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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Processual A CITAÇÃO PESSOAL E VÁLIDA COMO ELEMENTO DO PRESSUPOSTO PROCESSUAL PENAL DE EXISTÊNCIA DO PROCEDIMENTO EM CONTRADITÓRIO ADILSON DE OLIVEIRA NASCIMENTO Belo Horizonte 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Direito Processual

A CITAÇÃO PESSOAL E VÁLIDA COMO ELEMENTO DO PRESSUPOSTO

PROCESSUAL PENAL DE EXISTÊNCIA DO PROCEDIMENTO EM CONTRADITÓRIO

ADILSON DE OLIVEIRA NASCIMENTO

Belo Horizonte

2007

Adilson de Oliveira Nascimento

A CITAÇÃO PESSOAL E VÁLIDA COMO ELEMENTO DO PRESSUPOSTO PROCESSUAL PENAL DE EXISTÊNCIA DO PROCEDIMENTO EM

CONTRADITÓRIO

Tese apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Direito Processual da Faculdade Mineira de Direito da PUC/MG − Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais − como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito Processual.

Orientador: Prof. Dr. Rosemiro Pereira Leal

Belo Horizonte

2007

Adilson de Oliveira Nascimento

A citação pessoal e válida como elemento do pressuposto processual penal de existência do procedimento em contraditório

Trabalho apresentado à Banca Examinadora de Direito Processual do

Programa de Pós-Graduação em Direito Processual da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais.

Belo Horizonte, 2007.

Professor Rosemiro Pereira Leal – (orientador) – PUC MINAS

Professor César Augusto de Castro Fiúza – PUC MINAS

Professor Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias – PUC MINAS

Professor Eugênio Pacelli de Oliveira – Milton Campos/Dom Hélder Câmara

Professor José Barcelos de Souza – UFMG/Milton Campos

Professor Fernando Horta Tavares – PUC MINAS (Suplente)

Professor Carlos Augusto Canêdo Gonçalves Silva - PUC MINAS (Suplente)

Dedicatória

PARA

Laura Eliza Querida e amada esposa, pelo carinho e paciência.

Agradecimentos

Ao meu Orientador,

Professor Doutor Rosemiro Pereira Leal,

em nome de quem saúdo os demais professores do Programa de Pós-Graduação em Direito Processual da

Faculdade Mineira de Direito, que, pela sua genialidade, construiu uma teoria inovadora para explicar o Processo,

permitindo-me partilhar de seus ensinamentos e alargar o conhecimento, em um novo mundo jurídico. A ele, que

sempre esteve disponível para atender as minhas dúvidas e que foi paciente em momento difícil pelo qual passei, a

minha eterna gratidão.

Ao Professor Leonardo Costa Bandeira,

Coordenador do Curso de Direito da PUC-Minas, Unidade Betim, pelo apoio dispensado na elaboração do presente

trabalho.

Ao Professor Guilherme Coelho Colen,

pela assunção das disciplinas a cargo do subscritor, possibilitando maior tempo de estudo e dedicação à tese.

Ao Professor Renato Patrício Teixeira,

pela leitura atenta e sugestões acolhidas.

À Dra. Elaine Martins Parise, Procuradora-Geral de Justiça Adjunta Jurídica,

pela confiança depositada durante o exercício da

Assessoria Especial do Procurador-Geral de Justiça, novo desafio que agregou experiência rica e amadurecimento

profissional ao subscritor.

RESUMO

A presente tese de Doutorado, A citação pessoal e válida como elemento do

pressuposto processual penal de existência do procedimento em contraditório,

pretende argüir a concepção tradicional e autoritária dos pressupostos

processuais de existência e validez da relação jurídica processual penal na

perspectiva da teoria neo-institucionalista do processo. Para tanto, analisam-

se as relações de poder no Estado de Direito liberal e social, pugnando por

uma nova concepção de democracia, valendo-se também da teoria discursiva

de Jürgen Habermas. A teoria geral do processo é revisitada em suas bases

conceituais, confrontando-se a teoria da relação jurídica instrumental e a

concepção fazzalariana do processo como procedimento em contraditório na

vertente da teoria neo-institucionalista e do garantismo penal. Os modelos

garantista e decisionista de persecução penal são examinados, bem como os

sistemas de persecução penal acusatório, inquisitório e misto, com notícia

histórica no Direito Comparado. O sistema processual penal brasileiro e a

teoria dos pressupostos processuais penais de existência e validez da relação

jurídica são criticamente percorridos, enfatizando-se o instituto da citação pessoal e válida. Com apoio na teoria neo-institucionalista, procura-se

esclarecer uma nova posição do ato citatório no arcabouço dos pressupostos

processuais.

Palavras-chave: processo penal − teoria discursiva − neo-

institucionalista – pressuposto − citação.

ABSTRACT

The present doctorate thesis, The personal and valid citation as element of

presupposed processual penal of existence of contradictory proceeding,

intends to debate the traditional and authoritarian conception of the

presupposed processual of existence and validity of the criminal procedural

legal relationship under the perspective of the neo-establishment theory of the

process. For such a way, the relationships of power on a liberal and social

state of right are analyzed, fighting for a new conception of democracy, using

also the discursive theory of Jürgen Habermas. The general theory of process

is revisited in its conceptual bases, collating the theory of instrumental legal

relationship and the fazzalarian’s process conception of the proceeding in

contradictory in the source of the neo-establishment theory and the penal

rights support. The penal rights support and decision-making models of penal

persecution are examined, as well as the accusatory penal persecution

system, inquisitorial and mixed, with historical notice on the comparative

rights. The Brazilian criminal procedural system and the theory of criminal

presupposed proceeding of existence and legal validity relationship are

critically covered with emphasis in the institute of personal and valid citation.

With support of the neo-establishment theory, it tries to clarify a new position

of the citation on the framework of presupposed proceeding.

Keywords: criminal proceeding - discursive theory - neo-establishment -

presupposition - citation.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................. 10 CAPÍTULO I 1. PODER, ESTADO, DEMOCRACIA E PROCESSO..................................... 12 1.1 O que é Poder?............................................................................................ 121.1.1 Poder Político e Direito Político................................................................. 161.2 Poder e Estado............................................................................................ 191.3 O Estado de Direito..................................................................................... 211.4 O Estado de Direito Liberal e Social......................................................... 231.5 O Estado de Direito democrático constitucional.................................... 251.6 O Princípio Democrático............................................................................ 281.7 Democracia e Processo............................................................................. 381.7.1 O Processo Constitucional no contexto democrático............................ 381.7.2 A teoria da relação jurídica processual.................................................... 411.7.3 O processo penal na concepção da relação jurídica.............................. 421.7.4 A visão instrumentalista da relação jurídica processual....................... 461.7.5 As concepções de processo no paradigma democrático. Por uma

hermenêutica constitucional discursiva.................................................. 48

1.8 O Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli...................................................... 531.9 O Processo penal no paradigma democrático......................................... 57 CAPÍTULO II 2. SISTEMAS DE PERSECUÇÃO PENAL E O GARANTISMO...................... 59 2.1 Breve histórico dos sistemas de persecução penal................................ 592.2 Decisionismo e Garantismo....................................................................... 632.3 O Processo Penal no Direito Comparado................................................. 672.3.1 Portugal........................................................................................................ 672.3.2 Espanha........................................................................................................ 682.3.3 França........................................................................................................... 702.3.4 Itália.............................................................................................................. 712.3.5 Inglaterra e País de Gales........................................................................... 732.3.6 Estados Unidos da América....................................................................... 742.3.7 Argentina...................................................................................................... 752.3.8 Chile.............................................................................................................. 762.3.9 Tendências mundiais.................................................................................. 832.4 O sistema em vigor no Brasil..................................................................... 85 CAPÍTULO III 3. O MODELO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO: A CITAÇÃO COMO

ELEMENTO DO PRESSUPOSTO PROCESSUAL PENAL........................ 91

3.1 O ato jurídico............................................................................................... 913.2 Existência, validade e eficácia................................................................... 943.3 Os pressupostos processuais penais....................................................... 983.4 A citação no contexto instrumentalista do processo penal.................... 1003.5 A teoria neo-institucionalista do processo no contexto dos

pressupostos processuais......................................................................... 104

3.6 A citação como fundamento do pressuposto processual penal de existência do procedimento em contraditório....................................

106

4. CONCLUSÃO .............................................................................................. 112 5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 117

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INTRODUÇÃO

Apresento à comunidade jurídica a tese de Doutorado A citação pessoal

e válida como elemento do pressuposto penal de existência do procedimento

em contraditório, como reflexão resultante do Programa de Pós-Graduação

em Direito Processual da Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais.

A linha de estudo compromete-se com uma nova visão de processo

trazida pela teoria neo-institucionalista, que, fundamentada no devido

processo, possibilita ao Povo a utilização da Constituição como medium

institucional de implemento de direitos fundamentais.

No primeiro capítulo, apontam-se os balizamentos institucionais a partir

dos quais se desenvolveu o estudo.

Para tanto, discute-se o conceito de poder político e sua repercussão

nos modelos de Estado. São analisadas as características do Estado de

Direito, os sistemas liberal e social e a necessidade de superação por um

modelo democrático constitucional, contextualizando-se o Processo

Constitucional.

Disserta-se sobre a conceituação de democracia com apoio na teoria

discursiva de JÜRGEN HABERMAS, que busca uma autolegislação cidadã,

em que o destinatário do ordenamento jurídico possa se ver também como

seu autor.

Feita tal digressão, desloca-se para o campo processual em busca de

uma teoria pertinente à construção de uma sociedade democrática. A teoria

do processo como relação jurídica entre pessoas, mesmo que acolhida a cada

dia, pelo seu caráter instrumental, a serviço de uma jurisdição de escopos

metajurídicos, é criticada por ser inadequada ao processo penal, segundo o

paradigma do Estado Constitucional brasileiro. Estudam-se a teoria de ELIO

FAZZALARI (processo como procedimento em contraditório), o modelo

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constitucional de ANDOLINA & VIGNERA, a teoria neo-institucionalista de

ROSEMIRO PEREIRA LEAL e o garantismo penal de LUIGI FERRAJOLI, ao

empreendimento intelectivo de que se ocupa o trabalho aqui dimensionado da

validade citatória no processo penal.

O segundo capítulo analisa os sistemas de persecução penal no

mundo, partindo-se da contraposição entre garantismo e decisionismo e

chegando-se aos sistemas acusatório, inquisitório e misto, com breve

abordagem histórica.

Apresentam-se as principais características do processo penal em

vários países do mundo, especificando-se os pontos em que se mostra

possível um ganho hermenêutico em relação à legislação brasileira e às

tendências mundiais dos ordenamentos jurídicos. Avalia-se o sistema de

persecução penal adotado no Brasil.

No terceiro capítulo, a preocupação é, pois, analisar e situar o objeto

temático da tese: a citação pessoal e válida.

Após digressões acerca da teoria do ato jurídico, discorre-se acerca do

problema da existência, validade e eficácia no Direito.

Os pressupostos processuais penais são revisitados. A citação, no

contexto instrumentalista, é examinada ante a teoria neo-institucionalista, que,

à configuração dos pressupostos processuais, preconiza que tal instituto

jurídico só adquire validade na estrutura do procedimento em contraditório,

com garantia efetiva da ampla defesa, em isonomia, no marco do devido

processo constitucional.

Finalmente, são lançadas as conclusões de acordo com as reflexões

trazidas pela pesquisa técnico-jurídica.

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CAPÍTULO I

1. PODER, ESTADO, DEMOCRACIA E PROCESSO

A íntima relação entre poder e Estado é objeto de apreciação pelas

ciências humanas desde a formação do Estado de Direito Liberal, que

possibilitou a elaboração de estudos críticos sobre a questão, antes

censurados e punidos pela inexistência do direito fundamental da liberdade de

expressão, quando a concentração e confusão entre Estado e poder eram

explícitas.

Muito se questiona sobre o que é poder e qual a sua importância na

conceituação do Estado. Quanto ao último, pergunta-se qual seria o modelo

adequado para a sociedade atual.

Nesse particular, o conceito de democracia vem sendo

processualmente estruturado, visando à superação de ideários retóricos na

construção do Direito, para o enfrentamento de problemas numa sociedade

pluralista e pós-metafísica.

As idéias de poder, Estado e democracia entrecruzam-se com o

processo como instituição jurídica, hoje estudada em conteúdos de nova

compreensão das relações sociais e jurídicas.

Neste capítulo, procurar-se-á, pois, apontar metodologicamente

conceitos de poder, Estado e democracia, bem assim estabelecer uma linha

paradigmática de Direito democrático para o desenvolvimento da pesquisa

técnico-jurídica, em prol do tema diretivo deste trabalho.

1.1 – O que é Poder?

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O esclarecimento sobre o que é poder e suas características tem sido

objeto de polêmica entre diversos estudiosos, de sorte que tal definição

interessa aos vários campos das ciências humanas.

Como toda conceituação, máxime a relativa à idéia de poder enfrenta

dificuldades em decorrência das várias facetas que assume e assumiu na

história.

Em obra clássica, Lebrun (1981) procura deslindar essa relevante

questão. Inicialmente, procura estabelecer o conteúdo de várias acepções,

correlatas ao conceito de poder, para, em seguida, defini-lo.

Assim, ‘política’ seria a atividade social que se propõe a garantir, pela

força, fundada geralmente no Direito, a segurança externa e a concórdia

interna dos grupos humanos. Por ‘força’, têm-se os meios que possibilitam

influir no comportamento humano. ‘Potência’ teria dois sentidos: a capacidade

determinada que está em condição de exercer-se a qualquer momento e toda

oportunidade de impor a sua própria vontade, no interior de uma relação

social, até mesmo contra resistências, pouco importando em que repouse tal

oportunidade. ‘Dominação’ seria a probabilidade de que uma ordem com um

determinado conteúdo específico fosse seguida por um dado grupo de

pessoas (LEBRUN, 1981, p. 10-12).

Portanto, para Lebrun, existe poder quando a potência, caracterizada

por forças disponíveis, explicita-se sob o modo de uma ordem dirigida a

alguém que, presume-se, deve cumpri-la (LEBRUN, 1981, p. 12). Considera-

se, assim, um conceito de poder derivado da autoridade.

Todavia, o próprio autor reconhece que a fenomenologia do poder é

muito mais complexa, assumindo facetas diferentes historicamente e de

acordo com a sociedade em que se instale.

Michel Foucault dedicou-se ao estudo de tal problematização,

sistematizando o poder em três níveis: poder disciplinar, bio-poder e

governamentalidade.

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Consoante digressões de Maia (1995, p. 83-102), conclama Foucault o

abandono da visão tradicional de poder, na qual sua atuação se baseia

somente nos aspectos negativos de proibição, censura, interdição, repressão

e coação, com a construção de uma analítica de poder que não tome o Direito

como modelo, buscando uma nova percepção.

A gênese do poder não é o Estado nem o modelo jurídico de soberania,

no qual o indivíduo é visto como sujeito de direitos naturais ou poderes

primitivos.

O poder é concebido como relações de imperatividade, existentes em

qualquer agrupamento humano, sendo exercido através de estratégias, com

manobras táticas e técnicas, relações essas sempre tensas, num

enfrentamento perpétuo. Portanto, o poder mais se exerce do que se possui.

O poder é, às vezes, compreendido dinamicamente como uma rede que

permeia todo o espaço social, e o Estado não deve ser a sua única fonte de

emanação, mas uma superestrutura em relação a toda uma série de redes de

poder que investem o corpo, sexualidade, família, parentesco, conhecimento,

tecnologia.

A respeito, Machado assevera:

O interessante da análise é justamente que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível, limites ou fronteiras. Daí a importante e polêmica idéia de que o poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele alijados. Rigorosamente, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. (MACHADO, 1995, p. 14).

Nessa perspectiva, ainda segundo Maia (1995, p. 83-102), o poder

existe em uma relação de forças que se chocam e se contrapõem. Todavia,

tal enfrentamento, antagonismo constante, ocorre somente entre sujeitos

livres, uma vez que, para o exercício do poder, deve haver a possibilidade de

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resistência. Existindo uma relação de poder, há uma possibilidade de

resistência.

Retira-se ainda do conceito de poder a violência, que pode ser um

instrumento utilizado, mas não um princípio básico da sua natureza.

Para substituir o modelo de Estado como fonte do poder, Foucault

adota o modelo da guerra, pois é em termos de confronto e de combate com

suas táticas e estratégias − em que se tem por princípio cumularem-se

vantagens e multiplicarem-se benefícios − que se pode compreender o modo

como se desdobra e se articula a extensa rede de poder que atravessa o

corpo social.

A base das relações de poder seria o confronto belicoso das forças

sociais em antagonismo constante, as quais pressupõem rebeldia e

insurgência continuadas.

Define Foucault o bio-poder como a atuação do poder sobre os corpos,

em dois níveis: técnicas que têm como objetivo um treinamento ortopédico,

com disciplinas e poder disciplinar; e o corpo entendido como uma população,

com suas leis e regularidades.

Assim, a disciplina, considerada um processo técnico unitário pelo qual

a força do corpo é, com o mínimo de ônus, reduzida como força política e

maximizada como força útil, vem sendo utilizada maciçamente na sociedade

industrial capitalista.

Nesse particular, o indivíduo é tratado como máquina, devendo ser

adestrado para amplificação de sua utilização, aperfeiçoando-se a extração

do trabalho. Tal poder disciplinar passa a ser utilizado a partir do Século XVIII

nas prisões, fábricas, escolas e hospitais, tendo como função impor uma

tarefa ou uma conduta qualquer a uma multiplicidade de indivíduos.

O próprio Foucault define tal técnica:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as disciplinas.

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... Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica de poder, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). (FOUCAULT, 2006, p. 118/119).

O bio-poder tem características distintas, visto que age sobre a

população, visando gerar e controlar a vida. Com o crescimento demográfico,

passa a haver a preocupação com a variedade numérica de espaço,

cronologia, longevidade e saúde, necessitando-se de mecanismos de poder

mais sofisticados e adequados tecnologicamente, como estimativas

demográficas, cálculo das pirâmides etárias, diferentes expectativas de vida e

níveis de mortalidade, relações de crescimento de população e riqueza,

incentivo ao casamento e procriação e desenvolvimento de formas de

educação e treinamento profissional. Como registra Agamben (2004, p. 125),

na verdade a bio-política seria a crescente implicação da vida natural do

homem nos mecanismos e nos cálculos do poder.

Na governamentalidade, a análise de Foucault lida com o problema de

como ser governado, por quem, até que ponto, com qual objetivo e com que

método. Busca-se uma racionalidade própria do Estado. Procurou o filósofo

disciplinar a arte de governar com base em razões de Estado: as regras

racionais próprias de sua natureza.

1.1.1 – Poder Político e Direito Político

A governamentalidade, pouco abordada na obra de Foucault, vem

merecendo apreciação e estudo sistemático. A repercussão do tema nos

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conceitos de Estado e Direito, afeta toda a ordem jurídica, como se vê no

ensino de Baracho (1977, p. 137).

Esse tema relaciona-se com a idéia de poder político ou, como

esclarece Loewenstein, o papel desse elemento (poder político) no processo

governamental: Ainda que possa aparecer em qualquer tipo de relações humanas, o poder, nessa tríade de motivações (amor, fé e poder), tem uma importância decisiva no campo sócio-político. A política não é senão a luta pelo poder. Assim, a ciência política e a filosofia política não puderam deixar de estudar nos últimos anos, cada vez de uma maneira mais intensa, o fenômeno do poder. (...) É bem certo que a maior parte dos estudos sobre o poder estão dedicados a uma análise histórica; sem embargo, o interesse crescente com que a ciência e a teoria política estudam o papel que toca ao elemento poder no processo governamental, permite apreciar a insatisfação produzida pela análise estritamente funcional do fenômeno do poder, análise que levava a qualificar preferentemente o tipo de governo segundo seu aparato institucional. Cada vez com mais unanimidade se considera o poder como a infraestrutura dinâmica das instituições sócio-políticas. Não deixa de ser significativo, por outra parte, que a ênfase que se põe em nossa geração sobre o fenômeno do poder como chave para a melhor compreensão da sociedade estatal, tenha vindo substituir o interesse científico pelo conceito de soberania que ao largo de tantos séculos ocupou um posto de honra tanto na teoria política como na prática do direito internacional. Talvez se possa dizer que a soberania não é mais, e tampouco menos, que a racionalização jurídica do fator poder, constituindo este o elemento irracional da política. Segundo isto, soberano é aquele que está legalmente autorizado, na sociedade estatal, para exercer o poder político, ou aquele que em última análise o exerce (LOEWESTEIN, 1979, p. 24).

Aproximando-se de Foucault, considera Loewestein que a sociedade

como um todo é um sistema de relações de poder cujo caráter pode ser

político, social, econômico, religioso, moral ou cultural, sendo o poder uma

relação sociopsicológica embasada no recíproco efeito entre os que o detêm

e exercem e seus destinatários:

Considerada como um todo, a sociedade é um sistema de relações de poder cujo caráter pode ser político, social, econômico, religioso, moral, cultural ou de outro tipo. O poder é uma relação sócio-psicológica baseada em um efeito recíproco entre os que detenham e exerçam o poder – serão denominados os detentores do poder – e aqueles aos quais é dirigido – serão aqui designados como os destinatários do poder (LOEWESTEIN, 1979, p. 26).

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Assim, no Estado moderno, constitucional e democrático, a essência do

processo do poder político consiste no intento de se estabelecer um equilíbrio

entre as diferentes forças pluralistas que se encontram competindo dentro da

sociedade estatal, garantindo-se o espaço para o livre desenvolvimento da

personalidade humana (LOEWESTEIN, 1979, p. 27).

Partindo de um contexto de poder baseado na imposição da conduta

individual sobre a alheia, com o acatamento pelos outros de uma vontade

imperativa, Caetano (1996, p. 8) considera que a sociedade política é formada

e organizada a partir do momento em que se institui o poder político.

E o poder político, historicamente exercido com abuso e sem

moderação, tem que ser restringido e limitado pelas regras e princípios do

direito democrático, preservando-se a liberdade dos destinatários do poder,

depreende-se em Dias (2001, p.169).

Nesse sentido, a advertência de Loewestein:

É evidente, e numerosas são as provas disto, que onde o poder político não está restringido e limitado, o poder se excede. Raras às vezes, para não dizer nunca, o homem exerceu o poder ilimitado com moderação e comedimento. O poder leva em si mesmo um estigma, e só os santos entre os detentores do poder - e onde se podem encontrar? - seriam capazes de resistir a tentação de abusar do poder. Em nossa exposição foi utilizado até agora o conceito “poder” para designar um elemento objetivo do acontecer político sem nenhuma qualificação ética; sem embargo, o poder incontrolado é, por sua própria natureza, mau. O poder encerra em si mesmo a semente de sua própria degeneração. Isto quer dizer que quando não está limitado, o poder se transforma em tirania e em arbitrário despotismo.

Ante tamanha complexidade temática, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias

preconiza a teorização do Direito Político, ramo ainda pouco estudado, que

buscaria o equilíbrio entre o exercício do poder político pelo Estado, sob as

idéias da ordem e da autoridade constituídas, e a garantia da liberdade dos

destinatários, livrando-os do perigo imanente a todo poder, o de ser

exercitado de forma degenerada, arbitrária e abusiva (DIAS, 2001, p. 169).

Amparado em Verdú (1972, p. 37), para quem o Direito Político não

tem um valor substantivo, por adjetivado pela realidade política, defende o

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desenvolvimento do ramo sobre duas vertentes: Ciência Política, estudo do

poder político na sociedade, e Direito Constitucional, no tocante às regras da

organização e exercício do poder político e liberdades básicas do ser humano,

estabelecendo a seguinte noção:

O direito político compreende o estudo das normas que estabelecem limites e restrições ao exercício do poder pelo Estado, nas suas relações com a sociedade, assegurando, simultaneamente, a plenitude das liberdades fundamentais dos indivíduos. Com tal propósito, apóia-se nos estudos da Ciência Política, concernentes aos fundamentos e à organização do poder político na sociedade, e nos princípios e regras do Direito Constitucional, tendentes à disciplina das instituições jurídicas básicas ao exercício do poder estatal e ao respeito dos direitos e liberdades fundamentais do ser humano (DIAS, 2001, p.171).

Referida disciplina tem como objeto o exercício do poder pelo Estado,

com análise das regras e princípios jurídicos que lhe impõe limites e restrições

a tal exercício, de sorte a preservar os direitos fundamentais dos indivíduos,

envolvendo o estudo da soberania, constitucionalização do Estado, coação,

legitimação e liberdade política (DIAS, 2001, p.172).

Como se verá no seguimento deste trabalho, a necessidade de

limitação do poder político e das relações de poder no âmbito processual será

tematizada no marco do devido processo para a compreensão da garantia do

direito fundamental do contraditório.

1.2 – Poder e Estado

Apresenta-se bastante nítida para qualquer estudioso da Ciência

Processual a correlação entre Poder e Estado, muitas vezes vistos como

conceitos inseparáveis, como, inclusive, aventado no tópico anterior.

Isso porque uma das primeiras funções que o Estado assume, ao

organizar-se, é o exercício da jurisdição, impondo a solução legal no caso

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concreto, vedando-se ao particular a possibilidade de, por suas próprias

mãos, fazer valer o direito pretendido (autotutela).

No nível penal, tal função evidencia-se na medida em que somente o

Estado pode exercer o jus puniendi, ou seja, tem a prerrogativa de definir

crimes e sanções, bem como determinar a persecução penal e execução da

pena imposta.

