PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS … · TABELA 11 - Distribuição de frequência...
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Administração
José Ricardo de Paula Xavier Vilela
O LÍDER E A LIDERANÇA:
Uma Investigação Orientada pela Dialética Negativa de T. W. Adorno
Belo Horizonte
2012
José Ricardo de Paula Xavier Vilela
O LÍDER E A LIDERANÇA:
Uma Investigação Orientada pela Dialética Negativa de T. W. Adorno
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em
Administração da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Administração.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Moreira Carvalho
Neto.
Coorientadora: Profª. Drª. Rita Amélia Teixeira
Vilela.
Belo Horizonte
2012
Caixa baixa
FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Vilela, José Ricardo de Paula Xavier
V699l O líder e a liderança: uma investigação orientada pela dialética negativa de
T. W. Adorno / José Ricardo de Paula Xavier Vilela. Belo Horizonte, 2012.
470f. : il.
Orientador: Antonio Moreira Carvalho Neto.
Coorientadora: Rita Amélia Teixeira Vilela
Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Administração.
1. Liderança. 2. Teoria crítica. 3. Ideologia. 4. Dialética. 5. Adorno, Theodor
W., 1903-1969. I. Carvalho Neto, Antonio Moreira. II. Vilela, Rita Amélia
Teixeira. III. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Administração. IV. Título.
CDU: 658.012.4
José Ricardo de Paula Xavier Vilela
O LÍDER E A LIDERANÇA:
Uma investigação orientada pela dialética negativa de T. W. Adorno
Tese apresentada ao Programa de pós-graduação em
Administração da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, como requisito parcial para
obtenção do título de Doutor em Administração.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Moreira Carvalho Neto – PUC Minas
Coorientadora: Profª. Drª. Rita Amélia Teixeira Vilela – PUC Minas
Profª. Drª. Ana Paula Paes de Paula – CEPEAD UFMG
Prof. Dr. Anderson Sant‟Anna – FDC/PUC-Minas
Prof. Dr. Fábio Vizeu
Prof. Dr. Francis Kanashiro Meneghetti – Universidade Positivo
Belo Horizonte, 11 de dezembro de 2012
Belo Horizonte
2012
AGRADECIMENTOS
Algumas pessoas são responsáveis por contribuições tão importantes durante o
desenvolvimento do referencial teórico que apenas a sua citação no transcurso do texto estará
longe de fazer justiça à importância e relevância de sua contribuição.
Este foi o caso do Prof. Dr. Eduardo Silva Neves, cujas orientações tornaram possível
a compreensão de vários dos aspectos da obra de T.W. Adorno que não são de compreensão
fácil ou imediata por um leitor que não possua sólida base filosófica.
No texto, a sua contribuição muitas vezes acabou ficando referenciada ao autor
original, o que não faz justiça à frequência de sua contribuição. Deve-se destacar que também
o acesso à obra de muitos dos autores que ajudam a compreender a obra de T.W. Adorno não
teria sido possível sem a sua orientação e referência.
Também não posso deixar de agradecer aos meus orientadores. Em primeiro lugar,
pela autonomia concedida. Mas também – e principalmente – por terem acreditado em cada
fase do projeto, de modo especial naquelas nas quais ele não era mais do que uma
possibilidade.
Atribuído a Charles M. Schultz.
(original em inglês não localizado).
RESUMO
Esta pesquisa, de caráter qualitativo e baseada em um estudo de caso, utilizou como base
teórica a dialética negativa de T.W. Adorno, com o objetivo conceituar a liderança para um
grupo composto por 16 líderes em atividade e 17 líderes que estavam afastados desses papéis,
em uma rede de organizações de caráter associativo, de um grupo profissional específico.
Utilizando entrevistas individuais, foram investigados o conceito de liderança para os
indivíduos envolvidos, bem como as suas histórias relacionadas com o tema; e, aplicando uma
escala de personalidade para os 33 indivíduos que atenderam aos critérios de seleção, foram
investigados os fatores que compõe as suas personalidades. Também foram acompanhadas
reuniões e assembleias das organizações cujos líderes estavam envolvidos na pesquisa, e
realizada uma análise de material de comunicação desses grupos. Não foi possível identificar
algum aspecto na história do entrevistado que pudesse ser considerado um diferenciador entre
os grupos de líderes ativos e inativos, mas pôde-se constatar que os indivíduos que assumem o
papel de líderes em determinado grupo social possuem características de personalidade
semelhantes – características essas que não devem ser as mesmas para todos os grupos
sociais. Foi possível concluir que em grupos sociais nos quais o líder é escolhido por aqueles
que são os liderados, a cultura do grupo – entendida como seus valores, crenças e sua
realidade simbólica – pode orientar as características de personalidade a serem identificadas
nos indivíduos com maior possibilidade de serem escolhidos como líderes desses grupos.
Tensionando os achados com a teoria, foi possível identificar interesses que, para os
indivíduos do grupo escolhido, poderiam justificar a assunção do papel de líder. Esses
interesses, em conjunto, justificam o enquadramento do construto liderança como uma
ideologia, a qual pode ser melhor compreendida quando os diversos conceitos identificados na
composição do construto são expostos na forma constelatória, permitindo identificar um
universal a partir da investigação realizada com os particulares apresentados. Também foi
possível concluir que a abordagem do objeto social a partir de uma visão negativamente
dialética, como proposta por T.W. Adorno, pode ser útil para propiciar acesso ao
conhecimento de um objeto complexo, de modo especial quando esse objeto é expressão de
ideologia, como são muitos os objetos de pesquisa que envolvem relações
sociais, encontrados na pesquisa empírica em administração.
Palavras-chave: Liderança. Teoria crítica. Ideologia. Adorno. Dialética negativa.
ABSTRACT
This qualitative research, based on a case study, had as its theoretical basis the Negative
dialectics of T.W. Adorno, and aimed to answering the question of what is leadership. A
group of 16 leaders in activity and 17 leaders who were not playing this role anymore was
selected in a network of organizations, which were associative in character, and of a specific
professional group. Using interviews, the leadership concept was investigated through their
stories related to the topic; and, using a personality scale for all 33 individuals who met the
selection criteria, their personalities factors were also investigated. During the period of
research, meetings of the organizations whose leaders were involved in the research were
attended, and communication material were collected. Nothing identified in the history of the
interviewee which could be considered a differentiator between groups of active and retired
leaders, but it was noted that individuals who were playing the role of leader in this particular
social group had similar personality traits – although these traits should not be the same for all
social groups. This led to the conclusion that in social groups where the leader is chosen by
those who are led, the group culture – understood as their values, beliefs and symbolic aspects
– could be a guide to what personality traits should be identified in individuals most likely to
be chosen as leaders of these groups. Comparing these findings with the theory, it was
possible to identify some reasons to be interested in playing the role of leader, for individuals
of this chosen group. These interests, together, points to leadership as a social construction
and an ideology, which can be better understood when the various concepts identified in the
composition of these construct are exposed as constellation, allowing to identify something
universal with these chosen individuals. It was also possible to conclude that the approach
from a negative dialectic point of view, as proposed by T.W. Adorno, can be a useful tool for
providing knowledge about a complex object, especially when this object is the expression an
ideology, as is the case of many objects involved in social relationships, as are the ones found
in empirical research of management.
Keywords: Leadership. Critical theory. Ideology. Adorno. Negative Dialectics
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
A – Amabilidade
ALQ – Authentic leadsership questionnaire
ASNP – Atividades sociais não profissionais
ASP – Atividades sociais profissionais
C – Concordo
CF – Concordo fortemente
CGF – Cinco grandes fatores
CMS – Critical management studies
CRP – Crítica da razão pura
D – Discordo fortemente
DA – Diretório Acadêmico
DCE – Diretório Central dos Estudantes
DP – Desvio-padrão
E – Extroversão
GP – Grupo político
GR – Grupo religioso
GS – Grupo social
H0 – Hipótese nula
Ha – Hipótese alternativa
IE – Inteligência emocional
ISF – Institut für Sozialforschung
MBA – Master of Business Administration
MMPI – Multiphasic Personality Inventory
N – Neuroticismo
No – Neutro
NEO-Pi-R – Revised Neo Personality Inventory
NERHURT – Núcleo de Estudos em Recursos Humanos e Relações de Trabalho
Ƞ x – Grupo de dados
Pág. – Página
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PSE – Pesquisa social empírica
PT – Partido dos Trabalhadores
PUC Minas – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
TAT – Teste de Apercepção Temática
UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 - Tipologia de problemas, poder e autoridade.......................................... 155
FIGURA 2 - Resultados do NEO-PI-R como fornecido pelo programa....................
FIGURA 3 - Integrando diversos aspectos do conceito..............................................
FIGURA 4 - Abrindo o conceito a partir dos interesses relacionados com os
conceitos que compuseram a constelação.............................................
266
403
425
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Comparação entre líder e liderança a partir de quatro dimensões
escolhidas............................................................................................
162
QUADRO 2 - Três tipos de narcisismo, formas de liderança que assumem e seus
modelos para decisão..........................................................................
188
QUADRO 3 - Comparação dos elementos relacionados às três dimensões do
poder....................................................................................................
222
QUADRO 4 - Comparativo de características dos entrevistados mais citados como
líderes e como não líderes...................................................................
321
QUADRO 5 - Comparativo de características de três líderes inativos, citados como
sendo exemplo de líderes...................................................................
326
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Distribuição dos dois grupos por idade................................................. 275
TABELA 2 - Estatística descritiva para as idades...................................................... 275
TABELA 3 - Resultados das comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R para
os dois grupos........................................................................................
277
TABELA 4 - Distribuição de frequências: razões para se manter afastado................ 281
TABELA 5 - Distribuição de frequências: razões para se manter afastado com
itens agrupados....................................................................................
282
TABELA 6 - Resultados das comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R para
os dois grupos......................................................................................
282
TABELA 7 - Distribuição de frequências: a liderança nos papéis de presidente ou
em estruturas hierárquicas...................................................................
284
TABELA 8 - Os cinco domínios do NEO-PI-R: os cinco líderes com mais
presidências e a revisão de Judge et al. (2002)...................................
286
TABELA 9 - Comparação dos cinco domínios do NEO-PI-R para os cinco líderes
que nunca assumiram presidências.....................................................
286
TABELA 10 - Comparação dos cinco domínios NEO-PI-R: os que mais
assumiram e que nunca assumiram presidências................................
287
TABELA 11 - Distribuição de frequência dos tipos de liderança para os dois
grupos..................................................................................................
289
TABELA 12 - Distribuição de frequência das características da liderança para os
dois grupos..........................................................................................
293
TABELA 13 - Comparação entre as frequências dos itens II eVII, e III e IX da
Tabela 12.............................................................................................
293
TABELA 14 - Organização dos itens das tabelas 15 e 16 por conjuntos com
características próximas......................................................................
295
TABELA 15 - Resultados das comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R para
os dois grupos.....................................................................................
296
TABELA 16 - Organização dos itens da Tabela 12 por conjuntos de tipo de
liderança..............................................................................................
297
TABELA 17 - Distribuição de frequência das características dos líderes citadas
pelos dois grupos – Itens I a XII.........................................................
298
TABELA 18 - Distribuição de frequência das características dos líderes citadas
pelos dois grupos: itens XIII a XXIII.................................................
298
TABELA 19 - Organização dos itens das tabelas 17 e 18 por conjuntos com
características próximas......................................................................
299
TABELA 20 - Distribuição de frequências: o que a liderança não é.......................... 300
TABELA 21 - Distribuição de frequências: dúvidas ao conceituar a liderança......... 300
TABELA 22 - A liderança é exercida na estrutura ou é característica de indivíduo.. 302
TABELA 23 - Distribuição de frequências: a liderança é algo nato ou pode ser
aprendida.............................................................................................
303
TABELA 24 - Distribuição de frequências: se o entrevistado se considera um líder. 305
TABELA 25 - Distribuição de frequências: percepção de sacrifício ou
“exploração”........................................................................................
308
TABELA 26 - Distribuição de frequências: modo como assumiu os papéis de
liderança..............................................................................................
314
TABELA 27 - Os domínios do NEO-PI-R para os dois líderes mantidos na
liderança por demanda........................................................................
315
TABELA 28 - Distribuição de frequências: motivação para assumir papéis de
liderança..............................................................................................
318
TABELA 29 - Distribuição de frequência de exemplos de liderança......................... 320
TABELA 30 - Distribuição de frequência de exemplos de não liderança: apesar de
estarem exercendo este papel..............................................................
320
TABELA 31 - Comparação dos domínios NEO-PI-R para os indivíduos citados na
rejeição de liderança............................................................................
323
TABELA 32 - Faceta (A5) nos sete entrevistados rejeitados como liderança........... 330
TABELA 33 - Distribuição de frequências: influência familiar para a história de
liderança..............................................................................................
332
TABELA 34 - Cinco domínios do NEO-PI-R dos dois líderes com influência
materna de liderança...........................................................................
334
TABELA 35 - Distribuição de frequências: vivência familiar com atividade
político-partidária................................................................................
335
TABELA 36 - Distribuição de frequências: posição do entrevistado entre os
irmãos..................................................................................................
336
TABELA 37 - Distribuição de frequências: lideranças entre os irmãos..................... 337
TABELA 38 - Distribuição de frequências: liderança entre os irmãos do
entrevistado.........................................................................................
338
TABELA 39 - Distribuição de frequências: início do relato de sua história como
liderança..............................................................................................
339
TABELA 40 - Comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R: início do relato na
infância x na vida profissional............................................................
341
TABELA 41 - Distribuição de frequências: fator que, na vida escolar, pode ter
contribuído para a liderança...............................................................
342
TABELA 42 - Comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R: ações que
diferenciam e características não identificadas...................................
343
TABELA 43 - Distribuição de frequência das características da liderança para os
dois grupos..........................................................................................
344
TABELA 44 - Distribuição de frequência na liderança estudantil para os dois
grupos..................................................................................................
346
TABELA 45 - Distribuição de frequências relacionadas às atividades associativas
profissionais........................................................................................
347
TABELA 46 - Distribuição de frequências relacionadas às atividades associativas
de caráter não profissional..................................................................
347
TABELA 47 - Domínios de personalidade dos líderes e a percepção de sacrifício... 396
SUMÁRIO1
1 INTRODUÇÃO......................................................................................................
1.1 O tema, o objeto de investigação, o problema e os objetivos da pesquisa.....
19
21
1.2 Sobre a estrutura do texto.................................................................................. 25
2 A TEORIA CRÍTICA, ADORNO E A PESQUISA SOCIAL EMPÍRICA..... 27
2.1 Influências identificadas sobre o pensamento de Adorno............................... 34
2.1.1 Influências iniciais: a aproximação com o pensamento de Walter Benjamin. 35
2.1.2 Algumas aproximações com a sociologia de Max Weber................................ 36
2.1.3 A tradição crítica de Kant a Hegel, a crítica em Nietzsche e a obra de Freud. 39
2.1.3.1 Kant e a crítica da razão............................................................................... 40
2.1.3.2 A influência do pensamento de Hegel......................................................... 54
2.1.3.3 A influência da psicanálise de Sigmund Freud no pensamento de
Adorno........................................................................................................................
58
2.1.3.4 Algumas influências identificadas em Friedrich Nietzsche....................... 61
2.1.4 A teoria crítica: de Karl Marx a Max Horkheimer......................................... 63
2.1.4.1 Karl Marx: a crítica da economia política.................................................. 64
2.1.4.2 Friedrich Pollock: controvérsia sobre o colapso e a teoria do bloqueio.. 67
2.1.4.3 Max Horkheimer: o bloqueio da ciência, teoria crítica e a crítica ao
Esclarecimento.....................................................................................................
68
2.1.5 Campos caracterizados pelo distanciamento................................................... 76
2.2 A pesquisa social empírica................................................................................. 85
2.2.1 Algumas peculiaridades da pesquisa social empírica em Adorno.................. 86
2.2.2 Adorno e a pesquisa empírica em administração............................................ 94
2.2.3 A dialética negativa como o fundamento para a pesquisa empírica............... 101
2.2.3.1 A justificativa da terminologia “dialética negativa”.................................. 102
2.2.3.2 O conceito, a contradição e o especulativo.................................................. 106
2.2.3.3 As dialéticas entre sujeito-objeto e particular-universal, e o primado do
objeto.....................................................................................................................
109
1 Este trabalho foi revisado de acordo com as novas regras ortográficas aprovadas pelo Acordo Ortográfico
assinado entre os países que integram a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), em vigor no Brasil
desde 2009. E foi formatado de acordo com o Padrão PUC Minas de Normalização, 2011.
2.2.3.4 A interpretação e sua relação com a história, com o progresso e com a
liberdade....................................................................................................................
118
2.2.3.5 A crítica imanente como um método para lidar com a ideologia............. 123
2.3 A personalidade, na ótica de Adorno................................................................ 129
2.3.1 Tipos e síndromes.............................................................................................. 132
3 O LÍDER E A LIDERANÇA................................................................................ 136
3.1 Abordagens tradicionais de liderança............................................................... 137
3.2 A nova liderança.................................................................................................. 142
3.2.1 A liderança transacional................................................................................... 143
3.2.2 A liderança transformacional...........................................................................
3.2.3 A liderança transformacional, no contexto organizacional............................
3.2.4 A liderança carismática....................................................................................
148
149
150
3.2.5 A nova liderança e a cúpula organizacional.................................................... 150
3.3 O conceito de liderança, de acordo com o mainstream.................................... 151
3.3.1 Diferenças entre liderança, gestão e comando................................................ 152
3.3.2 A efetividade da liderança como um aspecto do conceito............................... 155
3.3.3 A liderança autêntica........................................................................................ 157
3.3.4 O desenvolvimento da liderança....................................................................... 160
3.4 Abordagens contemporâneas e emergentes da liderança................................ 162
3.4.1 Abordagens cuja orientação estaria melhor caracterizada como
funcionalista................................................................................................................
3.4.1.1 Liderança e cultura .......................................................................................
163
165
3.4.1.2 Lideranças compartilhada e distribuída ....................................................
3.4.1.3 A liderança e os modelos de competências, a autoliderança e o
“coaching” .................................................................................................................
3.4.1.4 Liderança e influência social ........................................................................
168
171
173
3.4.1.5 Teoria da complexidade e liderança ........................................................... 174
3.4.1.6 Abordagens que consideram os diversos níveis nas relações de liderança 177
3.4.2 A psicologia do líder ......................................................................................... 179
3.4.2.1 O líder na visão de Freud .............................................................................. 180
3.4.2.2 Líder e narcisismo ......................................................................................... 187
3.4.2.3 Liderança e identificação ............................................................................. 190
3.4.2.4 Liderança e emoções .....................................................................................
3.4.3 A personalidade do líder ...................................................................................
192
194
3.4.3.1 O conceito de personalidade ........................................................................ 195
3.4.3.2 A escala NEO-PI-R ....................................................................................... 199
3.4.4 Abordagens de liderança que consideram as características da
personalidade .............................................................................................................
3.4.6 Liderança emergente, sua relação com a personalidade e com a
inteligência .................................................................................................................
203
211
3.4.7 A personalidade do liderado .............................................................................
3.5 Abordagens críticas e pós-estruturalistas da liderança ..................................
213
215
3.5.1 Liderança e história de vida ...........................................................................
3.5.2 Relações de liderança e relações de poder ......................................................
217
219
3.5.3 Abordagens críticas – buscando algumas contradições nos modelos de
liderança .....................................................................................................................
3.6 A ideologia da liderança .....................................................................................
226
237
4 METODOLOGIA.................................................................................................. 243
4.1 Critérios para a seleção das unidades empíricas de investigação.................. 249
4.2 Estratégias para a coleta dos dados................................................................... 253
4.2.1 Abordando o indivíduo: as entrevistas e a escala............................................ 254
4.2.2 Abordando as relações de liderança................................................................. 260
4.3 Estratégias para o preparo e a análise dos dados............................................ 261
4.3.1 Preparo e análise das entrevistas...................................................................... 262
4.3.2 Preparação dos dados da escala NEO-PI-R.................................................... 265
4.3.3 Preparação dos demais documentos................................................................. 267
5 PREPARO, APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DO MATERIAL....................... 271
5.1 A caracterização dos dois grupos...................................................................... 274
5.1.1 Características de personalidade nos dois grupos........................................... 276
5.1.2 Outras características dos indivíduos relevantes para a diferenciação dos
grupos.........................................................................................................................
278
5.2 O conceito de liderança....................................................................................... 292
5.3 Aspectos familiares e sociais relacionados com a liderança............................ 330
5.4 Ocorrências na história do indivíduo indutoras para a liderança.................. 338
5.5 Material de reuniões........................................................................................... 348
5.5.1 Anotações da participação em assembleias e reuniões do quadro social........ 348
5.5.2 Anotações nas participações das reuniões de um grupo de lideranças.......... 352
6 DISCUSSÃO........................................................................................................... 356
6.1 O conceito de liderança....................................................................................... 359
6.1.1 A formulação do conceito................................................................................. 360
6.1.2 Liderança e relações de poder.......................................................................... 369
6.1.3 Liderança e interesses....................................................................................... 377
6.1.4 Liderança e divisão social do trabalho............................................................. 388
6.1.5 A integração dialética dos diversos aspectos relacionados ao conceito.......... 399
6.2 O líder no grupo social estudado....................................................................... 404
6.2.1 História de vida e liderança.............................................................................. 404
6.2.2 Personalidade e liderança................................................................................. 411
6.3 Outros aspectos apresentados na teoria que não foram observados na
pesquisa......................................................................................................................
419
7 CONCLUSÃO........................................................................................................ 426
7.1 Considerações sobre o método e limitações da pesquisa .................................
7.2 Considerações finais............................................................................................
432
437
REFERÊNCIAS......................................................................................................... 439
APÊNDICE A............................................................................................................. 459
APÊNCIDE B ........................................................................................................ 461
19
1 INTRODUÇÃO
A motivação para a elaboração desta tese teve o sua origem no resultado da pesquisa
empírica realizada para a dissertação de mestrado do mesmo autor (VILELA, 2008). Naquela
pesquisa, o uso de uma escala de personalidade baseada na escala F de Adorno et al (1982)
evidenciou um fenômeno, mas não possibilitou uma explicação para os achados. Surgiu então
a necessidade de encontrar outros meios para compreender o que estava por trás dos dados
que se referiam ao objeto de pesquisa – no caso, os indivíduos que exerciam o papel de lideres
tanto em empresas de associação de capital como naquelas de associação de pessoas – as
cooperativas.
Mas, como abordar esse objeto – em outros termos, qual seria a pergunta apropriada
para orientar o desenho de uma pesquisa que rompa o “invólucro” desse objeto? A teoria
crítica, que está na base da pesquisa que deu origem à escala F – e, por extensão, da pesquisa
sobre o autoritarismo em diretores de empresas e de cooperativas – pareceu ser, nesse
primeiro momento, uma primeira pista para orientar a pergunta sobre o objeto.
As leituras realizadas para a fundamentação teórica da dissertação haviam revelado a
existência de uma confusão, por parte de muitos autores, entre os “estudos críticos” e a Teoria
Crítica. Foi a partir de uma leitura cuidadosa da história e dos autores que estão na origem do
critical management studies (CMS), no contraponto com a Teoria Crítica, na forma proposta
pelos autores relacionados com o Institut fur Sozialforchung (ISF) de Frankfurt, que foi
possível fazer a primeira escolha: considerando os fundamentos da pesquisa anterior, e a
proposta de abordagem empírica do objeto social – que será apresentada no referencial teórico
– que o autor escolheu como fundamento para a tese o ISF, e não os CMS, ainda que
reconhecendo a importância desses últimos para o contraponto com o mainstream.
Mas o ISF não é algo homogêneo, como será discutido no capítulo 2. Pelas próprias
características do que defende, ele preserva algo da diversidade dos seus componentes.
Considerando que a pergunta desta tese está ligada à pesquisa anterior, o autor naturalmente
escolhido como fundamento teórico foi para esta tese foi Theodor W. Adorno: em primeiro
lugar, por já estar na base teórica da pesquisa da dissertação; e em segundo lugar, por haver
uma linha de pesquisa na área da educação, tanto no Brasil2 como na Alemanha
3, que utiliza
2 Entre os quais podem ser citados os Profs. Drs. Antonio Álvaro S. Zuin, da UFSCar, Bruno Pucci da UNIMEP,
Newton Ramos-de-Oliveira da UNESP, e a Profª. Drª. Rita Amélia Vilela, da PUC Minas. 3 A lista seria ampla, mas, vale citar as principais referências conhecidas no Brasil; Ulrich Oevermann do
Departamento de Sociologia da Universidade de Frankfurt e Andreas Gruschka e sua equipe de pesquisa no
campo a Sociologia da Educação, também da Universidade de Frankfurt.
