemática da “presentação afetiva”, enquanto distinta da “presentação representativa”; a psicanálise é o conhecimento limítrofe do que, na representação, não era representação. O que se presenta no afeto e não entra na representação é o desejo como desejo. A irredutibilidade do ponto de vista econômico a uma simples tópica das representações atesta que o inconsciente não é fundamentalmente linguagem, mas somente impulso para a linguagem. O “quantitativo” é o mudo, o não-falado e o não-falante, o inominável na raiz do dizer. Mas, para dizer esse não-dizer, a psicologia já não tem senão a metáfora energética: carga, descarga; a metáfora capitalista: aplicação, investimento; e toda a série de suas variantes. O que, no inconsciente, é suscetível de falar, o que é representável, remete a um fundo não simbolizável: o desejo como desejo. Está aqui o limite que o inconsciente impõe a toda transcrição lingüística que se queira exata. (RICOEUR, 1977, p.367).

Assim, podemos pensar na possibilidade de uma sintaxe, como também, de

uma semântica do inconsciente, desde que vinculadas ao desejo pulsional, à

dimensão econômica. Pois, em conformidade com Freud, a metapsicologia visa

descrever um processo psíquico em suas dimensões tópica, econômica e dinâmica.

O que nos leva a não concordarmos com a tese de Lacan de que o inconsciente é

estruturado como linguagem, pois, essa formulação não abarca a dimensão

pulsional .

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Outro aspecto importante, tal como podemos observar, tendo em vista o

funcionamento do aparelho psíquico descrito no capítulo. VII de A interpretação de

sonhos, é que há, tanto um sentido progressivo em direção à palavra, quanto um

sentido regressivo em direção à imagem. Sem essa ideia da dinâmica psíquica não

haveria como explicar o sonho, seu relato e sua interpretação. Portanto, seria mais

pertinente e coerente, tendo como perspectiva, o inconsciente como representação

de coisa e o pré-consciente como representação de palavra, na primeira tópica

freudiana, dizer, por nossa própria conta e risco - que o pré-consciente é

estruturado como linguagem . Em outros termos, o que estamos postulando é que

a concepção de inconsciente de Freud e de Lacan são diferentes e não

complementares . Essa não diferenciação tem prejudicado o diálogo entre Análise

do Discurso e Psicanálise.

Ora, no entanto, se a hipótese freudiana de que o tornar algo consciente

depende da ligação entre a representação de coisa, inconsciente e a representação

de palavra, pré-consciente, isto é, possibilita-nos compreender a passagem do

processo primário ao processo secundário no aparelho psíquico, embora necessária,

ela nada nos explica a respeito da interação discursiva entre analisando e analista.

Não estaríamos aqui diante de um processo terciário ?

Em seu texto Discurso das Mídias, Charaudeau salienta que “o discurso não é

a língua, embora seja com ela que se fabrique discurso e que este, num efeito de

retorno, a modifique.” (CHARAUDEAU, 2006, p.40).

Outro ponto fundamental a ser sublinhado é o fato de o sentido de um

discurso não estar colocado previamente, mas de ser construído, por um sujeito,

através de um duplo processo de semiotização; conforme aponta Charaudeau:

- intrasubjetivo: processo de transformação, no qual o sujeito visa transformar o

mundo a significar em mundo significado, isto é, mundo a descrever e comentar;

- extradiscursivo: processo de transação, no qual o sujeito dá ao ato de linguagem

uma significação psicossocial. Aqui, está em jogo, a identidade do interlocutor, o tipo

de relação a ser estabelecido e, baseado nesta identidade e nesta relação, o tipo de

regulação. Trata-se de um mundo descrito e comentado.

O ato de informar participa desse processo de transação, fazendo circular entre os parceiros um objeto de saber que, em princípio, um possui e o outro não, estando um deles encarregado de transmitir e o outro de receber, compreender, interpretar, sofrendo ao mesmo tempo uma modificação com relação a seu estado inicial de conhecimento. (CHARAUDEAU, 2006, p.41).

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A tese forte de Charaudeau é a seguinte: o processo de transformação é

regido pelo processo de transação. Para o autor, a fala humana não visa somente a

descrever e comentar o mundo, mas, uma relação com a alteridade, pois, só há

linguagem na intersubjetividade. Quanto à produção do saber é colocado que ele

não tem natureza, mas depende do modo de orientar o olhar do homem: “voltado

para o mundo, o olhar tende a descrever esse mundo em categorias de

conhecimento; mas, voltado para si mesmo, o olhar tende a construir categoria de

crença.” (CHARAUDEAU, 2006, p.43). Nos saberes de crença, o mundo, para

existir, depende do sujeito, mais precisamente, de seu olhar subjetivo.

Tomando de empréstimo a Charaudeau suas categorias de processo de

transformação e processo de transação, farei uma aproximação com o que ocorre

num outro contexto: o da semântica do desejo.

4.5 – Semântica do desejo

Para o entendimento de uma semântica do desejo, destacamos, ainda, a

contribuição das reflexões de Paul Ricoeur, Em seu texto A metáfora viva (2000,

p.109), Ricoeur sublinha que a semântica do discurso é irredutível à semiótica das

entidades lexicais. Ele nos esclarece que o fato de a teoria do discurso dos anglo-

saxões ser feita, não por linguistas, mas por lógicos e epistemólogos, abre a

possibilidade de uma abordagem direta do discurso. No entanto, destaca que,

devido ao avanço da linguística da língua não se permite mais tratar por preterição a

relação do discurso com a língua. A via indireta da oposição entre unidade de

discurso e unidade da língua impõe-se hoje para quem se preocupa em situar sua

investigação no espaço contemporâneo.