Nessa premissa, o Estado é uma forma de organização jurídica do

poder, tendo como característica o comando soberano, com o monopólio de

edição do direito positivo e da coação física legítima para impor a efetividade

de suas regulações, tal como anotado por Canotilho (2003, p. 89-90). Modernamente, vem sendo criticada a idéia de separação de poderes

do Estado. Considerada deturpada de seu enfoque original, elaborada por

Montesquieu inspirado em Locke, tem como princípio a independência dos

Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, com controle recíprocos, visando

à prevenção do abuso e à proteção da liberdade individual. Ao distribuir o

exercício do poder político, exerce-se um controle. Embora seja uno o poder

estatal, são distribuídas funções a diferentes órgãos estatais, devendo ser

substituída a expressão separação dos poderes do Estado pela locução

separação das funções do Estado, na lição de Dias:

Em face dessas idéias, também acatamos a doutrina da existência de um poder único do Estado, que se espraia sobre os indivíduos pelo exercício das suas três fundamentais funções jurídicas, a executiva, a legislativa e a jurisdicional. O Estado deve ser concebido como ordenação de várias funções atribuídas a órgãos diferenciados, segundo a previsão das normas constitucionais que o organizam juridicamente. O que deve ser considerada repartida ou separada é a atividade e não o poder do Estado do que resulta uma diferenciação de funções exercidas pelo Estado por intermédio de órgãos criados na estruturação da ordem jurídica constitucional, nunca a existência de vários poderes do mesmo Estado (DIAS, 2004, p.70).

A importância de tal diferenciação apresenta-se no contexto processual,

que, na instrumentalidade, reconhece ao magistrado poderes suprapartes,

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conceito que, substituído pela idéia de função judiciária, possibilitaria maior

participação dos destinatários do provimento na dinâmica processual.

1.3 – O Estado de Direito Para a superação do dogma absolutista, o Iluminismo desmistifica a

origem divina do poder, legitimando a soberania estatal pela vontade do povo.

Nesse momento histórico, o Estado passa a ter limites à sua atuação,

podendo ser demandado pelo cidadão em caso de descumprimento de

garantia pública, sendo, assim, um Estado limitado pelo Direito.

A expressão “Estado de Direito” tem origem alemã, e seu conceito

sofreu modificações históricas, como “Estado da razão” para “Estado liberal

de direito”, noticia Canotilho:

Esta palavra – Rechtsstaat − , isto é, Estado de direito, aparece no início do século XIX como uma dimensão da discutida “via especial” do constitucionalismo alemão. Pretendia-se com isso significar que o constitucionalismo alemão se situava entre as propostas constitucionais do chamado “constitucionalismo da restauração” (paradigma: Carta Constitucional de Luis XVIII, de 1812) com o seu princípio estruturante – o princípio monárquico – e o “constitucionalismo da revolução” com o seu princípio, também estruturante, da soberania nacional (ou popular). Inicialmente, o Estado de direito começou por ser caracterizado, em termos muitos abstratos, como “Estado da razão”, “Estado limitado em nome da autodeterminação da pessoa”. No final do século, estabilizaram-se os traços jurídicos essenciais deste Estado: o Estado de direito é um Estado liberal de direito. Contra a idéia de um Estado de Polícia que tudo regula e que assume como tarefa própria a persecução da “felicidade dos súditos”, o Estado de direito é um Estado Liberal no seu verdadeiro sentido. Limita-se à defesa da ordem e segurança pública (“Estado polícia”, “Estado gendarme”, “Estado guarda noturno”), remetendo-se os domínios econômicos e sociais para os mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência. Neste contexto, os direitos fundamentais liberais decorriam não tanto de uma declaração revolucionária de direitos, mas do respeito de uma esfera de liberdade individual. Compreende-se, por isso, que os dois direitos fundamentais – liberdade e propriedade (Freiheit und Eigentum) – só pudessem sofrer intervenções autoritárias por parte da administração quando tal fosse permitido por uma lei aprovada pela representação popular

22

(doutrina da lei protetora dos direitos de liberdade e de propriedade e doutrina da reserva de lei) (CANOTILHO, 2003, p. 96-97).

A concepção inicial de Estado da razão baseava-se em um governo

segundo a vontade racional geral, com o objetivo de se alcançar o melhor

para todos os indivíduos, preservando-se a vida em comum das pessoas.

Trouxe como características a rejeição da idéia do Estado como criação

divina, e o acolhimento de comunidade a serviço do interesse de todos os

indivíduos, com garantia de liberdade individual. A organização do Estado

deveria observar princípios racionais, com o reconhecimento de direitos

básicos de cidadania e a independência dos juízes. O princípio da divisão de

poderes é adotado como distribuição de competências entre as diversas

forças políticas do Estado, aponta Dias (2004, p. 95).

Esclarece o mesmo autor que os princípios do Estado de Direito,

sedimentados no Século XX, estariam assentados no império da lei,

entendida como expressão da vontade geral e emanada da função legislativa,

exercida com representantes do povo, na divisão das funções do Estado, na

legalidade da administração pública e no enunciado dos direitos e liberdades

fundamentais. Assim, o Estado de Direito é aquele no qual o Estado se

submete a um regime de direito, segundo o qual suas atividades são regidas

por um conjunto de regras de natureza diversa, umas destinadas a preservar

a liberdade dos indivíduos, outras estabelecendo previamente as vias e meios

que podem ser empregados para a realização dos fins do Estado. Com

anteparo em Carré de Malberg (1948, p. 452-453), conclui o autor que o

Estado de Direito é aquele que prescreve regras relativas ao exercício de

funções diretivas pelo Estado e assegura aos indivíduos o direito de atuarem

perante um órgão jurisdicional, com o propósito de obterem a anulação ou a

revogação dos atos estatais que os tenham atingido, sendo indispensável o

direito de ação (DIAS, 2004, p. 96-97).

A pesquisa sobre a citação pessoal e válida, como pressuposto de

existência do procedimento em contraditório, somente pode ser empreendida

23

no contexto do Estado de Direito, em que o direito de ação e o direito de

defesa podem ser exercidos dentro de um espaço procedimentalizado no

devido processo.

1.4 – O Estado de Direito Liberal e Social

Observa-se que, durante as etapas históricas de desenvolvimento do

Estado de Direito, buscou-se uma centralização de relações de poder no

âmbito jurisdicional, sendo necessário o estudo dos modelos liberal e social

para a compreensão do tema pesquisado, em uma visão democrática.

A concepção liberal, nascida dos despojos do Absolutismo, preocupou-

se em trazer o maior leque possível de liberdades fundamentais ao cidadão e

aprisionar o Estado nos grilhões da autonomia privada, reflexo óbvio da

superação do sistema anterior, que concentrava todo o poder na figura do rei.

Deve-se a tal ideário o nascimento dos direitos e garantias individuais,

que tanto revolucionaram a atuação estatal, submetida a limites e a

observância de procedimentos, reduzindo a sanha da persecução penal.

O Juiz Liberal deveria ser o fiscal desse auto-limite estatal, zelando pela

observância de um processo penal de acordo com as liberdades públicas

individuais, com a doutrina liberal determinando a estrita observância da Lei,

de vez que, emanada do povo pela via representativa, materializava a

vontade popular, tão desprezada no Absolutismo.

Teoricamente idílicos, logo se percebeu que os ideais da igualdade,

fraternidade e liberdade não bastaram para trazer à realidade social uma

efetiva distribuição de riqueza a todos. Ademais, o Direito nunca se exerceu

por fórmulas político-idealistas, cuja adição de elementos fáticos levasse

matematicamente ao resultado esperado. O estudo subjetivo das questões

24

postas sempre demandou interpretação racional, apesar das tentativas de se

sacralizar a lei no curso da história humana.

O espaço de poder deixado pela decaída nobreza foi ocupado pelo

poder econômico capitalista, manejado pela burguesia. As conquistas

constitucionais e legais ficaram restritas ao campo formal. Superada a

ditadura do sangue, chegou-se à ditadura do capital. A ascendência social

não demandava mais o parentesco, mas a acumulação de riqueza. O cidadão

podia almejar a melhoria de sua condição, mas a desigualdade continuou

sendo a perspectiva real.

Com nova crise instaurada, o Estado se obrigou a deixar a postura

absenteísta, buscando o bem comum através do exercício de novas políticas

que, pelo seu caráter positivo e atuante, poderiam trazer a satisfação social

demandada, modelo denominado social, ou do bem-estar social ou Welfare

State.

Esse modelo de Estado acarretou inovações ao introduzir direitos

sociais, disciplinando o trabalho individual massacrado pelo capital, prevendo

o adimplemento de melhorias, como o exercício de férias, recebimento de

horas extras, saúde pública e previdência.

Em troca, o Estado Social exige maiores poderes (ou rede de relações

de poder) para possibilitar o exercício de tais políticas, saindo da condição

imposta pela doutrina liberal. O Juiz Social espelha tal concepção, porquanto

o conteúdo subjetivo das decisões judiciais é alargado, facultando-lhe a

presidência do processo com poderes sobre as partes, que, submetidas ao

seu alvedrio, devem-lhe obediência disciplinar, convertendo o provimento

final, se absolutório, numa indulgência ou perdão estatal. Atua o magistrado

por concepções divinatórias, em postura paternal, na qual a jurisdição é

oferecida como um presente, não como uma obrigação funcional.

Para exercer tal função, a doutrina tradicional leciona que o Estado-

Jurisdição deve se utilizar do processo, como instrumento, para aplicação do

direito ao caso concreto.

25

A doutrina social açambarca, sociologicamente, a concepção de poder

aqui debatida. O desenvolvimento do processo se dá nos moldes industriais,

com a observância de rotinas típicas da burocracia e padronização de atos

sem análise específica do debate processual, o que dificulta uma visão

garantista. As partes submetem-se à vontade jurisdicional sem

questionamentos, face às inúmeras relações de poder que suprimem o

exercício de direitos fundamentais de defesa ampla, na medida em que se

recepciona um desenvolvimento autoritário do que se considera

tradicionalmente Processo.

Na campo penal, as repercussões são atentatórias aos direitos e

garantias fundamentais do cidadão. Considera-se o Direito Penal como via

primordial de controle da criminalidade, tipificando-se inúmeras condutas a

cujos bens jurídicos correspondentes demandariam proteção plena por outros

ramos do Direito. Utilizam-se de tipos penais abertos e em branco,

atentatórios do princípio da legalidade democrática, bem como, em inúmeros

casos, desproporcionalizando a aplicação da pena, punindo-se com

severidade condutas irrelevantes ou de menor potencial ofensivo.

O modelo de Estado social está em seus estertores. Não cumpre o seu

anunciado pacto social, visto que o aumento da rede de poder não reduziu a

desigualdade nem substancializou o bem comum. A jurisdição se tornou

burocrata e repetitiva, encastelada na visão autoritária. Urge a reestruturação

de todo o ordenamento jurídico em uma nova concepção, que possa superar

as concepções liberais e sociais, e não apenas aperfeiçoá-las.

1.5 – O Estado de Direito democrático constitucional

26

Com o avanço da estruturação conceitual do Estado de Direito, surge o

Constitucionalismo, ou a Lei Magna, que disciplina todo o ordenamento

jurídico limitador do poder estatal. Nesse sentido, Pereira assevera:

A Constituição, nesse ambiente, representa, pois, o documento catalisador dos ideais e das exigências modernas no sentido de garantir a racionalização da disciplina do poder – sua desmistificação, estruturação, regulamentação e controle – e, via de conseqüência, a garantia do espaço de desenvolvimento do indivíduo – unidade ética por excelência – notadamente pela declaração de seus direitos fundamentais. (PEREIRA, 2001, p. 89).

O Estado constitucional moderno não deve limitar-se a ser apenas um

Estado de Direito, mas Estado de Direito democrático, compreendido como

uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do “direito” e do

“poder” significa que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em

termos democráticos, sendo o princípio democrático uma das traves mestras

do Estado constitucional, pois o poder político deriva do poder dos cidadãos

(CANOTILHO, 2003, p. 98).

Com isso, modifica-se o conceito de soberania inerente ao Estado. A

legitimação dos atos estatais encontra justificação no fundamento dos direitos

do povo, único destinatário da atividade estatal, e na consciência política

popular como elemento de sustentação da atuação do Estado. A soberania é

colocada como poder popular, destacada do Estado e dos governantes. E o

povo tem a titularidade processual e indelegável de construir, modificar e até

destruir o Estado e a ordem jurídica, afirma Leal (2005, p. 49).

No dizer de Frankenberg, as constituições de uma república

democrática legitimam o poder político com o recurso da soberania popular,

sendo que “o povo, e ninguém além do povo, deve se responsabilizar,

finalmente, por todas as normas e decisões que surgem com a prerrogativa

de obrigatoriedade geral” (FRANKENBERG, 2007, p. 41).

E, ao se considerar o sistema jurídico-normativo brasileiro,

considerando-se que o Estado de Direito e o Estado Democrático são

27

princípios atinentes ao Constitucionalismo, a conclusão é a de que a

Constituição Brasileira adota tais conteúdos, com a participação ostensiva do

povo na resolução dos problemas nacionais, como assevera Dias:

Sendo assim, consideramos que a dimensão atual e marcante do Estado Constitucional Democrático de Direito resulta da articulação dos princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito, cujo entrelaçamento técnico e harmonioso se dá pelas normas constitucionais. Para se chegar a essa conclusão, impõe-se perceber que a democracia, atualmente, mais do que forma de Estado e de governo, é um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo, daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos, ao se declarar que todo o poder emana do povo (por exemplo, parágrafo único, do art. 1º, da Constituição brasileira; arts. 3º e 10º da Constituição portuguesa; e art. 20 da Lei Fundamental de Bonn, como era conhecida a Constituição da República Federal da Alemanha). Como povo, há de se entender a comunidade política do Estado, composta de pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados como os governantes, pois estes são provenientes do povo, sejam quais forem suas condições sociais, todos obedientes às mesmas normas jurídicas, sobretudo à Constituição, que é o estatuto maior do poder político (DIAS, 2004, p. 102).

O aumento da participação popular importa em uma maior atuação da

comunidade política, em que o conceito de cidadania advém não mais do

parentesco ou do local de nascimento, mas da titularidade de direitos

reciprocamente reconhecidos, comenta Cattoni de Oliveira:

Pode-se reconstruir assim a compreensão normativa do Estado de Direito, do Estado Constitucional, como institucionalização jurídica de canais de comunicação público-política sobre razões éticas, morais, pragmáticas e de coerência jurídica. É precisamente esse fluxo comunicativo que conformará e informará o processo legislativo de justificação e o processo jurisdicional de aplicação imparcial do Direito democraticamente fundado, bem como uma Administração Pública descentralizada e participativa. Garante-se, desse modo, a abertura para uma esfera pública mais ampla, em que atuam os movimentos sociais em geral. Com isso, também, o conceito de Estado de Direito, enquanto organização política moderna, não pode mais ser pensado a partir de um conceito naturalizado de nação ou de nacionalidade, via cor, raça, ancestrais comuns ou mesmo lugar de nascimento comuns (na tradicional distinção entre jus sanguinis e jus soli), mas a partir de um conceito contemporâneo de cidadania, não mais compreendida como condição daquele que seria membro natural de uma comunidade ética e política concreta, que compartilharia um mesmo e único ideal de vida boa,

28

mas como sinônimo de titularidade de direitos reciprocamente reconhecidos e que se garantem através dessa institucionalização de procedimentos, capaz de possibilitar a formação democrática da vontade coletiva, a formação imparcial de juízos de aplicação jurídico-normativa e a execução de programas e de políticas públicas, sem impor um único modelo de vida boa, embora os mesmos devam garantir aos cidadãos, no exercício de sua autonomia pública, a possibilidade de realização de um projeto cooperativo de fixação de condições de vida recorrentemente mais justas (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 178).

Para a legitimação do Estado democrático constitucional, mister que se

elabore um princípio de democracia, que esclareça como essa cidadania

participativa pode ser implementada, com a posterior aferição de sua

incidência na teoria processual, para que se possa analisar o tema da citação

pessoal e válida no procedimento em contraditório.

1.6 – O Princípio Democrático

O conceito de democracia vem recebendo os mais diferentes

significados ao longo da história, sendo certo que hodiernamente a sua

delimitação é estudada por vários jusfilósofos, que, para rotulá-la, não se

restringem aos aspectos de votação popular e princípio da representação.

Quanto a esse particular, foi objeto da nossa pesquisa quando da

elaboração de dissertação de Mestrado1 a concepção do direito entre

faticidade e validade de Jürgen Habermas, marco teórico que norteia as

digressões sobre o estudo da democracia.

Qualquer Estado que elabore um ordenamento jurídico necessita

demonstrar a sua legitimidade, justificação da norma em relação à

comunidade, ressalta Jacques (2005, p. 04). Tal justificação, emprestada pelo

caráter divino, religioso, pela força e pelo poder, pela liberdade e igualdade,

1 Publicada na obra Da citação por edital do acusado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004.

29

pela necessidade de maior território espacial, enfim, pelos mais diversos

motivos, acabou imposta às massas pelos ocupantes do poder.

A teoria discursiva postula legitimar o direito não pelo poder político,

mas pela aceitação de todos os membros da comunidade política:

A idéia do Estado de direito exige que as decisões coletivamente obrigatórias do poder político organizado, que o direito precisa tomar para a realização de suas funções próprias, não revistam apenas a forma do direito, como também se legitime pelo direito corretamente estatuído. E, no nível pós-tradicional de justificação, só vale como legítimo o direito que conseguiu aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade. (HABERMAS, 2003, p. 172)

Tal problematização é trazida com acuidade por Moreira:

Com a introdução das características do Direito Moderno, a saber, a positividade, a legalidade e o formalismo, fez-se uma exigência de fundamentação que não pôde ser cumprida pelas etapas anteriores do Direito. Ou seja, a exigência de fundamentação do Direito não pode firmar-se nem a partir do sagrado, nem do tradicional. No entanto, essa exigência só pode efetuar-se quando a consciência moral atinge um nível pós-tradicional, pois é aqui que pela primeira vez surge a idéia de que as normas jurídicas são suscetíveis a críticas, por conseguinte, são falíveis. A exigência da universalidade das normas como critério de sua aceitabilidade pressupõe o surgimento do homem como sujeito de direito e que, em princípio, todos os homens sejam livres e iguais, e que são esses sujeitos os criadores do Direito enquanto tal. (...) Progressivamente, porém, o Direito converte-se em instrumento de dominação política. No entanto, é nesse momento que o Direito se torna mais carente de fundamentação, uma vez que esse processo o acompanha desde a passagem de um Direito tradicional para um Direito pós-tradicional, de modo que esse esforço de fundamentação pode ser caracterizado como a expressão de um acordo (consenso) racional de todos os cidadãos. (MOREIRA, 1999, p. 31-34)

Busca, pois, Habermas a teorização do Estado Democrático de Direito,

numa total inversão do princípio da representação e quase retorno à

democracia grega. A legitimidade e justificação decorrem do aumento da

esfera particular sobre a pública, buscando uma verdadeira autolegislação, na

qual o cidadão passa da posição inerte da democracia tradicional para uma

30

postura ativa e dialética, visto que, como co-autor do ordenamento, a

legitimidade é inferida pelo próprio indivíduo.

E aqui o próprio Habermas explicita o conteúdo do princípio discursivo,

base para a construção da democracia deliberativa:

A idéia de autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso introduzi um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas em geral – constitutivo para a forma jurídica enquanto tal – termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equipar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto o princípio da democracia, se constituem de modo co-originário.(HABERMAS, 2003, p. 158).

E mais:

Na visão do princípio do discurso, é necessário estabelecer as condições às quais os direitos em geral devem satisfazer para se adequarem à constituição de uma comunidade de direito e que possam servir como medium para a auto-organização desta comunidade. Por isso, é preciso criar não somente o sistema dos direitos, mas também a linguagem que permite à comunidade entender-se enquanto associação voluntária de membros do direito iguais e livres. (HABERMAS, 2003, p. 146)

Para atender a tal problematização, Habermas teve que passar por

várias etapas, assim resumidas por Torres (2005, p. 26):

A fim de fundamentar um sistema de direitos que leve em conta tanto à autonomia privada quanto à autonomia pública dos cidadãos, integrando tal sistema os direitos que os cidadãos devem reconhecer reciprocamente, se desejam regular sua convivência pelo direito positivo, Habermas entende

31

que se deve partir primeira da perspectiva dos não participantes, ou seja, dos destinatários. Nesse sentido é que desenvolveu uma análise dos direitos subjetivos, evidenciando a relação paradoxal decorrente do fato da legitimidade provir da legalidade; criticou o conceito de autonomia desenvolvido pelo direito natural racional clássico, que não entendia haver uma relação de complementariedade entre direitos humanos e soberania popular, complementariedade esta vinculada a uma leitura discursiva do direito; e ressaltou a ausência de subordinação do direito à moral, evidenciado que ambos são espécies normativas que pretendem regular a ação, sendo especializações do “princípio do discurso” na medida em que este expressa os pressupostos pós-convencionais de justificação já presentes na linguagem.

Para Habermas, a legitimação do Direito na sociedade pós-moderna

deve superar a tensão existente entre a soberania popular e os direitos

humanos, a relação entre Direito e moral e entre a facticidade e a validade.

No tocante à soberania popular e os direitos humanos, esclarece

Torres:

Dessa forma, a tensão entre soberania popular e direitos humanos é interpretada por Habermas, a partir da teoria do discurso, de uma perspectiva pragmática, através da análise das condições de possibilidade de formação democrática da vontade comum, sendo que, na medida em que os participantes do discurso levantam pretensões de validade, colocando-se como autores das normas que regerão seu viver, estas passam a estar apoiadas não em coerção, mas sim na força do melhor argumento (...) A proposta de Habermas, de co-originariedade entre soberania popular e direitos humanos, passa pela institucionalização, pelo sistema jurídico, dos mecanismos que permitam aos destinatários dos direitos serem ao mesmo tempo seus autores, ou seja, dos procedimentos que possibilitam a realização da soberania popular. Dessa forma, os direitos de liberdade subjetiva de ação não podem nem ser impostos ao legislador desde fora, muito menos podem ser instrumentalizados como requisito funcional para a realização de seus fins. (TORRES, 2005, p. 18)

O próximo passo é distinguir o Direito da moral, pois a última não pode

legitimar o primeiro. Os dois devem ser entendidos como tipos de normas

distintas e complementares umas das outras, sendo, assim, esferas

normativas distintas (Torres, 2005, p. 19).

32

Parte-se do princípio do discurso, que pode ser operacionalizado por

distintas regras de argumentação, variando de acordo com os tipos de

discurso, por exemplo: éticos, morais ou pragmáticos. Quando se trata de

questões morais, o princípio do discurso se especializa no princípio da

universalização, desempenhando, então, o princípio moral o papel de uma

regra de argumentação (Torres, 2005, p. 21)

Ressalta a mesma autora que a posição de Habermas em “Direito e

Democracia, entre facticidade e validade” diferencia-se radicalmente daquela

de “Consciência moral e agir comunicativo”, em que a distinção entre princípio

D (princípio discursivo) e princípio U (princípio da universalização), que se

refere ao discurso moral, não está de todo clara (Torres, 2005, p. 21).

Assim: O Direito possui um caráter funcional que a moral não tem, porque aquele requer a tomada de decisões e a implementação das mesmas em um nível institucional. Essa necessidade de chegar a uma decisão, e ao mesmo tempo fazê-lo legitimamente, evidencia a tensão entre facticidade e validade. A moral opera no jogo interno de argumentação, não tendo por isso que institucionalizar as decisões que são tomadas. Ela pretende a aceitabilidade universal das normas que se submetem ao princípio moral, e pretende que esta aceitabilidade se dê na discussão. (Torres, 2005, p. 24)

No âmbito da teoria da ação comunicativa, a moral universaliza-se,

como explica Freitag:

Por vias discursivas, isto é, à base de um diálogo empenhado na argumentação racional, convincente, à busca de entendimento e isenta de qualquer forma de violência interna e externa, a comunicação pode ser restabelecida no quotidiano, desde que as pretensões de validade, postas em questão, tenham sido reafirmadas e revalidadas discursivamente. Noutras palavras: (1) os locutores convencem seus parceiros da veracidade de sua fala, fazendo-a coincidir com suas ações; (2) os argumentos verdadeiros passam a prevalecer, quando eles fundamentam, de forma convincente, as proposições feitas; e (3) as normas são revalidadas, quando elas são compreendidas, respeitadas e aceitas por todos os integrantes de uma situação dialógica como sendo justas e boas. (FREITAG, 2005, p. 191).

33

A diferenciação entre princípio da universalização e princípio discursivo

é melhor esclarecida por Galuppo:

Enquanto o princípio do discurso refere-se aos procedimentos de elaboração de uma norma, o princípio da universalização refere-se as conseqüências de sua assunção. Esse sentido, universalização significa aqui exatamente o que o termo significava no imperativo categórico kantiano: no plano da justificação, só se pode admitir que se possui um direito caso se reconheça que outra pessoa, na mesma situação, poderia alegar esse mesmo direito contra qualquer um: de outro lado, só se pode admitir que outra pessoa possua um dever caso se reconheça que se tem o mesmo dever para com ela. Mas, ao contrário de Kant, em Habermas esse princípio implica um procedimento dialógico de produção de normas jurídicas. Esse procedimento refere-se ao princípio do discurso e diz que uma norma só é válida se puder contar com a aprovação de todos os envolvidos que participem da elaboração da norma. (GALUPPO, 2002, p.139).

