PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS … · 3.7 - A análise do Discurso de Pêcheux...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Gradução em Letras
ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:
REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A
TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO
Jorge Franca de Oliveira
Belo Horizonte
2010
Jorge Franca de Oliveira
ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:
REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A
TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como parte dos requisitos para obtenção do grau de Doutor em Linguística, linha de pesquisa LP6: Enunciação e processos discursivos. Orientador: Hugo Mari.
Belo Horizonte
2010
FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Oliveira, Jorge Franca de O48a Análise do discurso e psicanálise: reflexões sobre a questão da topologia do
sujeito e a transferência de sentido na enunciação / Jorge Franca de Oliveira. Belo Horizonte, 2011.
172f. : Il. Orientador: Hugo Mari Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. 1. Análise do discurso. 2. Psicanálise. 3. Sujeito (Filosofia). 4. Enunciação
(Linguística). I. Mari, Hugo. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 800.852
Jorge Franca de Oliveira
ANÁLISE DO DISCURSO E PSICANÁLISE:
REFLEXÕES SOBRE A QUESTÃO DA TOPOLOGIA DO SUJEITO E A
TRANSFERÊNCIA DE SENTIDO NA ENUNCIAÇÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais,
defendida publicamente e aprovada pela
Banca Examinadora constituída pelos
seguintes Professores Doutores:
----------------------------------------------------------------------------------------------
Hugo Mari – PUC Minas Orientador
-----------------------------------------------------------------------------------------------
Eduardo Dias Gontijo - UFMG
---------------------------------------------------------------------------------------------- José Carlos Cavalheiro da Siveira - UFMG
---------------------------------------------------------------------------------------------- Márcia Marques de Morais - PUC Minas
---------------------------------------------------------------------------------------------- Paulo Henrique Mendes de Aguiar - PUC Minas
Belo Horizonte, 17 de dezembro de 2010.
AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Hugo Mari, por sua inteligente e cuidadosa orientação, por seus
seminários avançados sobre Intencionalidade, Atos de fala e Análise do Discurso,
que muito contribuíram para a construção desta tese.
Aos professores – Dr. Eduardo Dias Gontijo, Dr. José Carlos Cavalheiro da Silveira,
Dra. Márcia Marques Morais e Dr. Paulo Henrique Mendes Aguiar – por aceitarem
participar desta banca examinadora.
Aos professores Dr. José Carlos Calheiro da silveira e Dra. Márcia Marques Morais
por suas valiosas sugestões ao meu exame de qualificação.
Aos professores Dr. Marco Antônio, Dr. Paulo Mendes e Dr. Milton Nascimento que
através de suas aulas e seminários avançados sobre fonologia, semântica e sintaxe
deram uma valiosa contribuição para a construção dessa pesquisa.
À PUC Minas pela concessão das 10 horas/aula – que muito contribuíram para o
desenvolvimento dessa pesquisa.
Às secretárias, da Pós-graduação em Letras, Berenice e Vera pelo atendimento
sempre acolhedor.
Ao pessoal da livraria Copec – Jair, Júlio, Leonardo e Cristiana pelo atendimento de
meus pedidos.
Ao Dr. Geraldo Kleinsorge pelo seu cuidado para comigo.
Aos meus irmãos, Oton e Sandra pela amizade e compreensão.
Aos meus amores Sandra e Eric pelo carinho, pelo respeito, pelo diálogo, pelos bons
momentos de sempre.
RESUMO
No campo da psicanálise, tanto Freud, quanto Lacan refletiram sobre a questão da
linguagem, como um instrumento importante no tratamento de seus pacientes. Freud
deu mais ênfase ao símbolo e Lacan privilegiou o signo. Embora respeitando o
mérito desses autores e utilizando de seus modelos de pensamento sobre a
linguagem, avançamos nossa reflexão, levando também em consideração, as atuais
contribuições de outras disciplinas que têm a linguagem como objeto de estudo.
Partindo dos conceitos de sujeito e de linguagem, no contexto multidisciplinar –
Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência, Psicanálise e Topologia -,
nosso estudo faz uma reflexão sobre a questão da topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação. Nosso objetivo é compreender como se
produz em Psicanálise, o trabalho de interpretação da linguagem em transferência e
seus efeitos sobre a subjetividade do paciente. Nesse sentido, como conseqüência
de nossa pesquisa sobre a topologia do sujeito e a transferência de sentido na
enunciação propomos um novo conceito: sujeito-eu-reentrante.
Palavras-chave: linguagem, sujeito, topologia, transferência, sentido, enunciação,
sujeito-eu-reentrante.
RÉSUMÉ
Dans le champ de la psychanalyse, tant Freud, combien Lacan ils ont reflété sur la
question de la langage, comme instrument important dans le traitement de leurs
patients. Freud a donné plus accent au symbole et Lacan a privilégié le signe. Bien
qu'en respectant le mérite de ces auteurs et en utilisant de leurs modèles de pensée
sur la langage, nous avançons notre réflexion, en prenant aussi dans considération,
les actuelles contributions d'autres disciplines qui ont la langage comme objet
d'étude. En partant des concepts de sujet et de langage, dans le contexte
multidisciplinaire - Analyse du Discours, Linguistique, Philosophie, Neuroscience,
Psychanalyse et Topologie -, notre étude fait une réflexion sur la question de la
topologie du sujet et le transfert de sens dans l'énonciation. Notre objectif est
comprendre comme se produit, dans Psychanalyse, le travail d'interprétation de la
langage dans transfert et leurs effets sur la subjectivité du patient. Dans ce sens,
comme conséquence de notre recherche sur la topologie du sujet et le transfert de
sens dans l'énonciation nous proposons un nouveau concept: Sujet-Je-rentrant .
Mots-clé: langage, sujet, topologie, transfert, sens, énonciation, Sujet-je-rentrant.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
Figura 1: Kantaros – um copo de bebida, com homens em movimento de
dança, tipicamente usado pelo deus Dionísio. Segunda metade do século VI
a.C.........................................................................................................................
18
Figura 2: Andar supraglótico nos seres humanos................................................ 26
Figura 3: Áreas do cérebro destinadas à produção da fala................................. 27
Figura 4: Esquema da aquisição da fala.............................................................. 37
Figura 5: Um modelo de consciência primária..................................................... 38
Figura 6: Um esquema de consciência elaborada............................................... 39
Figura 7: Desenho neurológico feito por Freud, para identificar importantes
distúrbios da linguagem........................................................................................
42
Figura 8: Diagrama psicológico da representação de palavras........................... 42
Figura 9: Esquema feito por Freud sobre o caso Emma..................................... 46
Figura 10: Desenho de célula feito por Freud...................................................... 132
Figura 11: Aparelho psíquico na segunda tópica................................................. 133
Figura 12: sujeitos falante ................................................................................... 139
Figura 13: Esquema do aparelho psíquico no texto sobre a interpretação dos
sonhos...................................................................................................................
143
Figura 14: Desenho do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no
texto O Eu e o Id...................................................................................................
143
Figura 15: Diagrama do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no
texto da conferência XXXI.............................................................................. 145
144
Figura 16: Esquema Psicológico da representação de palavra, refere-se ao
texto A interpretação das Afasias, 1891, está presente no apêndice C do texto
O Inconsciente, 1915............................................................................................
144
Figura 17: Teoria dos gradientes......................................................................... 158
Figura 18: Fita de Moebius – Escher – Formigas – Xilogravura, 1963................ 165
QUADROS
Quadro 1 - Posição bípede e seus desdobramentos.......................................... 32
Quadro 2 – Gêneros de persuasão.................................................................... 109
Quadro 3 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 114
Quadro 4 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 115
Quadro 5 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 115
Quadro 6 – Ato de fala – estrutura...................................................................... 116
Quadro 7 - Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações
da analisanda e do analista.................................................................................
121
Quadro 8 - Esquematização da análise e da interpretação do sonho............... 124
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.............................................................................................. 10
2. QUESTÃO DA LINGUAGEM: DO BIOLÓGICO AO SIMBÓLICO. ............. 12
2.1 - A linguagem, o corpo, a alma e o cérebro..... ...................................... 16
2.1.2 - Corpo e alma de Homero à Platão ..................................................... 16
2.1.3 - A influência cartesiana na concepção corpo e alma ....................... 21
2.1.4 – Origem/natureza da linguagem ......................................................... 22
2.1.5 - A linguagem e o cérebro ..................................................................... 34
2.2 - A linguagem emocional e a linguagem simbólica ............................... 47
2.3 - Linguagem, símbolo e interpretação em psicaná lise......................... 51
2.4 - Linguagem e intencionalidade................. ............................................. 53
3. QUESTÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE........... ........................... 61
3.1 - A Metafísica da subjetividade ............... ................................................ 62
3.2 - Foucault – O sujeito e a verdade............. .............................................. 63
3.3 – A história da histeria: do corpo à linguagem. ..................................... 68
3.4 - Freud e a questão do sujeito no discurso da p sicanálise.................. 70
3.5 - O sujeito e a enunciação..................... ................................................... 78
3.5.1 - Enunciação: os efeitos da linguagem sobre a subjetividade......... . 78
3.6 - O sujeito e a linguagem nas perspectivas de C haraudeau e
Authier-Revuz...................................... ............................................................
84
3.7 - A análise do Discurso de Pêcheux e a Psicanál ise de Freud e
Lacan: controvérsias e aproximações em a forma-suje ito do discurso...
87
3.8 – A concepção de signo linguístico em Linguísti ca e em Psicanálise 98
3.9 - Pragmática e enunciação: Francis Jacques – pr agmática da
relação interlocutiva.............................. .........................................................
102
3.10- Enunciação e argumentação.................... ............................................ 104
3.11 - Atos de fala ilocucionais e a interpretação dos sonhos................... 113
3.12 - Análise do corpus – a interpretação do sonho – na perspectiva
da psicanálise freudiana em conjunto com a teoria d os atos de fala. ......
118
4. SENTIDO, INCONSCIENTE, TRANSFERÊNCIA E TOPOLOGIA DO
SUJEITO...........................................................................................................
128
4.1 - A semântica linguística...................... .................................................... 128
4.2 - A questão da topologia do sujeito............ ............................................ 132
4.2.1 - O conceito de topologia.................... .................................................. 134
4.2.2 - Bruno Latour – da referência fixa à referên cia instável................. .. 136
4.3 - Semântica do discurso e topologia do sujeito ................................... 138
4.4 - Semântica do inconsciente: a problemática sob re inconsciente,
linguagem e a topologia do sujeito................ ..............................................
141
4.5 - Semântica do desejo.......................... .................................................... 151
4.6 - A transferência de sentido na enunciação e a topolo gia do sujeito. 155
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................ ............................................. 166
REFERÊNCIAS................................................................................... 172
10
1. INTRODUÇÃO
Nossa proposta de pesquisa é, a partir de uma perspectiva transdisciplinar -
Análise do Discurso, Linguística, Filosofia e Psicanálise -, no que diz respeito ao
conceito de linguagem, refletir sobre a questão da topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação . Sobre a ideia de transdisciplinaridade,
estamos de acordo com Silva de que se trata de um intercâmbio com outros campos
de conhecimento, de um procedimento no qual ocorre a migração de conceitos. Em
outros termos, refere-se ao diálogo modificador com o diverso e o de outra forma,
processos que não se esgotam na partição de um mesmo objeto entre disciplinas
diferentes, prisioneiras de pontos de vista singulares, irredutíveis, estanques,
incomunicados. (SILVA. In: DOMINGUES, 2001, p.36-37). A aposta numa tal
abordagem se deve ao fato de compreendermos que não há, em relação ao nosso
objeto de estudo, uma resposta única, e sim aproximações possíveis. Nesse sentido,
através desse diálogo transdisciplinar sobre a linguagem, buscaremos verificar, por
um lado, os pontos de convergência e de distanciamento; por outro, fazer uma
análise crítica e construtiva sobre a questão da topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação . Desse modo, à luz dos conhecimentos
adquiridos e de nossas reflexões utilizaremos, a título de ilustração, um corpus
constituído de alguns fragmentos de relatos de sonhos e de casos clínicos
interpretados por Freud. Essa opção se justifica pelo fato de se tratar do registro de
uma situação dialógica, isto é, de uma interação entre analisando e analista. Não se
trata aqui de praticar uma teoria, mas de teorizar uma prática. Embora já cientes do
grande desafio a ser enfrentado, na medida em que nossa proposta não se restringe
em fazer uma compilação, buscaremos construir um artefato teórico que, apesar das
controvérsias, tanto no plano interno, quanto no externo, vise a uma interface entre
Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência e Psicanálise sobre o
conceito de linguagem e de sua implicação na questão da topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação.
Nosso problema é entender como se faz o trabalho clínico de interpretação da
linguagem transferencial do analisando e quais são os efeitos, dela decorrentes,
sobre sua posição subjetiva.
11
Como sabemos, a Psicanálise Freudiana tem, como marco fundador, o texto
datado de 1900, A interpretação dos sonhos, como via real de acesso ao conteúdo
inconsciente. No capítulo VII desse texto, Freud apresenta um modelo de aparelho
psíquico. Em seguida, em 1905, faz uma interpretação da psicopatologia da vida
cotidiana, com seus chistes, atos falhos, esquecimentos e depois, em 1930, uma
interpretação do mal-estar na cultura. Em conformidade com Ricoeur, “Todas essas
“produções psíquicas” pertencem ao domínio do sentido e dizem respeito a uma
única questão: como a palavra surge no desejo? Como o desejo frustra a palavra e
fracassa em falar?” (RICOEUR, 1977, p.17). Trata-se, portanto, de uma
hermenêutica que visa a desvendar uma semântica do desejo.
Assim, em acordo com nossa formação acadêmica - psicologia clínica,
filosofia e letras - propomos uma investigação sobre A topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação.
Para isso, vamos nos reportar à obra de Freud e às reflexões filosóficas de
Ricoeur tanto sobre o referido autor quanto sobre o campo linguagem e ação,
lançando mão também do conhecimento das Ciências e Filosofia da Linguagem.
2. QUESTÃO DA LINGUAGEM: DO BIOLÓGICO AO SIMBÓLICO
12
Conforme dissemos, o enfoque de nossa pesquisa é sobre a questão da
topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação. Nessa dimensão,
buscaremos entender como se dá o trabalho clínico de significação da linguagem
transferencial do analisando e quais os efeitos dela decorrentes sobre sua posição
subjetiva. Em outros termos, procuraremos explicar a transformação que a
linguagem produz na subjetividade do analisando, via relação transferencial com o
analista.
No campo da Psicanálise, tanto Freud quanto Lacan se debruçaram sobre a
questão da linguagem - como um instrumento importante no tratamento de seus
analisandos. O primeiro, dando ênfase ao símbolo; e o segundo, ao signo. Embora
respeitando o mérito desses autores e utilizando-nos de seus modelos de
pensamento sobre a linguagem, pretendemos avançar nossa reflexão, levando
também em consideração as atuais contribuições de outras disciplinas que têm a
linguagem como objeto de estudo, tais como: a Análise do Discurso, a Linguística, a
Filosofia e a Neurociência.
Nossa aposta é que tanto a Psicanálise, quanto as demais disciplinas que
tratam da questão da linguagem, possam reciprocamente, levando em consideração
suas respectivas diferenças e convergências, se beneficiarem deste diálogo.
Ao fazer uma pesquisa transdisciplinar sobre a linguagem, reconhecemos que
uma só disciplina e um só pesquisador quererem dar conta de uma questão tão
complexa é um objetivo fadado ao fracasso. Nesse sentido, nosso propósito é iniciar
um diálogo e dar nossa modesta contribuição, uma vez que este trabalho demanda
um exercício de inteligência coletiva.
Sabe-se que a linguagem verbal é uma característica muito específica da
espécie humana. O ser humano já é falado mesmo antes de sua concepção, de seu
nascimento. No entanto, nenhum indivíduo humano nasce falando. Assim, se ainda
não fala, como ele se comunica? Ao nascer, o ser humano chora, grita, gesticula de
forma desarticulada, sendo que é através dessa linguagem rudimentar, que ele irá
se comunicar com o outro. Ou não serão o choro, o grito e a gesticulação formas de
linguagem? Imaginemos se todo ser humano nascesse silencioso, inerte. Como
saberíamos de suas necessidades básicas, tais como fome, dor e demais
incômodos? Nessa interação entre o recém-nascido e seu responsável, cabe a este
último dar sentido ao que está sendo comunicado de forma primária. Vale perguntar,
então, quais as condições e possibilidades para que a criança passe a falar?
13
Alguns pensadores com tendência a uma leitura mais genética, ou seja,
biológica, possivelmente, diriam que tudo depende do desenvolvimento cerebral do
ser humano. Outros, numa perspectiva mais próxima das ciências do espírito,
considerariam que, provavelmente, o falar depende do ouvir um outro falante, que o
falar depende do acesso ao simbólico. Mas tudo isso, embora necessário, não é
suficiente, pois falar não se reduz a um cérebro bem desenvolvido biologicamente,
nem a só repetir o que se ouviu. É preciso tentar entender o que essa fala quer
dizer. Sendo assim, não basta ouvir e repetir a fala, é preciso saber escutar, isto é,
dar sentido ao que foi enunciado.
Nada mais humano do que a busca por habitar a linguagem inscrita na cultura
e, simultaneamente, ser por ela habitado. Nesse aspecto, a linguagem está em
interação com o nosso ethos, nosso logos, nosso pathos, nossa práxis e, tem como
base, tanto o corpo - e nesse, o cérebro - quanto também, a língua, o simbólico e a
cultura. Desse modo, é preciso cultivar o corpo biológico, cuidar para torná-lo um
corpo afetuoso, libidinal, falante, dar-lhe um espírito, uma dimensão simbólica. Mas,
isto só se torna possível com a constituição de um eu que, via de regra, se dá
através de uma relação especular com o outro. Dito de outra maneira, o espelho é o
outro. Em conformidade com o pensamento de Lacan, o acesso ao simbólico passa,
necessariamente, pelo imaginário, isto é, não há sujeito simbólico sem um eu
imaginário. Portanto, não podemos reduzir a linguagem humana a uma localização
cerebral ou à fala, pois a linguagem é complexa, ou seja, está vinculada a outras
dimensões do ser humano: biológica, pulsional, inconsciente, desejante, sentimental,
emocional, gestual, imaginária, intencional, simbólica. De forma bem reduzida: há
uma linguagem verbal e outra não-verbal.
Numa psicanálise com crianças, o método de trabalho psicoterápico dá mais
ênfase, mas não exclusivamente, ao não-verbal, através do uso de técnicas de
desenhos, pintura, argila, massa de modelar, jogos etc.. Cabe sublinhar que essas
técnicas usadas para trabalhar com a expressão do não-verbal, podem ser
empregadas também com pacientes psicóticos. Para exemplificar, utilizaremos parte
do artigo de Ferreira Gullar, “Os inumeráveis estados do ser”, no qual ele afirma que,
em relação ao trabalho desenvolvido pela psiquiatra Dra. Nise da Silveira, o
propósito não era formar artistas, mas possibilitar aos pacientes se expressarem
através da pintura. Portanto, na impossibilidade de fazer uso da fala ou da escrita
tem-se a pintura como um outro espaço propício para a produção de significação. “É
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que, em geral, o doente mental tem dificuldade de se expressar logicamente, como o
exige a linguagem verbal. Já a linguagem pictórica, não-verbal, constituída de cores,
linhas, símbolos visuais, dispensa o logos para se estruturar.” Nesse sentido, Gullar
destaca o caso de um artista que, através da pintura, superou o mutismo e pode
dizer do
Desejo de voltar para casa. E o fez de maneira muito especial, ao dizer a Dra. Nise que, naquele Natal, queria como presente um guarda-chuva. Após um primeiro momento de surpresa, ela entendeu que, se queria um guarda-chuva, é que deseja sair do hospital, já que lá dentro não chove. (GULLAR, 2009).
Enfim, considero que tão importante quanto aprender a falar e saber
interpretar, é preciso saber sobre o sentido e a intenção inerente ao dito, quer seja
através de uma linguagem não-verbal, quer seja através da linguagem verbal.
Em relação à linguagem verbal, Freud nos esclarece que, numa psicanálise, o
mais importante não é o conteúdo manifesto, consciente, mas o conteúdo latente,
inconsciente. Devemos levar em consideração não somente o dito, como também o
não-dito e o interdito. Lacan, por sua vez, aponta tanto para uma dimensão
imaginária, quanto simbólica da linguagem e afirma que a análise é uma questão
“morcego”, isto é, da mesma forma que um morcego se guia pelo som que emite,
após encontrar um obstáculo; o analisando deve se guiar pelo que fala e pelo que é
pontuado pelo analista. Quanto à interpretação, cabe lembrar que o próprio Freud
dizia que a Psicanálise não é uma arte da interpretação, pois no tratamento analítico
há outras intervenções, tais como as descritas por Laplanche e Pontalis: “o
encorajamento a falar, a tranqüilização, a explicação de um mecanismo ou de um
símbolo, as injunções, as construções, etc..” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988,
p.320). Para eles, a elaboração secundária é uma forma de interpretação.
Entretanto, esses autores chamam a atenção para o fato de que o termo alemão
Deutung não se ajusta exatamente ao termo francês interprétation.
Deutung parece mais próximo de explicação, de esclarecimento, e apresenta em menor grau, para a consciência lingüística comum, o tom pejorativo que os termos português e francês podem assumir. A Deutung de um sonho consiste, escreve Freud, em determinar a sua Bedeutung, a sua significação. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1988, p.320).
15
A ênfase não está, portanto, na interpretação, mas na significação: através da
Deutung - da interpretação de um ato falho, de um esquecimento, do relato de um
sonho, do relato de um sintoma busca-se chegar à Bedeutung, à significação.
Ora, é importante destacar que há, inerente à interação discursiva entre
analisando e analista, um sentido e uma intencionalidade ou intenção que têm uma
significação. Alguns linguistas diriam que a ênfase não deve ser dada ao explícito,
mas ao implícito. Dentre os filósofos da linguagem, temos aqueles que sustentam
que é preciso prestar atenção tanto na intencionalidade quanto no sentido. Mas,
para que tudo isso ocorra, é necessário que o cérebro desenvolva sua gramática, tal
como descrita por Edelman, na seguinte sequência: fonológico, semântico e
sintático. No entanto, cabe perguntar se o domínio cerebral dessa seqüência daria
condições ao falante de dominar a intencionalidade? Há outra questão importante a
ser colocada: a linguagem é uma aquisição cultural ou um instinto, como propõe
Steven Pinker? Daí propormos uma reflexão sobre o percurso da linguagem: do
biológico ao simbólico.
2.1 A linguagem, o corpo, a alma e o cérebro
Para refletirmos sobre a linguagem, o corpo, a alma e o cérebro, partimos da
seguinte hipótese: o entendimento do que é a linguagem depende também de
nossas concepções sobre o que é o corpo e a alma. De onde herdamos os
conceitos de corpo e alma por nós utilizados? Seria a alma autônoma em relação ao
corpo? Qual órgão do corpo seria o responsável pelos nossos pensamentos, pela
linguagem, pelas nossas emoções?
16
Portanto, cabe indagar sobre qual seria a concepção de corpo e alma em três
momentos importantes do pensamento humano: na Grécia antiga, no início de nossa
modernidade e agora em nossa modernidade tardia. Não é nosso intuito fazer um
histórico, mas sim um breve comentário sobre o percurso das concepções de corpo
e alma no pensamento ocidental, para um melhor esclarecimento sobre nossa
abordagem da linguagem numa psicoterapia de inspiração psicanalítica.
2.1.2 - Corpo e alma de Homero à Platão
Para Reale, os conceitos de psyche e de alma estão atrelados à concepção
de homem. Esses conceitos, de extrema complexidade, foram desenvolvidos pelos
gregos e se tornaram o núcleo sobre o qual se edifica o pensamento ocidental. O
autor sublinha que é um erro atribuir o conceito de alma ao cristianismo, pois o
cristianismo originário aponta para a ressurreição do corpo e não para a imortalidade
da alma. Foram os pensadores cristãos da Patrística, que fizeram uma releitura de
algumas concepções presentes no texto bíblico à luz do conceito grego de alma.
(REALE, 2002, p.12).
Reportando-se ao livro O corpo, de Galimbert, Reale (2002) nos diz que, para
esse autor, no momento atual, o conceito grego de psyche deveria ser descartado
pelas ciências do homem, principalmente, pela psicologia. Para Galimbert, é preciso
que a psicologia vá contra a representação de psyche que ela tomou de empréstimo
ao pensamento grego em sua aurora, pois há, nessa noção, uma autonomização da
psyche. Nesse sentido, esse autor vai nos esclarecer que “a psicologia não só não
chegará nunca a compreender a expressividade originária do corpo, mas será
constrangida a errar, porque ignora o erro que está na base da sua fundação
epistêmica, do seu nascimento como ciência.” (GALIMBERT apud REALE, 2002,
p.12).
Assim, no campo clínico da psicologia, em suas diversas abordagens sobre
subjetividade humana, há uma tendência em privilegiar o conceito de alma, em
detrimento do corpo, tal como concebido na tradição do pensamento filosófico.
Diante disso, Reale coloca como necessário e fundamental, o entendimento
sobre o nascimento e o desenvolvimento dos conceitos de corpo e psyche. Sua
proposta é iniciar por Homero, mais precisamente, a partir da Ilíada e da Odisséia.
17
Em Homero, soma significa cadáver, isto é, o organismo privado de vida. No
cadáver, cessam as múltiplas funções diferenciadas dos órgãos, funções e órgãos
tornam-se iguais, ganham uma unidade: soma. No homem vivo, há uma
multiplicidade de órgãos e funções em atividade, não tendo, portanto, uma unidade,
mas membros no sentido de melea ou gyia. Segundo Reale,
[...] podemos considerar adquirido por sinédoque, que, à medida que o órgão individual exprime toda pessoa, o homem homérico sente a si mesmo dessa maneira: “eu sou esta minha mão”, “eu sou estas minhas pernas”, “eu sou estes meus joelhos”, “eu sou estes meus pés”, e assim por diante. (REALE, 2002, p.37).
Nesse contexto, melea indica membros, no sentido paratáxico, enquanto aparato
muscular, vigor e força.
Portanto, o homem homérico toma a parte, a atividade ou funções de seus
membros: as mãos, os pés, as pernas, a cabeça, para fazer referência a si mesmo.
É importante observar qui que é desse modo que ele será representado na arte:
uma pessoa em movimento.
Figura 1: Kantaros – um copo de bebida, tipicamente usado pelo deus
Dionísio com homens em movimento de dança. 2ª metade do século VI a.C.
Fonte: Museu Pergamon de Berlim.
18
Para a compreensão da concepção de espírito humano em Homero se faz
necessário utilizarmos das reflexões feitas por Snell, Böhme, Pohlenz e Reale. 1 A
partir desses autores avançamos uma definição aproximativa dos termos coração,
thymos, phrenes, noos e psyche:
a) coração: órgão físico e também função responsável pelos sentimentos e
afetos;
b) thymos: órgão representante da dimensão emotiva e ligado com o
sentimento e a paixão, cujo termo mais próximo, em português, é ânimo;
c) phren: indica a mente conectada com sentimentos e emoções. Seu órgão
está situado no peito, perto do coração, no diafragma;
d) noos: considerado como órgão mais elevado tem como função o
discernimento, a inteligência;
e) psyche: imagem espectral do defunto, do sem vida, isto é, daquele que
não é mais capaz de sentir, de conhecer, de querer.
Convém ressaltar que a concepção, trazida por Reale, sobre a psyche
acompanha a que é dada por Otto: “[...] a psyche não é a ideia da vida enquanto tal,
mas é a ideia da vida-que-se-vai e particularmente a idéia do morto; [...] não
representa senão uma imagem emblemática que exprime o ser do ter sido.” (OTTO
apud REALE, 2002, p.78). É nesse sentido que psyche vai para o Hades.
Outro ponto importante a ser considerado é a localização da mente no
diafragma. De acordo com Reale, a descoberta do cérebro, como sede material do
conhecimento e do pensamento, foi feita somente em torno do ano 500 a.C. pelo
médico Alcméon. (REALE, 2002, p.65).
Em síntese, no contexto homérico, o corpo, como unidade, é cadáver; psyche
é a imagem do sem vida; e a mente está localizada no diafragma.
Ora, em Sócrates, vamos encontrar outro modelo de psyche, entendida como
algo interior e consciência intelectual e moral. É a alma que governa o corpo. Nessa
perspectiva, cabe ao homem cuidar de sua alma. Em seu estudo, Reale destaca que
1 Snell, Böhme, Pohlenz são os autores mencionados por Reale (2002), para refletir sobre a alma humana em Homero.
19
a definição de alma feita por Sócrates tem um caráter fenomenológico, mas não
ontológico: “Sócrates falou da alma como de uma faculdade essencial do homem,
ilustrou as funções de conhecer o bem e o mal, de dominar e dirigir as ações
humanas, mas não chegou a definir sua natureza ontologica.” (REALE, 2002, p.
158). Esse autor destaca a abordagem feita por Havelock
[...] Em suma, em vez de significar o espírito ou o espectro, ou respiração ou sangue humanos, uma coisa desprovida de sentido e de auto-consciência, acabou por significar o espírito que pensa, isto é, capaz tanto de decisão moral quanto de conhecimento científico, e a sede da responsabilidade moral, algo infinitamente precioso, uma essência única em todo o reino da natureza. (HAVELOCK apud REALE, 2002, p.141).
Assim, com Sócrates, a alma deixa de designar um espectro do homem morto e
ganha uma outra dimensão: a faculdade capaz de conhecer tanto o mundo externo,
quanto a sua própria interioridade, tornando o ser humano apto para governar suas
ações.
De acordo com Reale (2002), em Platão temos, dentre outras definições, que são
três as formas da alma:
a) a racional: parte da alma considerada divina, tem como função administrar
os desejos e as paixões. Os deuses a colocaram na cabeça;
b) a irascível: parte irracional e mortal, donde derivam os instintos de
agressão e ira. Foi colocada pelos deuses entre o diafragma e o pescoço;
c) a concupiscível: parte irracional e mortal cuja função é garantir a nutrição
do corpo. Foi posta pelos deuses entre o diafragma e o umbigo. (REALE,
2002, p.205-212).
Assim, na concepção platônica, temos a alma dividida em três partes: duas
irracionais e mortais - a irascível e a concupiscível - localizadas no corpo entre o
umbigo e o pescoço; e a parte da alma racional e imortal localizada
na cabeça - lugar privilegiado do logos, da razão discursiva. Desse modo, no
contexto platônico, o homem tem um corpo mortal e uma alma racional imortal.
Ora, para cuidar de si, Reale, por intermédio de Sócrates, nos esclarece que
é preciso conhecer-se a si mesmo. Nesse sentido, destacamos o seguinte fragmento
do diálogo entre Sócrates e Alcibíades,
20
Sócrates – E então? Jamais poderemos saber qual é a arte de tornar melhores a nós mesmos, se ignoramos o que nós mesmos somos. Alcibíades – Impossível. Sócrates – E, portanto, conhecer a si mesmo é coisa fácil e era talvez um homem qualquer aquele que, no templo de Delfos, consagrou aquele mote? Ou é, ao invés, uma coisa difícil para todos? Alcibíades – A mim, Sócrates, amiúde pareceu ser coisa de todos, normalmente dificílima. Sócrates – Mas, ó Alcibíades, fácil ou não, para nós é assim: se nos conhecermos, saberemos talvez também qual é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecermos, jamais o saberemos. (SÓCRATES apud REALE, 2002, p.143).
No entanto, em Platão, seja o homem considerado corpo ou alma ou o
conjunto corpo e alma, o homem é sua Psyche, e, mesmo que ela tenha em si,
sentimentos e paixões, ela deve ser comanda por sua inteligência.
Cabe indagar, diante do exposto, se não estaríamos, aqui, diante de uma
primeira proposta de uma terapia da alma, isto é, de uma psicoterapia de cunho
filosófico? Em outros termos, tratar-se-ia de uma técnica de si , fundamentada no
cuidar de si , via conhecimento de si .
Segundo essa perspectiva filosófica, a razão deve governar o pathos, sua nau
interior, para que a alma alcance, assim, sua serenidade - condição indispensável
para que o homem, da época de Platão, tenha uma vida boa.
A Psicanálise, em conformidade com Foucault, é uma técnica de si que mais
se aproxima do cuidar de si. Entretanto, seja no discurso filosófico ou no discurso
psicanalítico, o que nos importa destacar, como pertinente à nossa pesquisa, é que
o cuidar de si , via conhecimento de si , se dá através de uma interação
discursiva . O que vai diferenciar tais discursos são seus conceitos de corpo e de
alma atrelados as suas respectivas concepções sobre o pensamento humano . Se
o enfoque de Platão foi dado ao pensamento racional; o de Freud, recai sobre o
pensamento inconsciente. Daí ser necessário refletirmos sobre a relação entre
inconsciente e linguagem. Mas, antes disso, torna-se imprescindível uma breve
investigação da concepção cartesiana sobre corpo e alma.
2.1.3 - A influência cartesiana na concepção corpo e alma
21
A questão sobre corpo e alma é retomada por Descartes em suas
Meditações. Nela obtemos o esclarecimento de que o corpo é distinto da alma e esta
independe do corpo para existir. Para o autor, o corpo não pode ser compreendido
através das sensações de tato, visão, audição e olfato, pois o sentir nada é senão
pensar. (DESCARTES, 1983, p. 95). Em outros termos, isso significa que não é
através da visão e do tato que conhecemos os objetos, mas por concebê-los pelo
pensamento.
Quanto à imaginação, Descartes assegura que ela não é necessária à
essência do espírito. Um exemplo disso é que ele consegue pensar em um
quiliógono da mesma forma que concebe um triângulo, mas, segundo o autor, “não
posso imaginar os mil lados de um quiliógono como faço com os três lados de um
triângulo, nem, por assim dizer, vê-los como presentes com os olhos de meu
espírito.” (DESCARTES, 1983, p.130)
Em seu Tratado do homem, o autor sustenta a hipótese de que a sede de
união do corpo-máquina com uma alma racional é o cérebro. (DESCARTES, 1993,
p.158). Mais precisamente a superfície da glândula H “sede da imaginação e do
senso comum, que devem ser tomadas como idéias, ou seja, como formas ou
imagens que a alma racional considerará imediatamente, quando estando unida a
esta máquina imaginar ou sentir qualquer objeto.” (DESCARTES, 1993, p.182).
Desse modo, não concebemos os corpos pela imaginação nem pelos sentidos, mas
pela faculdade de entender. Assim, o pensar passa a ter a primazia sobre o corpo.
Essa concepção cartesiana é a responsável pela dicotomia corpo e espírito que irá
influenciar o pensamento ocidental moderno como um todo.
2.1.4 – Origem/natureza da linguagem
Ao indagarmos sobre a origem da linguagem temos que enfrentar, logo de
imediato, a seguinte questão: a linguagem é algo inato ou uma aquisição cultural?
Steven Pinker (2004), em seu texto O instinto da linguagem, afirma que
Chomsky, ao defender a tese de que a linguagem é um instinto, foi o responsável
pelas grandes mudanças ocorridas tanto na ciência cognitiva, quanto na ciência da
linguagem.
22
No início de sua conferência Novos horizontes no Estudo da Linguagem –
proferida em 18 de novembro de 1996, na Universidade Federal do Rio de Janeiro –,
Chomsky (1997) sustenta a hipótese de que podemos considerar a faculdade
humana de linguagem como uma propriedade da espécie. O autor concorda com
que a distinção entre o ser humano e os outros animais e as máquinas é a
habilidade humana no uso dos signos linguísticos para expressar pensamentos
formados livremente. Segundo Chomsky, há, na linguagem humana, uma
propriedade elementar: a da infinitude discreta. Essa propriedade não é aprendida,
mas é inerente à mente, ou seja, algo da ordem do biológico. Os números naturais,
o alfabeto, a quantidade finita de sons numa infinidade de expressões com sentido
são produtos da propriedade da infinitude discreta, fruto da evolução biológica sobre
a qual, teoricamente, nada sabemos.
Chomsky considera a faculdade de linguagem um órgão linguístico, isto é,
uma expressão dos gens e, tal como qualquer outro órgão do corpo, um subsistema
de uma estrutura complexa. No entanto, saber como isso acontece faz parte de um
projeto a longo prazo. O que se tem feito, no momento, é investigar o estado inicial
geneticamente determinado. Cada língua é o resultado de dois fatores: o estado
inicial e o curso da experiência. Podemos, então, conceber o estado inicial como um
mecanismo de aquisição de linguagem
que recebe como dados de entrada (input) a experiência, e fornece como saída (output) a língua – saída esta que constitui um objeto internamente representado na mente/cérebro. Tanto a entrada quanto a saída estão à nossa disposição para serem examinadas: podemos estudar o transcorrer da experiência e podemos estudar as propriedades das línguas que são adquiridas. (CHOMSKY, 1997, p.51).
Nota-se que essa concepção de língua é a de algo como “nosso modo de
falar e de compreender”. O enfoque dado pelo autor está voltado para a faculdade
de linguagem: “seu estado inicial, e os estados que ela assume.” Em outros termos,
de uma língua internalizada, capaz de determinar “um conjunto de expressões
infinito, cada um com seu som e sua significação.” (CHOMSKY, 1997, p.52). Essa
teoria da língua é denominada gramática gerativa. Trata-se de uma abordagem
mentalista, mas que leva em consideração “os aspectos mentais do mundo”. Seu
objeto de estudo é o cérebro, seus estados e funções, numa tentativa de integrar o
estudo da mente às ciências biológicas.
23
A tese forte de Chomsky é a de que são duas as condições de uma teoria
genuína da linguagem humana: adequação descritiva e adequação explicativa. De
um lado, as pesquisas desenvolvidas pela abordagem da adequação descritiva têm
resultado numa crescente complexidade e variedade dos sistemas de regras. De
outro, as da adequação explicativa têm requerido “que a estrutura das línguas seja
invariante, exceto nas partes marginais.” (CHOMSKY, 1997, p.55). No entanto, o
autor nos adverte que estamos lidando com um programa de pesquisa e não com
um produto pronto. Sendo que, o objetivo “é descobrir e esclarecer os princípios e
parâmetros e a formação de sua interação, e estender o arcabouço para incluir
outros aspectos da língua e seu uso”. (CHOMSKY, 1997, p.57). Nesse sentido, “o
programa minimalista é um esforço para explorar estas questões”.
Embora admita explicitamente a influência da teoria de Chomsky sobre seu
trabalho, Pinker faz crítica tal como: a não aceitação, por parte de Chomsky, da
possibilidade de explicação das origens do órgão da linguagem através da teoria da
seleção natural, tal como proposta por Darwin ou que
as teses de Chomsky sobre a natureza da faculdade da linguagem baseiam-se em análises técnicas da estrutura das palavras e frases, muitas vezes expressas em abstrusos formalismos. Suas discussões sobre falantes de carne e osso são superficiais e muito idealizadas. (PINKER, 2004, p.17).
Contudo, Pinker destaca como pontos fundamentais na teoria de Chomsky:
primeiro, a capacidade do cérebro humano de produzir um conjunto infinito de
frases; segundo, as crianças desenvolverem gramáticas complexas sem instrução
formal.
Assim, inspirando-se, em parte, na teoria de Chomsky e também no
pensamento darwiniano de que a linguagem é um tipo de instinto, Pinker vai
sustentar a tese de que a linguagem verbal é um instinto humano, um produto
biológico. Sua justificativa é a de que não há nenhuma tribo, por mais primitiva, que
não tenha uma língua. Segundo o autor,
A universalidade da linguagem complexa é uma descoberta que enche os linguistas de admiração e temor, e é a primeira razão para suspeitar que a linguagem não é apenas uma invenção cultural qualquer mas produto de um instinto humano específico. (PINKER, 2004, p.21).
24
Todavia, Pinker argumenta que, para céticos obstinados como o filósofo
Hilary Putnam, a tese de que a linguagem humana é inata, não prova nada. Para
demonstrar a pertinência de sua tese de que existe um instinto de linguagem, Pinker
vai se valer de sua própria especialidade profissional: o estudo do desenvolvimento
da linguagem nas crianças.
O ponto central da tese é que a linguagem complexa é universal porque as crianças efetivamente a reinventam, geração após geração – não porque a aprendem, não porque são em geral inteligentes, não porque é útil para elas, mas porque não têm alternativa. (PINKER, 2004, p.28-29).
Os indícios dessa reinvenção, segundo o autor, podem ser observados a
partir da mistura de línguas, deliberada ou não, pelos trabalhadores: do lado do
Atlântico, os escravos e, no sul do pacifico, o servos contratados. Tendo que cumprir
suas tarefas e não tendo como aprender a língua uns dos outros, esses
trabalhadores foram levados a desenvolver um jargão provisório: o Pidgin.
Pidgins são cadeias precárias de palavras tomadas da língua dos colonizadores ou donos de plantações, que variam muito em termos de ordem e são pobres no que se refere à gramática. Às vezes, um pidgin pode se tornar uma língua franca ganhando em complexidade, com o passar do tempo, como ocorreu com o “Pidgin English” do Pacífico Sul moderno. (PINKER, 2004, p.29).