20
Adorno como fundamento para a abordagem empírica – o que poderia facilitar o acesso a uma
metodologia (ou, a procedimentos metodológicos) para a realização da pesquisa.
Bem, não foi tão simples: Adorno não deixou nenhum “Tratado sobre pesquisa social
empírica”, ou qualquer obra semelhante. O problema com a metodologia de pesquisa empírica
que utiliza Adorno como fundamento é que ela está dispersa em toda a obra de Adorno –
ainda que ela possa ser encontrada, de modo mais organizado, nas aulas nas quais Adorno
aborda o tema, entre as décadas de 1950 e 1960 (ADORNO, 1971, 1986a, 2006, 2008a,
2008b, 2001a, 2001b). Mas também não se pode esquecer que a obra Authoritarian
personality, trás vários capítulos sobre considerações metodológicas, muitos dos quais
escritos pelo próprio T. Adorno. Além disso, entre os pesquisadores da área de educação, há
um consenso de que muitas pistas metodológicas (tanto em termos de procedimento quanto de
interpretação) foram deixadas por T. Adorno na Dialética negativa –uma vez que, por ser
uma de suas últimas obras, T. Adorno acaba reunindo nela o que melhor expressa o seu
pensamento naquele momento. Certo é que Adorno não procura, em suas obras de análise
social, amparar-se em procedimentos de pesquisas tradicionais – para interpretar a realidade
coloca como desafio superar o conhecimento estabelecido confrontando o que “parece ser”
com as possibilidades de “ser” explorando as condições em que a realidade investigada ou
questionada se constitui. Esse exercício fica evidente na obra Dialética do Esclarecimento,
produzida em parceria com Horhkeimer ( ADORNO, 1985).
Em 2009, o autor desta tese teve a oportunidade de se encontrar com o Prof. Dr.
Andreas Gruschka, da Universidade de Frankfurt, que desenvolve um trabalho empírico
importante discutindo a educação na atualidade – ver GRUSCHKA, (2009) – durante uma
visita que o Prof. Gruschka realizou ao grupo de pesquisa coordenado pela Profª. Drª. Rita
Amélia Vilela, da PUC Minas – quando apresentou a proposta desta tese. De modo resumido,
foram as seguintes as impressões do Prof. Gruschka – aqui transcritas de forma não literal, a
partir das anotações da conversa: “você vai precisar de muita teoria: vai precisar de teoria para
ter uma pergunta clara, fundamentada na teoria crítica de Adorno, que te oriente na
abordagem da pesquisa; e de teoria sobre o objeto de pesquisa, para tensioná-la com os seus
achados empíricos”.
Esta orientação deixou claro, naquele momento em que a tese estava dando os seus
primeiros passos, que a tese teria um primeiro obstáculo a superar: seriam necessários dois
capítulos de referencial teórico – um para discussão do objeto, e outro para apresentar os
fundamentos do pensamento de Adorno para a abordagem empírica do objeto social.
21
Todo um primeiro momento da tese foi dedicado a organizar essa parte da teoria. Para
isto, foi necessária a participação do autor em aulas do programa de pós-graduação em
filosofia da UFMG, a realização de um “Seminário sobre teoria crítica e pesquisa social
empírica”, patrocinado pelo Núcleo de Estudos em Recursos Humanos e Relações de
Trabalho (NERHURT) da PUC Minas e conduzido pelo Prof. Dr. Eduardo Neves Silva, do
Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFMG, além da participação no grupo de
pesquisa da Profª. Drª. Rita Amélia T. Vilela, do programa de pós-graduação em educação da
PUC Minas.
Sentiu-se a necessidade de realizar uma pergunta mais específica sobre o tema – uma
pergunta que pudesse ajudar na expressão de contradições existentes no tema. Para isso, o
caminho mais seguro parecia ser o de delimitar de forma clara o tema, para dele chegar a um
tópico que se enquadrasse em uma proposta de crítica imanente, e para do tópico chegar ao
objeto de investigação. A ideia era a de que, apenas após ter sido definido o objeto, seria
possível formular adequadamente a pergunta.
Apresenta-se, então, o trajeto perseguido.
1.1 O tema, o objeto de investigação, o problema e os objetivos da pesquisa
Como foi visto, o que motivou a pesquisa foi a diferença observada em um aspecto
ligado ao comportamento dos líderes, diretores de empresas e de cooperativas (VILELA,
2008). O fato de estar ligado ao comportamento – o qual é expressão da personalidade –
apontava para uma investigação que teria que levar em consideração os indivíduos – os
líderes.
Mas, não existe líder sem liderado – ou seja, o sentido de estudar o comportamento do
líder está na relação de liderança. O que quer dizer que o tema a ser abordado não deveria
envolver, isoladamente, nem o líder, enquanto indivíduo – uma vez que ele só vai ser definido
como tal em uma relação – e nem a liderança, enquanto processo – uma vez que esse processo
não ocorre sem os indivíduos – mas os dois: o líder e a liderança. Este seria, então, o tema.
Dentro do tema, era preciso ainda delimitar o objeto, de modo a propor uma
abordagem que pudesse contribuir para a expressão das contradições deste objeto. Pela forma
como a contradição era apresentada por Adorno – que será detalhada no capítulo 2 – estava
claro que a contradição não deveria ser buscada fora do objeto – por exemplo, no contraponto
entre líder e liderado – mas dentro do objeto mesmo. Ou seja, não era a contradição do líder,
ou da liderança, mas a contradição no líder e na relação de liderança.
22
Uma forma considerada apropriada para esta abordagem foi a de estudar as relações de
liderança dentro de uma rede de organizações de um campo profissional. Isto porque, em uma
rede de organizações que possuem objetivos diferentes, mas dentro de um mesmo campo
profissional, indivíduos que são os líderes de uma organização serão os liderados em outra
organização que tenha outro objetivo. Assim, seria possível em uma rede de relacionamentos
como esta, possibilitar a expressão de contradições existentes em um mesmo indivíduo, que
exerce papéis diferentes, considerando diferentes momentos em relação à rede – a contradição
no mesmo indivíduo, quando este é visto sob diferentes aspectos do espaço ou, em outras
palavras, quando ele é líder mas também é liderado.
Além disso, nessa rede de organizações de um campo profissional também seria
possível observar as contradições existentes no fato de que alguns indivíduos que hoje estão
apenas no papel de liderados, já terem exercido também o papel de líderes nestas mesmas
organizações, em um momento no qual muitos dos indivíduos que hoje exercem o papel de
líder, estavam no papel de liderados. Seria a contradição observada no mesmo indivíduo em
diferentes tempos das relações de rede.
Nesse ponto, foi preciso organizar uma primeira revisão da literatura sobre o tema, já
levando em consideração o objeto de investigação. Primeiramente, foram reunidos todos os
artigos disponíveis de uma revisão recente do grupo de pesquisa sobre liderança, do já citado
NERHURT. Durante a leitura desses primeiros artigos, foram sendo separados aqueles
identificados como os mais citados pelos autores, os livros textos clássicos e aqueles
identificados como sendo os mais importantes para a organização conceitual do tema – por
exemplo, os que relacionavam personalidade e liderança. Além disso, foram revisados todos
os artigos publicados nos periódicos The leadership quarterly e Leadership, de 2005 até o
último número disponível – uma vez que esses foram os periódicos identificados não só como
aqueles onde se encontravam o maior número de artigos citados sobre o tema, mas também
em função de possuírem volumes temáticos, os quais foram muito úteis para a revisão,
quando se tratava de aspectos específicos no tema (por exemplo, carisma e liderança, ou
efetividade e liderança, entre outros).
Para organizar a revisão – e apenas com essa finalidade – buscou-se enquadrar os
artigos aproximadamente em um dos campos do quadro de referência de Burrell e Morgan4
4 A partir de duas dimensões independentes – as que envolvem, de um lado, a sociologia da mudança radical x
sociologia da regulação, e de outro, o objetivismo x subjetivismo – Burrell e Morgan (2008) propõem um
modelo de quatro paradigmas, dentro dos quais se pode localizar as diversas linhas de pensamento utilizadas na
abordagem do campo que envolve a teoria social. São eles: O “funcionalista” (objetivismo + sociologia da
23
(2008) – uma vez que essa foi a forma utilizada por alguns dos autores para organizar revisões
de literatura. O que se percebeu nesta revisão foi que a grande maioria dos artigos sobre a
liderança está dentro do mainstream, de orientação funcionalista, discutindo e pesquisando o
líder e a liderança a partir de pressupostos desenvolvidos desde as primeiras décadas do
século XX; existe uma quantidade menor de artigos críticos, publicados principalmente a
partir de década de 1980 – a maioria dos quais pode ser enquadrada dentro dos paradigmas
radical estruturalista e radical humanista, muitos dos quais publicados por autores que podem
ser enquadrados dentro do que ficou conhecido como CMS. Poucos autores dentro desse
último grupo propuseram uma abordagem dialética para o tema, chegando mesmo a citar
Adorno. Por fim, existe um grupo que não se enquadra entre os funcionalistas, mas que, eles
mesmos, não se reconhecem como críticos, e que podem ser enquadrados entre os
denominandos como interpretacionistas, ou social construcionistas, e que foram enquadrados
dentro do paradigma interpretacionista. Não seria o momento aqui de apresentar esses autores,
mas buscou-se explicitar essa divisão no capítulo 3, quando da exposição da teoria sobre o
líder e a liderança.
Esse resultado não foi uma novidade nesta tese. Em um dos trabalhos consultados,
Fernandes e Vaz (2010) apresentaram a sua revisão de 44 artigos publicados no Academy of
Management Journal, entre 1995 e 2008, na qual os autores também identificaram uma
predominância do paradigma funcionalista – 40 de 44 artigos analisados, com os quatro
restantes enquadrados dentro do paradigma interpretacionista (FERNANDES; VAZ, 2010).
Talvez pelas características editoriais do periódico consultado, não foi encontrado nenhum
artigo que se pudesse enquadrar nos campos radical humanista e estruturalista.
Deve-se observar aqui também que, durante a revisão da teoria, a percepção do autor
da tese era a de que muito do que estava sendo abordado fazia todo sentido, como argumento
– tanto o de autores mais funcionalistas, como o dos mais críticos. Ao tensionar a teoria com
sua experiência pessoal, foi observado que a experiência do autor como líder e como liderado
nas suas relações de liderança, comportava as contradições apresentadas na teoria, podendo
ser lida, ao mesmo tempo, por óticas que, na teoria, se negavam. Essa percepção ajudou na
compreensão da linha na qual a pesquisa deveria ser conduzida: a pergunta orientadora da
pesquisa deveria ser formulada de modo a propiciar a expressão das contradições no objeto de
investigação.
regulação); o “interpretacionista” (subjetivismo + sociologia da regulação); o “radical humanista” (mudança
radical + subjetivismo); e o “radical estruturalista” (mudança radical + objetivismo).
24
Para o líder, essa contradição poderia ser percebida não só no seu discurso, mas
também nas comparações entre discursos. Para atingir esse objetivo, a observação das
relações dentro de uma rede de organizações – e não em uma organização, como têm sido
conduzidas muitas das pesquisas neste campo – poderia ser uma forma de indução destas
percepções, pois, como já foi dito, em uma rede um indivíduo que exerce o papel de líder em
uma organização pode ocupar o papel de liderado em outra.
Entretanto, se o que se desejava é oferecer condições para a expressão de contradições
internas, no ser líder, seria necessário também investigar o objeto em diferentes momentos de
uma rede de organizações, em não em apenas um momento (o da pesquisa). A forma que se
encontrara para isso foi a de, dentro desta rede de organizações, investigar não apenas os seus
líderes atuais, mas também pessoas que já foram os seus líderes, mas que hoje estão, naquela
rede, no papel de liderados.
É considerando todo este contexto que deve ser estruturada a pergunta que tem como
finalidade explicitar o problema proposto para a tese.
Inspirado pelo esquema proposto por Salomon (2006), e resumindo alguns dos passos que
foram dados até aqui, tem-se a seguinte sequência para se chegar à pergunta que vai dar
expressão ao problema proposto para esta tese:
a) O tema: os líderes e a liderança.
b) O tópico do tema: os líderes e sua liderança vistos em uma rede de organizações.
c) Objeto de investigação: os líderes e sua liderança em uma rede de organizações de
caráter associativo de um grupo profissional específico.
d) O problema: considerando o objeto de investigação, qual é o conceito de liderança
para esse grupo de indivíduos?
e) A hipótese: não há hipótese, uma vez que, na abordagem proposta por Adorno não se
deve partir de uma visão que tenha o potencial de conformar o objeto.
Para Adorno, como vai ser apresentado no capítulo 3, a teoria é uma “hipótese
figurada” – e não, como propõe o positivismo, uma “instância legítima” (a qual, por isso
mesmo, não admitiria contradições). Ela não só pode fornecer os insights para o que deve ser
pesquisado, como também deve ser criticamente tensionada com os achados empíricos. A
teoria não será “simplesmente uma hipótese a ser refutada ou confirmada”, mas sim algo de
onde derivar “questionamentos concretos no plano da investigação, que logo caminhassem
por seus próprios pés” (ADORNO, 1995b, p. 168-169).
25
O questionamento, nesse caso, é o apresentado como o problema de pesquisa.
Serão os seguintes os objetivos que se pretende alcançar com essa tese:
A) Objetivo Geral
Identificar o que é o “ser líder” e o que é “a liderança” para o objeto de investigação.
B) Objetivos específicos
a) Utilizar uma metodologia de investigação, orientada pela Dialética negativa de T. W.
Adorno, que lance mão de múltiplos procedimentos, considerados adequados para
penetrar a opacidade do objeto a ser investigado;
b) buscar identificar contradições nos conceitos de líder e de liderança, para esse objeto;
c) submetendo os conceitos de líder e de liderança a uma crítica imanente, procurar
explicitar o que revelam esses conceitos
1.2 Sobre a estrutura do texto
No texto Der essay als form (ADORNO, 1984), publicado pela primeira vez em 1958,
Adorno apresenta as razões pelas quais considerava o ensaio como a melhor estrutura de texto
para a comunicação científica, no contexto da abordagem do objeto social.
A questão é que este estudo não é apenas uma comunicação científica. Existe uma
estrutura de texto mais ou menos esperada para uma tese, e romper com essa estrutura é algo
que, ainda que possível – dependendo apenas de acordos estabelecidos com os orientadores –,
pode trazer dificultadores adicionais para quem escreve.
Decidiu-se, então, manter o texto basicamente na terceira pessoa e seguindo a
sequência geral na forma: introdução; referencial teórico; metodologia; achados; discussão;
conclusão. A estrutura final do trabalho ficou da seguinte forma:
No capítulo 2, apresenta-se a teoria sobre o líder e a liderança, não isoladamente o
líder ou a liderança, mas ambos, uma vez que a pesquisa tem o seu foco não apenas no
indivíduo, mas nas relações que ele estabelece com outros líderes e com os liderados. Aqui, o
tema é abordado como um dado da realidade – o que efetivamente ele é –, considerando-se as
diversas óticas, tanto das linhas mais funcionalistas como daquelas mais críticas, para já
começar a apresentar, a partir daí, algumas das contradições no conceito. Ele é conduzido com
base no modo como veio se desenvolvendo no tempo.
26
O capítulo 3 descreve os fundamentos teóricos para as ideias de Adorno. É uma
“teoria sobre a teoria” – pode-se arriscar chamá-la de uma metateoria para a tese –, a qual, de
modo geral, utilizando conceitos da Dialética negativa de Adorno (2009), representaria o lado
“racionalmente negativo” para o âmbito deste trabalho. Neste capítulo, busca-se seguir uma
sequência que vai da identificação das influências exercidas por outros autores sobre o
pensamento de Adorno para algumas das categorias de sua obra que foram consideradas de
importância para a pesquisa – com foco especial na abordagem empírica do objeto social.
Apesar de haver uma sequência a ser seguida, para ser consistente com a proposta (talvez se
pudesse dizer, estética) do autor, pode ser percebido no texto um modelo que não segue uma
lógica sequencial fechada, mas que aborda as questões mais relevantes para a pesquisa
empírica de modo mais “constelatório”, onde um mesmo tema-chave – por exemplo, o
“positivismo”, ou a “contradição” – vai ser visto sob óticas diferentes, em momentos
diferentes do texto, dependendo do cenário no qual será abordado.
Os procedimentos metodológicos para obtenção dos dados são relatados no capítulo 4.
Os dados obtidos são organizados no capítulo 5 e submetidos a uma primeira análise,
enquanto são apresentados.
No capítulo 6 realiza-se a análise mais aprofundada dos dados, associada com a sua
discussão.
Por fim, a conclusão, capítulo no qual se vão pontuar alguns aprendizados propiciados
pelo estudo – envolvendo não somente o aprendizado sobre o objeto, mas também sobre o que
foi aprendido com a utilização do método. O que se busca é a organização dos tópicos mais
importantes relacionados à pesquisa atual, sugerindo também algumas das possibilidades
abertas para investigações futuras.
Uma das contribuições intencionadas para este estudo é utilizar a Dialética negativa
de T. Adorno não como fundamento para análises de caráter ensaístico ou teórico, mas para a
abordagem empírica mesmo do objeto social. Mais especificamente, no caso da pesquisa
realizada, propiciar que o objeto – o líder e as relações de liderança – que tem sido abordado
ou por meio de metodologias positivistas ou por autores cuja metodologia crítica está mais
identificada com os paradigmas radical humanista ou estruturalista seja versado a partir da
utilização de uma metodologia que busca preservar a verdade existente nas outras, mas que o
faz suprassumindo-as em uma nova compreensão do objeto.
Em outros termos, o que se pretende saber é, com essa metodologia, procurar dizer
algo além daquilo que está conceitualmente estabelecido a respeito da liderança. Em outras
palavras, buscar uma resposta para a seguinte pergunta: o que é mesmo a liderança?
27
2 A TEORIA CRÍTICA, ADORNO E A PESQUISA SOCIAL EMPÍRICA
Platão, que foi o primeiro a instaurar a Matemática como modelo metodológico,
ainda emprestou, no começo da filosofia europeia da razão, forte ênfase ao momento
qualitativo da razão, no momento em que reconheceu à separação os mesmos
direitos que à síntese. [...] A meta cognitiva mesmo da Estatística é qualitativa, a
quantificação não passa de seu meio. [...] De acordo com a grande Lógica,
quantidade é “ela mesma uma qualidade”. Ela guarda sua relevância no quantitativo;
e o quantum retorna à qualidade (ADORNO, 2009, p. 44-45).
Adorno e a teoria crítica em geral são muito utilizados como base teórica para estudos
de natureza também teórica ou ensaística. Para o leitor menos avisado, isso pode propiciar a
impressão de que a pesquisa de fundamento frankfurtiano não poderia utilizar dados
empíricos e que seria impróprio utilizar esse tipo de referencial para o desenho e condução de
pesquisas que exijam trabalho de campo.
A razão para esse tipo de impressão pode ser encontrada não em autores de tradição
positivista, mas em uma crítica dirigida de forma especial a Adorno e Horkheimer por outro
autor da tradição frankfurteana, que foi Habermas (1987a). Nessa crítica, Habermas (1987a)
afirma terem esses autores abandonado o projeto inicial de pesquisa interdisciplinar que deu
origem ao Institut für Sozialforchung (ISF) nos anos 1920-1930 e de terem enveredado numa
linha de análise discursiva sobre a vida social, que teria resultado em um discurso metafísico,
do qual o projeto do ISF procurava se afastar (DUARTE, 2003).
Entre muitos dos pesquisadores da administração, essa crítica tem sido reforçada pela
identificação de Habermas como o porta-voz legítimo dos frankfurteanos. Considerado
herdeiro de Adorno e Horkheimer, com quem trabalhou na Universidade de Frankfurt, é
reconhecido por vários autores como pertencendo a uma terceira geração do que ficou
conhecido como a Escola de Frankfurt (FREITAG, 2004). Em sua Teoria da Ação
Comunitativa (HABERMAS, 1987c) Habermas afirma que falta à produção de Adorno e
Horkheimer do pós-guerra uma sustentação empírica. Daí que uma leitura de Adorno
orientada pelas críticas de Habermas pode dificultar a compreensão da perspectiva empírica
que está presente nos seus trabalhos.
Essa concepção equivocada tende a desconsiderar toda a produção de orientação
sociológica presente em diversos projetos liderados por eles, em que se pode constatar a
realização de pesquisas empíricas desde os anos de fundação do ISF, ainda em Frankfurt
(WIGGERHAUS, 2006). O que se vai mostrar é que o projeto de trabalho empírico
interdisciplinar nunca foi abandonado e que estudiosos atuais de Adorno reforçam a
ancoragem empírica também em seus trabalhos analíticos-interpretativos, entre os quais a
28
Dialética do esclarecimento e a Dialética negativa, e nos textos pontuais sobre a Indústria
Cultural e sobre a música (OEVERMANN, 2004). Esse projeto é reconhecido e enfatizado
por estudiosos sérios das obras de Adorno e Horkheimer, tais como Oskar Negt (1995) e
Gehard Schweppenhauser (2003).
O trabalho de pesquisa empírica em Adorno não se desenvolve apenas na prática da
investigação sociológica, mas deu origem a vários textos nos quais Adorno aborda de forma
direta a sua compreensão sobre o tema. Esses textos serão utilizados, de modo a procurar
romper com a noção errônea existente na academia e estabelecer as bases conceituais para o
desenvolvimento da presente pesquisa.
Não é tarefa fácil a proposta de apresentar o pensamento de um autor que, de acordo
com Claussen (2008), foi o “último gênio” do século XX. Para buscar atingir esse objetivo, a
primeira delimitação – expressa já no título deste capítulo – diz respeito aos aspectos de seu
pensamento que serão importantes para a realização e interpretação dos achados da pesquisa
proposta. O que, ainda assim, se apresenta como uma tarefa gigantesca.
Para enfrentar essa tarefa, será necessário, em primeiro lugar, discorrer sobre os
fundamentos filosóficos e sociológicos de Adorno (que, no caso desse autor, se confundem),
sem o que não seria possível compreender o seu conceito de pesquisa empírica (NEGT, 1995;
SCHWEPPENHAEUSER, 2003).
Mas, para o adequado entendimento desses fundamentos, será preciso percorrer um
trajeto que vai das influências de outros autores sobre o pensamento de Adorno até chegar a
algumas de suas categorias básicas, a partir das quais se pode ter acesso à sua visão do mundo
como algo que pode ser compreendido. A dificuldade imposta para esse percurso pode se
constituir, talvez, no motivo de ser Adorno tão pouco utilizado em nossas investigações
empíricas – ou pior, no fato de que, quando o é, por ser mal compreendido ele é
frequentemente mal empregado – num campo que, tão sujeito a segmentações de abordagem,
resiste à utilização de autores que possuem fundamentos tão complexos.
Não é possível atrelar o pensamento de Adorno a uma teoria entre as muitas que se
ocupam dos problemas semelhantes aos que ele dedica sua obra. O que se encontra, em geral,
são aproximações e afastamentos que Adorno estabelece com a obra desses outros autores
(SILVA, 2006). Daí a necessidade de se ter conhecimento mínimo a respeito dos autores em
relação aos quais sua obra se aproxima ou distancia.
Para Jay (1988), uma descrição que queira ser fiel ao pensamento de Adorno deve
fazê-lo a partir da utilização de duas das metáforas que este empregava, com a finalidade de
dar conta da dialética entre as dimensões subjetiva e objetiva, particular e universal e histórica
29
e natural dos fenômenos da realidade complexa. Essas são as metáforas de “campo de força” e
de “constelação” (JAY, 1988).
A “constelação” é uma categoria que, tradicionalmente, é apresentada como um
empréstimo tomado a Walter Benjamin5 – que a utiliza pela primeira vez na introdução de
Origem do Drama Barroco Alemão (BENJAMIN, 2009). Para Nobre (1998) ela foi, de fato,
tomada de empréstimo a Max Weber (1904-2006b)6.
Silva (2006) comenta a possível relação entre Adorno e Weber, sob esse aspecto:
A primeira referência a uma possível relação entre Adorno e Weber sob esse aspecto
foi feita por Rose que, em 1978, pôde dar atenção a uma passagem da Dialética
negativa e notar que, entendida como categoria sociológica, a constelação se
comporta como os tipos ideais weberianos. Embora Rose não chegue a desenvolver
tudo o que essa passagem comporta, sua nota nos conduz a uma série de excelentes
trabalhos, sobretudo o de Thyen, que descortinam o horizonte até então insuspeito –
porque pouco frequente em sua obra – da influência sociológica definitiva que
Weber exerce sobre Adorno, segundo o modo e função das categorias sociológicas
(SILVA, 2006, p. 81).