Buscando conceituar a sua concepção de democracia, Habermas

(2004, p. 279-288) perfaz uma crítica aos modelos anteriores, que define

como modelo liberal e modelo republicano.

Na concepção liberal, determina o status do cidadão a medida dos

direitos individuais em face do Estado e dos demais cidadãos, direitos esses

subjetivos, de natureza negativa, que, se exercidos nos limites impostos pela

lei, podem controlar o poder estatal. A lei, aqui, é embasada em um direito

superior da razão ou revelação transpolítica.

Na concepção republicana, o status do cidadão é fixado em liberdades

positivas, consistentes em direitos da cidadania, de participação e

comunicação política, exercendo o controle estatal através do processo

político. Portanto, os direitos nada mais são do que determinações da vontade

política prevalecente.

Na teoria da democracia que defende, estabelece um modelo

procedimental de política deliberativa, no qual utiliza os pontos positivos das

concepções liberal e republicana, de maneira nova. Assim, o processo político

de formação da opinião e da vontade tem posição central, sendo os direitos

fundamentais e princípio do Estado de Direito a institucionalização das

34

condições de comunicação do procedimento democrático. Essa

intersubjetividade dos processos de entendimento mútuo verifica-se, de um

lado, na forma institucionalizada de aconselhamentos em corporações

parlamentares e, de outro, na rede de comunicações formada pela opinião

pública de cunho político. A formação de opinião pode desembocar em

decisões eletivas institucionalizadas e em resoluções legislativas pelas quais

o poder criado por via comunicativa é transformado em poder

administrativamente aplicável. Aqui, a distribuição de poder é modificada: o

poder socialmente integrativo da solidariedade desdobra-se sobre opiniões

públicas autônomas e espraiadas e em procedimentos institucionalizados por

via jurídico-estatal para a formação democrática da opinião e da vontade,

devendo ainda ser capaz de afirmar-se e contrapor-se aos poderes

econômico e administrativo.

A respeito, esclarece Rochlitz:

O direito é um meio que permite aos cidadãos, sujeitos de direitos, fazer valer eficazmente seus interesses legítimos, no caso de apoderamento por parte do mercado, ou do Estado. São eles, aliás, que - através do poder comunicativo que manifestam no espaço público -, exercem influência decisiva sobre as orientações políticas de sua sociedade ou de seu país, qualquer que seja ele. Esta redistribuição de cartas permite a Habermas não mais opor os sujeitos sociais a um sistema político que conta com a lealdade das massas, mas ancorar a democracia a uma sociedade civil de cidadãos que conservam a plena posse de sua soberania política. Sem abandonar os temas críticos de seus escritos anteriores, Habermas encontra, assim, meios para conceber um potencial crítico de certa maneira institucionalizado na democracia moderna. O direito e a Constituição oferecem, em princípio, aos cidadãos, os meios para se defenderem contra qualquer privação abusiva de sua liberdade. (ROCHLITZ, 2005a, p. 20).

Aragão assim define a correlação entre os princípios discursivo, da

democracia deliberativa e da universalização:

35

Seria fundamental assegurar procedimentos de deliberação pública que efetivamente garantissem igualdade de condições para a participação no debate público. (...) São esses procedimentos que formam as condições de possibilidade de uma democracia deliberativa, onde a lei seja o resultado de uma discussão e decisão gerais. Habermas acredita que, dessa forma, é possível criar uma vontade política racional, através da argumentação e da negociação públicas, em que o interesse mais geral seja estabelecido de modo imparcial. (...) A ética do discurso parte do estabelecimento de um princípio moral, o princípio da universalização ou U, cuja formulação é a seguinte: Toda norma válida tem que preencher a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo, possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos. (...) O conteúdo da ética do discurso, portanto, se esgota em dois princípios, o de universalização, que é uma regra de argumentação, e uma idéia fundamental da teoria moral, a saber, o próprio princípio da ética do discurso ou D, que se exprime na seguinte formulação: Toda norma válida encontraria o assentimento de todos os concernidos, se eles pudessem participar de um discurso prático. (ARAGÃO, 2002, p. 192-193).

A respeito, complementa Moreira:

Os membros de uma dada comunidade jurídica têm de se atribuir direitos para que possam se constituir membros de uma comunidade jurídica autônoma. Assim, a idéia de que o ordenamento jurídico se constitui enquanto uma instância externa aos cidadãos, heterônoma, cede lugar à idéia de uma produção efetiva de seres livres que têm, no ordenamento jurídico, a manifestação de sua vontade livre, ou seja, o Direito é, ao mesmo tempo, criação e reflexo da produção discursiva da opinião e da vontade dos membros de uma dada comunidade jurídica. (MOREIRA, 1999, p. 157).

A importância da idéia habermasiana para o estudo dos modelos de

Estado e de Direito é bastante singular, na medida em que descentraliza a

rede de relações de poder, retirando-o da organização estatal e dividindo-o

com os cidadãos, os quais passam da posição de recebedores de benesses à

de atuantes ativos no processo político.

A relação da autonomia privada e pública é modificada. No Estado

Liberal, a autonomia privada era sagrada. O Estado Social rompeu com o

particular, legitimando a autonomia pública e estabelecendo uma antinomia

entre ambas. Para HABERMAS (2004, p. 301), a relação deve ser de co-

originalidade. A autonomia privada dos cidadãos pressupõe direitos

36

fundamentais que a assegurem, que também é o medium para a

institucionalização jurídica das condições sob as quais eles podem fazer uso

da autonomia pública ao desempenharem seu papel de cidadãos do Estado.

Portanto, elas se pressupõem mutuamente.

A respeito, esclarece Rochlitz:

A autonomia privada das pessoas, suas liberdades individuais ou negativas só podem ser garantidas por meio de um direito que provenha de liberdades de outro tipo, liberdades do cidadão que são positivas e que repousam sobre um entendimento racional entre sujeitos de direito solidários, mas que inversamente, só podem ser exercidas por sujeitos beneficiários de uma autonomia privada. (ROCHLITZ, 2005b, p. 159).

E complementa Audard:

A justificação pública supõe, pois, um elemento novo intersubjetivo em relação ao consentimento simples: a existência de um verdadeiro debate público em que cada cidadão pode apresentar suas razões a todos os outros, e um acesso igual de todos aos processos de deliberação e de decisão, que acabam por desempenhar o papel de um critério transcendente de justiça. (AUDARD, 2005, p. 82).

Elabora, assim, Habermas um princípio da democracia, vazado nos

seguintes termos, consoante Galuppo:

O princípio democrático prescreve que só podem pretender validade legítima as leis que puderem contar com o consentimento de todos os cidadãos em um processo discursivo de legislação que, por sua vez, foi constituído legalmente. O termo cidadão, contido no princípio, significa que os atores são politicamente circunscritos no caso do direito; e a expressão constituído legalmente significa que o direito, como instituição, pré-seleciona que argumentos ele considera relevantes, podendo inclusive considerar relevantes outros argumentos que não os morais, e de que modo eles devem ser apresentados e criticados. (GALLUPO, 2002, p. 154/155):

E, concluindo, Galuppo:

37

Só se pode reconstruir discursivamente o Estado Democrático de Direito e o direito que lhe é próprio, bem como sua legitimidade, se, no caso limite, presumir-se o Sistema de Direitos, cuja existência depende da condição de se distribuir igualmente para todos os cidadãos os direitos de participação no processo de formação da opinião e da vontade pública, pois o conceito de lei explicita a idéia de tratamento igual já encontrada no conceito de direito: na forma de leis genéricas e abstratas, todos os sujeitos vêm ao encontro dos mesmos direitos. (GALLUPPO, 2002, p. 207).

Com isso, a concepção de poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário)

resta superada, e o conceito de função estatal é remodelado pelo aumento da

complexidade do Estado; ao lado da atividade típica convivem atributos das

outras funções estatais. No espaço habermasiano, o Estado passa a girar em

torno do indivíduo, para o qual existe e se estrutura, visando à instituir formas

efetivamente democráticas de exercício da dialética discursiva.

Nesse aspecto, Leal objeta uma crítica a Habermas, que aumenta o

espaço teórico do Estado Democrático de Direito:

Percebe-se que a fundamentação ética (histórica) ou a fundamentação dita racional (moral-principiológica) em Habermas está a exigir suporte jurídico-normativo, porque o agir só se legitimaria pela universalização do modelo legal de produção constitucional plebiscitária de aplicação do direito, e não pela visão pessoal das individualidades sobre um direito teorizado que suscitasse confirmação ou correção pela sensibilidade ou adequabilidade judicante adjacente aos conteúdos da lei. No direito democrático, os princípios concorrentes de atuação do agir são conjecturáveis a partir da lei e não apesar da lei, daí a regência do due process no eixo construtivo da constituição formal de direitos fundamentais. Nenhum sistema jurídico, ao contrário do que imaginam Dworkin, Rawls, e Günther, adquire integridade, eqüidade ou adequabilidade pelos conceitos de justiça, igualdade e imparcialidade advindos do julgador, de vez que, no Estado de Direito Democrático, é o Povo que faz e garante as suas próprias conquistas conceituais pelo processo constitucional legiferante do que é devido (garantido, assegurado), não o juiz que é funcionário do Povo. ... A jurisdição não é a atividade jurídico-resolutiva e pessoal do juiz ou dos agentes do Estado, mas o próprio conteúdo da lei conduzido por aqueles agentes indicados na lei democrática. Tanto a parte como o juiz exercem, nos procedimentos, jurisdição, guardadas as características de suas atuações legais de articulador-construtor (parte) e aplicador-julgador (juiz), sendo que ambos são figurantes da estrutura procedimental que é o espaço democrático sempre aberto (direito de petição) de instalação estrutural do contraditório, da isonomia e da ampla defesa como direitos constitucionalmente fundados

38

em nome do Processo institucional de discussão, afirmação e produção jurídica permanente. ... O juiz ou o decididor, nas democracias, não é livre intérprete da lei, mas o aplicador da lei como intérprete das articulações lógico-jurídicas produzidas pelas partes construtoras da estrutura procedimental. O procedimentalismo democrático de Habermas só poderia ser factível pelo modelo e estrutura espaço-temporal regida pelo Processo como instituição constitucionalizada jurídico-principiológica, e não por quaisquer interações comunicativas procedimentais ocorrentes na base cultural de produção do direito, ainda que constitucionalmente permissíveis. (LEAL, 2001, p.13-25).

Portanto, ao adotar-se tal paradigma para a Ciência Jurídica, todo o

ordenamento legislativo deve ser reinterpretado, buscando-se leituras que

atentem para a vinculação do princípio discursivo à forma jurídica.

1.7– Democracia e Processo

A aplicação do princípio democrático ao modelo estatal que se defende

no presente trabalho impõe uma total reformulação do modo de ser da

Ciência Jurídica e, logicamente, da Ciência Processual. O conceito de

Processo Constitucional deve ser revisitado.

No campo processual, deve-se perquirir acerca de uma principiologia

com conteúdos adequados a discursividade, visando ao enfrentamento da

polêmica posição da citação pessoal nos pressupostos processuais, assuntos

aos quais nos dedicaremos a seguir.

1.7.1 – O Processo Constitucional no contexto democrático

39

O raciocínio aqui desenvolvido repercute no processo constitucional,

com a reformulação dos conceitos de jurisdição e devido processo.

O processo constitucional visa à tutelar o princípio da supremacia

constitucional, protegendo os direitos fundamentais, com várias ações e

recursos compreendidos nessa esfera protecionista e garantista, sendo,

portanto, uma metodologia de garantia, com instituições estruturais na

jurisdição, ação e processo, para a efetivação de direitos fundamentais,

comenta Baracho (2006, p. 49).

O mesmo autor esclarece o sentido das várias nomenclaturas utilizadas

para definir o tema:

As discussões sobre processo constitucional ou jurisdição constitucional e justiça constitucional, em certos momentos, foram usadas como sinônimas. Com o tempo, aparece a nova disciplina que é considerada como processual, sob a denominação de Processo Constitucional ou Direito Processual Constitucional, que para alguns seria uma disciplina processual. Entretanto o processo constitucional que usa a Constituição e o Processo não se afasta do Direito Constitucional, sendo que no levantamento de seu conteúdo prevalece a temática constitucional: jurisdição, garantias constitucionais, processo, órgãos constitucionais e sistemas de jurisdição constitucional (BARACHO, 2006, p. 49).

Assim, a noção tradicional de processo constitucional deve ser

reinterpretada, a fim de que se adapte a um conceito democrático, dando

origem a uma jurisdição constitucional, assim defendida por Cattoni de

Oliveira:

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a Jurisdição Constitucional deve referir-se primeiramente aos pressupostos comunicativos e às condições processuais para uma gênese democrática do Direito. Tal perspectiva não poderá reduzir-se a uma leitura meramente instrumental do processo legislativo, como sugerem os enfoques liberais da política, pois há que se levar explicitamente em conta o caráter normativo dos princípios constitucionais que justificam a legitimidade deste processo.

(...) Nessa perspectiva, a Jurisdição Constitucional deve garantir, de forma constitucionalmente adequada, a participação, nos processos constitucionais de controle jurisdicional de constitucionalidade da lei e do processo legislativo, dos possíveis afetados por cada decisão, em matéria

40

constitucional, através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio Processo Constitucional como garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos. Ao possibilitar a garantia dos direitos fundamentais processuais jurisdicionais, nos próprios processos constitucionais de controle judicial de constitucionalidade das leis do processo legislativo, a Jurisdição Constitucional também garantirá as condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos, pela aplicação reflexiva do princípio do devido processo legal, compreendido, aqui, como modelo constitucional do processo, a si mesma. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p. 259/260)

Nesse talante, os pronunciamentos emanados dos órgãos jurisdicionais

são atos estatais imperativos, que refletem manifestação do poder político do

Estado, que jamais pode ser arbitrário, mas constitucionalmente organizado,

delimitado, exercido e controlado conforme as diretivas do princípio do Estado

Democrático de Direito, esclarece Dias (2004, p. 86).

Portanto, a principiologia constitucional do devido processo impõe à

jurisdição atuação vinculada e limitadora.

A respeito, o ensinamento de Leal:

Ora, se assegurado o processo em texto democrático-constitucional, só nos restaria afirmar que o processo tem, na atualidade, como lugar devido de sua criação a Lei Constitucional (o devido processo constitucional como fonte jurisdicional da judicação e direito-garantia das partes), porque não há uma vontade superposta ou a-latere, subjacente ou obscôndita, valorativa ou corretiva que, por reconstrução cerebrina do intérprete, se arrojasse, por personalíssimas razões de costumes ou de justiça (norma fora do texto legal), a melhorar ou substituir a lei. (LEAL, 2001, p. 14-15).

Portanto, o devido processo constitucional jurisdicionaliza o

procedimento, concretizando-o e legitimando-o como estrutura que se destina

a habilitar processualmente o povo como feitor do direito e seu intérprete

originário e intercorrente, considera Leal (2005, p. 151).

Para tanto, o devido processo legal se concretiza no prolongamento do

Processo Constitucional, como referência da procedimentalidade, na garantia

41

da participação dos destinatários na formação do ato imperativo estatal,

complementa Dias (2004, p. 86).

Concluindo, o processo constitucional que aqui se explicita é aquele

que, através do devido processo legal, limita o poder político do Estado,

protegendo a liberdade do cidadão, notadamente quando do exercício da

função jurisdicional.

1.7.2 – A teoria da relação jurídica processual

O processo vem sendo entendido no Brasil como uma forma

instrumental de exercício do poder jurisdicional e meio para consecução das

funções judiciárias, limitando-se a aplicar o Direito ao caso concreto.

Adota a maioria dos juristas, especialmente os militantes na área

processual penal, a concepção da instrumentalidade da forma processual,

desenvolvida inicialmente por Oskar von Bülow, em obra que afirmou a

autonomia do processo em face do direito material: Teoria das Exceções

Processuais e dos Pressupostos Processuais (1868).

Os argumentos basilares de seu estudo são amplamente conhecidos: o

processo se desenvolve como uma relação jurídica pública entre três atores −

juiz, autor e réu −, com objeto e pressupostos de constituição e

desenvolvimento próprios; enquanto o direito material se encontra pronto e

acabado, a relação jurídica processual se desenvolve no tempo e no espaço

através da prática de vários atos; procedimento seria a parte visível da

relação processual, a marcha ou andamento do processo até a sentença final

(BÜLOW, 1964).

Aperfeiçoa-se o conceito de relação jurídica com a junção ao direito

subjetivo, assim esclarecida por Gonçalves:

42

Com Windscheid, o conceito de direito subjetivo deu origem ao de relação jurídica, já no sentido pronunciado por Occam. O antigo vinculum iuris aperfeiçoou-se como vínculo normativo que liga sujeitos, em dois pólos, passivo e ativo, atribuindo ao sujeito ativo o poder de exigir do sujeito passivo determinada conduta e impondo a este o dever de prestá-la. (GONÇALVES,1992, p. 76)

Nesse particular, observa-se a concepção autoritária de tal ideário, na

medida em que o autor estabelece uma relação de poder quanto ao réu,

nitidamente nos moldes alertados por Foucault.

1.7.3 – O processo penal na concepção da relação jurídica

No tocante ao processo penal, a teoria da relação jurídica entre

pessoas sempre foi de difícil aplicação. Entende Manzini que o processo

penal não é um processo de partes, mas de parte única, o imputado, assim

esclarecendo:

O processo penal, como processo próprio da justiça administrativa, é, se pode dizer assim, um processo de parte única (imputado), já que o acusador só é parte em sentido formal (isto é, quando se contrapõe ao imputado na atividade processual), sendo um órgão do Estado por sua característica imparcial, que faz valer sem dúvida uma pretensão do Estado mesmo, mas encaminhada a atuação do direito objetivo, por um interesse público, superior e não da parte (...) A ação do Ministério Público tem um só objeto, não o de obter em todo caso a condenação do imputado, senão de estabelecer a verdade acerca da imputação, com deveres e poderes funcionais que se inspiram no critério objetivo de justiça, e não em um interesse subjetivo, pessoal, sempre e necessariamente no conflito com a outra parte. O ofício e, portanto, o órgão, não tem fins próprios: exerce um conjunto de atribuições no exclusivo interesse aos fins do Estado, que não podem encontrar-se em contradição consigo mesmos. (...) Se o Ministério Público se convence de que é infundada a pretensão, tem o dever de cooperar com a defesa para obter uma decisão absolutória. (MANZINI, 1951, p. 116).

43

Também os estudiosos encontram diversas dificuldades para inserir, no

âmbito processual penal, a concepção tradicional de lide.

Sobre o conceito de lide, Leone (1951, p. 32-33) defendia que, no

processo penal, subsiste um conflito de interesses entre o direito subjetivo de

punir do Estado e o direito de liberdade do imputado, o que daria ao processo

penal o caráter contencioso.

Na visão de Tourinho Filho (1994, p. 13), o litígio penal seria sui

generis, pois, com o simples surgimento da pretensão punitiva, forma-se a lide

penal. O autor da conduta punível estaria obrigado a resistir à pretensão

estatal mesmo que não o quisesse, pois o Estado também tutela e ampara o

seu jus libertatis. A lide penal se perfaz pelo binômio direito de punir versus

direito de liberdade, com conotação pública.

A inserção da idéia de lide no processo penal foi uma tarefa que nem

seu teorizador conseguiu realizar. Aponta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

as três fases em que Francesco Carnelutti a desdobrou para cumprir tal

mister, acabando por se render à impossibilidade teórica.

Na versão carneluttiana original (1936, p. 40) ocorre a lide quando um

sujeito de um dos interesses em conflito encontra resistência do sujeito do

outro interesse, sendo, pois, um conflito de interesses qualificado por uma

pretensão resistida, ou insatisfeita. Portanto, pretensão é a exigência de

subordinação de um interesse alheio ao interesse próprio.

Assim:

Se o fim do processo penal é o acertamento da responsabilidade penal; se a responsabilidade penal supõe crime; se o crime é a violação de uma obrigação, não pode existir dúvida de que a essência do processo penal seja constituída pelo conflito de interesses entre o imputado e a parte lesada, a lide, portanto. (CARNELUTTI, 1936, p. 233)

44

Partia Carnelutti da premissa de que era necessário encaixar-se o

processo penal em uma teoria geral que açambarcasse a maioria dos

conceitos e institutos.

Esse conceito primevo não resistiu às críticas opostas, no sentido de

que a efetiva possibilidade de não ocorrer resistência alguma, com a

espontânea adesão do autor do crime, descaracterizava-o (Coutinho, 1998, p.

85).

Passa-se, então, a conceber-se o processo penal como intermediário

entre o processo contencioso e o voluntário, pois suas características o

aproximam ora de um ora de outro. Lide propriamente dita não há, sendo o

conteúdo do processo penal a verificação de uma pretensão penal ou

punitiva, verificação à qual se deve proceder também quando tal pretensão

não encontre uma resistência. O processo penal é visto com uma só parte (o

imputado), com o disparate de ter esta o interesse em ser punida, para liberar-

se do mal que cometeu, em face da finalidade da pena preventiva e

repressiva (Coutinho, 1998, p. 86-87).

Encaminha-se para a terceira posição, para uma unidade de interesses

no processo penal, que deixa de ser contencioso e passa ao caráter

voluntário. Não há conflito de interesses, porque o réu teria interesse em ser

apenado para sanar a desordem pessoal que o levou a delinqüir, mas, como a

escolha de autopunição é assaz difícil, a lei confia tal missão ao Ministério

Público, órgão que deve prover a punição dos culpados, a qual se concretiza

pelo órgão jurisdicional, através da sentença condenatória. Assemelha-se,

assim, ao processo civil de interdição (Coutinho, 1998, p. 107).

Portanto, o processo penal não mais pode ser conceituado com base na

idéia de lide. Isso porque visa à apuração da prática delitiva de acordo com o

devido processo legal pré-instituído, e não à condenação obrigatória do

acusado. Como é cediço, pode o Ministério Público, não obstante o princípio

da legalidade e obrigatoriedade, requerer a absolvição do acusado, finda a

instrução, vislumbrando o maior interesse social, que é a não-condenação do

45

inocente ou daquele contra o qual as provas não se apresentam suficientes.

Daí advém até a dificuldade de se considerar o Ministério Público parte, na

acepção instrumental.

Vários estudiosos tentam superar tal paradoxo. Sistematizando a

polêmica, veja-se o entendimento de Cintra, Grinover e Dinamarco:

Existe na doutrina forte tendência a negar a ocorrência de lide no processo penal, o qual seria, conseqüentemente, um processo sem partes. Argumenta-se com o fato de que não haveria dois interesses em conflito, mas dois diversos modos de se apreciar um único interesse, porque o interesse do Ministério Público é o de que se faça justiça, sendo a sua posição imparcial. Tal afirmação, levada a suas últimas conseqüências por aqueles que entendem inexistir processo quando não há lide, implicaria concluir que não há processo penal, mas procedimento administrativo. No tocante à exposição acima, quem afirmar a existência de lide penal dirá que a ação penal se destina à sua justa composição e que aquela ora se caracteriza como lide por pretensão contestada (réu que opõe resistência à pretensão punitiva, defendendo-se) e ora como lide por pretensão meramente insatisfeita (nulla poena sine judicio). Diante dessa divergência doutrinária, nesta obra fala-se em controvérsia penal e não lide penal. (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1999, p. 256).

Nesse caso, considera Jardim (2001, p. 160-161) que, no processo

penal, a lide é um conteúdo acidental, uma vez que o elemento essencial do

processo é a pretensão, manifestada pelo autor em Juízo, exteriorizada pelo

pedido e delimitada pela causa de pedir ou imputação.

Oliveira (2002, p. 54-56) entende que o Estado, no processo penal, só

pode pretender a correta aplicação da lei penal e, portanto, fala-se em

pretensão punitiva, que se apresenta insatisfeita. No processo penal, não há

direito, mas sim dever, de ação, em face da obrigatoriedade de sua

propositura, no caso de ser pública, a cargo do Ministério Público. Portanto,

este não integra a relação processual (OLIVEIRA, 2002, p. 336-339). Adota o

mencionado autor a idéia de que o Ministério Público é parte na ação penal a

partir do momento em que se estabelece uma relação (ou situação jurídica)

46

processual, passando a ocupar uma posição processual de parte, e não

material, que exigiria parcialidade.

Para Coutinho (1998, p.137-138), a lide não pode ser considerada

conteúdo do processo penal. A sanção penal só pode ser aplicada através do

devido processo legal, no qual a decisão judicial tem como pressuposto a

reconstituição de um fato pretérito, o crime, na medida de uma verdade

processualmente válida, evidenciadora da culpabilidade ou periculosidade.

Atua a jurisdição para fazer o acertamento do fato, através do processo, que

pode ser conflitual ou não, tendo como conteúdo o caso penal. É assim a

situação de incerteza, de dúvida, quanto à aplicação da sanção penal. Não

sendo auto-executável, não há outro caminho, que não o processo, para o

acertamento do caso penal.

No dizer de Prado (2006, p. 116), predomina na concepção do processo

penal a natureza pública do conflito de interesses penal, que se transforma

em caso penal, sendo também a sanção penal pública e, portanto, resultante

de uma atribuição estatal.

Observa-se, pois, que a concepção da relação jurídica processual entre

pessoas, quando exposta ao processo penal, não consegue embasar

suficientemente sua natureza jurídica, por não se adequar aos conceitos de

parte e lide. Encontra-se, assim, o processo penal vazio de conteúdo

científico, sendo um desafio para o jurista contemporâneo, a suplicar a

elaboração de uma concepção que se atenha ao paradigma do Direito

democrático e que consiga fundamentar uma teoria que explique as

características específicas da estrutura processual penal.