No entanto, no uso mais complexo da linguagem, as crianças podem
transformar pidgin em crioulo, como foi o caso das crianças havaianas. “Crioulas são
línguas genuínas, com ordem de palavras padronizadas e marcadores gramaticais
que faltavam no pidgin dos imigrantes e que, afora o som das palavras, não foram
tomados da língua dos colonizadores.” (PINKER, 2004, p.33).
Em conformidade com Pinker, “o mesmo tipo de genialidade linguística está
presente cada vez que uma criança aprende sua língua materna.” (PINKER, 2004,
p.39).
Outro ponto que destacamos como importante nas reflexões desse autor é
sua afirmação de que é um absurdo sustentar que o pensamento é o mesmo que
linguagem. Se houvesse uma dependência do pensamento em relação à linguagem
como poderia surgir uma palavra nova? “Para começo de conversa, como uma
criança poderia aprender uma palavra? Como poderia ser possível a tradução de
uma língua para outra?” (PINKER, 2004, p.63).
25
Ainda que sejam pertinentes as teses colocadas por Pinker sobre o instinto da
linguagem e que o pensamento e a linguagem são diferentes, temos que dialogar
com outros pensadores, para avançarmos um pouco mais em nossa reflexão sobre
a origem da linguagem. Cabe, no entanto, uma observação que consideramos
pertinente. Ora, se a linguagem é um instinto e o pensamento é anterior à
linguagem, não seria o pensamento também um instinto?
Embora reconheçamos os méritos das perspectivas, tanto, de Chomsky, que
coloca que a linguagem é inata, quanto, de Pinker, que propõe pensar a linguagem
como um instinto, é necessário aprofundarmos nossa discussão sobre a origem da
linguagem, no plano biológico. Nesse sentido, vamos tomar, como objeto de
reflexão, a teoria dos grupos neurais de Edelman, mais especificamente, seu texto
Biologia da consciência.
Admitindo a hipótese de que “a fala é um atributo específico e exclusivo do
Homo sapiens,” Edelman coloca a seguinte questão: “Podemos explicar” a fala “em
sua emergência sem criarmos um fosso entre a lingüística e a biologia? Sim, desde
que possamos explicar a fala em termos não só genéticos como também
epigenéticos.” (EDELMAN, 1995, p. 184).
Em conformidade com o autor, a origem da linguagem nos hominídeos está
vinculada à sua posição bípede. Mais particularmente, essa posição acarretou
alterações na estrutura da base craniana, de uma parte anatômica, exclusivamente
humana: o espaço ou andar supraglótico. É importante lembrar que fazem parte do
espaço supraglótico a laringe, a faringe, a epiglote, a cavidade oral e a cavidade
nasal.
Na criança, o espaço supraglótico atinge seu desenvolvimento evolutivo com
a descida da laringe, o que possibilita que o ar exalado faça vibrar as cordas vocais
e, sendo modulado, por sua vez, pela língua, dentes e lábios, produz sons
articulados: os fonemas. No caso da deglutição, a epiglote tem uma função
importante: a de fechar as vias respiratórias. Caso contrário, há o risco de
sufocação.
26
Figura 2: o andar supraglótico nos seres humanos.
Fonte: EDELMAN, 1995, p. 185.
Especula-se que junto ou muito próximo à conquista da posição bípede - ao
surgimento do espaço supraglótico - despontam, no hemisfério esquerdo do cérebro
humano, as denominadas área de Broca e área de Wernicke. São elas que
estabelecem “a comunicação entre as áreas acústica, motora e conceptual do
cérebro, por intermédio de ligações reentrantes.” (EDELMAN, 1995, p. 184).
Figura 3: Áreas do cérebro destinadas à produção da fala.
Fonte: EDELMAN, 1995, p. 186.
27
Para Edelman, a interligação das áreas de Broca e de Wernicke é “um
ordenamento sensitivo-motor mais sofisticado”, responsável pela produção e
categorização da fala. E mais ainda, elas criam um sistema de memória capaz de
recategorizar os fonemas. No entanto, cabe indagar sobre o que teria levado alguns
hominídeos a uma evolução tão significativa e que os possibilitou a se
transformarem em outra forma de animal humano? O que teria ocorrido para que se
colocassem de pé e o que os possibilitou a aquisição da inteligência e da
linguagem? Que outra especulação, que outra explicação teríamos para o
ocorrência de tal fenômeno?
Uma outra especulação sobre essa passagem de hominídeo a homem, bem
como a origem da linguagem nos é dada por Freud em companhia de seus colegas,
Fritz Wittels e Ferenczi. Trata-se de um manuscrito, aliás de uma correspondência
de Freud à Ferenczi. A carta começa assim: “Caro amigo, Envio ao senhor, aqui, o
rascunho do /ensaio/ XII, o qual certamente irá lhe interessar. Pode jogar fora ou
guardar. (...)” (FREUD, 1987, p.74).
“Foi o Dr. Wittels que primeiro enunciou a idéia de que o primata teria passado sua existência num ambiente extremamente rico, satisfazendo todas as suas necessidades. O eco dessa situação temos no mito do paraíso original. Lá, ele pode ter superado a periodicidade da libido, que é ainda inerente aos mamíferos. Ferenczi, naquele trabalho mencionado, rico de pensamentos, expôs que o desenvolvimento ulterior desse homem primitivo realizou-se sob a influência dos destinos geológicos da Terra e especialmente as agruras dos tempos glaciais teriam exercido o estímulo para o seu desenvolvimento cultural.” (FREUD, 1987, p.74).
No entanto, temos noutro texto de Freud (1930), O mal-estar na cultura, uma
nota de rodapé (1699), na qual o mesmo tema retorna com a contribuição, agora, de
Daly, C. D. sobre a mitologia hindu e o complexo de castração.
Tendo em vista o que foi apresentado, levando em consideração os textos
freudianos acima indicados, apresentamos a seguinte síntese: hominídeos viviam
sobre a face da terra em plena harmonia com a natureza, ou melhor, uma espécie
de mãe-natureza que lhes proporcionava os recursos alimentares necessários a sua
sobrevivência. Nesse período, movimentavam-se como quadrúpedes, sua
sexualidade era regida pelo olfato, e eles não falavam. Eis que, num determinado
momento, o planeta terra passou por um período de resfriamento, conhecido como
era glacial. Assim, os hominídeos tiveram que se adaptar aos novos tempos e
28
passaram por transformações tanto físicas quanto no seu modo de vida. Os
alimentos, antes disponíveis no plano horizontal e ao alcance das mãos, estavam
agora soterrados pelo gelo. Restavam então os alimentos disponíveis em árvores, o
que exigiu dos hominídeos o desenvolvimento de uma postura bípede como também
de um olhar não mais para a superfície, mas para o alto - para um outro horizonte.
Essas mudanças, tanto climáticas quanto do corpo e do comportamento dos
hominídeos, trouxeram como consequências filogenéticas:
- primeiro, uma tristeza profunda, uma espécie de angústia real, devido à falta de
alimentos, antes fornecidos fartamente pela mãe-natureza. A partir de então, teriam
os hominídeos que procurar pelos alimentos.
- segundo, como não havia alimentos para todos, houve uma restrição à procriação,
como um dever social. Assim, o conflito entre prazer de procriar e a auto-
preservação, teve como resultados: por um lado, nas mulheres, a invenção da
conversão histérica, deixando sua sexualidade de ser regida pela natureza.
Kantianamente, não se trata mais de querer, de poder fazer sexo, mas de dever ou
não. Nesse momento, o homem ainda não falava. Em conformidade com Freud,
“quando, vencido pela necessidade, se impôs não procriar, portanto, ainda não havia
erguido o sistema pcs acima do ics. Sob a influência das proibições regridem para a
histeria de conversão os que tiverem com essa disposição, especialmente a mulher.”
(FREUD, 1987, p.76). 2
- terceiro, ao se colocar na posição bípede, houve uma modificação na sua
sexualidade, não sendo regida mais pelo olfato, mas pela visão. Em outros termos, a
sexualidade perde o ciclo intermitente, ligado às sensações olfativas e adquire,
através das sensações visuais, um caráter permanente.
- quarto, logo após aprender a reduzir sua atividade sexual, a inteligência ganha
para o homem o papel principal, o que possibilita o surgimento da linguagem verbal
e do próprio eu.
Aprendeu a pesquisar, a entender de alguma maneira o mundo adverso e a assegurar para si através das invenções um primeiro domínio sobre o mundo. Desenvolveu-se sob o signo da energia, formava os princípios da linguagem e precisava prestar grande importância às novas conquistas. A
2 Vale ressaltar que, no texto O inconsciente escrito em 1915, Freud nos esclarece sobre a diferenciação entre sistema Inconsciente e sistema pré-consciente. No sistema inconsciente (Ics) temos, como conteúdo, as representações de coisa; e, no sistema pré-consciente (Pcs), as representações de palavra.
29
linguagem era para ele magia; seus pensamentos pareciam-lhe onipotentes; compreendia o mundo através de seu próprio eu. É a época da concepção anímica do mundo e de sua técnica mágica. (FREUD, 1987, p.76-77).
Encontramos aqui os traços característicos de uma neurose obsessiva:
“acentuação exagerada do pensar; a energia gigantesca, retornando na compulsão;
a onipotência do pensamento; a tendência para leis invioláveis.” (FREUD, 1987,
p.77).
Segundo nosso entendimento, para que surgisse a linguagem e a concepção
do próprio eu, houve a evolução e o desenvolvimento de um processo muito
complexo. A energia não gasta na atividade sexual foi transferida para a atividade
intelectual, ou seja, para as primeiras categorizações: as representações de coisa
presentes no sistema inconsciente. Só-depois é que surge a linguagem, por meio da
categorização das representações de palavra, formando o sistema pré-consciente. A
consciência vai depender das ligações reentrantes entre esses dois sistemas.
Nesse período surge, em hordas isoladas, a figura do pai primitivo: um
homem sábio, forte e brutal. Tendo se tornado o grande provedor, esse pai caminha
em direção ao desenvolvimento da cultura e, através de seu poder, estabelece
“as duas primeiras normas: sua inviolabilidade e que não pudesse ser negado a ele
dispor de todas as mulheres.” (FREUD, 1987, p.77). Como podemos observar, essas
novas regras de convivência beneficiam somente a um: o pai da horda. É isto que
vai levá-lo a sucumbir e, simultaneamente, se tornar uma “divindade”. Termina aqui
a primeira fase do desenvolvimento da cultura humana: a do pai cultural patriarcal.
Posteriormente, a morte desse pai primitivo pelos filhos dará origem à culpa e a uma
cultura fraternal. Assim, as disposições para as denominadas neuroses de
transferência -a neurose de angústia, a histeria de conversão e a neurose obsessiva
- estão atreladas ao desenvolvimento humano em sua primeira geração. Nas
palavras de Freud, a neurose é também uma aquisição cultural.
As neuroses narcísicas são produtos da segunda geração. No ínicio, dessa
fase, temos a seguinte relação entre o pai primitivo e seus filhos: ou nada é
permitido aos filhos ou, caso contrário, eles são expulsos ou castrados.
Desse modo, ao serem expulsos, os filhos aprendem, por meio de uma
relação fraterna, a sublimar sua homossexualidade e a lutar pela sobrevivência do
grupo, criando os sentimentos sociais tão caros à sociedade futura. Esses traços
30
são encontrados na paranóia, “na qual não faltam alianças secretas e o perseguidor
representa um magnífico papel.” (FREUD, 1987, p. 79).
A castração leva à extinção da libido e à interrupção do desenvolvimento
individual. Conforme salienta Freud, “A demência precoce parece repetir esse
estado de coisas, e, principalmente na forma hebefrênica, leva à desistência de
qualquer objeto de amor, involução de todas as sublimações e volta ao auto-
erotismo.” (FREUD, 1987, p. 78).
Quanto à melancolia-mania, ela estaria vinculada, por um lado, ao triunfo
sobre a morte do pai primitivo; e por outro, ao luto pela mesma morte, que advém da
identificação com ele.
No entanto, o autor alerta: “Se o paralelo aqui esboçado não é mais que uma
comparação lúdica na medida em que não consegue iluminar o enigma das
neuroses, deve ceder o esclarecimento às futuras pesquisas e novas experiências.”
(FREUD, 1987, p.80).
Observamos, nessas especulações sobre a origem da linguagem no homem -
tanto na teoria de Edelman quanto na de Freud - que embora plausíveis, não
passam de contos filogenéticos, já que não há nenhum tipo de comprovação,
científica ou não, de tal acontecimento.
Partindo ainda da posição bípede em que se colocou o homem,
apresentamos uma terceira explicação e propomos um outro esquema baseado nas
especulações de Freud e Edelman.
POSIÇÃO BÍPEDE HUMANA
CONSEQUÊNCIA DESDOBRAMENTO
Na teoria de Edelman
Surgimento do espaço supraglótico
- Surge no hemisfério esquerdo do cérebro: as áreas de Broca e Wernicke. - Sistema de memória. - Comunicação entre essas áreas via ligações reentrantes. - Produção e categorização da fala. - construção da gramática: do fonético ao semântico e só depois, ao sintático.
Na teoria de Freud
- Inteligência: início do uso da linguagem.
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- Sexualidade: deslocamento do olfato para a visão. - Redução da atividade sexual.
- Surgimento do Eu. - Concepção anímica do mundo. - Aprende a pesquisar. - Começa a entender o mundo adverso. - Inventa um primeiro domínio sobre o mundo. - Tem origem a cultura.
Quadro 1 – Posição bípede e seus desdobramentos
Fonte: Elaborado pelo autor
Conforme vimos, foi a luta pela sobrevivência que levou parte dos hominídeos
a se colocar na posição bípede. Nota-se que esse novo modo de se postar diante do
mundo, acarretou mudanças substanciais. Dentre elas, houve uma redução da
atividade sexual, que deixou de ser regulada pelo olfato e passou para o domínio da
visão. Temos aqui literalmente, uma transferência de sentido: do olfativo ao visual.
Nessa dimensão, o olho ganha, assim, uma função a mais: além da capacidade de
visualização, ele se torna visual-erógeno. Com isso, não só o corpo-a-corpo da
relação sexual ganha com a nova posição, na medida em que surge uma atitude
outra – o face a face – a paixão.
(...) Processo maior de aquisição e de crescimento, a paixão nasce desses frente a frente, face a face, vis-à-vis e corpo a corpo. Adquire-se a palavra como eco muscular e nervoso, e o refinamento dos músculos requeridos por ela alcança o mesmo refinamento dos músculos recrutados pela escrita. (SERRES, 2004, p.24).
Tomando de empréstimo a Lacan o seu esquema L, podemos dizer que o
face a face corresponderia ao registro do imaginário, à imagem invertida do espelho.
Em Conformidade com Vallejo (1979), é um equívoco considerar que alguém se veja
no espelho. Para o autor, o sujeito se vê desde o espelho. Desse modo,
argumentamos que, no face a face, o espelho é o outro. Portanto, sem a interação
imaginária eu-outro , sem a construção da imagem subjetiva corporal, sem esse eu
imaginário que nos permite diferenciar o eu próprio e o outro , não é possível ter
acesso ao simbólico - à dimensão da linguagem, ao código, à cultura. Desse modo,
sem um eu imaginário, não há um eu simbólico.
Concomitantemente, segundo nos esclarece Edelman, a posição bípede
levou a uma alteração anatômica na estrutura da base craniana - o espaço
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supraglótico formado pela laringe, faringe, epiglote, cavidade oral e nasal. Logo em
seguida, surgem no cérebro as áreas acústica, motora e conceptual que passam a
se comunicar por meio de ligações reentrantes. Assim, tornou-se possível a
produção e categorização da fala, isto é, a construção da gramática humana:
fonológica, semântica e sintática.
No entanto, cabe observar que, em conformidade com Serres, na posição de
quadrúpede, a fêmea dos hominídeos “mostra seu sexo por trás, enquanto o macho
oculta o seu sob seu ventre; ao se erguerem, tudo se inverte, o macho passa a
mostrar o que a fêmea esconde.” (SERRES, 2004, p.24). No entanto, segundo o
autor, a aquisição da posição ereta depende mais dos ouvidos, que dos olhos, pois
para saltar, andar, correr e sustentar-se é necessária a sensação de equilíbrio sobre
os pés, regida pelo labirinto ou ouvido interno e, cabe-nos acrescentar, também pelo
cerebelo.
Entretanto, vale dizer que o labirinto é formado por dois sistemas:
a) o vestibular , responsável pelo nosso sentido de equilíbrio corporal;
b) o coclear , que possui um elemento imprescindível para o
desenvolvimento da linguagem verbal: o sentido da audição. Mas não só o
labirinto está também interligado à visão. Desse modo, uma coisa é,
estando numa posição fixa, termos a visão e/ou a audição de um ser ou
objeto em movimento; outra, é estarmos em movimento - saltando,
andando, correndo, visualizarmos e/ou ouvirmos um ser ou um objeto,
tanto em estado fixo, quanto em movimento. Em outros termos, é o
labirinto com seus sistemas vestibular e coclear - que integra o equilíbrio,
a audição e o olhar, que permite ao corpo se movimentar, se direcionar,
sem perder o foco.
Ora, podemos dizer, baseando-nos no pensamento do antropólogo Gordon
Hewes, que os hominídeos, ao passarem da posição quadrúpede à posição bípede,
tiveram suas mãos liberadas, isto é, as mãos que antes serviam para a locomoção,
passaram a ter novas funções, tais como: a comunicação gestual, a fabricação e o
manuseio de objetos.
Em conformidade com Fritjof Capra (2002), antes de começar a falar, as
crianças gesticulam e quando nós adultos não falamos uma determinada língua,
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recorremos aos gestos. Esse autor coloca a seguinte questão: “como é que os
nossos ancestrais hominídeos transpuseram o abismo que separa os movimentos
das mãos das correntes de palavras que saem da boca?” (CAPRA, 2002, p.64). Ele
nos diz que a resposta a esse enigma foi dada pelo neurologista Doreen Kimura,
que defende a ideia de que tanto a fala quanto os movimentos precisos, aparentam
ser controlados pela mesma região motora do cérebro. Essa descoberta de Kimura
levou Roger Fouts a afirmar “A linguagem de sinais faz uso de gestos das mãos; a
linguagem falada, de gestos da língua. A língua faz movimentos precisos e pára em
locais específicos da boca para que possamos produzir certos sinais”. (FOUTS apud
CAPRA, 2002, p.65).
Posteriormente, Fouts entendeu que a afirmação dos médicos sobre o
problema de linguagem nas crianças autistas deve ser entendido como problemas
com a linguagem falada e passou a utilizar com essas crianças a linguagem de
sinais. Com essa técnica houve uma mudança substancial na comunicação de
algumas crianças autistas.
2.1.5 - A linguagem e o cérebro
Para explicar como os processos fisiológicos se relacionam com os
psicológicos, Edelman vai propor sua complexa Teoria da Seleção dos Grupos
Neuronais (TSGN) que tem, como princípios fundamentais, a seleção de grupos
neuronais, reentrada e cartografia global, cujo objetivo principal é explicar a biologia
da consciência.
Dentre as características essenciais da construção teórica, preconizadas pelo
autor, destacamos a de “explicar a existência e as funções dos mapas cerebrais – a
sua oscilação e as generalizações das respostas perceptivas mesmo na ausência de
linguagem. Eventualmente, uma teoria deste tipo necessita também explicar a
emergência da própria linguagem.” (EDELMAN, 1995, p. 125).
No plano biológico, no que diz respeito às moléculas, o sistema imunológico,
por possuir uma forma de memória, tem a capacidade de reconhecimento, de
diferenciação entre eu e não-eu. Edelman nos esclarece que o sistema imunológico
é “o responsável pela distinção entre características químicas dos vários invasores
34
virais e bacterianos (não-eu), e pelas reacções a elas; de outra forma, esses
invasores poderiam dominar os conjuntos de sistemas celulares de um organismo
individual (eu).” (EDELMAN, 1995, p. 114). Nesse sentido, ao injetar no corpo de um
indivíduo uma proteína estranha às que lhe são próprias, faz com que células
especiais - denominadas de linfócitos - produzam as moléculas especiais, os
anticorpos. De acordo com esse autor, há uma semelhança entre o sistema
imunológico e o sistema nervoso, o que lhe permite afirmar que o cérebro é um
sistema de reconhecimento seletivo, isto é, “a função cerebral segue princípios
seletivos.” (EDELMAN, 1995, p. 120). Portanto, sua proposta é, através dos
mecanismos seletivos, explicar as funções psicológicas, tais como: a percepção, a
memória e a consciência. Isso faz de sua teoria biológica do cérebro, uma ciência
de reconhecimento.
No entanto, há que se conciliar a variabilidade estrutural e funcional do
cérebro com sua tarefa de categorização. Dito de outro modo, como surgiu ao longo
da evolução a categorização perceptual e conceptual, da memória e da consciência.
De acordo com Edelman, de modo geral, a categorização tem, como referência,
critérios de valor internos, isto é, são respostas específicas, relacionadas à atividade
sensório-motora. Cabe esclarecer que a categorização perceptual é não consciente
e trata das mensagens advindas do exterior. De modo diferenciado, a categorização
conceptual, tendo como substrato as atividades de porções das cartografias globais,
advém do interior do cérebro e depende da categorização perceptual. Assim, a
interligação entre a categorização perceptual e a conceptual faz surgir na
consciência primária, uma cena, ou seja, uma imagem correlacionada. (EDELMAN,
1995, p.182).
São três os princípios básicos da teoria selecionista da função cerebral ou da
Teoria da Seleção de Grupos Neuronais, proposta por Edelman:
- O primeiro é o da Seleção no Desenvolvimento: envolve a divisão e a morte
celular, a extensão e eliminação dos prolongamentos celulares, o que implica
alterações no padrão anatômico. Estes grupos de neurônios, que surgem por
processo de seleção somática, estão implicados na competição topobiológica e
formam um repertório primário.
- O segundo não inclui mudança no padrão anatômico, determina, através de
processos bioquímicos específicos, o fortalecimento ou enfraquecimento das
conexões sinápticas. Este mecanismo, por meio da seleção, é o responsável, dentre
35
outras coisas, pela variedade de circuitos funcionais na rede anatômica. Este
conjunto de circuitos é designado de repertório secundário.
- O terceiro é denominado por Reentrada. Trata-se do principio que rege a ligação
entre os mapas cerebrais. É considerado o mais importante, por estar “subjacente
ao modo como as áreas cerebrais que surgem ao longo da evolução coordenam
entre si o aparecimento de novas funções.” (EDELMAN, 1995, p.128). Sem o
princípio de reentrada não seria possível, por exemplo, a categorização perceptiva.
Para Edelman, a reentrada constitui a base do comportamento e forma, juntamente
com a memória, uma via para o entendimento da ligação entre a fisiologia e a
psicologia.
Em sua proposta de uma teoria epigenética da fala, Edelman afirma que não
há aquisição da fala sem consciência primária e que, sem a evolução de um meio
neuronal de criação de conceitos, não é possível o desenvolvimento de uma sintaxe
e gramática ricas. Em outros termos, a capacidade do cérebro de produzir conceitos
e agir sobre eles é anterior à evolução da linguagem.
Mas como se dá, hipoteticamente, a aquisição da fala? Essa aquisição é
epigenética e evolui na seguinte ordem: do fonológico ao semântico e desse ao
sintático. Em outros termos, por meio da aprendizagem, primeiramente há o
estabelecimento de um vínculo entre a capacidade fonológica e os conceitos e
gestos, o que vai permitir o surgimento da semântica e a “acumulação de um léxico:
palavras e frases com significado. A sintaxe emerge depois ligando a aprendizagem
conceptual preexistente e a aprendizagem lexical.” (EDELMAN: 1995, p.188). No
entanto, a comunicação direta e indireta entre o fonológico, o semântico e o sintático
só se torna possível graças à memória presente nas áreas de Broca e de Wernicke
e à formação de circuitos reentrantes que as interliguem. Nesse sentido, Edelman
nos esclarece ainda que
(...) o cérebro relaciona de forma recorrente seqüências semânticas com seqüências fonológicas, gerando depois correspondências sintáticas, não a partir de regras preexistentes, mas sim tratando as regras que vão se desenvolvendo na memória como objetos próprios para manipulação conceptual. A memória, a compreensão e a produção da linguagem interactuam de formas muito variadas por meio da reentrada. (EDELMAN, 1995, p.189).
Como o próprio Edelman admite, sua concepção da linguagem é nativista,
pois está baseada na evolução de estruturas cerebrais especializadas. Entretanto, é
36
importante sublinhar que tão importante quanto a evolução dessas estruturas é a
interação com um outro falante. Essa interação com o outro não se reduz ao acesso
à linguagem, mas é ela que torna possível a constituição de um eu.
Figura 4: Esquema da aquisição da fala.
Fonte: EDELMAN, 1995, p. 187.
E o que dá origem à consciência primária? A consciência primária é um
estado mental que nos possibilita estar cientes do que ocorre ao nosso redor no
presente, isto é, na experiência atual. Trata-se de um circuito reentrante que
estabelece um vinculo entre a categorização perceptiva atual e a memória de Valor-
Categoria. Em outros termos, a memória conceptual depende da interação contínua
entre o eu, enquanto sistema interno, e o não-eu que são mensagens do mundo
37
externo e que inclui a propriocepção.3 Esse trânsito de mensagens leva ao
surgimento de memória em áreas conceptuais. Vale sublinhar que a consciência
primária é não linguística e não semântica.
Figura 5: um modelo de consciência primária.
Fonte: EDELMAN, 1995, p. 176.
A aquisição da capacidade de nos tornarmos conscientes de ser conscientes
depende, no entanto, do estabelecimento do vínculo entre os sistemas de memória
com uma representação conceptual de um eu em sua interação com o meio. Isto
exige a construção, tanto de um modelo conceptual de ipseidade, quanto de um
modelo do passado e do futuro, o que implica numa alteração na forma do indivíduo
3 Propriocepção ou cinestesia é a capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orientação sem a utilização da visão.
38
lidar com o presente imediato, isto é, surge aqui a capacidade de diferenciação entre
experiência perceptiva e modelo simbólico-conceitual. São repertórios cerebrais que
categorizam os próprios processos da consciência primária, que têm a capacidade
para o adiamento de respostas. Nessas elaborações feitas por Edelman, cabe
destacar que na aquisição da semântica temos o estabelecimento de “uma relação
dos símbolos da fala com a gratificação das necessidades afectivas fornecida por
con-específicos durante interacções de tipo parental, educativo ou sexual.”
(EDELMAN, 1995, p.191). Desse modo, a consciência elaborada requer um sujeito
pensante, capaz de refletir sobre seus atos e afetos.
Figura 6: um esquema de consciência elaborada.
Fonte: EDELMAN, 1995, p.192.
Em conformidade com Edelman,
Enquanto a incarnação do sentido e da referência pode ser relacionada com objectos e acontecimentos reais através das ligações reentrantes que
39
existem entre a memória de valor-categoria e a percepção (consciência primária), podem também ocorrer interacções simultâneas entre uma memória simbólica e os mesmos centros conceptuais. Torna-se possível uma vida interior, baseada no aparecimento de linguagem numa comunidade de falantes. (...) trata-se de uma forma elaborada de consciência, com capacidade de criar um modelo de passado, presente e futuro, um eu e um mundo. (EDELMAN, 1995, p.192-193).
Em síntese, o esquema de consciência elaborada apresenta, hipoteticamente,
a relação das áreas da linguagem com as áreas conceituais, que são as
responsáveis pelo surgimento do conceito de eu e de consciência elaborada, em
suas interações com as relações sociais ou Boolstrapping Semântico.
Nesse sentido, tomaremos de empréstimo estas concepções teóricas de
Edelman e, na teoria freudiana, os conceitos de representação de coisa e
representação de palavra, para justificar nossa hipótese de que há tanto um pensar
inconsciente fora da linguagem, quanto um pensar pré-conciente/consciente que
depende da linguagem.
Em seu ensaio O olho e o cérebro: biofilosofia da percepção visual Meyer
(2002) destaca que, em 1861, o cirurgião Paul Broca, durante a autópsia do paciente
Leborge, localiza uma lesão no hemisfério esquerdo, mais precisamente, na terceira
circunvolução frontal esquerda do cérebro. Esta lesão cerebral seria a responsável
pela perda da linguagem articulada de Leborge. No entanto, acrescenta Broca que,
neste tipo de lesão, não há o comprometimento da faculdade da linguagem, da
memória das palavras, da ação dos nervos e músculos da fonação e da articulação.
Tal lesão, que afeta as imagens motoras de verbalização e acarreta a perda da
faculdade expressiva da capacidade de falar, é denominada por Broca de afasia
motora. Esta descoberta terá o mérito de colocar um novo paradigma no estudo do
cérebro: o das localizações das funções cerebrais. Dentro desse paradigma
localizacionista, outras contribuições importantes foram surgindo.
Em 1874, Karl Wernicke sublinha que não se deve reduzir o cérebro da
linguagem à afasia motora descrita por Paul Broca. Em seu estudo sobre o cérebro,
Wernicke descobre que uma localização, mais posterior e mais alta, participa da
percepção das palavras escritas ou faladas. Ela é a sede das representações
auditivas das palavras, ou seja, dos registros de cada palavra em particular.
(MEYER, 2002, p.31). Este novo conhecimento da função cerebral permite afirmar a
existência da afasia sensorial como perda da lembrança visual da palavra, levando a
uma incapacidade para ler e escrever.
40
Por sua vez, afirma Meyer, Ludwig Lichteim sublinha que a linguagem
procede de vários territórios do cérebro, da atividade cumulativa e complementar de
centros funcionais associados e interligados. Há centros mnêmicos específicos da
leitura e da escrita que armazenam os rastros mnêmicos de estímulos auditivos e
verbais anteriores, que permitem reconhecer letras, palavras e frases para exprimir
ou compreender uma idéia. Para Meyer, as afasias dependem de um defeito de
repescagem mnemônica, eventualmente associado a uma ruptura de transmissão
entre centros envolvidos na produção da fala. (MEYER, 2002, p.32).
Em síntese, consideramos pertinente a reflexão feita por Meyer sobre a
importância da contribuição dos teóricos defensores da localização cerebral, para o
entendimento da linguagem. Principalmente, por entendermos que ela implica uma
busca de aprofundamento sobre a memória.
Figura 7: desenho neurológico feito por Freud, para identificar importantes
distúrbios da linguagem.
Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p.112
No entanto, em sua abordagem, Meyer, tal como Edelman, deixa de levar em
conta uma outra contribuição sobre o tema das afasias. Essa outra perspectiva,
embora reconheça o valor das teses defendidas por Broca, Wernicke e Lichthein, se
contrapõe a elas e considera-as insuficientes. Trata-se da abordagem funcional
psicológica, proposta em A interpretação das Afasias. Um estudo crítico, escrito em
41
1891, pelo então médico neurologista Dr. Sigmund Freud. O mérito desse texto de
Freud está em tratar, especificamente, da discussão sobre o aparelho da linguagem.
Embora seja uma abordagem neurológica da linguagem, isto é, dos distúrbios da
linguagem, muitos dos conceitos ali construídos, tal como a representação
psicológica da palavra, irão repercutir posteriormente na construção teórico-clínica
da Psicanálise Freudiana. Fazem parte da representação psicológica da palavra: as
representações de objeto - que são traços mnêmicos dos objetos - e as
representações de palavras - que também são traços mnêmicos.
Figura 8: Diagrama psicológico da representação de palavras.
Fonte: GAMWELL; SOLMS 2008, p. 108.
Acompanhando o pensamento de Edelman e Rosenfield, considero que esses
traços mnêmicos são formas de categorização que podem tanto ser conscientes,
quanto inconscientes. No esquema psicológico da representação da palavra, temos
que a representação de objeto é uma rede associativa de representações visuais,
táteis, gustativas, cinestésicas etc.. Já a palavra é uma representação complexa que
se constitui das seguintes imagens: acústica, visual da letra, motora da linguagem e
motora do escrever.
No entanto, afirma Freud que - pelo menos em relação aos substantivos -
para que haja significação, é necessária a ligação entre a imagem visual da
42
representação de objeto e a imagem acústica da representação da palavra.
(OLIVEIRA, 1999, p.16-17).
Desse modo e segundo o nosso entendimento, a linguagem depende tanto da
representação de objeto, quanto da representação de palavra. Em outros termos,
não há linguagem verbal - com produção de sentido, com significação - sem
categorização na imagem e na palavra.
Em seu estudo sobre A invenção da memória: uma nova visão do cérebro,
Rosenfield (1994) chama a atenção para o fato de que existem dois argumentos
principais no trabalho de Freud, que têm escapado aos neurocientistas e psicólogos
contemporâneos. Primeiro, a reflexão freudiana estaria criando um outro paradigma
para a abordagem das afasias, contrária à localização das funções no cérebro;
segundo, a idéia de que os afetos estruturam as recordações e as percepções, isto
é, ao estabelecer a relação entre emoção e memória, Freud estaria dando um passo
fundamental rumo ao delineamento funcional do sistema límbico. Para Rosenfield,
[...] Mais recentemente, verificou-se que as estruturas límbicas afetam também a memória. Mas essas descobertas recentes foram prenunciadas muito tempo atrás, quando Freud assinalou o papel fundamental da emoção em todas as recordações. É bem possível que sua teoria tenha fornecido uma compreensão mais completa do sistema límbico e de seu papel no funcionamento do cérebro em geral do que muitos dos fragmentados estudos neuroanatômicos que são publicados hoje. (ROSENFIELD, 1994, p.6)
Outro argumento que se opõe à ideia da localização cerebral e que
Rosenfield considera como de importante contribuição para o entendimento da
memória é a do neurologista inglês John Hughlings-Jackson. A partir de seu estudo
sobre o funcionamento do cérebro, esse autor nos esclarece que, ao espetar o dedo
com um alfinete ou ao ver um tijolo vermelho, estes estímulos não se encontram
gravados no cérebro, mas resultam numa atividade que passa a ser associada com
o objeto externo. Esse tipo de atividade envolve dois estágios: o primeiro, é
denominado de subjetivo e nele aquilo que é sentido ou percebido desperta em nós
uma imagem; o segundo, é chamado de objetivo, isto é, trata-se de uma projeção
desta imagem despertada no ambiente, seja ele ideal ou real. Assim, se, para os
teóricos da localização, a atividade cerebral tem um objeto especifico; para
Hughlings-Jackson, a atividade cerebral só ganha sentido, se estiver relacionada a
um contexto ambiental específico.
43
Em conformidade com Rosenfield, é a capacidade de criar sentidos inéditos
ou novos – rearranjando os estímulos em novos contextos – que é tão característica
da linguagem, em particular, e da função cerebral em geral.
No que se refere às emoções, destacamos no texto deste autor, duas
afirmações: uma, que as emoções, na verdade, são os organizadores poderosos
dos pensamentos e ações; outra, igualmente importante, que
[...] as emoções são essenciais para criar uma memória, porque a organizam, estabelecendo sua importância numa seqüência de eventos, exatamente como o sentido do tempo e da ordem é essencial para que uma memória seja considerada uma memória, e não um pensamento ou uma visão num instante particular, não relacionado com acontecimentos passados. (ROSENFIELD, 1994, p. 71).
Suas afirmações sobre o vínculo entre a memória e as emoções vão ao
encontro, segundo Rosenfield, tanto do pensamento de Hughlings-Jackson, quanto
do de Freud. Para Hughlings-Jackson, alguns pacientes “mudos”, em situações
emocionais intensas, podem vir a xingar, proferir palavras ou expressões
esquecidas. No tocante à teoria freudiana, tem-se que as lembranças, quando
desvinculadas do afeto, são irreconhecíveis, isto é, para recordar uma experiência
passada é necessária uma conexão com seu contexto emocional original.
Convém ressaltar que Rosenfield traz à tona um outro ponto importante a ser
considerado:
[...] As recordações analíticas são generalizações ou recategorizações de eventos passados, que derivam sua significação dos afetos a eles associados; são eventos que se tornam emocionalmente carregados e, com isso, são categorizados e “compreendidos”. De fato, para Freud, as recordações analíticas são significativas no contexto específico, no clima emocionalmente carregado da relação transferencial com o analista. (ROSENFIELD, 1994, p.77).
Essas passagens do texto de Rosenfield apontam para pontos que consideramos
relevantes para o entendimento da linguagem do analisando na relação
transferencial com o analista. É verdade que Freud afirmava que “os histéricos
sofrem de reminiscências”, isto é, de lembranças, mas cabe indagar: o que isso
significa?
Na verdade, trata-se de ideias que foram recalcadas por dois motivos
principais: o primeiro, por causar desprazer; e o segundo, por seu teor sexual.
44
Ambos são responsáveis pela perturbação do pensamento pelo afeto. Um
analisando pode dizer que está, emocionalmente triste, pela ideia A e, no processo
analítico, descobrir que a tristeza é pela ideia B. Em conformidade com Freud, a
ideia A é um substituto da ideia B, isto é, A é símbolo de B. Nesse sentido,
concordamos com Rosenfield quando ele afirma que “as recordações analíticas são
recategorizações de eventos passados”. Podemos dizer que há um deslocamento
do afeto: o desinvestimento do quantum de afeto de A e seu reinvestimento em B.
Nessa perspectiva, as recordações analíticas são da ordem do desprazer.
Essas reflexões vão ao encontro de um caso clínico de uma paciente de
Freud, denominada por ele de Emma. Eis um resumo do caso: trata-se de uma
jovem que apresenta, como sintoma, uma compulsão de não entrar sozinha em loja.
Emma relata a Freud que, aos doze anos, quando entrava numa loja, observou que
os dois vendedores estavam rindo do seu vestido. Diante dessa cena, ela saiu dali
assustada. Para Freud, a recordação evocada não é capaz de explicar o sintoma.
Posteriormente, a paciente se lembrará de uma outra cena ocorrida aos seus 8 anos
de idade. Emma tinha ido à mercearia comprar guloseimas, e o vendedor passou-lhe
a mão sobre o vestido na região genital. Provavelmente, esse vendedor teria sorrido
durante o acontecimento. Ela se recrimina por ter voltado lá novamente, logo após o
ocorrido.
Figura 9: Esquema feito por Freud sobre o caso Emma.
Fonte: Edição eletrônica das Obras Completas de Freud (1969).
Freud então nos esclarece que o sorriso, dado pelos dois vendedores à jovem
adolescente, remeteu ao sorriso dado pelo outro vendedor durante a infância de
Emma. Portanto, é em sua adolescência que ela vai compreender que sofreu um
atentado sexual quando tinha oito anos de idade. Em outros termos, houve uma
45
recategorização de um evento do passado, o que motivou, como sintoma, sua
compulsão a não entrar sozinha em loja.
Em síntese, podemos afirmar que, no relato transferencial dos analisandos,
temos que considerar tanto a linguagem emocional, quanto a linguagem simbólica,
pois elas estão entrelaçadas. Mas, o que estamos denominando linguagem
emocional e linguagem simbólica?
2.2 - A linguagem emocional e a linguagem simbólica
O estudo da relação entre linguagem e emoção, bem como suas respectivas
consequências para a subjetividade não é uma questão de interesse apenas para o
nosso trabalho clínico, mas também para o de alguns filósofos, neurocientistas,
linguistas e analistas do discurso.
Nesse sentido, sublinhamos que, em conformidade com Mari & Mendes,
(...) É impossível pensar que alguém fale sem emoção ou que colocar a linguagem em funcionamento seja um ato desprovido de quaisquer elementos emocionais; é possível que muitas vezes ela possa não ser um fator tão decisivo para o entendimento. Algum traço que possa, todavia, contaminar parte da pureza racional (fictícia) certamente será deixada pela emoção nas interações verbais. (MARI; MENDES, 2007, p.153).
Ora, a observação desses autores vem ao encontro do que constatamos
clinicamente: não há, no discurso do analisando, uma linguagem verbal pura,
desconectada da emoção. No entanto, precisamos aprofundar a discussão sobre o
que estamos denominando com o termo emoção ou por linguagem emocional.
Emoção e afeto estão, na teoria da psicanálise freudiana, vinculados ao
conceito de pulsão. Cabe dizer que a pulsão é um dos conceitos mais complexos e
controvertidos no campo psicanalítico e, por isso, não há um consenso sobre ele.
Portanto, trata-se de um conceito em esclarecimento. Para Freud, a pulsão é um
conceito limite entre o somático e o psíquico. Assim, levando em consideração a
denominada primeira tópica, não existe pulsão no aparelho psíquico. O que temos,
no aparelho psíquico, são o afeto e o representante-representação como os
representantes psíquicos da pulsão. O conceito de pulsão tem o significado de força
que impulsiona, isto é, que coloca o aparelho psíquico em funcionamento. A
46
finalidade da pulsão, ou melhor, de seus representantes psíquicos é a busca de
satisfação que pode ser tanto da ordem do prazer, quanto da ordem do desprazer.