O uso do termo constelação na obra de T. Adorno não envolve a ideia de “conjunto
de”, mas algo muito além disso. De acordo com Silva (2006):
[...] identifica-se a atribuição de modos variados à ideia de constelação, que talvez
possamos aqui reconstruir segundo três passos analíticos, inevitavelmente
imbricados: 1) “constelação” descreve uma propriedade teórica ou um modo de ser
do pensamento, aproximando-se bastante do que vimos ser o sentido dos modelos;
2) “constelação” é um aspecto concreto ou modo de ser da coisa, o que nos remete
ao enigma que o objeto representa para o pensamento identificante; 3) “constelação”
é uma forma que desafia a intenção sistemática da teoria, princípio de composição
que dá visibilidade ao antissistema. De imediato, note-se que enquanto os dois
primeiros passos recuperam aquele princípio do “duplo relacionamento” sugerido
por Bonß consistindo, assim, na constelação como procedimento, o terceiro passo
remete à questão do estilo de Adorno e sua composição no ensaio. O
reconhecimento dos dois primeiros passos configura, sem dúvida, a mais comum
abordagem do problema. Ela é fundamentalmente correta uma vez que não
desconsidera o sentido primário do termo constelação, a saber, sua dupla remissão
aos aspectos conceitual e coisal (SILVA, 2006, p. 75-76).
Ou seja, considerando os três passos, é constelação de conceitos e de objetos. Como
observa Silva (2006):
5 “As ideias são para os objetos o que as constelações são para as estrelas. Isso quer dizer, em primeiro lugar, que
elas não são nem seus conceitos nem suas leis. Elas não contribuem para o conhecimento do fenômeno e de
forma alguma este último pode ser o critério com o qual se julga a existência das ideias. O significado do
fenômeno para as ideias está confinado aos seus elementos conceituais” (BENJAMIN, 2009, p. 34). 6 “Como é natural, toda constelação individual que a astronomia nos „explica‟ ou prediz só poderá ser
causalmente explicável como consequência de outra constelação, igualmente individual, que a precede”
(WEBER, 2006b. p. 46).
30
Enquanto procedimento, a constelação apresenta-se como um feixe de propriedades
teóricas e aspectos concretos, o que nos permite afirmar que ela responde
positivamente àquela primeira condição implicada por essa utopia: ela expõe
diagnósticos e objetos à medida que compreende justamente a dinâmica de
coordenação desses elementos (SILVA, 2006, p. 83).
Relacionando as heranças benjaminiana e weberiana de constelação, para Silva (2006):
se os dois primeiros aspectos envolvidos na ideia de constelação são uma herança
benjaminiana e se referem ao “duplo relacionamento” sugerido por Bonß – “uma
construção de constelações que permitem tornar visível o objeto em constelações” –,
que aqui recobre o que chamamos de procedimento metódico, o terceiro desses
aspectos, que envolve entender tanto a articulação entre a atividade de compreensão
e o princípio de composição, como a realização desse princípio em um modo de
exposição do pensamento, pode ser remetido à reconstrução por Adorno da categoria
weberiana de tipo ideal (SILVA, 2006, p.82).
Segundo Nobre (1998), “constelação” é uma categoria que não apenas não admite
definição, como também é refratária a qualquer tratamento teórico que pretenda isolá-la de
suas configurações concretas. A ideia de conhecimento como constelação se refere a um
conhecimento que pretende salvar o objeto, o particular. É a formulação do ideal do
conhecimento a ser alcançado por meio do conceito – instrumento inevitável do pensamento –
de forma a produzir uma crítica que não elimina, mas que transforma o conceito, envolvendo
algo mais próximo do modelo, o qual, por sua vez, é apresentado como a alternativa ao
sistema (TIBURI, 2005).
São muitas as alusões de T. Adorno ao que ele pretende com a ideia de constelação.
Como exemplificação, separa-se abaixo um trecho da Dialética negativa onde o autor aborda
mais extensamente o que pretende apresentar com essa ideia:
[...] não se progride a partir de conceitos e por etapas até o conceito superior mais
universal, mas esses conceitos entram em uma constelação. Essa constelação
ilumina o que há de específico no objeto e que é indiferente ou um peso para o
procedimento classificatório. [...] As constelações só representam de fora aquilo que
o conceito amputou no interior, o mais que ele quer ser tanto quanto ele não o pode
ser. [...] O conhecimento do objeto em sua constelação é o conhecimento do
processo que ele acumula em si. Enquanto constelação, o pensamento teórico
circunscreve o conceito que ele gostaria de abrir, esperando que ele salte, mais ou
menos como os cadeados de cofres-fortes bem guardados: não apenas por meio de
uma única chave ou de um único número, mas de uma combinação numérica
(ADORNO, 2009, p. 140-142).
O conceito de “campo de força” é apropriado para ser usado nesse primeiro momento,
quando se busca o diálogo que estabelece com outros autores. Essa é uma metáfora retirada da
Física e se refere à resultante das atrações e repulsões a que estão submetidos os fenômenos
31
complexos, que representam o dinamismo e as transformações aos quais estão submetidos
esses fenômenos (JAY, 1988).
Nas palavras de Adorno, campo de força é “algo dentro do que os conceitos abstratos
que entram em conflito uns com os outros e constantemente se modificam realmente se
colocam como forças vivas” (ADORNO, 2001a, p. 4), citando o sistema kantiano como
exemplo da atuação desse “campo de forças”:
[...] um sistema como o de Kant, que para todas as intenções e aparências parece
uma totalidade coerente, que se mantém coeso em uma totalidade dedutiva, é na
realidade um campo de força, o qual só pode ser apropriadamente entendido se se
conhecer as forças que estão associadas em um tipo de fricção produtiva [...]
(ADORNO, 2001a, p. 27).
Essa metáfora permite esclarecer a coexistência em Adorno de orientações teóricas
que ele simultaneamente recusa, resgata e reconcilia – como indicado por um trecho do
aforismo Criança com a água do banho da Mínima moralia: “se quiséssemos agir
radicalmente, de acordo com isso, extirparíamos também com o falso tudo o que é
verdadeiro” (ADORNO, 1993a, pp. 36-37).
A partir dessa metáfora, e de acordo com Jay (1988) e Duarte (2004), o pensamento de
Adorno gravita em torno de um campo de força cujos componentes principais são:
a) As influências que recebeu do seu meio social: do modernismo estético, da formação
de sua consciência em um meio marcado pelo declínio do conservadorismo cultural
mandarinesco e do impulso judaico de seu pensamento que, apesar de não ser
marcante, não pode ser desconsiderado no cenário da Alemanha nazista;
b) a tradição crítica, passando pelo idealismo alemão, principalmente Kant e Hegel, e
chegando ao materialismo dialético de Marx. Em relação a todos esses autores,
devem-se observar as aproximações e distanciamentos considerados importantes para
a compreensão de seu pensamento e que, em seus aspectos mais relevantes, serão
discutidos mais à frente;
c) a sociologia de Max Weber (2006a), que é responsável por algumas aproximações
muito importantes – de modo especial as que envolvem as questões de valor para o
cientista, a neutralidade axiológica e os conceitos de composição e de constelação para
a abordagem do objeto social. Mas essa é uma linha que também determina alguns
distanciamentos, uma vez que Weber foi, por várias vezes, caracterizado por Adorno
(2008b) como um autor que se orienta por fundamentos positivistas;
32
d) a psicanálise de Freud, que exerce influência muito importante desde os primeiros
momentos do ISF, determinando mais aproximações do que distanciamentos;
e) o positivismo – de modo especial o positivismo lógico do círculo de Viena – e que
nesse caso é responsável por posições de distanciamentos;
f) a ontologia, de modo especial a apresentada na filosofia de Heidegger, que merece de
Adorno quase que todo um capítulo da Dialética negativa e que também nesse caso é
responsável mais por distanciamentos do que por aproximações.
Para além dessas influências gerais, aqui caracterizadas pelo “campo de força”, o que
se observa na literatura sobre a sua obra é uma tendência a tentar enquadrá-la em construtos
como os da “Escola de Frankfurt” ou do “marxismo ocidental”. Para Silva (2006) esses
estudos ou terminam por se constituir em simplificações grosseiras – o que, em desacordo
com a complexidade de seu pensamento, mais confunde do que esclarece – ou no que foi
chamado de “estudos de ocasião”, que buscam uma continuidade de sua obra, estabelecida em
torno da Dialética do Esclarecimento. Esses últimos, justamente por buscarem a continuidade
de seu pensamento, tendem a desconsiderar um elemento central na obra de Adorno – objeto
de discussão posterior neste trabalho –, que é o da negatividade (SILVA, 2006).
Existe uma segunda linha de estudos que, se contrapondo à tese da continuidade, tem
como oponente principal não autores de fora da tradição teórico-crítica, mas justamente o já
citado Habermas. Esses estudos buscam caracterizar uma ruptura na obra de Adorno, marcada
de modo especial pela distância entre a Dialética do Esclarecimento e a Dialética negativa,
acentuando os diferentes modelos de teoria crítica, que se constroem segundo diagnósticos do
tempo. Estes, por sua vez, estão baseados na existência de um núcleo temporal de verdade
(SILVA, 2006). O significado desses conceitos ficará mais claro no desenvolvimento
posterior que será realizado sobre os fundamentos da teoria crítica da sociedade.
Por fim, há uma terceira linha – cuja exposição pode ser encontrada em Nobre (1998)
– que identifica já no jovem Adorno o modo de pensamento que, muito marcado pelo contato
com Walter Benjamin, estabelece as linhas gerais do que, ao longo de sua trajetória
intelectual, vai se transformando e vai sendo reelaborado, resultando em um pensamento que
apresenta algo de continuidade e algo de ruptura. A essa linha Silva (2006) chamou de
coerência em fragmentos.
De acordo com Silva (2006):
33
Não há dúvida de que é possível encontrar uma abundante coleção de argumentos,
imagens, termos e referências a se repetir em textos diversos, o que faz saltar aos
olhos uma unidade inegável. Acresce a isso que a reiterada uniformidade estilística –
a artificialidade na construção de frases, a abundância de parataxes, elipses e
quiasmos, a insurgência repentina de conceitos – se pensada conjuntamente com a
dependência radical entre conteúdo e modo de exposição, desdobrada por Adorno de
modo decisivo ao longo de sua produção intelectual, reforça a impressão da mais
pacífica continuidade. No entanto, um olhar atento ao detalhe, ao contexto
específico, mostra que os materiais de que se faz a teoria, os conceitos, nunca
recebem uma definição que não seja sujeita a correções – não nomeadas, mas
presentes – se é que alguma vez chegam a receber definições no sentido rigoroso do
termo (SILVA, 2006, p. 31).
A presente pesquisa toma como base teórica os autores que se enquadram nessa
terceira linha de estudos, baseado na ideia de que:
A atualização – necessária porque constitutiva – do pensamento de Adorno
dependeria da negação de seus momentos, realizada em vista de um novo
diagnóstico do tempo, pautado pela atenção à concreção histórica. Tal processo
condena, em última instância, tanto a tradição interpretativa da continuidade (que
sustenta um Adorno sistemático e, assim, perde de vista seus momentos), como a
tradição interpretativa da ruptura (que embora atenta à ideia de modelos sucessivos
de teoria crítica, tende a não considerá-los segundo sua possibilidade) (SILVA,
2006, p. 38).
Considerando, então, essa linha, pode-se dividir o pensamento de Adorno, a partir do
diagnóstico do tempo presente, em três grandes momentos: o momento de aproximação entre
o seu pensamento e o de Walter Benjamin; o momento do distanciamento de Walter
Benjamin, no final da década de 1930, e a aproximação entre o seu pensamento e o de
Horkheimer, expresso principalmente na obra conjunta Dialética do Esclarecimento; e a
produção da maturidade, representando um afastamento de Horkheimer e expressa em suas
obras tardias, especialmente a Teoria Estética e a Dialética negativa.
O afastamento de Horkheimer, como ensina Silva (2006), pode ser identificado na
diferença na nota de edição dos Três estudos sobre Hegel, comparando-se o texto da edição
de 1957 com o da edição de 1963: em 1957, o editor justifica a abdicação de referências
isoladas pelo fato de que “o pensamento filosófico do autor e de Max Horkheimer é um”; já
na de 1963, a mesma justificativa é dada pelo fato de “o pensamento filosófico de ambos ser
responsável pelas interpretações relevantes”.
O que fica evidenciado nessa diferença entre textos é que:
34
Na distância entre afirmar que o pensamento é uno e afirmar que as interpretações
relevantes são devidas a uma unidade de pensamento mede-se o afastamento entre
ambos: no primeiro caso estamos ainda em plena vigência do projeto comum, no
segundo estamos no momento seguinte, em que a coincidência de posições já não
garante unidade de projeto (SILVA, 2006, p. 120).
Esse momento também marca uma revisão de expectativas teóricas de Adorno, que
pode ser caracterizado pela:
Necessidade de elaborar “um conceito transformado de dialética”. Para dizer
claramente: se esse conceito “transformado” ainda pede por elaboração, então não se
trata mais daquele conceito que Adorno havia desdobrado ao lado de Horkheimer na
Dialética do esclarecimento. Portanto, do mesmo modo que se dera com Benjamin,
essa segunda demarcação se segue do afastamento entre as posições teóricas de
antigos colaboradores, de uma reconstrução programática, e se apoia em uma
revisão de expectativas (SILVA, 2006, p. 121).
Quais são essas expectativas deverá ficar mais claro quando for discutida a obra de
Adorno, fornecendo-se as indicações para o modelo crítico que deve orientar essa pesquisa – a
Dialética negativa.
Na sequência, e com a intenção de facilitar a compreensão do modelo crítico
representado pela Dialética negativa, buscam-se caracterizar alguns dos aspectos
considerados os mais relevantes e que são encontrados nos autores citados como fazendo
parte do campo de força, em torno do qual gravita o pensamento de Adorno.
2.1 Influências identificadas sobre o pensamento de Adorno
O percurso a ser percorrido neste item é o seguinte: considerando que o período de
parceria com Walter Benjamin é tido como tão importante que não só marca todo um período
de pensamento, como estabelece algumas linhas que serão perseguidas até a maturidade, esse
momento será inserido naqueles aspectos mais relevantes. O segundo momento, que é mais
extenso, caracterizado pelo afastamento de Benjamin e aproximação com Horkheimer, será
estudado a partir da ótica da teoria crítica. É aí que será incluída a pesquisa social empírica. O
terceiro momento, definido pela produção de maturidade a qual pode ser caracterizada, para
fins desta tese, pela produção da obra Dialética negativa, será o último a ser abordado.
35
2.1.1 Influências iniciais: a aproximação com o pensamento de Walter Benjamin
A influência exercida por Benjamin é tão importante para o início da carreira de
Adorno, que Nobre (1998) delimita uma de fase de seu pensamento, que chamou
benjaminiana: essa fase vai de 1927, antes do que não se detectava qualquer influência em
seus textos, a novembro de 1934 quando, em uma carta a Benjamin, Adorno escreve que as
divergências ali expostas “surgem pela primeira vez desde que entramos em contato” (cartas
de Adorno, NOBRE, 1998). A partir desse momento, ainda que não haja ruptura, vai
acontecendo uma demarcação progressiva de seu pensamento, que toma forma bem definida
em uma carta de agosto de 1935, quando Adorno critica o ensaio de Benjamin “Paris, capital
do século XIX” (NOBRE, 1998).
Dentro do período de influência, Adorno escreve frequentemente sobre um “programa
filosófico comum”, cujas bases podem ser encontradas em três obras de Benjamin: o livro
Origem do drama barroco alemão, o ensaio Sobre as afinidades eletivas de Goethe e a versão
de 1929 do projeto das Passagens. Na verdade, o que Nobre (1998) sublinha é que esse foi
um período de transição no pensamento de ambos, marcado pelo contato com a obra de Marx
– o que acaba sendo também o motivo das divergências de posições (NOBRE, 1998).
O impacto da obra de Benjamin sobre Adorno fica registrado em uma de suas palestras
de início de carreira, “A ideia de história natural” (JAY, 1988). Esse é um tema retomado na
Dialética negativa, em que Adorno faz uma referência explícita à influência do pensamento
de Benjamin sobre os conceitos ali tratados (ADORNO, 2009). Daí que, de acordo com Nobre
(1998), é muito importante se conhecer as discussões travadas entre os dois na década de
1930, pois é o conteúdo dessas discussões que ilumina toda a obra tardia de Adorno.
Nobre (1998) cita o livro que Rudolf Speth escreve sobre o jovem Benjamin, no qual
afirma que seria no ensaio As afinidades eletivas de Goethe que surgiria o que ficou
conhecido posteriormente como teoria crítica. Nobre (1998) também menciona os textos
anteriores à década de 1930, em que Benjamin faz a crítica à Aufklärung (o esclarecimento),
acusando-o de mitologia. O conceito de mito passa, desde então, a permear toda a obra de
Benjamin em oposição ao conceito de verdade – por exemplo, para Benjamin, querer
compreender a vida da sociedade segundo princípios da natureza é um mito (NOBRE, 1998).
E esse é um tema retomado por Adorno de forma contundente na Dialética do esclarecimento
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
Nas cartas a Benjamin, Adorno se refere também a um modelo de “crítica imanente”
que é compartilhado por ambos. Nobre (1998) identifica em uma passagem do prólogo da
36
Origem do drama barroco alemão (BENJAMIN, 2009) uma possível referência benjaminiana
a essa crítica – importante no contexto desta pesquisa, uma vez que a “crítica imanente”
tornou-se um método de abordagem do objeto social em Adorno.
Outra questão que faz parte das preocupações teóricas de Adorno e que também já se
encontra na Origem do drama barroco alemão diz respeito ao conceito. Nobre (1998) traduz
essa discussão afirmando que o que ela busca é:
Encontrar um caminho entre o realismo e o idealismo, de não atribuir ao conceito
nem o papel de absorver inteiramente o objeto nem o de classificar as singularidades
meramente segundo o que têm em comum, pois em ambos os casos perde-se
justamente a especificidade do objeto (NOBRE, 1998, p. 84).
A partir de 1934 verifica-se intensificação da correspondência, que é atribuída à
situação adversa na Alemanha, mas que, segundo Habermas, poderia ter sido por preferência
pela mídia escrita mesmo (NOBRE, 1998). Uma discussão detalhada sobre o tema foge ao
interesse deste trabalho, mas pode-se abstrair como um ponto comum de discussão a
utilização de categorias marxistas na fase benjaminiana conhecida como materialista. O
momento em que essa discordância se torna mais aguda ficou registrado em uma carta de
novembro de 1938, quando Adorno, entre outras coisas, observa a Benjamin que ele “se
proibiu os seus mais argutos e frutíferos pensamentos por um tipo de censura prévia segundo
categorias materialistas (que não coincidem de forma aguda com as marxistas)” (ADORNO,
apud NOBRE, 1998).
A admiração pelas ideias do mestre, entretanto, não deixa de exercer influência sobre a
obra mais tardia de Adorno, o que pode ser constatado pelas inúmeras referências à sua obra
em trabalhos posteriores – como no capítulo “Caracterização de Walter Benjamin”, em
Prismas (ADORNO, 1962), nas várias referências a Benjamin em suas conferências reunidas
em History and Freedom (ADORNO, 2006), mas, principalmente, e de modo especial, na
Dialética negativa (ADORNO, 2009).
2.1.2 Algumas aproximações com a sociologia de Max Weber
Uma influência que foge da linha aqui desenhada diz respeito à sociologia de Max
Weber – que não tem sido considerada por muitos dos autores que escrevem sobre a teoria
crítica. De acordo com Jay (2008, p. 324), “Horkheimer sempre fora um interessado leitor de
Weber”, tendo adotado em alguns de seus escritos análises basicamente weberianas.
37
Para Weber, o fato social é externo e todos os indivíduos socializados no mesmo
processo não o identificam como fato externo – o que permite uma análise empírica,
positivista, que independe do sistema de crença ou do estado mental do investigador. Mas
reconhece que se estivéssemos em sociedades diferente, talvez o indivíduo tivesse outro
comportamento – seria possível ser objetivista em ciências sociais no sentido de
independência de estados mentais, mas não em termos de sistemas de crenças. Esse sistema
de crenças fornece modos distintos de compreensão para os sujeitos, que assim adotam
estruturas distintas a partir das quais eles significam o mundo (WEBER, 2001).
O fato é fato não por ser independente de condicionalidades, mas justamente por ser
condicionado. A verdade, dessa forma, tem núcleo temporal – não porque ela é relativa a
tempos históricos, mas porque o que se pode dizer da verdade diz respeito a tempo histórico.
O tipo ideal proposto por Weber (1999) busca elucidar as condicionalidades não recorrentes
em relação aos fatos – aquilo que é não recorrente no fato.
O objeto da sociologia é o conjunto de coisas que é estático para os indivíduos, porque
é móvel na perspectiva do todo – é a historia que articula o sistema, que parece estático para o
indivíduo, mas que para a história é dinâmico. O conceito de valor, de acordo com Weber
(2001), deve cuidar de duas perspectivas: valor como algo válido – aquilo que pode ser
contemplado com o título de verdadeiro – e o valor como algo valioso, que está de acordo
com um enunciado moral. Weber já intui que o cientista social, por ser agente social, não
consegue separar situação de fato e valor. A solução que ele encontra para isso é a
neutralidade axiológica (WEBER, 2001). O método então é algo que deve servir para separar
o valor para o indivíduo do valor que é de cunho social.
Uma forma de observar as consequências da visão weberiana sobre Adorno pode ser a
partir de suas próprias observações apresentadas em seus cursos de Sociologia nas décadas de
1950 e 1960 (ADORNO, 2008a; ADORNO; HORKHEIMER, 1977a).
Nessas aulas, Adorno afirma que tanto a neutralidade axiológica como a questão dos
valores, conforme Weber (2001), são a expressão de uma reificação, uma vez que o termo
“valor” penetra nas ciências sociais pela economia, tomando emprestado desta o sentido que é
aplicado àquela. Para Weber (2001), a neutralidade axiológica seria produzida pelo seu
método porque ele permitiria, com a sua aplicação, dizer o que é importante para mim e o que
é importante para a sociedade. Seria somente a partir daí que seria possível perguntar sobre o
que é verdadeiro – que é diferente do que é relevante.
Adorno e Horkheimer (1977a) mostram que a polêmica da sociologia positivista foi
dirigida não só à filosofia especulativa da sociedade, mas também às principais categorias da
38
sociologia que a antecederam e que ela pretendeu eliminar estabelecendo como postulado que
se deve ficar apegado aos dados e se ater a campos bem delimitados de investigação. Mas a
consequência de uma sociologia que se pretenda “isenta de valores” – como postulada por
Max Weber – é que o elemento “crítica” acaba por ser eliminado da investigação empírica.
Hegel, Marx, Nietsche e Freud desconfiam que algo foi perdido com a separação de
coisas de fato e de valor: será que existiria realmente uma delimitação desse tipo?
Essa separação pode ter impedido a realização da filosofia – utilizando um termo que
Adorno emprega na Dialética negativa. Para Marx, parecia que os problemas da Filosofia
nada teriam a ver com o mundo7. Nessa separação algo foi perdido, para o que a ciência não
consegue dar uma resposta: é possível ordenar o mundo – ou, dito em outros termos, é
possível tornar um mundo um lugar melhor? Assim, ciências humanas e naturais têm as
mesmas características em termos de questão de fato e de valor? Os métodos devem ser os
mesmos para as duas?
É certo que métodos diferentes podem dar expressão às mesmas estruturas
fundamentais da sociedade – por exemplo, ao se examinar as determinações do “tipo ideal” de
capitalismo. Comparando-se a sociedade da sociologia de Weber com a da teoria marxista –
contra a qual Weber se posiciona –, podem-se identificar inúmeros momentos de atributos
comuns às duas como categorias fundamentais, como forma equivalente. O decisivo nesse
caso não é o núcleo idêntico, mas as configurações nas quais esses momentos se apresentam –
em grande medida momentos teóricos – na relação entre as quais há uma diferença.
O que Marx percebe é que, em ciências humanas, a solução de questões de fato deve
envolver questões de valor. Assim, à Filosofia caberia reconhecer a vinculação entre os dois
tipos de questão. A forma como as pessoas descrevem o comportamento do mundo
econômico gera comportamentos humanos. Os objetos, que são mercadorias, podem ser vistos
como questões de fato; mas o homem não deveria ser visto como mercadoria – uma questão
de valor. Para Marx, a diferença está em que o trabalho humano tem elasticidade: se há uma
convergência entre valor de uso e valor de troca para todas as mercadorias, no caso do homem
o que se percebe é uma divergência entre as duas – que é a fonte do lucro.