1.7.4 – A visão instrumentalista da relação jurídica processual

47

A obra de Bülow recebeu maior arcabouço teórico com o

desenvolvimento da Escola Instrumentalista do Processo, cujos ditames são

bem esclarecidos por Dinamarco (2001).

A idéia central orbita na maximização dos fins instrumentais do

processo, visto como instrumento para o exercício do poder jurisdicional,

almejando-se, com isso, o máximo de proveito quanto à obtenção dos

resultados propostos, aos escopos do sistema e à efetividade processual.

Mesmo em tal patamar, o exercício jurisdicional deve observar o devido

processo legal como uma imposição ao poder estatal, atendendo, assim, a

finalidades (escopos) jurídicas e metajurídicas.

Ao lado da principal finalidade processual, que é a resolução legal do

caso concreto, encontram-se finalidades sociais − como a pacificação do

conflito com justiça e a conscientização da sociedade via educação exercida

com a jurisdição − e também políticas − como o exercício do império estatal

judicial, além do aumento da participação dos cidadãos em decorrência das

ações coletivas.

Essa teoria pretende a plena efetividade do processo, buscando

alternativas para a admissão em Juízo e pugnando por uma abertura subjetiva

do magistrado, que deve avaliar a justiça e utilidade de suas decisões.

Tal concepção vincula-se ideologicamente ao modelo social de Estado,

em que o Juiz, a título de oferecer uma jurisdição mais rápida e precisa, exige

maiores poderes (ou relações de poder) processuais. Amplia-se, assim, o

espaço subjetivo para o exercício jurisdicional, uma vez que o magistrado se

encontra numa posição superior à das partes, velando para que o processo se

desenvolva de acordo com seus ditames. Na prática forense, observa-se que

a presidência dos autos pelo Juiz acaba se convertendo em atos de império,

como se o devido processo fosse uma concessão estatal ao particular, e não

garantia processual incondicionada.

Embora o devido processo legal se apresente como um limitador ao

exercício jurisdicional, a maximização instrumental do processo reflete um

48

Poder Judiciário soberano, a impor normas de desenvolvimento processual,

utilizando a decisão final como meio de disciplinarização da sociedade.

Na idéia da instrumentalidade do processo, observa-se nitidamente a

estruturação de uma jurisdição com poder disciplinar, a ser exercido no

desenvolvimento processual, impedindo ou dificultando a contestação de suas

decisões; e, no campo abstrato, o bio-poder, que se espelha com a satisfação

dos escopos sociais e políticos do processo.

Ademais, na relação jurídica evidencia-se uma posição de vantagem do

autor sobre o réu, inadmissível numa concepção de processo fundada na

isonomia, ampla defesa e contraditório.

A adoção do paradigma democrático nas atuais reflexões da Ciência

Processual conflita com as convicções da Escola Instrumentalista do

Processo, uma vez que, na democracia constitucional brasileira, busca-se a

redução da rede de poder estatal, mediante acatamento dos direitos

fundamentais do processo. O aumento da participação processual importa em

redução das relações de poder do magistrado no âmbito discursivo

processual. Portanto, deve-se buscar uma concepção de modelo processual

que se ajuste a tal paradigma.

1.7.5 – As concepções de processo no paradigma democrático. Por uma

hermenêutica constitucional discursiva.

O primeiro passo nesse sentido deve-se ao jurista italiano FAZZALARI

(2006). Como já se enfatizou (NASCIMENTO, 2004, p. 54-55), Fazzalari

concebe o procedimento como uma série de atos normatizados, que levariam

a um provimento final dotado de imperatividade. Em tal seqüência normativa,

o ato só é validado se baseado na norma, ou seja, se atendido seu

pressuposto, que é um ato anterior válido. O provimento, ato final do

49

procedimento, só é válido se amparado neste, que é o meio de sua

preparação. A noção de processo começa a ser construída com a

participação dos interessados na preparação do provimento, sendo tais

interessados aqueles em cuja esfera particular o provimento interferirá.

Porém, essa participação deve se dar em contraditório entre as partes, com

simétrica paridade. Considera-se o procedimento gênero, e o processo

espécie gravada pela característica do contraditório. Logo, o processo é

espécie de procedimento.

No dizer do próprio Fazzalari:

O processo é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades. ... Tal estrutura consiste na participação dos destinatários dos efeitos do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade das suas posições; na mútua implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento; de modo que cada contraditor possa exercitar um conjunto – conspícuo ou modesto, não importa – de escolhas, de reações, de controles, e deva sofrer os controles e as reações dos outros, e que o autor do ato deva prestar contas dos resultados. ... Existe, portanto, processo quando em uma ou mais fases do iter de formação de um ato é contemplada a participação não só - e obviamente - do seu autor, mas também dos destinatários de seus efeitos, em contraditório, de modo que eles possam desenvolver atividades que o autor do ato deve determinar, e cujos resultados ele pode desatender, mas não ignorar. (FAZZALARI, 2006, p. 118-120).

Defende o jurista a correta diferenciação dos conceitos de processo e

procedimento, vistos pelos relacionistas como meros instrumentos

jurisdicionais, na medida em que lhes emprestam conotações metajurídicas,

de realização de justiça e paz social.

O alcance de seu estudo se apresenta ainda mais esclarecedor ao

inserir o contraditório no modelo processual. Com isso, o arcabouço teórico do

50

devido processo é ampliado, porquanto inexiste contraditório sem ampla

defesa e isonomia das partes, princípios que se autocomplementam. E, mais

do que isso, essa concepção de processo aumentou significativamente a

necessidade de participação das partes para a elaboração do provimento

final, mitigando a contribuição jurisdicional. Atende, assim, à concepção

habermasiana de democracia, ao abrir oportunidade aos sujeitos processuais

por meio do princípio do discurso fulcrado em razões de direito.

Explicita Leal:

Com efeito, o Processo define-se por sua qualidade-regente do procedimento. Quando o procedimento não se faz em contraditório, tem-se somente procedimento, não processo. Isso não quer dizer que os procedimentos, sem processo, sejam ilegais, porque há vários procedimentos (legislativos, executivos, administrativos, judiciais e jurisdicionais) que, embora legais, dispensam o contraditório, já que muitos procedimentos não se fazem sob regime de contenciosidade, na qual o direito-garantia do contraditório é imprescindível, em face de lesão ou ameaça a direitos fundamentais de vida, liberdade, igualdade, dignidade, conhecimento, imagem, privacidade, felicidade, propriedade, posse, segurança legal, conforme indicado nas constituições, leis básicas e jurisprudências (concentradas ou difusas) em vários sistemas democráticos de direito. O Procedimento, distinguindo-se do processo, pela ausência da qualidade constitucional principiológica do contraditório, é que deve merecer estudo especial para defini-lo, não mais como a ritualística manifestação perceptível do processo, mas como uma estrutura técnica de atos jurídicos praticados por sujeitos de direito, que se configura pela seqüência obediente à conexão de normas preexistentes no ordenamento jurídico indicativa do modelo procedimental. De conseguinte, o procedimento é manifestação estrutural resultante do complexo normativo da positividade jurídica. É a estrutura extraída do texto normativo que a ela é preexistente e que lhe confere legitimidade, validade e eficácia pelo princípio da reserva legal que, na CR/88, está inscrito no art. 5º, II. Há de se notar, a rigor, que o procedimento, em sua construção espácio-temporal, ao reflexo da lei, impõe o encadeamento de atos, no qual o ato anterior há de ser pressuposto lógico-jurídico do posterior e este pré-condição do ato seqüente que, por sua vez, é extensão do antecedente, até o provimento final (sentença, decisão, ato), o qual encerra uma etapa significativa ou o ciclo total do Procedimento. Por óbvio, o procedimento não se concretiza pela lógica diretiva da atividade jurisdicional do juiz, mas pelas condicionantes lógicas dos princípios e institutos do Processo constitucionalizado. (LEAL, 2005, p. 107-108)

51

Todavia, a concepção fazzalariana permaneceu na

infraconstitucionalidade e, no Brasil, foi adotada como forma de diferenciação

dos conceitos de processo e procedimento dentro ainda da concepção da

instrumentalidade,2 desperdiçando todo o alcance teórico desenvolvido.

Uma outra vertente de estudo da Ciência Processual tomou corpo,

utilizando-se da estreita vinculação entre a Constituição e o processo.

Precursor dessa tendência, Baracho, em obra pioneira, lançada

inicialmente em 1984 e recentemente atualizada, analisava a questão.

Observa o doutrinador que Eduardo Couture considera que toda

Constituição pressupõe a existência de um processo, como garantia da

pessoa humana, e a lei, no desenvolvimento hierárquico desses preceitos,

deve instituir esse processo, de acordo com o devido processo legal. Também

Héctor Fix-Zamudio trazia uma concepção de processo estritamente

constitucional, como instrumento ou meio de tutela dos direitos fundamentais

consagrados constitucionalmente (BARACHO, 2006, p. 11-13).

Ressalta ainda, que no exame científico entre Constituição e Processo,

destaca-se a teoria geral do processo, admitindo-se que o direito processual

tem linhagem constitucional, dando maior significação à proteção efetiva dos

direitos processuais em todas as instâncias, para a concretização dos direitos

fundamentais (BARACHO, 2006, p. 14).

Referência nesses estudos, Andolina & Vignera constataram que a

Constituição traz um modelo de processo através de suas normas e

princípios, os quais determinam a adoção imperativa de uma sistemática

processual voltada para a ascendência da norma constitucional sobre as

demais. Tal se caracterizaria:

a) na expansividade, consistente na sua idoneidade (conseqüência da posição primária das normas constitucionais na hierarquia das fontes), para condicionar a fisionomia dos procedimentos jurisdicionais singulares

2 Veja-se a respeito a obra de CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo, a partir da 15ª edição (1999).

52

introduzidos pelo legislador ordinário, a qual (fisionomia) deve ser comumente compatível com as conotações de tal modelo; b) na variabilidade, indicando sua atitude em assumir formas diversas, de modo que a adequação ao modelo constitucional (da obra do legislador ordinário) das figuras processuais concretamente funcionais, possa ocorrer, segundo várias modalidades, em vista da realização de finalidades particulares; c) na perfectabilidade, designando sua idoneidade, a ser aperfeiçoada pela legislação infraconstitucional, a qual (scilicet: no respeito comum de qual modelo, e em função do alcance dos objetos particulares) bem pode construir procedimentos jurisdicionais caracterizados pelas (ulteriores) garantias e institutos ignorados pelo modelo constitucional: pensa-se, por exemplo, no princípio da economia processual, no do duplo grau de jurisdição, dos órgãos colegiados e do instituto da coisa julgada. (ANDOLINA, VIGNERA, 1997, p. 9).

Culminam tais estudos na teoria neo-institucionalista do processo,

defendida pelo Professor Rosemiro Pereira Leal, que assim a define:

O Processo, como instituição constitucionalizada, define-se, por conseguinte, como uma conjunção de princípios (contraditório, isonomia, ampla defesa, direito ao advogado e à gratuidade judicial), que é referente lógico-jurídico da procedimentalidade ainda que esta, em seus modelos legais específicos, não se realize, expressa e necessariamente, em contraditório. O Processo, por concretização constitucional, é aqui concebido como instituição regente e pressuposto de legitimidade de direitos pelos provimentos legiferantes, judiciais e administrativos. (LEAL, 2005, p. 102).

Tal concepção alia-se a uma teoria constitucional de direito democrático

com bases legitimantes em uma completa cidadania. Essa comunidade

política haveria de utilizar a Constituição como medium institucional, para, na

contrafactualidade, tornar o povo, por meio dos direitos fundamentais

implementados, apto a concretizar o discurso da lei constitucional

democrática, apesar de, na realidade brasileira, ainda existir exclusão social e

cognitiva (LEAL, 2005, p. 101).

E no dizer do próprio idealizador:

O que se busca com uma teoria neo-institucionalista do processo é fixação constitucional do conceito do que seja juridicamente Processo, tendo como base produtiva de seus conteúdos a estrutura de um discurso advindo do

53

exercício permanente da cidadania pela plebiscitarização continuada no espaço processual das temáticas fundamentais à construção efetiva de uma sociedade jurídico-política de direito democrático. (LEAL, 2005, p. 103).

A teoria neo-institucionalista apresenta-se como uma síntese de toda a

abordagem até aqui procedida.

Seu alcance importa na modificação da teoria da Constituição, que

passa a contar com um fundo dialógico-popular, pois o povo, como

comunidade política consciente, passa a atuar em um projeto constitucional

na construção de um sistema de direitos baseado em garantias

constitucionais.

Preocupa-se com a limitação do poder político estatal, especialmente

quanto ao exercício da função jurisdicional, através da principiologia do devido

processo constitucional, balizador da atividade judiciária. Fomenta uma maior

participação das partes na dinâmica processual, aplicando-se não só a teoria

da discursividade habermasiana, mas também a concepção fazzalariana do

procedimento em contraditório. O povo, como destinatário das normas, passa

a ter no processo uma estrutura adequada para a realização de direitos

fundamentais. Em razão do avanço teórico conjecturado, a conclusão final

será elaborada tendo em vista tal perspectiva.

1.8 – O Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli

A teoria do garantismo penal − elaborada por LUIGI FERRAJOLI,

Professor de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de Camerino

(Itália), na clássica obra Direito e Razão − vem oferecendo hodiernamente,

nos campos penal e processual penal, um substrato crítico à atuação estatal,

54

substrato esse ineficiente e baseado em relações de poder que, a título de

controle criminal, achacam o cidadão.

Consoante seu idealizador, estrutura-se inicialmente em três facetas:

Segundo um primeiro significado, garantismo designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao direito penal, o modelo de “estrita legalidade” SG, próprio do Estado de direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como técnica de tutela idônea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade, e sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. ... Em um segundo significado, garantismo designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela existência ou vigor das normas. ... Segundo um terceiro significado, por fim, garantismo designa uma filosofia política que requer do direito e do Estado o ônus da justificação externa com base nos bens e nos interesses dos quais a tutela ou a garantia constituem a finalidade. Neste último sentido o garantismo pressupõe a doutrina laica da separação entre direito e moral, entre validade e justiça, entre ponto de vista interno e ponto de vista externo na valoração do ordenamento, ou mesmo entre o “ser” e o “dever-ser” do direito. E equivale à assunção, para os fins da legitimação e da perda da legitimação ético-política do direito e do Estado, do ponto de vista exclusivamente externo. ... Estes três significados de “garantismo”, para os quais até agora forneci uma conotação exclusivamente penal, têm, a meu ver, um alcance teórico e filosófico geral que merece, pois, ser explicado. Eles delineiam, precisamente, os elementos de uma teoria geral do garantismo: o caráter vinculado do poder público no Estado de direito; a divergência entre validade e vigor produzida pelos desníveis das normas e um certo grau irredutível de ilegitimidade jurídica das atividades normativas de nível inferior; a distinção entre ponto de vista externo (ou ético-político) e ponto de vista interno (ou jurídico) e a conexa divergência entre justiça e validade; a autonomia e a prevalência do primeiro e em certo grau irredutível de ilegitimidade política em relação a ele das instituições vigentes. Estes elementos não valem apenas para o direito penal, mas também para os outros setores do ordenamento. (FERRAJOLI, 2002, p. 684 e segs)

Observa-se que o modelo de Direito que defende Ferrajoli baseia-se

ainda em uma estrutura estatal liberal-social que deve ser aperfeiçoada, com

o Estado servindo à pessoa humana, como objeto central, atuando em estrita

legalidade, em um sistema de poder mínimo, capaz de reduzir as agruras do

55

sistema penal e maximizar a liberdade, por meio da proibição de lesão aos

direitos fundamentais e atuação positiva na adoção de direitos sociais.

Assevera Carvalho (2001, p. 91) que o princípio da legalidade definido

por Ferrajoli identifica o Direito vigente como objeto exaustivo e exclusivo da

Ciência Penal, e estabelece que somente a lei – e não a moral ou critérios

externos – diz o que é crime, e que as leis dizem somente o que é crime – e

não o que é pecado.

Adverte o mesmo autor (Carvalho, 2001, p. 72) que o Estado Liberal

caracteriza-se por um não fazer, daí seu programa de intervenção penal

mínima, tendo o Estado Social necessidade de afirmar sua atuação,

interferindo ao máximo nas esferas de controle social, com o escopo de

combater com eficácia a criminalidade.

Nesse particular, apresenta-se a contradição entre os dois modelos −

liberal, com postura negativa, e social, com atuação positiva −, o que reflete

uma crise estrutural entre eles, já divisada por Ferrajoli.

Não procura, pois, o garantismo elaborar um novo modelo de Estado,

mas aperfeiçoar o já existente, por meio de uma nova concepção de modelo

normativo.

Quanto à teoria das normas, as maiores repercussões referem-se à

separação entre Direito e Moral − restando a concepção do justo restrita a

critérios extrajurídicos, baseados em valores ético-políticos − e à elaboração

de um conceito de eficácia da norma, quando se apresenta na realidade fática

como observada e aplicada (FERRAJOLI, 2002, p. 696/705).

Melhor esclarecendo: considera-se vigente a norma despida de vícios

formais; válida, a imunizada contra vícios formais e materiais; e eficaz, a

realmente observada por seus destinatários, sendo esse juízo externo ao

sistema (CADEMARTORI, 1999, p. 113-114).

Portanto, o Juiz passa a ter maior discricionariedade para aferição da

ineficácia da lei, visto que, consoante Cademartori (1999, p. 83), elabora um

juízo de valoração desta.

56

Como filósofo do Direito, Ferrajoli (2002, p. 706) parafraseia a

expressão autopoiesis, de Niklas Luhmann, segundo o qual o Estado é um fim

em si mesmo. Ao criticar tal expressão, defende Ferrajoli uma concepção

heteropoiética, na qual o Estado é um meio de garantir os direitos

fundamentais do cidadão. Assim, sob esse aspecto, a sociedade e as

pessoas são consideradas em si mesmas, com fins e valores, para cuja tutela

é instituído o Estado, e no qual a legitimação do direito se faz de modo

externo.

Essa perspectiva, ressalta Carvalho (2001, p. 116), pressupõe o poder

como ontologicamente mau, tendente à constante violação dos direitos

fundamentais, possibilitando a aplicação do programa garantista restritivo.

Propõe, assim, Ferrajoli um modelo de respeito à Constituição, em que

o Juiz é o supremo zelador do sistema, com elevada discricionariedade para

levar a cabo o projeto garantista.

Segundo Streck (1996, p. 48), é relativamente fácil a adoção de um

modelo garantista, sendo mais difícil a elaboração de técnicas legislativas e

judiciais para assegurar a efetividade dos direitos fundamentais. Para

potencializar o valor normativo da Constituição, é necessário delegar-se ao

jurista a tarefa de interpretar o direito infraconstitucional, pois o garantismo

deve ser entendido como maneira de fazer democracia dentro e a partir do

Direito, reforçando-se a responsabilidade ética do intérprete.

Especificamente no contexto do Direito Penal e Processual, Ferrajoli

elaborou um sistema de axiomas garantistas (2002, p. 74), com proposições

prescritivas que objetivam demonstrar o que deve ocorrer em um sistema

penal com princípios normativos internos e parâmetros de justificação externa.

Tais implicações deônticas, normativas e de dever ser, são garantias jurídicas

para a afirmação da responsabilidade penal e aplicação da pena e levam em

conta, para a formulação de seus princípios, onze termos: pena, delito, lei,

necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, juízo, acusação, prova e defesa. Os

57

quatro últimos, afetos ao processo penal, levam à formulação de dez axiomas

do garantismo penal. 3

O processo penal, apesar de baseado na tradicional teoria da relação

jurídica processual, avança para um modelo acusatório, de estrita legalidade,

que será analisado no capítulo seguinte.

1.9 – O processo penal no paradigma democrático

De todo o exposto, pode-se aduzir que a rede de relações de poder que

permeia o Estado e o Direito levou à construção do modelo estatal social, que

se apresenta insuficiente e sem perspectivas de restabelecimento.

Somente a adoção de um novo paradigma para a organização estatal e

jurídica poderá superar a crise de degenerescência instaurada, baseando-se

em um conceito de democracia em que o cidadão se veja, ao mesmo tempo,

como autor e destinatário da norma jurídica, com aumento dos métodos de

participação discursiva.

No processo, tal mister pode ser adimplido com a concepção neo-

institucionalista, em que o devido processo legal constitucional se apresenta

como o meio de efetivação dos direitos fundamentais, vinculando a jurisdição

a um ideário participativo, em que as funções podem ser melhor divididas com

os interessados no provimento final.

3 A1 Nulla poena sine crimine A2 Nullum crimen sine lege A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate A4 Nulla necessitas sine iniuria A5 Nulla injuria sine actione A6 Nulla actio sine culpa A7 Nulla culpa sine judicio A8 Nullum iudicium sine accusatione A9 Nulla acusatio sine probatione A10 Nulla probatio sine defensione.

58

O processo penal, considerado espécie de procedimento, ancorado no

contraditório, deve observar os postulados do sistema garantista, no sentido

de apresentar-se como tutelador da liberdade.

Todavia, a adoção de uma jurisdição dotada de amplo poder subjetivo

para gerenciar o projeto garantista nenhum avanço trará ao modelo

processual penal.

Portanto, o garantismo pode ser utilizado como modelo normativo para

o sistema processual penal, face à sua compatibilidade com o sistema de

direitos preconizado pela leitura neo-institucionalista, trazendo fundamentos

ao processo penal acusatório.

Antes, deve-se criar um processo penal que tenha como escopo a

obediência integral ao devido processo legal, reinterpretando-se o

ordenamento existente com base em uma visão democrático-discursiva e

estabelecendo-se novas técnicas, em que a dialeticidade seja preponderante

na esfera procedimental, com direito ao contraditório e à ampla defesa.

A seguir, procurar-se-á identificar, nos sistemas de Direito Processual

Penal criados e utilizados mundialmente, aquele que poderia se adequar às

proposições aqui conjecturadas.

59

CAPÍTULO II

2. SISTEMAS DE PERSECUÇÃO PENAL E O GARANTISMO

2.1 – Breve histórico dos sistemas de persecução penal

Os atenienses e romanos distinguiam crimes públicos e crimes

privados. Os primeiros prejudicavam a coletividade e sua repressão não podia

ficar a mercê do ofendido; quanto aos segundos, a lesão produzida era de

somenos importância para o Estado, e assim a repressão dependia da

iniciativa da parte, considera Tourinho Filho (1994, p. 73).

Por isso, havia o processo penal privado e o processo penal público.

Como registra Ferrajoli (2002, p. 453), o processo penal para

persecução de crimes particulares tinha uma estrutura essencialmente

acusatória por causa do caráter predominantemente privado da acusação. A

titularidade da acusação permanece por longo tempo nas mãos da parte

ofendida ou do seu grupo familiar, para depois transferir-se, em época mais

tardia, à sociedade como um todo e por meio dela a todo cidadão singular.

Pela natureza privada ou popular, de qualquer modo, voluntária, da

ação penal no processo romano ordinário, vislumbram-se as características

clássicas do sistema acusatório: discricionariedade da acusação; ônus

acusatório da prova; natureza do processo como controvérsia baseada na

igualdade das partes; atribuição a estas de toda a atividade probatória, com

sua disponibilidade, publicidade e oralidade do debate; papel de árbitro ou de

espectador reservado ao Juiz.

O processo começava com a accusatio, aponta Tornaghi (1997, p. 10-

11). A princípio, cabia ao próprio ofendido ou a seus parentes, em ação

60

privada. Quando foi-se desenvolvendo a idéia de que o delito ofendia a toda a

coletividade, adotou-se a ação penal por qualquer pessoa do povo (ação

popular). Para a realização da investigação criminal, o magistrado concedia

ao acusador uma lex, mandado com característica de mandato, no qual lhe

era delegado o poder de busca, apreensão, oitiva de testemunhas e exame

de documentos para comprovação da infração, na fase denominada de

inquisitio. Tal fase era acompanhada pelo acusado, se o desejasse. Portanto,

dominava o contraditório, em verdadeira luta das partes, às quais competia a

prova, não tomando o Juiz iniciativa nenhuma. As partes tinham

disponibilidade sobre o processo, e a confissão dispensava outras diligências.

Dominava a publicidade e a oralidade.

Esse sistema, aponta Bastos (2004, p. 7), denominado acusatório puro,

baseava-se exclusivamente na acusação formulada pelo particular e tinha

como vantagem a imparcialidade do Juiz, mas possibilitava a existência de

litígios constantes e a impunidade de delitos, na ausência de quem se

dispusesse a acusar. Tornaghi (1997, p.11-12) ressalta outros inconvenientes:

facilitação de acusação falsa, desamparo dos fracos, deturpação da verdade,

impossibilidade de julgamento (non liquet) e inexeqüibilidade da sentença.

No processo penal público, no começo da monarquia não havia

nenhuma limitação ao poder de julgar. Bastava a notitia criminis para que o

próprio Magistrado se pusesse em campo, a fim de proceder às necessárias

investigações. Essa fase preliminar chamava-se inquisitio. Após as

investigações, o Magistrado impunha a pena, prescindindo-se da acusação.

Nenhuma garantia era dada ao acusado e não havia limites ao arbítrio dos

Juízes, registra Tourinho Filho (1994, p. 74-75).

Aponta Manzini (1951, p. 04), o surgimento da provocatio ad populum,

como limitação ao arbítrio judicial, através da qual poderia o cidadão livre

varão pedir ao povo a anulação da sentença. O Magistrado que proferia a

condenação deveria apresentar ao povo os elementos necessários para nova

61

decisão. Foi pouco utilizada, pelo caráter restritivo, pois somente os civis

romanus poderiam pleiteá-la.