O afeto é o quantum de energia que acompanha o representante-representação. Na
minha perspectiva, esse representante-representação diz respeito tanto à
representação de coisa, inconsciente - ao processo primário regido pelo princípio de
prazer - quanto à representação de palavra, pré-consciente - ao processo
secundário, regido pelo princípio de realidade. O que nos permite assinalar o vinculo
entre pulsão e linguagem, isto é, não há linguagem sem quantun de afeto. Vale
acrescentar que, na teoria freudiana, referente à primeira tópica, os destinos
pulsionais no psiquismo são:
a) a reversão a seu oposto;
b) o retorno em direção ao próprio eu do indivíduo;
c) o recalque;
d) a sublimação.
Para mim, o quantun de afeto se torna emoção na passagem do processo
primário inconsciente ao processo secundário pré-consciente, pois, em
conformidade com o próprio Freud, não há emoção inconsciente, ou seja, toda
emoção é da ordem da consciência. Portanto, seguindo nosso raciocínio acima
colocado, não há linguagem verbal com produção de sentido, com significação, sem
categorização na imagem, na palavra e desvinculado de afeto e emoção. É nessa
dimensão que podemos refletir sobre um desejo pulsional, uma semântica do
desejo.
No campo filosófico, a linguagem emocional e a linguagem simbólica foram
objetos de reflexão por parte de Ernst Cassirer. Em seu livro Ensaio sobre o homem:
introdução a uma filosofia da cultura humana, mais precisamente, no capítulo II –
Uma chave para a natureza do homem: o símbolo -, o autor coloca a seguinte
questão: seria possível utilizar do esquema geral de pesquisa biológica proposto
Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? (CASSIRER,
2005, p.47).
Ao fazer uma revisão crítica dos princípios da biologia, Uexküll afirma que o
pensamento biológico difere do pensamento físico e do químico. A biologia enquanto
ciência natural deve fazer uso de métodos empíricos, tais como a observação e a
47
experimentação. Seu enfoque vitalista defende o princípio da autonomia da vida. A
vida é uma realidade suprema e dependente de si mesma. Não pode ser explicada
nos termos da física ou da química. A partir desse ponto de vista, Uexküll
desenvolve um novo esquema geral de pesquisa biológica. (CASSIRER, 2005,
p.45).
Baseado em princípios empíricos, Uexküll afirma que a realidade não é a
mesma para todos os seres vivos. Cada espécie biológica tem sua própria
experiência do mundo e não há como compartilhá-la com uma outra espécie. Em
conformidade com Cassirer, a partir desse pressuposto geral, Uexküll desenvolve
um esquema engenhoso e original do mundo biológico. (CASSIRER, 2005, p.47).
A proposta de Cassirer é tomar de empréstimo o esquema geral de pesquisa
biológica de Uexküll como modelo para uma descrição e caracterização do mundo
humano. Seu argumento é que, tal como os demais organismos, a espécie humana
também é regida pelas regras biológicas. Mas há algo que somente encontramos
na espécie humana: o sistema simbólico.
[...] O círculo funcional do homem não é só quantitativamente maior; passou também por uma mudança qualitativa. O homem descobriu, por assim, dizer, um novo método para adaptar-se ao ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. (CASSIRER, 2005, p. 47).
É através dessa dimensão simbólica que o ser humano interage com a
realidade. Embora a linguagem esteja atrelada à razão, há que se levar em
consideração outro ponto importante: a existência, tanto de uma linguagem
emocional, quanto de uma linguagem da imaginação poética.
Isso porque, lado a lado com a linguagem conceitual, existe uma linguagem emocional; lado a lado com a linguagem científica ou lógica, existe uma linguagem da imaginação poética. Primariamente, a linguagem não exprime pensamentos ou idéias, mas sentimentos e afetos. (CASSIRER, 2005, p. 49).
A originalidade do pensamento de Cassirer está em sua defesa de que é
inadequado definir o homem como animal racional. Contrário a uma explicação
abstrata sobre o homem, o autor vai propor uma outra explicação fundamentada
numa abordagem empírica da natureza humana. Nisso consiste sua tese forte: o
48
homem é um animal simbólico. (CASSIRER, 2005, p. 49). Dentro dessa perspectiva,
o homem não vive somente num universo físico, mas também num universo
simbólico, no qual estão baseados a linguagem, o mito, a arte, a ciência e a religião.
Cassirer, em sua reflexão sobre a fala, vai afirmar que não se trata de um
fenômeno simples e uniforme, pois há nela diversas camadas e diferentes
elementos, tanto biológicos, quanto sistematicamente, que não pertencem ao
mesmo nível. O problema apresentado aponta para um ponto primordial para o
entendimento da linguagem do ser humano: a diferença entre linguagem emocional
e linguagem proposicional. (CASSIRER, 2005, p.55). No intuito de melhor clarificar
essa questão, o autor faz menção ao seguinte pensamento de Koehler: que a fala,
enquanto fala simbólica, está fora do alcance dos macacos antropoides, o que os
impede de um mínimo de desenvolvimento cultural. Nesse sentido, é preciso fazer
uma distinção entre sinais e símbolos. Os sinais são operadores e pertencem ao
mundo físico do ser. Os símbolos são designadores, têm um valor funcional e dizem
respeito ao mundo humano do significado. Em síntese, escreve Cassirer, podemos
dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência práticas, enquanto o
homem desenvolveu uma nova forma: uma imaginação e uma inteligência
simbólicas. (CASSIRER, 2005, p.60). Donde concluímos que, primariamente, a
linguagem exprime afetos e sentimentos, os quais o autor define como linguagem
emocional; e, secundariamente, uma linguagem conceitual, simbólica. Nesse
sentido, numa psicoterapia de inspiração analítica como a nossa, torna-se
importante levar em consideração essas duas dimensões da linguagem, tendo em
vista que elas estão entrelaçadas.
Ricoeur (1977) reconhece que Cassirer, deu uma importante contribuição,
para o entendimento da concepção da função simbólica, ao definir o simbólico como
o modo humano de objetivar e de dar sentido à realidade. Em outros termos, a
função simbólica é a mediadora geral, que possibilita à consciência construir nossos
universos de percepção e de discurso. No entanto, Ricoeur considera tal concepção
de simbólico como muito ampla.
Com o intuito de melhor esclarecer a questão sobre o simbólico, Ricoeur, por
sua vez, propõe diferenciar signo e símbolo. No signo, a função significante é válida
para outra coisa. Há no signo linguístico o estrutural e o intencional. Desse modo,
palavras diferentes podem ter significações idênticas. No entanto, essas
significações podem designar qualquer coisa.
49
“Ingressemos um pouco mais na análise semântica do signo e do símbolo. Em todo signo um veículo é portador da função significante que faz com que ele seja válido para outra coisa. Contudo, não direi que interpreto o signo sensível quando compreendo o que ele diz. A interpretação se refere a uma estrutura intencional de segundo grau que supõe que um primeiro sentido seja constituído onde algo é visado em primeiro lugar, mas onde esse algo remete a outra coisa visada apenas por ele”. (RICOEUR, 1977, p. 21).
No símbolo, há também um duplo sentido ou múltiplo sentido, mas vinculado
ao trabalho de interpretação, tal como ocorre em relação ao relato do sonho numa
psicanálise de estilo freudiano.
[...] “Direi que há símbolo onde a expressão lingüística se prestar, por seu duplo sentido ou por seus múltiplos sentidos, a um trabalho de interpretação. O que esse trabalho suscita é uma estrutura intencional que não consiste na relação do sentido com a coisa, mas numa arquitetura do sentido, numa relação do sentido com o sentido, do sentido segundo com o sentido primeiro, que essa relação seja ou não de analogia, que o sentido primeiro dissimule ou revele o sentido segundo. É essa textura que torna possível a interpretação, embora só o movimento efetivo da interpretação a torne manifesta”. (RICOEUR, 1977, p. 26).
No entanto, qual seria a relação entre linguagem, símbolo e interpretação em
Psicanálise?
2.3 - Linguagem, símbolo e interpretação em psican álise
Em seu livro, Da interpretação: ensaio sobre Freud, Paul Ricoeur (1977)
afirmava que, na atualidade, as pesquisas filosóficas estão voltadas para o problema
da linguagem.
Parece-me que há um domínio sobre o qual se entrelaçam, hoje em dia, todas as pesquisas filosóficas: o da linguagem. É aí que se cruzam as investigações de Wittgenstein, a filosofia lingüística dos ingleses, a fenomenologia oriunda de Husserl, as pesquisas de Heidegger, os trabalhos da escola bultmanniana e das outras escolas de exegese neotestamentária, os trabalhos de história comparada das religiões e de antropologia versando sobre o mito, o rito e a crença, enfim, a psicanálise. (RICOEUR, 1977, p. 15).
Ricoeur reconhece que a obra de Freud produz um outro conhecimento,
tanto sobre o psiquismo humano, quanto em relação à cultura. Há, na teoria
50
freudiana, uma articulação entre sonho, neurose, cultura que inscreve a Psicanálise
no debate contemporâneo sobre a linguagem.
O que a Traumdeutung propunha, desde 1900, era que o sonho é a mitologia privada daquele que dorme, que o mito é o sonho desperto dos povos, que o Édipo de Sófocles e o Hamlet de Shakespeare dependem da mesma interpretação que o sonho. (RICOEUR, 1977, p.16).
Mas o que isso significa? Em conformidade com Ricoeur, na teoria de
Freud sobre sonho, há uma busca pela articulação do desejo e da linguagem. É o
texto do relato do sonho “que o analista quer substituir por um outro que seria como
a palavra primitiva do desejo; assim, é de um sentido a outro sentido que se move a
análise; não é o desejo enquanto tal que se encontra situado no centro da análise,
mas sua linguagem.” (RICOEUR, 1977, p.16).
Como foi assinalado, não devemos pensar que se trata de uma interpretação
do sonho, pois, numa psicanálise de inspiração freudiana, o que se interpreta, ou
seja, o que se busca é a significação do sonho relatado. Outro ponto importante é o
que Ricoeur designa por semântica do desejo: os destinos das pulsões atrelados ao
destino do sentido. O modelo de interpretação dessa semântica do desejo é a
Traumdeutung, a interpretação dos sonhos. Nesse modelo, a linguagem é distorcida:
“quer dizer outra coisa do que aquilo que diz, tem duplo sentido, é equívoca.” O
autor vai designar como símbolo a “expressão lingüística de duplo sentido que
requer uma interpretação”. Com efeito, sua proposta é “limitar um pelo outro o
campo símbolo e o da interpretação”, isto é,
a interpretação é um trabalho de compreensão visando decifrar os símbolos. A discussão critica versará sobre o direito de procurar o critério semântico do símbolo na estrutura intencional do duplo sentido, e sobre o direito de conservar essa estrutura como o objeto privilegiado da interpretação. (RICOEUR, 1977, p.19).
Nisso consiste sua afirmação: “a interpretação é a inteligência do duplo
sentido.” O que significa dizer que, na dimensão da linguagem, o lugar da
psicanálise está vinculado aos diversos modos de interpretação dos símbolos, isto é,
do duplo sentido.
No entanto, no intuito de entendermos o que seja uma interpretação dos
símbolos, ou conforme pensamos a significação dos símbolos, vale perguntar qual o
conceito de símbolo na teoria e na clínica de Freud? Mas por que dar tanta
51
importância ao conceito de símbolo, já que não há um consenso sobre sua definição
em Psicanálise?
Ora, não podemos nos esquecer de que, por muitas vezes, Freud
denominou o sintoma como um símbolo, isto é, a expressão simbólica do desejo
inconsciente. Nesse sentido, Arrivé (2001) afirma que são três as concepções de
símbolo utilizadas por Freud:
a) símbolo mnêmico como inscrição corporal, como sintoma:
tosse, tiques histéricos, afonia, astasia (dificuldade de ficar em pé),
abasia (impossibilidade de andar) dentre outros. O que está em jogo,
na histeria, é a conversão corporal como um símbolo mnêmico;
b) símbolo onírico como uma unidade de duas faces:
uma face manifesta denominada, também, por símbolo; outra
designada como o conteúdo. Esse tipo de símbolo é comparado por
Freud à escrita ideográfica dos chineses ou aos hieróglifos egípcios;
c) símbolo como processo de simbolização:
como no caso do pequeno Hans em que o medo pelo cavalo está
substituindo o medo pelo pai ou, também, o cavalo ser o substituto
simbólico tanto da mãe, quanto do pai.
É nesse sentido, que entendemos a afirmação de Ricoeur de que “a
interpretação é um trabalho de compreensão visando decifrar os símbolos” e que
eles estão presentes nos processos psíquicos inconscientes tais como os sonhos e
os sintomas. Cabe frisar que o analista não tem um acesso direto ao sonho ou ao
sintoma, mas ao relato do sonho e do sintoma feito pelos analisandos.
Outro ponto que nos chama atenção na colocação acima feita por Ricouer,
diz respeito à questão sobre “o critério semântico do símbolo na estrutura intencional
do duplo sentido, e sobre o direito de conservar essa estrutura como o objeto
privilegiado da interpretação.” As observações feitas pelo autor vêm ao encontro de
nossas preocupações não só sobre o símbolo, mas também sobre o sentido e a
intencionalidade na linguagem transferencial do analisando. Daí nosso interesse
também em refletir sobre a linguagem e a intencionalidade.
52
2.4 - Linguagem e intencionalidade
Etimologicamente, intencionalidade vem do latim Intentionalitas e implica a
referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele. Abbagnano (1999)
coloca que esta noção estava ligada à atividade prática, donde o significado
intenção.
No dicionário, para o termo intenção (do latim intentione), Ferreira (1986)
apresenta as seguintes acepções para o termo:
a) ato de tender, intento, tenção;
b) vontade, desejo, pensamento;
c) propósito, plano, deliberação.
Em seu texto Acciones e intenciones, Mosterín demonstra a importante
distinção entre os vocábulos intenção e intento. A intenção consiste no propor; em
tender a vontade como um arco em uma certa direção. O intento implica a intenção,
mas requer além: o disparo do arco, a execução do designo. (ANSCOMBE, 1991,
p.14).
Levando em consideração a etimologia da palavra intenção, parece permitido
afirmar que intenção é o ato de tender, dirigir a vontade, o desejo, o pensamento
para um objeto.
Segundo Abbagnano (1999), o neoplatonismo árabe estendeu o sentido de
intencionalidade para designar a relação entre o conhecimento e seu objeto,
chamando os conceitos de intenções. Ele afirma que, para Avicena, a diferença
entre a lógica e as ciências reais seria o seguinte: as ciências reais têm, por objeto
as primeiras intenções, isto é, conceitos que se referem às coisas reais. A lógica
tem, como objeto, as segundas intenções, ou seja, conceitos que se referem a
outros conceitos.
Ainda de acordo com Abbagnano, temos que:
a) Na escolástica medieval, a intencionalidade é pensada como referência
ao objeto, em outros termos, como referência do signo ao seu
designato;
53
b) No século XIX, Brentano, em Psichologie von empirischen Standpunkt,
1874 retoma o conceito de intencionalidade, enquanto referência ao
objeto, como característica dos fenômenos psíquicos. Desse modo,
os fenômenos psíquicos podem ser classificados, segundo as
características de sua intencionalidade, em:
- representação : o objeto está simplesmente presente;
- juízo : o objeto é afirmado ou negado;
- sentimento : o objeto é amado ou odiado.
Como podemos observar, nos três casos, há ocorrência de atos intencionais,
que se referem a um objeto imanente.
Embora, inicialmente, Brentano considerasse que o objeto da
intencionalidade pudesse ser tanto real como irreal; posteriormente, em
Klassification der psychischen Phänomene, 1911, ele irá sublinhar que o objeto da
intencionalidade é sempre real e que a referência a um objeto irreal é indireta,
ocorrendo através de um sujeito que afirme ou negue o objeto. (ABAGNANO, 1999,
p. 577).
Husserl, influenciado pela noção de intencionalidade de Brentano, porpõe não
mais como fenômeno psíquico, e sim como a definição da própria relação entre o
sujeito e o objeto da consciência em geral. Mais tarde, Husserl irá falar de
intencionalidade atuante, significando que a vivência não se refere só ao objeto, mas
também a si mesma e é por isso ciência de si. (ABAGNANO, 1999, p. 577).
Nossas reflexões, feitas a partir dos textos de Fissete (1992), Pacherie (1993)
e Simons (1992) nos possibilitam tecer alguns esclarecimentos sobre alguns
aspectos que consideramos fundamentais para lidar, na atualidade, com a
complexidade e a polêmica em torno do debate sobre a intencionalidade.
Em seu texto - L’intentionalité: La décennie décisive, 1992 - Peter Simons
escreve que, enquanto, na filosofia do espírito, a questão central é discutir a relação
entre o pensamento e seus objetos; Brentano, em sua Psychologie von empirischen
standpunkt de 1874, pretende refletir sobre a diferença entre fenômenos mentais e
fenômenos físicos. Baseando-se no pensamento dos filósofos escolásticos da Idade
Média, Brentano sustenta a hipótese de que a característica de cada fenômeno
mental é a inexistência intencional de um objeto. É preciso salientar, no entanto,
que, por inexistência, não se deve entender não-existência, mas, existência-dentro.
54
Em certo sentido, é lícito afirmar que, embora, num primeiro momento de seu
pensamento, Brentano admitisse duas possibilidades para o objeto - de ser ou não
real -, depois definirá o objeto da intencionalidade como “real”.
Sublinhamos que Husserl acolhe esse conceito de intencionalidade, isto é,
enquanto direcionalidade dos fenômenos mentais aos objetos - tal como concebido
por Brentano - porém, não numa dimensão fenomenal, mas noemática. Segundo
Fissete, a diferença entre essas abordagens está no fato de que, para Brentano, é o
“objeto” que dá ao ato a direcionalidade; e, para Husserl, é o “noema”.
Em seu artigo, Psychologie ordinaire et intentionnalité, Pacherie (1993) coloca
a seguinte questão: a intencionalidade é susceptível de um tratamento científico?
Para a autora, a psicologia ordinária postula a existência de estados mentais
intencionais, baseando-se na noção de intencionalidade como uma relação a um
objeto, tal como definida pelos escolásticos e retomada por Brentano. Contudo, “a
primeira dificuldade é saber qual estatuto conferir à este objeto.” (PACHERIE,1993,
p.7, tradução nossa).4 Pois, noções como inexistência intencional, orientação para
um objeto, objetivo imanente, ou, se a relação intencional é intra-psíquica, se o
objeto visado é uma realidade mental ou extra-mental mostram a ambiguidade do
estatuto do objeto, tal como definido, tanto pelos escolásticos, quanto por Brentano.
Conforme destaca Pacherie, a estrutura binária da intencionalidade da teoria
de Brentano não é mais preservada na contemporaneidade. Ela nos esclarece que
Husserl, ao introduzir um terceiro termo, o noema, operou uma mediação entre o
sujeito e o objeto. Em seu Dicionário de filosofia, Abbagnano define noema como o
objeto considerado pela reflexão em seus diversos modos de ser dado: o
percebido , o recordado , o imaginado . Portanto, o noema é distinto da coisa ou do
objeto próprio. Assim, em nossa atualidade, escreve Pacherie, a questão debatida
está vinculada às relações entre intencionalidade e significação linguageira.
(PACHERIE, 1993, P.15).
Adotando uma outra perspectiva, Fisette, em seu texto de 1992, - Le contenu
intentionnel et son contexte - vai também refletir sobre a questão da
intencionalidade. Ele argumenta que a fenomenologia de Husserl é a tentativa mais
radical para pensar a intencionalidade. Desse modo, o autor propõe discutir dois
tipos de teorias da intencionalidade. De acordo com ele, os dois principais motivos
4 Minha versão para: la premiére difficulté est de savoir quel statut confere à cet objet.
55
que levaram Husserl a fazer a distinção entre noema e objeto foram, por um lado,
seu anti-psicologismo; e, por outro, as teorias que tiveram a influência de Brentano.
No entanto, a ideia de intencionalidade, enquanto direcionalidade dos fenômenos
psíquicos, é tomada de empréstimo da teoria de Brentano que afirma que é o objeto
que dá ao ato sua direção. Trata-se de um objeto intencional que inexiste
intencionalmente no ato. Em outros termos, o conteúdo de um ato, o sentido são
reduzidos a uma simples representação mental. A crítica que é feita a esta
concepção de intencionalidade é a seguinte: fazendo do conteúdo intencional um
objeto de representação, torna-se, às vezes, “impossível compreender a distinção
entre um objeto real e um objeto de pensamento (um objeto intencional), e da
objetividade de um conteúdo de pensamento.” (FISETTE, 1992, p.40). Nesse
sentido, Husserl retém a ideia de direcionalidade dos fenômenos mentais e introduz,
no intervalo da relação ato-objeto, um terceiro: o noema.
Assim, a análise desses textos nos possibilita afirmar que os impasses e
debates sobre a intencionalidade, na atualidade, giram em torno de duas vertentes:
a da dimensão do objeto, baseada no pensamento de Brentano e a da dimensão do
noema fundamentada no pensamento de Husserl.
Entretanto, para o entendimento da relação entre a intencionalidade e a
linguagem, consideramos pertinente refletirmos, primeiramente, a respeito do
princípio de intencionalidade.
Para o semioticista C. Bremond, toda sequência narrativa é ordenada pelo
princípio de intencionalidade, que é composto por:
a) um estado inicial de virtualidade da ação, na qual nasce uma falta, a qual
abre a possibilidade de um processo como busca de complemento da falta;
b) Um estado de atualização da busca que consiste em tentar obter o objeto
que complemente a falta;
c) Um estado final de realização do processo, que se fecha pela obtenção
(sucesso) ou não (fracasso) do objeto da falta. (BREMOND apud
CHARAUDEAU, 1992, p.729, tradução nossa). 5
5 “(a) Un état initial de virtualité d’action, dans lequel naît un Manque , lequel ouvre la possibilité d’un processus comme Quête de comblement de Manque . (b) Un état d’atualisacion de la Quête qui consiste à essayer d’obtenir l’objet qui comblera le Manque .
56
Portanto, na perspectiva semiótica de Bremond, o princípio de
intencionalidade se compõe de uma falta e na busca de um objeto que a
complemente. Mas de que objeto se trata? Provavelmente, de um objeto real, haja
vista que o autor coloca, como finalidade do processo, o sucesso como obtenção
real do objeto e o fracasso como a não obtenção. Nesse sentido, considero que
esse princípio de intencionalidade estaria mais próximo do conceito de
intencionalidade, tal como proposto por Brentano, segundo o qual é o objeto que dá
direcionalidade ao ato. Contudo, está mais distante da abordagem de
intencionalidade de Husserl, para quem o que dá direcionalidade ao ato é o noema.
Sobre a relação entre linguagem e intencionalidade, Searle escreve que seu
objetivo é desenvolver uma teoria da intencionalidade. No entanto, não se trata de
uma teoria geral, pois tópicos como as emoções não são discutidos. A
intencionalidade faz parte de uma série de estudos correlatos sobre a mente e a
linguagem, tais como Speech Acts e Expression and Meaning. Para ele, o
pressuposto básico subjacente à sua abordagem dos problemas da linguagem é que
a filosofia da linguagem é um ramo da filosofia da mente. Outro ponto importante é a
afirmação de que a intencionalidade é intrínseca aos estados mentais.
Um agente usa uma sentença para fazer um enunciado ou fazer uma pergunta, mas não usa desse modo suas crenças e desejos – ele simplesmente os tem. (...) Tudo isso é compatível com o fato de ser a linguagem essencialmente um fenômeno social e serem as formas de intencionalidade a ela subjacentes formas sociais. (SEARLE, 2002, p.VIII).
Para avaliar o vínculo entre intencionalidade e linguagem, consideramos que
é preciso que se leve em conta o conceito de Background, tal como estabelecido por
Searle. Background são as capacidades, aptidões e know-how que possibilitam a
atuação de nossos estados mentais. (SEARLE, 1997, p.249). Essa hipótese,
defendida por Searle, antes restrita ao sentido literal, também é válida tanto para os
significados intencionais do falante, quanto para qualquer outra forma de
intencionalidade, seja ela linguística ou não linguística. Diferentemente dos
fenômenos intencionais, o Background não é intencional. As condições de satisfação
de um estado intencional estão atreladas ao Background que lhes é adequado. No (c) Un état final de la réalisation du processus, qui se clôt par l’obtention (réusssite ) ou non (échec ) de l’objet de la Quête ."
57
entanto, os estados intencionais têm um funcionamento em Rede, pois, não há
crença ou desejo desvinculados de outras crenças e desejos. Por não serem auto-
interpretativos ou auto-aplicáveis, os elementos da Rede são dependentes de um
Background. (SEARLE, 1997, p.250). A hipótese forte do autor é a seguinte: o
Background é um conjunto de capacidades; e a Rede é inerente aos estados
intencionais. Entretanto, ele afirma que não faz sentido a distinção entre Rede e
Background, pois a Rede é aquela parte do Background que descrevemos em
termos de sua capacidade para causar intencionalidade consciente. (SEARLE,
1997, p.268). Embora o Background seja a condição de possibilidade dos estados
intencionais, ele só se manifesta na presença de conteúdos intencionais. O
Background é uma característica inerente do nosso modo de representar a realidade
e não de uma realidade representada. (SEARLE, 1997, p.268).
Assim, a interpretação de uma sentença é feita com base em um Background
de capacidades humanas. Embora possam ter o mesmo significado literal, o que
diferencia o modo de compreensão de sentenças, por exemplo, com o verbo cortar:
corte a unha, corte o salário, corte a conta bancária, corte a luz, corte o pão, são
condições de verdade diferentes vinculadas a diferentes pressuposições de
Background.
Vale perguntar - qual o interesse dessa reflexão sobre a interpretação de uma
sentença e o background, para uma abordagem clínica do ato de fala do
analisando?
Calligaris, durante uma entrevista com Searle - publicada no Jornal Folha de
São Paulo, em 05 julho de 1998 - afirma que situaria o inconsciente no Background
– pano de fundo. “Ou seja, como representações, pressupostos ou implicações que
são evocados, ativados pelos atos de palavra, mas que não estão presentes na
consciência quando o ato é produzido.” Para Searle, o Background não é um
sistema de crenças. “É algo que se situa antes da crença, é um conjunto de
posições diante do mundo. São disposições, capacidades que as pessoas têm no
trato com o mundo.” O autor se diz surpreso, pois sempre entendeu que o
inconsciente da teoria freudiana fosse intencionalista, isto é, concernente a
crenças e desejos. Em conformidade com Calligaris, a intencionalidade é
sempre consciente. Portanto, “a aparência de uma intencionalidade inconsciente é
produzida a posteriori, pela interpretação.” Na perspectiva de Searle, muitas vezes,
as patologias não estão vinculadas às crenças e aos desejos, mas à
58
capacidade de Background. Daí, segundo Calligaris, a importância que tem o
Background para “uma terapia pela palavra”.
Ora, embora seja interessante esse breve diálogo entre Calligaris e Searle
sobre a aproximação entre Background e inconsciente, temos algumas ressalvas a
fazer:
a) Primeiro, o conceito de inconsciente da teoria de Searle é algo puramente
biológico, o que não ocorre na teoria freudiana, onde temos que o inconsciente é
um sistema que faz parte do aparelho psíquico;
b) Segundo, na visão de Searle, o desejo e a crença são um meta-predicados e
são inerentes a uma intencionalidade consciente. Para Freud, o desejo pulsional
é o que coloca o aparelho psíquico em funcionamento, ou seja, não existe pulsão
no aparelho psíquico, mas sim representantes psíquicos da pulsão: o quantun de
afeto e o representante representação que são inconscientes.
Restringindo-nos a esses dois aspectos, podemos afirmar que o Background
faz parte do inconsciente, mas não corresponde ao sistema inconsciente freudiano.
Assim, podemos dizer que o desejo pulsional inconsciente tem, como intenção - a
satisfação, seja ela regida pela pulsão de vida ou pulsão de morte, isto é, da ordem
do prazer ou do gozo. Mas a sua intencionalidade - e aí estamos de acordo com
Calligaris - é produzida “só-depois”, na interação dialógica entre analisando e
analista.
Pensamos que, na escuta daquilo que é relatado pelos analisandos, torna-se
importante levar em consideração não somente o sentido ou duplo sentido, mas
também o Background e a intencionalidade - crenças e desejos. O próprio Freud
salientava que, ao invés de afirmar que o sonho é uma realização de desejo, seria
mais interessante dizer que o sonho tem uma intenção e um sentido . Em outros
termos, o sonho, em si, é uma realização de desejo, no entanto, em seu relato,
temos que buscar quais são os seus sentidos e sua intenção. Nessa perspectiva,
estamos propondo não uma interpretação – Deutung - das formações inconscientes
ou a busca de um sentido, mas a procura da significação - Bedeutung - quer seja do
ato falho, dos chistes, dos esquecimentos, como também dos relatos dos sonhos ou
dos sintomas.
59
No entanto, o enfoque de nossa pesquisa não se limita a entender como se
faz o trabalho clínico de significação da linguagem transferencial do analisando, mas
busca também explicar quais são os efeitos dela decorrentes sobre sua posição
subjetiva. E, para isso, consideramos pertinente uma reflexão sobre a questão do
sujeito e da subjetividade.
3. QUESTÃO DO SUJEITO E DA SUBJETIVIDADE
Nos campos filosófico, psicanalítico, e linguístico e em outras áreas do
conhecimento são muitas as definições de eu ou de sujeito, não havendo, de modo
geral, um consenso. Nesse sentido, não há uma teoria do sujeito ou do eu, mas uma
questão sobre o sujeito ou sobre o eu.
Não é nosso objetivo traçar um histórico do conceito de eu ou de sujeito na
tradição filosófica, mas apenas indicar sua origem na modernidade. Esse critério nos
possibilitará indagar sobre sua influência, os pontos de convergência e de
divergência no confronto com as concepções posteriores, tanto dentro, como fora,
do campo filosófico.
3.1 - A Metafísica da subjetividade
A discussão sobre a metafísica da subjetividade, isto é, a concepção de
“sujeito” ou “eu”, na modernidade, tem seu início no século XVII, com a tese forte de
René Descartes (1983): “penso, logo sou”.
À questão “o que sou eu?” Descartes responde: “sou uma coisa que pensa”
ou melhor, “eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que eu
a enuncio ou que a concebo em meu espírito”. (DESCARTES, 1983, p.92-94). Há,
na tese cartesiana, um ponto importante que cabe destacar: “eu sou, eu existo, é
necessariamente verdadeira todas as vezes que eu a enuncio.” Mas a pergunta que
colocamos é: enuncia à quem? A si mesmo e não a um outro. Sua tese não inclui a
alteridade. Trata-se de um diálogo consigo mesmo, portanto, solipsista. Em resumo,
60
na metafísica da subjetividade, tal como concebida por Descartes, “o eu é
consciência, relação consigo mesmo, subjetividade”. (ABBAGNANO, 1999, p. 388).
Ora, para Tugendhat (1993) é pertinente perguntar se “existe algo que
merece ser chamado “o EU”? Nesse sentido, o autor nos esclarece que “A pessoa
que identifico dizendo “eu” outros identificam dizendo “tu” ou “ele”. [...] A palavra
“eu”, por conseguinte, não designa um objeto em mim, um eu, mas, simplesmente,
identifica-me, se bem que somente quando uso essa palavra”. (TUGENDHAT, 1993,
p.10). Assim, para o autor, há um mal entendido na filosofia, que utiliza a expressão
“eu” para designar algo, sendo que, na verdade, trata-se de uma expressão
indexical.
Nossa hipótese é que essa concepção metafísica do sujeito racional, tal como
proposta por Descartes, tem, ainda na modernidade tardia, influenciado o modo de
pensar de grande parte da filosofia da linguagem e da linguística. Assim, o sujeito da
linguagem é sempre da ordem da consciência. Temos aqui um problema a ser
enfrentado em nossa pesquisa, pois, para a psicanálise, é preciso que se leve em
consideração o conceito de inconsciente. Nesse sentido, tem-se, por um lado, na
abordagem filosófica e na abordagem linguística, um eu racional e consciente; e, por
outro, na concepção da psicanálise freudiana, em sua segunda tópica do aparelho
psíquico, um eu que é tanto consciente, quanto inconsciente.
No entanto, cabe dizer que, na questão do sujeito da linguagem, está
implicada também a questão da verdade, isto é, nos termos de Foucault, a questão
do sujeito do conhecimento e do conhecimento do sujeito por si mesmo.
3.2 - Foucault – O sujeito e a verdade
Mas, como se dá esta relação entre o sujeito e a verdade? É a ascese, nos
diz Foucault (2006), que estabelece o vínculo entre o sujeito e a verdade, isto é, a
ascese “constitui o sujeito como sujeito de veridicção.” Trata-se de uma problemática
técnica e ética de discursos verdadeiros: da “comunicação entre quem os detém e
quem deve recebê-los e deles fazer um equipamento para a vida.” (FOUCAULT,
2006, p.449). Nesta interação, temos de um lado, o mestre a quem é dada a
responsabilidade, a atitude ética e o procedimento técnico do franco-falar, da
61
parrhesía. De outro, temos o discípulo a quem cabe, como dever moral e
procedimento técnico, o silêncio organizado e atencioso, a escuta que, em conjunto
com uma técnica e uma ética da leitura e da escrita, são considerados como
exercícios de subjetivação do discurso verdadeiro. Esta forma de interação e
expressão verdadeira é denominada de discurso do mestre. Entretanto, esse
discurso de mestria - o franco-falar, a parrhesía tem dois grandes oponentes: um
moral, a lisonja; e outro técnico, a retórica. Foucault nos esclarece que há uma
parceria entre retórica e lisonja: “pois o fundo moral da retórica é sempre lisonja, e o
instrumento privilegiado da lisonja é, bem entendido, a técnica, e eventualmente as
astúcias da retórica.” (FOUCAULT, 2006, p. 451). A lisonja está atrelada ao ganho
de poder que o inferior pode alcançar junto ao superior, isto é, favores,
benevolência, etc.. Para isso, o inferior utiliza-se do logos, ou melhor, da fala para
conseguir o que deseja de seu superior. A retórica é uma técnica que visa a
persuadir o interlocutor, convencê-lo tanto de uma verdade, quanto de uma mentira.
No entanto, como diz Foucault, o que define a retórica como arte, segundo o
pensamento de Cícero e de Quintiliano, não são as características da própria língua,
mas o assunto tratado.
[...] É este o jogo, o do assunto tratado, que definirá para a retórica o modo como deve ser organizado o discurso, como deve ser feito o preâmbulo, como deve ser feita a narratio (a narração dos acontecimentos), como se deve discutir os argumentos pró e contra. É o assunto, o referente do discurso por inteiro que deve constituir, e de onde devem derivar, as regras retórica deste discurso. (FOUCAULT, 2006, p. 463).
Portanto, nem a lisonja, nem a retórica estão comprometidas com a verdade,
tal como ocorre no franco-falar, na parrhesía.
Outra diferença entre a retórica e o franco-falar (a parrhesía) está no seu agir
sobre o outro. A função da retórica é agir sobre o outro em benefício de quem fala.
Segundo Foucault, em Filodemo, a parrhesía, o franco-falar, é também uma forma
de ação sobre o outro, mas governada pela generosidade e visa ao benefício de
quem escuta, o que abre a possibilidade de constituição de um sujeito sábio,
virtuoso. Há aqui uma transferência do franco-falar, da parrhesía do mestre à
parrhesía dos alunos, tal como proposta pela filosofia de Epicuro. A partir de então,
o falar livremente dos alunos terá, como consequência, o desenvolvimento da
benevolência e da amizade entre eles.
62
Desse modo, Foucault nos esclarece que a lisonja e a retórica não têm um
compromisso com a verdade. A finalidade de ambas é beneficiar aquele que fala. No
entanto, o acesso à verdade torna-se possível somente através do franco-falar do
discurso do mestre que, generosamente, beneficia a quem escuta.
Ora, a Psicanálise tem também um compromisso com a verdade. Mas de qual
verdade se trata? Trata-se de uma verdade da ordem da subjetividade, uma verdade
do desejo. No entanto, o discurso utilizado para esse fim não é o discurso filosófico
do mestre, mas o discurso clínico do analista. No discurso do mestre, o acesso
subjetivo à verdade se dá através do franco-falar do mestre e da escuta do aluno.
No caso do discurso clínico do analista, é o inverso: o acesso à verdade do desejo
se constrói através do franco-falar do analisando e da escuta do analista. O que há,
em comum, entre o discurso do mestre e o discurso clínico do analista é saber que a
linguagem pode ser usada também para convencer, enganar, mentir, trapacear, tal
como podemos constatar através do uso da lisonja e da retórica. Entretanto, cabe
observar que, diferentemente do discurso do mestre, no discurso clínico do analista,
a verdade pode vir à tona através do equívoco, do erro, da contradição e até mesmo
da mentira. Portanto, na questão do sujeito e da verdade, está implicada a noção de
cuidado de si mesmo.
Em seu seminário/curso, pronunciado no ano de 1982, Foucault se propôs a
refletir sobre a questão entre o sujeito e a verdade, tendo como ponto de partida a
noção de cuidado de si mesmo.6 Segundo o autor, (...) Pode-se objetar que, para
estudar as relações entre sujeito e verdade, é sem dúvida um tanto paradoxal e
passavelmente sofisticado, escolher a noção de epiméleia heatoû para a qual a
historiografia da filosofia, até presente, não concedeu maior importância.
(FOUCAULT, 2006, p.4) Desse modo, epiméleia heautoû é o cuidado de si mesmo,
o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc. No entanto, ele sublinha
que, de modo geral, no pensamento ocidental, mais precisamente na história da
filosofia, a questão das relações entre sujeito e verdade, isto é, do sujeito do
conhecimento ou do conhecimento do sujeito por ele mesmo tem sua origem num
preceito outro: a prescrição délfica do gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo).
Embora presente no culto de Apolo, o preceito délfico conhece-te a ti mesmo surge
no pensamento filosófico através de Sócrates. A tese forte defendida por Foucault é
6 Por seminário/curso denominam-se as aulas do Prof. Michel Foucault pronunciadas no Collège de France, em 1982 e editadas por Frédéric Gros com o título de A hermenêutica do sujeito.
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que o conhece-se a ti mesmo (gnôthi seautón) está subordinado ao princípio cuida
de ti mesmo (epiméleia heautoû).
De forma bem sintética o cuidar de si implica:
- uma atitude para consigo, para com os outros, para com o mundo;
- estar atento ao que se pensa e ao que se passa no pensamento;
- ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos assumimos,
nos modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos.
Em outros termos, como afirma Foucault,
Enfim, com a noção de epiméleia hautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas da subjetividade. (FOUCAULT, 2006, p. 15).
Foucault nos esclarece que nos termos de Epicuro, esse cuidar de si remete
ao ocupar-se com a saúde da alma, bem próximo de cuidados médicos, isto é,
therapéuin, num de seus significados: terapia da alma. Nesse sentido, Fílon
denomina de terapeutas aqueles que cuidam da alma - sua prática é therapeutiké,
enquanto os médicos cuidam do corpo – sendo sua prática denominada de iatrike.
Esta diferenciação entre aqueles que cuidam da alma e aqueles que cuidam
do corpo vai ao encontro das reflexões de Laín Entralgo, mais precisamente, em seu
livro La curación por la palabra en la antigüedad clásica. De acordo com o autor - e
como início de uma longa discussão - há no canto XII de Eneida uma adjetivação
curiosa sobre a arte médica. Ao cuidar de Enéas, Iapix afirma que “prefere conhecer
as virtudes das ervas e os usos do curar e exercitar sem glória as artes mudas.
Desse modo, fiel a esta virgiliana caracterização de sua preferência, Iapix, sem
palabras, só com suas mãos e suas ervas, tenta em vão a cura de Enéas, até que
Vênus se move a prestar-lhe ajuda invisível e decisiva.” 7 (LAÍN ENTRALGO, 1987,
P. 7, tradução nossa).
7 prefirió conocer las virtudes de las hierbas, y los usos del curar, y ejercitar sin gloria las artes mudas. Desse modo, fiel a esta virgiliana caracterizacion de su preferência, Iapix, sin palabras, con solo sus manos y sus herbas, intenta en vano la curacion de Enéas, hasta que Vênus se mueve a prestarle ayuda invisible y decisiva. . .
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Embora percorra a filosofia grega, helenística, romana e, também, a
espiritualidade cristã, a noção de cuidado de si vai perder seu prestígio para o
conhece-te a ti mesmo. A razão para essa mudança se deve ao que Foucault
denomina de momento cartesiano que, filosoficamente, por um lado, requalifica o
conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón); e, por outro, desqualifica o cuidado de si
(epiméleia heautoû). Assim, na perspectiva cartesiana, o conhecimento de si é
tomado como uma forma de consciência.
Torna-se, portanto, necessário explicar a noção de espiritualidade, tal como
focalizada por Foucault.