Segundo Ricoeur, o conceito de inconsciente da Psicanálise Freudiana coloca

ao conjunto do projeto filosófico, por um lado, um problema novo, o da mentira da

consciência, da consciência como mentira, e por outro, em questão a origem mesma

de toda significação. Ou seja, aponta para a crise da noção de consciência, a partir

das seguintes proposições:

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a) a certeza da consciência não é um saber verdadeiro de si;

b) a reflexão sobre o irrefletido não é um saber verdadeiro do inconsciente.

Assim, a certeza imediata da consciência proposta por Descartes é

inexpugnável, mas duvidosa enquanto verdade, pois a vida intencional pode ter

outros sentidos além do sentido imediato. Nessa dimensão, temos que

a consciência descobre que a certeza imediata de si mesma não passava de presunção. Assim, talvez ela possa aceder ao pensamento que não é mais atenção da consciência à consciência, mas atenção ao dizer, melhor ainda, àquilo que é dito no dizer. (RICOEUR, 1978, p.90)

Em seguida, o autor afirma que, depois de Freud, a consciência não é origem,

mas tarefa. Isso implica uma reflexão sobre o sujeito, o que leva Ricoeur, a colocar a

seguinte questão:

pode um sujeito ter uma arqueologia sem possuir uma teleologia? (...) só tem uma arqué um sujeito que possui um télos. Porque a apropriação de um sentido constituído atrás de mim supõe o movimento de um sujeito lançado para adiante de si mesmo por uma seqüência de “figuras” (à maneira de A fenomenologia do Espírito de Hegel), cada uma encontrando seu sentido nas seguintes. (RICOEUR, 1978, p.138).

Ora, a reflexão feita por Ricoeur nos indica que o conceito de inconsciente, tal

como definido por Freud, promove a desapropriação do sujeito, como sujeito da

consciência.

De acordo com o autor, para Freud, não é a pulsão que é cognoscível, mas a

representação que a representa no inconsciente. Portanto, o realismo empírico da

Psicanálise Freudiana não se interessa por um inconsciente incognoscível, e sim

cognoscível. “Seu inconsciente, diferentemente do dos românticos, é

essencialmente cognoscível, porque os “representantes representativos” da pulsão

ainda são da ordem do significado e homogêneo, de direito, ao império da fala

(parole).” (RICOEUR, 1978, p.91).

Trata-se do desejo, não no sentido de um contexto preciso, tal como libido,

pulsão, mas de um desejo em conflito com o mundo da cultura, as interdições, as

obras de arte, os objetivos sociais e os ídolos. (RICOEUR, 1978, p.140). Entretanto,

esse desejo se satisfaz de um modo despistado e substituído, isto é, a manobra

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realizada pelo psiquismo tem como efeito uma distorção de sentido. Assim, uma

análise começa com um não-sentido a ser interpretado.

Jamais o analista maneja diretamente forças, mas sempre indiretamente, no jogo do sentido, do duplo sentido, do sentido substituído, deslocado, transposto. Economia do desejo, sim. Mas através da semântica do desejo. Energética, sim. Mas através de uma hermenêutica. É no e pelos efeitos de sentido que o psiquismo trabalha. (RICOEUR, 1978, p.159).

No entanto, cabe ressaltar que, conforme pensamos, a constituição deste

aparelho psíquico no sujeito não é fruto de um desenvolvimento espontâneo, mas da

interação interlocutiva com o aparelho psíquico de um outro sujeito . Temos,

aqui, a passagem do ser vivo humano a um sujeito psíquico, do desejo pulsional a

uma semântica do desejo pulsional. Desse modo, em sua interpretação filosófica de

Freud, Ricoeur afirma que o discurso da psicanálise articula o sentido do sintoma, do

sonho, da cultura com a força, isto é, o investimento, o conflito, o recalque, numa

semântica do desejo.

Cabe dizer que, em sua arqueologia do sujeito, Ricoeur deixa bem claro, que

seu projeto é filosófico e não engaja o psicanalista. A ideia guia de Ricoeur é “o lugar

filosófico do discurso analítico é definido pelo conceito de arqueologia do sujeito”

(RICOEUR, 1977, p.343) e alerta que não é sua intenção impor tal conceito à leitura

de Freud, pois, não se trata de um conceito freudiano, mas de um conceito formado

para compreender a si mesmo, lendo Freud. Assim, é por meio da reflexão, que

psicanálise é uma arqueologia do sujeito, isto é, um discurso sobre o sujeito através

do qual se descobre que o sujeito não é aquele que se crê. “O que nos estimula é a

ausência mesma, no freudismo, de qualquer interrogação radical sobre o sujeito do

pensamento e da existência. É claro que Freud ignora e recusa toda problemática do

sujeito ordinário.” (RICOEUR, 1977, p.344).

A teoria freudiana, afirma Ricoeur, é uma crítica à consciência imediata. O

autor divide essa crítica em três etapas: deslocamento da origem do sentido,

abandono do conceito de objeto, narcisismo.

Na primeira crítica, encontramos um deslocamento do lugar de origem do

sentido. Na metapsicologia, a consciência é uma das instâncias do aparelho

psíquico, mas não a única. Seja na primeira tópica - Inconsciente, Pré-consciente,

Consciente ou, na segunda tópica - Id, Eu, Supra-Eu, o sentido se desloca da

consciência para o inconsciente. Tem-se, portanto, um duplo movimento: de

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destomada e retomada do sentido na interpretação, sendo este o móvel filosófico de

toda metapsicologia. Assim, a língua do desejo é um discurso no qual estão

presentes a força pulsional e o sentido. No entanto, o desejo se mascara e desloca-

se via signos. A interpretação é, então, entendida como a retomada na reflexão dos

signos do desejo, da busca do sentido perdido.