Na cognitio extra ordinem, o processo inquisitório passa a fazer frente

às vicissitudes do processo acusatório, pouco a pouco invadindo a esfera das

atribuições reservadas ao acusador privado, chegando a reunir no mesmo

órgão (Magistrado), as funções de acusação e julgamentos, registra Tourinho

Filho (1994, p. 76). O procedimento inquisitório é desenvolvido e decidido ex

officio, secretamente e embasado em documentos escritos por magistrados

estatais com poderes delegados pelo príncipe, baseado na detenção do

acusado e na sua utilização como fonte de prova, através da tortura. Foi mais

uma forma autodefensiva de administração da justiça, aduz Ferrajoli (2002, p.

454).

Neste, o Juiz buscava conhecer os fatos tais como eles haviam ocorrido

e tomava todas as iniciativas investigativas, informa Tornaghi (1997, 14-15). A

inquisitio se dividia em duas fases: generalis, na qual se pesquisava a

materialidade, sem se preocupar com quem teria praticado os fatos. Apurada

esta, seguia-se a specialis, para investigação da culpabilidade dos suspeitos

da autoria.

Ferrajoli (2002, p. 453) identifica, nas primeiras jurisdições bárbaras, na

Inglaterra e no mundo anglo-saxão, até o Século XII, métodos acusatórios.

Porém, a partir daí, com as Constituições de Frederico II, nos processos por

crime de lesa-majestade, e com a Santa Inquisição, em processos

eclesiásticos por crimes de heresia e magia, o sistema inquisitório assumiu a

primazia do processo ordinário em todo o continente europeu, generalizando-

se para todos os tipos de crimes.

A lição de Prado é esclarecedora:

Com efeito, a Igreja passa a enxergar no crime não só uma questão de interesse privado mas, principalmente, um problema de salvação da alma, requisitando-se o magistério punitivo como forma de expiação das culpas. O arrependimento não é mais suficiente. É necessária a penitência, motivo por

62

que cumpre à Igreja investigar um significativo número de infrações, ratificando-se assim, politicamente, a sua autoridade. Michel Foucault irá anotar aí o dado marcante que está como na base ou na essência dos procedimento inquisitoriais: a “busca da verdade” que substituirá os desafios ou provas a que se submetiam as pessoas, nos reinos bárbaros, para o que nos interessa configurou o início da “história política do conhecimento”, ou, de acordo com nosso ponto de vista, o emprego político do conhecimento que é fabricado e servirá para definir relações de luta e poder. (PRADO, 2006, p. 80)

Com o Iluminismo penal reformador, que, consoante Ferrajoli (2002, p.

454), denunciava a desumanidade da tortura e o caráter despótico da

Inquisição, foi natural que a Revolução Francesa adotasse o sistema

acusatório baseado na ação popular, no júri, no contraditório, na publicidade e

oralidade do Juízo e na livre convicção do Juiz.

O modelo misto (ou acusatório impuro ou formal) surge no Código

Termidoriano de 1795 e no Código Napoleônico de 1808, em que há

prevalência inquisitória na primeira fase − escrita, secreta, dominada pela

acusação pública e pela ausência de participação do imputado quando

privado de liberdade; já a fase seguinte apresenta tendência acusatória,

caracterizada pelo contraditório público e oral entre acusação e defesa, porém

destinado a se tornar mera repetição da primeira.

Bastos apresenta uma síntese de cada modelo:

O sistema inquisitivo é produto do autoritarismo e do arbítrio, já que não confere ao réu qualquer garantia. O sistema acusatório é comprometido com o réu enquanto sujeito do processo, não mero objeto do processo, de sorte a lhe atribuir as mínimas garantias necessárias a um processo de partes, a ser decidido por um julgador que não é parte – imparcial – e, portanto, desinteressado no resultado da demanda. O sistema misto – que se acha melhor denominar sistema acusatório moderno – é o resultado do aperfeiçoamento do sistema acusatório primitivo, em que se busca mais a garantia dos direitos do réu, a começar por privá-lo de acusações com a pecha de vindita, ao passo em que entregues a um órgão estatal, diverso do que irá julgá-lo (o Ministério Público). (BASTOS, 2004, p. 12-13)

63

2.2 – Decisionismo e Garantismo

Luigi Ferrajoli (2002, p.434 e segs.) define dois sistemas principais de

processo penal, os quais nomeia como garantista − ou de estrita submissão à

jurisdição, ou cognitivo, ou de estrita jurisdicionalidade − e como

substancialista − ou de mera submissão à jurisdição ou decisionista.

O modelo garantista é orientado para a busca de uma verdade

processual empiricamente controlável e controlada, em que os tipos penais

utilizam um critério convencionalista informado pelo princípio da taxatividade,

que exige a formulação unívoca e rigorosa dos fatos empíricos qualificados

como delitos, identificando-se com o modelo de Direito Penal mínimo, no qual

se quer obter uma verdade mínima, em obediência aos pressupostos da

sanção, e garantida, graças ao caráter empírico e determinado das hipóteses

acusatórias, por cânones do conhecimento, como a presunção da não-

culpabilidade até prova em contrário, o ônus da prova a cargo da acusação, o

princípio do in dubio pro reo, a publicidade do procedimento probatório, o

contraditório e o direito de defesa mediante refutação da acusação. Aqui, o

fim é legitimado pelos meios, porque fundado ou garantido por vínculos

representados.

Nesse modelo de estrita jurisdicionalidade, enfatiza Ferrajoli (2002, p.

32-33), o processo de cognição ou de comprovação ocorre quando a

determinação do fato configurado em lei como delito tem o caráter de um

procedimento probatório do tipo indutivo que, tanto quanto possível, exclui as

valorações e admite só, ou predominantemente, afirmações ou negações de

fato ou de direito, das quais são predicáveis a verdade ou a falsidade

processual. Assim, a verdade deve ser baseada em juízos penais

64

predominantemente cognitivos (de fato) e recognitivos (de direito), sujeitos

como tais à verificação empírica.

O modelo substancialista é orientado para a busca de uma verdade

substancial e abrangente, fundada essencialmente em valorações, em que os

tipos penais são formulados tendo em vista a ética e a política que vão além

da prova, como nas fórmulas “é réu quem é inimigo do povo” ou “é delito

qualquer ato hostil ao Estado”. Identifica-se com o modelo de Direito Penal

máximo e inquisitivo, em que a busca da verdade substancial ou máxima é

feita sem nenhum limite normativo aos meios de aquisição das provas e, ao

mesmo tempo, não vinculada, mas discricionária, no mínimo porque a

indeterminação das hipóteses de acusação e o seu caráter avaliativo exigem,

mais que provas, juízos de valor não contestáveis pela defesa. Nesse modelo,

o fim − atingir a verdade − justifica os meios, quaisquer procedimentos que

sejam.

O garantismo fundamenta e justifica a legitimidade do Poder Judiciário e

a validade de seus provimentos na verdade, aproximada ou relativa, dos

conhecimentos que a ele é idôneo obter e que concretamente formam a base

dos próprios provimentos. O método acusatório, embora insuficiente, baseado

no contraditório das provas e refutações defensivas, é uma condição

necessária ao modelo cognitivo, uma vez que os atos jurisdicionais

constituem proposições assertivas, suscetíveis de verificações e refutações, e

proposições prescritivas, exigindo procedimentos de controle para prova e

contestação, que só podem ser garantidos por um processo de partes

fundado no conflito institucional entre acusação e defesa.

Legitimando-se por juízos de valor, a técnica decisionista vale-se da

credibilidade do órgão judicante e da fonte de legitimação política do seu

poder (soberano, Deus, povo, experts, e outros); de outro lado, vale-se dos

valores e das avaliações por ele adotados como fundamento de sua decisão

(sabedoria, espírito ético, bem comum, interesse nacional e outros). Assim, a

atividade instrutória é apenas valorativa em relação ao fato. Portanto, o

65

modelo decisionista identifica-se com o inquisitivo, pois nele é natural que o

órgão judicante seja ativo na busca da verdade substancial, informada por

critérios essencialmente discricionários; a atividade instrutória pode ser

secreta, interessando a decisão justa mais que sua controlabilidade; o papel

da defesa resulta irrelevante ou, pior, é visto como um obstáculo ao bom

andamento do Juízo; o objeto privilegiado do processo não é o fato-crime,

mas a personalidade criminosa do réu.

Ferrajoli assevera ainda que, nesse modelo de processo potestativo, há

uma intrínseca natureza autoritária (FERRAJOLI, 2002, p. 37). Inexistindo

uma predeterminação normativa precisa dos fatos que se devem comprovar,

o Juízo remete, na realidade, muito mais à autoridade do Juiz do que à

verificação empírica dos pressupostos típicos acusatórios.

Complementa Ferrajoli (2002, p. 438) que a jurisdição penal identifica

seus valores com a imunidade dos cidadãos, contra o arbítrio e a intromissão

inquisitiva, com a defesa dos fracos mediante regras iguais para todos, com a

dignidade da pessoa do imputado e, portanto, também com o respeito à sua

verdade. Logicamente, o Direito Penal não é mais concebido como

instrumento de prevenção dos delitos, mas também como técnica de

minimização da violência e do arbítrio na resposta ao delito. O escopo

legitimador do processo penal identifica-se com a garantia das liberdades do

cidadão, mediante a garantia da verdade, não caída do céu, mas atingida

mediante provas e debatida, contra o abuso e o erro.

Adentrando-se no tema da diferenciação entre sistema acusatório e

inquisitório, Ferrajoli (2002, p. 452 e segs) assevera que o primeiro se

caracteriza pelo sistema processual que tem o Juiz como um sujeito passivo

rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário,

iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvido com a

defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo Juiz, com

base em sua livre convicção. Entende que, nesse modelo, à ação penal

aplica-se o princípio da obrigatoriedade e da irrevogabilidade por parte dos

66

acusadores públicos, pois, nos países em que se adota a discricionariedade,

observa-se um resíduo do caráter privado da acusação, hoje injustificado

(FERRAJOLI, 2002, p. 456).

No sistema inquisitório, o Juiz procede de ofício à procura, à colheita e

à avaliação das provas, produzindo o julgamento após uma instrução escrita e

secreta, na qual são excluídos ou limitados o contraditório e os direitos da

defesa.

Porém, é na verdade perseguida por anteditos modelos que Ferrajoli

(2002, p.38 e segs) perfaz as principais distinções.

A verdade que persegue o modelo substancialista é substancial ou

material, absoluta e onicompreensiva em relação às pessoas investigadas,

carente de limites e de confins legais, alcançável por qualquer meio, para

além das rígidas regras procedimentais, o que degenera em juízo de valor,

arbitrário de fato, em um cognitivismo ético solidário com uma concepção

autoritária e irracional do processo penal.

No modelo formalista, a verdade procurada é formal ou processual,

alcançada pelo respeito a regras precisas e relativas a fatos e circunstâncias

perfilados como penalmente relevantes, estando, assim, condicionada em si

mesma pelo respeito aos procedimentos e garantia de defesa. É mais

controlada quanto ao método de aquisição e mais reduzida em relação ao

conteúdo informativo.

Ressalta Oliveira (2002, p. 256) que a verdade colhida em qualquer

processo é uma verdade processual, na medida em que é reconstruída,

dependente do maior ou menor grau de contribuição das partes e do Juiz,

para a determinação de sua certeza. Porém, no modelo acusatório, a não-

impugnação dos fatos não leva a sua certeza, devendo haver uma

comprovação probatória, razão pela qual a considera como verdade material.

Resumindo, Kac apresenta as diferenças do sistema inquisitório e

misto:

67

Em verdade, podemos apontar algumas características do sistema (inquisitivo), sendo elas: (i) concentração das funções de acusador, defensor e julgador em uma só pessoa; (ii) ausência de imparcialidade em vista do órgão acusador proferir o julgamento não visando se convencer e, sim, convencer os outros da justeza de sua decisão; (iii) o processo é regido pelo sigilo, pela forma secreta da prática de seus atos e fora do alcance dos jurisdicionados, inclusive, muitas das vezes, do próprio acusado; (iv) não vigem os princípios do contraditório ou ampla defesa, sendo o acusado mero objeto do processo e não sujeito de direitos, não se lhe conferindo nenhuma garantia; (v) a confissão é a rainha das provas e os testemunhos a prostituta das provas; (vi) o sistema de apreciação de provas é o tarifado ou da prova legal, em que as provas têm valores previamente estabelecidos, sendo o juiz um autômato ao proceder ao julgamento. (KAC, 2004, p. 26-27) O sistema (misto) conta com características próprias, sendo as mais marcantes: (i) a fase de investigação preliminar é realizada por um juiz de instrução que, com o auxílio da força policial, pratica todos o atos tendentes à colheita de elementos que darão suporte à acusação; (ii) nessa fase o procedimento é escrito e secreto, sendo o autor mero objeto da investigação, não vigendo, como regra, o contraditório ou a ampla defesa, em virtude da influência do sistema inquisitivo; (iii) a fase de julgamento é iniciada pela acusação penal, exercida, comumente, pelo Ministério Público, havendo debates públicos, oral e contraditório, estabelecendo-se igualdade entre as partes (acusação e defesa); (iv) na fase judicial o acusado passa a ser sujeito de direitos, manejando posição jurídica que lhe assegure o status de inocente, até que o Estado demonstre sua culpa, através do due process of law; (v) o ônus da prova recai exclusivamente sobre o Ministério Público e, (vi) o julgamento privilegia o contraditório e a ampla defesa, a publicidade dos atos processuais e a concentração dos atos em audiência. (KAC, 2004, p. 28)

Concluindo, Rangel (2005, p. 200) apresenta as seguintes

características para o sistema acusatório: órgão jurisdicional investido

previamente e imparcial; órgão distinto para a persecução penal; o acusado é

sujeito de direitos, havendo igualdade com a acusação como conseqüência

lógica do contraditório e da ampla defesa; publicidade dos atos processuais e

adoção, como sistema de provas, do livre convencimento do Juiz.

2.3 – O Processo Penal no Direito Comparado

2.3.1 - Portugal

68

Segundo informa Rangel (2005, p. 160-165), a fase do inquérito policial,

em Portugal, é dirigida pelo Ministério Público, com o auxílio da Polícia

Criminal, nos termos do art. 263 do Código de Processo Penal Português.

Tal investigação é acompanhada por um Juiz de instrução, que pode

determinar a realização de medidas de restrição das garantias fundamentais,

atuando como garante, podendo ainda interrogar o preso em flagrante (art.

268 combinado com 269 do CPPP).

Todavia, anotam Correia e Rocha (2002, p. 226-227) que a novel Lei de

Investigação Criminal (Lei nº 21/2000) possibilita que a Polícia inicie e

desenvolva as diligências investigatórias, com autonomia técnica e funcional

em relação ao Ministério Público.

Concluído o inquérito policial e deduzida a acusação, pode haver uma

fase intermediária de instrução (facultativa), na qual será analisada a

viabilidade da acusação. Ocorrem debates em contraditório. Considerada

procedente a acusação, o Juiz pronuncia o argüido, remetendo-o a

julgamento. Caso improcedente, arquiva o inquérito policial.

A fase de julgamento, ou do Juízo, compõe-se de atos preliminares e

introdutórios, apresentação de provas, documentação da audiência e

sentença, informam Correia e Rocha (2002, p. 231).

Prevê ainda a legislação portuguesa o processo sumário, para os

presos em flagrante delito com pena privativa de liberdade não superior a três

anos (art. 381 do CPPP); o procedimento abreviado (art. 391 A do CPPP),

para os crimes com pena de até cinco anos, desde que existam indícios da

prática delitiva; e o processo sumaríssimo (art. 392 do CPPP), no caso de o

Ministério Público entender imprescindível medida cautelar sem necessidade

de privação de liberdade, através de acordo com o acusado, segundo Correia

e Rocha (2002, p. 231-234).

2.3.2 - Espanha

69

Anota Rangel (2005, p. 148-149) que existem três fases no processo

penal espanhol.

Na fase sumária, o Juiz instrutor fica responsável pela investigação

criminal, com auxílio direto da Polícia Judicial (vedando-se-lhe a sua atuação

na fase processual), sendo de natureza secreta e fiscalizada pelo Ministério

Público (como custos legis), que pode também requerer diligências ao Juiz

instrutor ou à Polícia.

Na intermediária, o Tribunal competente analisa a produção probatória,

podendo determinar novas diligências, o arquivamento da investigação ou a

abertura de Juízo oral.

Aberto o Juízo oral, há a instauração do processo propriamente dito,

iniciando o sistema acusatório formal, sob a direção do presidente do

Tribunal, exercitando a ação penal o Ministério Público (Fiscal).

Informa Bastos (2004, p. 68-69) que o Código de Processo Penal

Espanhol (LECRIM) foi alvo de reforma pontual através da LO 7/88, que

procurou separar as funções de instruir e julgar, substituindo o sistema de

investigação judicial prévia pela instrução preliminar a cargo do Ministério

Público, em um procedimento mais célere.

Ocorre que tal procedimento, para delitos com pena privativa de

liberdade de até 9 (nove) anos, por diversos motivos e resistências, gerou um

sistema híbrido, no qual a instauração de investigação pelo Juiz instrutor

impede o prosseguimento da presidida pelo Ministério Público, privilegiando,

assim, o sistema anterior.

Sobre a polêmica, anota Catena (2002, p. 32-33) que a Lei Orgânica

5/2000, sobre a responsabilidade penal do menor, deixa nas mãos do

Ministério Público a apuração fática que não importe em restrição de direitos

fundamentais. Assim, o legislador espanhol ainda não deu uma resposta clara

e definitiva sobre o papel do Juiz instrutor ou do Ministério Público no sistema

processual penal. Entende que ou o legislador mantém a figura e as funções

70

do Juiz de instrução, com modificações exigidas pelos direitos fundamentais,

ou encomenda as investigações ao Ministério Fiscal.

2.3.3 - França

O sistema de processo penal francês é baseado na natureza da

infração penal, à qual corresponde uma jurisdição. Informa Lacoste (2002, p.

163) que contravenções penais são apuradas pelo Tribunal da Polícia (art.

521 do CPPF); delitos, pelo Tribunal Correicional (art. 381 do CPPF); e

crimes, pelo Tribunal do Júri (art. 231 do CPPF).

O Juiz exerce o papel de investigador, tendo atuação obrigatória nos

crimes e a faculdade de atuar na apuração dos delitos e nas contravenções

penais, desde que requerido pelo Ministério Público, anota Rangel (2005,

p.156-160).

O último tem ascendência hierárquica sobre a Polícia, podendo o

Procurador-Geral, inclusive, aplicar sanção disciplinar aos seus integrantes.

O processo penal desenvolve-se em três fases.

No sumário de prevenção (investigação preliminar), realiza-se

investigação sigilosa e inquisitiva, que busca suporte probatório mínimo para

eventual persecução penal.

Na instrução preparatória, verifica-se se o fato investigado pode ser

objeto de julgamento, analisando-se as provas existentes e o fundamento da

acusação.

Na instrução, ou formação do processo, o Juiz verifica a autoria delitiva,

define a classificação jurídico-penal do fato e remete aos órgãos julgadores

respectivos, ou suspende o procedimento, no caso de falta de provas.

71

2.3.4 – Itália

No recente Código de Processo Penal Italiano de 1988, adotou-se um

sistema processual acusatório com divisão das funções de julgar, acusar e

defender em órgãos distintos.

Foi substituído o Código Rocco de 1930, de inspiração inquisitorial e

baseado no Juizado de Instrução.

Segundo Rangel (2005, p. 151-153), na apuração criminal, conhecida

como investigações preliminares, o Ministério Público utiliza-se da Polícia

Judicial para verificar as condições de abertura do Juízo oral, dirigindo a

investigação e determinando os atos a serem praticados, sob o controle direto

de um Juiz, com função garantidora dos direitos fundamentais.

Nessa etapa, o Ministério Público tem obrigação de colher informações

que sejam favoráveis ao investigado, admitindo ainda que este participe de

todos os atos que exijam a sua presença, assistido por defensor. Deve fazê-lo

no máximo em dois anos e, transcorridos estes, está obrigado ao pedido de

arquivamento ou formulação da imputação.

Interessante registrar que, embora Juiz e Promotor de Justiça

pertençam à mesma carreira da magistratura italiana, preocupou-se o

legislador em manter a independência das funções de julgar e acusar.

Concluída a apuração, não sendo o caso de arquivamento, pode o

Ministério Público requerer a abertura de um procedimento especial ou do

Juízo oral. O ofendido pode se opor ao pleito de arquivamento.

É realizada, então, uma audiência preliminar, destinada a avaliar a

admissibilidade da acusação, com debate entre as partes. Recebida a

acusação, o Juiz (diferente do encarregado das investigações preliminares)

indica os elementos que demonstraram a sua admissibilidade, marcando uma

audiência de instrução, formando autos com os elementos indispensáveis

colhidos das investigações preliminares.

72

O processo passa a ser presidido por outro Juiz, que não tomou

conhecimento da apuração anterior, baseando sua decisão na prova

contraditória colhida no Juízo oral, segundo lição de Bastos (2004, p. 57).

Esse Juízo desenvolve-se com os seguintes atos: recebimento dos

autos do Juiz da audiência preliminar; realização de atos preliminares; início

da audiência de instrução com a leitura da denúncia; requerimento de provas

pelas partes; instrução das provas requeridas; debates entre as partes e

sentença (NICASTRO, 2002, p. 139-150).

Acerca da citação, o critério geral que a regula é o conhecimento efetivo

do ato por parte do imputado, relata Nicastro (2002, p.119), não sendo

suficiente a mera comunicação formal. Assim, a prova da citação é

particularmente rigorosa, sendo punida com nulidade pela violação do direito

de defesa.

Informa o mesmo autor (NICASTRO, 2002, p.123-125) importante

inovação do Direito italiano, trazida pela Lei 297/2000, que trata das

investigações da defesa.

Os defensores podem adquirir de qualquer pessoa notícias úteis, com o

fim de investigar, seja com entrevista verbal, declaração escrita e firmada ou

gravações, ou solicitar sua oitiva ao Juiz, havendo restrições somente para

aquelas que já foram ouvidas pelo Ministério Público ou pela Polícia.

Podem ainda requisitar documentos da Administração Pública e

inspecionar locais de crime para buscar provas a favor de seus clientes,

utilizando investigadores e consultores técnicos privados.

Sobre os procedimentos especiais do Direito italiano, informa

Fernandes (2001, p. 172-184).

No Juízo abreviado, através de um acordo entre o Ministério Público e o

acusado acerca do procedimento a ser empregado, consideram-se elementos

de prova os recolhidos na fase de investigação e obtidos até a celebração da

avença. Evita-se a fase de julgamento derivada da audiência preliminar, com

uma correlata redução da pena concretizada.

73

Se há evidências probatórias que tornem desnecessária a realização de

outras investigações, nos casos em que ocorre prisão em flagrante ou

confissão da prática delitiva no interrogatório, pode ser utilizado o Juízo

diretíssimo, no qual se passa diretamente para a fase de audiência de

julgamento, dispensando a audiência preliminar.

Semelhante é o procedimento do Juízo imediato, no qual o Ministério

Público prescinde da audiência preliminar, quando das provas decorre

claramente a responsabilidade penal da pessoa acusada. Difere-se do

anterior, que demanda prisão em flagrante ou confissão.

No procedimento por decreto, aplicável aos crimes que possam ser

perseguidos de ofício, entendendo o Ministério Público pela aplicação de

sanção de natureza pecuniária, mesmo em substituição a uma pena privativa

de liberdade, poderá solicitar ao Juiz das investigações preliminares que

emita decreto de condenação, podendo a defesa a ele se opor.

Se as partes concordarem na aplicação de medida substitutiva de pena,

aplicação de pena pecuniária ou pena de detenção de até dois anos, antes da

abertura do debate de primeiro grau, origina-se a Pactuação.

2.3.5 – Inglaterra e País de Gales

Tradicionalmente, no sistema inglês, a Polícia tem a iniciativa da

investigação criminal e, até 1985, tinha a iniciativa da propositura da ação

penal.

A partir de então, informa Bastos (2004, p. 73-75), com a criação do

Crown Prosecution Service, este passa a desempenhar as funções de

acompanhar a investigação criminal realizada pela Polícia, providenciar e

estruturar o corpo de juristas que representam os interesses da Coroa perante

as Cortes de Justiça, estando subordinado ao Attorney General (Fiscal-Geral),

74

cargo semelhante ao de Procurador-Geral, mas sem os respectivos poderes e

instrumentos reconhecidos a estes. As causas de maior complexidade ou os

casos excepcionais, relativos à segurança do Estado, ficam a cargo do

Attorney General.

Portanto, a Polícia atua como órgão investigador e promotor do

processo, na medida em que dá conhecimento da prática delitiva ao Crown

Prosecution. Este atua como revisor, devendo decidir se detém a causa ou a

remete aos Tribunais.

Relata Kac (2004, p. 79) que essa última fase desenvolve-se perante

um Juiz singular, ao qual é enviado um dossiê, contendo os fatos imputados,

as suas circunstâncias, as provas documentais e testemunhais e o

interrogatório do réu. Se este não se opõe, o Juiz remete automaticamente o

procedimento para julgamento.

Este se realiza perante a Magistrates Court, nos delitos leves ou mistos,

ou perante a Crown Court, nos delitos graves, através de júri popular.