A espiritualidade postula:
a) que a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito;
b) a necessidade de que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque,
torne-se, em certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo,
para ter direito a [o] acesso à verdade;
c) a verdade só é dada ao sujeito a um preço que põe em jogo o ser mesmo
do sujeito;
d) não pode haver verdade sem conversão ou sem transformação do sujeito;
e) tal como ele é, o sujeito não é capaz de verdade.
f) A verdade é o que ilumina o sujeito;
g) A verdade é o que lhe dá tranqüilidade de alma.
Para a espiritualidade, um ato de conhecimento, em si mesmo e por si mesmo, jamais conseguiria dar acesso à verdade se não fosse preparado, acompanhado, duplicado, consumado por certa transformação do sujeito, não do indivíduo, mas do próprio sujeito no seu ser de sujeito. (FOUCAULT, 2006, p. 21).
Desse modo, em conformidade com Foucault, na Filosofia Antiga, mais
precisamente, para os pitagóricos, para Platão, para os estóicos, para os cínicos,
para os epicuristas e outros, a questão filosófica de como ter acesso à verdade
estava vinculada à questão da espiritualidade. No entanto, o mesmo não ocorre na
Filosofia Moderna, como se pode depreender da passagem seguinte:
Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que
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a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito. (FOUCAULT, 2006, p.24).
Embora não se proponha a desenvolver sua afirmação, Foucault vai pontuar
que esta espiritualidade ressurge em duas formas de saber de nossa modernidade
tardia: o Marxismo e a Psicanálise. Em relação à Psicanálise, ele coloca que a
questão das relações entre sujeito e verdade está presente no pensamento tanto de
Freud, quanto de Lacan. Mais precisamente em relação à epiméleia heautoû, o
cuidar de si, propriamente espiritual, Foucault nos esclarece que Lacan a faz
ressurgir na Psicanálise. “A questão do preço que o sujeito tem que pagar para dizer
o verdadeiro e a questão do efeito que tem sobre o sujeito o fato de que ele disse,
de que pode dizer e disse, a verdade sobre si próprio.” (FOUCAULT, 2006, p.41).
Nesse sentido, para Foucault, a Psicanálise de Freud e a de Lacan fazem ressurgir
a questão do sujeito e da verdade, via o cuidar de si, a epiméleia heautoû.
Em síntese, tanto o discurso filosófico do mestre, quanto o discurso clínico da
Psicanálise visam ao sujeito e à verdade. No entanto, podemos diferenciá-los da
seguinte forma: no discurso filosófico do mestre, a verdade está vinculada ao sujeito
do conhecimento; e, no discurso clínico da Psicanálise, a verdade está atrelada ao
conhecimento do sujeito por si mesmo.
No entanto, cabe perguntar no contexto filosófico e médico do cuidar de si, da
epiméleia heautoû, quais foram as abordagens e os tratamentos dados à histeria.
3.3 – A história da histeria: do corpo à linguagem
Para uma abordagem histórica da histeria utilizaremos do texto de P. Julien
(1996), presente no Dicionário Enciclopédico de Psicanálise. Desse modo, vamos
traçar um breve histórico do diagnóstico e do tratamento da histeria - tanto pelo
discurso filosófico, quanto médico - e avaliar a contribuição dada por Freud à
teorização e ao método psicoterápico da histeria,
Na Grécia Antiga, a histeria era diagnosticada, de acordo com Hipócrates e
também Platão, como uma doença do útero, isto é, do mau posicionamento desse
órgão ou pela agitação causada por sua ociosidade. As mulheres acometidas dessa
66
doença eram as solteiras e as viúvas. Os tratamentos indicados eram: voltar o útero
à sua posição original, fazer trabalhos manuais, manter relações sexuais ou ter
filhos.
Na Idade Média, a histeria era tida como uma possessão demoníaca. O
tratamento se restringia ao exorcismo e à condenação à fogueira.
A partir do Renascimento, organicistas como Jorden, Burton e Culen colocam
que a histeria é decorrente de um distúrbio nervoso do cérebro.
Mas foram o inglês Sydenham e o francês Pinel que deram o estatuto de
sintoma psíquico à histeria. Como afecção do espírito e não como doença do
cérebro, o tratamento indicado era o moral ou psíquico.
Os estudos da hipnose realizados, na Grã-Bretanha, por Braid e, na França,
por Mesmer e Charcot demonstraram a possibilidade de se tratar e induzir a histeria
através da hipnose. Charcot, com quem Freud foi estudar em Paris, no ano de 1885,
definiu a etiologia da histeria como hereditária e causada por um agente provocador
ocasional. O tratamento recomendado era a sugestão proibitiva via hipnose.
Com Breuer, Freud aprende que o sintoma somático histérico é causado por
um afeto ligado a lembranças inconscientes.
Vale dizer que, em relação ao método de tratamento clínico das neuroses,
Freud teve Charcot e Breuer como mestres.
O primeiro método de tratamento da histeria utilizado por Freud (1895),
conforme o texto Estudos sobre a Histeria, foi o da terapia catártica via hipnose,
descoberta por Breuer. Esse método possuía dois requisitos básicos: primeiro, que a
pessoa fosse hipnotizável; segundo, que, durante a hipnose, o campo de
consciência se tornasse mais amplo. Breuer e Freud consideravam o sintoma como
um substituto de processos psíquicos, que tinham seu acesso à consciência negado.
O objetivo desse método, na eliminação do sintoma, era levar a pessoa a se
recordar daquilo que lhe causou o trauma, isto é, das ideias e impulsos que foram
afastados da consciência e, então, comunicá-los ao médico. Tal método de
tratamento psicoterápico foi denominado pela paciente de Breuer, Ana O., como “a
cura pela fala”. O obstáculo encontrado, neste tipo de intervenção psicoterápica, foi
o de que o sintoma não tem uma causa única, mas que ele é sobredeterminado por
uma série de causas. O que ocorria, então, é que havia, posteriormente, um
deslocamento do sintoma. A diferença do método catártico de Breuer e Freud, para
67
o método hipnótico de Charcot, é que a eficácia terapêutica independe da sugestão
proibitiva do médico.
A substituição do método catártico pelo psicanalítico tornou-se possível pela
descoberta de Freud, por um lado, de que a hipnose encobria a resistência, ou seja,
o desvelamento daquilo que, no psiquismo, seria responsável pelo processo de
recalque; por outro, de que as amnésias produzidas pelo recalque têm, como
função, evitar o desprazer. O objetivo do método psicanalítico seria, então, o de
superar as resistências, suprimir as amnésias, destruir os recalques, em outros
termos, tornar acessível à consciência o que estava inconsciente. Para a realização
desse trabalho, Freud aponta, como princípios básicos: por parte do analisando, a
associação livre; e, por parte do analista, a escuta flutuante. Em síntese: o
tratamento psicanalítico se propunha a possibilitar à pessoa o restabelecimento de
sua capacidade de trabalho e gozo.
A Psicanálise era indicada, nesta época, para o tratamento da histeria e da
neurose obsessiva e colocava, como pré-requisito, as seguintes condições ao
analisando: ser capaz de um estado psíquico normal, ser inteligente e ter um certo
nível ético.
Em relação aos métodos de tratamento psicoterápicos desenvolvidos por
Charcot, Breuer e Freud8, pode-se dizer que:
a) há no método catártico de Breuer uma renúncia à sugestão proibitiva do
método de Charcot;
b) na associação livre do método psicanalítico de Freud, há uma renúncia à
hipnose utilizada nos métodos propostos por Charcot e Breuer.
3.4 - Freud e a questão do sujeito no discurso da P sicanálise
A noção de sujeito, na teoria da psicanálise freudiana, aparece implícita e
indefinida. Vale dizer que Freud, raramente, emprega esse termo - sujeito - em seus
escritos e, quando o faz, é para se referir ao registro pulsional. Nesse sentido, nossa
intenção é colocar que a questão do sujeito, no discurso da psicanálise freudiana,
8 Este tema é objeto de uma reflexão, muito pertinente, feita por Renato Mezan (2002), em seu texto A medusa e o telescópio: Freud e o olhar.
68
passa, necessariamente, pela reflexão crítica dos modelos de aparelho psíquico e
da linguagem, ambos ligados à ordem das representações: pulsional, de objeto, de
coisa e de palavra, em seus respectivos períodos - pré-psicanalítico, primeira e a
segunda tópicas.
No intuito de tornar um pouco mais clara essa hipótese, cabe definir,
inicialmente, os termos: Psicanálise, teoria ou metapsicologia e aparelho psíquico.
Assim, a Psicanálise é definida por Freud como sendo:
a) um procedimento de investigação dos processos psíquicos inconscientes;
b) um método psicoterápico;
c) uma teoria, denominada, também, metapsicologia.
O conceito de teoria tem muitos significados. Segundo Domingues (2000),
"teoria vem de Theoròs, sujeito que, na Grécia, via, contemplava, observava as
regras dos jogos. Portanto, na base da teoria, nós temos a visão". 9 Proveniente da
Filosofia Grega, esse termo pode ser entendido: por um lado, como razão discursiva,
fruto da atividade teorética; e, por outro, como intuição, essa forma privilegiada e
direta de conhecer um objeto qualquer, que independe da representação.
No campo científico atual, temos, por um lado, a ilusão de uma teoria ideal,
isto é, de uma correspondência entre os dados empíricos e os princípios
explicativos. Muito próximo, portanto, do critério de verdade, da Filosofia Clássica,
como adequação do intelecto e da coisa. Por outro lado, há uma outra tendência que
considera a teoria como uma construção intelectual que visa à descrição e à
explicação dos fenômenos.
Levando em consideração os pontos de vista da Filosofia Grega e da Ciência
atual, pode-se dizer que teoria é uma construção do espírito humano que tem como
função explicar os fenômenos. Vale sublinhar que uma teoria pode englobar vários
modelos. A propósito, o modelo, enquanto instrumento do conhecimento, não é uma
tradução do real, mas uma interpretação da teoria.
Em Psicanálise, fazer teoria ou metapsicologia significa explicar os processos
psíquicos em seus aspectos: tópico, dinâmico e econômico. 9 Conforme anotação de caderno, curso Epistemologia, FAFICH/UFMG, ministrado no primeiro
semestre de 2000, pelo professor Dr. Ivan Domingues.
69
Quanto ao conceito de aparelho psíquico, pode-se dizer que ele corresponde
a todo processo psíquico desconhecido, logo inconsciente, que se passa entre o
cérebro e a consciência. Portanto, há na teoria psicanalítica vários modelos de
aparelho psíquico e da linguagem que nos remetem à questão do sujeito no
discurso.
Como sabemos, a tradição filosófica aponta que o estudo da mente e do
conhecimento estão fundamentados numa consciência de si reflexiva, o que faz do
sujeito cognoscente um sujeito da consciência. Podemos citar, como exemplos,
Aristóteles e Descartes. De acordo com Vaz, Aristóteles nos propõe a ideia de ser
humano como "animal possuidor do logos (palavra e significação), capaz de auto-
significar-se e de significar o mundo no logos." (VAZ, 2000, p.17). Quanto a
Descartes, é válido dizer que, para ele, a consciência é o que rege o psiquismo
humano.
A psicanálise, a partir do conceito de inconsciente elaborado por Freud,
aponta para uma divisão do psiquismo em dois sistemas: um consciente e outro
inconsciente, sendo que, para esse autor, o inconsciente é a essência da vida
psíquica e a consciência uma qualidade desta. Em outras palavras, o inconsciente
(Ics) é o conceito fundamental da psicanálise na primeira tópica. Sem ele, não
teríamos como explicar processos psíquicos que, independentemente da
consciência, são elaborados, tais como: os sintomas neuróticos, os sonhos, os atos
falhos, os esquecimentos, os chistes, algumas criações artísticas e intelectuais
denominadas insights (vislumbres).
A proposta de Freud é a de que o psiquismo é governado, não pela
consciência, mas pelo inconsciente. No entanto, só conhecemos o inconsciente
através do consciente. Desse modo, o conceito de inconsciente rompe com o
paradigma que reduzia o conhecimento sobre o psiquismo humano ao registro da
consciência. Segundo esse autor, o conceito de inconsciente, em Psicanálise, está
vinculado ao de recalque, que consiste em impedir que uma ideia, que represente
uma pulsão, torne-se consciente. Isso sem destruí-la ou suprimi-la. Embora, todo o
recalcado esteja inconsciente, ele é apenas uma parte do conteúdo do sistema
inconsciente. De acordo com Freud “O inconsciente tem um alcance mais amplo, o
recalcado é, portanto, uma parte do inconsciente". (FREUD,1981, p.2061).
Fazendo uma analogia com o pensamento kantiano, Freud sublinha que, da
mesma forma que Kant nos convidou a não confundir nossa percepção como
70
idêntica ao objeto, a Psicanálise nos convida a não confundir a percepção da
consciência com os processos psíquicos inconscientes, objetos da mesma. Ele
sublinha que “tampouco o psíquico tal como o físico necessita ser em realidade tal
como o percebemos” (FREUD, 1981, p.2064). Isto nos possibilita dizer que Freud
não está propondo fazer um estudo sobre a teoria do conhecimento, isto é, da
relação sujeito – objeto visando à produção de um saber ligado a uma consciência
reflexiva, mas em investigar o pensar inconsciente, ligado a uma verdade do desejo.
Verdade essa parcial, uma vez que não há rede significante capaz de decifrar todo o
inconsciente, isto é, a verdade inconsciente é da ordem da incompletude .
Assim, para que se tenha conhecimento do inconsciente, num trabalho
psicanalítico, é necessário, portanto, que o analisando vença as resistências que
recalcaram a representação pulsional, afastando-a da consciência.
No texto, O Inconsciente (1915), Freud reconhece que suas explicações
sobre o modo de ocorrência dos processos de pensamento no aparelho psíquico
podem parecer obscuras e confusas. Nessa dimensão, o autor vai propor outro
modelo teórico. Para isso, ele vai resgatar o esquema psicológico da
representação de palavra , presente no seu texto A interpretação das afasias: um
estudo crítico, escrito em 1891, época em que ele ainda exercia sua profissão de
neurologista . Baseando-se no registro do simbólico, Freud constrói a tese principal
de seu estudo crítico: o esquema psicológico da representação da palavra, no qual
se demonstra que a palavra alcança sua significação por meio da ligação entre a
imagem acústica da representação de palavra e a imagem visual de objeto , o
que aponta para uma dupla inscrição do objeto na memória : como
representação de palavra e representação de objeto . Esse modo de conceber o
que seja a significação permite deduzir que o conceito de memória não é tratado por
Freud da mesma maneira como entendem os teóricos da neurologia localizacionista:
como simples receptáculo de imagens, isto é, como se a representação, enquanto
uma réplica do objeto, estivesse localizada numa célula nervosa do córtex. Para
Freud, não há nenhuma semelhança entre os elementos mnésicos e os objetos, o
que aponta para uma ruptura na relação palavra-objeto e, em seu lugar, ele coloca
a significação como resultado da relação entre representação de palavra e
representação de objeto. Tem-se, nessa mudança de paradigma – do biológico, dos
teóricos localizacionistas, para o simbólico de Freud, uma passagem do
conhecimento como reprodução do mundo das coisas, para o conhecimento como
71
produzido pelo mundo das palavras, o qual dá ao mundo das coisas uma
significação. (OLIVEIRA, 1999).
Em resumo: no período pré-psicanalítico, isto é, no texto sobre as Afasias,
Freud concebe o aparelho psíquico como um aparelho de linguagem e,
implicitamente, o sujeito como da ordem da significação. Mas o que seria, então, o
outro modelo teórico, proposto pelo autor na primeira tópica?
Esse novo modelo está baseado tanto no conceito de representação de coisa,
denominado, no texto das Afasias, por representação de objeto - quanto no de
representação de palavra. O motivo que levou Freud a fazer a substituição de
representação de objeto por representação de coisa reside no fato de que, no
referido texto representação de objeto diz respeito ao que é externo e, no texto O
Inconsciente (1915), representação de coisa se refere ao inconsciente (ASSOUN,
1996, p. 78).
Cabe ressaltar que, no sistema inconsciente, temos os traços mnêmicos da
representação de coisa; e, no sistema pré-consciente, os traços mnêmicos da
representação de palavra, ou seja, os resíduos de percepções de palavras. De
acordo com Freud, a diferença entre uma representação consciente e uma
inconsciente não é, como ele supunha, “registros diferentes do mesmo conteúdo em
diferentes localidades psíquicas, nem tão pouco diferentes estados funcionais na
mesma localidade.” (FREUD, 1981, p. 2081). O pensar inconsciente está restrito à
relação entre representações de coisa. Já o pensar consciente consiste na ligação
da representação de coisa com a representação de palavra. Em outros termos, é a
representação de palavra que possibilita a passagem do processo primário, da
identidade de percepção – dominante no sistema inconsciente – para a identidade
de pensamento, do processo secundário, que regula o sistema pré-consciente. O
impedimento da ligação entre representação de coisa e representação de palavra
denomina-se recalque.
Assim, com a Teoria do Aparelho Psíquico na Primeira Tópica, a psicanálise
freudiana admite, além de um pensar consciente, um pensar inconsciente e que ela
busca, não o saber ligado a um eu consciente e reflexivo, mas uma verdade, ainda
que parcial, que diz respeito ao belo, e, por vezes, trágico desejo humano. Segundo
Garcia-Roza, "a psicanálise não vai colocar a questão do sujeito da verdade, mas a
questão da verdade do sujeito". (GARCIA-ROZA, 1983, p.23). Há, aqui, uma
72
inversão. O que interessa a Freud não é o sujeito do conhecimento, mas o
conhecimento do sujeito desejante inconsciente.
Em síntese: na Primeira Tópica, o aparelho psíquico é dividido em instâncias:
inconsciente, pré-consciente/consciente, sendo que o eu pertence à ordem da
consciência e, implicitamente, o sujeito pertence à ordem do inconsciente.
A primeira tópica freudiana diz respeito, de acordo com Kristeva, a um
"modelo otimista da linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.71) no qual o inconsciente
estaria sob domínio do pré-consciente, ou seja, o que vai permitir a interface entre
inconsciente e consciente é a linguagem. E aponta que é "nessa formulação que
Lacan encontrará apoio, sem nunca citar Freud, para afirmar que o inconsciente é
estruturado como linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.72). Em outros termos, pode-se
dizer, que foi essa forma de pensar que possibilitou a Lacan afirmar que o sujeito do
inconsciente é o sujeito da enunciação.
Portanto, na primeira tópica, Freud nos diz que:
a) o aparelho psíquico é constituído pelos sistemas inconsciente, pré-
consciente/ consciente;
b) clinicamente, o objetivo é tornar consciente os processos psíquicos
inconscientes;
c) em termos metapsicológicos, o que possibilita o pensar consciente é a
ligação entre representação de coisa e representação de palavra.
Posteriormente, os impasses clínicos com os quais Freud se depara levaram-
no a questionar: por um lado, o modelo otimista da linguagem, pois não era mais
suficiente tornar consciente o inconsciente, e, por outro, a rever a ideia de que o
aparelho psíquico busca o prazer. Mediante isso, o que ele descobre, em sua
experiência clínica, é que, em muitos casos, o que se busca não é o prazer, mas o
prazer na dor. O que tornava insustentável a hipótese de que o aparelho psíquico é
regido pelo princípio de prazer. Assim, para dar conta desses novos dados clínicos,
Freud é levado a elaborar os conceitos de princípio de nirvana, pulsão de morte,
pulsão de vida, de compulsão à repetição e a propor uma segunda tópica, isto é, um
outro modelo de aparelho psíquico constituído por três instâncias: o Isso, o Eu e o
Supereu, sendo que o Eu é tanto consciente quanto inconsciente.
73
Tal abordagem veio demonstrar contudo, a complexidade do psiquismo
humano e que, embora a linguagem tenha função fundamental na clínica, há algo
fora dessa ordem que diz respeito ao registro pulsional e que deve ser considerado
no tratamento psicanalítico. Implicitamente, podemos considerar, então, o sujeito
como pertencente à ordem do pulsional.
Ao tratar também da questão da linguagem, na segunda tópica freudiana,
Kristeva (2000) aponta para pontos importantes do que denomina como
significância, dentre os quais destacamos os seguintes:
a) "Em 1915, o termo sujeito, oposto a objeto, aparece sob a pena de Freud a
propósito da pulsão. O sujeito, diz ele, é o sujeito da pulsão, e não o sujeito
da linguagem" (KRISTEVA, 2000, p.84);
b) "Além de as palavras poderem permitir às coisas internas tornar
conscientes, inversamente podem ser fonte de erros, e criar alucinações; elas
não são tão seguras quanto parecem para viajar da percepção à consciência
e vice-versa; com isto, a linguagem cessa de ser um terreno seguro para
conduzir à verdade" (KRISTEVA, 2000, p.88);
c) a segunda tópica é herdeira "do sujeito das pulsões, bem como do
complexo paterno, tal como foi colocado por Édipo, mas principalmente por
Totem e Tabu" (KRISTEVA, 2000, p.89);
d) Freud tem "a ambição de buscar a essência superior do homem"
(KRISTEVA, 2000, p.89);
e) "apesar de não se limitar a uma única sublimação, o psiquismo é fundado
inteiramente nela, pois é a capacidade de significância (representação -
linguagem - pensamento), baseada na sublimação, que estrutura todas as
outras manifestações psíquicas" (KRISTEVA, 2000, p.99);
f) "Freud abandonou a linguagem, abordada no sentido estrito de um sistema
gramatical ou retórico, para falar dela como de uma dinâmica inter- e
intrasubjetiva" (KRISTEVA, 2000, p.103);
g) "às duas cenas do consciente e do inconsciente se acrescenta uma
terceira, a do extrapsíquico. Existe, além do psíquico, um horizonte do ser
onde a subjetividade humana se inscreve sem a ela se reduzir, onde a vida
psíquica é excedida por essa significância. Freud define a capacidade de
74
idealizar e de sublimar formando um ego a partir do id" (KRISTEVA, 2000,
p.104);
h) "Em todo caso, a "linguagem" para o analista não é a linguagem dos
linguistas. No entanto, que porte, que tensão, que ternura" (KRISTEVA, 2000,
p.112).
O texto de Kristeva (2000) sobre a significância, juntamente com nossas
investigações sobre a questão do sujeito na teoria do aparelho psíquico na obra
freudiana, permite-nos fazer as seguintes colocações:
a) na segunda tópica da psicanálise freudiana, a noção de sujeito não está
ligada à ordem da consciência, mas à do Id inconsciente;
b) Freud não considera o psíquico como idêntico ao consciente, pois,
segundo ele, o eu não tem um domínio completo sobre as pulsões e os
processos psíquicos inconscientes, isto é, "o eu não é senhor de sua própria
casa".
Nesse sentido, o que se busca demonstrar aqui é que a afirmação lacaniana
"o inconsciente é estruturado como linguagem" é equivocada, já que o aparelho
psíquico não está submetido, unicamente, à linguagem, mas também à ordem do
desejo pulsional inconsciente. Assim, não há como reduzir o aparelho psíquico
unicamente à ordem da linguagem. Em outros termos, diríamos que o ego e o
superego se originam, segundo Freud, de restos mnêmicos de palavras e são os
responsáveis diretos pelo nosso Logos, enquanto o Id, pólo pulsional, é a morada de
Eros e Tânatos, ou seja, esta instância é a sede de nosso Pathos.
Em síntese, esperamos ter demonstrado que, para uma reflexão crítica sobre
a questão do sujeito no discurso da psicanálise freudiana, cabe levar em
consideração que, implicitamente, temos um sujeito da significação no período pré-
psicanalítico; um sujeito do inconsciente na primeira tópica e um sujeito pulsional na
segunda tópica.
Assim, no nosso trabalho clínico de inspiração psicanalítica, consideramos a
linguagem do sujeito como pathos-psico-lógica: é tanto emocional, quanto simbólica;
tem uma dimensão inconsciente e outra pré-consciente-consciente, isto é, a
linguagem é movida pelo desejo pulsional atrelado a determinadas crenças.
75
Cabe-nos agora buscar compreender e explicar, na interação transferencial
entre analisando e analista, quais as condições de possibilidade dos efeitos da
enunciação sobre a posição subjetiva do analisando, o que implica uma investigação
sobre o sujeito e a enunciação.
3.5 - O sujeito e a enunciação
Vale dizer que o estudo da enunciação, em linguística, é muito recente. Em
conformidade com Kerbrat-Orecchioni (2006), embora as conversações sejam
objetos de linguagem, foi somente a partir de 1980 que a linguística se dedicou à
pesquisa sobre a enunciação. Nesse sentido, iremos refletir sobre o sujeito e a
enunciação, a partir da Linguística, da Análise do Discurso, da Psicanálise e da
Filosofia da Linguagem.
3.5.1 - Enunciação: os efeitos da linguagem sobre a subjetividade
Em seu texto “O aparelho formal da enunciação”, Benveniste (1989) nos
ensina que é preciso diferenciar as condições de emprego das formas, inerentes à
ordem morfológica e gramatical, das condições de emprego da língua, pois elas não
são idênticas. “[...] São em realidade, dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir
nesta diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma
outra maneira de as descrever e de as interpretar.” (BENVENISTE, 1989, p.81).
Para melhor entendimento dessa diferença entre o emprego da forma e o
emprego da língua, tal como proposto por Benveniste, tomaremos de empréstimo o
esquema apresentado por Mari e Mendes, no qual encontramos as seguintes
definições:
“Emprego da forma: a partir de algum modelo teórico - empregar um som na construção de uma sílaba; - empregar um morfema na construção de um vocábulo; - empregar um sintagma na construção de uma sentença; - empregar uma sentença na construção de período.
76
Emprego da língua: a partir de uma prática de linguagem (contrato, gênero...) - mobilizar um conjunto de formas em razão de um tipo de prática; - o emprego da forma permite isolar um fator lingüístico (fonológico, morfológico etc.); o emprego da língua requer a mobilização de todos esses fatores simultaneamente.” 10
Embora reconheça o valor dos diversos modelos sobre o emprego das
formas, Benveniste foca sua reflexão no emprego da língua. Sua investigação está,
portanto, voltada para a enunciação:
O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a fala? - É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. (BENVENISTE, 1989, p.82).
Para Benveniste, a enunciação é o ato do locutor colocar em funcionamento a
língua, de tomá-la por um instrumento. Nesse processo, há diversos aspectos:
a) a realização vocal da língua: ato singular e único de um falante;
b) o mecanismo de produção, conversão individual da língua em discurso:
trata-se da busca do entendimento de como o sentido se forma em palavras,
isto é, de uma semantização da língua, na qual está implicada a teoria do
signo e a análise da significância;
c) a enunciação no quadro formal de sua realização: o locutor faz da língua
um discurso direcionado a um ouvinte, provocando neste outra enunciação de
retorno. Individualmente, a enunciação é um processo de apropriação. No
entanto, toda enunciação implica um alocutário.
Em conformidade com o autor, na enunciação, deve-se levar em
consideração: o próprio ato, a situação na qual está inserido e os instrumentos de
realização. A relação eu-tu se produz na e pela enunciação. O eu como locutor e o
tu como alocutário. A temporalidade não é inata ao pensamento. Ela é produzida na
e pela enunciação no presente. É da categoria do presente que nasce a categoria do
tempo. Nesse sentido, Benveniste nos esclarece que o ego é o centro da
enunciação e está vinculado às formas temporais.
10 Anotações: Disciplina “Análise do Discurso”, ministrada pelos professores Dr. Hugo Mari e Dr. Paulo Henrique Aguiar Mendes. Programa de Pós-graduação em Letras – PUC Minas, 2008.
77
Na enunciação, o locutor dispõe, além das formas que comanda, de um
aparelho de funções, tais como:
a) a interrogação, para suscitar uma resposta;
b) a intimidação, para fazer cumprir uma ordem;
c) a asserção, o uso do sim e do não numa proposição.
A estrutura do diálogo é composta de duas figuras necessárias: uma, origem,
outra, fim da enunciação. No entanto, Benveniste reconhece que se pode objetar
que há diálogo fora da enunciação, como também, enunciação sem diálogo.
Na disputa verbal praticada por diferentes povos e da qual uma variedade típica é o hain-teny dos Merinas, não se trata na verdade nem de diálogo nem de enunciação. Nenhum dos dois parceiros se enuncia: tudo consiste em provérbios citados e em provérbios opostos citados em réplica. Não há uma única referência explicita ao objeto do debate. (BENVENISTE, 1989, p.87).
Baseando-se em Malinowski, Benveniste vai sublinhar que, na comunhão
fática, a linguagem não funciona como meio de transmissão do pensamento. Nela, o
sentido das palavras, seja num salão europeu ou numa tribo selvagem, é quase que
indiferente. Em resumo, na comunhão fática, a linguagem é usada como um modo
de ação e não como um instrumento de reflexão. Igualmente importante é a
afirmação de Benveniste de que o monólogo é um diálogo interior, no qual o ego se
divide em dois: um eu locutor e um eu ouvinte. Nessa dimensão, o que caracteriza a
enunciação é a relação discursiva com o outro, real ou imaginário, individual ou
coletivo.
Em relação aos efeitos da linguagem sobre a subjetividade, convém ressaltar
que a tese principal defendida por Benveniste está centrada em torno da seguinte
afirmação: “É na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como
sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a
do ser, o conceito de “ego”, (BENVENISTE,1995, p. 286). Para o autor, ao enunciar,
o locutor se apropria da língua para expressar uma relação com o mundo, isto é,
introduz aquele que fala em sua fala, e simultaneamente, postula uma interação com
um alocutário, um co-locutor. O que significa que, tanto a auto-referência, quanto a
referência são integrantes da enunciação, sendo o Ego o seu centro.
78
Outro ponto importante, sublinhado por Benveniste, é o fato real de a
enunciação ser a responsável pela instauração do presente, donde nasce a
categoria do tempo, ou seja, o ser humano vive o agora através do discurso.
Em síntese, convém sublinhar que a originalidade de Benveniste está em sua
proposta de fundar a subjetividade e a alteridade na linguagem. Isso se explica da
seguinte forma: ao dizer eu, o locutor, isto é, o sujeito da enunciação se auto-
referencia e coloca em cena o outro, seu alocutário, mas, simultaneamente, dele se
diferencia. Trata-se de um argumento lógico, tendo em vista que não há EU sem TU,
nem sujeito sem linguagem e vice-versa. Nesse sentido, a reflexão de Benveniste
sobre a conversão da língua em discurso, nos permite afirmar que a enunciação é
da ordem do singular, momentânea, contempla alguma coisa e se direciona ao
outro, produzindo significância. Mas de que forma as reflexões feitas por Benveniste
poderiam contribuir para a nossa pesquisa sobre o trabalho clínico com a
enunciação do analisando?
As reflexões desse autor têm muito a contribuir, principalmente, levando em
conta também o texto Observações sobre a função da linguagem na descoberta
freudiana. Daremos destaque, a seguir, a que julgamos importantes:
- Primeiro, o fato de nos ter esclarecido o equívoco de Freud que, ao se
basear no estudo do filólogo Karl Abel, estabelece um paralelo entre “o processo do
sonho e a semântica das línguas primitivas, nas quais um mesmo termo enunciaria
uma coisa e igualmente o seu contrário.” (BENVENISTE, 1995, p.86). Em
conformidade com Benveniste, “é fácil mostrar que nenhuma das provas alegadas
por Abel pode ser conservada.” (BENVENISTE, 1995, p.87). Portanto, nesse
aspecto, a tentativa de Freud, embora válida, de fundamentar o sonho como
processo psíquico inconsciente apropriando-se de conceitos do campo linguístico,
não foi - hoje sabemos - nem pertinente, nem coerente. Assim, o erro de Freud,
segundo Benveniste, foi tentar justificar a origem da linguagem. Para esse autor, a
pergunta formulada por Freud à linguagem histórica teria mais pertinência se
colocada ao mito ou à poesia. (...) “Certas formas de poesia podem aparentar-se ao
sonho e sugerir o mesmo modo de estruturação, introduzir nas formas normais da
linguagem essa indeterminação do sentido que o sonho projeta nas nossas
atividades. (...)” (BENVENISTE, 1995, p.90).
- Segundo, sendo o conflito nuclear no psiquismo, não faz sentido a noção de
“original”. Para Benveniste, o próprio Freud aponta para essa questão no texto - “A
79
negativa” - no qual demonstra que a negativa é uma forma de aceitação do
recalcado, não se tratando, portanto, de uma negação, mas de uma afirmação.
Assim, “(...) Reduz a polaridade da afirmação e da negação lingüísticas ao
mecanismos biopsíquico da admissão em si ou da rejeição para fora de si, ligado à
apreciação do bom e do mal. (...).” (BENVENISTE, 1995, p.91).
Ora, no trabalho clínico, a negativa tem uma importância fundamental, pois é
uma forma que o analisando tem de admitir o pensamento inconsciente recalcado.
Desse modo, para Freud, quando (...) “O paciente diz: “Agora o sr. deve estar
pensando que eu queria dizer algo ofensivo, mas realmente não é essa minha
intenção. Entendemos essa fala do paciente como uma maneira de repelir a idéia
que acaba de aflorar em sua mente.” (FREUD, 2007, p.147). Portanto, um
pensamento inconsciente pode adentrar à consciência, desde que seja negado.
Como exemplifica a passagem seguinte: “O senhor me pergunta quem poderia ser
essa pessoa no meu sonho. Não é a minha mãe.” (FREUD, 2007, p.147). Enfim, em
conformidade com o pensamento freudiano, temos que desconsiderar a negativa na
interpretação desse tipo de enunciação.
Um terceiro aspecto a ser ressaltado é que Benveniste nos esclarece os
pontos de convergência e divergência entre Psicanálise e Linguística em relação ao
simbolismo. A convergência é que a Psicanálise está fundamentada na teoria do
símbolo, e a linguagem é apenas simbolismo. A divergência é que, na Linguística,
“É preciso acrescentar que a linguagem se realiza necessariamente numa língua, e então surge uma diferença, que define para o homem o simbolismo lingüístico: consiste em que ela é aprendida, é coextensiva à aquisição que o homem faz do mundo e da inteligência, com os quais acaba por unificar-se.” (BENVENISTE, 1995, p.92).
Em Psicanálise, os símbolos inconscientes são regidos por outra lógica: a da
sucessão, que significa também causalidade, motivação. A simbólica inconsciente é
infra e supralinguística.
“(...) Infralinguística, tem sua fonte numa região mais profunda que aquela em que a educação instala o mecanismo linguístico. (...) É supralinguística pelo fato de utilizar signos extremamente condensados, que, na linguagem organizada, corresponderiam mais a grandes unidades mínimas. E entre esses signos estabelece-se uma relação dinâmica de intencionalidade que se reduz a uma constante motivação (a realização de um desejo recalcado) e que segue os desvios mais singulares.” (BENVENISTE, 1995, p.93).
80
O autor faz uma comparação entre a simbólica do inconsciente e os
processos estilísticos do discurso. Nesse dimensão, o inconsciente faz uso também
da “retórica” que, tal como o estilo, tem suas figuras. Tanto num, quanto noutro,
encontramos as modalidades da metáfora (substituição dos elementos), da
metonímia (combinação dos elementos), da sinédoque (parte pelo todo). Para
Benveniste, “na verdade, aquilo que chamamos inconsciente é responsável pela
maneira como o indivíduo constrói a sua pessoa, afirma, recalca ou ignora isto
motivando aquilo.” (BENVENISTE, 1995, p.94).
Esses argumentos de Benveniste vêm responder à uma parte de nossa
pesquisa: a hipótese de que a simbólica inconsciente, presente no discurso do
analisando, está vinculada à relação dinâmica entre intencionalidade e desejos
inconscientes.
3.6 - O sujeito e a linguagem nas perspectivas de C haraudeau e Authier-Revuz
Quanto à questão sobre o sujeito e a linguagem, Charaudeau escreve que
“aquilo sobre o qual se insistiu talvez pouco até agora é que essa nova competência
implica a existência de um sujeito da linguagem que precisa ainda ser teorizado.”
(CHARAUDEAU, 1999, p.27). De acordo com o autor, esse sujeito da linguagem “se
encontra em uma dupla relação de intersubjetividade ao outro e de sua subjetividade
a si. Assim, podemos dizer, como os filósofos da linguagem, que o ato da linguagem
traz a marca da intencionalidade”. (CHARAUDEAU, 1999, p.30). Como podemos
observar, a abordagem do sujeito e do sentido do discurso, proposta por
Charaudeau, é complexa, pois leva em consideração tanto a dimensão
intralinguística, como extralinguística da enunciação.
Em seu texto Uma Teoria dos Sujeitos da Linguagem, Charaudeau (2001)
aponta que a reflexão sobre a questão do sujeito da linguagem é algo recente e
ainda pouco explorada. Para ele, uma teoria do discurso, ao estudar a dimensão
psicossocial da linguagem, deve levar em consideração “uma definição dos sujeitos
do ato de linguagem”, pois, nela, são abordadas as identidades, os estatutos, os
papéis dos sujeitos falantes em sua interação discursiva. (CHARADEAU, 2001,
p.27).
81
Sobre a Nova Análise do Discurso, Charaudeau sublinha que a significação
discursiva é uma resultante de dois componentes: o linguístico e o situacional.
Nesse sentido, Mari e Silva afirmam, conjuntamente, que
Pode-se dizer, em linhas gerais, que a perspectiva de análise do discurso proposta, na dimensão da Teoria semiolingüística de Patrick Charaudeau, representa um avanço no domínio dos estudos sobre a linguagem, visto que pretende ser um modelo radicalmente integrador das diferentes dimensões que constituem o processo enunciativo, contemplando, de forma orgânica, não só os elementos que se situam numa dimensão estritamente lingüística, mas também os elementos inseridos numa instância extralingüística e, sobretudo, as relações que uns e outros mantêm entre si. (MARI; MENDES; SILVA,1996, p.52)
De acordo com Charaudeau, o ato de linguagem implica, por um lado, o fazer,
como instância situacional, isto é, o espaço ocupado pelos participantes. Por outro, o
dizer, como instância discursiva, o lugar de encenação dos seres de palavra. Esses
dois aspectos são indissociáveis: o dizer, relacionado ao circuito interno; e o fazer,
ao circuito externo: ambos constituem, assim, o ato de linguagem. Enquanto
interação e busca de significação, o ato de linguagem implica um duplo processo: de
produção e de interpretação. Nesse jogo de linguagem, a encenação do dizer
depende das estratégias discursivas. (CHARAUDEAU, 2001, p.30). O que implica
uma relação contratual dependente dos seguintes componentes:
a) comunicacional: o quadro físico da situação interacional;
b) psicossocial: os estatutos dos parceiros envolvidos;
c) intencional: o imaginário do conhecimento prévio, que os parceiros
possuem um do outro e o que está sendo colocado em questão.
O sujeito, neste contexto, não é um ser individual, nem coletivo, mas “uma
abstração, sede da produção/interpretação da significação, especificada de acordo
com os lugares que ele ocupa no ato linguageiro.” Têm-se então:
a) os parceiros no circuito externo:
- o sujeito comunicante: o agente/parceiro do processo de interpretação, que
encena o dizer através das estratégias discursivas;
- o sujeito interpretante: o outro/parceiro do processo de interpretação, que
constrói uma interpretação através da percepção do ritual linguageiro;
82
b) os protagonistas no circuito interno:
- o sujeito enunciador: ser de fala da encenação do dizer;
- o sujeito destinatário: ser de fala interpretante.
As colocações feitas por Charaudeau sobre a abordagem do sujeito numa
perspectiva psicossocial são muito pertinentes. Poderíamos dizer que parte dela
corresponde a uma situação de cunho psicoterápico, que poderíamos assim
correlacionar:
a) o componente comunicacional: o consultório como quadro físico da
situação interacional;
b) o psicossocial: o analista e o analisando;
c) o intencional: o analisando supõe um saber no analista.
Podemos também observar, no ato linguageiro, a presença do sujeito
abstrato, proposto por Charaudeau, tanto dos protagonistas no circuito interno,
quanto dos parceiros no circuito externo.
Ora, o ato de linguagem ocupa um lugar preponderante no tratamento
psicoterápico e implica, nos termos de Charaudeau, tanto o fazer, como instância
situacional, isto é, o espaço ocupado pelos participantes, quanto o dizer, como
instância discursiva, o lugar de encenação dos seres de palavra. No entanto, numa
psicoterapia de inspiração psicanalítica, é preciso que se leve também em
consideração a dimensão inconsciente do sujeito. No campo linguístico, Authier-
Revuz, à luz da teoria lacaniana, tem discutido essa questão.
Baseando-se nas categorias de discurso como produto de interdiscursos e de
sujeito em sua relação com a linguagem da psicanálise lacaniana, a autora vai
refletir sobre a heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu discurso.
Fazendo referência a Pêcheux, Authier-Revuz (1990) destaca o
questionamento feito às teorias linguísticas da enunciação, do risco de reproduzir no
plano teórico, a ilusão do sujeito enunciador capaz de escolhas, intenções e
decisões, isto é, o Eu como imaginário e responsável pela reconstrução da imagem
de um sujeito autônomo, mas ilusório. Ela afirma a importância para a Análise do
Discurso de romper com a categoria de Eu, fundamento da subjetividade clássica
concebida como o interior diante da exterioridade do mundo, e levar em
83
consideração a categoria de sujeito: deslocado, desalojado, “em um lugar múltiplo,
fundamentalmente heterônimo, em que a exterioridade está no interior do sujeito”.