Na segunda crítica, o conceito de objeto é considerado como uma pseudo-

evidência da consciência. O objeto passa a ser uma variável do destino pulsional.

Como afirma o próprio Freud, o objeto do desejo pulsional é variável. Em outros

termos, não há objeto capaz de satisfazer, plenamente, uma pulsão.

Na terceira crítica, o Eu deixa de ser o sujeito do cogito, para se transformar

num objeto de investimento libidinal. Esse investimento no Eu é denominado de

narcisismo. A partir de então, há uma permuta no investimento pulsional entre o Eu

e os objetos.

Em sua leitura da teoria freudiana sobre o pulsional, Ricoeur nos diz que o

cognoscível não é o biológico da pulsão, mas seus representantes psíquicos. Em

outros termos, o ponto de encontro entre força pulsional e sentido está nos

representantes psíquicos da pulsão: o representante representação e o afeto. É

através desse representante representação investido pelo afeto, isto é, desses

signos psíquicos, que o corpo é representado na alma e torna-se passível de se

transformar em objeto da consciência.

No entanto, nossa hipótese é que, na clínica, não se trata apenas da

transposição da linguagem das imagens relacionadas à Coisa; à linguagem das

imagens das palavras ou de uma semântica do desejo, mas também de uma

enunciação do analisando direcionada ao analista, quer dizer, de uma interação

discursiva, na busca de uma co-construção de significação. Uma coisa é a função da

linguagem no psiquismo; outra, a função da linguagem na interação discursiva de

uma psicanálise. Assim, devemos diferenciar a representação psíquica da

linguagem do ato de linguagem e, mais especificamente no caso da psicanálise, do

ato de linguagem sob transferência. O que nos remete à topologia do sujeito e a

transferência de sentido na enunciação.

4.6 - A transferência de sentido na enunciação e a topologia do sujeito

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Sobre o conceito de transferência cabe-nos esclarecer que:

a) o termo transferência, em alemão Übertragung, “possui uma plasticidade e

reversibilidade: aquilo que se busca, traz e deposita pode ser levado de novo

embora para outro lugar e outro tempo. Genericamente refere-se à idéia de

aplicar (transpor) de um contexto para outro uma estrutura, um modo de ser

ou de se relacionar.” (HANS, 1996, p.412);

b) “Transferência de sentido, de utilização pelo desejo de formas alheias, das

quais se apodera e às quais carrega, infiltra e dota de uma nova significação.”

(MILLER, 2002, p.58);

c) Essas formas são significantes para os quais o desejo proporciona um

significado diferente e novo;

d) Transferência é o processo geral das formações do inconsciente – o sonho,

o lapso, o chiste. O desejo se mascara e se aferra a significantes esvaziados

de significação.

Ora, numa psicanálise, é através da transferência que o inconsciente do

analisando se atualiza, ganha voz, é falado e escutado. O analista opera através

dessa transferência. Para Lacan, o analista, enquanto sujeito suposto saber, é o pivô

da transferência.

Clinicamente, o conceito de transferência está atrelado aos conceitos de

pulsão, inconsciente e compulsão à repetição, como também, ao recordar, o repetir

e o perlaborar.

Para Green (2008), na teoria freudiana, a transferência, antes vista como

resistência, passa, a partir da segunda tópica, a motor do tratamento psicanalítico.

(...) “- as psiconeuroses de transferência – Freud as concebe como psiconeuroses

em transferência, capazes de mobilidade libidinal (do somático ao psíquico e de um

objeto ao outro) e desemboca finalmente sobre a compulsão à repetição.” (GREEN,

2008, p.69).

Ao fazer referencia à questão da transferência a partir da segunda tópica,

Green nos diz que não se trata mais do desejo inconsciente, mas da pulsão em si,

capaz de subverter desejo e pensamento. A partir de então, não se pode restringir a

definição do conceito de transferência como repetição do passado. O autor propõe

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pensar a ideia da dupla transferência: uma transferência sobre a palavra e uma

transferência sobre o objeto.

Em suma, no canal de comunicação analítico, uma série de pontos de referencia vem organizar o discurso: - a um extremo, o sonho no quadro de regressão do sono; - a regressão tópica em estado de vigília na sessão; - a atenção flutuante na escuta do analista; - o pensamento reflexivo, mobilizado pela escuta, no analista. (...) Vai daí que a transferência não se distingue como bloco uniforme ou que lhe basta uma definição que enfoca a repetição do passado no presente. (GREEN, 2008, p.72).

A transferência sobre a palavra ou cadeia de transferência do discurso está

vinculada, na primeira tópica do aparelho psíquico, às instâncias do pré-consciente e

da consciência e, na segunda tópica, às instâncias Eu e Supra-eu conscientes e pré-

conscientes.

A transferência sobre o objeto está atrelada: na primeira tópica, à instância do

inconsciente; e, na segunda tópica, ao Id, ao Eu e ao Supra-eu –acrescento -

inconscientes.

Assim, nos diz o autor,

valorizamos a parte sobrepujante da linguagem tanto no discurso do analisando quanto na interpretação do analista, e reconhecemos que os elementos da psique que não podemos extrair da palavra de maneira confiável fazem transbordar essa dimensão por todos os lados. É considerável a repercussão dos eventos que se passam em uma dessas cadeias sobre os da outra que se torna possível delinear mais precisamente a natureza, a função e a significação da transferência. (GREEN, 2008, p.73).

De acordo com Green, tanto a cadeia de transferência do discurso, regida

pelo processo secundário, quanto a cadeia de transferência do objeto, regida pelo

processo primário, estão conectadas por uma célula central, auto-referente: o Eu-

sujeito.

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Figura 17: Teoria dos gradientes.