Mas adiantou-se um pouco aqui na discussão: antes de chegar a Marx, será preciso
passar primeiro pelo idealismo alemão. Inicialmente, a intenção é recuperar, em seus aspectos
mais relevantes, o que foi significativo nas filosofias de Kant e Hegel para o desenvolvimento
da Dialética negativa. Como o foco é o pensamento de Adorno, a discussão será realizada a
7 Veja-se, como exemplo, o texto que Marx escreve em resposta à Filosofia da miséria, de Pierre Proudhon:
Marx (1976).
39
partir das apresentações feitas por Adorno mesmo – de modo especial, a partir das obras
Kant‟s Critique of Pure Reason (2001) e Hegel: three studies (1993a).
Em complemento, também será tratado de forma geral no que diz respeito às
aproximações e distanciamentos em relação às obras de Freud e Nietzsche. Serão
apresentados alguns dos aspectos mais significativos referentes à influência exercida por
Marx (e pelo materialismo dialético) para o desenvolvimento da teoria crítica, como um todo,
e para Adorno particularmente.
Por fim, serão apresentados os aspectos teóricos mais relevantes para o
desenvolvimento do ISF, de maneira especial o trabalho de Friederich Pollock a partir do final
da década de 1920 e os textos de Horkheimer, tanto o de 1932, Observações sobre ciência e
crise, como o texto manifesto de 1937, Teoria tradicional e teoria crítica, considerado por
muitos autores como o texto que funda a teoria crítica (NOBRE, 2008).
2.1.3 A tradição crítica de Kant a Hegel, a crítica em Nietzsche e a obra de Freud
No alemão, como em português, a palavra crítica possui uma raiz em comum com a
palavra crise. Sua origem é grega: kritikós, com o sentido de capaz de julgar, de decidir, de
pensar, de discernir – ou a faculdade de pensar, o discernimento, a crítica e o julgamento. Ela
tem uma conexão com o verbo krinó – que significa separar, decidir, distinguir, discernir – e
com krisis, eós, que está na origem da palavra crise, em português.
Não deixa de ser interessante aqui pontuar que o sentido do termo crise tem sua
origem na história médica, como “o 7º, 14º, 21º ou 28º dia que, na evolução de uma doença,
constituía o momento decisivo, para a cura ou para a morte” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.
872). É esse o significado quando é dito que “a situação do paciente é crítica”. Compreender
essa raiz comum faz todo o sentido na compreensão da teoria crítica.
No pensamento filosófico ocidental, o autor destacado como responsável pelo início
da tradição crítica foi Kant, de forma que os autores posteriores devem se referir a ele ou
concordando e dando continuidade ao seu pensamento ou discordando e partindo para uma
outra visão diferenciada. Em um caso ou no outro, a referência é o pensamento de Kant.
Não é proposta deste capítulo – nem competência do autor – realizar aqui uma história
da filosofia ou do idealismo alemão. O que se pretende é chegar à teoria crítica e dela ao
pensamento de Adorno e à sua proposta de abordagem empírica do real. Para tanto, e pelas
razões apresentadas, parte-se do pensamento de Kant.
40
Para que o objetivo proposto não seja perdido e pela sua centralidade na discussão,
Kant será abordado a partir das aulas de Adorno sobre A crítica da razão pura (ADORNO,
2001a). Será realizada, portanto, de modo um pouco mais detalhado, uma vez que será
necessário recuperar algumas categorias apresentadas por Kant para se fazer a crítica a Hegel.
A abordagem sobre Hegel também deve utilizar como núcleo da discussão os três
estudos que Adorno realiza sobre esse autor (ADORNO, 1993b), além dos vários comentários
existentes em outras aulas e outros textos seus. Entretanto, considerando a importância que
Hegel vai exercer sobre o materialismo dialético e sobre a teoria crítica em geral, a discussão
aqui vai demandar abordagens realizadas também por outros autores. A estrutura da
discussão, entretanto, será um tanto diferente da realizada para Kant: aqui se pretende indicar
os tópicos que são relevantes para as aproximações – e distanciamentos – realizados por
Adorno e que estão na base da concepção de uma Dialética negativa.
As influências exercidas por Nietzsche também serão apresentadas de modo mais
pontual, na forma de tópicos. E para se ganhar em objetividade, serão abordadas a partir de
discussões realizadas por autores que se dedicaram ao tema.
Já a psicanálise freudiana, em função de sua importância teórica tanto para a própria
teoria crítica como para esta pesquisa, será discutida de modo um pouco mais extenso. Além
das referências frankfurteanas, o tema será abordado a partir, principalmente, de Rouanet, que
se dedicou a essa interface em sua obra, a Teoria crítica e psicanálise (ROUANET, 1989).
Passa-se então aos autores da tradição crítica.
2.1.3.1 Kant e a crítica da razão
Kant está no fundamento dos pensadores que formarão o núcleo em torno do qual
gravita o pensamento de Adorno. Daí a importância de se detalharem os aspectos mais
significativos de seu pensamento. Esse detalhamento será conduzido a partir das aulas de
Adorno sobre a Crítica da razão pura (CRP) (ADORNO, 2001a), ministradas durante o
primeiro semestre de 1959.
A importância dessa obra de Kant como fundamento para o pensamento de Adorno
está expressa em uma observação que Adorno faz no contexto de uma discussão sobre a
impossibilidade de uma ontologia do ser, tanto em sua versão idealista como na materialista:
A razão de eu fazer um esforço tão grande é que, se posso dizer assim, o que está em
jogo aqui são os fundamentos de uma posição filosófica que eu pessoalmente abraço
e que, acredito, posso expor em conexão com essas reflexões sobre Kant
(ADORNO, 2001a, p. 158).
41
O momento histórico de Kant é o início da Era Moderna, podendo-se identificar no
seu texto características próprias da racionalidade burguesa – a prudência, a correção e um
tipo específico de humanidade. Acontece nesse momento com Kant o que ocorre com um
autor que fala por uma classe no momento em que ela está determinando seus próprios ideais:
ele ultrapassa os horizontes de seus próprios interesses e passa a falar como representante de
toda a humanidade. O termo “espírito do mundo”, utilizado por Hegel no momento seguinte,
exemplifica o que ocorre na percepção de quem se propõe a falar por uma classe emergente.
A racionalidade moderna é responsável por dois aspectos importantes da filosofia de
Kant: uma forte confiança nas ciências naturais matemáticas, graças às quais a ciência reúne
um corpo de conhecimentos suficiente para satisfazer a ideia de “verdade absoluta”; e a
natureza autorreflexiva da razão, que permite refletir sobre a própria razão, fornecendo uma
relação do que se pode ou não conhecer e estabelecendo os fundamentos da experiência – do
conhecimento da natureza – que delimita o que não deve ser ultrapassado.
Ou seja, a própria razão é objeto de reflexão para Kant. Essa razão não é vista como
absoluto, mas algo que vai atuar como sendo uma autoridade crítica. Além da razão pura,
Kant também aborda a razão empírica – ou os julgamentos envolvidos com a experiência – e
os julgamentos metafísicos, que são aqueles que dizem respeito à parte crítica, ou negativa, da
crítica da razão pura. Por fim, Kant avalia os julgamentos da filosofia prática, que são aqueles
julgamentos que estabelecem ligação entre todas as formas de razão.
Na interconexão entre esses reinos, que Kant ora aproxima, ora contrasta, percebe-se
uma distinção, que pressupõe um elemento de identidade, a qual possibilita a esses reinos se
colocarem uns contra os outros. Esse elemento é a razão, ou o cânone de proposições
codificadas na lógica tradicional, baseada nos princípios de identidade e da contradição – as
quais pressupõem que, entre dois julgamentos contraditórios, apenas um é verdade no espírito
da lógica aristotélica.
As distinções entre as diversas formas de razão são derivadas da aplicação de uma
mesma razão a objetos diferentes: à matéria sensível, às intuições puras, à experiência
sensível e à lógica formal. Uma característica sua importante está no fato de que ela pode
refletir sobre a sua possível relação com outros objetos – ela pode fazer uma declaração com
autoridade sobre a sua própria relação com os objetos.
Apesar do pressuposto kantiano de que a razão pura não pode ser concebida de outra
forma do que fazendo parte de um sistema – o que exclui o que não é idêntico ao sistema –,
42
Kant também tinha a consciência de um “bloqueio”8: a consciência de que a unidade que recai
no conceito da razão, por estar em um sistema, não pode resumir aí toda a história, em função
do conceito da natureza de “dado” das condições transcendentais.
Para Kant, como para o positivismo, conhecimento especulativo é sinônimo de
metafísica. Daí que, já na introdução à CRP, Kant levanta o questionamento sobre a
possibilidade da metafísica.
Na forma como foi conduzido, esse questionamento pode ser desdobrado em dois:
como é possível a metafísica como disposição natural?; e como é possível a metafísica como
ciência? O que leva a uma terceira pergunta: qual é a motivação para esses questionamentos?
A motivação pode ser identificada no fato de a razão se ver compelida a fazer
algumas perguntas que ela mesma não é capaz de responder. A metafísica, dessa forma, não
seria mais do que a razão abordando-se de modo absoluto – a razão, que vê no seu uso a
garantia da verdade, independentemente dos materiais sobre os quais ela trabalha.
O termo metafísica é utilizado por Kant em sua obra com três sentidos:
a) Em primeiro lugar, ela é entendida como filosofia, em contraste com as questões mais
restritas afeitas às ciências particulares;
b) em segundo lugar – e esse é o sentido mais específico utilizado pela CRP – metafísica
é algo que se relaciona com a experiência de modo negativo, como a soma de todo o
conhecimento que está além da experiência: é o transcendente ou aquilo que
transcende os limites do que pode ser fornecido pela experiência;
c) o termo também pode ser usado como um ponto focal a partir do qual se pode ter uma
compreensão da CRP – algo como o tempo, para a filosofia de Heidegger.
Para entender como Kant busca responder às duas perguntas anteriores, Adorno
começa por sua visão das partes nas quais Kant teria dividido a CRP: uma primeira, que
chamou de positiva, envolvendo a estética transcendental, a analítica transcendental, e o
sistema de todos os princípios; uma segunda, que na sua visão seria o lado negativo,
envolvendo a dialética transcendental e o Apêndice sobre a anfibolia dos conceitos de
reflexão. É nessa segunda parte que ele lida com as contradições nas quais a razão se vê
envolvida, quando conduzida por seu curso livre, sendo dedicada à metafísica, uma vez que
Kant iguala os problemas metafísicos às contradições com as quais a razão deve lidar e que
8 A noção de bloqueio para a teoria crítica será abordada mais à frente, ao se discutir as contribuições de Pollock
e de Horkheimer para a estruturação de seus fundamentos.
43
podem ser resolvidas pela razão. Entre as duas está a base para distinção de todos os objetos
em geral em Fenoumena e Noumena, que é a transição que Kant faz para a dialética.
A razão produz proposições sobre o mundo a partir de julgamentos sintéticos a priori9,
tirando-os de formas puras sem medi-los contra algo que não seja a razão humana. Isso
significa dizer que as ideias metafísicas, cuja validade absoluta Kant está desafiando, não
passariam de hipostasia10
humana, em função de serem os homens racionais. No
esclarecimento11
, o pensamento crítico pretende eliminar a ilusão de que a razão possa
produzir o absoluto a partir de si própria – ou, dito de outra forma, de que o homem, como ser
cognitivo, é o absoluto.
Por estar condenada a seguir suas próprias leis, independentemente de ser levada a
essas contradições, a razão era vista, até Kant, como algo um tanto negativo. Foram os seus
sucessores, a partir de Hegel, que transformaram o que Kant chamou de dialética, com
conotações negativas, em algo positivo, justamente por causa de sua inevitabilidade. A
dialética passou a ser considerada, a partir de Hegel, como o método para descobrir a verdade
e, simultaneamente, como a verdade se revelando.
Mas, voltando às perguntas norteadoras para a CRP: na primeira pergunta, sobre
“como é possível a metafísica como disposição natural?”, que se refere à condição de
necessidade que leva a razão à metafísica, por disposição natural Kant quer dizer que a razão,
seguindo seu próprio caminho, vai sempre em frente, transcendendo suas condições finitas –
daí a necessidade de se postular uma fronteira como causa última, um ser absoluto no qual
tudo está ancorado. Na outra questão, a de “como a metafísica é possível como ciência?”, a
qual se refere à validade das proposições metafísicas, os critérios propostos por Kant são,
como na ciência, os de testabilidade e o de ausência de contradições. Utilizando esses
critérios, Kant admite que sua filosofia está na linha divisória entre a ciência e a filosofia.
9 Julgamento é uma união entre sujeito e predicado, realizado por uma cópula. Um objeto que corresponde a um
sujeito deve ter algum predicado que é diferente do sujeito. Esses predicados podem ser sintéticos ou analíticos.
O conceito, no predicado, pode ou não agregar algo ao conceito do sujeito ou estar contido no conceito do
sujeito. Se o conceito agregar algo novo – ou um julgamento ampliativo –, aí se têm julgamentos sintéticos. Se
não, e o predicado é apenas uma repetição implícita no conceito do sujeito, têm-se julgamentos analíticos – que
apenas explicitam o que já está contido no sujeito. Geralmente, julgamentos analíticos são tautologias. Todos os
julgamentos analíticos são a priori; e pelo fato de não serem propriamente julgamentos, mas tautologias, não
podem ser refutados. Já os julgamentos sintéticos podem ser tanto a priori como a posteriori. Julgar se um juízo
é sintético ou analítico pode ser problemático: por exemplo, o conceito de que um corpo é pesado pode ser
sintético no campo da matemática, mas analítico no campo da química (ADORNO, 2001a). 10
Hipóstase: nas visões moderna e contemporânea, é um equívoco cognitivo, que se caracteriza pela atribuição
de existência concreta e objetiva (existência substancial) a uma realidade fictícia, abstrata ou meramente restrita
à incorporalidade do pensamento humano (HOUAISS; VILLAR, 2001). 11
O termo Aufklärung, que pode ser traduzido como “Iluminismo”, é traduzido aqui, como nas demais partes
desta tese, como “esclarecimento” em função do sentido que Adorno pretende marcar com a utilização do termo
– como está exposto na tradução da Dialética do Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
44
Para Kant, a metafísica não passa de um resíduo12
, aquilo que foi deixado pelas
disciplinas científicas, entre conhecimentos, declarações, teses e proposições, as quais não
puderam ser dissolvidas no conhecimento científico. E esse resíduo é julgado de acordo com
critérios retirados das ciências – aqueles de testabilidade e de ausência de contradições –, uma
vez que esses critérios conferem à ciência validade incontestável.
Para Kant, as mesmas condições subjetivas que tornaram as ciências naturais possíveis
são as que tornam possível a metafísica – bem dentro do espírito do esclarecimento. Para
tanto, para ser considerada uma ciência, a metafísica deveria ter suas proposições
apresentadas como julgamentos sintéticos a priori. Se não for assim, essas proposições
simplesmente não poderiam existir.
Na parte negativa da CRP, Kant demonstra que proposições trancendentes13
levam a
contradições. Para os sucessores de Kant essas contradições, que aparecem no conflito entre a
experiência e o absoluto, são, na verdade, o meio no qual aquilo que entendemos como
conhecimento é constituído. Daí que as contradições em Hegel não são vistas como algo de
fora, mas sim algo que está absorvido nas coisas, as quais descobrem seu próprio movimento
nas contradições contidas na própria situação que propicia a sua existência.
Pode-se argumentar aqui que o transcendental é o que torna possível a multiplicidade
dos indivíduos empíricos individuais. Este é o ponto no qual se diz que a dialética está
fundada na filosofia de Kant: como justificar falar em universalidade se o ponto de partida for
o individual? E, por outro lado, se o ponto de partida for a multiplicidade e não as conexões
entre o imediatamente dado entre as consciências individuais, não se estaria pressupondo o
12
“In Kant metaphysics is actually no more than a residue” (ADORNO, 2001a, p. 40). 13
Transcendente: significa ir além. Em Kant, o termo possui três significados, utilizados em momentos
diferentes: (i) a medida da proposição não está em seus termos, mas no que é visto de fora dele (p.ex., em uma
crítica transcendente um conservador critica um autor sob o ponto de vista de sua visão conservadora. Essa é
uma transcendência lógica); (ii) um conceito epistemológico – o ser, que é diferente da consciência, que está
além da consciência. É a diferença entre a coisa-em-si e a consciência, através da qual essa coisa pode ser
conhecida; (iii) a metafísica mesma: o que se encontra quando se vai além das possibilidades de experiência,
fazendo julgamentos sobre temas absolutos (liberdade, imortalidade, a essência do ser, etc.).
Transcendental, para Kant, será todo questionamento relacionado a julgamentos sintéticos a priori – ou, toda
investigação de conceitos básicos, ou, as formas básicas de tipo conceitual ou intuitivo, que permitem à razão
realizar julgamentos sintéticos à priori – que são aqueles julgamentos que independem da experiência.
Assim, o uso Kantiano de transcendental se relaciona com aquele terceiro significado de transcendente (em
oposição à experiência, o que independe dela). Mas transcendental diz respeito ao que é anterior à experiência (o
que a torna possível, como atributo da razão), contrastando com dogmatismo metafísico (transcendência da
experiência, algo que vai além da própria mente). O transcendental transcende a experiência, mas não possui
nenhuma verdade absoluta – sua verdade se relaciona com a experiência possível. Não é um conceito que se
opõe, ou que está além dos seres humanos, mas que é um atributo da consciência humana. Essa é uma esfera que
não é nem a da lógica formal (que se ocupa do conhecimento possível dos objetos) nem a dos conteúdos do
conhecimento (não pressupõe esses conteúdos, mas a possibilidade de tê-los), ficando então no campo
intermediário entre a psicologia e a lógica – o do conhecimento a priori. Esse é um tipo de conhecimento válido
independentemente da experiência, e que se mantém válido para experiências futuras (ADORNO, 2001a).
45
que se quer provar, ou seja, um mundo subjetivo. Em outros termos, não se estaria
pressupondo o que deve ser constituído – a sociedade e a realidade empírica?
Adorno (2001a) capta uma contradição também no pensamento de Kant: o seu ponto
de partida é o dado; mas Kant admite que o que é imediatamente dado é originado em um
mundo externo que me afeta. A razão disso é que o que Kant realiza é uma análise formal;
mas se a análise não fosse mais do que forma – ou se todo o conhecimento estivesse submerso
no objeto –, não haveria mais do que uma gigante tautologia.
Kant prefere aceitar a contradição de que, se de um lado nada sabemos da coisa em si
– pois as coisas são constituições nossas –, de outro nossos afetos nascem da coisa ela mesma
– o que introduz a noção do não idêntico ou do elemento no objeto que é mais do que
simplesmente mente ou razão.
É nessa contradição que está toda a questão da dialética, na ponderação de que a
relação entre identidade e não identidade representa os dois lados do esclarecimento: de um
lado, o esclarecimento quer eliminar o dogmatismo epistemológico, que assume que algo
existente pode não passar pelo escrutínio da razão; mas, de outro, estão os limites impostos ao
que é feito pelos seres humanos, ou seja, que os produtos humanos não devem se confundir
com a realidade objetiva, mas devem ser cônscios de si como algo interno aos seres humanos
– e por isso mesmo, limitados. É no momento em que a razão se restringe e faz dessa restrição
o sujeito de sua preocupação que ela adquire o potencial de se voltar contra si mesma,
começando a considerar a razão sob uma ótica negativa.
A delimitação desses campos, estabelecida por Kant, apresenta alguns problemas para
Adorno (2001a): como a razão pode se criticar? Essa crítica não envolveria, em si, um
preconceito? Quando julga a possibilidade de falar sobre o absoluto, ela já não está fazendo
isso?
Para responder a essas perguntas, é necessário localizar o pensamento de Kant na
história da filosofia ocidental. O seu pensamento se encontra no mainstream da filosofia
ocidental, desde Platão, tirando deste alguns dos seus pressupostos – como o de que as ideias,
mesmo as relacionadas a questões humanas, devem conter o mesmo conteúdo de verdade que
possuem as proposições da Geometria. O modelo kantiano é similar, sendo o seu método o
que a epistemologia moderna chamaria de método redutivo: se deixarmos de lado o que é
sensorial, efêmero e transitório, pressupõe-se que o que resta é indispensável e absolutamente
seguro. Nesse sentido, os julgamentos sintéticos a priori são aqueles que restam quando se
extrai do conhecimento tudo o que não veio da experiência – são, portanto, os julgamentos
que não desaparecem ou não mudam com a experiência. A questão aqui, posta pelos pós-
46
kantianos, em especial Hegel e Nietzsche, é se a verdade assim produzida não estaria
relacionada ao método de produzi-la.
Outro conceito importante para Kant é o de verdade absoluta – aquela que se mantém
inalterada com o tempo. Para Kant, julgamentos sintéticos a priori não são necessariamente
atemporais. Ele percebe que o tempo é condição necessária do conhecimento. Mas também
infere a passagem do tempo como um tipo de defeito, algo que o conhecimento que tem
autoridade deve evitar.
Essa ideia, que relaciona o pensamento de Kant à tradição filosófica – a de que nada
novo é produzido, mas sim é derivado de algo já existente – está para Adorno relacionada ao
pensamento burguês – que aqui deve ser entendido não de modo pejorativo, mas
fenomenológico, em termos de história do pensamento, e que se refere ao medo da diferença,
do que não foi isolado pela teia de nossos conceitos e que, portanto, nos assusta quando é
encontrado – e é o que relaciona a verdade ao que é permanente.
O pressuposto da inferioridade da experiência, para Kant, relaciona-se ao momento
histórico do pensamento, que postula a separação do trabalho mental e braçal. Daí o
pressuposto de que os julgamentos sintéticos a priori devem estar livres de qualquer tipo de
experiência. O problema desse pressuposto kantiano, para Adorno (2001a), é que esses
julgamentos sintéticos a priori estão cheios de elementos que são derivados da experiência e
dos quais nada se pode saber sem o recurso da experiência.
O que Kant tem de original em relação aos seus antecessores é a concepção de que os
julgamentos sintéticos a priori não são dados, mas sim objeto de reflexão, caso se queira dizer
algo acerca de sua validade. Nesse sentido, a crítica, para Kant, vai implicar que a verdade é
suposta tendo como base os critérios positivos de validade das ciências naturais. O passo
seguinte, dado por seus sucessores, implicou que a prática da crítica pode produzir ou gerar ou
criar o que a razão crítica pode expressar como verdade particular, finita e limitada. E essa
reflexão sobre o conhecimento para testar sua validade é algo que Kant divide com o
empirismo – principalmente o de Hume. A forma de verdade em Kant, que ultrapassa a mera
lógica, pode ser, então, referida à filosofia de Leibniz, temperada com o sal do ceticismo
inglês de Hume (ADORNO, 2001a).
O que não se encontra em Kant é o que Adorno (2001a) chama de ceticismo
metafísico – um ceticismo dirigido ao caráter absoluto dessas verdades. A verdade com a qual
Kant se preocupa tem como pressuposto uma validade para todos os tempos. Mas, para
Adorno (2001a), elas são apenas os princípios supremos que tornam a experiência possível, e
não verdades que estão separadas dessas experiências. Se a crítica da razão pura é, de um
47
lado, para Adorno (2001a), a tentativa de salvar a ontologia em uma base subjetivista, ela é,
por outro lado, uma análise que não se estende ao campo da consciência concreta. Daí ela
pressupor um elemento de experiência – sugerindo, inclusive, que ela constitui a experiência.
Dizer que a novidade da crítica da razão pura está na reflexão da razão sobre si mesma
é localizar a “revolução copérnica” de Kant nessa reflexividade. A verdade mostra seu valor
se examinando e descobrindo em si elementos constitutivos a partir dos quais algo como um
conhecimento objetivo e universalmente valido, seja possível. E aqui não é apenas a virada
subjetivista que é crucial – essa já tinha acontecido nas filosofias empírica e cética, bem como
nos grandes racionalistas. O novo aqui é que a objetividade, ou a validade do conhecimento
como tal, é criada passando-se pela subjetividade, pela reflexão nos mecanismos de
conhecimento, suas possibilidades e seus limites. Aqui, o sujeito se torna, se não o criador,
pelo menos o garantidor da subjetividade. Essa é a tese definitiva da Crítica da razão pura.
Onde se localiza a distinção entre Kant e os idealistas? A resposta é que, enquanto
Kant situa a unidade da realidade existente na consciência, ele também se recusa a gerar algo
de fora da consciência. Ou: em Kant é fortemente desenvolvida a ideia de que a consciência
de um objeto não pode ser totalmente reduzida ao seu conceito – o objeto e o sujeito não
podem se colapsar um no outro.