Nesta afirmação de que, constitutivamente, no sujeito e no seu discurso está o
Outro.” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p.29).
Nesse sentido, para um melhor esclarecimento desse sujeito enunciador
como ilusório, faremos uma reflexão dessa questão à luz da Análise do Discurso e
da Psicanálise, a partir do texto de Pêcheux, A forma-sujeito do discurso (1988).
3.7 - A Análise do Discurso de Pêcheux e a Psicanál ise de Freud e Lacan: controvérsias e aproximações em a forma-sujeito do discurso.
A Análise do Discurso Francesa tem como importantes pilares de sua
fundação os pensamentos de Foucault e Pêcheux. Contudo, não podemos deixar de
mencionar, que ambos foram influenciados pelo filósofo Louis Althusser. Sobre
Foucault temos a seguinte afirmação de Dosse (...) “Nesse início dos anos 50, a
grande máquina de pensar é o marxismo, e Althusser inicia seus ouvintes, entre os
quais Michel Foucault, no pensamento de Marx.” E quanto a Pêcheux, que
coordenando um pequeno grupo de trabalho vai “tentar a aplicação das teses
althusserianas à lingüística.” (DOSSE, 1993, p.347).
No entanto, nossa intenção se limita, aqui, a refletir sobre algumas passagens
do texto “A forma-sujeito do discurso”, de Michel Pêcheux. Sua proposta é tomar “o
discurso” como objeto de estudo, tendo, como referencial teórico, três campos
distintos de conhecimento: o Materialismo Histórico, a Linguística e a Psicanálise,
contribuindo, desse modo, para a fundamentação teórica de um novo campo de
produção e de investigação do conhecimento: a Análise do Discurso.
Consideramos pertinente a afirmação de Pêcheux de que o sentido das
palavras, das expressões e das proposições não é literal, mas dependentes das
formações ideológicas. De acordo com o autor, a formação discursiva é aquilo que,
a partir da formação ideológica, “pode e deve ser dito.” Logo, a formação discursiva
dissimula a objetividade material de que “algo fala” sempre antes, em outro lugar e
independentemente. Desse modo, o Ego, por ser da ordem do imaginário e “sob a
forma de autonomia”, não reconhece sua subordinação-assujeitamento ao Outro. O
idealismo é o funcionamento espontâneo da “forma-sujeito”, do Ego-imaginário,
84
como sujeito do discurso. Pêcheux (1988) define o intradiscurso como o
funcionamento do discurso com relação a si mesmo, isto é, o conjunto dos
fenômenos de co-referência, que constituem o fio do discurso, enquanto discurso de
um sujeito. Assim, o ato de linguagem implica o desconhecimento da determinação
do sujeito no discurso, que, de forma especular, reproduz o discurso do outro.
Ora, tal proposta, como podemos perceber, vai ao encontro da forma de
pensar de Louis Althusser, apontada por Dosse:
Essa descentralização do ego, sua subordinação a uma ordem que lhe escapa se junta à leitura que Althusser faz de Marx, segundo a qual a história é um processo sem sujeito. Assim, um althussero-lacanismo podia ganhar impulso e fazer do par Marx/ Freud a grande máquina de pensar dos anos 60, dando a um marxismo renovado um segundo fôlego de que iria se beneficiar sobretudo no pós-68. (DOSSE, 1993, p.361).
Em seu texto Análise do discurso: controvérsias e perspectivas, Charaudeau
considera como radical a posição da Análise do Discurso proposta por Michel
Pêcheux em relação à definição de sujeito como ilusão. Para o autor, há também um
paralelismo abusivo entre ideologia e inconsciente. Nesse sentido, ele escreve que,
na abordagem de Pêcheux,
o sujeito é apenas o resultado de um produto, ele não se pertence, ele é falado por um ailleurs que será denominado ora ideologia (Althusser), ora inconsciente (Authier-Revuz). Em ambos os casos, o sujeito não é um “eu”, mas um “isso” (ideológico ou inconsciente) que fala através de um sujeito falante. (CHARAUDEAU, 1999, p. 37).
Entretanto, em relação a esse texto de Pêcheux, temos também o objetivo de
refletir sobre alguns dos pontos que consideramos problemáticos, no que diz
respeito aos conceitos que ele toma de empréstimo à Psicanálise de Freud e de
Lacan. Não se trata, aqui, de uma crítica desconstrutiva do pensamento do autor,
pois reconhecemos a importância de seu trabalho para a Análise do Discurso.
Buscamos, sobretudo, a partir de nossa interpretação dos textos de Freud e Lacan,
elucidar melhor tais conceitos e desse modo, ir contribuindo para tornar mais
pertinente e coerente o diálogo entre Psicanálise e Análise do Discurso.
Em relação ao diálogo de Pêcheux com o texto de Freud, destacamos dois pontos: Primeiro ponto: a questão do pré-consciente-consciente como uma zona autônoma
em relação ao inconsciente.
85
Pêcheux toma o seguinte fragmento do texto freudiano sobre a Interpretação
dos Sonhos, escrito em 1900:
(...) parece que a seqüência de pensamento que foi assim iniciada e abandonada pode continuar a desenrolar-se sem que a atenção seja novamente voltada para ela, a menos que, num ou noutro ponto, ela atinja um grau especialmente alto de intensidade, que força a atenção para ela. Dessa maneira, se uma seqüência de pensamento é inicialmente rejeitada (conscientemente, talvez) por um julgamento de que ela é errada ou inútil para os propósitos intelectuais imediatos em vista, o resultado pode ser que essa seqüência de pensamento avance, inobservada pela consciência, até o início do sono. Para resumir: chamamos uma seqüência de pensamento como esta de ‘pré-consciente’; encaramo-la como completamente racional (...). (PÊCHEUX, 1988, p.174).
E faz a seguinte análise:
As formulações precedentes nos parecem, hoje, insuficientes, na medida em que levam a fazer do pré-consciente-consciente uma zona autônoma com relação ao inconsciente, delimitado pela barreira do recalque e da censura; portanto, uma vez mais, a ilusão de um império dentro de um império, da luta entre o império da razão e da consciência contra o império do inconsciente. De fato, essa ilusão da autonomia não passava de uma nova formula da ilusão de autonomia do pensamento com respeito ao inconsciente, isto é, do processo secundário com relação ao processo primário. (PÊCHEUX, 1988, p.174-175).
Ora, provavelmente, Pêcheux teria sido melhor sucedido em sua abordagem
da Psicanálise Freudiana se tivesse, por exemplo:
a) Entendido que, neste mesmo texto freudiano e conforme nossa
interpretação,
os pensamentos que no período da vigília são rechaçados, ou seja, não são objeto da atenção psíquica e por esse motivo não se tornam conscientes, continuam em processamento, independentemente da consciência, e podem, desse modo, surgir nas idéias latentes do sonho. (OLIVEIRA, 1997, p.157-158).
Em outros termos, o conceito de inconsciente pode ser compreendido, por um
lado, como descritivo, temporariamente inconsciente, sendo, portanto, da
ordem do pré-consciente e acessível à consciência. Por outro, como
inconsciente sistêmico, do qual faz parte o que é recalcado e enquanto tal,
inacessível à consciência. Estamos de acordo com Ricoeur (1977, p.96), de
que na “Interpretação dos sonhos”, o problema colocado por Freud não é
86
discutir o processo secundário, tal como, podemos observar, pensa Pêcheux,
mas explicar o trabalho do sonho;
b) Observado que a noção de atenção já estava presente no manuscrito
denominado “O Projeto de 1895”, e de acordo com nossa análise, “para que
um pensamento se torne consciente é preciso que ele seja objeto da
atenção.” (OLIVEIRA, 1997, p. 158). Assim, um pensamento depende da
atenção para tornar-se consciente, mas não pré-consciente;
c) Utilizado da concepção de inconsciente, pré-consciente/consciente, tal
como presente no texto “O inconsciente” escrito em 1915. Nesse texto, Freud
nos esclarece que a representação consciente do objeto ou representação
objeto se subdivide em:
- representação-de-palavra;
- representação-de-coisa.
Conforme se pode perceber no trecho que se segue:
Uma representação consciente abrange a representação-de-coisa acrescida da representação-de-palavra correspondente. Representação inconsciente é somente a representação-de-coisa. O sistema Ics contém os investimentos de energia referentes à coisa que faz parte o objeto. Na verdade, estes são os primeiros e verdadeiros investimentos de energia no objeto. O sistema Pcs surge quando essa representação-de-coisa é vinculada às representações-de-palavra que lhe correspondem, recebe um sobreinvestimento. (FREUD, 2006, p. 49).
Portanto, não podemos concordar com a afirmação de Pêcheux de que “o
pré-consciente-consciente é uma zona autônoma com relação ao inconsciente,
delimitado pela barreira do recalque e da censura.” Ao contrário, há uma co-
dependência, uma continuidade, uma bidirecionalidade. O que o texto freudiano nos
indica é que só sabemos do inconsciente através do pré-consciente/consciente, e
que tudo que é consciente depende também do registro, da memória inconsciente.
Em outros termos, só há representação consciente do objeto, se houver o vínculo
entre a representação-de-coisa pertencente ao sistema inconsciente e a
representação-de-palavra presente no sistema pré-consciente. Sendo que, o
recalque corresponde ao impedimento deste vínculo, isto é, a tradução da
representação inconsciente em palavras. Se houvesse essa autonomia do sistema
pré-consciente, tal como colocada por Pêcheux, em relação ao inconsciente
seríamos todos esquizofrênicos. Pois, de acordo com o mesmo texto de Freud, há,
87
na esquizofrenia, um desinvestimento na representação-de-coisa inconsciente e
intenso investimento na representação-de-palavra. Assim, no trabalho psíquico dos
esquizofrênicos, as coisas concretas são tratadas como se fossem abstratas. Esse
mesmo raciocínio serve como crítica à ideia lacaniana de que um significante remete
a outro significante, sempre descolado de um significado, e mais ainda, de um
referente. É o próprio Lacan que diz: “o significante é o que representa um sujeito
para um outro significante.” Não que eu discorde, inteiramente, de Lacan. Para mim,
um significante pode remeter não só a um outro significante, mas a muitos outros
significantes e, simultaneamente, não só a um significado, mas a muitos significados
e muitas vezes, não só a um referente, mas a vários referentes. Enfim, trata-se de
um pensamento em rede que é muito complexo.
Cabe dizer que a atividade psíquica, na concepção de Freud, atua em duas
direções opostas:
a) “parte das pulsões, atravessa o sistema inconsciente e dirige-se para a
atividade consciente de pensamento;”
b) “parte de um estímulo oriundo de fora e passa pelo sistema do Cs e Pcs
até chegar aos investimentos de carga ics do eu e dos objetos.”
No entanto, mesmo quando há recalque, essa segunda direção continua
aberta e passível de ser percorrida.
O que este fragmento do texto freudiano nos permite afirmar é que as
palavras pertencem ao sistema pré-consciente e só através delas temos, por um
lado, acesso aos conteúdos presentes no sistema inconsciente. Por outro, são elas
que tornam possível tomarmos consciência, isto é, pensarmos sobre os
acontecimentos e eventos da realidade.
Segundo ponto: o esquecimento e o recalque inconsciente.
Para pensar as categorias de “esquecimento 1 e esquecimento 2”, Pêcheux
diz se apoiar na primeira tópica freudiana.
De acordo com Gregolin (2007), no artigo publicado em Langages 37,
Pêcheux faz uma auto-crítica ao conceito de sujeito. “Pêcheux acusa-se de lá haver
sugerido a aproximação entre a idéia filosófica do esquecimento (ou de
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apagamento) e o conceito psicanalítico de recalcamento; isso foi um equívoco,
porque “os traço inconscientes do Significante não são jamais ‘apagados’ ou
‘esquecidos’, mas trabalham sem descanso na pulsação sentido/não sentido do
sujeito dividido.” (GREGOLIN, 2007, p. 146)
O que vamos discutir, aqui, se resume à analogia, feita pelo autor, entre o tipo
de esquecimento 1 e o recalque inconsciente.
Por outro lado, apelamos para a noção de “sistema inconsciente” para caracterizar um outro “esquecimento”, o esquecimento nº1, que dá conta do fato de que o sujeito-falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Nesse sentido, o esquecimento nº1 remetia, por uma analogia com o recalque inconsciente, a esse exterior, na medida em que – como vimos – esse exterior determina a formação discursiva em questão. (PÊCHEUX, 1988, p. 173).
Detectamos, nesta afirmação de Pêcheux, alguns pontos polêmicos, quais sejam:
a) reduzir o sistema inconsciente ao recalque inconsciente. Ora, logo no
início de seu texto, O Inconsciente (1915), Freud faz a seguinte colocação:
Embora tudo o que foi recalcado precise permanecer inconsciente, esclarecemos de antemão que o recalcado não abarca todo o inconsciente. Ou seja: o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado, este é apenas uma parte do inconsciente. (FREUD, 2006, p.19).
Assim, não devemos tomar a parte, no caso, o recalque, como se
correspondesse a todo o sistema inconsciente;
b) estabelecer o vínculo entre recalque e esquecimento.
Em conformidade com Freud,
a essência do recalque não reside em suspender a idéia que representa uma pulsão, mas em impedir que a idéia se torne consciente. Nesses casos, dizemos que a idéia está recalcada e se encontra em estado “inconsciente”. Contudo, temos fortes evidências de que mesmo permanecendo inconsciente a idéia recalcada é capaz de continuar a produzir efeitos sobre a psique e de alguns dos seus efeitos acabam por alçar-se à consciência do sujeito. (FREUD, 2006, p. 19).
Portanto, não se trata de esquecer, mas de estorvar, de bloquear o vínculo
entre a representação-de-coisa inconsciente e a representação-de-palavra pré-
consciente, isto é, evitar a possibilidade de uma transposição, de um ligar ou religar,
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de uma ideia inconsciente em algo da ordem do pré-consciente, o que a tornaria
capaz de estar consciente. Na primeira tópica da Psicanálise Freudiana,
inconsciente e pré-consciente/consciente constituem o aparelho psíquico e possuem
funções distintas. O sistema inconsciente não é nenhum arquivo morto, mas uma
forma de funcionamento primário do nosso aparelho psíquico, isto é, trata-se de um
processo psíquico dinâmico regido pelo princípio de prazer e que tem, como
conteúdo, as representações-de-coisa. Já o pré-consciente faz parte do processo
psíquico secundário, é governado pelo princípio de realidade e tem, como conteúdo,
as representações-de-palavras. Mas o que significa representação-de-coisa e
representação-de-palavra? Qual a diferença entre elas?
Em nosso entendimento do texto freudiano, afirmamos que, enquanto modelo
teórico, a representação deve ser entendida como imagem, traço mnêmico dos
objetos, das palavras e dos estímulos do corpo. Se sinto fome, é necessário, por um
lado, um traço mnêmico relacionado a esse estímulo somático; por outro, é preciso
um traço mnêmico, vinculado à imagem de algum objeto, no caso um alimento,
capaz de produzir satisfação. Até aqui, tem-se um processo primário. Se
acrescentarmos, a esse processo um traço mnêmico da representação de palavra,
tal como ao pensar ou dizer - quero comer um salmão - teremos um processo
psíquico secundário. Em outros termos, é a representação de palavra que possibilita
a passagem do processo primário, da identidade de percepção – dominante no
sistema inconsciente – para a identidade de pensamento, do processo secundário,
que regula o sistema pré-consciente. Entretanto, este aparelho psíquico tem que se
haver não somente com representações, mas também com uma força pulsional que
o coloca em funcionamento.
Em outros termos, trata-se da trajetória dos representantes psíquicos do
desejo pulsional, de sua transposição da linguagem das imagens relacionadas à
Coisa, do sistema inconsciente à linguagem das imagens das palavras, do sistema
pré-consciente/consciente.
Em relação ao esquecimento, acrescentamos que, em seu texto Múltiplo
interesse da psicanálise, Freud afirma que as parapraxias e os sonhos são
processos psíquicos normais, que possuem um significado e uma intenção.
Portanto, não se pode dizer que, em Psicanálise, a compreensão desses processos
está baseada nos processos psíquicos tidos como patológicos. Em outros termos, os
90
processos psíquicos normais e aqueles descritos como patológicos seguem as
mesmas regras.
As parapraxias estão relacionadas a conflitos psíquicos que impedem a
expressão direta desta intenção, que a faz buscar caminhos indiretos, ou seja, é
para evitar o desprazer que uma intenção é recalcada. Assim, o esquecimento de
nomes e palavras conhecidas, de algo que deveríamos fazer, de assuntos
conhecidos, de gestos e movimentos habituais ou a perda de objetos, os lapsos de
linguagem e escrita são exemplos de parapraxias.
Em relação ao recalque é preciso compreender que não se trata somente do
destino do representante representação ou ideia que está em jogo, mas também o
destino do afeto. Mas de que afeto se trata?
Em seu texto metapsicológico As pulsões e seus destinos, Freud (1915, 2004)
define a pulsão como um conceito limite entre o psíquico e o somático. O autor
afirma que a pulsão está fora do aparelho psíquico, isto é, o que temos, no aparelho
psíquico, são os representantes psíquicos da pulsão: o representante representação
ou ideia e o afeto enquanto quantum de energia. O autor nos esclarece ainda que,
para o entendimento das neuroses, o mais importante destino das representações
pulsionais, não é o do representante representação, cujo destino comum é o
recalque, mas o destino do afeto.
Desse modo, temos em relação ao destino do afeto:
- na histeria de conversão, o afeto é descarregado numa inervação do corpo;
- na neurose obsessiva, há uma fixação do afeto a uma ideia;
- na neurose de angústia, há transformação do afeto em angústia.
Portanto, do nosso ponto de vista, qualquer análise do mecanismo de recalque
que desconsidere o destino do afeto está fadada ao equívoco. No entanto, vale
sublinhar que o recalque é um dos possíveis destinos dos representantes da pulsão;
os outros seriam o retorno libidinal ao próprio Eu, a inversão ao contrário e a
sublimação.
Entretanto, Pêcheux, além da teoria freudiana vai dialogar também com a
teoria lacaniana e, em alguns momentos, fará uma leitura de Freud via Lacan.
Assim, destacamos, a seguir, dois pontos:
Primeiro ponto: a comparação entre textos freudianos e lacanianos feitas por
Pêcheux.
91
É evidente que cada autor tem o direito de refletir da maneira que bem
entender, de tomar por empréstimos conceitos de outros campos. No entanto,
temos também o direito de discordar. O principal ponto de discordância é, não só em
relação a Pêcheux, mas a qualquer outro pensador que tenha a crença de que, ao
ler Lacan, estamos lendo Freud. Não, não estamos. Penso que, para bem do campo
psicanalítico e imagino que Freud concordaria comigo, Freud não é Lacan, isto é, as
concepções teóricas de Freud, por exemplo sobre o inconsciente, sobre a pulsão
diferem integralmente das concepções, também válidas, que Lacan tem desses
conceitos. Mas, muitas vezes, esse tipo de exercício epistemológico se desloca para
uma falácia que beira ao desrespeito, como a seguinte afirmação de Miller:
(...) Cabe objetar a Lacan que Freud nunca disse que o inconsciente está estruturado como linguagem. Freud, é verdade, nunca o disse. Mas a tese de Lacan é que se pode demonstrar que o descobrimento freudiano só encontra sua coerência a partir do axioma o inconsciente estruturado como linguagem. Freud descobriu o inconsciente, expôs as conseqüências de sua descoberta na medida em que lhe foram aparecendo as implicações desta. A teoria de Freud é uma verdadeira barafunda. Para qualificá-la, há uma palavra que aprendi ontem, que cai como uma luva, uma palavra que é típica do castelhano como se fala na Venezuela: diria que há um zaperoco freudiano. Pois bem, desse zaperoco freudiano Lacan quis fazer um passeio ordenado, claro e lógico. Sua tese é de que as descobertas discordantes de Freud encontram seu fundamento na idéia de que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. (MILLER, 1988, p.13).
Penso não ser este o melhor estilo de se fazer teoria em Psicanálise. Não
basta criticar, é preciso usar de argumentos não sofísticos, menos políticos e mais
da ordem da razão demonstrativa. Para concordar com Miller, há uma condição
indispensável: desconhecer a obra de Freud.
E por que Freud não disse que o inconsciente está estruturado como
linguagem? Porque o que temos, no sistema inconsciente, são traços mnêmicos de
representações de coisa. A linguagem, isto é, os traços mnêmicos das
representações de palavras pertencem ao registro do pré-consciente.
Quanto à clareza dos conceitos da Psicanálise, o próprio Freud escreve que
Ouvimos muitas vezes a opinião de que uma ciência deve se edificar sobre conceitos básicos claros e precisamente definidos, mas na realidade, nenhuma ciência, nem mesmo a mais exata, começa com tais definições. O verdadeiro início da atividade científica consiste muito mais na descrição de fenômenos que são em seguida agrupados, ordenados e correlacionados entre si. (...) Entretanto, o progresso do conhecimento não suporta que tais definições sejam rígidas, e como ilustra de modo admirável o exemplo da física, mesmo os conceitos básicos que já foram fixados em
92
definições sofrem uma constante modificação de conteúdo. (FREUD, 2004, p.145).
Portanto, a atitude cientifica de Freud nos demonstra que os conceitos não
estão livres de contradição, mas cabe ao pesquisador buscar sempre um melhor
esclarecimento sobre eles. Se não fossem assim, ele não teria proposto suas duas
tópicas do aparelho psíquico. Vale dizer que teoria é denominada, na Psicanálise
Freudiana, de metapsicologia, que significa tratar do acontecimento psíquico em
suas dimensões tópica, dinâmica e econômica. Mas, o que é Psicanálise?
No entendimento de Freud, Psicanálise é um procedimento de investigação
de processos psíquicos inconsciente, uma psicoterapia e uma teoria. O que é
Psicanálise para Lacan? É a pergunta, o que é a Psicanálise? E o conceito de
inconsciente em Lacan, seria o mesmo que o é para Freud? Nesse sentido, nos
esclarece, em História do Estruturalismo, que Lacan utiliza-se da antropologia
estrutural de Lévi-Strauss, para fazer uma releitura dos textos freudianos.
(...) O inconsciente lévi-straussiano é estranho, portanto, aos afetos, ao conteúdo, à historicidade do indivíduo. Reencontra-se o predomínio concedido à invariante sobre as variações, à forma sobre o conteúdo, ao significante sobre o significado, próprio do paradigma estrutural. Lacan, como se verá, retomará essa abordagem do inconsciente que lhe permite lançar as bases de uma álgebra significante em psicanálise, da mesma maneira que Lévi-Strauss o realizou em antropologia. (DOSSE, 1993, p.141).
Sendo assim, podemos afirmar que o inconsciente lacaniano está mais
próximo do conceito de inconsciente proposto por Lévi-Strauss e, por isso, mais
distante do conceito de inconsciente freudiano. Isso não significa, que não se possa
levá-los conjuntamente em consideração, mas que não podemos tomar um pelo
outro.
Outro ponto que consideramos importante discutir é a possível influência do
esquema L de Lacan na concepção de Pêcheux sobre o ego imaginário como sujeito
do discurso.
Segundo ponto: sobre o ego-imaginário como sujeito do discurso
Em seu texto, Pêcheux faz a seguinte afirmação:
Somos, assim, levados a examinar as propriedades discursivas da forma-sujeito, do Ego-imaginário, como sujeito do discurso. Já observamos que o
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sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina. Podemos agora precisar que a interpelação do indivíduo em sujeito de seu discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a formação discursiva que o domina (isto é, na qual ele é constituído como sujeito): essa identificação, fundadora da unidade (imaginária) do sujeito, apóia-se no fato de que os elementos do interdiscurso (sob sua dupla forma, descrita mais acima, enquanto pré-construído e processo de sustentação) que constituem, no discurso do sujeito, os traços daquilo que o determina, são re-inscritos no discurso do próprio sujeito. (PÊCHEUX, 1988, p.163).
Levando em consideração o esquema L, da teoria de Lacan, salientamos a
presença de dois eixos cruzados: o do imaginário a-a’ que implica a relação Eu –
outro (pequeno outro) e o eixo simbólico da relação sujeito – Outro (grande outro).
Portanto, o Eu tem uma dimensão imaginária consciente e o sujeito uma dimensão
simbólica, inconsciente.
No entanto, em suas conferências caraquenhas, Miller destaca que o
simbólico tem duas vertentes: a da palavra e a da linguagem. A vertente da palavra
tem, em relação à dimensão imaginária, uma função pacificadora. É preciso, em
relação ao sintoma, simbolizá-lo, dar-lhe uma palavra, uma significação. A vertente
da linguagem é denominada, pelo autor, diacrítica, pois nela os elementos adquirem
valor uns com relação aos outros, isto é, trata-se de uma estrutura feita de sem-
sentido. Mas, em seguida, o autor faz a seguinte colocação: “A tese de Lacan é que
o significante atua sobre o significado, e inclusive, em um sentido radical, o
significante cria o significado, e é a partir do sem-sentido do significante que se
engendra a significação.” (MILLER, 1988, p.11-39).
Entretanto, cabe assinalar que temos - nesse enfoque lacaniano do Eu, do
sujeito e da linguagem - apenas dois registros: o do imaginário e o do simbólico. Só-
depois, Lacan irá levar em consideração um outro registro: o do real.
Assim, retomando a noção de forma-sujeito, proposta por Pêcheux, podemos
afirmar que, ao falarmos de linguagem no contexto do esquema L, é preciso
diferenciar a dimensão imaginária do sujeito do discurso, da dimensão simbólica do
discurso do sujeito. No entanto, implícita à discussão do sujeito do discurso e do
discurso do sujeito, temos a questão da concepção saussuriana de signo, não só no
Campo Linguístico e na Psicanálise tanto de Freud quanto de Lacan.
3.8 - A concepção de signo linguístico em Linguísti ca e em Psicanálise.
94
Para pensar o conceito de significante, Lacan parte da concepção do signo
em Saussure. Ora, nós sabemos que no texto freudiano, A interpretação das
Afasias, um estudo crítico, escrito em 1891, há uma concepção de aparelho de
linguagem. Nesse texto, Freud nos esclarece sobre o esquema psicológico da
representação de palavra, no qual a palavra só adquire significado em seu vínculo
com a representação de objeto. O que queremos frisar é que há, no pensamento
freudiano anterior ao surgimento da Psicanálise, uma concepção sobre uma
produção do sentido, uma semântica. Portanto, anterior ao Curso de Lingüística
Geral de Saussure, resultado de seminários apresentados no período entre 1907 e
1911, no qual encontramos a definição, o algoritmo de signo linguístico, como a
união entre um significante e um significado, isto é, entre uma imagem acústica e um
conceito.
Vale sublinhar que, segundo nossas pesquisas, as concepções de
representação de palavra e representação de objeto e, posteriormente,
representação de coisa irão percorrer toda a obra de Freud. Em nosso
entendimento, embora a concepção de signo saussuriano tenha sua pertinência e
grande importância para o campo linguístico e tenha servido, de forma modificada, a
Lacan, consideramos o esquema psicológico da representação de palavra, proposto
por Freud, como mais complexo e mais pertinente para se pensar o signo linguístico
em Psicanálise.
O signo saussuriano diz respeito ao vínculo do conceito com sua imagem
acústica, ou seja, do significado (So) com o significante (Se). A significação é uma
função que liga Se e So; e o valor linguístico é a contraposição entre os signos. Na
teoria freudiana, o signo ou a palavra é composto por uma rede de imagens: imagem
da leitura, imagem da escrita, imagem motora integradas à imagem acústica. A
significação se torna possível através da ligação da imagem acústica da palavra com
a imagem visual das associações de objetos que, por sua vez, é responsável pela
integração com a rede de imagens das associações de objeto: tátil, olfativa,
gustativa, acústica.
Se Lacan era tão freudiano como dizia, o verdadeiro herdeiro de Freud, o que
o teria levado a optar pelo signo saussuriano em detrimento do signo freudiano?
95
Nesse sentido, Miller, ao referir-se ao Seminário 11 de Lacan, realizado no
ano de 1964, faz a seguinte afirmação:
Lacan levanta questões epistemológicas sobre os conceitos psicanalíticos, mas ao fazer isso ele está realmente perguntando se os conceitos de Freud devem permanecer os únicos válidos em Psicanálise. (...) durante os primeiros dez anos de seu seminário, Lacan sempre adotou um texto de Freud (...) desta vez ele não faz isso. (...) De vez em quando discute um texto, mas não constrói seu seminário inteiramente em torno dos livros ou artigos de Freud. Em vez disso, a cada ano elabora um de seus próprios esquemas ou conceitos. (...) No interior dessas questões epistemológicas e dessa celebração de Freud, vemos não um desprestígio de Freud, mas o que poderíamos chamar de uma substituição. Uma espécie de reescrita de Freud, uma versão de Freud que Lacan adota; mas isso é feito em segredo, ou ao menos discretamente, porque ao mesmo tempo ele tem que provar que é o herdeiro de Freud. A isso se poderia chamar de estratégia do seminário. (MILLER, 1997, p.21)
Vale dizer que, embora nem sempre bem sucedido, Freud também fez uso de
conceitos oriundos do campo da linguística. Na verdade, ele tenta estabelecer um
diálogo entre Psicanálise e Linguística. Conforme escreve Arrivé, os linguistas
“Sperber e Abel são visivelmente utilizados por Freud para suturar as falhas da sua
teoria das relações entre linguagem e inconsciente.” (ARRIVÉ, 1999, p.17).
Assim, em seu texto O interesse filológico da psicanálise, Freud sublinha que,
Nos sonhos, são acima de tudo os órgãos e as atividades sexuais que são representados simbolicamente, em vez de sê-lo de modo direto. Um filólogo de Upsala, Hans Sperber, apenas recentemente (1912) tentou provar que as palavras que originalmente representavam atividades sexuais, sofreram, com base em analogias dessa espécie, uma modificação de grandes e extraordinárias conseqüências em seu significado. (FREUD, 1981, p.1858)
O autor é categórico, ao afirmar que os sonhos são representados por
imagens visuais, algo próximo a uma escrita pictográfica, tais como os hieróglifos
egípcios e não por palavras. Sendo assim, nem todos os elementos serão
interpretados ou lidos, mas servem como ‘determinativos’, para estabelecer o
significado de algum outro elemento. É isto que permite explicar a ambigüidade dos
diversos elementos dos sonhos, como também, a omissão de várias relações, sendo
que nesses casos, elas são supridas pelo contexto.
Se esta concepção do método de representação nos sonhos ainda não foi levada avante, isto, como facilmente se compreenderá, deve ser atribuído ao fato de os psicanalistas ignorarem completamente a atitude e o
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conhecimento com que um filólogo abordaria um problema como o apresentado pelos sonhos. (FREUD, 1981, p.1858).
Trata-se de um forte argumento de Freud, a favor do diálogo entre Psicanálise
e as demais disciplinas do campo das ciências da língua(gem).
No entanto, Freud nos esclarece que o inconsciente fala mais de um dialeto,
isto é, são muitas as formas de expressão do inconsciente. A linguagem pictórica
dos sonhos é uma delas, mas temos outras, tais como: a linguagem dos gestos da
histeria, a linguagem de pensamento das neuroses obsessivas e das parafrenias.
Assim, o recalque do desejo de engravidar, seria expresso por representações
diferentes desse desejo:
a) na histeria, através do vômito;
b) na neurose obsessiva, por meios de medidas de proteção contra
infecções;
c) na parafrenia, pela queixa ou suspeita de ser envenenado.
Desse modo, em conformidade com Freud, temos que, por fala deve-se
entender não somente a expressão do pensamento por palavras, mas também, a
linguagem dos gestos, da escrita, isto é, todos os demais métodos pelos quais a
atividade psíquica se expressa. Cabe perguntar se haveria como pensar a
linguagem no campo psicanalítico, desconsiderando o conceito de pulsão e seus
respectivos destinos.
A resposta será afirmativa, se levarmos em consideração o pensamento de
Lacan, de um inconsciente estruturado como linguagem. Mas será negativa, se
tomarmos como objeto de reflexão o pensamento de Freud. Ora, propor um diálogo
entre a Psicanálise e o campo linguístico não significa reduzir uma à outra, mas
compartilhar conhecimentos.
O sentido das palavras, das expressões e das proposições, nos esclarece
Pêcheux, não são literais, mas dependentes das formações ideológicas. Já a
formação discursiva é aquilo que, a partir da formação ideológica, pode e deve ser
dito. Logo, a formação discursiva dissimula a objetividade material de que algo fala
sempre antes, em outro lugar e independentemente.
Desse modo, o Ego, por ser da ordem do imaginário e sob a forma de
autonomia, não reconhece sua subordinação-assujeitamento ao Outro. O idealismo
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é o funcionamento espontâneo da forma-sujeito, do Ego-imaginário, como sujeito do
discurso. O autor define o intradiscurso como o funcionamento do discurso com
relação a si mesmo, isto é, o conjunto dos fenômenos de co-referência, que
constituem o fio do discurso, enquanto discurso de um sujeito. O ato de linguagem
implica o desconhecimento da determinação do sujeito no discurso que, de forma
especular, reproduz o discurso do outro. Metaforicamente, podemos dizer que o
tecido é o resultado da trama dos fios, atravessados pela lançadeira.
Quanto à Psicanálise, temos que diferenciar a psicanálise freudiana das
psicanálises pós-freudianas. Não se trata, aqui, da busca de nenhum purismo, seja
do freudismo, do lacanismo ou de outra vertente subjetivista qualquer da psicanálise,
mas de colocar que, na atualidade, a Psicanálise é um campo de conhecimento.
Cabe a essas diversas propostas se perguntarem pela pertinência e coerência de
suas teorias, de suas práticas clínicas e suas pesquisas pois, se refletirmos bem,
veremos que elas partem de uma situação cultural, de uma clínica, de conceitos
teóricos e métodos de pesquisas muito diferentes. Nisso, a Filosofia da Ciência
pode, em muito, colaborar.
3.9 - Pragmática e enunciação: Francis Jacques – pragmática da relação interlocuti va
No texto Do dialogismo à forma dialogada. Sobre os fundamentos da
abordagem pragmática, Francis Jacques (1985) afirma que há um paradoxo na
concepção filosófica de discurso, pois, de forma geral, os filósofos “fixaram para o
diálogo condições de possibilidades não dialógicas.” (JACQUES, 1985, p.23). É o
que encontramos no saber como reminiscência em Platão, na concepção de razão
cartesiana, nas mônadas de Leibniz ou na categoria trans-subjetiva de Kant e
Husserl.
Para o autor, o diálogo é pensado de modo acrítico: “como a produção de
dois discursos paralelos cujos segmentos são proferidos um por vez por
interlocutores supostamente constituídos.” (JACQUES, 1985, p.23). Isto seria reduzir
a enunciação à tríade: uma frase, um contexto e um locutor. Dito de outra forma:
dois solilóquios não fazem um discurso.
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Francis Jacques argumenta que é preciso saber que o dialogismo do discurso
é diferente de diálogo. Temos tanto discursos com estrutura dialógica, mas sem
retórica de diálogo, quanto diálogos falsos. Em seu entendimento, os diálogos
platônicos são monológicos. É o que se observa, por exemplo, com Sócrates, pois
independentemente do interlocutor, os critérios de verdade sempre pertencem a ele.
É preciso também diferenciar a relação interlocutiva da imagem que cada um
faz de si mesmo e do outro. “Uma coisa é falar com um interlocutor real, outra é falar
com a imagem que dele fabricamos, ou conforme à que imaginamos que alguém se
fez de nós mesmos”. (JACQUES, 1985, p.30).
É preciso esclarecer, no entanto, que Francis Jacques considera que, no
dialogismo, o proferimento do locutor leva o alocutário a compor e convergir com ele.
A mensagem é então emitida segundo a escuta do outro, mas também segundo o que reconstituo da voz do outro enquanto calculo sua reação verbal. Uma tal mensagem não está somente presa a dois contextos e a duas codificações, ela assume sua tensão. É a sede de uma dialogização que se estende a todos os fenômenos discursivos. (JACQUES, 1985, p.42).
Assim, em conformidade com Francis Jacques, o dialogismo presente no
discurso requer, por um lado, uma relação de reciprocidade atual entre os
interlocutores; e, por outro, a convergência como “condição necessária para que a
bivocidade seja dialógica”. (JACQUES, 1985, p.42). Mais ainda, inclui outros efeitos
de sentido, tais como a plurivocidade, movimentos de bi-contextualização e de bi-
codificação: conceitos-chave para uma pragmática da relação interlocutiva.
Ora, de nossa perspectiva consideramos como muito pertinentes e coerentes
as reflexões de Francis Jacques sobre a interação comunicativa e cremos que elas
possam trazer uma contribuição para o entendimento da interlocução entre
analisando e analista. Em outros termos, trata-se de uma questão importante para
uma clínica inspirada na Psicanálise, haja vista que, imaginariamente, se coloca o
analisando como aquele que fala e o analista como aquele que escuta. É comum
ouvirmos: “vou para a análise, falo, mas meu analista não diz nada”. O que nos
remete a um mal-entendido da regra fundamental da Psicanálise Freudiana:
associação livre por parte do analisando e escuta flutuante por parte do analista.
Tem-se aqui uma concepção de uma análise como um solilóquio, isto é, nos termos
de Francis Jacques “condições de possibilidades não dialógicas.” Portanto, é
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necessário entender a interlocução como “interação efetivamente comunicativa”. De
acordo com o autor, dizer que o discurso se dirige a alguém é insuficiente, pois o
importante é considerar “o ouvinte como verdadeiro co-enunciador”. (JACQUES,
1985, p.23). Apropriando-nos dessa perspectiva e transpondo-a para a situação
psicoterápica, podemos dizer que, na enunciação, é importante levar em
consideração não só a atividade exercida por aquele que fala, mas também por
aquele que escuta. Trata-se de uma atividade conjunta de uma relação entre locutor
e alocutário que, compartilhando do sentido dos enunciados de pertencimento
comum, podem, em sua interação discursiva, discutir, concordar ou discordar. Para
nós, o analista ocupa o lugar de co-enunciador. No entanto, cabe destacar que, na
abordagem de Francis Jacques, a ênfase não recai sobre o ego, mas sobre o
fenômeno relacional; e na nossa perspectiva, isto é, no caso de uma psicoterapia, a
ênfase também não recai sobre o eu, mas sobre um tipo especial de relação: a
relação transferencial do analisando a um sujeito suposto saber - o analista. Assim,
é a partir do relato do analisando, ou seja, da interação discursiva com o analisando,
que cabe ao analista, como co-enunciador, a função de pontuar, interpretar,
construir em conjunto uma significação.
3.10 - Enunciação e argumentação
Ora, a enunciação nos remete, de forma lógica, à argumentação. Como nos
esclarece Plantin, ao levar em consideração a argumentação como um fato de
discurso, ligado à prática da linguagem no contexto, são possíveis duas opções. Por
um lado, a fala, como resultado concreto da enunciação em situação, é sempre
necessariamente argumentativa. Pois, “todo enunciado trata de atuar sobre seu
destinatário, sobre o outro, trata de transformar seu sistema de pensamento. Todo
enunciado obriga e incita o outro a crer, a ver, a fazer, de forma diferente.”
(PLANTIN, 1998, p.29). Por outro, temos a posição das teorias clássicas da
argumentação retórica, que defendem que só alguns discursos são argumentativos.
O autor sublinha, ainda, que o estudo da argumentação pode tomar como objeto de
estudo, tanto o discurso monológico para extrair dele as estruturas, quanto a
situação dialógica , o debate, a conversação.
100
Mas, em relação à argumentação, haveria um logos, isto é, uma razão
discursiva, sem ethos, sem pathos? Ou, um pensamento e um discurso isentos de
emoções e independentes do ethos do orador e do pathos do auditório? Afinal o
pathos e o ethos são internos ou externos? Haveria uma argumentação sem
intencionalidade?
A tese forte defendida por Eggs (2005) é que “o ethos constitui praticamente a
mais importante das três provas engendradas pelo discurso – logos, ethos e pathos.”
Quanto à relação entre ethos e discurso, o autor afirma que os temas e o estilo
escolhidos devem ser apropriados (oikeia) ao ethos do orador, a saber, a sua héxis,
ao seu habitus – ao seu tipo social.
Sobre o conceito de ethos, Maingueneau (2006) enfatiza que “o ethos de um
discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos
discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos de texto em que o
enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito).” Baseando-se na dimensão
do discurso e nos escritos de Aristóteles sobre a retórica, Mainguenau escreve que
há um ethos retórico, ligado à própria enunciação. (MAINGUENAU, 2006, p.53-55).