Fonte: GREEN, 2008, p. 162

Entretanto, o autor aponta para outro ponto importante na relação entre

analisando e analista: a contratransferência do analista, isto é, a forma como o

analista reage ao que, no discurso transferencial do analisando, “produz efeitos de

ressonância e de rejeição sobre o que foi insuficientemente ou mal analisado no

analista, levando-o a compreender de forma incompleta e não imparcial – em suma,

enganar-se – aquilo que o analisando busca transmitir.” (GREEN, 2008, p.75).

Em outros termos, a contratransferência é um obstáculo colocado pelo

analista à escuta do discurso transferencial do analisando. Lacan dizia que não

havia contratransferência, mas resistência do analista. Por esse motivo, faz parte da

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formação de um psicanalista se submeter a um processo de análise, para que ele

possa passar de analisando a analista. Isto não significa que ele seja, para sempre,

um analisado, pois, a análise, dizia Freud, é interminável, mas que o analista possa

ser um pouco mais imparcial, na escuta do discurso transferencial de seus

analisandos.

No entanto, em nossa formulação, o que possibilita a transferência, a

atualização do inconsciente e a intervenção do analista é o discurso do analisando

direcionado ao analista. Vale dizer que o recordar, o repetir e o perlaborar só se

tornam possíveis através do discurso transferencial do analisando ao analista.

No texto freudiano, Recordar, repetir, elaborar, são apresentadas, como

técnicas psicanalíticas: a catarse, proposta por Breuer; e a associação livre, por

Freud.

A primeira técnica é a catarse de Breuer. Sua proposta é recordar e ab-

reagir. Recordar é focalizar diretamente o momento de formação do sintoma. Ab-

reagir é reproduzir os processos psíquicos envolvidos nessa situação, a fim de

dirigir-lhes a descarga, ao longo do caminho da atividade consciente.

A segunda técnica é a associação livre. Seu intento é, a partir da associação

livre, possibilitar ao analisando a descoberta daquilo que ele havia deixado de

recordar. No entanto, esse processo tem pela frente a resistência, que deve ser

contornada pela interpretação, isto é, identificada e tornada consciente ao

analisando, mas isto, só depois de ele ter vencido essas resistências. Trata-se,

segundo Freud, de preencher as lacunas na memória.

No entanto, há casos em que o analisando não recorda coisa alguma do que

recalcou, mas o expressa como ação e repete-o sem saber que está reproduzindo.

Para Freud, por exemplo, o paciente não diz que recorda que costumava ser

desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se

dessa maneira para com o médico. Assim, essa compulsão à repetição é um outro

modo que o analisando tem de recordar.

Desse modo, Freud aponta para pontos importantes: a relação entre

resistência ao recordar, a compulsão à repetição e a transferência. Por conseguinte,

a repetição é uma transferência do passado esquecido ou recalcado, sendo que a

transferência é um fragmento da repetição que ocorre na relação do analisando,

tanto com o psicanalista, quanto com as demais pessoas. Portanto, quanto maior a

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resistência para recordar, mais extensivamente a atuação, isto é, a compulsão à

repetição.

Entretanto, a transferência pode ser positiva, o que facilita a direção do

tratamento, ou negativa, o que muito dificulta o processo analítico. Por esse motivo,

torna-se importante descobrir as moções pulsionais, que estão alimentando a

resistência. Assim, a perlaboração das resistências é uma tarefa árdua para o

analisando e exige uma grande paciência por parte do analista. Portanto, nos diz

Freud, que são os efeitos da perlaboração das resistências, que produzem as

maiores mudanças no analisando.

Em resumo, o diferencial entre o tratamento analítico e qualquer tratamento

por sugestão é a perlaboração das resistências. Esta técnica é o que permite ao

analisando manter suas moções pulsionais na esfera psíquica, ao invés de dirigi-las

para a esfera motora, isto é, descarregá-las na ação. Contudo, o que possibilita a

transformação da compulsão à repetição, num motivo para recordar, é o manejo da

transferência . Cabe salientar que a transferência é uma região intermediária entre o

mal-estar do analisando e a vida real, que dá ao sintoma um significado

transferencial, isto é, transforma a neurose em algo artificial, a neurose de

transferência, passível de tratamento pelo trabalho terapêutico da psicanálise.

Em suas Conferências introdutórias, a de número VI: Premissas e técnicas de

interpretação, Freud afirma que os sonhos são fenômenos psíquicos. No entanto,

trata-se de comunicações, muitas vezes, ininteligíveis. Como acontece quando não

entendemos algo que nos foi comunicado, perguntamos à pessoa que sonhou: o

que seu sonho significa? O modelo de investigação psicanalítica segue a técnica de

que a própria pessoa busque a solução para seus enigmas, tais como: seus

sintomas, seus atos falhos, seus esquecimentos, suas repetições, seus sonhos. Na

realidade é provável “que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho significa: apenas

não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe.” (FREUD, 1996,

p.106).

A comprovação desse não saber que se sabe, Freud vai buscar nas

demonstrações, que ele mesmo presenciou, dos fenômenos hipnóticos, como feitas

por Liébault e Bernheim, em Nancy, no ano de 1889, e conhecida como situação

pós-hipnótica.