2.3.6 – Estados Unidos da América

A União Federal dos Estados Unidos da América convive com sistemas

penais estaduais autônomos; portanto, a presente exposição se restringirá a

princípios gerais aplicados pela maioria dos Estados.

A investigação criminal é feita pela Polícia, mas com o andamento e a

orientação feitos pelo Ministério Público e de acordo com suas necessidades.

Tal função tem cunho político, pois seus membros são eleitos pela

comunidade, aduz Kac (2004, p. 46-49).

Preso, o acusado é apresentado no mesmo dia ou no dia seguinte ao

magistrado, que decide sobre a concessão de fiança.

75

Procede-se à apuração criminal e, concluída esta, o Ministério Público

decide sobre a propositura da ação penal. Nesse particular, o poder

discricionário é muito grande, vigendo o instituto do plea bargaining, transação

entre o órgão estatal e o acusado, o qual muitas vezes a aceita para não se

submeter a uma carga maior da acusação.

Proposta a denúncia, realiza-se audiência preliminar (facultativa) para

verificação do acervo probatório e decisão sobre o julgamento.

Após, realiza-se a audiência de citação judicial, em que se inteira o

acusado da imputação formalizada e manifesta-se culpado ou inocente,

procedendo-se ao julgamento pelo júri.

2.3.7 – Argentina

Na Argentina, à semelhança dos Estados Unidos da América, cada

província pode ter o seu estatuto processual penal.

Não obstante, vige o Código Nacional, que será analisado em suas

generalidades.

Acentua Rangel (2005, p. 167) que as investigações policiais são

dirigidas pelo Juiz-Instrutor, ficando o Ministério Público e a Polícia com a

função de auxiliá-lo. O Juiz-Instrutor tem a faculdade de delegar a apuração

ao Ministério Público. Essa fase é chamada de instrução.

Encerrada a investigação, é aberta vista ao último para iniciar a ação ou

requerer o arquivamento. Todavia, pode o Juiz-Instrutor compeli-lo a iniciar a

ação, caso não concorde com os fundamentos alegados para o arquivamento.

Abre-se, então, a fase de Juízo.

Anota Kac (2004, p. 83) que especialmente nas províncias vem sendo

superado o modelo de Juizado de Instrução, o qual tem sido substituído pela

investigação do Ministério Público.

76

2.3.8 – Chile

O estatuto processual chileno foi recentemente modificado, através da

Lei 19.696/2000, que reformulou todo o sistema até então empregado,

passando de natureza inquisitiva para acusatória.

Dadas as semelhanças desse País com o Brasil, essencialmente pelo

passado autoritário e inquisitorial, apresenta-se como um exemplo de

reformulação processual, razão pela qual o seu estudo é de extrema

importância, até pela adoção de diversas tendências mundiais adotadas para

a evolução científica do processo penal.

Afirma Lennon (2003, p. 767) que o País procurou se adequar aos

sistemas mundiais de persecução penal, baseados em convenções e tratados

internacionais sobre direitos humanos, em face do colapso do sistema

vigente, de forte corte inquisitivo, desacreditado pelos princípios teóricos e

desenho institucional ultrapassado e, no aspecto prático, ineficiente para a

apuração de crimes graves, sem nenhuma preocupação com as vítimas e

sem melhoras nas condições do imputado, apesar de várias reformas nesse

sentido.

Em decorrência, complementa a mesma autora (LENNON, 2003, p.

770) que o objetivo político da reforma foi a necessidade de se flexibilizar a

persecução penal, individualizando-se a resposta adequada para a solução

do conflito, possibilitando-se o emprego eficiente dos escassos recursos do

sistema. Privilegia-se a investigação de crimes graves ou aqueles em que

prevaleçam relações de poder, em detrimento dos crimes de bagatela.

Reposiciona-se a vítima, procurando satisfazer seus interesses lesados. O

acusado tem um magistrado comprometido com as garantias processuais

penais.

77

Várias foram as dificuldades e os obstáculos para a consecução de tal

mister, mormente pelo fato de a atividade estatal estar impregnada de ranços

autoritários, inexistindo a figura do Ministério Público como responsável pela

persecução penal desde 1927, a qual ficou a cargo do Juiz investigador e

julgador, sendo necessária a sua criação em 1999, bem como da Defensoria

Pública. Reformularam-se também os Tribunais de Justiça, criando-se um

novo sistema judicial, composto por Tribunal dos Juízes de Garantia e

Tribunal do Juízo Oral.

Conforme Oliveros (2003, p. 279-280), nesse sistema, o Ministério

Público, como órgão público autônomo, tem a tarefa constitucional e exclusiva

de dirigir a investigação dos delitos, compartindo com outros o exercício e a

sustentação da ação penal pública, tendo a vítima autorização para a queixa

no processo penal, em conjunto com o Promotor de Justiça, além das

hipóteses de ação penal privada.

Buscou-se, assim, uma justiça consensuada, complementa o mesmo

autor (OLIVEROS, 2003, p.281), em que acordos reparatórios entre a vítima e

o acusado põem fim à ação penal, nos crimes culposos, em caso de lesões

leves, ou afetando bens jurídicos disponíveis de caráter patrimonial. Como se

verá mais atentamente adiante, por meio de acordo com o investigado é

possível a suspensão condicional do procedimento ou a adoção do

procedimento abreviado em lugar do ordinário, bem como o estabelecimento,

com o defensor, de convenções probatórias, em que se torna indiscutível a

ocorrência de determinados fatos e circunstâncias.

Pela grandiosidade da tarefa, a implementação da vigência do novo

Código Processual Chileno foi gradual, entrando em vigor, nas 12 (doze)

regiões e na Região Metropolitana de Santiago, com diferenças temporais, de

2000 a 2005. Portanto, durante tal intervalo (2000/2005), conviveu o País com

estatutos processuais penais distintos.

Prevê, assim, a lei processual chilena o devido processo legal em Juízo

prévio, oral e público (art. 1º), perante um Juiz natural (art. 2º), com o

78

Ministério Público dirigindo, de forma exclusiva, a investigação criminal,

devendo fazê-lo em relação aos fatos que puderem comprovar a inocência do

imputado (art. 3º). Nesse ponto, pode o investigado requerer ao Ministério

Público diligências defensivas (art. 93, c).4

Tal investigação é feita sobre a fiscalização de um Juiz de garantia, que

atua sempre que um direito constitucional for privado, restringido ou

perturbado, devendo este zelar, de ofício, pelo adimplemento dos direitos

fundamentais (art. 9º e 10).

Desde a primeira vez em que for provocado, o imputado tem direito a

um defensor (art. 8º e 93, b). Não existe julgamento de réu ausente (art. 93, i

e 101), sendo o processo suspenso quando do Juízo oral.

Papel importante é deferido à vítima, considerada como aquele que foi

ofendido pelo delito, que pode intervir no processo penal para solicitar

medidas de proteção, ser ouvido pelo Ministério Público antes da conclusão

do procedimento investigatório e pelo Tribunal antes do provimento definitivo,

e recorrer do arquivamento (art. 109).

Na etapa de investigação, vige o princípio da oportunidade, podendo o

Ministério Público não iniciá-la ou abandoná-la por fatos que não

comprometam o interesse público (art. 170). O controle judicial só se dá para

crimes de penas punidas com reclusão ou cometidos por funcionários

públicos no exercício de suas funções. O Juiz de garantia pode não concordar

com a decisão, determinando a persecução penal, inclusive a requerimento

da vítima, cabendo a esta recurso às autoridades superiores do Ministério

Público.

O Ministério Público pode investigar infrações criminais pessoalmente

ou com o auxílio da Polícia(art. 180).Pode decretar o segredo da apuração em

4 Dispõe ainda o art. 3º da Lei nº 19.640/99, que estabelece a Lei Orgânica do Ministério Público Chileno, que a investigação criminal pelo Ministério Público deve se adequar a um critério objetivo,

79

relação a terceiros estranhos ao procedimento e, quanto ao imputado, por

prazo de até 40 (quarenta) dias, indicando as peças submetidas ao sigilo, que

pode ser levantado pelo Juiz de garantia (art. 182). Testemunhas e

investigado estão obrigados a comparecer perante o Ministério Público (arts.

190 e 193).

Toda a investigação deve ser registrada (arts. 227 e 228), prevendo o

Código de Processo Penal Chileno a necessidade de uma audiência do

Ministério Público com o investigado, perante o Juiz de garantia, para a

formalização da investigação (art. 229 e segs), destinada a comunicar àquele

que está sendo investigado a respeito de um ou mais delitos. A oportunidade

de tal ato é discricionária, somente sendo obrigatória quando da necessidade

de concessão, pelo Juiz, de alguma medida coercitiva. São efeitos da

formalização da investigação a suspensão do curso da prescrição da ação

penal, a impossibilidade de arquivamento provisório da investigação pelo

Ministério Público e o início do prazo, peremptório, para encerramento da

apuração, que é de dois anos (art. 247).

Nesse particular, interessante notar que somente não tem curso o prazo

peremptório de apuração durante a suspensão condicional do procedimento

(art. 237 combinado com art. 247), quando o julgamento depende da

resolução de questão civil, não comparece o imputado e é declarado revel, e

na superveniência de doença mental (art. 252), casos esses que também

levam ao arquivamento provisório do feito.

É possível que, na audiência de formalização da investigação, proceda-

se ao Juízo imediato, no qual o Ministério Público solicita diretamente o Juízo

oral, formulando oralmente a acusação e requerendo provas, ouvida a defesa

(art. 235).

devendo ser apurado não só os fatos e circunstâncias sobre os quais se embasam ou agravam a responsabilidade penal, mas também os que a eximam, a extingam ou atenuem.

80

Nos casos em que a pena não exceder três anos de privação de

liberdade, sendo o imputado primário, poderá o Ministério Público, em acordo

com este, requerer a suspensão condicional do procedimento (art. 237).

Concluída a investigação, o Ministério Público deverá formalmente

declará-la encerrada e, no prazo de 10 (dez) dias, solicitar o arquivamento

definitivo ou temporal da causa, formular acusação ou comunicar ao Juízo

que não irá proceder à persecução penal, por falta de elementos, extinguindo-

se a punibilidade, nesse último caso somente com a prescrição da ação penal

(art. 248).

Dá-se o arquivamento definitivo quando o fato investigado não constituir

crime; tiver sido estabelecida a inocência do investigado ou estiver este isento

de responsabilidade criminal; quando extinta a punibilidade ou em caso de

litispendência (art. 250). Nessas hipóteses, não é possível reabertura da

investigação.

O Código de Processo Penal Chileno considera muito importante a

participação da vítima, a ponto de permitir, em caso da não-propositura da

ação penal pelo Ministério Público, a sua intervenção com acusação particular

(arts. 258 combinado com art. 261).

Encerrada a investigação, com a elaboração da acusação, procede-se à

segunda fase do procedimento penal chileno, com a preparação do Juízo oral

(arts. 259 a 280).

Essa fase é presidida pelo Juiz de garantias e prima pela oralidade e

mediação, sendo vedada a apresentação de manuscritos. Ocorre um debate

entre a acusação e a defesa e, ao final, procede-se à formalização dos autos

de abertura do Juízo oral, em uma decisão judicial contendo: o Tribunal

competente para o processo; as acusações que devem ser objeto dele;

eventual demanda civil; os fatos incontroversos; as provas a serem

produzidas e a qualificação dos acusados e testemunhas. Os documentos de

investigação prescindíveis são devolvidos ao Ministério Público.

81

O Juiz de garantias remete o feito ao Tribunal competente, composto

por três juízes, iniciando a fase do Juízo oral (arts. 281 a 351). Citado o

acusado e comparecendo pessoalmente, inicia-se a audiência do Juízo oral,

de caráter público, que deve se realizar ininterruptamente, sendo permitidas

sessões. Os debates entre as partes desenvolvem-se com registros por

escrito, sendo vedada a apresentação de petições por escrito. Iniciada a

audiência, o presidente do Tribunal resume as acusações contidas no auto de

abertura do Juízo oral, passando a palavra ao Ministério Público ou ao

querelante, para sustentação da acusação. Em igual talante, ao defensor,

para apresentação de suas teses. Em seguida, interroga-se o acusado, com

perguntas diretas do Ministério Público e da defesa. Procede-se à instrução

da causa, com a oitiva de testemunhas e análise de laudos periciais, sendo

possível a oitiva de seus elaboradores. Somente por exceção é possível

referências a depoimentos anteriormente prestados. Também em relação às

demais provas, que só podem ser citadas se constituírem evidências. Proíbe-

se, com isso, que se apresente a prova produzida durante a investigação

criminal. As partes procedem a debates orais, com réplica, e é ouvido o

acusado. Encerrado o debate, os membros do Tribunal, de forma privada,

elaboram sentença, baseada na prova produzida durante o Juízo oral,

comunicando a absolvição ou condenação do acusado, podendo informar a

pena posteriormente. O recurso de apelação é dirigido ao mesmo Tribunal.

Acredita Oliveros (2003, p. 284) que a exigência de que o Tribunal

baseie sua sentença somente na prova produzida no Juízo oral faz com que

nasça um grande obstáculo a práticas policiais excessivas ou a abusos do

Ministério Público. Com a fiel observância desse princípio, a prova da

investigação tem o único propósito de formar a convicção acusadora do

Ministério Público, ao passo que a produzida no Juízo oral forma a convicção

sentenciadora do Tribunal.

82

Só haverá reanálise por instância superior se ocorrerem nulidades, em

caso de infração substancial a garantias constitucionais ou na aplicação

errônea do Direito, registra Lennon (2003, p. 776).

Este ponto da reforma chilena pode ser objeto de avaliação, face ao

modelo de devido processo constitucional abordado nesse estudo. O acesso

ao duplo grau de jurisdição é imprescindível a uma concepção de processo

que se preocupe com a participação das partes, pois a revisão das decisões

judiciais é que permitirá a reavaliação de seus fundamentos, e a vinculação

desta mesma decisão ao princípio do Estado Democrático de Direito, como

defendido por Dias (2004, p. 131).

Vedar o recurso sobre o mérito da causa, por entender-se que um

colegiado de três Juízes não seria passível de erro, relembra o ideário de um

processo inquisitório e autoritário, em total contrariedade aos princípios

acusatórios inspiradores do novo digesto chileno.

Prevê o Estatuto Processual Chileno o procedimento simplificado (arts.

388 a 399) para o processamento de faltas ou delitos simples, para os quais o

Ministério Público requeira a pena de prisão em grau mínimo. Neste,

assumida a responsabilidade penal, dita o Juiz de garantias sentença

imediata. Caso negada, procede-se a Juízo oral, a cargo do Juiz de garantia.

Para a imposição de pena de multa, requerida pelo Ministério Público, aplica-

se o procedimento monitório: o Juiz de garantias edita decisão com a fixação

da multa e notifica o acusado; caso não concorde com a pena, passa-se ao

procedimento simplificado. Adota-se o procedimento abreviado nos crimes

punidos com pena máxima de cinco anos (arts. 406 a 415). Nesse

procedimento, o acusado renuncia ao Juízo oral manifestando concordância

com os fatos produzidos pela acusação, sendo julgado pelo Juiz de garantias.

Colhe-se do relatório apresentado na Revista Sistemas Judiciales, ano

2, nº 3, 2002, publicação do CEJA, com tradução de Prado:

83

A reforma chilena responde, em geral, às mesmas características dos demais sistemas abarcados neste estudo. Sua principal expressão legislativa é o novo Código de Processo Penal, que estabelece a introdução de um juízo oral ante um painel de três juízes, como forma de julgamento, suprime a figura do juiz de instrução e entrega a tarefa de preparação do juízo ao Ministério Público, supervisionado por um juiz de garantias. Ao mesmo tempo o novo Código entregou ao Ministério Público diversas faculdades destinadas a lhe permitir usar procedimentos alternativos ao tradicional, com o fim de dar lugar a soluções negociadas e para descongestionar o sistema judicial do excessivo número de casos que habitualmente se apresentam. (PRADO, 2006, p. 100).

2.3.9 – Tendências mundiais

De todo o exposto, pode-se identificar algumas tendências mundiais na

elaboração e consecução do processo penal.

Em primeiro lugar, pretende-se ter o Ministério Público como órgão

encarregado da investigação criminal, regendo as atividades da Polícia

investigativa. Como órgão estatal ao qual a prova é destinada, acredita-se em

uma maior eficiência na apuração delitiva, visto que a Polícia não ficaria a

realizar diligências que, depois, não seriam aproveitadas na fase instrutória.

Tal mister é cumprido com a fiscalização e atuação de Juiz garantidor dos

direitos fundamentais do cidadão. A investigação criminal em certo momento

deve ser comunicada ao acusado. Somente procede-se a sua oitiva na

presença de defensor.

A maioria dos países não tem como investigar todos os delitos

comunicados às autoridades. Portanto, de maneira mitigada ou exagerada, o

Ministério Público tem a conveniência e a oportunidade de examinar a

necessidade de propositura da ação penal, visando à não provocar o Estado

com demandas infrutíferas, sempre com algum tipo de controle, seja legal ou

judicial.

Ruma-se para uma justiça criminal consensuada, em que certos tipos

de litígios não chegam à apuração penal se ocorrer acordo patrimonial com a

84

vítima. Esta, em alguns ordenamentos, passa a ter plena participação

processual, inclusive com a possibilidade de atuação particular mesmo com o

pedido de arquivamento feito pelo Ministério Público.

Observa-se que certos procedimentos podem ser simplificados com a

avença entre acusação e defesa, mediante consenso pela prova a ser

debatida, quando patente autoria e materialidade ou em caso de não

imposição de pena privativa de liberdade. Também no tocante à pena, no que

se convencionou chamar no Brasil de delação premiada.

Há ainda grande preocupação com uma análise detida no tocante à

admissibilidade prévia da acusação, em que podem as partes, inclusive,

produzir provas antes da instrução propriamente dita.

Procura-se também o menor contato possível entre o Juiz que analisará

a causa penal com a prova produzida na investigação criminal, buscando-se

manter sua imparcialidade. A atuação de ofício do magistrado vem sendo

negada.

Aponta ainda Fernandes (2000, p. 25) a internacionalização do Direito

Processual Penal, com a atribuição de status constitucional às normas de

direitos humanos dos tratados regionais e internacionais; e o trânsito do

Direito interno para o Direito internacional, via criação do Tribunal Penal

Internacional.

Importante inovação nesse sentido foi a adoção, pelo Direito brasileiro,

através do Decreto nº 678/1992, da Convenção Americana sobre Direitos

Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, que, se fosse

aplicada na sua inteireza, por si só, reformularia o processo penal brasileiro.

Como se poderá observar em seguida, o Digesto Penal pátrio encontra-

se bastante afastado das evoluções mundiais, estruturalmente arcaico e ainda

baseado em premissas inquisitórias e de relações de poder, que sufocam o

modelo de devido processo legal aqui defendido.

85

2.4 - O sistema em vigor no Brasil

Identificar, cientificamente, o sistema processual penal em vigor no

Brasil não é tarefa das mais fáceis, pela miscigenação de características dos

sistemas acusatório e inquisitório estudados.

Em um primeiro momento, a discussão sobre o sistema a ser adotado

no Brasil ocorreu na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal

(Decreto-lei nº 3.689/41), que justificou a manutenção do inquérito policial

como procedimento preliminar ou preparatório da ação penal através do

exame da realidade brasileira, não só dos centros urbanos, mas de remotos

distritos das comarcas do interior, o que inviabilizaria a adoção dos Juizados

de Instrução, especialmente pelo argumento geográfico.

O sistema em vigor, proclamado pelo Código de Processo Penal, é o

acusatório,5 com imperfeições tais que o levaram à característica inquisitória.6

A respeito, Prado adverte para a dificuldade de se encontrar a melhor

qualificação do sistema processual, observada pela estrutura do atual Código

de Processo Penal. Basta o exemplo de dois estudiosos do tema. Para

Frederico Marques, existe uma estrutura acusatória e, portanto, o sistema

misto ou francês não pode informar as leis de processo. Para Hélio Tornaghi,

o sistema é misto, porque a apuração do fato e da autoria é feita no inquérito

policial, enquanto o processo judiciário é acusatório (PRADO, 2006, p. 172).

Oliveira (2002, p. 10) considera que, se observado do ângulo de

separação das partes, o nosso sistema é acusatório, pois acusação e

julgamento são feitos por órgãos distintos, mas o modelo adotado apresenta

5 Assim o consideram: José Frederico Marques, in Estudos de Direito Processual Penal. 2ª ed. Campinas: Millennium, 2001, p. 21 e José Barcelos de Souza, in Teoria e prática da ação penal, São Paulo: Saraiva, 1979, p. 06. 6 Neste último sentido: Afrânio da Silva Jardim, in Direito Processual Penal. 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 44.

86

dificuldades para ser efetivamente acusatório, como a mutatio libelli e a busca

probatória da verdade real, com iniciativa jurisdicional.

Coutinho (1999, p. 66-67) estuda a questão pela gestão da prova, para

diferenciar os sistemas. No inquisitório, a principal característica é a extrema

concentração de poder nas mãos do órgão julgador, o qual detém a gestão da

prova. O acusado é mero objeto de investigação e tido como detentor da

verdade de um crime, da qual deverá dar contas ao julgador. No acusatório, a

gestão da prova está nas mãos das partes, e o Juiz dirá, com base

exclusivamente nessas provas, o Direito a ser aplicado no caso concreto.

Portanto, o sistema brasileiro é inquisitório, pois a gestão da prova está nas

mãos do Juiz.

Para Prado (2006, p. 106), o princípio acusatório parte da premissa de

um processo de partes, analisando-as estaticamente, por intermédio das

funções significativamente designadas aos três principais sujeitos, e

dinamicamente, pela observação do modo como se relacionam juridicamente

autor, réu, seu defensor e Juiz, no exercício das suas funções.

Portanto, ao sistema brasileiro aplica-se a teoria da aparência

acusatória, pela qual o sistema acusatório é só mediático, estruturalmente

condicionado em seus resultados pela atividade inquisitória anterior, sendo

certo que muitos dos princípios opostos ao acusatório são implementados

todo dia (PRADO, 2006, p. 94 e 195).

Aponta o mesmo autor três exemplos para indicar a atuação indevida

do órgão jurisdicional, de natureza inquisitória, que deformam o sistema

acusatório: o exercício da ação penal, originalmente como previa o art. 531 do

CPP, ou de modo superveniente, interferindo na delimitação do objeto do

processo, com a mutatio libelli, prestigia a idéia de que a punição não pode

depender de um autor de ação penal independente e livre para apreciar se

deve ou não acusar e o que deve ou não incluir na acusação; a produção de

prova de ofício deforma o duelo intelectual, pois a atividade probatória não

está desvinculada do exercício dos direitos processuais, e imaginar que o Juiz

87

exerce direitos no processo importa controlar o material da decisão para

reduzir as brechas da impunidade; e o recurso de ofício, no qual o Juiz que

recorre da própria sentença favorável ao réu, para submetê-la

obrigatoriamente a exame por Tribunal de segundo grau, concorre para a

política de segurança pública de que se torna protagonista (PRADO, 2006, p.

105).

Como anota Bastos (2004, p. 16), outras vicissitudes inquisitoriais

podem ser citadas: requisição de instauração do inquérito policial pelo Juiz;

feitura de relatório pelo Delegado de Polícia ao término do inquérito policial;

devolução dos autos à autoridade policial pelo Juiz, com fixação de prazo

para diligências; requisição, por este, de diligências investigatórias; análise,

pelo magistrado, de requerimento de novas diligências pelo Ministério Público

e notícia-crime dirigida ao Juízo.

Observa-se na Lei do Crime Organizado (Lei n.º 9.034/95) a

possibilidade de praticar o Juiz atos investigatórios na fase de inquérito

policial.

Rangel (2005, p. 198) aponta outras imperfeições, como a permanência

dos autos do inquérito policial, com a contaminação da fase judicial pela prova

colhida anteriormente, medida que vem sendo abandonada pela doutrina

mundial.

Para superar tais paradoxos, alguns autores falam em sistema

acusatório de estrutura adversarial, no qual a inércia probatória judicial é

regra, e sistema acusatório mitigado ou temperado pela investigação judicial,

aplicado pelo CPP, no qual se reconhece a existência de poderes supletivos

de investigação judicial, estando o magistrado autorizado a produzir provas de

ofício, o que não afetaria a natureza do sistema acusatório (PRADO, 2006, p.

139-140).

Em uma visão neo-institucional do processo, o que determina a

acusatoriedade ou inquisitoriedade de cada modelo processual é o grau de

observância do devido processo no âmbito da legislação infraconstitucional.

88

Se o sistema defende um maior respeito às garantias do contraditório, ampla

defesa e isonomia, logicamente tem cunho acusatório. Se, ao contrário, tais

garantias são inobservadas, caracteriza-se o sistema inquisitório. A relação

jurídica que se desenvolve entre as partes dá uma visão rápida do modelo,

pois o sistema acusatório só se coaduna com funções destinadas a

personagens distintos: um que acusa, outro que defende e aquele que julga.

Todavia, mais que isso, deve ser analisado como se desdobra a rede de

poderes processuais entre as partes, a sua discursividade e participação para

a elaboração do provimento final.

O princípio acusatório, avaliado estaticamente, consiste na distribuição

do direito de ação, do direito de defesa e do poder jurisdicional, entre autor,

réu, seu defensor e Juiz (PRADO, 2006, p. 113).