A retórica, escreve Reboul, é a arte de persuadir pelo discurso. Em outros
termos, persuadir é levar alguém a crer em alguma coisa e o discurso é toda
produção verbal, escrita ou oral que tenha começo e fim e apresente certa unidade
de sentido. No entanto, Reboul observa que nem todo discurso visa à persuasão,
tais como: o puramente cientifico ou técnico, o poema lírico, a tragédia, o
melodrama, a comédia, o romance, os contos, as piadas. Quanto à afetividade, ele
sublinha que o etos está relacionado ao caráter do orador e o patos às tendências,
desejos e emoções do auditório. (REBOUL, 2000, P. XIV-XVII). De acordo com o
autor, para Aristóteles, a retórica utiliza, como meios de persuasão, três tipos de
provas: o patos que está ligado ao auditório e o etos ao orador como pertencentes à
dimensão afetiva, e o raciocínio como resultante do logos, isto é, como inerente à
dimensão racional, constituindo o elemento propriamente dialético da retórica.
(REBOUL, 2000, p.36).
Grize destaca que, na argumentação, o interlocutor não deve ser considerado
como um objeto a ser manipulado, mas um alter-ego , com o qual se partilha uma
visão. Em, Essais sur l’argumentation, Plantin (1990) sublinha que, ao argumentar, o
enunciador visa à modificação do sistema de crenças e representações de seu
interlocutor.
101
Em seu texto, Ethos e experiência do discurso: algumas observações, Auchlin
propõe ver a noção de ethos, não na dimensão teórica, mas prática.
Em nossa prática ordinária do discurso, o ethos responde às questões empíricas efetivas que têm como particularidade serem mais ou menos coextensivas ao nosso próprio ser, relativas a uma zona íntima e pouco explorada de nossa relação com a linguagem, onde nossa identificação introduz estratégias de proteção. (AUCHILIN, 2001, p. 222).
Sobre esta noção de ethos proposta por Auchlin, temos o seguinte comentário
feito por Mainguenau: “o importante, quando se é confrontado com essa noção, é,
pois, definir por qual disciplina ela é mobilizada, com qual ponto de vista, e no
interior de qual rede conceitual.” (MAINGUENEAU, 2006, p.71). Cabe lembrar que
Auchlin coloca, da seguinte forma, seu posicionamento teórico: “Apoiando-nos na
posição de Aristóteles, o ethos possui duas características centrais, inalienáveis:
a) ele é dialogal e reflexivo;
b) ele é casualmente dependente do discurso, ou emergente em relação ao
discurso.” (AUCHILIN, 2001, p.211).
Em nosso entendimento, o ethos, o pathos e o logos são inerentes à definição
de alma, em Aristóteles. Para ele, são três as funções da alma: duas irracionais, a
vegetativa e a sensitiva, e uma racional. A função vegetativa é responsável pela
nutrição, crescimento, reprodução e sem nenhuma interferência sobre a razão. A
função sensitiva, pelo conhecimento sensível-sensorial, seria da ordem do desejo,
do pathos e pode influenciar a razão. Já a função racional ou razão discursiva,
responsável pela atividade intelectual, tem a seguinte subdivisão:
a) razão teorética, que busca o conhecimento; a sapiência;
b) razão prática, que visa à ação ética do agente, o bem e a justiça, enfim a
sabedoria;
c) razão poiética ou técnica, responsável pelo saber fazer.
Considerando que o termo Logos tem vários significados, destacamos, dentre
eles, o de razão discursiva, isto é, a capacidade humana de saber pensar e falar.
102
Essa problemática do pensar e do falar já estava presente em Platão (2001), que
narra no Teeteto, dentre outros, um diálogo entre os personagens Sócrates e
Teeteto sobre a questão: o que é conhecimento. Basendo-se na tese de Protágoras
“o homem é a medida de todas as coisas”, Teeteto afirma que “conhecimento é
sensação” (151e), isto é, há uma “perfeita identidade entre conhecimento e
sensação” (160e). Utilizando-se de sua maiêutica, Sócrates pede a Teeteto que
reflita um pouco mais e responda: “vemos com os olhos, ou por meio dos olhos? E
ouvimos com os ouvidos, ou por meio dos ouvidos?” Teeteto responde a Sócrates
“que é por meio dos órgãos, não com eles, que percebemos alguma coisa.” (184c).
Assim, é através dos órgãos do corpo e de suas funções que percebemos todo o
sensível. Mas o que nos permite diferenciar uma sensação de outra não pode ser
uma outra sensação, e sim através da ideia ou da alma “ponto de convergência
delas todas, por meio da qual, usada como instrumento, percebemos todo o
sensível.” (184d). Portanto, afirma Sócrates que não há conhecimento nas
impressões, “mas no raciocínio a seu respeito; é o único caminho, ao que parece,
para atingir a essência e a verdade; de outra forma é impossível.” (186d). Há nesse
diálogo de Platão uma diferenciação entre corpo e alma. O corpo como da ordem do
sensível, do desconhecimento, e a alma racional como da ordem do conhecimento.
O termo pathos pode ser entendido como sofrimento, paixão e passividade.
Sofrer é ser afetado por alguma coisa; a paixão está relacionada às emoções.
Condillac escreve que “uma paixão é um desejo dominante”. (CONDILLAC, 1963,
p.89). Mas a paixão está também relacionada à imagem que o outro faz de mim.
Quando somos tomados por paixão, ficamos passivos, tendo, como conseqüência, a
desmesura, o mesmo que perder a razão. Nesse sentido, Berlinck (2000) nos
esclarece que o pathos não é inerente ao corpo, vem de fora e rege nossas ações.
No entanto, cabe lembrar que Freud denominou o Id, como sede das paixões.
Em sua origem grega, o termo ethos tem o sentido de morada. Essa morada
simbólica humana tem duas vertentes: uma singular, o caráter, que é o modo como
o indivíduo administra o conflito entre a razão e o pathos. Outra social, intersubjetiva.
Tanto numa dimensão, quanto noutra, trata-se de uma relação eu-outro. Mas não se
pode pensar em ethos, sem levar em consideração a práxis, a ação, para consigo
mesmo e para com o outro. O ethos serve de base para a práxis, mas pode por ela
ser modificado.
103
Em seu ensaio La curación por la palabra em la antigüidad clásica, Laín
Entralgo (1987) sublinha que, no pensamento platônico, encontramos uma
diferenciação entre logos dialético, que visa conhecer ou reconhecer a verdade e
logos retórico que busca, através da persuasão, suscitar crenças.
Outro ponto importante, destacado por Laín Entralgo, é o argumento
aristotélico de que o logos dialético e logos retórico são gêneros diferentes de
persuasão. Na verdade, Aristóteles afirma que são três os gêneros de persuasão
retórica: o gênero judicial, o gênero deliberativo, o gênero epiditico ou demonstrativo.
Assim, de acordo com nosso esquema, temos:
GENEROS DE PERSUASÃO
GÊNERO
FIM
DESTINATÁRIO
TEMPO
JUDICIAL
Justo ou injusto
Juiz
Passado
DELIBERATIVO
OU
POLÍTICO
Conveniente
ou
danoso
Membro
da
assembleia
Futuro
EPIDÍTICO
OU
DEMONSTRATIVO
Belo ou feio
Pessoa
elogiada
ou
vituperada
Presente
Quadro 2 – gêneros de persuasão
Fonte: Elaborado pelo autor
Como podemos observar:
104
- no gênero judicial, o orador, baseando-se em algo do passado, tenta persuadir o
juiz de que determinada ação foi justa ou injusta;
- no gênero deliberativo, o orador, levando em consideração alguma ação futura,
tenta persuadir a assembleia de que tal decisão será conveniente ou danosa;
- no gênero epiditico ou demonstrativo, o orador tenta convencer seu destinatário de
que, no presente, algo é belo ou feio.
Assim, em cada gênero, o orador irá se utilizar dos argumentos próprios de
sua arte. O destinatário estará persuadido quando acreditar, admitir como verdade,
aquilo que o orador lhe diz.
Todavia, Laín Entralgo, partindo da retórica aristotélica, vai aventar a
possibilidade de mais um gênero: o terapêutico. Para o autor, dentre os gêneros de
persuasão da retórica, o que mais se aproxima do gênero terapêutico ou curativo é o
gênero deliberativo. Esta justaposição está baseada no fato de que a persuasão
deliberativa tem, como objeto, o possível no sentido daquilo que depende de nós.
Contudo, outro ponto importante da retórica aristotélica é a arte do orador,
que consiste nas três provas técnicas: o caráter ou ethos do orador; a disposição do
ouvinte e o que é dito com o discurso. Portanto, a persuasão só se torna eficaz
quando o discurso do orador toca as paixões dos ouvintes. Para Aristóteles, o
pathos provoca uma mudança tanto no corpo, quanto no modo de julgar e opinar.
Inspirando-se nesses argumentos aristotélicos, Pedro Alain Entralgo se pergunta: “si
no es este el caso del “orador médico” o sanador por la palabra, tal como Antifonte lo
fue em Corinto a fines del siglo V a.C., y tal como hoy lo son quienes a si mismos se
llaman psicoterapeutas.” (ALAÍN ENTRALGO, 1987, p.206). Em conformidade com o
autor, embora não saibam, os psicoterapeutas se utilizam da retórica aristotélica. É o
que se pode observar nas histórias, nos relatos dos casos clínicos de Freud.
Assim, tomando como base, os pressupostos teóricos acima relacionados,
iremos analisar, parcialmente, o seguinte discurso de Freud sobre a interpretação do
sonho de seus pacientes.
Como já expliquei [em [1]], quando empreendo o tratamento analítico de um paciente psiconeurótico, seus sonhos são invariavelmente discutidos entre nós. No decurso dessas discussões, sou obrigado a dar-lhe todas as explicações psicológicas que permitiram a mim mesmo chegar a uma compreensão de seus sintomas. A partir daí, fico sujeito a uma crítica implacável, por certo não menos severa do que a que tenho de esperar dos membros de minha própria profissão. E meus pacientes invariavelmente contradizem minha asserção de que todos os sonhos são realizações de
105
desejos. Eis aqui, portanto, alguns exemplos do material de sonhos apresentados contra mim como provas em contrário. (FREUD, 1981, p.436).
Como podemos observar, o argumento freudiano de que os sonhos são
realizações de desejos, é contestado por seus pacientes. Ao caso que vamos nos
referir, a paciente, enquanto enunciador, antes de relatar o sonho, coloca o seguinte
contra-argumento: “vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto —
um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor enquadra
isso em sua teoria?”
Para nós, essa tese freudiana tem aqui uma intencionalidade, o desejo de
provar sua crença, baseada em sua Psicanálise, isto é, em sua razão-discursiva:
teorética, prática e poiética, de que “a análise nos demonstra, em todo caso, que o
sonho possui realmente um sentido e que este é a realização de um desejo”.
(FREUD, 1981, p. 436). Há, portanto, no sonho um pathos - o desejo - e um logos -
o sentido. Nota-se que Freud busca, com seu argumento, persuadir não só sua
analisanda, mas seus colegas de profissão, seus novos interlocutores e também,
seus futuros leitores.
Eis o sonho da paciente:
Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado. Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas. Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito. Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia. (FREUD, 1981, p.436).
No relato do sonho da paciente, está presente um desejo de oferecer uma
ceia e a crença de não poder realizá-lo, por ter apenas “um pequeno salmão
defumado”.
Antes de nos apresentar, a primeira análise do sonho feita pela paciente,
Freud nos mostra um perfil do marido dela. Trata-se de um açougueiro atacadista,
que está engordando muito e, por esse motivo, se propõe a fazer regime e a não
aceitar mais convites para cear.
Em sua primeira análise de seu sonho, a paciente diz sobre seu desejo de
comer, todas as manhãs, um sanduíche de caviar. Mas pede ao marido que não
atenda a sua demanda, como motivo para continuar a provocá-lo. Freud considera
essa análise feita pela paciente como “pouco convincente”.
106
Após uma curta pausa, como que para vencer uma resistência, inicia-se a
segunda análise do sonho , realizada pela paciente, a pedido de Freud. Ela fala
que, na véspera, havia visitado uma amiga e que sente ciúmes do seu marido com
essa amiga, pois ele tem o hábito de elogiá-la. Mas, felizmente, sua amiga é magra
e seu marido gosta de mulheres mais cheiinhas. Quando indagada por Freud a
respeito do assunto sobre o qual conversava com a amiga, a paciente diz do desejo
da amiga de engordar um pouco e de ser convidada para jantar em sua casa. Freud
considera que o sentido do sonho, agora está claro. Convidar a amiga para jantar é
colaborar para que ela se torne mais cheiinha e chame, mais ainda, a atenção do
açougueiro.
Nesse diálogo da paciente com a sua amiga, observa-se a presença:
a) do pathos - ciúme, como estado psicológico dominante da cena do
sonho;
b) da crença que, ficando mais cheiinha, a amiga atrairia o desejo do
marido;
c) daí o desejo, presente no sonho, da impossibilidade de oferecer uma
ceia, pois só tinha um pedaço de salmão.
Ora, como podemos observar, na primeira análise do sonho feita pela
paciente, está implicado seu desejo, ou melhor, a não satisfação de seu desejo de
comer caviar. Na segunda análise feita por ela, o que está em jogo é o desejo de
sua amiga de ficar mais cheiinha e ser convidada para jantar. Em outros termos, o
temor de que, ficando a amiga mais cheiinha, atice a admiração, isto é, o desejo do
açougueiro. Quando Freud pergunta sobre o salmão, a paciente responde que, “oh”,
salmão defumado é o prato predileto da minha amiga.
Para que haja um diálogo esclarecido, Freud dá à analisanda as explicações
teóricas sobre os sonhos, capacitando-a a criticar, a contra-argumentar: vou lhe
contar “um sonho em que um de meus desejos não foi realizado. Como o senhor
enquadra isso em sua teoria?”
E o que faz Freud? Convida a analisanda, para juntos, numa interatividade
discursiva, analisarem o sonho. É a partir dessa reflexão discursiva entre analisanda
e analista, isto é, do encontro dialogal entre a fala, o argumento de um e as
considerações do outro, que se desvelam a intencionalidade e os sentidos dos
107
sonhos. Em nosso entendimento, o desejo pulsional de um sonho pertence à ordem
do pathos; o sentido de um sonho, ao logos. Desse modo, podemos afirmar que
este desvendar do pathos, pelo logos discursivo, ou seja, a descoberta da
intencionalidade e dos sentidos, até, então, inconscientes, relacionados à realização
desejante do sonho, é o que transforma o ethos, isto é, a subjetividade da
analisanda. Em outros termos, através da interação discursiva, possibilitar à
analisanda, àquela que fala, entender o que está dizendo, pensando, desejando: a
produzir uma significação. O que nos permite afirmar que há, na Psicanálise
Freudiana, o que designamos como uma “semântica dos sonhos”, vinculada à
realização de um desejo pulsional inconsciente. Esta prática psi, esse modo de
cuidar de si, o falar do pathos, do não verbal, do desejo pulsional inconsciente,
através do logos, da atividade verbal, possibilita à analisanda uma outra
identificação, uma outra imagem de si, uma mudança subjetiva, a criação de um
outro ethos. Temos, assim, a invenção de uma estilística existencial produzida
pelos efeitos do discurso na subjetividade.
Outro ponto importante a ser considerado é a relação entre os atos de fala
ilocucionais e a interpretação dos sonhos.
3.11 - Atos de fala ilocucionais e a interpretação dos sonhos
Vamos, portanto, dar continuidade à nossa reflexão sobre o sonho, acima
relatado, à luz da teoria freudiana e das propostas de Austin, Searle, Vanderveken e
Mari, relativas à intencionalidade e aos atos de fala ilocucionais.
Conforme nos indica Mari, para Austin, na compreensão de um ato de
linguagem é preciso que se leve em consideração:
a) o ato locutório: domínio das convenções linguísticas;
b) o ato ilocutório: domínio das convenções interlocutivas;
c) o ato perlocutório: domínio de intenções interlocutivas.
108
Atos de fala ilocucionais - tais como asserções, ordens, promessas, perguntas
- são unidades constitutivas da conversação ou diálogo da forma F(p), onde F é uma
força ilocucional e p é uma proposição. Portanto, cabe à teoria lógica dos atos de
fala ilocucionais esclarecer quais são as forças ilocucionais de enunciações
possíveis.
São sete os componentes de cada força ilocucional:
a) um ponto ilocucional;
b) um modo de realização;
c) um conteúdo proposicional;
d) condições preparatórias;
e) condições de sinceridade;
f) grau de intensidade do ponto ilocucional;
g) grau de intensidade das condições de sinceridade.
Por (π) ponto ilocucional de uma força ilocucional, entende-se o que o falante
pretende fazer quando executa um ato com tal força. No entanto, há somente cinco
pontos ilocucionais e a cada um corresponde uma força ilocucional primitiva. Outro
componente importante da força ilocucional é o (µ) modo de realização. Nesse
sentido, são vários os modos de realização do ponto ilocucional. Em seu seminário
sobre Os aspectos da teoria dos atos de fala, Mari apresenta um esquema da
tipologia dos modos associados aos pontos ilocucionais de uma força.
Esquema dos pontos e modos de uma força ilocucional:
a) O (π) ponto assertivo consiste na representação de um estado de coisas
como real. π assertivo; com uma força ilocucional de asserção que se realiza
no modo indicativo.
Modos do assertivo;
µ: afirmação – afirmar, garantir, assegurar, firmar.
µ: testemunho – testemunhar, depor, jurar.
µ: predição – prever, predizer, adivinhar, imaginar.
µ: dúvida – supor, duvidar, desconfiar.
µ: negação – negar, contestar, refutar, recusar.
A seguir, apresentamos exemplificações colhidas do texto freudiano.
109
Ato de fala Estrutura Freud: o fato de os sonhos realmente terem um significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser provado novamente pela análise em cada caso específico.
π: assertivo. Reporta a um estado de coisa. Pressuposto: o fato é verdadeiro. µ: afirmação
Quadro 3 – ato de fala - estrutura
Fonte: Elaborado pelo autor
b) π comissivo: com uma força ilocucional de comprometimento do falante
com uma ação futura.
Modos do comissivo:
µ:desejo - pretender, querer, ansiar.
µ: expectativa – esperar, ter expectativa de...
µ: recusa – recusar, evitar, deixar de...
µ: aceite – aceito, acato.
µ: promessa – prometer, intencionar.
Ato de fala Estrutura
Pois bem, vou lhe contar um sonho
cujo tema foi exatamente o oposto —
π: comissivo. Projeta uma ação
futura.
Pressuposto: o locutor é capaz de
realizar a ação.
µ: promessa.
Quadro 4 – ato de fala - estrutura
Fonte: Elaborado pelo autor
c) diretivo: com uma força ilocucional que se realiza no modo imperativo.
Consiste em fazer uma tentativa de levar o ouvinte a fazer alguma coisa.
π:diretivo
µ: ordem – ordenar, instruir, impor.
µ: comando – determinar, comandar.
µ: pedido – pedir, demandar.
110
µ: solicitação – solicitar, requer.
µ: súplica – suplicar, implorar, rogar.
Ato de fala Estrutura
Perguntei-lhe o que significava isso, e
ela explicou que há muito tempo
desejava comer um sanduíche de
caviar todas as manhãs, mas relutava
em fazer essa despesa.
π: diretivo. Posição hierárquica entre
os interlocutores. Levou a analisanda
a dar explicações.
µ: pedido.
Quadro 5 – ato de fala - estrutura
Fonte: Elaborado pelo autor
d) declarativo: com uma força ilocucional de asserção que se realiza (inglês)
no modo indicativo. Consiste em produzir um estado de coisas em virtude da
enunciação.
π: declarativo
µ : mais formal – casar, batizar, declarar culpado ou inocente, etc.
µ: menos formal – definir, declarar, demitir, despedir.
Ex: “Eu vos declaro marido e mulher”. Quando dito por um padre, um pastor;
e) expressivo: com uma força ilocucional expressiva, que consiste na
expressão de atitudes ou estados psicológicos do falante a propósito de um
estado de coisas.
Modos do expressivo
π: expressivo µ:exaltativo – animação:Vamos! Vai! Coragem!
- surpresa: Ah! É? Opa! Oba!
- cumprimento: Bom dia! Salve!
π: expressivo µ:depreciativo – irritação: Sei, lá!
- xingamento: Merda! Sacana!
- deboche: Bobagem!
π: expressivo µ:dubitativo – Acho que-P - Penso que-P.
π: expressivo µ:sensitivo – Vejo que –P - Sinto que –P.
111
Ato de fala Estrutura
“Oh”, exclamou ela, π: expressivo
µ: surpresa
Quadro 6 – ato de fala – estrutura
Fonte: Elaborado pelo autor
A partir da explicação filosófica destes cinco pontos de atos de fala
ilocucionais, buscamos demonstrar as vinculações possíveis entre o conteúdo
proposicional de uma ilocução e o mundo. Assim,
a realização de um ponto ilocucional de uma força F é essencial à execução bem sucedida de um ato ilocucional F(P). Na execução de um ato ilocucional F(P), o ponto ilocucional de F é sempre realizado sobre o conteúdo proposicional P. Por exemplo, numa asserção que P, o falante representa como real o mundo da enunciação o estado de coisas representado por P, numa promessa de P, o falante compromete-se a realizar no futuro a ação representada por P. Diferentes pontos ilocucionais têm diferentes condições de realização. Consequentemente, cada ponto ilocucional induz e pode ser identificado como uma relação π entre contextos possíveis de enunciação i e uma proposição. (VANDERVEKEN, 1985, p. 176).
Tal como num jogo, uma jogada restringe o número de contra-jogadas
possíveis; numa conversação, o ato ilocucional também vai restringir a forma de atos
ilocucionais possíveis. Em outros termos, trata-se de um jogo de linguagem. Assim,
diante da pergunta “que horas são”? O ouvinte pode, ou não responder quantas
horas são, porém, não faz parte ou não é esperado, que ele responda à esta
pergunta com o teorema de Pitágoras.
Entretanto, as forças ilocucionais podem impor condições relativas ao
conteúdo proposicional de um ato ilocucional. O conteúdo proposicional de uma
predição implica uma proposição futura em relação ao tempo da enunciação. Já o
conteúdo proposicional de um relato deve ser fixado no tempo de sua realização
verbal presente ou passado.
As condições preparatórias de uma força ilocucional estão atreladas ao
conjunto de fatos e estados de coisa, atribuídos tanto ao locutor, quanto ao
alocutário como pressuposto necessário para o desempenho de um ato. Nesse
sentido, Vanderveken afirma que “uma condição preparatória de uma asserção é
que o falante tenha evidências da verdade do conteúdo proposicional. Uma condição
112
preparatória de uma promessa é que o falante seja capaz de realiza-la.”
(VANDERVEKEN, 1985, p. 177).
Sobre as condições de sinceridade, o autor nos esclarece que, na realização
dos atos ilocucionais, o locutor ou o falante expressa também estados psicológicos,
vinculados ao estado de coisas - representado pelo conteúdo proposicional. “Por
exemplo, um falante que afirma, expressa uma crença na verdade do conteúdo
proposicional. Um falante que promete fazer alguma coisa expressa uma intenção
de fazê-la. O falante é sincero se e somente se seu estado psicológico corresponde
àquele expresso, e é por isso que falamos de condições de sinceridade de forças
ilocucionais.” (VANDERVEKEN, 1985, p. 177).
3.12 - Análise do corpus – a interpretação do sonho – na perspectiva da psicanálise freudiana em conjunto com a teoria dos atos de fala.
A tese de Freud de que o sonho tem um sentido secreto e representa uma
realização de desejo é contestada por uma de suas pacientes, ao que ele responde
que a única forma de decidir, quanto ao sentido do sonho é analisa-lo. Nesse
sentido, Freud pede a sua analisanda que estabeleça um vínculo entre o relato do
sonho e os acontecimentos da véspera.
Assim, de acordo com a nossa interpretação, apresentamos o quadro 3 –
Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações da analisanda e do
analista - a seguir:
Loc./Aloc.11 Atos de fala Estrutura Freud O fato de os sonhos realmente terem um
significado secreto que representa a realização de um desejo tem de ser
π: assertivo. Reporta a um estado de coisa. pressuposto: o fato é
11 Locutor e Alocutário correspondem aos interlocutores envolvidos na interação comunicativa.
113
provado novamente pela análise em cada caso específico.
verdadeiro. µ: afirmação
Analisanda O senhor sempre me diz que o sonho é um desejo realizado.
π: assertivo. Reporta a um estado de coisa . pressuposto: o fato é verdadeiro. µ: afirmação
Analisanda Pois bem, vou lhe contar um sonho cujo tema foi exatamente o oposto —
π: comissivo. Projeta uma ação futura. Pressuposto: o locutor é capaz de realizar a ação. µ: promessa
Analisanda um sonho em que um de meus desejos não foi realizado.
π: assertivo µ: negação
Analisanda Como o senhor enquadra isso em sua teoria?
π: diretivo µ: questionamento
Analisanda Foi este o sonho: “Eu queria oferecer uma ceia, mas não tinha nada em casa além de um pequeno salmão defumado.
π: assertivo µ: afirmação
Analisanda Pensei em sair e comprar alguma coisa, mas então me lembrei que era domingo à tarde e que todas as lojas estariam fechadas.
π: assertivo µ: afirmação
Analisanda Em seguida, tentei telefonar para alguns fornecedores, mas o telefone estava com defeito.
π: assertivo µ: afirmação
Analisanda Assim, tive de abandonar meu desejo de oferecer uma ceia.”
π: assertivo µ: afirmação π: assertivo µ: afirmação
Analista O marido de minha paciente (um açougueiro atacadista) (...) comentara com ela, na véspera, que estava ficando muito gordo e que, por isso, pretendia começar um regime de emagrecimento. Propunha-se (...) não aceitar mais convites para cear.
π: assertivo µ: hipótese
Analista —Ela também implorara a ele que não lhe desse nenhum caviar.
π: assertivo µ: afirmação
Analista Perguntei-lhe o que significava isso, e ela explicou que há muito tempo desejava comer um sanduíche de caviar todas as manhãs, mas relutava em fazer essa despesa.
Reconstrução enunciativa do ato: esse ato teve a seguinte realização - π: diretivo. Posição hierárquica entre os interlocutores. Levou a analisanda a dar explicações.
114
µ: pergunta Analista Naturalmente, o marido a deixaria obtê-
lo imediatamente, se ela lhe tivesse pedido. Mas, ao contrário, ela lhe pedira que não lhe desse caviar, para poder continuar a mexer com ele por causa disso. Essa explicação me pareceu pouco convincente.
π: assertivo µ: condição desconfiança do analista em relação à interpretação da analisanda. Reconstrução enunciativa do ato: π: diretivo µ: pedido
π: assertivo µ: impressão
Após uma pausa curta, como a que corresponderia à superação de uma resistência, ela prosseguiu dizendo que, na véspera, visitara uma amiga de quem confessava ter ciúmes porque seu marido (de minha paciente) estava constantemente a elogiá-la.
π: assertivo µ: afirmação
Felizmente, essa sua amiga é muito ossuda e magra, e o marido de minha paciente admira figuras mais cheinhas.
π: assertivo µ: afirmação
Perguntei-lhe o que havia conversado com sua amiga magra. Naturalmente, respondeu, sobre o desejo dela de engordar um pouco.
Reconstrução enunciativa do ato: π: diretivo µ: pergunta) π: asssertivo µ: afirmação
A amiga também lhe perguntara: “Quando é que você vai nos convidar para outro jantar? Os que você oferece são sempre ótimos.”
π: assertivo µ: afirmação
Agora o sentido do sonho estava claro, e pude dizer a minha paciente:
π: assertivo µ: afirmação
“É como se, quando ela fez essa sugestão, a senhora tivesse dito a si mesma: Pois sim!
π: assertivo µ: confirmação
Vou convidá-la para comer em minha casa só para que você possa engordar e atrair meu marido ainda mais!
π: comissivo µ: desejo/intenção
115
Prefiro nunca mais oferecer um jantar.’ π: comissivo µ: afirmação
O que o sonho lhe disse foi que a senhora não podia oferecer nenhuma ceia, e assim estava realizando seu desejo de não ajudar sua amiga a ficar mais cheinha.
π: assertivo µ: afirmação
O fato de que o que as pessoas comem nas festas as engorda lhe fora lembrado pela decisão de seu marido de não mais aceitar convites para jantar, em benefício de seu plano de emagrecer.”
π: assertivo µ: afirmação
Só faltava agora alguma coincidência que confirmasse a solução. O salmão defumado do sonho ainda não fora explicado.
π: assertivo µ: afirmação
“Como foi”, perguntei, “que a senhora chegou ao salmão que apareceu em seu sonho?"
π: diretivo µ: pergunta
“Oh”, exclamou ela,
π: expressivo µ: exaltativo – surpresa
“salmão defumado é o prato predileto de minha amiga!”
π: assertivo µ: afirmação
Quadro 7 - Fragmentos sobre o sonhar, o relato do sonho, as interpretações da analisanda e do
analista Fonte: Elaborado pelo autor
Em conformidade com a Teoria dos Atos de Fala, temos, observando o
quadro acima:
π: ponto de realização:
a) assertivo;
b) diretivo;
c) comissivo;
d) expressivo.
µ: modo de realização:
a) afirmação, pergunta, dúvida, confirmação, impressão, por parte de Freud;
b) afirmação, promessa, negação, questionamento, surpresa, pedido, por
parte da analisanda,
116
Θ: condição de conteúdo proposicional
- o tempo da ação é o passado.
∑: condição preparatória:
Locutor – Freud, enquanto psicanalista e autor da tese de que o sonho tem um
sentido oculto e representa uma realização de um desejo, é capaz de dar uma
interpretação/significação para o relato do sonho da analisanda.
Alocutário: a analisanda, baseando-se em seu próprio sonho, contesta a tese de
Freud.
Ψ: condição de sinceridade: Freud comprova, a partir da análise e da interpretação
feita em conjunto com a analisanda, a pertinência e a coerência de sua tese.
Quanto ao modo de ajustamento, temos que levar em consideração tanto os
argumentos de Freud sobre os sonhos, quanto os de Searle sobre intencionalidade
e atos de fala.
Em seu texto Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos (1917), ao
abordar a finalização do processo onírico, Freud escreve que
Esta consiste no fato de o conteúdo do pensamento que havia sido regressivamente modificado – e que foi transformado numa fantasia que expressa um desejo – agora tornar-se consciente na forma de uma percepção sensorial. Contudo, cabe mencionar que, como ocorre com qualquer conteúdo perceptivo, também este foi objeto de uma elaboração secundária. Dizemos nesse caso que o sujeito alucina o desejo do sonho e, por conseqüência, acredita que esse desejo está se realizando de fato. (FREUD, 2006, p.85).
De acordo com o autor, temos, como partes essenciais, mas não exclusivas,
do trabalho onírico:
- formação de uma fantasia que expressa um desejo;
- regressão dessa fantasia até a alucinação.
Cabe, portanto, sublinhar que a proposta de Freud é esclarecer como ocorre
o processo de sonho no aparelho psíquico. De maneira bem sintética, já que o
sonho é algo complexo, podemos dizer que na formação do sonho:
a) há uma regressão dos resíduos diurnos pré-conscientes;
b) os pensamentos são transformados em imagens predominantemente
visuais, isto é, há um reenvio das representações de palavra às suas
117
representações de coisa correspondentes. Trata-se, aqui, de um processo
de figurabilidade ;
c) há investimento nas lembranças-de-coisa do sistema Inconsciente;
d) as lembranças-de-coisa são regidas pelo processo primário;
e) estão presentes os mecanismos de condensação e de deslocamento que
movimentam os investimentos de energia entre as lembranças-de-coisa,
configurando, assim, o conteúdo manifesto do sonho. (FREUD, 2006, p.84).
Buscando compreender o fenômeno onírico e, respectivamente, seu relato e
sua interpretação, tendo em vista a Teoria dos Atos de Fala, apresentamos as
seguintes considerações:
a) Sobre o fenômeno sonho, por se tratar de um mecanismo de
transformação das palavras em imagens e ser algo inerente somente
ao sonhador, não temos como analisar;
b) Embora seja uma realização de desejo, o sonho não tem nenhum
sentido, isto é, o sonhador ignora a significação de seu sonho;
c) A realização do desejo no sonho é uma fantasia, trata-se de uma ficção
e não uma realização objetiva, social;
d) Para que ocorra o relato manifesto do sonho é necessário que haja a
transformação das imagens em palavras, a passagem do processo
primário ao processo secundário. Assim, as lembranças-de-coisas do
sonho são processadas, secundariamente, pelas representações de
palavras, pré-conscientes, isto é, a partir de então, podem ser
enunciadas;
e) No entanto, o que interessa ao analista não é o conteúdo do relato
manifesto, mas seu conteúdo latente, que remete à intenção e ao
múltiplo sentido do desejo pulsional presente no fenômeno do sonho;
f) Só a partir do relato manifesto do sonho, por sua dimensão dialógica
de endereçamento do analisando (como locutor) ao analista (como
alocutário), é que podemos nos utilizar da Teoria dos Atos de Fala;
g) Todo relato manifesto do sonho, independentemente do conteúdo,
corresponde a um ato de fala macro-assertivo, pois remete a algo
anterior a sua enunciação, embora possa conter, em seu interior,
outros padrões de atos. Em conformidade com Dijk, (...) “as seqüências
118
de atos de fala devem também ser analisadas em um nível global. Isto
significa que a seqüência de atos de fala é mapeada como um todo de
atos globais ou macro-atos de fala.” (DIJK, 2004, p. 94);
h) Esses relatos são as condições de possibilidades para as traduções de
uma comissividade do próprio sonho, isto é, do sonho como uma
realização de um desejo inconsciente;
i) Quanto ao modo, pode ser de afirmação, testemunho, predição,
dúvida, negação;
j) O sonho, como uma realização ficcional do desejo , é essencialmente
comissivo; o relato de um sonho, enquanto reporta esse comissivo, é
assertivo, porém, enquanto um processo de interação analista-
analisando, ele não representa uma força específica, mas qualquer
uma.
Em resumo, no relato do sonho temos, portanto, uma sequências de atos de
fala, que demandam uma macrocompreensão. Como observa Dijk
Uma das importantes funções da macrocompreensão é a de permitir ao falante/ouvinte estabelecer associações entre os atos da fala em relação a um macroato de fala. Do contrário, não seríamos capazes de planejar e monitorar um longo discurso ou conversação, nem seríamos capazes de, durante a compreensão, entender as ações dos falantes durante todo o tempo da interação. (DIJK, 2004, p.94).
Nossa abordagem é, portanto, uma tentativa de ampliação da abordagem
freudiana do sonho, na medida em que buscamos compreender o relato do sonho,
enquanto ato de linguagem comissivo/desejante, isto é, como um discurso.
119
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Análise I Feita pela analisanda
Análise II feita pela analisanda
Interpretação de Freud
Quadro 8 – Esquematização da análise e da interpretação do sonho
Fonte: Elaborado pelo autor
Como podemos observar, no esquema acima, Freud não explica o sonho
relatado pela analisanda. Ele pede a ela que reflita sobre o conteúdo apresentado na
cena onírica e que faça uma conexão com os acontecimentos do dia anterior ao
sonho, conforme as análises I e II das conversas da analisanda com o marido e com
a amiga. Só-depois é que Freud faz uma interpretação, isto é, produz uma
significação do que foi dito pela analisanda. Trata-se de um modelo de como ele
fazia a interpretação de um relato do sonho, isto é, através de uma reflexão
conjunta, de uma interação dialógica entre analisanda e analista. Desse modo, a
interpretação de um relato de um sonho é um processo inverso ao trabalho do
sonho. Então, para a interpretação do sonho, temos o que denominamos uma
enunciação terceirizada, onde passa a existir algum esforço, alguma intervenção por
parte do analista. Sendo assim, nossa hipótese é que a enunciação do sonho tem
um duplo aspecto de ficção e de realidade.
De acordo com Searle “o discurso ficcional oferece-nos uma série de atos de
fala simulados (como um faz-de-conta), em geral assertivas simuladas, e o fato de o
ato de fala ser apenas simulado rompe os compromissos palavra-mundo das
assertivas normais.” (SEARLE, 2002, p.24). Assim, tomando de empréstimo a
SONHO:
Desejo de oferecer salmão numa ceia
Regime do marido
para não engordar → não aceitar convite
para ceiar
Desejo da amiga de
ficar mais cheinha →mais admiração do seu
marido → Ciúme.
Desejo de não oferecer ceia à amiga →salmão
prato predileto da amiga
120
noção de discurso ficcional, podemos dizer que o desejo de oferecer uma ceia,
como primeiro relato do sonho feito pela analisanda, corresponde a esse aspecto
ficcional. Ainda, segundo o autor, “(...) alguns de nossos estados Intencionais são
exercícios de fantasia e imaginação, mas, analogamente, alguns de nossos atos de
fala são ficcionais.” (SEARLE, 2002, p.24). Assim, nesse primeiro relato da
analisanda, as condições de satisfação e as condições de verdade são simuladas,
ou seja, são frutos da realização de uma fantasia inconsciente do desejo. No
entanto, é pedido à analisanda, em seguida, que pense nos acontecimentos do dia
anterior ao sonho. Aqui, não se trata mais de uma ficção, mas de algo referente a
um estado de coisas.
Tomando de empréstimo a Husserl o conceito de noema, podemos dizer que
o sonho deixa de ser apenas um fenômeno e ganha uma dimensão noemática. Pois,
em conformidade com Abbagnano (1999), o noema não é a coisa ou o objeto
próprio, mas a reflexão sobre a coisa, o objeto em seus diversos modos: o
percebido, o recordado, o imaginado.
Passamos, assim, da tese de que o sonho é uma realização de desejo,
(P:comissivo/M:desejo) algo inerente ao sonhador - mas, sem sentido -, para a tese
de que o relato do sonho tem uma intenção e um sentido, algo da ordem da
enunciação, do encontro dialogal entre analisanda e analista. Trata-se de uma
enunciação que terceiriza, porque implica a ‘interferência’ do analista. O que vem ao
encontro de nossa tese de uma topologia Eu-sujeito e a transferência de sentido na
enunciação.
Outro ponto relevante diz respeito à imaginação, tal como proposta por Searle
e a concepção freudiana do devaneio ou sonho diurno. Nesse sentido, Searle
escreve que “não é falha da asserção ficcional o seu caráter inverídico e não é falha
de um estado de imaginação que nada no mundo a ele corresponda.” (SEARLE,
2002, p.25). Sobre o fantasiar, Freud nos esclarece que “o homem feliz jamais
fantasia, somente o insatisfeito. As pulsões insatisfeitas são as forças impulsoras
das fantasias, e cada fantasia é uma satisfação de desejos, uma retificação da
realidade insatisfatória.” (FREUD, 1981, p.1344 -1345). Como ilustração dessa tese,
o autor dá o exemplo de um pobre órfão que está à procura de um emprego. No
caminho até à empresa, ele se permite um devaneio adequado à situação. O
conteúdo de sua fantasia é o seguinte: “consegue a colocação desejada, conquista
seus chefes, torna-se indispensável, é recebido pela família do patrão, casa-se com
121
sua bela filha e passa a ser sócio de seu sogro, e depois, seu sucessor no negócio”.
Em conformidade com Freud, “esse exemplo mostra como o desejo utiliza uma
ocasião do presente para projetar, segundo moldes do passado, um quadro do
futuro”. (FREUD, 1981, p.1344 -1345).
Portanto, há um vínculo entre tempo e fantasia que são perpassados pelo
desejo. Em outros termos, o trabalho anímico, isto é, psíquico, faz um
entrelaçamento entre um evento do presente que desperta o desejo através de uma
lembrança de uma experiência de satisfação anterior e cria uma situação imaginária
de satisfação futura.
Freud afirma que tanto os sonhos, quanto os devaneios são satisfações do
desejo, mas da ordem da fantasia e aponta para um importante detalhe: o excesso
de fantasias cria as condições para o desencadeamento de uma neurose ou de uma
psicose. Nos termos de Searle, fantasias e imaginações, embora tenham um
conteúdo, não de crença, mas estocado, têm suas condições de verdade e
condições de satisfação suspensas.
122
4. SENTIDO, INCONSCIENTE, TRANSFERÊNCIA E TOPOLOGIA DO SUJEITO 4.1 – A semântica linguística
A discussão sobre o sentido, o significado, a significação e a interpretação
das palavras, de seu uso na interação dialógica humana é antiga. Encontramos, no
diálogo Crátilo de Platão (2001), uma proposta de investigação sobre o nomear as
coisas. Enquanto o personagem Crátilo sustenta que “ cada coisa tem por natureza
um nome apropriado” (383a), seu interlocutor, Hermógenes, defende o contrário:
“nenhum nome é dado por natureza a qualquer coisa, mas pela lei e o costume dos
que se habituaram a chamá-la dessa maneira.” (384d).