Uma pessoa era colocada em estado de sonambulismo e levada a

experimentar várias coisas de forma alucinatória e, depois de despertada não se

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lembrava ou dizia não saber do que havia ocorrido durante o período em que estava

sob hipnose. Mas, devido à insistência dos hipnotizadores, a pessoa ia

paulatinamente e sem nenhuma ajuda de terceiros, se recordando do que havia lhe

ocorrido durante a hipnose. Nos termos de Freud, o conteúdo da experiência

hipnótica “simplesmente lhe era inacessível; ele não sabia que sabia, e pensava que

não sabia. Ou seja, a situação era exatamente igual àquela que suspeitamos existir

naquele nosso sonhador.” (FREUD, 1996, p.108). Em seu texto Algumas lições

elementares de psicanálise, escrito em 1938, Freud demonstra, mais uma vez, que

não se pode igualar o que é o psíquico ao que é consciente. Ser consciente é

apenas uma qualidade do que é psíquico. Ele defende a seguinte tese forte: o

psíquico é em si mesmo, inconsciente. Para exemplificar, recorre ao caso, que ele

próprio assistiu, de uma pessoa hipnotizada por Bernheim. Ao entrar na enfermaria,

Bernheim deixa seu guarda-chuva num canto da sala. Em seguida,

hipnotiza um dos pacientes e lhe diz: ‘vou sair agora. Quando eu entrar de novo, você virá a meu encontro com o guarda chuva aberto e o segurará sobre minha cabeça’. O médico e seus assistentes deixam então a enfermaria. Assim que retornam, o paciente, que não está mais sob hipnose, executa exatamente as instruções que lhe foram dadas enquanto hipnotizado. (FREUD, 1996, p.113)

Tudo indica que Freud baseou-se nessas experiências de Liébault e

Bernheim, para criar sua técnica de associação livre, isto é, a técnica de pedir a

alguém que diga, sem restrições, o que lhe vier à mente, como resposta a um

elemento de um sonho ou mesmo de um nome próprio, de um número, de uma

música. Isso significa que os pensamentos, que são livremente associados, não são

arbitrários, mas psiquicamente determinados.

Até uma música, que de repente surge e não sai mais da cabeça, pode ser

determinada pelo Inconsciente. Um jovem analisando de Freud, se sentiu

perseguido pela melodia “da canção de Páris [de Offenbach] La belle Hélène, até

que, em sua análise, ele teve sua atenção voltada para uma rivalidade em torno de

sua pessoa e em benefício seu, uma rivalidade entre uma ‘Ida’ e uma ‘Helena’. De

acordo com a nota colocada por Freud: “Páris, que fugiu com Helena, por algum

tempo fora pastor no Monte Ida, onde emitiu seu julgamento sobre três deusas

rivais.” (FREUD, 1996, p.113).

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No lapso verbal, temos uma outra forma de manifestação inconsciente. Freud

nos relata o caso do presidente da Câmara Baixa do Parlamento Austríaco que, na

abertura de uma reunião, disse: ‘constato que um quorum completo de membros

está presente e por isso declaro encerrada a sessão.’ Uma explicação racional seria

que se trata de um pequeno equívoco, pois o que deveria ser dito é aberta a sessão.

Freud coloca que, se levarmos em consideração a situação, teremos outra

explicação. As reuniões anteriores foram muito desgastantes e improdutivas. Em

conformidade com Freud, “de modo que seria muito natural que o presidente

pensasse, no momento de fazer sua declaração de abertura: ‘se a sessão que está

começando estivesse acabada! Preferiria muito mais encerrá-la que abri-la’.”

(FREUD, 1996, p.304). Assim, havia na fala do presidente um ato psíquico

inconsciente, isto é, um desejo, um pensamento, uma intenção da ordem do

inconsciente.

Em recente entrevista dada ao programa Observatório da Imprensa,

comandado por Dines, sobre os 25 anos da morte do Presidente Tancredo Neves,

seu assessor, na época, o jornalista Antônio Brito diz: “estávamos no palácio, ato

falho, no hospital”. 17 Todos sabemos que Tancredo Neves foi eleito em 1985,

presidente do Brasil, pelo colégio eleitoral, mas que, por motivo de doença, foi

hospitalizado e não tomou posse. Foi seu Vice, José Sarney, quem assumiu o cargo.

No entanto, passado um quarto de século, Antônio Brito demonstra seu desejo

inconsciente, que Tancredo estivesse não num hospital, mas no Palácio do Planalto.

No esquecimento de um nome, ocorre um processo psíquico interessante: no

lugar do nome esquecido, aparecem nomes substitutos, que são prontamente

reconhecidos como não originais. No entanto, nos diz Freud, verifica-se “que tanto o

nome substituto espontâneo como os nomes que recordei, estão correlacionados

com o nome esquecido e foram por ele determinados.” Para exemplificar, ele nos

conta seu esquecimento do nome do pequeno país da Riviera cuja capital é Monte

Carlo. Depois de muito pensar, ele deixa de tentar recordar o nome esquecido e

passa a dar mais atenção aos nomes substitutos: Monte Carlo, Piemonte, Albânia,

Montevidéu, Cólico. Nessa série, Albânia fora substituída por Monte Negro, devido

ao contraste branco e negro. “Então constatei que quatro desses nomes substitutos

continham a mesma sílaba ‘mon’ e com isso, subitamente, eu tinha a palavra

17 Programa Observatório da Imprensa levado ao ar, pela TV Minas, no dia 05/04/2010.

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esquecida e exclamei em voz alta: Mônaco!” (FREUD, 1996, p.108). De acordo com

o autor, os nomes substitutos surgiram do nome esquecido. Ou seja, pode-se

observar que a sílaba mon está presente em quatro nomes substitutos: Mon-te

Carlo, Pie-mon-te, Mon-te Negro, Mon-tevidéu, e o último nome: Có-li-co reproduzia

sua estrutura silábica inteira, Mô-na-co. No entanto, podemos acrescentar que a

vogal a foi retirada de Albânia e a sílaba co, de Cólico. Entretanto, Freud adiciona

mais um dado à sua interpretação: Mônaco é a palavra italiana para Munique,

cidade responsável pelo seu esquecimento, ou melhor, pela sua inibição. Essa

técnica de interpretação do esquecimento, Freud propõe estendê-la, também, para

os sonhos, isto é, através da cadeia de associações, ir do substituto até à coisa

original inconsciente, que está oculta.