Para Adorno (2001b), o idealismo não deve ser visto como um tipo de pensamento que
foi superado pelo materialismo, pois ele considera que:
O idealismo deve ser falso quando entendido como um sistema abstrato, um
esquema de conhecimento que se coloca de uma vez para sempre. Mas insisto que
ele é indubitavelmente verdadeiro como índice de um estado específico da
autoconsciência do espírito e ao mesmo tempo como um estado mediado na história
do pensamento, ou seja, um que não se opõe ingenuamente à realidade, um tipo de
pensamento sem precedentes (ADORNO, 2001b, p. 136).
O conceito de coisa para Kant é o da “lei (uma vez que as coisas estão
necessariamente conectadas umas às outras) das aparências possíveis”. Em Hume essas
regularidades são empíricas e a objetividade é contingente – ou é subjetiva, dependendo da
natureza mais ou menos acidental da organização da psiqué. Mas, para Kant, essas leis são
tais que sem elas não seria possível conceber uma consciência unificada – ou experiência da
realidade – daí o conhecimento objetivamente válido da natureza e da realidade, que Kant
chama de realismo empírico.
Em termos de julgamento sintético a priori, estamos falando de idealismo, de algo que
surge exclusivamente na mente – ou cuja objetividade está enraizada na mente. Mas também é
48
um realismo empírico, no sentido de que o entrelaçamento dessas condições transcendentais
com os dados da realidade leva à constituição do mundo que nos rodeia.
Isso leva ao próximo passo para compreender Kant: como localizar a sua filosofia
entre o realismo e o nominalismo? Significa buscar responder se, para Kant, conceitos são
arbitrariedades do pensamento ou se existe algo no conceito que corresponda a algo na coisa.
Dito de outra forma, o que se quer saber é se o conceito tem uma base na coisa mesma.
O ponto de partida de Kant é o nominalismo. Ele rejeita o realismo conceitual que
prevaleceu desde o fim da Idade Média. Em outros termos, para Kant os conceitos são apenas
produtos do pensamento. O conceito de síntese – reunir em uma unidade ideias dispersas –,
que está no fundamento da CRP, é o nominalismo levado à última abstração: para Kant, não
apenas os conceitos, mas tudo o que pode ser discutido com sentido é consequência da
atividade mental, da subjetividade.
Ideias são tão naturais para nós como o são as categorias. Mesmo as ideias que não
nascem da experiência, como as ideias de mundo, alma e imortalidade, que também são
categorias, mas com a diferença que esse tipo de categoria é transcendente – uma categoria
aplicada para além do reino da experiência. É aqui que Kant começa a estabelecer uma
ligação entre o realismo e o nominalismo.
Mas a radicalidade do nominalismo kantiano o deixa no limiar no qual suas
considerações acabam por levá-lo a um ponto onde elas se voltam contra si mesmas: Kant
será o primeiro a perceber que a relação do universal com o particular é dialética – apesar de
Adorno (2001a) observar que essa abordagem dialética se estabelece na CRP contra a vontade
do próprio Kant. O que ocorre é que, de um lado, Kant vê a objetividade conceitual do
mundo, a constituição da experiência, como uma questão de síntese e, portanto, de
subjetividade. Mas, de outro lado, essa síntese subjetiva só pode se dar com base em um tipo
particular de conceito.
A síntese em Kant não tem o mesmo sentido que em Hegel (de solução da
contradição), mas o de reunião de muitas coisas em uma unidade, a qual pode ser entendida
como a consciência do self. Essa é uma premissa metafísica em Kant que ele herda da tradição
filosófica e que, em sua filosofia, concorre com o Iluminismo (ou, com o esclarecimento).
Essa unidade não é algo que seja produzido na consciência, mas que aflora da consciência.
No seu conceito de síntese, conceitos que existiriam em si mesmos são reduzidos ao
pensamento que os produz – o que introduz a ideia de que o conhecimento é mediado. A
síntese é o que sobrevive na esfera da consciência imanente: ela é o não tautológico,
representando a ideia de que o conhecimento deve conhecer mais do que a si mesmo. Mas
49
como para Kant nosso mundo é um mundo autoconstruído – o mundo das trocas, das
mercadorias, das relações reificadas, que se apresenta para nós com uma fachada de
objetividade – permanece em Kant certa tautologia do conhecimento: como sujeitos que
conhecem, no fim o que conhecemos é apenas a nós mesmos. Fica claro que Kant estava
consciente do problema do conhecimento como tautologia – se tudo o que é sabido não passa
de uma razão que conhece, o que se tem não é um conhecimento real, mas um reflexo da
razão.
Kant apresenta um processo tortuoso no qual três esferas fundamentais tomam
emprestado, umas das outras, para poder sobreviver e para garantir que os dois reinos
antagônicos – os da lógica e da intuição – possam se manter juntos. O primeiro elemento do
processo é o da síntese, que retira da lógica a ideia de unidade e de coerência que foram
derivadas da ideia de não contradição. A síntese aqui significa que as ideias foram reunidas de
modo a não se contradizer umas às outras, satisfazendo o requerimento de composibilidade e
de compatibilidade mútuas. O segundo elemento, tomado da Psicologia, envolve a atividade e
a temporalidade, que se relacionam com a possibilidade de realização. É a partir desse
empréstimo que se podem estabelecer relações entre as esferas da lógica e da intuição, pois, se
não houvesse essa afinidade entre os dois, não haveria como conceber o modo como as
intuições podem ser subssumidas pelos conceitos. O último empréstimo veio da metafísica: a
demanda de validade absoluta (ADORNO, 2001a).
Categorias lógicas ou formas de intuição não possuem existência real – são apenas
conceitos de reflexão que se seguem às reflexões que somos obrigados a realizar referentes ao
transcendental. Mas não se poderá encontrar alguma forma de existência que corresponda a
essas categorias ou formas de intuição. A isso, associado a descobrir o coração da
transcendência, segue-se que o “espírito”, o “eu penso”, que é o termo final da CRP, se torna
uma entidade, um absoluto – se realmente for a precondição de tudo o que existe.
Foram seus sucessores, Fichte e Hegel, que hipostasiaram o conceito de espírito. A
CRP se transformou em uma metafísica que, voltada para o sujeito, pretende salvar a
transcendência, colocando sua existência no coração da subjetividade (ADORNO, 2001b).
A distinção que Kant faz entre a aparência e a coisa em si lembra que o conhecimento
subjetivo não é todo o conhecimento – ainda que a noção de coisa em si nada acrescente ao
que eu posso conhecer do objeto. Para Kant, o dado imediato, aquilo que aparentemente é
recebido de fora, não contém apenas a forma da intuição, mas também pensamento – a
síntese: a união de elementos dispares em uma intuição definida.
50
Para Adorno (2001a), ocorre na filosofia de Kant o mesmo que com as ciências
naturais as quais, para conseguir um real domínio do mundo, tiveram que renunciar à tentativa
de ganhar um conhecimento à parte do que é acessível à organização e conformação humanas.
No caso das ciências naturais, o seu desenvolvimento possibilitou acentuada expansão do
conhecimento a partir de experimentação, classificação e intervenção subjetiva, utilizando
como único critério o fato de que ela funciona – ou seja, renunciando a qualquer tentativa de
se pronunciar sobre o que realmente são as coisas da natureza. Para isso, elas combinam uma
atitude de derrota em relação à meta de investigação com uma atitude de triunfo em relação
ao que podem descobrir.
A alergia que Kant demonstrava frente ao empírico – ou ao que não era pura essência
– ressurgiu na atualidade com o desenvolvimento das ciências positivas. O que Kant tem em
comum com o positivismo é a insistência na natureza finita do conhecimento e a rejeição da
metafísica como uma extravagância. Mas a atmosfera envolvida em seu jeito de pensar é
antipositivista: para Kant, o conhecimento é ilusório, pois quanto mais perto ele chega de seu
objeto, mais ele o conforma à sua própria imagem, distanciando-se dele. Essa é uma ideia
alheia ao positivismo – como também o é a ideia de que possa haver um bloqueio do
conhecimento: atendo-se aos fatos positivos, às realidades dadas, o positivismo espera
alcançar todo o conhecimento possível.
A ciência ainda é o modelo para Kant. Mas agora que ela está sob a égide do bloqueio
– o fato de que o conhecimento nos fornece o fenômeno, não o noumeno. Mas Kant não
mantém a consistência lógica dos positivistas, que aderem ao que é dado, suas formas e
interconexões. Ele procura transcender a limitação imposta pelo fenômeno – apesar de que
não se pode dizer que Kant transcende o esclarecimento. Para Adorno (2001a), em Kant a
ambiguidade do pensamento esclarecido chega ao ápice, atingindo uma situação antinômica:
de um lado, o pensamento esclarecido aspira a uma utopia – o de tornar a razão real; de outro,
ele volta seu olhar crítico ao conceito de razão, restringindo sua validade, retirando do
estabelecimento da utopia o absoluto.
É a isso que Adorno (2001a) chama de “bloqueio kantiano” ou de “espaço
intransponível entre reinos diferentes” e que pode ser apresentado da seguinte forma: a
sociedade universalmente mediada, determinada pela troca e marcada por uma alienação
radical, nos nega o acesso à realidade. As duas esferas do conhecimento – o entendimento (o
conhecimento válido relacionado à experiência) e a razão (o conhecimento de ideias) –
indicam direções diferentes e não podem ser reconciliados, mesmo se reconhecermos que o
logos humano é o mesmo para os dois casos.
51
Apesar da proibição que Kant estabelece no início da CRP – a de que não se deve
tentar derivar proposições de ligação do pensamento puro, exceto se elas estiverem ligadas à
experiência –, o que ele faz é justamente o que ele proíbe: ele constrói algo a partir do
pensamento puro, estipulando algo que não é fornecido pela experiência, pelo mundo
fenomênico, uma vez que não há fenômeno que possa sustentar o uso de categorias ou a
unidade da consciência ou as puras intuições de espaço e tempo como ele requer de todo ato
cognitivo que aspira a ser algo mais que formal. O caminho escolhido por Kant é aquele
construído por conceitos puros: ele busca, pelo pensamento puro, o que deve ser pensado se a
experiência é possível – só que esse tipo de dedução é proibida por ele.
Para Adorno (2001a), são aporéticos os conceitos que chegam a um ponto em que
nenhum conteúdo ou intuição pode ser descoberto como correspondente a um pensamento e,
por essa razão, o pensamento deve progredir além de seu conteúdo possível de modo a
alcançar um significado coerente e internamente consistente – como os números imaginários
da Matemática, que não existem no mundo natural, mas que foram criados para atender a uma
necessidade lógica. É um movimento que pode ser chamado de especulativo, o movimento
especulativo do conceito, pela filosofia que sucedeu Kant.
Na CRP, Kant chega a uma aporia que contém uma confissão de falha das intenções:
não é possível reconciliar diferentes postulados que avançaram simultaneamente – o de
preenchimento pela intuição, de modo que se possa pronunciar proposições que tenham
sentido e, de outro lado, o postulado de pura aprioridade, de modo a que não escoe para o
reino da mera experiência. Para Adorno (2001a), isso salienta o que há de profundo em Kant:
de um lado, do ponto de vista do positivismo, equivalentes ou correlatos objetivos não podem
ser encontrados para o que ele chama de transcendental. Mas de outro lado, a construção do
edifício de sua teoria é governado pela força coercitiva à qual o pensamento não pode resistir.
Ou seja, é uma filosofia que colide com os dados objetivos, mas que é inteiramente coerente,
dentro dos seus próprios termos.
Mas Kant tinha que enfrentar a questão de como o conhecimento pode se adaptar ao
que ele conhece, pois se o conhecimento quer ter autoridade, ele deve estar adaptado ao seu
material. O conceito deve conter algo representado no objeto; deve, de alguma forma, ser
influenciado pelo material a ser percebido. Não é o conceito que deve conformar o objeto ou
lidar arbitrariamente com ele, mas ele deve se constituir de modo a corresponder ao objeto. Só
que o conceito é fruto de um processo de classificação arbitrária no qual se isola um aspecto
entre muitos e baseia a definição nessa característica, que supõe fixar o conceito.
52
A crença de que o objeto deve coincidir com o sujeito, de que o objeto seja o sujeito, é
ela mesma falsa, conforme Adorno (2001a). E o preço a ser pago é que todo conceito assim
criado é inadequado e vai acabar por demandar outro conceito para esclarecê-lo. Nesse
sentido, a epistemologia vai parecer com o indivíduo que, para tapar um buraco, tem que
cavar outro.
Se os conceitos do entendimento são livres de qualidades intuídas e se as intuições
estão livres de conceitos, pode-se questionar como intuições e conceitos podem vir juntos – o
que significa questionar como se conceber a situação na qual o conhecimento se conforma ao
objeto, via conceito do que é dado. É nesse ponto que Kant busca resolver o problema de
como o não idêntico, ou o elemento não subjetivo dentro da subjetividade pode se fazer sentir:
na teoria kantiana da cognição, o mundo, em sua objetividade, é produto da minha
subjetividade. Seres humanos são sujeitos em seu mundo – e não apenas objetos.
Adorno (2001a) também chama a atenção para a alienação implícita na noção de que
existe algo lá que eu não conheço, sendo esse um aspecto inseparável da reificação – ainda
que em nível mais baixo do que a reificação presente no realismo ingênuo, uma vez que esse
tipo de idealismo de Kant vê o mundo mais como um processo do que como algo fixo.
A reificação é uma função da subjetivação – quanto mais subjetivação existe, maior a
reificação –, pois graças ao processo de subjetivação os polos de conhecimento são separados
de modo mais intenso: quanto mais é inserido no sujeito, mais o sujeito constitui o
conhecimento como tal, os fatores determinantes são retirados do objeto e mais os dois reinos
vão divergir: a subjetivação (dissolução do mundo na atividade do sujeito) e reificação
(objetivação do mundo como algo contrastado com o sujeito) (ADORNO, 2001a). O
crescimento da subjetivação e da reificação expressa a antinomia da sociedade burguesa,
graças à qual a racionalidade do mundo só avança: os seres humanos criam o mundo à sua
imagem e o mundo se torna cada vez mais a imagem deles.
Kant, em toda a sua obra, opõe a consciência individual à consciência social, na
mesma proporção que o acidental e o particular se opõem à necessidade e suas leis – o
universal que opera por meio de regras. E ele chega a esse sujeito abstraindo-se da
multiplicidade de todos os sujeitos. Como uma consciência única não pode ter mais do que
está nela, nada se pode afirmar sobre sua universalidade. Daí ter-se que partir de uma
multiplicidade de consciências.
Universalidade, para Kant, são todos os elementos individuais, tomados como
unidades conceituais, que contém as características do conceito e que podem ser incluídas no
conceito. Os universais, assim, são abstrações que têm a intenção de construir a unidade da
53
consciência, mas que só tem sentido se não contiver a totalidade da coisa que ela abstrai –
senão, ela seria apenas uma repetição da coisa particular. Sua validade tem que se relacionar
com a coisa da qual ela abstraiu, o que implica que só onde existe uma consciência empírica
pode-se falar de uma consciência transcendental. Kant trata disso na CRP no capítulo em que
aborda as anfibolias – a confusão entre uma abstração e a coisa da qual ela foi abstraída.
Um ponto que Adorno (2001a) questiona em Kant é a existência de um primeiro
princípio absoluto. Não haveria um constituens14
separado de um constitutum15
, mas esses
dois elementos se produzem um ao outro de uma forma que pode ser determinada, mas que
não pode reduzir um no outro. Dito de outro modo, não há mundo sem um sujeito
transcendental, um “eu penso” que acompanha minhas representações – o sujeito empírico
também é parte desse mundo, portanto, também constitutum, e não automaticamente
constituens.
Considerando a insolubilidade dessa contradição como provada, a única inferência que
se pode tirar é a de que se deve renunciar à tentação de reduzir cada um dos polos no outro.
Isso quer dizer que se deve abandonar o princípio de um primeiro princípio absoluto, ao qual
todo conhecimento possa ser reduzido – o que implica a impossibilidade de uma ontologia.
O que o idealismo pós-kantiano faz é trazer à consciência o que Kant já tinha feito:
acabar com a diferença entre a lógica transcendental e a lógica dialética ou com a diferença
entre reflexão e especulação. Adorno (2001a) confere importância a isso por considerar que
toda teoria do conhecimento se vê envolvida nesses conceitos aporéticos e em movimentos
dialéticos desse tipo. Pois toda teoria do conhecimento deve resolver problemas como o de
identidade e não identidade, sujeito e objeto, mudando toda a ênfase para o sujeito e
derivando todo o conhecimento apenas da análise do sujeito.
Uma filosofia como a de Kant enfrenta o paradoxo de que, quanto mais insiste em ser
crítica, mais ela fomenta o pensamento acrítico. Isso é o oposto do que fez Hegel, que
proclamou que o mundo é racional, mas que, para isso, teve que utilizar o conceito de
dialética – a natureza mediata do existente – o que deu a Hegel um elemento mais radical de
crítica do que em Kant. Hegel pode ser considerado como uma variação do projeto kantiano
de que “caminho crítico que sozinho está aberto” para a proposição de que “o caminho
dialético sozinho é que está aberto” (ADORNO, 2001a).
A distinção entre sujeito e objeto é histórica e, portanto, passível de ser determinada
historicamente em suas várias fases. É na fenomenologia do espírito que Hegel aborda a ideia
14
O constituinte, o que constitui. 15
O constituído.
54
de que o problema sujeito-objeto deve ser tratado de modo a não permitir que esses dois
elementos se oponham do modo estático e inflexível – e o elemento de mediação recíproca é
aqui historicamente estabelecido. Hegel equaciona historicamente essa relação: a história é
interpretada por ele como a determinação do sujeito e objeto, de modo diverso do momento
anterior, que os considerava entidades constantes e imutáveis. Esse movimento só foi possível
para Hegel porque esses dois elementos fluíram para um terceiro, que ele chamou de absoluto
– a partir do que eles puderam ser reconciliados na identidade.
Como foi visto anteriormente, uma diferença marcante entre Hegel e Kant é que, para
Hegel, as contradições não são vistas como algo de fora, mas sim algo que está absorvido nas
coisas, as quais descobrem seu próprio movimento nas contradições contidas na própria
situação que propicia a sua existência.
Para se compreender o impacto que essa concepção vai determinar para o pensamento
de Adorno, abordam-se os aspectos mais significativos da filosofia de Hegel.
2.1.3.2 A influência do pensamento de Hegel
Para comparar a relação do pensamento de Adorno com o de Hegel, de modo especial
os aspectos nos quais Hegel se contrapõe a Kant, deve-se consultar as críticas realizadas por
Hegel à filosofia de Kant, a maioria das quais pode ser encontrada na introdução da
Fenomenologia do espírito (1999), Essa obra, de acordo com Held (1980), foi crucial para o
desenvolvimento de muitas das ideias de Adorno – tanto em concordância como em oposição.
É nessa obra que Hegel aborda a ideia de que o problema sujeito-objeto deve ser tratado de
modo a não permitir que esses dois elementos se oponham de modo estático e inflexível, mas
que sejam reciprocamente mediados.
Mas também é nessa obra que Hegel desenvolve algumas das ideias contra as quais
Adorno se posiciona – de modo especial, a de que a realidade não pode ser apreendida apenas
a partir de um ponto de vista e a de que é inaceitável que o pensamento, sendo um tipo de
práxis historicamente condicionada, pode apreender todo o movimento da história universal
(HELD, 1980).
Considerando a extensão e a profundidade da obra de Hegel, deve-se considerar que
uma abordagem que esgote o tema foge completamente dos objetivos deste estudo. Assim,
para ganhar em objetividade, serão citados apenas alguns dos aspectos da filosofia de Hegel
que podem ser considerados como os mais relevantes para a compreensão do pensamento de
55
Adorno – a partir, de modo especial, de Held (1980) e Nobre (1998), mas recorrendo-se,
sempre que possível, ao próprio texto de Hegel. São eles:
a) Hegel rejeita o pressuposto de que se dispõe dos conceitos dados e que é equivocado
pressupor que o significado dos conceitos seja universalmente conhecido. Pelo
contrário, os conceitos devem ser produzidos;
b) Kant, na Crítica da razão pura (1983), afirma a separação absoluta entre o
“fenômeno” e a “coisa em si”. Não se fazendo essa distinção, podem-se tomar as
coisas no sentido único de “coisas em geral”. Para Hegel, se essa separação fosse
absoluta, o conhecimento de que o conhecimento é limitado não seria possível. Daí
colocar-se em discussão a coincidência entre a identidade da coisa em si e a identidade
da razão;
c) a razão, para Hegel, na forma como foi apresentada por Kant, teria um uso que é
próprio de uma filosofia que permanece no nível do entendimento. Para Adorno, esse é
o mesmo erro que vai ser cometido pelo positivismo, com o qual a filosofia de Kant
tem algo em comum;
d) para Kant, a objetividade do objeto era imanente – não em relação à consciência
comum, mas em relação à consciência transcendental. Para Hegel, essa diferenciação
não existe, pois toda consciência transcendental é consciência comum que se
ultrapassa;
e) para Hegel, a experiência da autoconsciência não é uma experiência originária, como
também não o são a separação entre sujeito e objeto, do idêntico e do diferente, da
ideia e do real. E o saber é a relação que a consciência estabelece com algo que ela
distinguiu de si própria – e que, por isso mesmo, permanece presa à própria distinção.
Nessa linha, a consciência é, para si mesma, o seu conceito;
f) pela mesma razão, nós não dispomos de conceitos como os de objetivo, subjetivo,
verdade, etc., mas os produzimos. Também é a consciência que distingue o momento
do saber do momento da verdade, as quais, por serem constituintes da mesma
natureza, não são totalmente excludentes – a investigação será uma comparação da
consciência consigo mesma;
g) como a filosofia crítica de Hegel tem na experiência o único terreno possível para o
conhecimento, a totalidade da experiência recai na subjetividade (HEGEL, 1999).
Objetivo seria o que independe do sujeito, que continua sendo apenas o pensamento,
separado por um abismo intransponível da coisa em si. O que se encontra não é a
objetividade, mas a objetividade na forma de subjetividade. De acordo com Nobre
56
(1998), o que Hegel afirma é que “o projeto kantiano do pensamento que investiga a si
mesmo só pode ser levado a cabo se essa investigação for pensada como autolimitação
e não como reconhecimento de um limite que lhe é imposto exteriormente” (NOBRE,
1999, p. 123-124);
h) para Hegel (1995), uma definição será correta se concorda com o que está em nossa
consciência do objeto da definição. O conceito não é determinado em si ou para si,
mas é uma pressuposição, que é critério, padrão e medida de correção.
Nesse sentido, no adendo ao §172 da Enciclopédia das ciências filosóficas, vê-se que:
Exatidão e verdade são muitas vezes consideradas sinônimos na vida corrente; e por
isso se fala com frequência da verdade de um conteúdo, quando se trata apenas da
simples exatidão. Essa, em geral, diz respeito somente à concordância formal de
nossa representação com seu conteúdo. [...] Ao contrário, a verdade consiste na
concordância do objeto consigo mesmo, isto é, com seu conceito (HEGEL, 1995, p.
307).
Para Hegel, é na dialética que o pensamento determina os seus limites e abstrai suas
carências. Sua compreensão de como se dão os momentos da dialética está sumarizada na
Enciclopédia (HEGEL, 1995), nos parágrafos 79 a 83.
Sumarizando o que está exposto, para Hegel a lógica, segundo a forma, tem três lados
– que não são três partes, mas três momentos de um todo (INWOOD, 1997):
a) O lado abstrato ou do entendimento. Aqui, o pensamento fica na “determinidade fixa e
na diferenciação dela em relação a outra determinidade”16
. A identidade é o princípio
desse lado (A é A e, portanto, A não é B). Aqui, o pensamento apreende cada objeto
como determinado e, logo, diferente de outro;
b) o lado dialético ou negativamente-racional: é o próprio suprassumir-se17
de tais
determinações finitas e seu ultrapassar para suas opostas (HEGEL, 1995, § 81). Aqui,
o pensamento apreende as contradições internas ao objeto do entendimento. Usando o
exemplo de Hegel do adendo ao § 81: “o homem é mortal e considera-se então morrer
como algo que tem sua razão de ser apenas nas circunstâncias exteriores; e, conforme
16
Determinidade: é o que qualifica a coisa em relação a ela mesma (A é A).
Determinação: é o que qualifica a coisa também em relação às outras coisas (A não é B) (BOURGEOIS, 2000).