E, com base em tal premissa, ousa-se aqui afirmar que o sistema

brasileiro é inquisitorial. Isso porque a fase de inquérito policial está despida

de garantias processuais. A fase dita acusatória está contaminada por

relações de poder destinadas ao magistrado, também de cunho inquisitorial,

reduzindo especialmente a participação do acusado. Logo, o processo penal

brasileiro não pode ser caracterizado como acusatório nem como misto, pois

a apuração não é dirigida pelo Juiz de instrução.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, várias e importantes

críticas foram feitas ao sistema processual penal brasileiro, que não teria sido

encampado pela nova ordem constitucional.

Como exemplo, a necessidade de se dar contraditório ao inquérito

policial. Para Suannes (1999, p. 132):

No que diz com o processo penal, o desequilíbrio inicial caracteriza a própria ação penal. Conferindo a lei ao Estado o poder de investigar sem ater-se a qualquer regra assecuratória de direitos, ingressa ele em Juízo, não poucas vezes, com a prova substancial já preconstituída, como se dá, por exemplo, com a prova pericial relativa à materialidade do delito, jamais sujeita ao contraditório efetivo, pois a idéia de que na tramitação do inquérito policial se há de observar o princípio constitucional do contraditório não tem

89

merecido de nossos tribunais o sufrágio desejado por muitos. (SUANNES, 1999, p. 132).

Visando ao aperfeiçoamento do sistema, para Jardim (2001, p. 320), é

vedada ao magistrado, na atual conjuntura constitucional, a prática de

qualquer ato de ofício ou atividade persecutória penal, esclarecendo:

Destarte, entendemos vedada aos órgãos do Poder Judiciário qualquer atividade persecutória na fase inquisitória, pré-processual. Não é mais o juiz um dos destinatários da noticia criminis, em qualquer de suas modalidades. Não pode mais o magistrado requisitar a instauração de inquérito policial, desempenhando função anômala dentro do sistema acusatório, que se apresenta como pressuposto do devido processo legal. Tais poderes são incompatíveis com a nobre função de julgar, julgar com neutralidade e imparcialidade. Agora, o juiz somente deve desempenhar função jurisdicional, dependendo sempre de provocação da parte, através do exercício do direito de ação, seja de conhecimento, seja cautelar. Pelo que ficou dito, é despiciendo asseverar que as regras dos artigos 26 e 531 do Código de Processo Penal e da Lei 4.611/65 estão revogadas pelo atual texto constitucional. Veja-se o art. 129, inciso I, da Constituição7.

Registra-se a recente edição da Lei n.º 11.101, de 9 de fevereiro de

2005, que acabou com a esdrúxula figura do inquérito falimentar judicial,

restabelecendo o inquérito policial como método de investigação.

Observa-se que a doutrina é uníssona na necessidade de reformulação

do processo penal brasileiro, e vem encontrando eco na legislação produzida

a partir da nova ordem constitucional.

Urge, portanto, aos juristas a difícil tarefa de reformulação do sistema

processual penal brasileiro, para que se avance para uma doutrina

democrática e participativa, com respeito ao devido processo.

Registra Prado:

7 Refere-se o autor, respectivamente, a instauração de ação penal por portaria da autoridade judicial ou policial no caso de contravenções penais; o processo sumário relativo a tais infrações; a possibilidade de adoção deste procedimento nos homicídios e lesões culposas e a exclusividade do Ministério Público na propositura da ação penal pública.

90

Deve-se, pois, à concepção ideológica de um processo penal democrático, a assertiva comum de que a sua estrutura há de respeitar, sempre, o modelo dialético, reservando ao juiz a função de julgar, mas com a colaboração das partes, despindo-se, contudo, da iniciativa da persecução penal. (PRADO, 2006, p. 33)

Assim, o processo ideal é aquele que preenche a cláusula

constitucional do devido processo legal, formal e também substancial

(PRADO, 2006, p. 45).

Para tanto, deve-se aplicar a teoria neo-institucional do processo,

buscando-se uma reinterpretação de todo o ordenamento jurídico processual

penal, no estabelecimento de procedimentos discursivos, em que a jurisdição

tenha a sua rede de relações de poder reduzida, aumentando-se a

participação do acusado na elaboração do provimento final, em simétrica

paridade com o Ministério Público.

Como uma primeira contribuição nesse sentido, analisa-se aqui a idéia

dos pressupostos processuais penais, buscando uma nova acepção para a

citação válida, tratada tradicionalmente como pressuposto de validez da

relação processual.

91

CAPÍTULO III 3. O MODELO PROCESSUAL PENAL BRASILEIRO: A CITAÇÃO COMO ELEMENTO DO PRESSUPOSTO PROCESSUAL PENAL 3.1 – O ato jurídico

Antes de adentrarmos as assertivas referentes ao ato jurídico,

necessário que se diferenciem os conceitos de fato jurídico, ato jurídico e

negócio jurídico, adotando-se a lição de Veloso (2005, p. 1-18).

Fato, para ter interesse ao Direito, precisa corresponder a uma

previsão normativa, a um tipo legal, ocorrendo subsunção à hipótese de

incidência. Fato jurídico, portanto, é o que está inserido em uma estrutura

normativa, o que corresponde ao suporte fático da regra jurídica. Incidindo a

regra jurídica sobre um fato, ele entra no mundo jurídico, passa a existir como

fato jurídico, sendo acontecimentos naturais ou ações humanas que

produzem conseqüências jurídicas, em sentido lato.

Fato jurídico stricto sensu representa alteração da ordem jurídica sem

fato humano, sem participação da vontade do homem, e pode decorrer de

caso fortuito ou força maior.

Os fatos jurídicos que resultam de ações humanas, que derivam de um

comportamento do agente e da vontade do homem, são chamados

genericamente de atos jurídicos lato sensu.

Estes se subdividem em ato jurídico em sentido estrito − em que a ação

humana ou a manifestação de vontade funciona como pressuposto de efeitos

preordenados pela lei, ou seja, o comportamento ou a vontade concretiza o

92

suporte fático necessário para criar o fato, fazê-lo entrar no mundo jurídico − e

negócio jurídico − em que a vontade tem maior vigor e intensidade, pois a

declaração de vontade tem força para criar o fato jurídico, podendo

estabelecer encargos, condições e outras estipulações, podendo ser unilateral

e bilateral. Declaração de vontade é, assim, manifestação de vontade

qualificada, destinada a produzir efeitos jurídicos.

Pontes de Miranda (1954a, p. 372) aponta a existência de atos-fatos

jurídicos, que seriam aqueles atos humanos dos quais decorrem

conseqüências jurídicas, sem relevância do elemento volitivo. Valoriza-se a

conduta humana.

Não importa, assim, se houve ou não vontade em praticá-lo, pois o ato

que está à base do fato é da substância do fato jurídico, recebendo a norma

jurídica como avolitivo, ressalta Mello (2007a, p. 134).

O ato ilícito, por produzir efeitos jurídicos contra a vontade do agente

causador do dano, é um fato jurídico em sentido lato, pois a liceidade é

atributo do ato jurídico em sentido estrito.

Dentro da classificação referida, a citação é ato jurídico processual

stricto sensu, como aventa Mello (2007 a, p. 158).

Para a pesquisa empreendida, acerca da citação válida, importa o

conceito de ato jurídico em sentido estrito, que será melhor disciplinado.

O revogado Código Civil de 1916 definia, em seu artigo 81, o ato

jurídico como “todo ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar,

transferir, modificar ou extinguir direitos”.

Assim, o ato jurídico é fundamentalmente um ato de vontade, visando à

um fim, que é alcançar um efeito jurídico, afirma Rodrigues (1995, p. 169).

Em igual talante, Pereira (1995, p. 304), para quem a expressão ato

jurídico é um conceito jurídico mais amplo, compreensivo de qualquer

declaração de vontade, individual ou coletiva, do particular ou do Estado,

destinada à produção de efeitos.

93

O atual Código Civil estabelece, em seu artigo 104, os requisitos da

validade do ato jurídico, quais sejam: agente capaz, objeto lícito e forma

prescrita ou não defesa em lei.

Importa perquirir acerca da forma da citação, pelo seu caráter solene.

Embora o direito atual não se coadune com a ritualística romana e

medieval, quando a lei determina uma forma, pretende atingir vários efeitos,

afirma Rodrigues:

O requisito da forma, quando exigido pelo legislador, tem múltipla finalidade. Poder-se-ia ressaltar a facilidade de prova, a maior garantia de autenticidade do ato, a mais ampla dificuldade em apresentar-se à vontade do agente viciada pelo dolo ou coação e, um fator que nem sempre tem sido devidamente realçado, a solenidade revestidora do ato, que tem o condão de chamar a atenção de quem o pratica para a seriedade do ato. Aliás, observe-se como muitas vezes a lei cerca os atos de alta importância de complicadas formalidades, como a chamar a atenção das partes para a seriedade da atitude que estão tomando (RODRIGUES, 1995, p. 177).

Conclui o mesmo autor que se a lei só permite que se prove um ato

jurídico através de uma forma determinada, tal forma é da substância do ato,

por que, sem tal solenidade, o mesmo não se admite como existente

(RODRIGUES, 1995, p. 177).

A respeito, considera Leal que a obediência à forma do ato, de natureza

processual, é o que valida o procedimento, aduzindo:

Afirma-se a esmo que os atos praticados no processo são atos processuais; porém, os atos que compõem a atividade processual, para serem processualmente jurídicos e produzirem efeitos validamente construtivos do procedimento, precisam ser praticados conforme o modelo, as condições e os requisitos contidos em norma legal. O ato processual há de ser, portanto, o reflexo concretizado pelos sujeitos do processo do que contém a norma que lhe dá suporte de legitimidade e validade, embora possa ter eficácia até que sobrevenha a respectiva decretação da nulidade (LEAL, 2005, p. 175).

O caráter solene da citação será importante para o raciocínio

empreendido, como se verá em momento posterior.

94

3.2 - Existência, validade e eficácia A diferenciação entre os conceitos de existência, validade e eficácia

vem encontrando as mais diferentes acepções entre os estudiosos do direito,

dificultando a apreensão do sentido jurídico emprestado aos mesmos.

Procurar-se-á melhor sistematizá-los, buscando uma terminologia adequada,

referente à norma jurídica e ao ato jurídico, no seguimento deste estudo.

Norma deve ser compreendida como o padrão de licitude adotado pelo

Estado na criação e disciplinação de direitos, como síntese de permissão,

dever e vedação. No sentido kelseniado, bastaria a lei estabelecer uma

proposição lógica de condição-conseqüência e estaria instalado o aparelho

repressor do Estado pela sanção da lei, sem que fosse possível se cogitar da

justificação dos conteúdos normativos, considera Leal (2005, p. 125).

Isso porque, em Kelsen, a força é o objeto da regulamentação jurídica,

isto é, que por Direito deve-se entender não um conjunto de normas que se

tornam válidas através da força, mas um conjunto de normas que regulam o

exercício da força numa determinada sociedade (BOBBIO, 1999, p. 68).

Para Hans Kelsen, a existência específica de uma norma designa-se

pela palavra “vigência” ou como a norma jurídica nos é dada ou se nos

apresenta. Eficácia é o fato real da norma ser efetivamente aplicada e

observada, é dizer que “uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do

que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada”

(KELSEN, 1998, p. 11).

Como esclarece Kelsen:

Valer neste sentido específico – objetivo – significa: dever ser obedecido. Esta validade de uma norma é sua existência específica ideal. Que uma

95

norma vale significa que ela é existente. Uma norma que não vale, não é norma, porque não existe (KELSEN, 1986, p. 36).

Assim, quando se fala em norma válida, é o mesmo que dizer que ela

possui força de obrigatoriedade para aqueles cuja conduta regula. A validade,

ou existência específica de uma norma jurídica, é diferente da existência do

ato de vontade do qual ela é o sentido objetivo. A vigência da norma pertence,

portanto, ao âmbito do dever-ser e não se confunde com sua eficácia,

pertencente ao âmbito do ser, comenta Gomes (2004, p. 203).

Ainda segundo o mesmo autor, o fundamento da validade da norma

jurídica em Kelsen diz respeito à forma, e não ao conteúdo, pois são válidas

as normas jurídicas produzidas de acordo com critérios postos numa norma

superior. Assim, a norma superior é o fundamento de validade da norma

inferior (GOMES, 2004, p. 227).

Portanto, para Kelsen, a existência da norma jurídica se dá com a sua

vigência, que importará na validade da mesma, restando a eficácia para o

plano sociológico, se é observada por seus destinatários.

Embora considere que validade e eficácia não são a mesma coisa,

existe relação entre elas. Certa eficácia é condição de validade da norma

jurídica, ou seja, a norma deve ser cumprida, sendo obedecida pelos sujeitos

espontaneamente, ou aplicadas suas sanções, quando descumprida. Se a

norma jurídica deixa de ser aplicada e cumprida, deixa de ser eficaz e,

portanto, válida, explica Gomes (2004, p. 203-205).

A sanção da norma é estatuída por uma ordem normativa para garantir

a eficácia dessa ordem, como motivo da conduta adequada à norma,

argumenta Kelsen (1986, p. 176).

Mello é contrário a tal posicionamento. Esclarece o autor que validade e

vigência produzem eficácia jurídica, afirmando:

Para Kelsen, portanto, somente começa a existência de uma norma jurídica a partir de sua vigência (validade), de modo que não se poderia considerar jurídica uma norma regularmente posta pelo órgão competente da

96

comunidade jurídica enquanto não entrar em vigor (em vacatio legis, por exemplo). Essa visão não parece correta, pelas razões seguintes: (a) validade constitui uma qualidade de norma, portanto de norma que exista; o que não existe não pode ser qualificado, senão como inexistente. Portanto, para ser considerada válida (ou inválida) é essencial que a norma jurídica exista no sentido de estar no mundo; (b) a norma depois de regularmente posta no mundo (promulgada e/ou publicada) para entrar em vigor em certo momento no futuro (vacatio legis), somente não entrará em vigência se for regularmente revogada; se não houver revogação, no dia aprazado iniciar-se-á sua vigência, vinculando as condutas a que se referir. Por aí se vê que a só existência da norma no mundo já produz a eficácia jurídica de vincular a comunidade jurídica a ela. Como dizer inexistente algo que cria vínculos jurídicos? Na visão ponteana, a validade é considerada apenas do ponto-de-vista dogmático da perfeição da norma jurídica (não ser inconstitucional, por exemplo), não afetando nem se referindo à sua existência. (MELLO, 2007b, p. 16-17).

Norberto Bobbio parte do conceito de Direito como ordenamento com

eficácia reforçada, pois a força é necessária para a realização do Direito,

equivalendo dizer que existe ordem jurídica somente enquanto se impõe pela

força, residindo aí a sua eficácia. A força é o instrumento para a realização do

Direito (BOBBIO, 1999, p. 66-67).

Ao dissertar sobre a existência, validade e eficácia da norma jurídica,

Bobbio entende que a norma existe, ou é juridicamente válida, enquanto

pertence a um ordenamento jurídico. Se a norma é válida, significa que é

obrigatório conformar-se a ela, ou o Juiz será obrigado a intervir, atribuindo

uma ou outra sanção. A primeira condição para que a norma seja considerada

válida é que ela advenha de uma autoridade com poder legítimo de

estabelecer normas jurídicas. E esse poder legítimo lhe é atribuído por uma

norma fundamental, além da qual não existe outra. Uma norma é válida

quando puder ser reinserida, através de um ou mais graus, na norma

fundamental. Portanto, essa norma é o fundamento de todo o sistema e o

princípio unificador das normas de um ordenamento (BOBBIO, 1999, p. 60-

62).

Para resolver a polêmica validade versus eficácia, pretende Norberto

Bobbio que a análise parta não da norma em si, mas de uma visão de todo o

97

ordenamento. Existem normas que são válidas, por terem sido legitimamente

produzidas, mas não eficazes, porque não foram aplicadas. Ao se deslocar a

norma singular para o ordenamento, e afirmando-se que a eficácia é um

caráter constitutivo do Direito, o problema diminui, pois a eficácia é o próprio

fundamento da validade. Assim, uma norma pode ser válida sem ser eficaz,

mas o ordenamento jurídico tomado em seu conjunto só é válido se for eficaz

(BOBBIO, 1999, p. 29 e 67).

Através da invalidade, assegura-se a integridade do ordenamento

jurídico, pois ao se recusar utilidade jurídica e prática aos atos jurídicos

realizados com infringência de suas normas, resguarda-se a validade como

um todo (do ordenamento jurídico) e de cada uma das normas em particular,

complementa Bobbio (1958, p. 188).

Para Kelsen e Bobbio, por diferentes razões, existência confunde-se

com validade, separando-se o conceito de eficácia. Quando do estudo de tais

conceitos em relação ao ato jurídico, a moderna doutrina considera a

separação dos três conceitos.

Pontes de Miranda considera três planos de estruturação do mundo

jurídico. No plano de existência, entram todos os fatos que recebem a

incidência juridicizante de norma jurídica. Concretizado suficientemente o

suporte fático, a norma jurídica que o prevê incide e lhe dá entrada no mundo

jurídico. No plano da validade se apura se o ato jurídico é válido (não tem

efeito invalidante) ou é inválido (nulo ou anulável), denotando, assim,

qualidade de perfeição do ato jurídico. Sendo válido, o ato jurídico passa ao

plano da eficácia, no qual, estando apto, produzirá seus efeitos específicos.

Do mesmo modo, têm acesso ao plano da eficácia os atos jurídicos nulos, a

que o ordenamento jurídico atribua certos efeitos, e o anulável, até serem

desconstituídos, lembra Mello (2007b, p. 2).

Assim, na visão de Pontes de Miranda, para que algo valha, é preciso

que exista. Não há sentido em falar-se em validade ou invalidade a respeito

do que não existe. A questão da existência é questão prévia. Somente depois

98

de se afirmar a existência é que é possível se falar em validade ou invalidade.

Se não houve ato jurídico, nada há que possa ser válido ou inválido (PONTES

DE MIRANDA, 1954b, p. 6-7).

Marcos Bernardes de Mello segue o entendimento de Pontes de

Miranda, aduzindo que deve-se aferir inicialmente se o ato jurídico existe.

Somente vencido o plano de existência, passa-se ao de validade e de

eficácia, pois a validade e a eficácia são qualificações distintas atribuídas ao

ato jurídico pelas normas jurídicas. O existir constitui, pois, pressuposto

essencial da validade e da eficácia, pois somente o que existe pode ser

qualificado (MELLO, 2006, p. 13).

Assim, no plano da existência, são necessários elementos, tudo aquilo

de que algo mais complexo se compõe; no plano da validade, as condições,

exigências, que se devem satisfazer para preencher determinados fins; e no

plano da eficácia, fatores que concorrem para determinado resultado, aduz

Azevedo (2002, p. 30).

Similar o entendimento de Veloso, para quem não devem ser

confundidas inexistência e invalidade. O inválido existe, pois entrou no mundo

jurídico, mas construído com afronta a alguma norma jurídica, o que o torna

nulo ou anulável (Veloso, 2005, p. 22).

O tema aqui desenvolvido será importantíssimo para o aclaramento do

eixo teórico defendido, no sentido de que a citação pessoal e válida integra

o conceito de processo como procedimento em contraditório, como se verá na

conclusão desta pesquisa.

3.3 – Os pressupostos processuais penais

No contexto instrumentalista civil, pressupostos processuais são

exigências legais, sem cujo atendimento o processo, como relação jurídica,

99

não se estabelece ou não se desenvolve validamente. São requisitos jurídicos

para a validade e eficácia da relação processual. Assim, pressupostos de

existência são os requisitos para que a relação processual se constitua

validamente, e pressupostos de desenvolvimento aqueles a serem atendidos,

depois que o processo se estabeleceu regularmente, a fim de que possa ter

curso até o provimento final, leciona Júnior (1995, p. 58-59).

Os pressupostos processuais são requisitos de ordem pública, que

condicionam a legitimidade do próprio exercício da jurisdição. Por isso, não

precluem e podem, a qualquer tempo, ser objeto de exame, em qualquer fase

do processo e em qualquer grau de jurisdição, desde que não decidido o

mérito da causa, complementa (JÚNIOR, 1995, p. 309).

No contexto processual penal, definia Florian (1933, p. 85-86) os

pressupostos processuais penais como as condições mínimas cujo

cumprimento é necessário para que exista, genericamente, um processo no

qual o órgão judicial possa prover, considerando três elementos

indispensáveis: órgão jurisdicional penal, relação concreta de direito penal,

acusador e defensor.

Tornaghi (1959, p.322) diferencia os pressupostos processuais de

existência e de validade da relação processual:

Pressupostos de existência da relação processual são, pois: a demanda judicial, a jurisdição e as partes. Pressupostos de validez são aqueles cuja falta vicia a relação processual sem a impedir de nascer. Referem-se às partes (legitimatio ad processum, isto é, capacidade) e ao juiz (competência e insuspeição) ou ao objeto; originalidade (isto é, não litispendência nem coisa julgada). (TORNAGHI, 1959, p. 322).

Para Souza (1979, p. 13), inexistindo pressupostos de existência, não

há relação processual; ausentes pressupostos de validez, ocorre a invalidade

do processo.

Outro tipo de classificação é feita, didaticamente, pelo mesmo autor

(SOUZA, 1995, p. 43):

100

Costumam os pressupostos processuais ser classificados como subjetivos e objetivos. Os subjetivos se referem aos sujeitos principais da relação processual – juiz e partes. Os objetivos dizem respeito ao objeto formal do processo, relacionando-se, pois, com as nulidades de certos atos, a refletir na validade do processo, e com o procedimento. Os objetivos podem ser intrínsecos ou extrínsecos à relação processual. (...) 1. Subjetivos: a) Juiz competente (no processo civil, entenda-se: ausência de incompetência absoluta) e não impedido; b) Partes com capacidade processual (devidamente representadas, quando for o caso, como é o das pessoas jurídicas) ou representadas ou assistidas (se incapazes); c) Capacidade postulatória (exceto quando dispensada) ou representação por advogado; 2. Objetivos: (intrínsecos) a) Petição que atenda os requisitos legais (CPC, Art. 282; CPP. art. 41); b) Procuração passada ao advogado que representar a parte; c) Procedimento de acordo com as normas legais; (extrínsecos) d) pagamento de custas e honorários no caso do art. 268 do CPC ou outra condição de procedibilidade. (SOUZA, 1995, p. 43).

Para Oliveira (2002, p. 68), a acepção de pressuposto em si é errônea,

na medida em que pressupostos seriam só os de existência, por ser apenas o

antecedente necessário à existência do objeto. No tocante à validade, dever-

se-ia falar em requisitos.

Para o mesmo autor (OLIVEIRA, 2002, p. 68-69), imprescindível ainda

distinguir-se entre pressuposto de existência de processo e da relação

processual. Para o primeiro, bastaria a existência de órgão jurisdicional

investido de jurisdição e demanda. Para o segundo, necessária a citação do

réu.

3.4 – A citação no contexto instrumentalista do processo penal

101

No campo processual, dizem-se atos jurídicos processuais os que têm

importância jurídica quanto à relação processual, isto é, os atos que têm por

conseqüência imediata a constituição, a conservação, o desenvolvimento, a

modificação ou a definição de uma relação processual, conceitua Chiovenda

(1998, p. 20).

Portanto, o ato jurídico citatório sempre teve grande importância no

processo penal, pois é o que constitui a relação processual.

Consoante lição de Grinover, Fernandes e Gomes Filho:

(...) a citação constitui seguramente o mais importante ato de comunicação processual, especialmente em sede penal, pois visa a levar ao conhecimento do réu a acusação que lhe foi formulada, bem como a data e local em que deve comparecer para ser interrogado, propiciando, assim, as informações indispensáveis à preparação da defesa. (GRINOVER; FERNANDES; GOMES FILHO, 2000, p. 101)

Conceitua Tourinho Filho (1994, p. 168) a citação como ato processual

que leva ao conhecimento do réu a notícia de que contra ele foi intentada

ação penal, para que possa defender-se.

Anota Marques (2000, p. 209-210) que é o ato processual com que se

dá conhecimento ao réu da acusação contra ele intentada, a fim de que possa

defender-se e vir a integrar a relação processual, ficando vinculado à instância

(relação processual), com os ônus decorrentes. Considera-a imprescindível

para o início do processo, imperativo do contraditório e substancial ao

exercício do direito de defesa, sendo sua falta nulidade absoluta oponível

inclusive com a res judicata. Complementa Marques (2000, p. 230) que a

citação válida estabelece a angularidade da relação processual, surgindo a

instância, pois a litispendência pré-processual transforma-se em processual,

com vinculações e deveres para as partes.

Melhor esclarecendo:

102

O início da ação penal estabelece relações lineares entre o Estado-administração e o juiz penal. Os atos da persecutio criminis trazem relações lineares entre o Estado e o indiciado. Com a citação do réu, fixa-se a angularidade da relação processual, ao depois completada para tornar-se relação triangular.

Mas o início da ação penal não pode marcar o início da instância, porque, antes de citado o réu, vinculado não se acha ele aos liames processuais da instância. Todos os efeitos do processo estão conexos a citação, como bem explica Beceña, como acto que hace pública la demanda y la dá a conocer a los interesados. Muito menos ainda se pode falar de instância em relação aos atos preparatórios do procedimento ordinário. O que existe aí, ou é outra instância, de caráter instrumental, quando se cuida de atos de processo cautelar; ou, então, situação litigiosa entre o Estado e o Indiciado. Mas a instância do processo condenatório só começa com a propositura da ação penal, isto é, com a citação válida do réu. Diz muito bem Luís Loreto que, com a apresentação do pedido, já se estabelece uma relação de direito entre o autor e o órgão judiciário; mas, com isso, ainda se não constituiu a verdadeira relação processual, que só aparece com a citação válida do réu. O autor, por haver apresentado a petição inicial, já se encontra vinculado à relação jurídica bilateral (autor-juiz), mas só a ela, desde o momento em que ajuizou o pedido. É a citação, porém que vai vincular ambas as partes à relação processual penal propriamente dita. (MARQUES, 2000, p. 235).