No processo analítico é proposto ao analisando, através da associação livre,

recordar as experiências e afetos a elas ligados e que ele recalcou. O argumento

freudiano é que os sintomas e as inibições são substitutos, isto é, consequências

das coisas que foram recalcadas. No entanto, o que é colocado pelo analisando a

disposição do analista são fragmentos de lembranças dos sonhos, via de regra

deformados; repetições de afetos que pertencem ao material recalcado, presentes

em suas ações e ainda ideias que fazem alusão às experiências recalcadas. O que

favorece o retorno dessas conexões emocionais é a relação de transferência entre

analisando e analista.

Entretanto, cabe ao analista uma outra tarefa, além da interpretação feita, em

conjunto com o analisando: utilizar-se da técnica da construção, isto é, “de

completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou,

mais corretamente, construí-lo.” (FREUD, 1996, p. 276).

E qual a diferença entre uma interpretação e uma construção numa

psicanálise?

A interpretação aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma construção, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu, (...). (FREUD, 1996, p. 279).

Contudo, a construção, esse trabalho um tanto quanto semelhante àquele que

é feito por um arqueólogo, não é um trabalho conclusivo, mas preliminar, pois o

analisando terá que produzir novas lembranças, que venham complementar e

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ampliar essa construção. Como nos diz Freud, trata-se de um modelo muito próximo

ao do criado, personagem de uma das farsas de Nestroy, que, diante de qualquer

questão, tem sempre como resposta: tudo se tornará claro no decorrer dos futuros

desenvolvimentos. (FREUD, 1996, p. 283).

E, no caso em que essas interpretações e construções não são nem

pertinentes, nem coerentes com o conteúdo recalcado pelo analisando?

Simplesmente não haverá nenhum efeito sobre o sujeito analisando, não importando

se ele concorda ou não com elas. Por outro lado, se a interpretação ou construção

tiver algum vínculo com o conteúdo recalcado, poderá haver, inclusive, como uma

forma de resistência, uma piora em seu sintoma ou em sua inibição.

Em resumo, tanto na interpretação, quanto na construção, trata-se de uma

interação discursiva entre analisando e analista, porém, não de um modelo no qual

um fala e o outro escuta. E sim, de uma linguagem transferencial em análise, na

qual temos o analisando como enunciador e o analista como co-enunciador, uma

relação discursiva assimétrica, pois nela, o psicanalista ocupa o lugar daquele que

supostamente sabe.

É a partir dessas reflexões que procuramos responder à nossa questão sobre

a topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação. Nessa dimensão,

temos, como hipótese, que o trabalho clínico de significação da linguagem

transferencial do analisando produz efeitos sobre sua posição subjetiva. Portanto,

em nosso trabalho teórico-clínico, o enfoque não incide sobre a interpretação de um

ato falho, de um esquecimento, do relato de um sonho, de um estado de coisas, de

um sintoma. O que se busca, a partir desses atos de discurso do analisando, é um

sentido e uma intencionalidade que tenham uma significação.

Assim, a topologia do sujeito que estamos propondo em nossa pesquisa é

uma banda de Moebius, uma superfície unilátera: é um sujeito semântico desejante

e bio-sócio-psico-linguageiro. Trata-se de um sujeito construído em análise, efeito da

interação transferencial discursiva, de uma perlaboração entre analisando e analista,

um sujeito consciente e inconsciente, um sujeito estranho familiar. Vou designar

esse sujeito topológico de nossa pesquisa de sujeito-eu reentrante: S.E.R. Isto

significa que o sujeito é um vir a S.E.R.

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Figura 17: fita de Moebius II (Formigas), 1963

Fonte: Foto The M.C. ASCHER Company B.V. Baarn, The Netherlans.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como objetivo investigar a questão da topologia do

sujeito e a transferência de sentido na enunciação , como condição necessária

para o entendimento, em psicanálise, do trabalho teórico-clínico de interpretação da

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linguagem transferencial do analisando e dos efeitos dela decorrentes, sobre sua

posição subjetiva. Para respondê-la, debruçamo-nos, por um lado, sobre os

conceitos de sujeito e de linguagem, num contexto e interlocução multidisciplinar -

Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência e Psicanálise. Por outro,

ainda que brevemente, sobre conceitos de corpo e alma/mente delineados na

cultura ocidental, desde a Grécia antiga até nossa modernidade tardia, como

contribuições indispensáveis para nossa compreensão, tanto da categoria de

“sujeito”, quanto da categoria de “linguagem”. Em todos esses diálogos sobre corpo,

alma, sujeito e linguagem, encontramos campos e autores que, à primeira vista, são

considerados incompatíveis. No entanto, foi possível apontarmos pontos de

divergência e de convergência e, daí, surgiram ideias, que contribuíram, de forma

significativa, para o esclarecimento de nosso estudo.

No diálogo com a Filosofia - no que diz respeito a Sócrates, Platão e

Aristóteles - salientamos a mudança de paradigma em relação ao pensamento sobre

corpo e alma na época de Homero. O corpo deixa de ser o morto, o cadáver e a

alma seu espectro. Com Sócrates, Platão e Aristóteles, a alma é o que dá vida ao

corpo. A concepção de corpo passa a ser a de uma unidade viva. Nessa

perspectiva, a alma encarnada no corpo ganha três funções: duas irracionais e

mortais - a vegetativa e a sensitiva; e uma racional e imortal, dividida em razão

teorética, prática e poiética. Desse modo, Sócrates, Platão e Aristóteles deram suas

respectivas contribuições para o início da reflexão sobre o corpo, a psique humana e

o conhecimento de si.