Por um lado, Sócrates vai demonstrar a Hermógenes a pertinência do
argumento de Crátilo. De acordo com Sócrates, os nomes não são atribuídos por
acaso, mas possuem certa justificativa. Por exemplo: o nome antropos significa o
que contempla o que vê. Característica exclusiva do animal homem. Psique é a
faculdade de respirar e de refrescar, isto é, a força que movimenta e mantém a
natureza. (400a). "Quando está presente ao corpo é causa da vida; quando o
abandona, ele perece e morre” (399e). “Uns afirmam que o corpo (soma) é a
sepultura (sema) da alma, por estar a alma em vida sepultada no corpo, ou então,
123
por ser por intermédio do corpo que a alma dá expressão ao que quer manifestar
(semainei), é muito apropriado esse mesmo nome (sema) com o significado de sinal,
que lhe foi dado.” (400c).
Por outro lado, Sócrates vai mostrar a Crátilo que Hermógenes tem razão
quando sustenta que os nomes não têm, necessariamente, que ser iguais às coisas
que representam. Nesse sentido, Sócrates conclui que “a convenção e o costume
contribuem igualmente para exprimir o que temos no pensamento, no instante em
que falamos” (435b). Assim, o que Platão nos esclarece, através do personagem
Sócrates em seu diálogo com Crátilo e Hermógenes, é que a palavra pode tanto
nomear as coisas por natureza, quanto por convenção.
Ora, a reflexão dos filósofos antigos sobre a palavra - a linguagem - não se
restringia ao seu sentido, ao seu significado, mas também ao uso da palavra - da
linguagem - no tratamento dos males do corpo e da alma, isto é, numa psicoterapia
verbal.
Todavia, a psicoterapia verbal, o tratamento dos males do corpo e do espírito,
por meio da linguagem, não é uma novidade, uma invenção pertencente a nossa
modernidade tardia, ou melhor, uma invenção de Ana O., paciente de Breuer e
Freud.
A ação da linguagem sobre o psiquismo humano já estava presente nas
especulações dos pensadores da Grécia antiga. Nos termos de Laín Entralgo, “com
a morte de Aristóteles acaba na Grécia a especulação psicológica da palavra
humana, e portanto, acerca do poder curativo desta. (LAÍN ENTRALGO, 1987, p.
270, tradução nossa). 12 O autor aponta para importância social, na Grécia pós-
homérica, da palavra persuasiva, melhor dizendo, do discurso persuasivo capaz de
encantar, de enfeitiçar o ser humano. Daí a intenção de Gorgias e Antifonte de
utilizar, tecnicamente, a persuasão como método para a cura de certas
enfermidades. Em Platão, a palavra sugestiva, persuasiva é denominada de
Catarse. No sentido platônico, a catarse nos liberta do que, em nós, é estranho, que
nos perturba ou corrompe. (ABBAGNANO, 1999, P.120).
Laín Entralgo nos esclarece ainda que a utilização somente dos fármacos,
embora necessária, não é suficiente para a cura das enfermidades do corpo.
“Portanto, não seria “técnicamente” completo o saber de um médico, se este não é
12 “Con la muerte de Aristóteles se acaba en Grécia la especulacción psicológica de la palabra humana, y por tanto acerca del poder curativo de ésta.”
124
capaz de produzir sophrsyme mediante sua palavra na alma de seus enfermos.”
(LAÍN ENTRALGO, 1987, p. 272, tradução nossa).13 Por sophrsyme entende-se,
aqui, o equilíbrio das crenças, sentimentos, impulsos, saberes, pensamentos e
estimações presentes no psiquismo humano. Desse modo, a sophrsyme, enquanto
virtude da alma humana, é uma condição prévia para que os fármacos produzam
efeitos somáticos benéficos para a saúde integral do corpo humano. No entanto, os
médicos hipocráticos não souberam incorporar, em sua atividade clínica, esse
legado de Platão.
Aristóteles utiliza o termo Catarse, tanto para se referir ao significado médico
de purificação, quanto à serenidade da alma humana provocada por um fenômeno
estético tal como a poesia, o drama, a tragédia, a música. (ABBAGNANO, 1999,
p.120).
Segundo Lain Entralgo, nesta operação sobre o ouvinte,
há três logoi distintos: um logos dialético ou convincente, outro retórico ou persuasivo e outro trágico, purgativo ou catártico. O estudo aristotélico do logos persuasivo se acha implicitamente referido à psicoterapia verbal; por contraste, o logos purgativo ou catártico tem na obra do filósofo uma essencial e expressa relação com a medicina. (LAÍN ENTRALGO, 1987, p. 272-273, tradução nossa).14
Transpondo essas reflexões para uma psicoterapia verbal, podemos dizer que
nela, o analisando pode se beneficiar, tanto daquilo que diz, quanto do que é dito por
seu analista. Lembrando que o contrário também pode acontecer, isto é, causar ao
analisando um malefício. É assim que entendemos o argumento de Platão, de que a
linguagem é um fármaco: remédio, veneno e cosmético. Em outros termos, numa
psicoterapia, um ato de fala - dependendo de seu sentido e intenção - pode curar,
matar ou não servir para, absolutamente, nada.
Da Grécia antiga a nossa modernidade tardia, surgiram vários modelos de
pensamento, tanto filosóficos quanto linguísticos, dedicados à reflexão sobre o
estudo do significado.
13 “Por tanto, no seria “tecnicamente” completo el saber de un médico, si este no é capaz de producir sophrsyme mediante su palabra en la alma de sus enfermos.” 14 há tres logoi distintos: un logos dialético o convincente, otro retórico o persuasivo y otro trágico, purgativo o catártico. El estúdio aristotélico del logos persuasivo se halla implícitamente referido a la psicoterapia verbal; por contraste, el logos purgativo o catártico tiene en la obra del filósofo una esencial y expresa relación con la medicina.
125
A partir da leitura de Charles Taylor, Medina (2007) escreve que há, na
filosofia da linguagem, duas diferentes tradições semânticas: a designativa e a
expressiva.
A tradição designativa, voltada para a denotação, para a relação palavra-
objeto, para as relações representacionais entre a língua e o mundo, enfim para a
função de comunicação referencial ou representativa.
Em seu desenvolvimento, a tradição designativa contou com a contribuição de
dois pensamentos filosóficos importantes:
a) o naturalismo, tal como o proposto por Condillac, que aborda a linguagem
como fenômeno natural, explicável empiricamente, através de um observador
e do método científico;
b) o nominalismo que sustenta, contra o quadro ontológico da realidade, que
a linguagem é o lar do universal, isto é, que o significado geral de um termo
não é independente da linguagem. Em conformidade com Medina (2007),
para os nominalistas, as generalidades são produtos do uso da linguagem.
O que caracteriza a tradição designativa é o extensionalismo, que “identifica o
significado de um termo com sua extensão, isto é, aquilo do qual o termo é
verdadeiro, com a região do mundo que corresponde a ele (seja ele um indivíduo ou
conjunto de indivíduos, uma propriedade ou um conjunto de propriedades).”
(MEDINA, 2007, p.51).
No entanto, a tradição designativa tem sido criticada por tratar a linguagem
como um instrumento, por estar focada na designação e por não levar em
consideração os aspectos constitutivos da linguagem.
Para os filósofos românticos do século XIX, a tradição expressiva nos
esclarece que a linguagem tem, não só um valor instrumental, mas também um valor
“constitutivo, uma vez que ela constitui quem somos nós, como pensamos e como
vivemos.” (MEDINA, 2007, p.51). Sua característica principal é o enfoque
“intensionalista, isto é, os significados não residem no que existe lá fora
independentemente da linguagem, mas sim, no que é criado ou constituído pela
linguagem.” (MEDINA, 2007, p.51).
126
Ora, embora nosso enfoque esteja voltado para a linguagem verbal,
consideramos um equívoco reduzir a linguagem, quer ao da tradição designativa,
quer ao da tradição expressiva.
4.2 - A questão da topologia do sujeito
Nossa topologia do sujeito é um modelo teórico para pensar a relação entre o
sujeito-eu, o inconsciente, a transferência e a linguagem.
Lynn Gamwell (2008), em seu texto O papel dos desenhos científicos na
pesquisa do século XIX e início do século XX, afirma que os desenhos eram
utilizados como registros, por cientistas do século XIX, para descrever as
observações feitas através do microscópio. Entretanto, não sendo possível essa
observação, eles faziam uso de diagramas para formular hipóteses. Esses
procedimentos científicos foram utilizados por Freud em seu percurso da neurologia
à psicanálise.
127
Figura 10: desenho de célula feito por Freud
Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p. 20.
[...] Uma década após ter desenhado suas primeiras células, Freud estava diagramando processos mentais, mas, dada a fisiologia de seu tempo, não dispunha de ferramentas para observar o presumido substrato físico. Puramente especulativo, ele usava seus diagramas para guiar sua pesquisa e antecipar um efeito passível de ser observado. [...] à medida que foi se concentrando em funções mentais cada vez mais complexas, como distúrbios da linguagem e memória, Freud colocou de lado as tentativas de diagramar a estrutura fisiológica subjacente, como as vias neurológicas, e pôs a fazer imagens esquemáticas de estruturas psicológicas hipotéticas. (GAMWELL; SOLMS, 2008, p.22).
128
Figura 11: Aparelho psíquico na segunda tópica
Fonte: GAMWELL; SOLMS, 2008, p. 142.
Todavia, a autora ressalta que a ciência daquela época, principalmente na
Inglaterra e na França, só considerava como científico, o método de observação
direta e rejeitava o método especulativo. Por outro lado, na Alemanha, cientistas
inspirados na tese kantiana de que o conhecimento do mundo natural não se faz
diretamente, mas por meio de construções mentais, fizeram uso em suas pesquisas
de modelos teóricos, como os diagramas de mundos/domínios não vistos.
(GAMWELL; SOLMS, 2008, p.142). Nesse sentido, o cientista alemão Herman von
Helmholtz defendia a idéia de que era necessário ao cientista fazer uso, em
conjunto, da especulação teórica e dos dados observados. Esse pensamento de
Helmholtz teve influência sobre Freud, tanto em suas pesquisas - como médico
neurologista -, quanto em sua metapsicologia - na construção de sua psicanálise -,
como médico psicanalista.
A topologia não é um conceito estranho nem à psicologia, nem à psicanálise.
No campo das ciências psicológicas, os precursores no uso do conceito de topologia
foram Kurt Lewin e Lacan. Kurt Lewin (1973) nos esclarece, em seu livro Princípios
de Psicologia Topológica (1936), que o termo topologia é uma referência à busca de
fundamentação teórica da psicologia em conceitos da topologia matemática e
complementada pela psicologia vetorial. No seu intuito de tornar a psicanálise uma
ciência, Lacan, em seu percurso teórico-clínico, sempre fez uso de conceitos
topológicos tais como: a banda de Moebius, o toro, o cross-cap, a garrafa de Klein, o
nó borromeano. Em nossa contemporaneidade, MD Magno tem se utilizado do
129
conceito topológico da banda de Moebius ou contra-banda para explicação de seu
conceito de revirão.
Reconhecemos o mérito dos respectivos autores e suas contribuições para o
campo tanto da Psicologia, quanto da Psicanálise. No entanto, só iremos recorrer a
eles caso possam trazer algum esclarecimento para nossas questões.
Ao tomar também de empréstimo à matemática seus conceitos topológicos,
não temos a pretensão de “matematizar” nossa noção de sujeito, mas de tomá-lo
como metáfora, isto é, como um instrumento de raciocínio lógico. Nosso objetivo é
tentar, portanto, em conjunto com a Topologia e os diversos conceitos de sujeito eu -
oriundos da Filosofia, da Linguística, da Análise do Discurso, da Neurociência e da
Psicanálise - produzir um outro modo de pensar o sujeito na enunciação.
4.2.1 - O conceito de topologia
Abbagnano, em seu Dicionário de Filosofia, define Topologia como o "estudo
das propriedades das figuras geométricas que não variam mesmo quando as figuras
são submetidas a transformações tão radicais que perdem suas propriedades
métricas e projetivas." (ABBAGNANO,1999, p.963).
Para Granon-Lafont (1990), a topologia geral é a ciência dos espaços e de
suas propriedades. De acordo com a autora, foi Leibnitz que, definiu em 1679, esse
novo ramo da matemática, como o estudo do lugar. Porém, sua consolidação
tornou-se viável com o primeiro Teorema de Euler em 1750. “Na perspectiva desses
trabalhos, em 1861, Moebius descobre a figura que passará à posteridade sob seu
nome: a banda de Moebius.” (GRANON-LAFONT, 1990, p.7). A autora afirma que,
no campo das denominadas Ciências Humanas, Lacan foi o precursor na utilização
da topologia de Moebius.
De acordo com Vallejo (1979), o termo Tópica vem de topos - lugar -, mas
não se trata de um lugar no sentido físico; não pertence à espacialidade coisa e,
portanto, não está colocado dentro das coordenadas da geometria euclidiana. No
entanto, destaca o autor, o termo tópica pode ser entendido como:
130
a) re-presentação fundada na similitude e biunivocidade concreta, isto é,
numa duplicação homeostática do espaço, tal como uma mancha dobrada
sobre um eixo imaginário;
b) projeção que possibilita a formação dos objetos variando apenas a
quantidade fática do espaço a cobrir;
c) transformação que possibilita-nos pensar um quadrado como representante
de um círculo, isto é, “um círculo que é exatamente o mesmo quadrado com
as mesmas propriedades, mas em outra conformação. Esta Tópica que
executa um objeto passando-o pelas transformações que esse objeto
possibilita é a Tópica psicanalítica." (VALLEJO, 1979, p. 23-24).
Em outros termos,
A tópica psicanalítica é uma construção de um lugar pertinente ao objeto em questão e de acordo às transformações que esse objeto possibilita. Não tem importância nesta Tópica nem onde nem como, porque o que verdadeiramente importa é a transformação, a transformação executante. Poderíamos falar de um efeito de metáfora. (VALLEJO, 1979, p.25).
A topologia, principalmente aquela proposta por Moebius, serviu no campo da
psicanálise, a Lacan e a MD Magno para explicarem, respectivamente, o sujeito e o
modo de funcionamento do psiquismo humano. Em conformidade com Granon-
Lafont, na topologia de Moebius,15 o que é interno está em continuidade com o que é
externo. Não há mais dentro ou fora, mas dentro e fora estão em continuidade. No
entanto, podemos localizar, nesse percurso da fita de Moebius, um ponto limite, um
ponto de passagem de um dentro para um fora ou vice-versa, que não é nem dentro,
nem fora: é vazio. (GRANON-LAFONT, 1990, p.26-35).
Em sua entrevista a Bruno Latour, Serres (1999) diz que considera a
topologia como a ciência das proximidades e dos rasgos, portanto, diferente da
geometria métrica, ciência bem definida e estável. Desse modo, ele afirma que você
pode pegar um lenço e nele definir distâncias e proximidades fixas.
15 De acordo com Granon-Lafont (1990), para construir, materialmente, uma banda de Moebius, basta pegar uma tira retangular de papel, aplicar-lhe uma meia torção e uni-la, o que faz com que ela tenha uma só margem. Assim, ao percorrer a banda de Moebius, partindo do seu lado direito, após darmos uma volta, iremos chegar a seu lado esquerdo. Moebius a definiu como superfície unilátera. O direito e o esquerdo se diferenciam somente através de um acontecimento temporal. “O tempo, como um contínuo, é que faz a diferença entre as duas superfícies. Se não há mais duas medidas para a superfície, mas somente uma margem, o tempo se impõe para dar conta da banda.”
131
Em torno de um pequeno círculo que você desenha próximo a um lugar, você pode marcar pontos próximos e medir, pelo contrário, distâncias longínquas. Tome em seguida o mesmo lenço e amasse-o, pondo em seu bolso: dois pontos bem distantes se vêem repentinamente lado a lado, até mesmo superpostos; e se além disso, você o rasgar em certos lugares, dois pontos próximos podem se afastar bastante. (SERRES, 1999, p.82).
Portanto, enquanto um modelo matemático, a topologia possibilita pensar, em
relação ao tempo e ao espaço, o que está próximo, como estando distante. Trata-se
de uma dobradura.
4.2.2 – Bruno Latour – da referência fixa à referên cia instável
Para Bruno Latour (2001), a Filosofia da Linguagem tende a reduzir a lacuna
existente entre as esferas díspares das palavras e do mundo à busca de
correspondência e referência. Em sua perspectiva, as noções fixas de coisas e
palavras são obsoletas, pois
O conhecimento, é de crer, não reside no confronto direto da mente com o objeto, assim como a referência não designa uma coisa por meio de uma sentença verificada por essa coisa. Ao contrário, a cada etapa reconhecemos um operador comum, que pertence à matéria num dos extremos e à forma no outro, entre uma etapa e a seguinte, há um hiato que nenhuma semelhança pode preencher. (LATOUR, 2001, p.86).
Em conformidade com o autor, o equívoco da tradição filosófica, mais
precisamente de Kant, foi adotar o modelo bipolar - no qual as coisas em si estão
num extremo; o entendimento humano, noutro e o fenômeno como ponto de
encontro entre ambos.
O mérito de Latour está em defender um outro modelo, no qual “os
fenômenos são aquilo que circula ao longo da cadeia reversível de transformação,
perdendo a cada etapa algumas propriedades a fim de ganhar outras que as tornem
compatíveis com os centros de cálculo já instalados.” (LATOUR, 2001, p.86). Nesse
modelo, a referência é instável e avança do centro para as extremidades de modo
contínuo.
132
Para Latour, “Jamais conseguirei verificar a semelhança entre minha mente e
o mundo, mas posso, se pagar o preço, estender a cadeia de transformação sempre
que a referência verificada circular ao longo de substituições constantes.” Diante
disso, ele pergunta se “essa filosofia “deambulatória não será mais realista e
certamente mais realística que o antigo acordo?” (LATOUR, 2001, p. 86).
Dentro dessa perspectiva, a Ciência não é uma pintura realista que nos
proporciona uma cópia exata do mundo, mas vincula-nos a um mundo transformado,
construído. Não se tem aqui adequação, e sim sequência de mediadores, cadeias
de transformações.
Para darmos prosseguimento às nossas reflexões, as categorias de topologia,
acima descritas, em especial a de Moebius, serão utilizadas por nós para pensarmos
a categoria de sujeito em seu vínculo com a transferência de sentido na enunciação.
4.3 – Semântica do discurso e topologia do sujeito
Ora, a noção de sujeito, no quadro de uma semântica do discurso, é algo da
ordem da complexidade e de uma multiplicidade de perspectivas, na maioria das
vezes, incongruentes. Não é nosso interesse, neste momento, discutir tal questão,
mas nos aproximarmos das teorias, que estão na rota de convergência com o tema
de nossa pesquisa. Aqui, vamos restringir nossa reflexão sobre o lugar do sujeito na
linguagem tomando como ponto de partida, no campo da Análise do Discurso, as
considerações de: Charaudeau, Adan e Mari.
Para Charaudeau, o sujeito do discurso é polifônico, dividido em vários tipos
de saberes, conscientes, não conscientes e inconscientes. O sujeito se desdobra em
desempenhar dois papéis alternadamente: por um lado, o de sujeito que produz um
ato de discurso e imagina a reação de seu interlocutor; por outro, o de sujeito
receptor e interpretante deste ato de linguagem. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU,
2004, p.458). No entanto, a teoria de Charaudeau tem um alcance mais amplo. Em
133
conformidade com Adan, não se deve pensar em sujeito falante, para nos referirmos
a todo indivíduo que produz linguagem. Pois nela não estão presentes diferenças
importantes sobre o sujeito que produz, que recebe e que interpreta a linguagem.
Figura 12: Sujeito falante Fonte: CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.459.
Para melhor esclarecimento, temos:
Dizemos então que o sujeito falante tem uma competência lingüística, ou seja, que ele possui a capacidade de utilizar os sistems de uma determinada língua para construir ou reconhecer corretamente as formas (morfologia), respeitando as regras de combinação (sintaxe) e levando em consideração o sentido das palavras (semântica). (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p.459.).
Em seu texto Os lugares do sentido, Mari (1991) aponta para o fato de que a
análise da significação numa língua natural está cercada de controvérsias. A partir
dessa constatação, o autor coloca a seguinte questão: “De onde vem o sentido?”
(MARI, 1991, p.4). Para ele, são três os lugares privilegiados da produção de
sentido: o sistema, o sujeito e a história. Aqui, daremos ênfase à análise feita sobre
a concepção de sujeito, tendo em vista que ela está entrelaçada, tanto ao sistema,
quanto à história. Para Mari,
Aqui o sujeito se delineia, então, como prerrogativa de linguagem, o que garante, em decorrência, a sua presença em qualquer forma discursiva. (...)
134
a hipótese do sujeito como lugar de produção de sentido faz, portanto, ressaltar dois pontos importantes: (a) o sujeito como tensão entre usuários e o sistema e (b) o sujeito como prerrogativa de linguagem. (MARI, 1991, p.20-21).
Podemos destacar, nas hipóteses defendidas por Mari, dois pontos
importantes: primeiro, não há discurso sem sujeito; segundo, o sujeito como lugar de
produção de sentido. No entanto, o autor vai sustentar que são três as idéias de
sujeito como prerrogativas da linguagem:
- Primeira ideia: o sujeito tem a linguagem como condição.
Em sua interpretação do pensamento de Benveniste, Mari salienta que a
constituição do sujeito se dá em decorrência do conflito entre a cadeia significante e
os significados: “mas o que institui o sujeito é sua inscrição na cadeia significante”.
(MARI, 1991, p.22).
Os psicanalistas, de modo geral, dizem que a linguagem dos linguistas nada
tem a ver com a linguagem em Psicanálise. O próprio Lacan, para se diferenciar
daquilo que faziam os linguistas, criava neologismos, tais como: a-lingua,
linguisteria. Para Lacan, o significante é aquilo que representa um sujeito para outro
significante e o sujeito é aquilo que um significante representa para outro
significante.
Ora, qual seria a diferença entre a categoria de sujeito proposta por
Benveniste e Lacan? Talvez, o fato de Lacan ter dado ênfase ao significante e
abolido o significado. Por sua vez, Mari sublinha que a criatividade linguística está
vinculada às novas cadeias significantes. Contudo, o significado não se torna alheio
à proliferação das cadeias significantes. Assim, por um lado, temos que a avaliação
analítica, ao visar aos processos de produção do sentido, dá maior ênfase ao
predomínio do significante sobre o significado. Por outro, os interesses pragmáticos,
visando aos efeitos de sentido, priorizarão o significado.
Penso que, numa psicoterapia verbal, é necessário se levar em consideração,
tanto a produção de sentido, quanto os efeitos de sentido. Em minha concepção, a
significação do discurso do sujeito pode aflorar, quer por meio do predomínio do
significante, quer do significado. Em síntese, no plano discursivo, a linguagem é
condição de existência do sujeito.
Segunda idéia: o sujeito se constitui como uma condição para linguagem.
135
Em conformidade com Mari, o sujeito, ao se confrontar ou reproduzir o
sistema, torna-se um participante ativo na construção do sentido; o qual é
considerado pelo autor como um intermediário entre o sujeito e o objeto. Em outros
termos “o sentido passa aqui a construir a realidade que, ainda que não se preste a
uma verificação fatual, pode ser analógica e alguma admissível.” (MARI, 1991, p.25).
Ora, numa psicoterapia verbal, por meio do discurso, o analisando passa da
posição passiva para a ativa. É o sujeito que constrói o sentido de seu sofrimento,
de sua angústia, de seu sintoma, via transferência com seu psicoterapeuta ou seu
psicanalista.
Terceira idéia: a condição na linguagem para a constituição do sujeito.
Trata-se da emergência do sujeito sob condições históricas. Nesse sentido, “o
sujeito flutua assim entre componentes aléticos (o poder dizer) e compromissos
deônticos (dever dizer) e é nessa flutuação e pela própria opacidade dos limites
desses compromissos que se estabelece a tensão que mais uma vez marca o
sujeito.” (MARI, 1991, p.25).
Tendo em consideração a questão da linguagem no campo psicanalítico,
pode-se dizer que as reflexões de Mari sobre a relação do sujeito com a linguagem
estão muito mais próximas de um possível diálogo com a teoria de Lacan sobre a
linguagem - isto é, as teses de Lacan de que “o inconsciente é estruturado como
uma linguagem”; “o inconsciente é o discurso do Outro” - do que com o
pensamento freudiano. Desde o texto das Afasias (1891) até suas duas tópicas, a
ênfase dada por Freud diz respeito à ligação da representação de palavra, quer com
a representação de objeto, produzindo uma significação, quer com a representação
de coisa inconsciente, tornando-a pré-consciente.
Ora, numa psicoterapia verbal, inspirada na psicanálise, temos no discurso do
sujeito, tanto processos psíquicos conscientes, quanto inconscientes, como também
processos sociais, ideológicos entrelaçados pelo desejo pulsional. Nesse sentido,
cabe-nos perguntar: o que seria uma semântica do inconsciente?
4.4 – Semântica do inconsciente: a problemática sob re inconsciente, linguagem e a topologia do sujeito
136
Na obra freudiana há duas tópicas do aparelho psíquico, nas quais
encontramos uma topologia do sujeito. Na verdade, a denominada segunda tópica é
uma reformulação conceitual, isto é, teórico-clinica, da primeira tópica. Nesse
sentido, por termos já trabalhado questões atinentes à primeira tópica do aparelho
psíquico, nossa reflexão estará voltada para o texto O Eu e o Id, escrito por Freud e
publicado em 1923.
O autor inicia seu texto delimitando no psíquico a diferença entre duas
categorias: consciente e inconsciente. Estar consciente tem, como característica, ser
breve e refere-se a uma percepção imediata. No entanto, sua experiência clínica
com as neuroses de transferência, com as interpretações de sonhos e também com
a hipnose, levaram-no a apontar para a existência de processos psíquicos
inconscientes que afetam, de modo significativo, a vida psíquica, sem que haja
nenhuma interferência da consciência. Embora estas ideias inconscientes tenham
uma considerável intensidade, elas encontram resistências que não permitem que
se tornem conscientes.
Entretanto, se tais idéias pudessem se tornar conscientes, seria possível constatar quão pouco elas diferem de outros elementos reconhecidamente psíquicos. Ocorre que, pela técnica psicanalítica, é possível, sim, suspender a ação das forças opositoras e trazer à tona essas idéias, torna-las conscientes. (FREUD, 2007, p.29).
Nessa dimensão, o que mantém essas ideias no estado inconsciente é o
recalque . Portanto, ele funciona como um protótipo para o entendimento do
conceito de inconsciente. Dentre as instâncias psíquicas: o Id, o Eu e o Supra-eu, o
responsável pelo processo de recalque é o Eu. No entanto, aponta Freud, na
análise, o Eu terá que se confrontar com o que foi recalcado. Assim, toda vez que,
numa análise, a cadeia associativa feita pelo analisando se aproximar do recalcado,
ele pára sua associação, isto é, ele se depara com uma resistência. Desse modo,
por um lado, o Eu é a instância que recalca uma ideia e, por outro, que coloca
resistência a essa mesma ideia. A partir de então, Freud nos diz que a neurose não
é somente um conflito entre o consciente e o inconsciente, mas sim, um conflito
entre o Eu coeso e um recalcado que dele se cindiu. Temos aqui uma diferenciação
importante:
- o Eu, na primeira tópica, pertence ao sistema pré-consciente/consciente:
137
Figura 13. Esquema do aparelho psíquico no texto sobre a interpretação dos sonhos. Fonte: FREUD, 1969.
- na segunda tópica, o Eu é tanto consciente, quanto inconsciente:
Figura 14. Desenho do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no texto O Eu e o Id.
Fonte: FREUD, 1969.
138
Figura 15. Diagrama do aparelho psíquico na segunda tópica, presente no texto da conferência XXXI.
Fonte: FREUD, 1969.
Para Freud, todas as percepções são conscientes, sejam elas externas -
como as percepções sensoriais, ou internas como os sentimentos.
Mas, e quanto aos processos de pensar? Ora, os processos psíquicos
inconscientes ou processos de pensar, tendo como conteúdo as representações de
coisa, só tornam-se conscientes quando vinculados às representações de palavra do
pré-consciente. O que nos remete ao esquema psicológico da palavra, presente no
texto A interpretação das afasias: um estudo crítico, escrito por Freud em 1891,
época em que exercia a função de médico neurologista.
Figura 16: Esquema Psicológico da representação-de-palavra, refere-se ao texto A interpretação das Afasias, 1891, está presente no apêndice C do texto O Inconsciente, 1915.
Fonte: FREUD, 1969. Cabe perguntar, no entanto, o que são representações de palavra? São
traços mnêmicos de percepções acústicas. Com exceção dos sentimentos, todo
139
conteúdo interno do aparelho psíquico, para se tornar consciente depende destes
traços mnêmicos de percepções acústicas, isto é, das imagens sonoras das
palavras. O que leva Freud a afirmar que “a palavra é essencialmente o resto-de-
recordação da palavra ouvida.” (FREUD, 2007, p.36).
Aqui, cabe fazer uma distinção que consideramos importante para o
entendimento de nossa pesquisa sobre a linguagem e seus efeitos na subjetividade.
Baseando-nos no esquema psicológico da representação de palavra, podemos
afirmar; por um lado, que os processos internos do pensar tornam-se pré-
conscientes, isto é, sua significação se dá através do vínculo entre a representação
visual dos objetos e as imagens sonoras das palavras; por outro, que o ato de fala
depende do entrelaçamento da imagem sonora da palavra, com a imagem motora.
Esta seria, então, a diferença entre a função da linguagem no pensar e no falar. O
mesmo raciocínio valeria tanto para o escrever, no qual a imagem sonora aciona a
imagem da escrita; quanto para o ler, onde temos a imagem sonora ativando a
imagem da leitura.
Nossa tese é que o pensar inconsciente é um processo psíquico primário, no
qual temos, como categorizações, as representações de coisas. O pensar pré-
consciente é um processo psíquico secundário, no qual temos, como
categorizações, as representações de palavra.
Outro ponto importante a ser destacado é que os mecanismos de
condensação e deslocamento fazem parte do processo psíquico primário
inconsciente .16 Nosso intuito a seguir é buscar uma aproximação entre os pares de
conceitos condensação e deslocamento, tal como proposto por Freud – e os
conceitos de metáfora e metonímia, advindos de um outro campo - o linguístico -,
mais precisamente de uma abordagem inovadora, proposta por Lakoff e Johnson
(2002).
Em Metáforas da vida cotidiana (2002), esses autores, seguindo a trilha
iniciada por Reddy, sustentam que nossas metáforas não são simples abstrações da
linguagem, mas estão ligadas, tanto as nossas percepções do mundo, quanto as
nossas vivências corporais. Assim, eles assumem que “as teorias do sentido
dominantes até então na filosofia e na linguística ocidentais eram inadequadas e que 16 Cabe lembrar que Lacan fez uma aproximação entre condensação e deslocamento, respectivamente, com metáfora e metonímia. No entanto, não é nosso objetivo, nesse momento, refletir sobre tal perspectiva.
140
o termo “sentido” nessa tradição tem muito pouco a ver com o que as pessoas
consideram significativo em suas vidas.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 43). Em
outros termos, o nosso sistema conceptual ordinário é metafórico e normalmente
não consciente:
Um dos meios de descobri-las é considerar a linguagem. Já que a comunicação é baseada no mesmo sistema conceptual que usamos para pensar e agir, a linguagem é uma fonte de evidência importante de como é esse sistema. (LAKOFF; JOHNSON, 2002, p.46)
Desse modo, a metáfora faz parte da vida cotidiana, não se restringindo ao
uso que dela se faz na poesia, mas ela está presente, também, em nossos
pensamentos e nas nossas ações.
Destacamos, a seguir, alguns exemplos fornecidos por Lakoff e Johnson
(2002, p. 46-51).
Discussão é guerra:
a) Seus argumentos são indefensáveis;
b) Ele atacou todos os pontos fracos da minha argumentação;
Tempo é dinheiro:
a) Você está desperdiçando meu tempo;
b) Tenho investido muito tempo nela.
Ora, numa situação psicoterápica, os analisandos fazem uso constante de
metáforas. Trata-se, aqui, segundo nosso entendimento, das proposições teóricas
feitas por Lakoff e Johnson, de metáforas orientacionais, relacionadas com a
orientação espacial de nosso corpo: “para cima – para baixo, dentro – fora, frente –
trás, em cima de – fora de (on-off), fundo – raso, central – periférico.” (LAKOFF;
JOHNSON, 2002, p.59). Em conformidade com os autores, “mesmo que nossa
experiência emocional seja tão fundamental quanto nossa experiência espacial e
perceptiva, nossas experiências emocionais são muito menos claramente descritas
em termos do que fazemos com nossos corpos.” (LAKOFF; JOHNSON, 2002,
141
p.129). Para exemplificar, podemos destacar alguns enunciados, colhidos ad hoc, de
nossa prática clínica:
a) “Hoje estou muito deprimido, meio pra baixo;”
b) “Estou mais contente com meu trabalho e isso me deixa mais pra cima;”
c) “Agora, tenho a impressão que cheguei ao fundo do poço;”
d) “Parece que tirei um peso da minha cabeça;”
e) “Sinto que dentro de mim, algo mudou;”
f) “Falei para ele tudo o que estava entalado na minha garganta, acho que
coloquei tudo para fora;”
g) “Antes eu me considerava o centro do mundo;”
h) “Sempre fiquei para trás, depois de muito sofrer, aprendi, à força, me
colocar sempre à frente, a disputar meu lugar ao sol;”
i) “Ela é muito bonita, mas sem conteúdo, muito rasa, intelectualmente;”
j) “Quando ele terminou comigo, fiquei rastejando, agora estou de pé
novamente e pronta para um amor diferente;”
k) “No início de nosso casamento nós éramos muito unidos, agora estamos
cada vez mais distantes”.
Podemos observar, nesses enunciados, o uso de metáforas orientacionais
corporificadas sendo usadas para descrever estados emocionais.
Na teoria de Lakoff e Johnson a metonímia tem, por um lado, uma função
referencial, o que torna possível usarmos uma entidade para representar outra; por
outro lado, ela resguarda a função de propiciar o entendimento. Vale destacar
alguns exemplos, apresentados pelos autores:
a) “Ele gosta de ler o Marquês de Sade. (= o que o Marquês escreveu);”
b) “Ele está na dança/Ele dança. (= na profissão da dança);”
c) “O acrílico invadiu o mundo da arte. (= o uso de tinta acrílica);”
d)“O Times ainda não chegou à coletiva. (= o repórter da Times).”
Exemplos clínicos:
a) “Descobri que ele é um cara de pau.” (= mentiroso);
142
b) “Acho que ela não está batendo bem da bola.” (= do juízo);
c) “Quando me apaixonei, não sabia que ele era um D. Juan.” (= um
conquistador, um sedutor).
No entanto, podemos ampliar um pouco mais nossa reflexão sobre a
importância da metáfora, em companhia do pensamento de Ricoeur. Em seu livro A
metáfora viva, de modo específico, no capítulo sobre A metáfora e a semântica do
discurso, o autor nos chama a atenção para os seguintes pontos:
a) a definição de metáfora, como transposição do nome, não é falsa, mas,
como coloca Leibniz, somente nominal e não real. O que vai diferenciá-las é
que “a definição nominal permite identificar uma coisa; a definição real mostra
como ela se dá.” Assim, “a retórica não considera somente a palavra, mas o
discurso. Uma teoria do enunciado metafórico será uma teoria da produção
do sentido metafórico”. (RICOEUR, 2005, p.107-108);
b) em conformidade com Benveniste, “a ordem do signo deixa fora de si a
ordem do discurso.” (RICOEUR, 2005, p.113);
c) baseado também em Benveniste, “todo discurso se produz como um
acontecimento, mas se deixa compreender como sentido”;
d) em sua teoria sobre a significação, Grice aponta para a distinção entre a
significação do enunciado , da enunciação e de quem enuncia . E mais:
que tal diferenciação vai ao encontro das diferenças sublinhadas, por
Benveniste, entre a instância de discurso ou o significado como contrapartida
do significante, tal como proposto por Saussure e a intenção de discurso, isto
é, o que o locutor quer dizer. “O significado é de ordem semiótica, a intenção,
de ordem semântica: é esta que Paul Grice visa em sua análise.” (RICOEUR,
2005, p.115).
Com esses argumentos, esperamos ter apontado a pertinência de nossa tese,
de que as metáforas, presentes na linguagem, dependem das categorizações das
representações de coisa inconscientes. Em outros termos, as metáforas estão
vinculadas a um processo de reentrada entre representações de coisa e
representação de palavra.
143
Em resumo, as metáforas usadas pelos analisandos, na situação
psicoterápica ou analítica, são um modo de expressão de seus sentimentos, de suas
emoções, de seus desejos, de seus processos psíquicos, tanto conscientes, quanto
inconscientes. Sendo assim, podemos afirmar que as metáforas têm um efeito de
sentido sobre o sujeito do discurso. Como reconhece Ricoeur, via o pensamento de
I.A. Richards, o exemplo da psicanálise, nos possibilita perceber “o horizonte do
problema retórico: se a metáfora consiste em falar de uma coisa nos termos de
outra, não consistirá também em perceber, pensar ou sentir, a propósito de uma
coisa, nos termos de outra?” Tal consideração aproxima a metáfora do conceito de
transferência.
Portanto, em relação às metáforas, é preciso considerar tanto seus
significados, quanto seus sentidos e intenções e que dizem respeito, segundo nossa
proposta, à topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação.
Em sua abordagem filosófica da Psicanálise de Freud, mais especificamente,
em sua proposta de uma Arqueologia do Sujeito, Ricoeur nos esclarece que
Podemos agora compreender, sob o título de Arqueologia do Sujeito, essa problemática da “presentação afetiva”, enquanto distinta da “presentação representativa”; a psicanálise é o conhecimento limítrofe do que, na representação, não era representação. O que se presenta no afeto e não entra na representação é o desejo como desejo. A irredutibilidade do ponto de vista econômico a uma simples tópica das representações atesta que o inconsciente não é fundamentalmente linguagem, mas somente impulso para a linguagem. O “quantitativo” é o mudo, o não-falado e o não-falante, o inominável na raiz do dizer. Mas, para dizer esse não-dizer, a psicologia já não tem senão a metáfora energética: carga, descarga; a metáfora capitalista: aplicação, investimento; e toda a série de suas variantes. O que, no inconsciente, é suscetível de falar, o que é representável, remete a um fundo não simbolizável: o desejo como desejo. Está aqui o limite que o inconsciente impõe a toda transcrição lingüística que se queira exata. (RICOEUR, 1977, p.367).
Assim, podemos pensar na possibilidade de uma sintaxe, como também, de
uma semântica do inconsciente, desde que vinculadas ao desejo pulsional, à
dimensão econômica. Pois, em conformidade com Freud, a metapsicologia visa
descrever um processo psíquico em suas dimensões tópica, econômica e dinâmica.
O que nos leva a não concordarmos com a tese de Lacan de que o inconsciente é
estruturado como linguagem, pois, essa formulação não abarca a dimensão
pulsional .
144
Outro aspecto importante, tal como podemos observar, tendo em vista o
funcionamento do aparelho psíquico descrito no capítulo. VII de A interpretação de
sonhos, é que há, tanto um sentido progressivo em direção à palavra, quanto um
sentido regressivo em direção à imagem. Sem essa ideia da dinâmica psíquica não
haveria como explicar o sonho, seu relato e sua interpretação. Portanto, seria mais
pertinente e coerente, tendo como perspectiva, o inconsciente como representação
de coisa e o pré-consciente como representação de palavra, na primeira tópica
freudiana, dizer, por nossa própria conta e risco - que o pré-consciente é
estruturado como linguagem . Em outros termos, o que estamos postulando é que
a concepção de inconsciente de Freud e de Lacan são diferentes e não
complementares . Essa não diferenciação tem prejudicado o diálogo entre Análise
do Discurso e Psicanálise.
Ora, no entanto, se a hipótese freudiana de que o tornar algo consciente
depende da ligação entre a representação de coisa, inconsciente e a representação
de palavra, pré-consciente, isto é, possibilita-nos compreender a passagem do
processo primário ao processo secundário no aparelho psíquico, embora necessária,
ela nada nos explica a respeito da interação discursiva entre analisando e analista.
Não estaríamos aqui diante de um processo terciário ?
Em seu texto Discurso das Mídias, Charaudeau salienta que “o discurso não é
a língua, embora seja com ela que se fabrique discurso e que este, num efeito de
retorno, a modifique.” (CHARAUDEAU, 2006, p.40).
Outro ponto fundamental a ser sublinhado é o fato de o sentido de um
discurso não estar colocado previamente, mas de ser construído, por um sujeito,
através de um duplo processo de semiotização; conforme aponta Charaudeau:
- intrasubjetivo: processo de transformação, no qual o sujeito visa transformar o
mundo a significar em mundo significado, isto é, mundo a descrever e comentar;
- extradiscursivo: processo de transação, no qual o sujeito dá ao ato de linguagem
uma significação psicossocial. Aqui, está em jogo, a identidade do interlocutor, o tipo
de relação a ser estabelecido e, baseado nesta identidade e nesta relação, o tipo de
regulação. Trata-se de um mundo descrito e comentado.