O concreto, para Hegel, é a “síntese de múltiplas determinações” (HEGEL, 1995). 17
Suprassunção – do alemão Aufheben, em tradução aceita por um grande número de autores, ocorrida
inicialmente para o francês, e só depois para o português. É um neologismo que pretende traduzir uma noção
que, para Hegel, envolve simultaneamente suprimir-conservar e elevar – daí a dificuldade de se encontrar um
termo na tradução para o português (INWOOD, 1997). O sentido é de que, numa suprassunção, o conceito
anterior é superado, mas não descartado, porque ele continua a fazer parte do novo conceito, apenas num
patamar superior na sua compreensão.
57
esse modo de considerar, são duas propriedades particulares do homem: ser vivo e
também ser mortal”. Trata-se da diferença da coisa em relação a si mesma;
c) o especulativo ou positivamente-racional. Apreende a unidade das determinações em
sua oposição. É o afirmativo que está contido em sua resolução e em sua passagem
para a outra coisa (HEGEL, 1995, § 82). Aqui, a identidade é retomada, pois a
diferença captada pelo dialético é afirmada. O momento dialético, relacionando o
entendimento ao especulativo, torna-se a mediação entre os dois. Retornando ao
exemplo, entre o ser e o não ser, o que se tem é o vir-a-ser.
Hegel diferencia “juízo negativo” do que é “negativamente-racional”: no juízo
negativo, não há uma negação total, pois o sujeito do juízo se relaciona ao predicado de forma
positiva. No exemplo de Hegel, quando se diz que a rosa não é vermelha, o que se nega é a
determinidade do predicado. Mas a esfera do universal (a cor) é conservada – a rosa não é
vermelha, mas é de outra cor. Na esfera do universal, o juízo é positivo (HEGEL apud
NOBRE, 1998). É uma negação inconsciente de sua positividade. Essa é uma observação que
terá importância posteriormente nesta pesquisa, quando se discutir as observações de Adorno
sobre algumas posições críticas, que não são dialéticas (ainda que, às vezes, se coloquem
como tal), mas que, em sua estrutura, podem ser consideradas positivistas.
Para Adorno (2009), o impulso original da dialética está na desigualdade entre o
conceito e o conceituado. Perder de vista essa noção é correr o risco de eliminar o que há de
crítico na dialética. Quando Hegel faz da negatividade um momento a ser suprimido, ele a
transforma em positividade – fazendo do positivo o absoluto. Para Adorno, o saber que
concorda com o objeto é aquele que se comporta negativamente em relação a ele (NOBRE,
1998).
De acordo com Adorno (2009):
A qualificação da verdade enquanto comportamento negativo do saber que penetra o
objeto – ou seja, que suprime a aparência de seu ser-assim imediato – soa como o
programa de uma dialética negativa enquanto o programa do saber “que corresponde
ao objeto”; o estabelecimento desse saber enquanto positividade, contudo, abjura
esse programa. [...] aplainar uma vez mais por meio da identidade a contradição,
expressão do não idêntico, significa o mesmo que ignorar o que essa contradição diz,
retornar ao pensamento puramente dedutivo (ADORNO, 2009, p. 139).
Um ponto do pensamento de Adorno que expressa uma discordância inegociável com
Hegel diz respeito ao sistema hegeliano – na verdade, a sistemas em geral. Para Adorno, por
trás da ideia de sistema está o desejo de controle do mundo. Essa é uma ideia que veio do
58
Iluminismo (ou esclarecimento) e que foi tornada ainda mais aguda com o capitalismo. A
maioria dos sistemas se apresenta perseguindo o objetivo de abraçar o todo, não tolerando
deixar qualquer coisa de fora. Com isso, as várias dimensões qualitativas do objeto podem
desaparecer dentro do sistema – além do fato de que a busca da totalidade no sistema traz,
dentro de si, o germe dos sistemas totalitários (ADORNO, 2009; ADORNO;
HORKHEIMER, 1985).
O pensamento de Hegel está na base das formulações dos jovens hegelianos de
esquerda, entre os quais se encontra Karl Marx. No entanto, antes de prosseguir na tradição
crítica que vai desaguar no materialismo dialético de Marx, será necessário abordar dois
outros autores que também podem ser enquadrados na tradição crítica e que terão muita
importância para as pesquisas e formulações que serão desenvolvidas pelo ISF: Freud e
Nietzsche.
2.1.3.3 A influência da psicanálise de Sigmund Freud no pensamento de Adorno
Freud foi outro autor considerado muito influente para o pensamento de Adorno e
Horkheimer. Segundo Rouanet (1989), “a leitura frankfurteana de Freud é tão especial que a
psicanálise acaba se transformando num capítulo da teoria crítica” (ROUANET, 1989, p. 99).
Horkheimer foi um dos primeiros a reconhecer sua importância, tendo inclusive se
submetido a sessões de psicanálise entre 1928 e 1929 com um ex-aluno de Freud. Também
incentivou a criação do Instituto de Psicanálise de Frankfurt, que se tornou o primeiro a
funcionar em uma Universidade na Alemanha (DUARTE, 2004).
Adorno tinha pela psicanálise um interesse teórico, nunca tendo se submetido a
sessões. Desde muito cedo (época de seu trabalho de habilitação acadêmica), procurou
abordar a teoria psicanalítica sob o ponto de vista da filosofia alemã. Duarte (2004) comenta
também que em todos os seus trabalhos importantes da década de 1920 existem referências à
psicanálise.
De acordo com Rouanet (1989), para melhor entender as influências do marxismo e do
freudismo sobre o trabalho teórico do Institut für Sozialforschung, é preciso começar por
confrontá-lo com o movimento freudo-marxista das décadas de 1920 e 1930.
O objetivo desse movimento pode ser sumarizado num argumento de Emil Lorenz,
apresentado em 1919 na conferência “Zur Psychologie der Politik” (para uma psicologia da
política):
59
A dominação e a exploração não precisam de nenhuma explicação psicológica.
Somente quando perguntamos quais os mecanismos psíquicos, independentes de
qualquer instância externa de poder, que levam a maioria oprimida a sujeitar-se à
sua situação, a comprazer-se nela, a esquecer a origem de sua escravidão, a ignorar
seu protagonismo histórico, a tornar-se patriótica – somente então precisamos da
psicologia (LORENZ apud ROUANET, 1989, p. 15).
Justificando a aproximação de Freud com Marx, Bernfeld (apud ROUANET, 1989)
definiu a psicanálise como “ciência da história psíquica do indivíduo e da humanidade”.
Fenichel (apud ROUANET, 1989) explicita melhor essa ideia, dizendo que a psicanálise, por
ser uma ciência empírica, não pode estar em contradição com o marxismo: é materialista como
o marxismo (pois seu substrato é a biologia), mas também é histórica (pois seu método é o
desvendamento biográfico do indivíduo) e é dialética (pois sua essência é o conflito – Ego
versus Id, libido do objeto versus libido narcisista, Eros versus Tânatos, etc.). Além disso, para
Fenichel, tanto a psicanálise como o materialismo histórico são ciências desmistificadoras, ou
seja, suspeitam da veracidade dos fenômenos ostensivos, procurando interpretá-los como
resultantes de forças que estão ocultas (ROUANET, 1989).
Dois autores importantes no início dos debates freudo-marxistas na década de 1920
foram Wilhelm Reich e Erik Fromm. A criação do Institut für Sozialforschung em 1929 – do
qual participaram – facilitou a circulação das ideias desses autores, estando a psicanálise
presente nos estudos do Instituto desde os seus primeiros momentos, ali representada pelos
trabalhos dois dois autores.
Deve-se notar que Horkheimer, tanto em sua aula inaugural como no prefácio e num
ensaio do primeiro número da revista publicada pela escola, o Zeitschrift für Sozialforschung
(Revista de pesquisa social), menciona a necessidade de um estudo metódico sobre os escritos
envolvendo a vida psíquica. O Zeitschrift für Sozialforschung empreende uma revisão dos
artigos de Freud, Jung e de outros psicólogos, tendo sido Erick Fromm o membro da equipe
designado para o trabalho de integração da obra de Freud com a “teoria crítica da sociedade”
(WIGGERSHAUS, 2006).
Fromm, que de início era membro apenas do Instituto Psicanalítico, não só trabalhava
em estreita associação com o Institut für Sozialforschung, como acabou por se filiar a ele. Foi
Fromm quem dirigiu a pesquisa do Instituto sobre padrões de autoridade na classe operária e
também foi ele o autor da parte psicológica de um estudo importante do ISF, publicado em
1936, já na fase do exílio em Paris: os “Estudos sobre autoridade e família” (Studien über
Autorität und Familie) (ROUANET, 1989).
60
A pergunta que conduzia os trabalhos dos freudo-marxistas durante a grande depressão
dos anos 1930, época na qual ainda não se podia observar o que se poderia chamar de
assimilação dos operários ao sistema capitalista, era: “como é possível que a classe operária
pense e aja contra os seus próprios interesses?” A psicanálise foi, então, considerada um
instrumento adequado no auxílio para a explicação do que seria uma ação irracional da classe
operária: se uma realidade materialmente opressora impunha uma política revolucionária, a
ideologia, por outro lado, tentava neutralizar esses impulsos. A questão era: por que uma
vitória tão fácil da ideologia sobre a realidade? Essa resposta o marxismo clássico não podia
fornecer (ROUANET, 1989).
O uso da psicanálise para esses fins implicava, entretanto, dois riscos inaceitáveis para
Adorno e Horkheimer: sociologizar categorias psicanalíticas, como aconteceu no revisionismo
psicanalítico, motivo, inclusive, da ruptura de Adorno com Erick Fromm; e integrar a
psicanálise na Sociologia, como foi tentado por Talcott Parson (2010).
Ambas as tentativas foram interpretadas como uma busca totalitária de dissolver o
particular no universal. Da mesma forma, o uso terapêutico da psicanálise era visto com
preocupação, uma vez que o seu objetivo é fazer o indivíduo funcionar dentro da ordem
existente – num conceito de saúde que Adorno (parodiando Kierkegaard) chamava de
Gesundheit zum Tode (saúde mortal) (ROUANET, 1989).
Não obstante, são muitos os pontos em comum entre a psicanálise e a teoria crítica. A
partir de Rouanet (1989), pode-se dizer que, em conjunto, eles representam um mesmo estilo
de pensar, por possuírem em comum:
a) Um mesmo pressuposto epistemológico: a denúncia ao positivismo. Ao contrário do
positivismo, a psicanálise não concebe o seu objeto como um dado, mas como um
produto da História; a neurose é um todo estruturado, e não um conjunto de sintomas
isolados; e o processo patológico se situa na interface entre o individual e o cultural.
Os fatos como se apresentam são vistos como epifenômenos que remetem a outras
realidades, que devem ser interpretadas a partir de um método hermenêutico. E a
compreensão dessa estrutura implica a possibilidade de sua transformação. O método
psicanalista, como um todo, implica a negação de dois dos critérios de verdade
positivistas: o da conformidade de uma proposição com as leis da lógica e a sua
aferição pelo princípio da verificabilidade;
b) uma mesma metodologia de investigação do seu objeto – a crítica imanente. Para
Freud, um sonho ou um sintoma não devem ser analisados pelo que têm de irracional,
mas pelo que podem revelar em seu momento de verdade. Também a racionalização,
61
processo no qual o indivíduo busca uma explicação lógica e coerente (ou moralmente
aceitável) para suas ações, sentimentos ou ideias, que têm seus verdadeiros motivos
não percebidos, pode ajudar a esclarecer semelhança metodológica entre a psicanálise
e a teoria crítica: a racionalização está para a psicanálise assim como a ideologia está
para a cultura. A racionalização e a ideologia são compostas de uma parte de verdade e
uma de mentira – dependendo se a veracidade da proposição é julgada à luz da
realidade ou de sua função psicodinâmica. Tanto a hermenêutica psicanalítica como a
crítica imanente são possíveis como método de acesso à verdade justamente a partir da
ilusão, como esta se apresenta na realidade;
c) um mesmo postulado filosófico: o princípio da não identidade. Em Freud, o princípio
da não identidade é mais evidente na tese da impossibilidade de reconciliação entre os
interesses do indivíduo e os da civilização (FREUD, 1987b). As tensões observadas
entre o que chamou de Tanatus e Eros (pulsões de amor e de morte) se colocam em
uma dialética muito mais próxima da Dialética negativa de Adorno do que daquela
estruturada nos moldes hegelianos, assumindo a posição de recusa a uma síntese.
Como a teoria crítica, a psicanálise, por assumir que seu objeto deve ser disperso,
renuncia à pretensão de um sistema fechado.
Ainda de acordo com Rouanet (1989):
O princípio da não identidade, comum às duas teorias, só pode ser compreendido sob
o pano de fundo da utopia de uma identidade tendencial. Utopia objetiva de um
mundo em que o desejo e a realização possam se encontrar e utopia sistemática de
uma ciência cujos conceitos sejam integralmente adequados a seus objetos e cujas
partes se integrem num saber unificado. E ao mesmo tempo, utopia só verdadeira na
medida em que permanece utópica: pois qualquer tentativa de concretizá-la seria
infiel à radicalidade de sua visão. Tal realização, no plano da práxis, redundaria
numa capitulação ao Iluminismo, que se apresenta como utopia realizada
(ROUANET, 1989, p. 115).
Essas três características levaram Rouanet (1989) a afirmar que, mais que instrumentos
de investigação, a psicanálise teria impregnado a teoria crítica (ainda que inconscientemente)
com as características de um modo de pensar que são centrais ao pensamento de Freud.
2.1.3.4 Algumas influências identificadas em Friedrich Nietzsche
Duarte (2004) considera Nietzsche uma influência mais problemática em Adorno, uma
vez que, no início do século XX, era considerado uma espécie de pensamento oficial da
62
direita alemã (inclusive dos nazistas, que se apropriaram, de modo deturpado, de conceitos
nietzschinianos, como o de “übermensch” – homem superior). Em função dessa história,
Nietzsche foi considerado por algum tempo inapropriado para filósofos que tentavam
consolidar um pensamento de esquerda mais ligado às questões da sociedade de massas.
Apesar de um posicionamento negativo em relação a Nietzsche por parte de
Horkheimer e Adorno no início do ISF, esse posicionamento foi se modificando no transcurso
da década de 1930, sendo que nos últimos anos da década já se pode observar, por parte dos
dois, uma posição bem mais favorável em relação a esse autor (DUARTE, 2004). No entanto,
e da mesma forma que foi observado para outros autores, pode-se identificar em Adorno,
principalmente em sua obra da fase de maturidade, aproximações e afastamentos em relação
ao pensamento de Nietzsche.
Para Held (1980), Nietzsche pode ser considerado a fonte para muitos dos
desenvolvimentos posteriores de Adorno – em paralelo com a rejeição de muitas outras de
suas ideias. Entre as que podem ser referência para Adorno, citam-se:
a) O ceticismo de Nietzsche em relação a todos os valores e ideias tidos como certos e
legítimos;
b) o seu comprometimento com a revisão e transformação de valores e conceitos;
c) a rejeição de Nietzsche pelo idealismo, pelas noções de autossuficiência da mente, por
ideas que sugiram a inferioridade do “não eu” e pelo pensamento que só pode se
expressar em sistemas;
d) as considerações de Nietzsche de que o mundo está em estado de contínua mudança e
desenvolvimento, de que a realidade é processo, é um vir-a-ser, o qual é uma
invenção, uma autodenúncia, um superar-se. E que, para compreender um mundo
desses, o apropriado seria um método que fosse adequado a uma estrutura dinâmica;
e) a noção de que a realidade não pode ser explicada em referência a estados finais e
metas nem pode ser acessada a partir de um ponto de vista único – pode-se dizer que
seu método de fazer e responder perguntas se ligava ao fato de que ele não identificava
um critério definitivo ao qual apelar;
f) Adorno (2009) considerava a recusa de Nietzsche à deferência ao conceito de
especulativo como um ponto de virada no pensamento ocidental;
g) Adorno e Nietzsche tinham uma crítica semelhante às crenças, ideias e modos de
pensar motivada pela mesma forma crítica de considerar a sociedade e a natureza
como algo que é conhecido – ambos buscavam examinar, ainda que de modo
diferente, os modos como a realidade é construída e representada. Ambos buscavam
63
mostrar o modo falacioso de interpretar a realidade, expondo os fatos que foram
negligenciados.
A despeito de todas essas concordâncias, também foram vários os temas de
incongruência entre os dois. O mais evidente foi o da falta de preocupação de Nietzsche por
questões econômicas e sociais. Mas Adorno também não aceita a ideia de que todas as
crenças possuem a mesma validade se estiverem fundamentadas em algum desejo ou
necessidade (como apresentado por Nietzsche em Vontade de poder). E também rejeita seu
conceito não racionalista de realidade, além de sua noção de verdade (HELD, 1980).
Entretanto, seja influenciando positivamente ou desencadeando motivos para
discordância, o pensamento de Nietzsche foi certamente considerado por Adorno – o que é
comprovado pelas inúmeras citações de Nietzsche em sua obra.
Tendo passado por esse outro tipo de abordagem crítica representada por Freud e
Nietzsche, pode-se retornar à tradição crítica que, a partir de Kant e Hegel, deu origem ao
materialismo dialético de Marx e que terá impacto fundamental nas produções do ISF.
2.1.4 A teoria crítica: de Karl Marx a Max Horkheimer
A teoria crítica da sociedade está envolvida, de um lado, com a forma como Kant vai
resolver o problema da filosofia, como foi visto anteriormente: a partir das discussões sobre a
metafísica, o estabelecimento do que se pode e do que não se pode saber. Mas também utiliza
parte do legado do marxismo: o que diz respeito a como a teoria pode lidar com o mundo real.
Em se tratando desse legado de Marx, apesar de sua interface com o idealismo alemão
– e, de modo especial, com Hegel, já que os trabalhos de Marx estavam identificados com o
grupo de intelectuais que era conhecido pelo nome de “jovens hegelianos de esquerda” –,
Horkheimer identifica aqui um modo de proceder que vai orientar, desde o início, os trabalhos
do ISF (HORKHEIMER, 1937-1980).
Em termos muitos gerais, pode-se sumarizar dizendo que, no materialismo histórico, a
existência de um cerne temporal de verdade possibilita o diagnóstico do tempo presente. Esse
diagnóstico pode ser interpretado de forma a conduzir a um prognóstico ou a tendências que
modificam o objeto e que sinalizam o que deve acontecer (para onde parece que vamos?). Se
o prognóstico não se realiza, de acordo com a teoria, pode ser identificado um bloqueio. Esse
bloqueio deve levar à realização de um novo modelo teórico.
64
Marx reconheceu, a partir da teoria econômica, o que Horkheimer (1937-1980)
revelou como o primeiro bloqueio (ainda que essa denominação só ocorra no contexto do
ISF). Nunca houve tanta produção de alimentos, entretanto, ainda continua a existir muita
fome. O que Marx faz é um movimento de recuo em relação à economia clássica, indicando
que um enunciado seu deixa de cumprir o que seria teoricamente esperado.
O que marca a teoria crítica, porém, é o reconhecimento de que, ainda que se entenda
o importante legado de Marx, o seu prognóstico não se realizou. No contexto do ISF, Pollock
é o autor responsável por identificar, pela primeira vez, o bloqueio – nesse primeiro caso,
relacionado à teoria de Marx – em um diagnóstico do tempo presente, que era outro tempo em
relação ao tempo histórico do diagnóstico de Marx: o bloqueio relacionado ao fato de que o
prognóstico marxiano não se realizou. Não é por outro motivo que a Dialética do
esclarecimento – como pode ser lido no início do prefácio – é dedicada por Adorno e
Horkheimer (1985) a Pollock.
Em 1932 Horkheimer publicou o artigo Observações sobre ciência e crise
(HORKHEIMER, 1932-1990). Nesse artigo, ele discute como a ciência deve ler a crise,
detectando outro bloqueio – aquele causado pelo positivismo: a primazia do método sobre o
objeto de investigação impede que o cientista questione sobre questões de valor e questões de
fato, nos moldes do que foi apresentado por Max Weber (2001).
Em 1937, Horkheimer uniu os dois bloqueios – o de ordem econômica, identificado
por Pollock, com o de ordem científica, identificado por ele em 1932 – na publicação da
teoria tradicional e teoria crítica (HORKHEIMER, 1937-1980). Esse texto é percebido por
muitos como sendo o manifesto de fundação da teoria crítica – com o que, aliás, Horkheimer
não concorda: ele considera que esse movimento é muito anterior a ele, tendo iniciado com
Marx, cabendo a Horkheimer apenas nominá-lo, confrontando-o com o que ele chamou de
teoria tradicional (NOBRE, 2008).
A fim de orientar a teoria, pretende-se pontuar os aspectos mais significativos da obra
dos autores aqui citados, no que for considerado importante para a adequada compreensão dos
fundamentos da teoria crítica, alicerce da obra posterior de Adorno, a ser utilizada nesta
pesquisa.
2.1.4.1 Karl Marx: a crítica da economia política
Não é o caso de se fazer aqui uma resenha da obra de Marx – tarefa ampla demais para
os objetivos deste capítulo. Mas não se pode deixar de registrar aqueles aspectos que foram os
65
mais importantes na influência para os trabalhos do Institut für Sozialforshung (ISF) como um
todo e de Adorno em particular. Alguns dos aspectos mais específicos de sua obra, que fazem
interface com a de Adorno, serão abordados em outros trechos, ainda neste capítulo, na parte
das discussões aos quais esses aspectos devem se referir.
Marx foi, sem dúvida alguma, uma influência decisiva para o desenvolvimento da
“teoria crítica da sociedade”. Horkheimer nunca foi filiado ao partido comunista, mas seu
interesse pela obra de Marx foi anterior à sua indicação para direção do ISF, tendo se
intensificado a partir daí. A Teoria tradicional e teoria crítica (HORKHEIMER, 1937-1980)
foi, inclusive, uma homenagem aos 60 anos de publicação de “O capital” (DUARTE, 2004).
Quanto a Adorno, Duarte (2004) enfatiza que algumas de suas influências neo-
hegelianas eram também marxistas, de modo que ele se formou em um ambiente intelectual
que se pode chamar de neomarxista (ou na tradição heterodoxa do pensamento marxista
ocidental), representada, após a Primeira Guerra Mundial, por autores como Georg Lukács e
Karl Korsch. Deve-se pontuar que essa foi uma influência que tanto teve sua continuidade
como foi minada pela teoria crítica da sociedade.
O materialismo histórico foi, para a teoria crítica, o meio de passagem da crítica para a
História, funcionando como uma ferramenta da crítica, e não como um sistema de
pensamento, como era utilizado por marxistas ortodoxos da época. O Marx que é trazido para
a Escola de Frankfurt é o Marx teórico, herdeiro do idealismo alemão – como vai ser
apresentado em algumas das abordagens de Adorno – e não o economista (ASSOUN, 1989).
Também não se deve perder de vista o fato de que, quando da criação do ISF por Felix
Weil, chegou-se a considerar dar-lhe o nome de Institut für Marxismus (Instituto para o
Marxismo) e que o seu primeiro diretor, Carl Grünberg, foi um dos primeiros professores de
uma Universidade alemã que se declarava abertamente marxista (ASSOUN, 1989).
Para Adorno, o marxismo foi apreendido pela ideia do todo não verdadeiro, numa
dialética que Assoun (1989) chama de atonal, que experimenta a negação como a única
determinação verdadeira – o que dificultou a sua articulação com a parte materialista do
materialismo dialético. O materialismo não é suprimido, mas só se mantém a partir do lado
negativo no jogo dialético (ASSOUN, 1989).
Para Held (1980), Marx exerce sobre Adorno uma influência muito importante, no
sentido de fornecer um modelo para o seu método: o procedimento crítico, usado por Marx,
que já havia se mostrado eficaz para desvendar a ideologia burguesa.
Marx (1983) demonstrou, em O capital, que os efeitos da troca e do fetichismo podem
se dissolver a partir de uma análise das condições sob as quais os conceitos e as coisas
66
existem e se desenvolvem (ADORNO; HORKHEIMER, 1977a). Em sua análise, ele mostra
que o conceitual é imanente à realidade e que o conceito, que busca capturar a coisa, produz
uma ilusão, que é imanente à visão de mundo burguesa, a qual foi criada pelo processo de
troca de mercadorias.
A análise marxiana da fetichização vai ser muito utilizada por Adorno e Horkheimer
(1977a), de modo especial na discussão sobre a criação e a manutenção do pensamento que
relaciona o objeto com o sujeito, evidenciada pelo processo de troca a partir do qual o
fenômeno social é reificado e as coisas inanimadas são tratadas como se tivessem a qualidade
do social.