Na modernidade, Descartes retoma essa discussão, privilegiando a alma em

detrimento do corpo. Destacamos, a partir de Reale e Galimbert, que os conceitos

de alma, tanto, o que foi criado por Sócrates, Platão e Aristóteles, quanto o que foi

inventado por Descartes, tornaram-se um modelo para o pensamento ocidental.

Para Galimbert, é um equívoco fundamentar a psicologia nesta concepção filosófica

de psique.

Sublinhamos, com Foucault, que o cuidar de si foi substituído por Descartes,

pelo conhecer a si mesmo. O próprio Foucault nos indica que, em nossa

modernidade tardia, é a psicanálise de Freud e de Lacan, enquanto uma técnica de

si, que vem colocar em cena, novamente, a verdade e o cuidar de si.

Na filosofia da linguagem, buscamos um diálogo com Searle, a respeito do

conceito de intencionalidade, o que nos possibilitou demonstrar que há, nos

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processos psíquicos, diferentemente do que pensa o autor, uma “intenção

inconsciente”.

A metapsicologia freudiana, em suas duas tópicas, nos deu uma grande

contribuição para o entendimento da linguagem no funcionamento do aparelho

psíquico. Para isso, nos valemos, como modo de exemplificação, de um corpus

constituído de alguns fragmentos de relatos de sonhos, de atos falhos, de

esquecimento e de casos clínicos interpretados por Freud. Essa opção se justifica

pelo fato de se tratar do registro de uma situação dialógica, isto é, de uma interação

entre analisando e analista. Não se trata, aqui, de aplicação de uma teoria, mas de

teorizar uma experiência clínica.

Nossa experiência em psicoterapia, inspirada na teoria da psicanálise de

Freud, nos ensinou que o psiquismo humano é algo conflituoso e complexo, regido

por moções pulsionais de vida e de morte, que devem ser representadas primária e

secundariamente, e não simplesmente descarregadas. Tendo como ponto de partida

a metapsicologia freudiana, apontamos em nossa pesquisa, a função da linguagem,

ou melhor, da representação de palavra no psiquismo humano: a de tornar pré-

consciente a representação de coisa inconsciente. No entanto, se essa ideia nos

permite entender como tornar consciente um pensamento inconsciente ou sua

significação, ela nada nos informa sobre o ato de linguagem transferencial do

analisando ao analista. Esta mesma observação pode ser feita para o campo da

Neurociência, em relação aos importantes trabalhos de Rosenfield e Edelman sobre

a relação entre o cérebro e a linguagem.

Rosenfield, em seu estudo sobre a memória, foi quem nos chamou a atenção

para o fato de o inconsciente da teoria de Freud, ser uma forma de categorização.

Nosso mérito foi fundamentar essa hipótese no plano teórico-clínico da psicanálise.

Mas, para isso, foi preciso aprofundar nossa investigação sobre a Teoria dos Grupos

Neuronais, proposta por Edelman, principalmente em seus conceitos de

categorização, memória, consciência primária, consciência elaborada, linguagem e

reentrada. Cabe esclarecer ainda que, de nossa parte, não estamos adotando,

literalmente, tais conceitos da Neurociência, mas nos inspirando neles para a

construção de nossas hipóteses. É preciso dizer que a Psicanálise e a Neurociência

têm objetos de estudo diferentes: a teoria da Psicanálise tem, como objeto, o Id ou o

Inconsciente; a Neurociência, o cérebro. Mais especificamente, a Psicanálise não

nega o estudo sobre o cérebro, mas sua preocupação é com o aparelho psíquico,

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isto é, com os processos psíquicos inconscientes que se passam entre o cérebro e a

consciência. Já o estudo do cérebro, na Neurociência de Edelman, se dedica a uma

biologia da consciência.

O mesmo procedimento de não adoção literal dos conceitos, mas de

influência, ocorre nos outros diálogos que estabelecemos com a própria psicanálise

de Freud e de Lacan, quanto com a Filosofia, a Linguística e a Análise do Discurso.

Em outros termos, não fizemos aqui uma transposição literal dos pensamentos dos

autores por nós utilizados, mas nos inspiramos neles para responder a nossa

questão. Embora tenhamos colocado a linguagem como o objeto de estudo que

aproximasse campos de estudos tão diversos, enfrentamos o seguinte obstáculo: a

psicanálise freudiana é a única a levar em consideração os processos psíquicos

inconscientes.

Na Linguística e na Análise do Discurso, fomos buscar apoio em Pêcheux,

Benveniste, Charaudeau, Francis Jacques e Mari, em suas reflexões sobre as

noções de sujeito do discurso e a interação entre enunciador e co-enunciador.

Conforme demonstramos, os pensamentos de Benveniste e de Mari sobre o

discurso são os que mais se aproximam da Psicanálise Lacaniana. Quanto ao

pensamento de Charaudeau sobre o discurso, ou melhor, sua Semiolinguística,

constatamos que este está voltado para o que é da ordem da consciência.

Destacamos, nessa dimensão, o mérito de Pêcheux de levar em consideração, na

ordem do discurso, tanto o que é da ordem da ideologia, quanto do inconsciente. No

entanto, apontamos seu equívoco de entender Freud via Lacan. Nesse sentido,

sustentamos que o inconsciente proposto por Lacan, embora pertinente, é muito

diferente do conceito de inconsciente presente na teoria de Freud.

Por sua leitura “filosófica de Freud”, elegemos Ricoeur como interlocutor. A

proposta desse autor é inserir a Psicanálise Freudiana no debate sobre a

hermenêutica da linguagem simbólica, isto é, no conflito das interpretações.