O ato de informar participa desse processo de transação, fazendo circular entre os parceiros um objeto de saber que, em princípio, um possui e o outro não, estando um deles encarregado de transmitir e o outro de receber, compreender, interpretar, sofrendo ao mesmo tempo uma modificação com relação a seu estado inicial de conhecimento. (CHARAUDEAU, 2006, p.41).
145
A tese forte de Charaudeau é a seguinte: o processo de transformação é
regido pelo processo de transação. Para o autor, a fala humana não visa somente a
descrever e comentar o mundo, mas, uma relação com a alteridade, pois, só há
linguagem na intersubjetividade. Quanto à produção do saber é colocado que ele
não tem natureza, mas depende do modo de orientar o olhar do homem: “voltado
para o mundo, o olhar tende a descrever esse mundo em categorias de
conhecimento; mas, voltado para si mesmo, o olhar tende a construir categoria de
crença.” (CHARAUDEAU, 2006, p.43). Nos saberes de crença, o mundo, para
existir, depende do sujeito, mais precisamente, de seu olhar subjetivo.
Tomando de empréstimo a Charaudeau suas categorias de processo de
transformação e processo de transação, farei uma aproximação com o que ocorre
num outro contexto: o da semântica do desejo.
4.5 – Semântica do desejo
Para o entendimento de uma semântica do desejo, destacamos, ainda, a
contribuição das reflexões de Paul Ricoeur, Em seu texto A metáfora viva (2000,
p.109), Ricoeur sublinha que a semântica do discurso é irredutível à semiótica das
entidades lexicais. Ele nos esclarece que o fato de a teoria do discurso dos anglo-
saxões ser feita, não por linguistas, mas por lógicos e epistemólogos, abre a
possibilidade de uma abordagem direta do discurso. No entanto, destaca que,
devido ao avanço da linguística da língua não se permite mais tratar por preterição a
relação do discurso com a língua. A via indireta da oposição entre unidade de
discurso e unidade da língua impõe-se hoje para quem se preocupa em situar sua
investigação no espaço contemporâneo.
Segundo Ricoeur, o conceito de inconsciente da Psicanálise Freudiana coloca
ao conjunto do projeto filosófico, por um lado, um problema novo, o da mentira da
consciência, da consciência como mentira, e por outro, em questão a origem mesma
de toda significação. Ou seja, aponta para a crise da noção de consciência, a partir
das seguintes proposições:
146
a) a certeza da consciência não é um saber verdadeiro de si;
b) a reflexão sobre o irrefletido não é um saber verdadeiro do inconsciente.
Assim, a certeza imediata da consciência proposta por Descartes é
inexpugnável, mas duvidosa enquanto verdade, pois a vida intencional pode ter
outros sentidos além do sentido imediato. Nessa dimensão, temos que
a consciência descobre que a certeza imediata de si mesma não passava de presunção. Assim, talvez ela possa aceder ao pensamento que não é mais atenção da consciência à consciência, mas atenção ao dizer, melhor ainda, àquilo que é dito no dizer. (RICOEUR, 1978, p.90)
Em seguida, o autor afirma que, depois de Freud, a consciência não é origem,
mas tarefa. Isso implica uma reflexão sobre o sujeito, o que leva Ricoeur, a colocar a
seguinte questão:
pode um sujeito ter uma arqueologia sem possuir uma teleologia? (...) só tem uma arqué um sujeito que possui um télos. Porque a apropriação de um sentido constituído atrás de mim supõe o movimento de um sujeito lançado para adiante de si mesmo por uma seqüência de “figuras” (à maneira de A fenomenologia do Espírito de Hegel), cada uma encontrando seu sentido nas seguintes. (RICOEUR, 1978, p.138).
Ora, a reflexão feita por Ricoeur nos indica que o conceito de inconsciente, tal
como definido por Freud, promove a desapropriação do sujeito, como sujeito da
consciência.
De acordo com o autor, para Freud, não é a pulsão que é cognoscível, mas a
representação que a representa no inconsciente. Portanto, o realismo empírico da
Psicanálise Freudiana não se interessa por um inconsciente incognoscível, e sim
cognoscível. “Seu inconsciente, diferentemente do dos românticos, é
essencialmente cognoscível, porque os “representantes representativos” da pulsão
ainda são da ordem do significado e homogêneo, de direito, ao império da fala
(parole).” (RICOEUR, 1978, p.91).
Trata-se do desejo, não no sentido de um contexto preciso, tal como libido,
pulsão, mas de um desejo em conflito com o mundo da cultura, as interdições, as
obras de arte, os objetivos sociais e os ídolos. (RICOEUR, 1978, p.140). Entretanto,
esse desejo se satisfaz de um modo despistado e substituído, isto é, a manobra
147
realizada pelo psiquismo tem como efeito uma distorção de sentido. Assim, uma
análise começa com um não-sentido a ser interpretado.
Jamais o analista maneja diretamente forças, mas sempre indiretamente, no jogo do sentido, do duplo sentido, do sentido substituído, deslocado, transposto. Economia do desejo, sim. Mas através da semântica do desejo. Energética, sim. Mas através de uma hermenêutica. É no e pelos efeitos de sentido que o psiquismo trabalha. (RICOEUR, 1978, p.159).
No entanto, cabe ressaltar que, conforme pensamos, a constituição deste
aparelho psíquico no sujeito não é fruto de um desenvolvimento espontâneo, mas da
interação interlocutiva com o aparelho psíquico de um outro sujeito . Temos,
aqui, a passagem do ser vivo humano a um sujeito psíquico, do desejo pulsional a
uma semântica do desejo pulsional. Desse modo, em sua interpretação filosófica de
Freud, Ricoeur afirma que o discurso da psicanálise articula o sentido do sintoma, do
sonho, da cultura com a força, isto é, o investimento, o conflito, o recalque, numa
semântica do desejo.
Cabe dizer que, em sua arqueologia do sujeito, Ricoeur deixa bem claro, que
seu projeto é filosófico e não engaja o psicanalista. A ideia guia de Ricoeur é “o lugar
filosófico do discurso analítico é definido pelo conceito de arqueologia do sujeito”
(RICOEUR, 1977, p.343) e alerta que não é sua intenção impor tal conceito à leitura
de Freud, pois, não se trata de um conceito freudiano, mas de um conceito formado
para compreender a si mesmo, lendo Freud. Assim, é por meio da reflexão, que
psicanálise é uma arqueologia do sujeito, isto é, um discurso sobre o sujeito através
do qual se descobre que o sujeito não é aquele que se crê. “O que nos estimula é a
ausência mesma, no freudismo, de qualquer interrogação radical sobre o sujeito do
pensamento e da existência. É claro que Freud ignora e recusa toda problemática do
sujeito ordinário.” (RICOEUR, 1977, p.344).
A teoria freudiana, afirma Ricoeur, é uma crítica à consciência imediata. O
autor divide essa crítica em três etapas: deslocamento da origem do sentido,
abandono do conceito de objeto, narcisismo.
Na primeira crítica, encontramos um deslocamento do lugar de origem do
sentido. Na metapsicologia, a consciência é uma das instâncias do aparelho
psíquico, mas não a única. Seja na primeira tópica - Inconsciente, Pré-consciente,
Consciente ou, na segunda tópica - Id, Eu, Supra-Eu, o sentido se desloca da
consciência para o inconsciente. Tem-se, portanto, um duplo movimento: de
148
destomada e retomada do sentido na interpretação, sendo este o móvel filosófico de
toda metapsicologia. Assim, a língua do desejo é um discurso no qual estão
presentes a força pulsional e o sentido. No entanto, o desejo se mascara e desloca-
se via signos. A interpretação é, então, entendida como a retomada na reflexão dos
signos do desejo, da busca do sentido perdido.
Na segunda crítica, o conceito de objeto é considerado como uma pseudo-
evidência da consciência. O objeto passa a ser uma variável do destino pulsional.
Como afirma o próprio Freud, o objeto do desejo pulsional é variável. Em outros
termos, não há objeto capaz de satisfazer, plenamente, uma pulsão.
Na terceira crítica, o Eu deixa de ser o sujeito do cogito, para se transformar
num objeto de investimento libidinal. Esse investimento no Eu é denominado de
narcisismo. A partir de então, há uma permuta no investimento pulsional entre o Eu
e os objetos.
Em sua leitura da teoria freudiana sobre o pulsional, Ricoeur nos diz que o
cognoscível não é o biológico da pulsão, mas seus representantes psíquicos. Em
outros termos, o ponto de encontro entre força pulsional e sentido está nos
representantes psíquicos da pulsão: o representante representação e o afeto. É
através desse representante representação investido pelo afeto, isto é, desses
signos psíquicos, que o corpo é representado na alma e torna-se passível de se
transformar em objeto da consciência.
No entanto, nossa hipótese é que, na clínica, não se trata apenas da
transposição da linguagem das imagens relacionadas à Coisa; à linguagem das
imagens das palavras ou de uma semântica do desejo, mas também de uma
enunciação do analisando direcionada ao analista, quer dizer, de uma interação
discursiva, na busca de uma co-construção de significação. Uma coisa é a função da
linguagem no psiquismo; outra, a função da linguagem na interação discursiva de
uma psicanálise. Assim, devemos diferenciar a representação psíquica da
linguagem do ato de linguagem e, mais especificamente no caso da psicanálise, do
ato de linguagem sob transferência. O que nos remete à topologia do sujeito e a
transferência de sentido na enunciação.
4.6 - A transferência de sentido na enunciação e a topologia do sujeito
149
Sobre o conceito de transferência cabe-nos esclarecer que:
a) o termo transferência, em alemão Übertragung, “possui uma plasticidade e
reversibilidade: aquilo que se busca, traz e deposita pode ser levado de novo
embora para outro lugar e outro tempo. Genericamente refere-se à idéia de
aplicar (transpor) de um contexto para outro uma estrutura, um modo de ser
ou de se relacionar.” (HANS, 1996, p.412);
b) “Transferência de sentido, de utilização pelo desejo de formas alheias, das
quais se apodera e às quais carrega, infiltra e dota de uma nova significação.”
(MILLER, 2002, p.58);
c) Essas formas são significantes para os quais o desejo proporciona um
significado diferente e novo;
d) Transferência é o processo geral das formações do inconsciente – o sonho,
o lapso, o chiste. O desejo se mascara e se aferra a significantes esvaziados
de significação.
Ora, numa psicanálise, é através da transferência que o inconsciente do
analisando se atualiza, ganha voz, é falado e escutado. O analista opera através
dessa transferência. Para Lacan, o analista, enquanto sujeito suposto saber, é o pivô
da transferência.
Clinicamente, o conceito de transferência está atrelado aos conceitos de
pulsão, inconsciente e compulsão à repetição, como também, ao recordar, o repetir
e o perlaborar.
Para Green (2008), na teoria freudiana, a transferência, antes vista como
resistência, passa, a partir da segunda tópica, a motor do tratamento psicanalítico.
(...) “- as psiconeuroses de transferência – Freud as concebe como psiconeuroses
em transferência, capazes de mobilidade libidinal (do somático ao psíquico e de um
objeto ao outro) e desemboca finalmente sobre a compulsão à repetição.” (GREEN,
2008, p.69).
Ao fazer referencia à questão da transferência a partir da segunda tópica,
Green nos diz que não se trata mais do desejo inconsciente, mas da pulsão em si,
capaz de subverter desejo e pensamento. A partir de então, não se pode restringir a
definição do conceito de transferência como repetição do passado. O autor propõe
150
pensar a ideia da dupla transferência: uma transferência sobre a palavra e uma
transferência sobre o objeto.
Em suma, no canal de comunicação analítico, uma série de pontos de referencia vem organizar o discurso: - a um extremo, o sonho no quadro de regressão do sono; - a regressão tópica em estado de vigília na sessão; - a atenção flutuante na escuta do analista; - o pensamento reflexivo, mobilizado pela escuta, no analista. (...) Vai daí que a transferência não se distingue como bloco uniforme ou que lhe basta uma definição que enfoca a repetição do passado no presente. (GREEN, 2008, p.72).
A transferência sobre a palavra ou cadeia de transferência do discurso está
vinculada, na primeira tópica do aparelho psíquico, às instâncias do pré-consciente e
da consciência e, na segunda tópica, às instâncias Eu e Supra-eu conscientes e pré-
conscientes.
A transferência sobre o objeto está atrelada: na primeira tópica, à instância do
inconsciente; e, na segunda tópica, ao Id, ao Eu e ao Supra-eu –acrescento -
inconscientes.
Assim, nos diz o autor,
valorizamos a parte sobrepujante da linguagem tanto no discurso do analisando quanto na interpretação do analista, e reconhecemos que os elementos da psique que não podemos extrair da palavra de maneira confiável fazem transbordar essa dimensão por todos os lados. É considerável a repercussão dos eventos que se passam em uma dessas cadeias sobre os da outra que se torna possível delinear mais precisamente a natureza, a função e a significação da transferência. (GREEN, 2008, p.73).
De acordo com Green, tanto a cadeia de transferência do discurso, regida
pelo processo secundário, quanto a cadeia de transferência do objeto, regida pelo
processo primário, estão conectadas por uma célula central, auto-referente: o Eu-
sujeito.
151
Figura 17: Teoria dos gradientes.
Fonte: GREEN, 2008, p. 162
Entretanto, o autor aponta para outro ponto importante na relação entre
analisando e analista: a contratransferência do analista, isto é, a forma como o
analista reage ao que, no discurso transferencial do analisando, “produz efeitos de
ressonância e de rejeição sobre o que foi insuficientemente ou mal analisado no
analista, levando-o a compreender de forma incompleta e não imparcial – em suma,
enganar-se – aquilo que o analisando busca transmitir.” (GREEN, 2008, p.75).
Em outros termos, a contratransferência é um obstáculo colocado pelo
analista à escuta do discurso transferencial do analisando. Lacan dizia que não
havia contratransferência, mas resistência do analista. Por esse motivo, faz parte da
152
formação de um psicanalista se submeter a um processo de análise, para que ele
possa passar de analisando a analista. Isto não significa que ele seja, para sempre,
um analisado, pois, a análise, dizia Freud, é interminável, mas que o analista possa
ser um pouco mais imparcial, na escuta do discurso transferencial de seus
analisandos.
No entanto, em nossa formulação, o que possibilita a transferência, a
atualização do inconsciente e a intervenção do analista é o discurso do analisando
direcionado ao analista. Vale dizer que o recordar, o repetir e o perlaborar só se
tornam possíveis através do discurso transferencial do analisando ao analista.
No texto freudiano, Recordar, repetir, elaborar, são apresentadas, como
técnicas psicanalíticas: a catarse, proposta por Breuer; e a associação livre, por
Freud.
A primeira técnica é a catarse de Breuer. Sua proposta é recordar e ab-
reagir. Recordar é focalizar diretamente o momento de formação do sintoma. Ab-
reagir é reproduzir os processos psíquicos envolvidos nessa situação, a fim de
dirigir-lhes a descarga, ao longo do caminho da atividade consciente.
A segunda técnica é a associação livre. Seu intento é, a partir da associação
livre, possibilitar ao analisando a descoberta daquilo que ele havia deixado de
recordar. No entanto, esse processo tem pela frente a resistência, que deve ser
contornada pela interpretação, isto é, identificada e tornada consciente ao
analisando, mas isto, só depois de ele ter vencido essas resistências. Trata-se,
segundo Freud, de preencher as lacunas na memória.
No entanto, há casos em que o analisando não recorda coisa alguma do que
recalcou, mas o expressa como ação e repete-o sem saber que está reproduzindo.
Para Freud, por exemplo, o paciente não diz que recorda que costumava ser
desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em vez disso, comporta-se
dessa maneira para com o médico. Assim, essa compulsão à repetição é um outro
modo que o analisando tem de recordar.
Desse modo, Freud aponta para pontos importantes: a relação entre
resistência ao recordar, a compulsão à repetição e a transferência. Por conseguinte,
a repetição é uma transferência do passado esquecido ou recalcado, sendo que a
transferência é um fragmento da repetição que ocorre na relação do analisando,
tanto com o psicanalista, quanto com as demais pessoas. Portanto, quanto maior a
153
resistência para recordar, mais extensivamente a atuação, isto é, a compulsão à
repetição.
Entretanto, a transferência pode ser positiva, o que facilita a direção do
tratamento, ou negativa, o que muito dificulta o processo analítico. Por esse motivo,
torna-se importante descobrir as moções pulsionais, que estão alimentando a
resistência. Assim, a perlaboração das resistências é uma tarefa árdua para o
analisando e exige uma grande paciência por parte do analista. Portanto, nos diz
Freud, que são os efeitos da perlaboração das resistências, que produzem as
maiores mudanças no analisando.
Em resumo, o diferencial entre o tratamento analítico e qualquer tratamento
por sugestão é a perlaboração das resistências. Esta técnica é o que permite ao
analisando manter suas moções pulsionais na esfera psíquica, ao invés de dirigi-las
para a esfera motora, isto é, descarregá-las na ação. Contudo, o que possibilita a
transformação da compulsão à repetição, num motivo para recordar, é o manejo da
transferência . Cabe salientar que a transferência é uma região intermediária entre o
mal-estar do analisando e a vida real, que dá ao sintoma um significado
transferencial, isto é, transforma a neurose em algo artificial, a neurose de
transferência, passível de tratamento pelo trabalho terapêutico da psicanálise.
Em suas Conferências introdutórias, a de número VI: Premissas e técnicas de
interpretação, Freud afirma que os sonhos são fenômenos psíquicos. No entanto,
trata-se de comunicações, muitas vezes, ininteligíveis. Como acontece quando não
entendemos algo que nos foi comunicado, perguntamos à pessoa que sonhou: o
que seu sonho significa? O modelo de investigação psicanalítica segue a técnica de
que a própria pessoa busque a solução para seus enigmas, tais como: seus
sintomas, seus atos falhos, seus esquecimentos, suas repetições, seus sonhos. Na
realidade é provável “que o sonhador sabe, sim, o que seu sonho significa: apenas
não sabe que sabe, e, por esse motivo, pensa que não sabe.” (FREUD, 1996,
p.106).
A comprovação desse não saber que se sabe, Freud vai buscar nas
demonstrações, que ele mesmo presenciou, dos fenômenos hipnóticos, como feitas
por Liébault e Bernheim, em Nancy, no ano de 1889, e conhecida como situação
pós-hipnótica.
Uma pessoa era colocada em estado de sonambulismo e levada a
experimentar várias coisas de forma alucinatória e, depois de despertada não se
154
lembrava ou dizia não saber do que havia ocorrido durante o período em que estava
sob hipnose. Mas, devido à insistência dos hipnotizadores, a pessoa ia
paulatinamente e sem nenhuma ajuda de terceiros, se recordando do que havia lhe
ocorrido durante a hipnose. Nos termos de Freud, o conteúdo da experiência
hipnótica “simplesmente lhe era inacessível; ele não sabia que sabia, e pensava que
não sabia. Ou seja, a situação era exatamente igual àquela que suspeitamos existir
naquele nosso sonhador.” (FREUD, 1996, p.108). Em seu texto Algumas lições
elementares de psicanálise, escrito em 1938, Freud demonstra, mais uma vez, que
não se pode igualar o que é o psíquico ao que é consciente. Ser consciente é
apenas uma qualidade do que é psíquico. Ele defende a seguinte tese forte: o
psíquico é em si mesmo, inconsciente. Para exemplificar, recorre ao caso, que ele
próprio assistiu, de uma pessoa hipnotizada por Bernheim. Ao entrar na enfermaria,
Bernheim deixa seu guarda-chuva num canto da sala. Em seguida,
hipnotiza um dos pacientes e lhe diz: ‘vou sair agora. Quando eu entrar de novo, você virá a meu encontro com o guarda chuva aberto e o segurará sobre minha cabeça’. O médico e seus assistentes deixam então a enfermaria. Assim que retornam, o paciente, que não está mais sob hipnose, executa exatamente as instruções que lhe foram dadas enquanto hipnotizado. (FREUD, 1996, p.113)
Tudo indica que Freud baseou-se nessas experiências de Liébault e
Bernheim, para criar sua técnica de associação livre, isto é, a técnica de pedir a
alguém que diga, sem restrições, o que lhe vier à mente, como resposta a um
elemento de um sonho ou mesmo de um nome próprio, de um número, de uma
música. Isso significa que os pensamentos, que são livremente associados, não são
arbitrários, mas psiquicamente determinados.
Até uma música, que de repente surge e não sai mais da cabeça, pode ser
determinada pelo Inconsciente. Um jovem analisando de Freud, se sentiu
perseguido pela melodia “da canção de Páris [de Offenbach] La belle Hélène, até
que, em sua análise, ele teve sua atenção voltada para uma rivalidade em torno de
sua pessoa e em benefício seu, uma rivalidade entre uma ‘Ida’ e uma ‘Helena’. De
acordo com a nota colocada por Freud: “Páris, que fugiu com Helena, por algum
tempo fora pastor no Monte Ida, onde emitiu seu julgamento sobre três deusas
rivais.” (FREUD, 1996, p.113).
155
No lapso verbal, temos uma outra forma de manifestação inconsciente. Freud
nos relata o caso do presidente da Câmara Baixa do Parlamento Austríaco que, na
abertura de uma reunião, disse: ‘constato que um quorum completo de membros
está presente e por isso declaro encerrada a sessão.’ Uma explicação racional seria
que se trata de um pequeno equívoco, pois o que deveria ser dito é aberta a sessão.
Freud coloca que, se levarmos em consideração a situação, teremos outra
explicação. As reuniões anteriores foram muito desgastantes e improdutivas. Em
conformidade com Freud, “de modo que seria muito natural que o presidente
pensasse, no momento de fazer sua declaração de abertura: ‘se a sessão que está
começando estivesse acabada! Preferiria muito mais encerrá-la que abri-la’.”
(FREUD, 1996, p.304). Assim, havia na fala do presidente um ato psíquico
inconsciente, isto é, um desejo, um pensamento, uma intenção da ordem do
inconsciente.
Em recente entrevista dada ao programa Observatório da Imprensa,
comandado por Dines, sobre os 25 anos da morte do Presidente Tancredo Neves,
seu assessor, na época, o jornalista Antônio Brito diz: “estávamos no palácio, ato
falho, no hospital”. 17 Todos sabemos que Tancredo Neves foi eleito em 1985,
presidente do Brasil, pelo colégio eleitoral, mas que, por motivo de doença, foi
hospitalizado e não tomou posse. Foi seu Vice, José Sarney, quem assumiu o cargo.
No entanto, passado um quarto de século, Antônio Brito demonstra seu desejo
inconsciente, que Tancredo estivesse não num hospital, mas no Palácio do Planalto.
No esquecimento de um nome, ocorre um processo psíquico interessante: no
lugar do nome esquecido, aparecem nomes substitutos, que são prontamente
reconhecidos como não originais. No entanto, nos diz Freud, verifica-se “que tanto o
nome substituto espontâneo como os nomes que recordei, estão correlacionados
com o nome esquecido e foram por ele determinados.” Para exemplificar, ele nos
conta seu esquecimento do nome do pequeno país da Riviera cuja capital é Monte
Carlo. Depois de muito pensar, ele deixa de tentar recordar o nome esquecido e
passa a dar mais atenção aos nomes substitutos: Monte Carlo, Piemonte, Albânia,
Montevidéu, Cólico. Nessa série, Albânia fora substituída por Monte Negro, devido
ao contraste branco e negro. “Então constatei que quatro desses nomes substitutos
continham a mesma sílaba ‘mon’ e com isso, subitamente, eu tinha a palavra
17 Programa Observatório da Imprensa levado ao ar, pela TV Minas, no dia 05/04/2010.
156
esquecida e exclamei em voz alta: Mônaco!” (FREUD, 1996, p.108). De acordo com
o autor, os nomes substitutos surgiram do nome esquecido. Ou seja, pode-se
observar que a sílaba mon está presente em quatro nomes substitutos: Mon-te
Carlo, Pie-mon-te, Mon-te Negro, Mon-tevidéu, e o último nome: Có-li-co reproduzia
sua estrutura silábica inteira, Mô-na-co. No entanto, podemos acrescentar que a
vogal a foi retirada de Albânia e a sílaba co, de Cólico. Entretanto, Freud adiciona
mais um dado à sua interpretação: Mônaco é a palavra italiana para Munique,
cidade responsável pelo seu esquecimento, ou melhor, pela sua inibição. Essa
técnica de interpretação do esquecimento, Freud propõe estendê-la, também, para
os sonhos, isto é, através da cadeia de associações, ir do substituto até à coisa
original inconsciente, que está oculta.
No processo analítico é proposto ao analisando, através da associação livre,
recordar as experiências e afetos a elas ligados e que ele recalcou. O argumento
freudiano é que os sintomas e as inibições são substitutos, isto é, consequências
das coisas que foram recalcadas. No entanto, o que é colocado pelo analisando a
disposição do analista são fragmentos de lembranças dos sonhos, via de regra
deformados; repetições de afetos que pertencem ao material recalcado, presentes
em suas ações e ainda ideias que fazem alusão às experiências recalcadas. O que
favorece o retorno dessas conexões emocionais é a relação de transferência entre
analisando e analista.
Entretanto, cabe ao analista uma outra tarefa, além da interpretação feita, em
conjunto com o analisando: utilizar-se da técnica da construção, isto é, “de
completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou,
mais corretamente, construí-lo.” (FREUD, 1996, p. 276).
E qual a diferença entre uma interpretação e uma construção numa
psicanálise?
A interpretação aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia. Trata-se de uma construção, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um fragmento de sua história primitiva, que ele esqueceu, (...). (FREUD, 1996, p. 279).
Contudo, a construção, esse trabalho um tanto quanto semelhante àquele que
é feito por um arqueólogo, não é um trabalho conclusivo, mas preliminar, pois o
analisando terá que produzir novas lembranças, que venham complementar e
157
ampliar essa construção. Como nos diz Freud, trata-se de um modelo muito próximo
ao do criado, personagem de uma das farsas de Nestroy, que, diante de qualquer
questão, tem sempre como resposta: tudo se tornará claro no decorrer dos futuros
desenvolvimentos. (FREUD, 1996, p. 283).
E, no caso em que essas interpretações e construções não são nem
pertinentes, nem coerentes com o conteúdo recalcado pelo analisando?
Simplesmente não haverá nenhum efeito sobre o sujeito analisando, não importando
se ele concorda ou não com elas. Por outro lado, se a interpretação ou construção
tiver algum vínculo com o conteúdo recalcado, poderá haver, inclusive, como uma
forma de resistência, uma piora em seu sintoma ou em sua inibição.
Em resumo, tanto na interpretação, quanto na construção, trata-se de uma
interação discursiva entre analisando e analista, porém, não de um modelo no qual
um fala e o outro escuta. E sim, de uma linguagem transferencial em análise, na
qual temos o analisando como enunciador e o analista como co-enunciador, uma
relação discursiva assimétrica, pois nela, o psicanalista ocupa o lugar daquele que
supostamente sabe.
É a partir dessas reflexões que procuramos responder à nossa questão sobre
a topologia do sujeito e a transferência de sentido na enunciação. Nessa dimensão,
temos, como hipótese, que o trabalho clínico de significação da linguagem
transferencial do analisando produz efeitos sobre sua posição subjetiva. Portanto,
em nosso trabalho teórico-clínico, o enfoque não incide sobre a interpretação de um
ato falho, de um esquecimento, do relato de um sonho, de um estado de coisas, de
um sintoma. O que se busca, a partir desses atos de discurso do analisando, é um
sentido e uma intencionalidade que tenham uma significação.
Assim, a topologia do sujeito que estamos propondo em nossa pesquisa é
uma banda de Moebius, uma superfície unilátera: é um sujeito semântico desejante
e bio-sócio-psico-linguageiro. Trata-se de um sujeito construído em análise, efeito da
interação transferencial discursiva, de uma perlaboração entre analisando e analista,
um sujeito consciente e inconsciente, um sujeito estranho familiar. Vou designar
esse sujeito topológico de nossa pesquisa de sujeito-eu reentrante: S.E.R. Isto
significa que o sujeito é um vir a S.E.R.
158
Figura 17: fita de Moebius II (Formigas), 1963
Fonte: Foto The M.C. ASCHER Company B.V. Baarn, The Netherlans.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objetivo investigar a questão da topologia do
sujeito e a transferência de sentido na enunciação , como condição necessária
para o entendimento, em psicanálise, do trabalho teórico-clínico de interpretação da
159
linguagem transferencial do analisando e dos efeitos dela decorrentes, sobre sua
posição subjetiva. Para respondê-la, debruçamo-nos, por um lado, sobre os
conceitos de sujeito e de linguagem, num contexto e interlocução multidisciplinar -
Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência e Psicanálise. Por outro,
ainda que brevemente, sobre conceitos de corpo e alma/mente delineados na
cultura ocidental, desde a Grécia antiga até nossa modernidade tardia, como
contribuições indispensáveis para nossa compreensão, tanto da categoria de
“sujeito”, quanto da categoria de “linguagem”. Em todos esses diálogos sobre corpo,
alma, sujeito e linguagem, encontramos campos e autores que, à primeira vista, são
considerados incompatíveis. No entanto, foi possível apontarmos pontos de
divergência e de convergência e, daí, surgiram ideias, que contribuíram, de forma
significativa, para o esclarecimento de nosso estudo.
No diálogo com a Filosofia - no que diz respeito a Sócrates, Platão e
Aristóteles - salientamos a mudança de paradigma em relação ao pensamento sobre
corpo e alma na época de Homero. O corpo deixa de ser o morto, o cadáver e a
alma seu espectro. Com Sócrates, Platão e Aristóteles, a alma é o que dá vida ao
corpo. A concepção de corpo passa a ser a de uma unidade viva. Nessa
perspectiva, a alma encarnada no corpo ganha três funções: duas irracionais e
mortais - a vegetativa e a sensitiva; e uma racional e imortal, dividida em razão
teorética, prática e poiética. Desse modo, Sócrates, Platão e Aristóteles deram suas
respectivas contribuições para o início da reflexão sobre o corpo, a psique humana e
o conhecimento de si.
Na modernidade, Descartes retoma essa discussão, privilegiando a alma em
detrimento do corpo. Destacamos, a partir de Reale e Galimbert, que os conceitos
de alma, tanto, o que foi criado por Sócrates, Platão e Aristóteles, quanto o que foi
inventado por Descartes, tornaram-se um modelo para o pensamento ocidental.
Para Galimbert, é um equívoco fundamentar a psicologia nesta concepção filosófica
de psique.
Sublinhamos, com Foucault, que o cuidar de si foi substituído por Descartes,
pelo conhecer a si mesmo. O próprio Foucault nos indica que, em nossa
modernidade tardia, é a psicanálise de Freud e de Lacan, enquanto uma técnica de
si, que vem colocar em cena, novamente, a verdade e o cuidar de si.
Na filosofia da linguagem, buscamos um diálogo com Searle, a respeito do
conceito de intencionalidade, o que nos possibilitou demonstrar que há, nos
160
processos psíquicos, diferentemente do que pensa o autor, uma “intenção
inconsciente”.
A metapsicologia freudiana, em suas duas tópicas, nos deu uma grande
contribuição para o entendimento da linguagem no funcionamento do aparelho
psíquico. Para isso, nos valemos, como modo de exemplificação, de um corpus
constituído de alguns fragmentos de relatos de sonhos, de atos falhos, de
esquecimento e de casos clínicos interpretados por Freud. Essa opção se justifica
pelo fato de se tratar do registro de uma situação dialógica, isto é, de uma interação
entre analisando e analista. Não se trata, aqui, de aplicação de uma teoria, mas de
teorizar uma experiência clínica.
Nossa experiência em psicoterapia, inspirada na teoria da psicanálise de
Freud, nos ensinou que o psiquismo humano é algo conflituoso e complexo, regido
por moções pulsionais de vida e de morte, que devem ser representadas primária e
secundariamente, e não simplesmente descarregadas. Tendo como ponto de partida
a metapsicologia freudiana, apontamos em nossa pesquisa, a função da linguagem,
ou melhor, da representação de palavra no psiquismo humano: a de tornar pré-
consciente a representação de coisa inconsciente. No entanto, se essa ideia nos
permite entender como tornar consciente um pensamento inconsciente ou sua
significação, ela nada nos informa sobre o ato de linguagem transferencial do
analisando ao analista. Esta mesma observação pode ser feita para o campo da
Neurociência, em relação aos importantes trabalhos de Rosenfield e Edelman sobre
a relação entre o cérebro e a linguagem.
Rosenfield, em seu estudo sobre a memória, foi quem nos chamou a atenção
para o fato de o inconsciente da teoria de Freud, ser uma forma de categorização.
Nosso mérito foi fundamentar essa hipótese no plano teórico-clínico da psicanálise.
Mas, para isso, foi preciso aprofundar nossa investigação sobre a Teoria dos Grupos
Neuronais, proposta por Edelman, principalmente em seus conceitos de
categorização, memória, consciência primária, consciência elaborada, linguagem e
reentrada. Cabe esclarecer ainda que, de nossa parte, não estamos adotando,
literalmente, tais conceitos da Neurociência, mas nos inspirando neles para a
construção de nossas hipóteses. É preciso dizer que a Psicanálise e a Neurociência
têm objetos de estudo diferentes: a teoria da Psicanálise tem, como objeto, o Id ou o
Inconsciente; a Neurociência, o cérebro. Mais especificamente, a Psicanálise não
nega o estudo sobre o cérebro, mas sua preocupação é com o aparelho psíquico,
161
isto é, com os processos psíquicos inconscientes que se passam entre o cérebro e a
consciência. Já o estudo do cérebro, na Neurociência de Edelman, se dedica a uma
biologia da consciência.
O mesmo procedimento de não adoção literal dos conceitos, mas de
influência, ocorre nos outros diálogos que estabelecemos com a própria psicanálise
de Freud e de Lacan, quanto com a Filosofia, a Linguística e a Análise do Discurso.
Em outros termos, não fizemos aqui uma transposição literal dos pensamentos dos
autores por nós utilizados, mas nos inspiramos neles para responder a nossa
questão. Embora tenhamos colocado a linguagem como o objeto de estudo que
aproximasse campos de estudos tão diversos, enfrentamos o seguinte obstáculo: a
psicanálise freudiana é a única a levar em consideração os processos psíquicos
inconscientes.
Na Linguística e na Análise do Discurso, fomos buscar apoio em Pêcheux,
Benveniste, Charaudeau, Francis Jacques e Mari, em suas reflexões sobre as
noções de sujeito do discurso e a interação entre enunciador e co-enunciador.
Conforme demonstramos, os pensamentos de Benveniste e de Mari sobre o
discurso são os que mais se aproximam da Psicanálise Lacaniana. Quanto ao
pensamento de Charaudeau sobre o discurso, ou melhor, sua Semiolinguística,
constatamos que este está voltado para o que é da ordem da consciência.
Destacamos, nessa dimensão, o mérito de Pêcheux de levar em consideração, na
ordem do discurso, tanto o que é da ordem da ideologia, quanto do inconsciente. No
entanto, apontamos seu equívoco de entender Freud via Lacan. Nesse sentido,
sustentamos que o inconsciente proposto por Lacan, embora pertinente, é muito
diferente do conceito de inconsciente presente na teoria de Freud.
Por sua leitura “filosófica de Freud”, elegemos Ricoeur como interlocutor. A
proposta desse autor é inserir a Psicanálise Freudiana no debate sobre a
hermenêutica da linguagem simbólica, isto é, no conflito das interpretações.
Tomamos de empréstimo a Ricoeur seu conceito de semântica do desejo, o que nos
possibilitou fazer uma diferenciação em relação à semântica da linguística.
Sobre nosso uso da topologia, para explicar o funcionamento do psiquismo
humano, a linguagem ou o sujeito, ressaltamos que não é uma novidade em
Psicanálise. Esse modelo teórico serviu a Freud para pensar suas duas tópicas do
aparelho psíquico; a Lacan, no seu intuito de tornar científica a Psicanálise e a
MDMagno para explicar seu “Revirão”. Embora consideremos pertinente o modelo
162
de Lacan e o de MDMagno, para construir nosso próprio modelo, escolhemos partir
daquele proposto por Freud. Para isso, servimo-nos também da topologia, tal como
proposta por Moebius, Vallejo, Latour e Serres.
Vallejo destaca que, na topologia da psicanálise, o que importa é a
transformação executante do objeto em questão, seu efeito de metáfora. Assim, um
círculo é um quadrado com as mesmas propriedades, mas em outra conformação.
Serres pensa a topologia como diferente da geometria métrica: bem definida e
métrica. Sua topologia está baseada no modelo de dobradura, isto é, a topologia é a
ciência que possibilita pensar, em relação ao tempo e ao espaço, o que está
próximo como estando distante.
Latour nos esclarece que, em relação ao conhecimento, na atualidade, não
podemos mais tomar o modelo bipolar kantiano, no qual a coisa em si está num
extremo, o fenômeno no centro e o entendimento humano na outra extremidade. O
mérito de Latour está em propor um modelo, no qual a referência é instável e avança
do centro para as extremidades.
Moebius, com sua topologia, nos permitiu avançar e pensar o sujeito como
uma superfície unilátera: um sujeito semântico desejante e bio-sócio-psico-
linguageiro, que é dentro e fora ao mesmo tempo.
Nessa dimensão, cabe-nos sublinhar que o sujeito-eu-reentrante constitui
uma categoria conceitual, fruto de nossa interlocução sobre a linguagem e o sujeito,
sob o olhar de diferentes campos de conhecimento – Análise do Discurso,
Psicanálise, Filosofia, Neurociência e Topologia. Trata-se, portanto, de um
desdobramento oriundo de minhas reflexões teórico-clínicas, respaldado em minha
prática clínica sobre A questão do sujeito topológico e a transferência de sentido na
enunciação. Em outros termos, de nossa contribuição para o entendimento da
transformação que a linguagem produz na subjetividade do analisando, via relação
transferencial com o analista.
No entanto, vale ressaltar que, nessa reflexão sobre a questão da topologia do
sujeito e a transferência de sentido na enunciação foram vários os desafios:
a) adotar uma perspectiva transdisciplinar: Análise do Discurso, Linguística,
Filosofia, Neurociência, Psicanálise e Topologia;
b) compor, a partir dessa perspectiva, um quadro teórico, integrando os conceitos
de sujeito, sentido e enunciação;
163
c) aprofundar a compreensão sobre signo e discurso, a partir da Análise do
Discurso, da Filosofia e da Psicanálise, buscando pontos de convergência e
divergência.
Nesse sentido, enfrentamos o desafio de não fazer de nosso estudo uma
compilação, mas de construir um artefato teórico que, apesar das controvérsias,
tanto no plano interno, quanto no externo, pudesse estabelecer uma interface entre
esses diferentes campos - Análise do Discurso, Linguística, Filosofia, Neurociência,
Topologia e Psicanálise – no que diz respeito ao conceito de linguagem e sua
implicação na questão da topologia do sujeito e a transferência de sentido na
enunciação. Nossa aposta numa tal abordagem deveu-se ao fato de
compreendermos que não há, em relação ao nosso objeto de estudo, uma resposta
única, e sim aproximações possíveis.
Cabe dizer ainda que esse estudo foi construído nos intervalos entre nossas
atividades docentes, discentes e clínicas. Nesse contexto, não tivemos o tempo
desejável para melhor aprofundamento de nossas hipóteses.
Pensamos que nossa tese apresenta como principais contribuições:
a) a diferenciação do conceito de inconsciente nas teorias de Freud e
de Lacan;
b) a colocação da discussão sobre a linguagem em Psicanálise na
atualidade, num outro enfoque, além do pensamento hegemônico
de Lacan: o inconsciente é estruturado como uma linguagem;
c) a demonstração de que o pensamento de Freud sobre a linguagem
ou representação de palavra diz respeito ao modo como ocorre a
significação no cérebro , num primeiro momento; e depois, num
segundo momento, como ela se dá no aparelho psíquico . No
entanto, embora importante, sua teoria não aborda a enunciação na
interação entre analisando e analista;
d) a proposição de uma outra forma de interlocução entre diferentes
campos de conhecimento que possuem, como objeto de estudo, a
linguagem;
e) a abordagem do modo como a Análise do Discurso, a Teoria dos
Atos de Fala, a Semântica, a Filosofia da Linguagem, a
164
Neurociência e a Psicanálise podem colaborar para um melhor
entendimento da questão, tão complexa, que é a linguagem;
f) a demonstração teórico-clínica de que os relatos sobre os sonhos,
os atos falhos, os esquecimentos e as demais narrativas dos
analisandos fazem parte de uma semântica do desejo , isto é, têm
uma intenção e um sentido inconscientes ;
g) a construção de um outro conceito de sujeito - S.E.R. - Sujeito Eu
Reentrante , que nos permite pensar a linguagem em outra
dimensão: a do corpo ao simbólico .
Diante do que se apresenta, esperamos que essa tese possa, ainda que
modestamente, contribuir de modo efetivo para a abertura de outros horizontes de
estudo e pesquisa em Análise do Discurso, Psicanálise, Filosofia e Neurociência,
levando em consideração nosso outro olhar para a categoria de sujeito.
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