Para Netto (1997, p. 95), a citação completa a relação processual e,

como noticia a existência da ação penal, é essencial à regularidade do

processo (1997, p.100).

Hélio Tornaghi (1959, p. 245) demonstra tal importância:

Em que momento surge a relação processual penal? Que ato a constitui? Essas as primeiras perguntas que se podem fazer a propósito do aparecimento do processo como relação jurídica. De maneira geral, com a demanda surge o vínculo entre o autor e o juiz; com a citação, liga-se este ao réu. ( TORNAGHI, 1959, p. 245).

Similar entendimento é o de Souza, no contexto da relação jurídica

processual:

103

Um outro pressuposto de existência é de ser considerado , mas tão somente quanto ao réu. É o da citação, quando for caso dela, salvo se, independentemente dela ou de sua validade, comparecer o réu, assim suprindo-lhe a falta ou sanando-lhe a nulidade. (SOUZA, 1995, p. 30)

Tourinho Filho (1994, p. 170), inspirado em Couture, vislumbra a

importância da citação, pelo cunho de garantia constitucional. Sendo ato pelo

qual se leva ao conhecimento do réu a notícia de que contra ele foi instaurada

ação penal, não a havendo, não se estaria a dar aos acusados a ampla

defesa constitucional. Considera ainda que, sendo a instrução processual

contraditória, é indispensável o chamamento a Juízo, tanto é que sua

ausência é fulminada pela nulidade insanável (art. 564, III, e, do CPP), mesmo

presente a coisa julgada.

Também apresentando a análise da citação com ênfase constitucional,

Vargas (1992, p. 162) leciona que, se o processo não se inicia sem o

contraditório, a citação é o elemento de integração do acusado na relação

processual.

Assegura Júnior (1995, p. 253-254) que, no contexto processualístico

civil, o requisito de validade do processo é não apenas a citação, mas a

citação válida, pois fulminada de nulidade quando feita sem observância das

prescrições legais, tratando-se de nulidade insanável, nos termos do art. 247

do CPC, possibilitando ainda ação rescisória (art. 741, I, do CPC).

Todavia, entende o doutrinador que, inobstante a falta ou vício da

citação, não há que se falar em nulidade do processo se o objetivo for

alcançado por outras vias, como o comparecimento espontâneo do réu sem

prejuízo em sua defesa.

Os efeitos da citação transcendem a ciência da ação e seus termos ao

réu. Conforme dispõe o artigo 219 do CPC, a citação válida torna prevento o

Juízo, induz litispendência e faz litigiosa a coisa, e mesmo que ordenada por

Juiz incompetente, constitui em mora o devedor e interrompe a prescrição.

104

A concepção instrumentalista do processo, a par de sempre considerar

a citação válida como pressuposto de validez da relação processual e discutir

a sua importância, especialmente na área penal, pelo adimplemento do

contraditório, jamais investigou o seguinte aspecto: a teoria instrumentalista

concebe o processo como relação jurídica entre Juiz, autor e réu; portanto, só

haveria processo pela constituição da relação jurídica, ou seja, quando se

perfaz o liame entre os atores do processo, advindo a citação.

Entretanto, considerado o processo penal na atualidade constitucional

brasileira, a citação pessoal é meramente pressuposto de existência do

procedimento instaurado, e não de sua validez, que só ocorreria pelo

processo, conforme se verá pela teoria neo-institucionalista.

3.5 – A teoria neo-institucionalista do processo no contexto dos pressupostos processuais

O contexto de aplicação dos pressupostos processuais na teoria da

relação jurídica instrumental, desenvolvida linhas acima, apresenta-se

totalmente divorciado da concepção democrática-discursiva, quando aplicada

na concepção neo-institucionalista do processo.

Em obra especializada8, o Professor Rosemiro Pereira Leal, a partir de

Popper e Habermas, desenvolve uma linha de pesquisa para a aplicação do

conceito de democracia procedimental discursiva ao processo, aperfeiçoando

a contribuição pioneira da teoria neo-institucionalista por ele conjecturada.

A proposição neo-institucionalista é a de que o centro da teoria

processual, na concepção instrumentalista, é a jurisdição estatal, de caráter

mítico e intimidante, que se presta a perpetuar a violência estrutural da

8 Teoria processual da decisão jurídica, São Paulo, Landy, 2002.

105

validade do Direito. Esse Estado de Justiça salvador (Estado-Juiz), que impôs

uma dominação legal pelo autoritarismo da razão prescritiva, não é apto para

encaminhar o convívio em sociedades pluralistas (LEAL, 2002, p. 24).

Na contemporaneidade, o Direito Processual só pode se identificar no

conjunto de normas institucionalizadas pela principiologia do devido processo

constitucional, que possibilite a construção procedimental de uma legalidade

que se abra à crítica corretiva ampla e irrestrita e se relacione intrinsecamente

com as comunidades jurídicas autoras, simultaneamente destinatárias,

confirmadoras, reconstrutoras e operadoras do Estado democrático (LEAL,

2002, p. 28-29).

A comunidade jurídica institucionaliza-se pela teoria argumentativa, por

via de um discurso proposicional, e não autoritário, fazendo a passagem entre

a modernidade e a pós-modernidade, com a concreção de direitos no eixo da

processualidade como espaço inter-relacional de preparação de decisões

jurídicas, através do devido processo constitucional, que tem sua gênese

construída por autores normativos, que são os próprios destinatários dos

direitos produzidos (LEAL, 2002, p. 34-35).

Na democracia, nenhuma norma é exigível se seu destinatário não é o

próprio autor, o que equivale a dizer que, se o povo não legislou, o Direito não

existe para ninguém. O que não é provido pelo devido processo legislativo

fiscalizável processualmente por todos, pelo devido processo legal, não é

juridicamente existente (LEAL, 2002, p. 39).

A proibição de leis retroativas para agravar a punibilidade, a

necessidade de lei prévia, a proibição de condenação com base em costumes

e pela analogia, de penalização com base em leis obscuras ou ininteligíveis

não estão mais relacionadas ao prudente saber da razão prática orientadora

do Estado Liberal-Social, mas só podem ser regidas para a concreção do

Direito com base na teoria do Estado democrático (LEAL, 2002, p. 44-45).

Rompe-se, no neo-institucionalismo, com qualquer possibilidade de

decisão com base na eqüidade ou justiça salomônica, pois não é possível

106

tratar os iguais igualmente ou os desiguais desigualmente, fora do processo,

que, na teoria do direito democrático, é o ponto discursivo da igualdade dos

diferentes, para estabelecer os critérios de formação e exercício da vontade,

para deliberação sobre os direitos materiais criados discursivamente e

transpostos para uma positividade normativa (LEAL, 2002, p. 75).

É o devido processo legal que vai estabelecer o espaço discursivo

legitimador da decisão a ser neste preparada por todos os integrantes da

estrutura procedimental (LEAL, 2002, p. 104).

Assim, a ordem jurídica, social, moral ou ética, imposta pela autoridade

judicante, legislativa ou executiva, não pode ser legítima, mesmo amparada

em uma unanimidade silenciosa e culturamente jurisprudencializada e com a

aprovação do Judiciário em última instância, pois a interpretação seria

autopoiética, quando se permite ao Juiz suprir a lacuna do legislador com

base em suas personalíssimas convicções normatizantes (LEAL, 2002, p.

108).

Com Popper relativizou-se a certeza de uma razão instrumental como

referente infalível de soluções verdadeiras e salvadoras em todos os campos

do saber, pois não se trabalham possibilidades de decisão sem que haja

mediação lingüística de um questionamento teorizado por uma lógica

autoproblematizada na processualização aberta a todos para o apontamento

de erros (LEAL, 2002, p. 118).

Logo, ao se analisar a validez da citação no contexto dos pressupostos

processuais penais, deve-se verificar qual será a repercussão do ato, nos

termos defendidos pelo neo-institucionalismo.

3.6 – A citação como fundamento do pressuposto processual penal de existência do procedimento em contraditório

107

Através da Lei nº 9.271, de 17 de abril de 1996, o sistema de citação no

processo penal recebeu novo tratamento, que se coaduna com as disposições

do devido processo legal, uma vez que somente se dá andamento aos

processos em que o acusado tenha sido citado pessoalmente sobre a

acusação, acabando com a citação ficta, em que, mediante edital,

considerava-se efetuada a citação, e o processo seguia em contraditório

formal, muitas vezes resultando em condenação sem nenhuma participação

do afetado pelo provimento.

Assim dispõe o art. 366 do CPP:

Art. 366 – Se o acusado, citado por edital, não comparecer, nem constituir advogado, ficarão suspensos o processo e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produção antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar prisão preventiva, nos termos do disposto no art. 312. § 1º - As provas antecipadas serão produzidas na presença do Ministério Público e do defensor dativo. § 2º - Comparecendo o acusado, ter-se-á por citado pessoalmente, prosseguindo o processo em seus ulteriores atos.

Portanto, a regra é a citação pessoal por meio de mandado, no local em

que o Juiz exerce a jurisdição, com todas as informações relativas à acusação

formulada, nos termos do artigo 352 do CPP. Deve o oficial de justiça atentar

para os ditames do artigo 357, do mesmo diploma legal, procedendo à leitura

do mandado e entregando a contrafé ao acusado, lavrando certidão.

O réu preso é citado pessoalmente, inovação trazida pela Lei n.º

10.792/2003, que modificou a redação do artigo 360 do CPP. Tal explicitação,

embora lógica em um sistema que se diz acusatório, foi necessária pela praxe

forense de apenas requisitar o preso para interrogatório, sem formal citação

do mesmo.

Se o acusado reside fora da jurisdição do magistrado, a citação é feita

por carta precatória, com os mesmos requisitos anteditos (artigos 353 e 354

do CPP). Também no caso em que o acusado se encontre no estrangeiro, em

108

lugar sabido, sendo citado mediante carta rogatória, que suspende a

prescrição até o seu cumprimento (artigos 368 e 369 do CPP). Carta de

ordem é a citação determina por Tribunal ao Juiz de primeiro grau.

A citação editalícia é modalidade ficta, pois parte de uma concepção

formal de citação, na presunção de que o edital chegará ao conhecimento do

acusado, e é utilizada nas seguintes hipóteses:

a) quando certificado pelo oficial de justiça que o réu se oculta para não

ser citado, pois o processo penal inadmite citação por hora certa (artigo 355, §

2º, combinado com artigo 362, ambos do CPP);

b) quando o réu não for localizado (artigo 361 do CPP);

c) quando inacessível, em virtude de epidemia, guerra ou por outro

motivo de força maior, o lugar em que estiver o réu, ou incerta a pessoa a ser

citada.

Essa última hipótese não se coaduna com o devido processo

constitucional. Em tais condições, inacessível o local ou incerta a pessoa,

inexiste possibilidade do acusado proceder à defesa técnica pertinente ao

contraditório, pois o edital não chegará ao conhecimento do citando. Sem a

identificação civil, não é possível citação com base na identificação física,

ausentes características essenciais que possam individualizá-lo, reflete

Oliveira (2002, p. 461).

Embora discipline o artigo 358 do CPP que a citação do militar far-se-á

por intermédio do chefe do respectivo serviço, tal dispositivo impede a

instauração do devido processo, razão pela qual deve-se aplicar ao militar o

dispositivo relativo ao funcionário público (art. 359), com a citação do acusado

e notificação do dia de comparecimento ao chefe hierárquico.

Importante é que a citação seja válida, isto é, não viciada pela nulidade.

O estatuto processual penal considera nulidade absoluta a falta de citação do

réu (artigo 564, inciso III, letra e, primeira parte), e a omissão de formalidade

essencial importará em nulidade de natureza relativa (art. 564, inciso IV).

109

Prevê o art. 570 que a falta ou nulidade da citação estará sanada desde

que o interessado compareça apenas para argüi-la. Se constatada

possibilidade de prejuízo, o ato deverá ser adiado ou suspenso. Dentro das

premissas estabelecidas neste estudo, constatada qualquer irregularidade no

ato citatório, deve o procedimento ser suspenso para regularização, pois cabe

presunção absoluta de que existe prejuízo à defesa técnica do acusado.

Portanto, no processo penal brasileiro, somente se procede à instrução

da causa com a citação pessoal e válida do acusado. Tal sistema apresenta

grandes avanços na discussão até aqui empreendida, uma vez que permite a

participação efetiva do denunciado, com sua presença física aos atos

processuais, que com seu acompanhamento poderão ser dirigidos no

interesse de sua defesa, seja indicando testemunhas e perguntas às mesmas,

seja trazendo sua versão fática ao contexto probatório.

Em conjunto com seu defensor, presente o acusado, poderá haver uma

verdadeira defesa técnica, e não só o processo formal determinado pelo

regramento anterior.

Portanto, por tudo aqui defendido, coaduna-se tal disciplina legal com

um processo dialógico e democrático. Qualquer decisão processual deve ser

antecedida da oitiva da parte contrária, notadamente a recepção da exordial

acusatória. Nesse sentido, adverte Leal:

Convence-nos, de conseguinte, que a matéria preliminar aludida no art. 301 do CPC não se esgota em sua concepção enumeradora, mas se ergue como instituto jurídico da defesa prévia, como antecedente lógico fundamental a qualquer decisão no Processo. Assim também deveria ser entendido no processo penal que contrario sensu admite, no Direito brasileiro (arts. 394 a 396 do CPP), defesa prévia após o decisum de recepção da denúncia – o que caracteriza, também, uma esdruxularia execrável de desbalanceamento da inerência lógica da ação e da defesa (exceção). A estabilidade do processo não se dá pelo balizamento dos pontos controvertidos do pedido ou pelo saneamento e definição da prova, mas pelo equilíbrio de liberdade e oportunidade de ação e defesa, esta considerada como a antítese do réu inerente à pretensão do autor (LEAL, 2005, p. 142).

110

Na lição de Prado, o processo penal deve-se orientar em direção a uma

espécie de procedimento que assegure a máxima contraposição dialética,

sem perder de vista a noção básica de que não há dialética sem possibilidade

de diálogo. Este pressupõe a compreensão do caso e das posições que os

sujeitos processuais legitimamente devem ocupar, assim como a existência

de um espaço onde possa ser travado. (PRADO, 2006, p. 154)

E aqui deve ser considerado que, ao contrário das obsoletas convicções

instrumentalistas, a citação válida deve ser entendida, no processo penal advindo da constitucionalidade democrática brasileira, como pressuposto de existência do procedimento em contraditório, e não como pressuposto de existência e validez do procedimento (ação) instaurado e traduzido no intrínseco e exclusivo ato jurídico de mera cientificação pessoal ao acusado.

A citação pessoal e válida não é somente o ato pelo qual o acusado é

cientificado da acusação, mas fundamentalmente o ato assegurador

(validador) da garantia e exercício da ampla defesa e do contraditório

isonômicos, ou seja, ato integrativo do devido processo legal, que é o espaço

procedimentalizado para a participação do interessado/afetável pelo

provimento final, sendo, ademais, o contraditório o elemento institutivo do

processo. Logicamente se observa que somente existirá processo penal após a instalação de tal oportunidade. Pelo atual ordenamento jurídico penal

até a vigência da Constituição Brasileira de 1988, o que se teria com o

recebimento da denúncia e citação do acusado era mero procedimento.

Somente com a integral possibilidade do exercício do contraditório é que

teremos a formação do processo e este como direito-garantia já assegurado

na Constituição brasileira.

É clara a modificação teórica do instituto do ato citatório penal no direito

constitucional vigorante, tendo em vista que a validade do ato jurídico da

citação pessoal passa a ser elemento de existência do processo. E este, por

se constituir em contraditório, estabelece uma interação entre os planos de

111

existência e validade do ato jurídico, pois o juízo de validade estará contido no juízo de existência.

Portanto, a citação pessoal, no nível do processo penal codificado, ainda integra apenas o pressuposto de existência do procedimento e só se valida pela instalação do Processo na concepção já garantida pela Constituição vigorante.

Em igual talante, o magistério de Leal:

Com efeito, se a ação é procedimento instaurado, proposto ou inaugurado pelo instrumento da petição inicial, o processo – que é o procedimento em contraditório – só ocorrerá com a oportunidade legal ao réu, mediante citação válida, de se contrapor ou não ao pedido do autor. (LEAL, 2005, p. 184)

Assim, ao se aplicar a concepção habermasiana de democracia, que

preconiza a inclusão do princípio discursivo nas formas jurídicas, chega-se à

contribuição fazzalariana no sentido de que processo é espécie de

procedimento que se desenvolve em contraditório. Com o acréscimo da teoria

neo-institucionalista − que considera o procedimento o espaço-tempo

estruturante do exercício dos direitos fundamentais processualmente

constitucionalizados, expressos numa principiologia regente de toda a

procedimentalidade −, teríamos o alardeado processo garantista, em que as

partes terão ampla participação na construção do provimento final, sendo

destinatárias e autoras de tal provimento, o que trará legitimidade quanto aos

fundamentos que lhes venham afetar, porque expendidos no âmbito

processual de argumentações compartilhadas, caracterizadoras do Estado de

Direito Democrático.

112

4. CONCLUSÃO

Apresenta-se aqui, uma síntese dos raciocínios desenvolvidos, sem

prejuízo de outras conclusões abordadas nesta tese. A idéia de um poder secular permeia qualquer estudo que se queira

fazer a respeito da concepção de Estado.

O poder não pode, atualmente, ser concebido como uma inerência

coercitiva e indissociável das atividades humanas, mas como uma rede de

funções, que se propaga na formação dos grupos humanos em perfis estatais.

Poder e Estado, na perspectiva do Direito arcaico, não discursivamente

democrático, sempre se apresentaram como sistema de forças na linguagem

autoritária do Poder Judiciário, no âmbito do qual se desenvolve uma relação

de prepotência em face das partes na dinâmica processual.

No Estado de Direito Democrático Constitucional, o conceito de poder

político uno e soberano é modificado, pois encontra como justificação o povo,

único destinatário da atividade estatal, devendo a função judiciária se basear

no Processo Constitucional, como seu organizador, limitador e controlador, de

acordo com as diretivas democráticas.

O esforço teórico da desmistificação do poder encontra significativo

avanço na concepção de democracia defendida por Jürgen Habermas, em

que a legitimidade do Direito se faz através de uma autolegislação cidadã, na

perspectiva dos destinatários da norma. Com a proposta da co-existência

entre Direito e Moral, os quais não se hierarquizam, mas têm uma relação de

co-originalidade, resolve-se a tensão entre autonomia pública e privada, com

a aplicação do princípio discursivo, em que os afetados pela norma ou política

pública, através de procedimentos constitucionalmente garantidos, com

argumentação livre e sem coação, chegam a um entendimento compartilhado.

Assim, o princípio da representação é fortalecido pela maior participação do

povo, legitimado ao processo, nos destinos estatais.

113

A aplicação de tal paradigma democrático impõe uma reinterpretação

do ordenamento jurídico e a criação de novas técnicas para a aplicação do

princípio discursivo às formas jurídicas.

No campo processual, deve-se aferir a teoria conceitual de processo

que epistemologicamente se coaduna com a concepção habermasiana.

Percebeu-se que a teoria do processo como relação jurídica processual,

mesmo aperfeiçoada pela escola instrumentalista, não se presta a tal desafio.

O processo de relação entre partes e lide não explica as especificidades

penais, em que o Ministério Público não está em conflito com o acusado.

A maximização dos fins instrumentais do processo, aumentando a rede

do velho poder jurisdicional em detrimento da participação do afetado pelo

provimento final, ajusta-se ao modelo social de Estado, em que o espaço

subjetivo do exercício jurisdicional é alargado, encontrando-se o magistrado

em posição de comando das partes e do iter procedimental.

O processo como procedimento em contraditório, no qual aqueles

afetados pelo provimento final participam discursivamente do

desenvolvimento decisório, em simétrica paridade, expressa o paradigma

democrático, na medida em que adota os devidos processos constitucional e

legal como garantia de validação e legitimidade do direito das partes e dos

sujeitos procedimentais.

Passando-se pelo modelo constitucional de processo, que, de forma

tímida, o apresentou com gênese na Lei Maior, e considerando um novo

conceito de jurisdição constitucional, chega-se à teoria neo-institucionalista do

processo, que o concebe como instituição constitucionalizada e definida pelos

princípios do devido processo e referenciadora de todos os provimentos

legiferantes, judiciais e administrativos, a serviço primordialmente da

comunidade política constitucionalizada para a implementação de direitos

fundamentais de vida, liberdade, dignidade e igualdade pelo processo.

Também o garantismo penal pode trazer uma contribuição, na medida

em que sustenta um modelo normativo de Direito que visa à minimização da

114

violência e maximização da liberdade, ao estabelecer vínculos entre o Estado

e a garantia dos direitos do cidadão; ao pressupor a separação entre Direito e

Moral; e ao exigir uma fiscalização externa, heteropoiética, da organização

estatal, apoiando a teoria neo-institucionalista na consubstanciação teórica do

processo penal, no âmbito constitucional.

Portanto, o processo penal democrático é aquele que se baseia

estruturalmente nos devidos processos constitucional e legal, em que

prevaleça a participação da parte, de modo isonômico ao Ministério Público e

à Judicação, como forma de legitimar o provimento final.

O garantismo penal considera dois modelos: o garantista e o

decisionista (substancialista).

No modelo garantista, a busca da verdade processual é controlada, só

podendo ser obtida com a obediência à normatividade constitucional de

limitação do poder estatal penal, procurando excluir, ao máximo possível,

valorações.

No modelo substancialista, a procura é pela verdade substancial, sem

nenhum limite normativo, baseado na discricionariedade valorativa. Afirma-se,

assim, uma jurisdição política (Estado de Justiça).

O sistema acusatório caracteriza-se pela separação entre Juiz e partes,

com o ônus da prova da acusação, desenvolvido em contraditório, buscando a

verdade formal. No sistema inquisitório, o Juiz procede de ofício à

investigação criminal e avaliação das provas, com instrução escrita e secreta,

estreitando contraditório e defesa, buscando uma verdade substancial.

O Direito Comparado apresenta várias possibilidades para o avanço do

processo penal brasileiro em direção a um modelo democrático e acusatório,

especialmente nos moldes dos estatutos da Itália e Chile.

Pode-se apontar como possibilidades: a investigação criminal pelo

Ministério Público, com controle da Polícia Judiciária; juízo de conveniência e

oportunidade da propositura da ação penal, com controle judicial e da vítima;

impossibilidade de persecução penal havendo acordo reparatório em delitos

115

com bem jurídico disponível; simplificação de procedimentos processuais e

consenso quanto a aspectos probatórios, havendo acordo com a defesa; juízo

de admissibilidade prévio da acusação, com instrução abreviada; vedação, ao

Juiz do julgamento, de promover solitariamente a prova investigativa.

Identificar, cientificamente, qual é o sistema processual adotado no

Brasil é tarefa árdua, tendo em vista o hibridismo normativo da fase

investigativa presidida pela autoridade policial, sem contraditório, e da ação

penal, na qual o Juiz tem atuação inquisitorial.

Apesar da proclamada adoção do sistema acusatório, tão claro na

concepção instrumentalista do processo para a maioria dos juristas, o sistema

brasileiro é inquisitório, visto que, na apuração delitiva, inexiste o devido processo e, na fase de processamento e julgamento, permanece o Juiz com

atribuições inquisitórias, notadamente na gestão da prova.

Urge a adequação constitucional de tal sistema, mediante obediência

irrestrita ao devido processo, no inquérito policial, e vedação ao magistrado da

atuação de ofício.

Quanto ao tema específico da tese, a doutrina tradicional diferencia os

pressupostos processuais da relação processual em dois: de existência,

relativos ao nascimento da relação processual, e de validez, que a viciam.

A citação pessoal, a par da sua enorme importância, sempre foi

tratada como pressuposto de validez da relação processual instrumentalista

(relação jurídica entre pessoas), sob o comando do Juiz.

Sobre o tema, pretendeu-se acolher a visão jurídica democrático-

discursiva, no sentido neo-institucionalista do processo, para retirar a carga

autocrática de uma jurisdição centrada no arbítrio ou em juízos de certeza

prévia, conveniência ou eqüidade do julgador.

Nesse sentido, o Direito Processual Penal só pode se legitimar pela

instituição constitucional do devido processo, como fonte principiológica de

construção de procedimentos infraconstitucionais (devido processo legal) que

habilitem crítica corretiva à comunidade jurídica, afastando-se julgamentos

116

solipsistas, pela busca de uma decisão amparada na autoproblematização

trazida pelas partes no eixo do contraditório, ampla defesa e isonomia.

Com a modificação do art. 366 do Código de Processo Penal,

adequando-se ao paradigma da constitucionalidade vigorante no Brasil,

somente se procede à instrução da ação penal com a citação pessoal e válida do acusado, o que assegura o direito fundamental de uma defesa

técnica desenvolvida em contraditório, como pressuposto de legitimidade do

provimento.

Embora a moderna doutrina considere três planos interdependentes de

estruturação do mundo jurídico: existência, validade e eficácia, ocorre uma interação entre os planos de existência e validade no tocante a citação pessoal, pois o juízo de validade estará contido no de existência.

Portanto, o ato citatório só se valida no pressuposto de existência do procedimento em contraditório, assegurando a efetiva e ampla participação daquele a ser afetado pelo provimento final.

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