Tomamos de empréstimo a Ricoeur seu conceito de semântica do desejo, o que nos

possibilitou fazer uma diferenciação em relação à semântica da linguística.

Sobre nosso uso da topologia, para explicar o funcionamento do psiquismo

humano, a linguagem ou o sujeito, ressaltamos que não é uma novidade em

Psicanálise. Esse modelo teórico serviu a Freud para pensar suas duas tópicas do

aparelho psíquico; a Lacan, no seu intuito de tornar científica a Psicanálise e a

MDMagno para explicar seu “Revirão”. Embora consideremos pertinente o modelo

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de Lacan e o de MDMagno, para construir nosso próprio modelo, escolhemos partir

daquele proposto por Freud. Para isso, servimo-nos também da topologia, tal como

proposta por Moebius, Vallejo, Latour e Serres.

Vallejo destaca que, na topologia da psicanálise, o que importa é a

transformação executante do objeto em questão, seu efeito de metáfora. Assim, um

círculo é um quadrado com as mesmas propriedades, mas em outra conformação.

Serres pensa a topologia como diferente da geometria métrica: bem definida e

métrica. Sua topologia está baseada no modelo de dobradura, isto é, a topologia é a

ciência que possibilita pensar, em relação ao tempo e ao espaço, o que está

próximo como estando distante.

Latour nos esclarece que, em relação ao conhecimento, na atualidade, não

podemos mais tomar o modelo bipolar kantiano, no qual a coisa em si está num

extremo, o fenômeno no centro e o entendimento humano na outra extremidade. O

mérito de Latour está em propor um modelo, no qual a referência é instável e avança

do centro para as extremidades.

Moebius, com sua topologia, nos permitiu avançar e pensar o sujeito como

uma superfície unilátera: um sujeito semântico desejante e bio-sócio-psico-

linguageiro, que é dentro e fora ao mesmo tempo.

Nessa dimensão, cabe-nos sublinhar que o sujeito-eu-reentrante constitui

uma categoria conceitual, fruto de nossa interlocução sobre a linguagem e o sujeito,

sob o olhar de diferentes campos de conhecimento – Análise do Discurso,

Psicanálise, Filosofia, Neurociência e Topologia. Trata-se, portanto, de um

desdobramento oriundo de minhas reflexões teórico-clínicas, respaldado em minha

prática clínica sobre A questão do sujeito topológico e a transferência de sentido na

enunciação. Em outros termos, de nossa contribuição para o entendimento da

transformação que a linguagem produz na subjetividade do analisando, via relação

transferencial com o analista.

No entanto, vale ressaltar que, nessa reflexão sobre a questão da topologia do

sujeito e a transferência de sentido na enunciação foram vários os desafios:

a) adotar uma perspectiva transdisciplinar: Análise do Discurso, Linguística,

Filosofia, Neurociência, Psicanálise e Topologia;

b) compor, a partir dessa perspectiva, um quadro teórico, integrando os conceitos

de sujeito, sentido e enunciação;

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c) aprofundar a compreensão sobre signo e discurso, a partir da Análise do

Discurso, da Filosofia e da Psicanálise, buscando pontos de convergência e

divergência.

Nesse sentido, enfrentamos o desafio de não fazer de nosso estudo uma

compilação, mas de construir um artefato teórico que, apesar das controvérsias,

tanto no plano interno, quanto no externo, pudesse estabelecer uma interface entre

esses diferentes campos - Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência,

Topologia e Psicanálise – no que diz respeito ao conceito de linguagem e sua

implicação na questão da topologia do sujeito e a transferência de sentido na

enunciação. Nossa aposta numa tal abordagem deveu-se ao fato de

compreendermos que não há, em relação ao nosso objeto de estudo, uma resposta

única, e sim aproximações possíveis.

Cabe dizer ainda que esse estudo foi construído nos intervalos entre nossas

atividades docentes, discentes e clínicas. Nesse contexto, não tivemos o tempo

desejável para melhor aprofundamento de nossas hipóteses.

Pensamos que nossa tese apresenta como principais contribuições:

a) a diferenciação do conceito de inconsciente nas teorias de Freud e

de Lacan;

b) a colocação da discussão sobre a linguagem em Psicanálise na

atualidade, num outro enfoque, além do pensamento hegemônico

de Lacan: o inconsciente é estruturado como uma linguagem;

c) a demonstração de que o pensamento de Freud sobre a linguagem

ou representação de palavra diz respeito ao modo como ocorre a

significação no cérebro , num primeiro momento; e depois, num

segundo momento, como ela se dá no aparelho psíquico . No

entanto, embora importante, sua teoria não aborda a enunciação na

interação entre analisando e analista;

d) a proposição de uma outra forma de interlocução entre diferentes

campos de conhecimento que possuem, como objeto de estudo, a

linguagem;

e) a abordagem do modo como a Análise do Discurso, a Teoria dos

Atos de Fala, a Semântica, a Filosofia da Linguagem, a

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Neurociência e a Psicanálise podem colaborar para um melhor

entendimento da questão, tão complexa, que é a linguagem;

f) a demonstração teórico-clínica de que os relatos sobre os sonhos,

os atos falhos, os esquecimentos e as demais narrativas dos

analisandos fazem parte de uma semântica do desejo , isto é, têm

uma intenção e um sentido inconscientes ;

g) a construção de um outro conceito de sujeito - S.E.R. - Sujeito Eu

Reentrante , que nos permite pensar a linguagem em outra

dimensão: a do corpo ao simbólico .

Diante do que se apresenta, esperamos que essa tese possa, ainda que

modestamente, contribuir de modo efetivo para a abertura de outros horizontes de

estudo e pesquisa em Análise do Discurso, Psicanálise, Filosofia e Neurociência,

levando em consideração nosso outro olhar para a categoria de sujeito.

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