Mas Adorno (1993b) também via na obra de Marx muito do idealismo que ele buscava
negar. De acordo com Nobre (1998), na tentativa de compreender Marx como o “ambíguo
herdeiro do idealismo”, Adorno (1993b) começa o seu estudo sobre Hegel com a seguinte
abordagem sobre Marx:
Quando Hegel não mais opõe o engendrar e o realizar na matéria como desempenho
subjetivo, mas os vê nos objetos específicos, na realidade material concreta, ele
chega perto do mistério que está por trás da apercepção sintética e a tira da mera
hipótese arbitrária do conceito abstrato. O mistério, entretanto, não é outro que o
trabalho social. Nos manuscritos econômico-filosóficos do jovem Marx, descobertos
em 1932, é que isso foi reconhecido pela primeira vez (ADORNO, 1993b, p. 17-18)
Assim, pode-se dizer que, do ponto de vista conceitual, existem outros dois aspectos
da filosofia marxista que merecem atenção, pois serão importantes na abordagem de Adorno:
primeiro, como visto, Marx (1983) traz à luz o substrato que está oculto na filosofia de Hegel:
o que Hegel chama de “espírito” Marx vai chamar de “trabalho social”; e também denuncia a
congruência entre conceito e realidade quando aborda a infinitude ilusória do capital.
Esse aspecto será retomado, na Dialética negativa, na discussão sobre o especulativo,
na seção 3.5.2 (B). Mas pode-se dizer que o materialismo dialético de Marx é um ponto
simultaneamente de convergência e de divergência entre Marx e Adorno. Para Nobre (1998),
a divergência mais importante está na afirmação, por parte de Adorno, da tese da
predominância da dominação sobre o processo de troca.
Como é sabido, os estudos de Marx (1974,1983) sobre o capital voltavam-se para o
caráter historicamente limitado do capitalismo. Nessa proposição surgem as teorias sobre a
crise e o colapso do capitalismo – que não foram propostas por Marx, mas que exerceram
papel fundamental nos debates econômicos na Europa do início do século XX.
67
A partir desse debate surgiu Friedrich Pollock, objeto de estudo do próximo item e que
foi um autor da maior importância para o desenvolvimento dos primeiros passos da teoria
crítica.
2.1.4.2 Friedrich Pollock: a controvérsia sobre o colapso e a teoria do bloqueio
Como foi visto, o colapso do capitalismo foi interpretado como uma consequência
natural das contradições por ele geradas. Entretanto, entre 1896-1897, um autor chamado
Eduard Bernstein, que tinha sido muito próximo de Engels, publicou dois artigos na revista
Die Neue Zeit, na qual sugeriu que as modificações ocorridas no capitalismo no final do
século XIX alteraram o sistema econômico e que essa alteração atenuaria as contradições do
capitalismo de forma que o socialismo passaria a ser o resultado de uma transição pacífica, e
não mais do colapso do capitalismo (RUGITSKY, 2008).
Pollock, amigo de infância de Horkheimer, era economista, sociólogo e filósofo e
esteve vinculado desde o seu início ao ISF, onde se dedicava a temas econômicos. Assim, a
crise do capitalismo de 1929 suscitou naturalmente um questionamento para pesquisadores
com a orientação de Pollock: as teorias marxistas podiam explicar com fidelidade o que
ocorreu com a economia mundial em 1929?
Após se debruçar sobre todos os dados reunidos para a pesquisa e abandonando o
pressuposto teórico do colapso, Pollock concluiu que, do ponto de vista econômico, não era
necessária a substituição de um sistema por outro. Naquele momento, a política já
determinava os rumos da economia, por uma série de adaptações sofridas entre os atores
econômicos: havia acordos entre sindicatos e patrões; indivíduos em posições mais avançadas
dos trabalhadores estavam afinados com regulamentações jurídicas que mantinham o status
quo; os países se especializaram em diferentes produções; e o capital já estava concentrado
em grandes conglomerados financeiros, e não mais na produção, como nos primórdios do
capitalismo.
Assim, o modo de ser capitalista mudou: não é a economia que determina a política,
mas a política é que influenciava nos rumos da economia. O resultado de suas investigações já
era conhecido por Horkheimer, mas só foi publicado em 1941 (POLLOCK, 1941-1982),
sendo, de longe, o seu trabalho mais conhecido. Para sua fundamentação utilizou o debate
econômico sobre a planificação e a teoria geral de Keynes, discutindo as transformações
sofridas pelo capitalismo no século XX, para o que chamou de capitalismo de Estado. Nesse
artigo, Pollock não aborda modelos socialistas e capitalistas, mostrando apenas que existem
68
duas possibilidades para o capitalismo de estado: a democrática e a totalitária (RUGITSKY,
2008).
Do ponto de vista teórico, para os trabalhos do ISF, o avanço alcançado por Pollock
diz respeito ao que Horkheimer e Adorno denominaram posteriormente de teoria do bloqueio:
faz-se o diagnóstico do tempo presente, a partir do que se chamou de cerne temporal de
verdade ou a verdade que pode ser encontrada a partir das condições históricas existentes no
momento do diagnóstico; considera-se o pressuposto teórico, por exemplo, o pressuposto de
que a razão deve orientar a ação humana para uma emancipação dos constrangimentos,
naturais ou humanos – ideia reelaborada por Habermas a partir da década de 1960; o próximo
passo é identificar por que a teoria não se realizou ou qual seria a causa do bloqueio (NOBRE,
2008).
Passa-se ao próximo autor, Max Horkheimer, que foi o responsável pela formulação
do que é entendido como teoria crítica.
2.1.4.3 Max Horkheimer: bloqueio da ciência, teoria crítica e a crítica ao esclarecimento
Como foi apresentado no subitem anterior, o período de produção conjunta com
Horkheimer é tão importante que pode ser utilizado para delimitar uma fase do pensamento de
Adorno. Por isso mesmo, abordar aqui toda a produção de Horkheimer que trouxe
consequências para a obra de Adorno é uma tarefa que foge ao escopo desta tese.
O que se pretende apresentar aqui são apenas alguns marcos na produção de
Horkheimer que podem ser considerados significativos para o desenvolvimento posterior de
Adorno no que diz respeito aos temas que devem ser tratados na tese. Obras que derivaram de
pesquisas como os Estudos sobre autoridade e família (HORKHEIMER, 2001) que
desenvolveu com Erick Fromm e que forneceram fundamentos para pesquisas como
Authoritarian personality (ADORNO et al., 1982) não serão abordadas, uma vez que
envolvem uma linha de investigação diversa do assunto do presente estudo.
Feitas essas ressalvas, são três os momentos significativos da obra de Horkheimer para
a interface com o pensamento de Adorno, de nosso interesse. São eles:
a) O primeiro, como já foi apresentado, está no fato de que se Pollock é considerado o
que primeiro identificou um bloqueio em relação ao que apresentava a teoria no
campo da economia, Horkheimer detectou o segundo bloqueio, nesse caso relacionado
ao campo da ciência, expresso no texto Observações sobre ciência e crise, publicado
em 1932 (HORKHEIMER, 1932-1990);
69
b) o segundo, mais preocupado com a tendência positivista nas ciências sociais,
Horkheimer publicou em 1937 no seu ensaio Teoria tradicional e teoria crítica,
lançando os fundamentos da teoria crítica da sociedade (HORKHEIMER, 1937-1980);
c) por fim, em 1947, Horkheimer publicou, em associação com Adorno, a Dialética do
esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1944-1985), obra dedicada pelos dois a
Pollock e que buscava, como motivação inicial, “descobrir por que a humanidade, em
vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova
espécie de barbárie” – como apresentado no seu prefácio.
O que se pretende aqui é apenas pontuar alguns dos aspectos mais significativos, os
quais terão importância para os desenvolvimentos posteriores de Adorno.
A) Observações sobre ciência e crise
O que Horkheimer apurou é que a ciência, como parte das forças produtivas da
sociedade – como já havia sido postulado pela teoria marxista –, também é um meio de
produção, na medida em que está formulada em métodos de produção e que se apresenta
como um meio de gerar valor.
Mas, na medida em que o conhecimento que ela gera desempenha um papel na
enunciação da verdade, a fecundidade do conhecimento deve ser imanente à ciência, e não se
conformar a considerações extrínsecas – como as necessidades de uma indústria específica.
Deve-se lembrar que a veracidade de um juízo difere de sua importância.
A separação entre teoria e prática é um processo histórico. E na situação histórica
envolvida no momento em que o texto foi escrito – a primeira metade do século XX – as
descobertas científicas já compartilhavam com as forças produtivas a discrepância entre o seu
alto grau de desenvolvimento e sua aplicação às reais necessidades da humanidade.
A razão crítica era desacreditada, na medida em que não é necessária à indústria. No
entanto, se de um lado as descobertas científicas tinham uma aplicação útil na indústria, por
outro elas fracassavam diante do processo social, o que causou a trivialização de método e
conteúdo. E, na medida em que o interesse por uma sociedade melhor, que existia no início do
esclarecimento, foi substituído pelo empenho em eternizar o presente e não em fomentar um
futuro, um elemento desorganizador se apoderou da ciência.
Surgia na ciência, como já podia ser visto nos anos 1930, uma dupla contradição: se
cada um de seus passos era fundado em uma base de conhecimento, o mais importante é que a
definição de sua tarefa não só não tinha fundamentação teórica, como estava entregue à
70
arbitrariedade. Se, de um lado, a ciência se empenhava em conhecer relações cada vez mais
abrangentes, por outro ela era incapaz de entender a relação abrangente mais importante para
ela mesma, que era a sociedade.
A crise da ciência está atrelada à crise geral da sociedade. E a compreensão dessa crise
da ciência dependeria da teoria correta sobre a situação atual da sociedade; pois a ciência,
como função social, reflete no presente as condições da sociedade.
Essa foi a maneira como foi formulado o segundo bloqueio, relacionado à função
emancipadora da ciência como fruto da razão que, desde Bacon e os enciclopedistas, deveria
ser a responsável por livrar os homens de toda ideologia – no sentido de falsa consciência.
B) Teoria tradicional e teoria crítica
Em função da importância deste texto para os desenvolvimentos posteriores do que
ficou conhecido como Escola de Frankfurt, suas ideias mais importantes serão sumarizadas a
seguir, buscando manter-se o mais próximo possível da sequência original do argumento,
como desenvolvido por Horkheimer (1937-1980).
A primeira discussão de Horkheimer (1980) diz respeito ao conceito de teoria. Na
terceira máxima de seu método, Descartes (1983) propõe a extensão do método dedutivo da
Matemática para todas as ciências, deduzindo intelectualmente a ordem do mundo numa
conexão de deduções intelectuais. Depois dele, as proposições mais gerais dependem da
posição filosófica do lógico: para John Stuart Mill (apud HORKHEIMER, 1937-1980) seriam
os juízos empíricos, as induções; para a fenomenologia, as intelecções evidentes; e na lógica
axiomática, as estipulações arbitrárias. De qualquer forma, qualquer que fosse a corrente, a
exigência fundamental a ser satisfeita por um sistema teórico é o de estarem as suas partes
conectadas ininterruptamente e livres de contradição (HORKHEIMER, 1937-1980).
Esse conceito tradicional de teoria visa a um sistema de sinais puramente matemáticos.
As operações lógicas são racionalizadas a um ponto que, pelo menos em grande parte das
ciências naturais, a formação de teorias tornou-se uma construção matemática. O que se
discute é que se nas ciências humanas esse modelo poderia ser aplicado sem problemas. As
pesquisas sociológicas quantitativas, como as das Universidades anglo-saxônicas, são
exemplos desse modelo – mais próximo da produção industrial – e bem diferentes do trabalho
envolvendo ponderações sobre conceitos fundamentais, como na sociologia alemã do início
do século XX. Para esse último grupo, a teoria deve surgir do manuseio crescente do material,
não se devendo esperar no curto prazo exposições teóricas de grande alcance, pois tanto a
fecundidade dos nexos encontrados como sua aplicação aos fatos vai depender da conexão da
71
teoria com os processos sociais reais – como ocorreu no caso da aceitação da teoria de
Copérnico (HORKHEIMER, 1937-1980).
Para Horkheimer (1937-1980), são os positivistas os que mais levam em consideração
o entrelaçamento do trabalho teórico com a vida da sociedade. Só que a teoria por eles
produzida não considera que a ciência participa da divisão social do trabalho ou que a vida
social seja uma totalidade do trabalho de várias profissões, entre as quais a do cientista. A
aparente autonomia em sua produção científica decorreria apenas da ilusão de liberdade que
possuem os sujeitos econômicos na sociedade burguesa.
Uma diferença significativa entre as ciências sociais e as humanas está no fato de que
se o mundo pode parecer para o indivíduo algo em si, ele na verdade é apenas o produto da
práxis social geral. Os fatos que os sentidos nos fornecem são historicamente formados tanto
em relação ao objeto percebido quanto ao próprio órgão de percepção. Ambos não são
naturais, mas são conformados pela atividade humana. A existência da sociedade não é
resultado de uma espontaneidade consciente de indivíduos livres, mas de uma oposição entre
eles. O cientista vê essa realidade social e seus produtos como algo externo, enquanto o
cidadão mostra o seu interesse por essa sociedade a partir de seus escritos políticos, sua
filiação a organizações, pela participação em eleições, sem buscar unir as coisas – exceto pela
interpretação ideológica dos fatos (HORKHEIMER, 1937-1980).
Contrapondo-se a esse pensamento, que Horkheimer (1937-1980) chama de
tradicional, o pensamento crítico é aquele que busca superar a tensão entre, de um lado, a
consciência dos objetivos, espontaneidade e racionalidade, que são inerentes ao indivíduo, e,
de outro, as relações no processo de trabalho. O pensamento comum, ao se voltar sobre si,
reconhece como necessidade lógica o Ego que julga autônomo e, em oposição, é convicto de
ser a expressão não problemática da coletividade. O pensamento crítico vai se opor tanto a
um isolamento do indivíduo, como à generalidade de indivíduos – o sujeito é considerado
determinado em seus relacionamentos com outros indivíduos e com grupos. Ele não é nem
um ponto isolado – como na filosofia burguesa –, nem um ponto onde coincidem sujeito e
objeto – como no idealismo.
Se a teoria crítica se restringisse a formular as representações próprias de uma classe,
não seria diferente da ciência tradicional, cujos conteúdos psíquicos são típicos de um grupo
social – ou seja, ela se transformaria em psicologia social. A função de uma teoria crítica
ficaria mais clara quando o teórico e a sua atividade são considerados uma unidade dinâmica
com a classe dominada, de forma que a exposição das contradições não seja a expressão de
uma situação histórica, mas um fator de estímulo e transformação. O confronto entre setores
72
progressistas de uma classe – os indivíduos que exprimem a sua verdade, aí incluídos os seus
teóricos – e o resto da classe se estende num processo de efeitos recíprocos, no qual a
consciência se desenvolve (HORKHEIMER, 1980).
O resultado do conhecimento produzido pelas diversas disciplinas nos ramos
particulares do conhecimento é o que constitui a consciência geral. Mas os interesses do
pensamento crítico também são universais, apesar de não serem universalmente reconhecidos,
justamente por serem críticos frente ao presente. O seu sentido não está na manutenção da
estrutura social atual, mas em sua transformação, aparecendo para o pensamento dominante
como subjetiva, especulativa, parcial e inútil, justamente por contrariar o modo de pensar
existente – cujo interesse está na perpetuação do passado.
Ela se diferencia da utopia por ser mais propriamente uma imagem de futuro, que
nasce da profunda compreensão do presente. E também está em contradição com o conceito
de espírito, no qual se baseia a noção de intelligentsia, como se vê em Mannheim (2004). Para
a crítica, não existe nem teoria da sociedade, nem sociólogo generalizador que não tenham
interesses políticos (HORKHEIMER, 1980).
As diferenças entre o pensamento tradicional e o crítico resultam de diferenças na
estrutura lógica do pensamento. Para a teoria tradicional, as proposições definem conceitos
universais que devem abranger todos os fatos em um campo, sendo os fatos casos isolados,
exemplares. Também não existem diferenças cronológicas: se no conhecer individual pode
existir alguma ordem cronológica nessas relações, elas não ocorrem do lado dos objetos.
Já a teoria crítica começa com abstrações de categorias, como estas se apresentam no
momento. Ela parte de conceitos genéricos, relacionados à vida social concreta – como
mercadoria, valor, dinheiro –, mas considerando o processo entre a sociedade e a natureza, o
período histórico da sociedade, a sua busca de autopreservação, etc. Essas concepções, que
nascem da análise histórica, estão dirigidas para o futuro. A introdução de novos conceitos
não é consequência de dedução, como na teoria tradicional, mas eles são retirados do conjunto
do conhecimento que se encontra tanto na ciência como na experiência histórica.
Os passos isolados do pensamento na teoria crítica devem seguir o mesmo rigor das
deduções da teoria tradicional, podendo transformar-se em juízos hipotéticos universais ou
particulares e serem utilizados como na teoria tradicional, mas sem a presunção de que
correspondam à verdade. Ou seja, se do ponto de vista da necessidade lógica, as duas
estruturas teóricas são semelhantes, elas diferem quando se passa da necessidade lógica para
as necessidades das próprias coisas, do desenrolar dos fatos.
73
O pensamento crítico pode gerar hostilidade e resistência, devido ao medo
inconsciente de que esse pensamento faça parecer, como equivocada e supérflua, uma
acomodação à realidade que foi conseguida com muito esforço. E quem está em risco levanta
suspeita contra qualquer tipo de autonomia intelectual. Qualquer enunciado científico sem
referência nas categorias usuais ou em formas mais neutras como a Matemática são acusadas
de “teóricas demais”. O problema aqui é que a relação que a positividade tem com a
submissão ameaça tornar insensíveis à teoria os grupos mais avançados da sociedade
(HORKHEIMER, 1980).
Estas são, em linhas bem gerais, os aspectos mais importantes apresentados por
Horkheimer (1937-1980) como um manifesto, na caracterização das diferenças entre as
teorias tradicional e crítica.
C) A Dialética do esclarecimento18
São as seguintes as características do esclarecimento que devem ser consideradas aqui
para a compreensão de conceitos que serão muito utilizados posteriormente por Adorno:
A primeira característica é a de que o esclarecimento é totalitário. Para o
esclarecimento, o processo já está decidido de antemão. Veja-se uma incógnita, numa
equação, que se supõe conhecida antes da introdução de qualquer valor. Ao identificar a
verdade com a Matemática, o esclarecimento considera que está se distanciando do mito e o
procedimento matemático torna-se, então, o ritual aceito do pensamento. Ao reduzir o
pensamento à Matemática, ele reconhece que o mundo é sua própria medida, o que tem por
preço a subordinação da razão ao dado imediato. O conhecimento do dado – que se realiza no
social, histórico e humano – é abandonado ou admitido como sendo apenas as relações
espaço-temporais, superficiais e abstratas. O aprisionamento do mundo no número mantém o
pensamento preso no imediato e, dessa forma, o pensamento regride à mitologia. Ou seja,
para fugir do mito, a ciência acaba por se transformar em mito.
Esse é um tipo de pensamento que transfere para o positivismo – como Horkheimer já
havia apresentado na Teoria tradicional e teoria crítica – a responsabilidade de dizer o que
tem sentido a ciência investigar. Só existe, ou acontece, o que puder ser representado pela
lógica formal. E as mesmas equações estão presentes tanto na troca mercantil como na justiça.
18
O termo alemão, Aufklärung, poderia ser traduzido como Iluminismo, remetendo a um momento da história
das ideias. Mas, segundo o tradutor para o português, o termo esclarecimento traduz não apenas o significado
histórico-filosófico que, em Kant, significa, além da emancipação intelectual da ignorância e da preguiça de
pensar por conta própria, também uma posição crítica em relação ao que é inculcado nos “intelectualmente
menores” por seus “maiores”, mas também é uma tradução que está de acordo com uma expressão comum em
alemão, que se traduz por esclarecimento mesmo.
74
Nesse trajeto, renuncia-se ao sentido, substituindo o conceito pela fórmula, e a causa pela
regra e pela probabilidade. O que é heterogêneo vai ser comparado por redução a grandezas
abstratas e o que não puder ser reduzido a números vai ser transferido para a literatura de
ficção.
O instinto é colocado no mesmo campo do mito, como superstição. Só que o que o
mito pretendia é o mesmo que pretende o esclarecimento: relatar, denominar, dizer a origem,
explicar. Desta forma, o esclarecimento deixa de ser relato para se transformar em doutrina.
Seu comportamento para com as coisas é o mesmo do ditador para com os homens: só os
reconhece na medida em que pode manipulá-los, para dominá-los.
A segunda característica relaciona-se ao fato de que a magia e a ciência visam fins.
A forma de perseguir os fins é que é diferente para os dois casos: enquanto a magia o busca
pela mimese, a ciência o busca pelo distanciamento. A confiança na possibilidade de dominar
o mundo pela magia é substituída pela dominação realista pela ciência. Antes, os fetiches
estavam sob a lei da igualdade, agora a igualdade é que se torna um fetiche.
No mito, o signo se confunde com a imagem – como nos hieróglifos. Mas é como
signo que a palavra chega à ciência e a ciência torna-se um sistema de signos que, destituídos
de intenção, transcendem o sistema. A natureza não vai ser mais influenciada pela assimilação
– o que é próprio do mito –, mas será dominada por meio do trabalho.
Os símbolos assumem na ciência a expressão de fetiche. A ciência, em sua forma
dedutiva, reflete hierarquia e coerção, correspondendo sua ordem lógica às relações da
realidade social, com a divisão do trabalho servindo à autoconservação do dominado, o que
agrega os membros da sociedade na realização do todo, com poucos subjugando muitos. E
essa unidade de dominação se sedimenta nas formas de pensar. O esclarecimento começa
destruindo símbolos e evolui para destruir conceitos que não puderem ser matematizados.
As mercadorias perdem o seu caráter puramente econômico, uma vez transformadas
em fetiche, e as agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para
inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes e
racionais, o qual a partir daí se determina como elemento estatístico.
A terceira característica, como a Odisseia já é testemunho da dialética do
esclarecimento. O canto da Odisséia, no qual Ulisses se encontra com as sereias, discute a
sedução de se deixar levar pelo que passou e emancipar-se pelo sofrimento. As sereias
ameaçam, com a promessa do prazer, a ordem patriarcal e Ulisses responde com duas formas
de resistência: uma, que indica aos companheiros tapar os ouvidos e remar com todas as
forças, como a civilização faz com os trabalhadores (anular os sentidos, para que nada
75
atrapalhe o trabalho); e a outra, que indica para si (o senhor que faz os outros trabalharem),
que é escutar amarrado ao mastro. A sedução das sereias só pode ser contemplada, como
acontece com a arte. Chefes como Ulisses renunciam a participar do trabalho, enquanto os
companheiros não podem desfrutar do trabalho, que é feito sob coação e com os sentidos
fechados.
O desenvolvimento da máquina se converte em desenvolvimento do maquinário de
dominação, a adaptação do poder ao progresso envolve o progresso do poder e o pensamento
vai se limitando ao pensamento que ordena (nos dois sentidos – dá ordens e organiza). Ao
limitar o pensamento à organização e administração – como se vê nos dirigentes de empresas
– o espírito torna-se aparelho da dominação e do autodomínio. Quanto mais complicada e
refinada a aparelhagem social, econômica e científica, tanto mais empobrecidas as vivências
de que o senhor é capaz. Mediado pela sociedade, os homens se reconvertem naquilo contra o
que se voltou a evolução da sociedade: seres genéricos, massificados, governados pela força.
A “indústria cultural” é a quarta característica. Este é outro conceito utilizado pela
primeira vez na Dialética do esclarecimento, mas que pautou muitas das discussões
posteriores de Adorno. O termo é usado em substituição à “cultura de massa”, com a intenção
de tirar qualquer conotação de algo que surge espontaneamente da arte popular e que
atenderia de fato a uma demanda popular. O conceito de indústria cultural é bem distinto
disso: ela desenvolve produtos adaptados ao consumo das massas, ao mesmo tempo em que
determina esse consumo em seus diversos ramos que se se somam para constituir um sistema,
visando à integração deliberada de seus consumidores.
Atuando sobre a consciência e o inconsciente das pessoas, a indústria cultural faz com
que as massas passem a ser um elemento acessório da máquina. O consumidor aqui não é “o
rei” que ela quer fazer crer, mas seu objeto. Seu princípio orientador é o da comercialização, e
não o de seu conteúdo, transferindo a motivação de lucro para criações do espírito.
A autonomia da obra de arte, que nunca existiu de forma pura, vê-se praticamente
abolida pela indústria cultural. Aqui, ela não é também uma mercadoria, mas apenas uma
mercadoria: procura o cliente para lhe vender o mundo; transformando o mundo em
mercadoria, ela vende o mundo “pronto”.
O termo indústria diz respeito a uma padronização e à racionalização da distribuição,
com formas industriais de racionalização do trabalho. De um lado, ele se aproxima dos
processos técnicos próprios da indústria, mas de outro mantém as normas e a produção
individual. O conceito de técnica na indústria cultural só tem em comum, em relação às obras
de arte, o nome, que diz respeito apenas à sua lógica interna de produção. Seu suporte
76
ideológico reside no fato de ela se eximir de tirar as consequências de seus produtos, vivendo
como parasito da técnica extra-artística de produção de bens materiais.
A indústria cultural é um instrumento da ideologia, na intenção de fornecer aos
homens, num mundo caótico, critérios para sua sustentação. Mas, se o argumento usado é o de
que ela não pretende ser arte, ainda assim ela é ideologia: a indústria cultural é um meio de
formação de consciência entre seus consumidores.
A importância da indústria cultural para a psiqué das massas pede uma reflexão sobre
sua legitimação. Há certa indulgência entre intelectuais que a consideram algo inofensivo e
democrático, além de útil como aliviadora de tensão. Só que, além de pobre, o que é
produzido segue um padrão conformista na substituição da consciência dos indivíduos.
Sua função é de ordem ou difusão de normas, sem que essas se justifiquem diante da
consciência. As ideias de ordem inculcadas são as que mantêm o status-quo, aceitas sem
análise e objeção, renunciando à dialética – com o que o conformismo substitui a consciência.
São obras que, apresentando conflitos como se fossem os seus, só os resolvem na
aparência, uma vez que não possibilitam a sua solução nas próprias vidas dos indivíduos. O
que elas apresentam não são nem regras para uma vida feliz nem uma arte de responsabilidade
moral, mas uma exaltação à conformação ao estabelecido. A consciência sofre regressão. Na
intenção de adaptar um filme à mente de uma criança de 11 anos, ela faz de um adulto uma
criança de 11 anos.
Feita essa breve revisão das ideias caracterizadas pela aproximação com o pensamento
de Adorno, o próximo passo diz respeito aos campos caracterizados pelo distanciamento.
2.1.5 Campos caracterizados pelo distanciamento
Se para a maioria dos autores vistos até este ponto é possível encontrar mais
aproximações do que distanciamentos, o mesmo não ocorre para dois campos do pensamento:
o positivismo – aqui se referindo principalmente ao positivismo lógico e no Círculo de Viena
– e a ontologia, de modo especial aquela que está representada pelo pensamento de
Heidegger. Aborda-se cada um desses campos separadamente.
A) O positivismo
Adorno, como os demais frankfurteanos, tinham certo desdém em relação ao
positivismo, pois para eles:
77
O positivismo não conseguiu reconhecer o poder ativo e constitutivo da
subjetividade na criação do mundo (ou, mais precisamente, da parte do mundo a que
damos o nome de história, cultura e sociedade); assim, foi cúmplice de uma política
passiva e contemplativa, que aceitava o mundo como uma realidade acabada, uma
“segunda natureza” (JAY, 1988, p. 55).
Para os efeitos dessa discussão, que não pretende esgotar o tema, mas apenas pontuar
o que é mais significativo para a compreensão da abordagem social empírica proposta por
Adorno, um meio mais direto para explorar um tema tão vasto pode ser a consulta ao debate
ocorrido entre Adorno e Popper no Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã de 1961 em
Tübingen.
O debate foi motivado pelas dificuldades na comunicação, em Sociologia, de visões
tão diversas relacionadas ao positivismo e à dialética, de forma especial no pós-guerra. Karl
Popper foi convidado a expor suas ideias, pelo lado do positivismo – apesar de não aceitar a
ligação de suas ideias com o positivismo do círculo de Viena – cabendo a Adorno representar
a Escola de Frankfurt, numa réplica que teve como ponto de partida a dialética. Esse debate
deu origem a várias réplicas e tréplicas entre representantes das duas linhas, envolvendo tanto
Adorno e Popper como outros defensores dos dois lados – como Carnap, pelo lado do
positivismo, e Habermas, pelo da dialética.
Por mais que o debate tenha sido produtivo, para os efeitos desta pesquisa é suficiente
destacar mais especificamente o posicionamento de Adorno, mais bem explicitado em um
texto bem posterior ao debate, denominado Introdução à controvérsia sobre o positivismo na
sociologia alemã (ADORNO, 1980). Não é o caso de se fazer uma resenha do texto aqui, mas
de buscar nele aspectos que sejam de nosso interesse, com o cuidado de utilizar passagens e
trechos de forma a se manter fiel à ideia original que se procura veicular.
A visão de Adorno (1980) está fundamentada, sobretudo, na afirmação dos positivistas
em possuir um rigoroso conceito de validade científica, o que não seria observado pelos
dialéticos, cujo pensamento seria marcado pela especulação. O primeiro problema, então, é
com o conceito de especulação para os positivistas, o qual estaria longe do conceito hegeliano
de autorreflexão crítica do entendimento apresentado anteriormente, envolvendo o uso da
razão, estando, para os positivistas, mais de acordo com o conceito popular do pensar fútil e
sem compromisso – o que é justamente o oposto da ideia hegeliana de especulação.
A primeira consequência importante da divergência de compreensão desse conceito
está na divergência em relação ao papel da contradição para a dialética e para o positivismo.
Para o positivismo, a investigação científica deve buscar eliminar todas as contradições –
objetivo este que, para Adorno (1980), acaba por levar a uma contradição profunda e
78
inconsciente de si, pois, ao se buscar retirar todas as projeções subjetivas do investigador, o
que acaba restando é apenas uma razão instrumental subjetiva: quando um pesquisador
positivista afirma que a ciência deve estar fundada apenas no que se pode comprovar
empiricamente, ele entra em contradição com o fato de que não existe qualquer base empírica
que sustente essa afirmação (ou, pela lógica, essa sentença é autocontraditória: se só o
empírico é verdadeiro, essa sentença – que não é empírica, é uma ideia – será falsa).
Para Adorno (1980), fatos são os fenômenos sociais singulares. Esses fenômenos não
são idênticos à totalidade social, ainda que se considere que a totalidade não existe para além
dos fatos. É a interpretação dos fatos que conduz à totalidade – sem que essa seja um fato. E,
na medida em que a totalidade é a síntese das relações sociais dos indivíduos, ela também é
aparência e, portanto, ideologia. Se aos fenômenos se aplica o critério de verificabilidade,
pode-se constatar que não é possível verificar dependência do fenômeno social em relação à
totalidade.
Atrás do conceito de totalidade está uma atividade básica da sociedade, que é a da
troca de mercadorias, sendo que é pela redução dos homens a agentes e portadores dessa troca
que se realiza a dominação dos homens pelos homens – como foi proposto por Marx no
primeiro volume de “O capital” (MARX, 1983). A conexão disso com a totalidade se
configura à medida em que todos são obrigados a se submeter à lei abstrata da troca,
independentemente de serem subjetivamente conduzidos por um “afã de lucro” (ADORNO,
1980).
O positivismo não pode experimentar a totalidade, pois os dados coletados por seus
pesquisadores são reunidos de modo superficial. Mas a dialética, compreendendo o sujeito
como algo que é, em si, social, não considera a aparência do sujeito social como algo
transcendental. O que a dialética pode verificar é que, como a sociedade é composta de
sujeitos funcionalmente conectados, a possibilidade de seu conhecimento por sujeitos vivos é
mais plausível do que para as ciências naturais, em que o objeto não humano deriva sua
objetividade das categorias abstratas. Ou seja, é por ser humana que a sociedade se dá a
conhecer pela experiência imediata que dela temos, pelo fato de existirmos socialmente. Já o
objeto das ciências naturais – no qual o positivismo quer transformar o objeto social – só se
dá a conhecer mediado por categorias, as quais são criadas pelos homens com a finalidade de
compreendê-lo.
A sociedade é, por isso, ao mesmo tempo inteligível e ininteligível. É inteligível
porque a experiência imediata oferece uma situação na qual o sujeito se reconhece. É por essa
razão que a sociologia weberiana está centrada no conceito de racionalidade: Weber (1999)
79
procurava no tipo ideal a igualdade entre sujeito e objeto, que pudesse permitir o
conhecimento do objeto. Já a racionalidade objetiva da sociedade identificada por Marx – a
troca de mercadorias –, por ter uma dinâmica autônoma, a afasta da razão lógica, uma vez que
o que se torna autônomo deixa de ser inteligível (ADORNO, 1980)
Uma consciência aberta a essa constituição antagônica da sociedade – da contradição a
respeito da coexistência da racionalidade e da irracionalidade na sociedade – tem que partir
para a crítica da sociedade apenas com os meios racionais (lembrando que, na dialética
hegeliana, é a razão o segundo momento, o negativo, que aborda o que é dado de forma
imediata pelo entendimento). A dialética, procurando ultrapassar o véu que a ciência ajuda a
tecer, impede que coisas irredutíveis se reduzam a um conceito; ela rejeita a identidade entre
conceito e conceituado.
Como foi visto, Weber sustentava a ideia de que os interesses extracientíficos são
exteriores à ciência e que os dois devem ser bem distinguidos – a diferença entre a coisa de
valor e a coisa de fato. O que se vê é que, se de um lado, interesses pretensamente científicos
buscam neutralizar o prolongamento de interesses extracientíficos; de outro, o instrumental
científico fornece o cânone do que é científico e os meios para responder às perguntas, as
quais têm sua origem fora da ciência (ADORNO, 1980). Essa dicotomia pode ser percebida
também pelos positivistas, que constatam a divisão que ocorre em seu pensamento quando
falam de modo científico e quando falam extracientificamente, mas usando a razão.
Para o positivismo, o pré-científico não é apenas o que não passou pelo trabalho
autocrítico da ciência (como afirmava Popper, 1978), mas também aquilo que existe de
racionalidade e experiência, mas que é excluído pelas determinações instrumentais da razão.
Para Adorno, entretanto, uma ciência que não acolhe impulsos pré-científicos condena-se à
indiferença, pois tão certo como sem disciplina não haveria progresso da ciência, também é
certo que o excesso de disciplina paralisa os órgãos do conhecimento. E quanto mais a ciência
se enrijece dentro de um escudo protetor, mais aquilo que foi proscrito como pré-científico se
constitui em refúgio de conhecimento relevante. Citando Wittgenstein, Adorno (1980) lembra
que o paradoxo é a testemunha de que a ausência de contrariedade não pode ser a última
palavra para o pensamento consequente.
O que é crítica também é compreendido de modo diverso para dialéticos e positivistas:
para Popper, ela significa “puro mecanismo de confirmação provisória de proposições
universais da ciência”, que procura a unanimidade do conhecimento e não a legitimação da
coisa conhecida; para Adorno, a crítica é “o desdobramento das contradições da realidade
efetiva através do conhecimento desta” (ADORNO, 1980, p. 225). No entanto, a razão crítica
80
é a mesma: crítica não é apenas lógica, mas sempre também é conteúdo, que confronta
conceito e coisa conceituada. O uso da linguagem na crítica não visa apenas a uma autocrítica,
como em Popper, mas, principalmente, a crítica da coisa.
Ater-se aos fatos exige que a crítica não proceda apenas de modo argumentativo, mas
examine como as coisas efetivamente se passam. O argumento não é constituído pelo óbvio
(como para Popper), mas necessita de análise crítica. A argumentação é questionável se supõe
a lógica discursiva frente ao conteúdo. Popper, vislumbrando a objetividade da ciência na
objetividade do método crítico, diz que “os meios lógicos auxiliares da crítica são objetivos”.
Entretanto, quando uma sentença sobre um tema social apresenta contradições, por exemplo,
quando diz que o sistema social libera e escraviza forças produtivas, é a análise teórica que se
apresenta em condições de analisar essa contradição no contexto estrutural da sociedade, não
eliminado a contradição, mas interpretando-a (ADORNO, 1980, p. 226).
Contra a crítica ao objeto, o cientificismo se defende apelando para a neutralidade
social da ciência. Mas, para Popper, é errôneo supor que a objetividade da ciência depende da
objetividade do cientista. Ele considera que o que se pode designar por objetividade científica
repousa apenas na tradição crítica (na sua visão de crítica) que, a despeito de todas as
resistências, possibilita criticar um dogma vigente, gerando uma questão social de crítica
recíproca, de uma amistosa e hostil divisão de trabalho, de cooperação e confronto. Essa é,
para Adorno (1980), uma visão que coincide com o modelo liberal de reunião em torno de
uma mesa para negociar um acordo.
Mas as formas de cooperação científica não são tão simples: elas possuem infinito
grau de mediação social – desde mecanismos de acesso à carreira à conformação do senso
comum. O partidarismo fica evidente no método aprovado. Veja o caso de pesquisas
tautológicas, como as de opiniões de massa e a da administrative research (o sentido desta
última será explorado mais à frente).
Pretendendo a objetividade, a Sociologia não deve se contentar com o fato de que seja
objetiva somente na aparência. Ao mesmo tempo em que cientificistas criticam os dialéticos
como metafísicos sonhadores, eles também deixam de ser realistas, pois o apego às técnicas
operacionalmente ideais podem distanciá-los das situações nas quais está o que deve ser
investigado. Conduzida, no apego à metodologia, pela intenção de tornar problemas falseáveis
em univocamente decidíveis, a ciência acaba se atrofiando quando encontra alternativas como
a supressão de variáveis ou dos outliers, abstraindo do objeto e, dessa forma, transformando-o
(ADORNO, 1980).
81
A interpretação deve exercer um papel central em uma ciência como a Sociologia. Ela
é “a fisionomia social do que se manifesta” (ADORNO, 1980, p. 232). Interpretar para
Adorno é perceber a totalidade nos traços dos dados sociais, apresentando a totalidade que
“é”, e não uma síntese de operações lógicas. Daí ser instrumento científico fundamental para
acessar a totalidade. Para Adorno (1980), interpretar é o contrário do sentido subjetivo, pois o
processo e a ordem social não são compreensíveis a partir do sujeito. A disciplina do
pesquisador demanda tanto um alto grau de exatidão da observação empírica, quanto a força
da teoria que inspira a interpretação e, graças a ela, se modifica. Daí a importância da teoria
para a interpretação. Os positivistas também podem concordar com isso, mas a Sociologia não
pode ser encarada como uma outra ciência qualquer, pois nela o sujeito do conhecimento
também é objeto. A substituição da sociedade como sujeito pela sociedade como objeto
constitui a consciência coisificada da Sociologia (ADORNO, 1980).
A verdade em Sociologia exige a admissão de que a sociedade, como sujeito e como
objeto, é e não é a mesma coisa. Atos objetivadores da sociedade conduzidos pela ciência
acabam por eliminar o que faz com que ela não seja apenas objeto, deixando dúvidas sobre
sua objetividade cientificista – coisa que é difícil de ser reconhecida pelos positivistas, pois
eles têm como máxima a ausência de contradição.
São nessas questões, na linha do que foi apresentado anteriormente por Horkheimer
(1937-1980) em seu manifesto sobre a teoria tradicional e teoria crítica, que Adorno (1980)
traça a diferença entre a teoria crítica e a sociologia positivista: a teoria crítica, apesar da
experiência de coisificação (e mesmo ao exteriorizar essa experiência), se orienta pela ideia
da sociedade como sujeito, enquanto a sociologia positivista aceita a coisificação, repetindo-a
em seus métodos e perdendo a perspectiva na qual a sociedade se revela.
Esse tipo de abordagem pode ser observada desde Comte e é hoje reproduzida, por ser
possível a extensão ao todo do controle de situações e de campos sociais singulares, pela
utilização dos métodos rigorosos da ciência positiva. Uma dificuldade para os positivistas,
entretanto, estará no que não está inteiramente contido nas coisas e que, por isso, para ser
acessado, depende da linguagem, a qual, quanto mais se adapta aos estados das coisas, mais se
distancia do seu significado (ADORNO, 1980).
Se, de um lado, o singular não é o verdadeiro, também o todo não o é. A verdade está
na articulação dessa relação. A Sociologia não teria muito a ver com a relação meio-fim
perseguida subjetivamente pelos agentes, mas muito mais a ver com as leis que se realizam
por meio e contra essas intenções. Um conceito dialético seria a essência social que cunha os
82
fenômenos, que neles se manifesta e se oculta, determinando os fenômenos – e não uma lei
geral, no entender cientificista positivista (ADORNO, 1980).
Tendo-se a ênfase sobre o singular, uma formulação dialética das leis sociais se
concretiza considerando-se o histórico. A determinação dialética do singular como algo ao
mesmo tempo particular e universal altera o conceito de lei social que sai da forma “sempre
que... então” passando para “dado que... é preciso”, uma vez que momentos singulares já
contêm uma conformidade a leis provenientes da estrutura social e não são apenas produto de
sua síntese científica. A teoria dialética se recusa a contrastar o conhecimento histórico e
social como algo individual: o pretensamente individual encerra em si um particular e um
universal e a distinção de ambos tem caráter de falsa abstração (ADORNO, 1980).
Para Adorno (1980), tomadas rigorosamente, as teses de Popper são inibidoras do
pensamento científico. A proposição de Popper de que “o que existe são os problemas e as
tradições científicas” conflita com a compreensão mais apropriada de que a matéria científica
é um conglomerado de problemas e de tentativas de solução, além de definir o método das
ciências sociais como o das ciências naturais. Postula-se que o que está no âmbito da
Sociologia pode ser decomposto em problemas singulares – o que não pode ser feito sem
descaracterizar o objeto. Também, a estrutura de hipótese testável é de difícil transposição
para as ciências sociais, pois as leis sociais são incomensuráveis para o conceito de hipótese.
E os fatos sociais não são previsíveis como os fatos das ciências naturais: são contraditórios e
são irracionais.
Adorno (1980) cita a obra de Freud como exemplo: a partir do estudo de reduzido
número de casos consegue-se uma generalização sem a qual a Sociologia não teria sido capaz
de evoluir no século passado, sendo discutível se a transformação da psicanálise em hipóteses
faria justiça ao seu conhecimento. Também levando em conta o que foi discutido
anteriormente sobre a “indústria cultural”, para Adorno (1980) o pesquisador que se
desenvolveu sob as condições da indústria cultural tem sua formação comprometida, o que
interfere em sua aptidão e vontade para discernir, precisando por isso apelar para a regra do
jogo cientificista.
Os críticos positivistas da dialética exigem modelos de procedimentos sociológicos
que, apesar de não constituídos de acordo com as regras empiristas do jogo, façam sentido. A
questão aqui estaria no que é o critério de sentido. Adorno (1980) questiona se seria possível,
por exemplo, chegar à escala F da Authoritarian personality se o critério utilizado fosse o
positivista. Para ilustrar o que seria uma posição positivista relacionada à pesquisa, cita o que
83
ouviu de um pesquisador acadêmico: “os senhores estão aqui para fazer pesquisa, não para
pensar” (ADORNO, 1980, p. 245).
O positivismo é, para Adorno (1980), o puritanismo do conhecimento: o que o
puritanismo efetua na esfera moral, o positivismo realiza nas normas do conhecimento. O
ideal de um sistema dedutivo e completo, que nada deixa de fora, constitui a expressão da
vida reduzida à lógica. A experiência regulamentada dos positivistas anula a experiência,
eliminando na intenção o sujeito que experimenta. A consciência coisificada se instala de
antemão no pensamento que não possua o aval da evidência. Para Adorno (1980), a segurança
do positivismo se assemelha à pretensa segurança que os zelosos da autenticidade têm na
teologia, advogando uma teologia em que não creem.
De acordo com Adorno (1980), a teoria de Popper ainda é melhor do que o
positivismo mais ligado ao círculo de Viena, pois não insiste na neutralidade de valores, como
na sociologia alemã desde Weber. Buscando a neutralidade de valores, a pesquisa sociológica
peca contra o critério de relevância – como apresentado por Popper. Para Adorno (1980),
valor e neutralidade de valor não estão separados, mas inter-relacionados, citando como
exemplo a obra de Weber sobre a ética protestante, cuja intenção se associa à sua crítica feita
à doutrina marxista de supra e infraestrutura, e chamando a atenção para o fato de que mesmo
um positivista como Durkheim declarava que a razão cognitiva e valorativa é a mesma.
Da mesma forma que a teoria dialética não apaga a neutralidade de valores, mas, antes,
preserva-a subssumindo-a si em conjunto com o oposto, também assim ela se comporta com o
positivismo como um todo. Dialética é mediação, não um ser-em-si, o que lhe impõe a
obrigação de não pretender qualquer verdade dos fatos.
B) A crítica à ontologia, pela ontologia de Heidegger
As discussões que Adorno trava com a ontologia heideggeriana são a expressão de
uma ideia bem anterior, comum à primeira geração de frankfurteanos – a qual também está na
raiz das discussões com o idealismo alemão – e que diz respeito à recusa da noção de
identidade (do sujeito com o objeto).
Em sua primeira emigração, quando Adorno foi para a Inglaterra, ele passou um
período em Oxford, onde retomou seu interesse por Husserl e pela fenomenologia. Foi nesse
período que começou a escrever o que foi posteriormente publicado sob o título de Sobre a
metacrítica da teoria do conhecimento (ADORNO, 1970). Nessa obra Adorno trata a
fenomenologia de Husserl como o melhor exemplo da decadência do idealismo burguês,
interpretando o fato de Husserl insistir em não considerar a ordem histórica em sua busca por
84
uma verdade universal transcendental como consequência da crise histórica da burguesia
europeia.
Na mesma linha, Adorno liga a ânsia de Heidegger, ex-aluno de Husserl, pela
restauração da abertura do homem ao ser, ao desejo de Husserl de descobrir fundamentos
filosóficos e princípios primeiros de caráter transcendental (JAY, 1988). Entretanto, o que,
segundo Adorno, foi pior em Heidegger em relação a Husserl foi a sua intenção de
transformar a sua investigação epistemológica em uma ontologia – justificando ter Adorno
dedicado toda a primeira parte da Dialética negativa (2009) para a discussão ontológica e,
dentro desta, mais especificamente, da ontologia heideggeriana.
Neste capítulo, o que Adorno pretende é realizar uma crítica imanente da ontologia
dominante na Alemanha. Wiggerhaus (2006) tenta resumir a polêmica entre Heidegger e
Adorno, dizendo que:
Atrás de sua ontologia havia objetivamente o interesse por um pensamento que se
distinguia qualitativamente da ciência, da epistemologia e da lógica e que buscava o
essencial: que conseguia penetrar fora da imanência da consciência
(WIGGERHAUS, 2006, p. 628).
A questão que estava no âmago da discussão referia-se à concepção do ser em
Heidegger, pela qual:
A mediação era, por assim dizer, ampliada até se transformar numa objetividade sem
objeto, uma transcendência transitiva, representava para Adorno uma deformação
ontológica da realidade dialética que o ente, aliás, o sujeito, pressupunha como
constituindo o constituído que era a facticidade. Segundo ele, Heidegger havia
tentado exprimir estruturas dialéticas numa forma não dialética (WIGGERHAUS,
2006, p. 627).
Uma discussão detalhada da filosofia de Heidegger foge ao escopo deste trabalho.
Mas, pode-se dizer, pelo exposto por Wiggerhaus (2006), que o aspecto que aqui mais
interessa e que está no núcleo da discussão de Adorno (2009) sobre a ontologia heideggeriana
diz respeito à relação sujeito-objeto. Esse tema será abordado mais à frente, no âmbito das
categorias e modelos de que trata a Dialética negativa.
85
2.2 A pesquisa social empírica
Afinal, pelo trajeto percorrido até o momento, o que se poderia dizer que Adorno
propunha: uma abordagem filosófica do real ou uma metodologia de análise social? O que se
procura demonstrar neste capítulo é que eram simultaneamente essas duas coisas.
Deve-se lembrar que, na primeira fase da Escola de Frankfurt, Adorno era um filósofo
cujo objeto estava na análise social, mas que, ao voltar para Frankfurt vindo dos Estados
Unidos, assumiu a cadeira de Sociologia, com a qual trabalhou a partir de fundamentos
filosóficos (JAY, 2008; WIGGERHAUS, 2006).
Esse entrelaçamento entre as duas disciplinas não é novo na Escola de Frankfurt: ao se
estudar a evolução dos seus trabalhos, pode-se observar que a preocupação em desenvolver
trabalhos de investigação empírica da sociedade vem dos seus primórdios. Horkheimer, que
como foi visto tinha formação filosófica, já em seu discurso de posse deixou clara a forma
como pretendia conduzir as pesquisas do Institut für Sozialforschung, reportando a
“necessidade de interpenetração progressiva entre a filosofia e as ciências particulares,
defendendo também a importância de um filósofo estar à frente de um empreendimento de
pesquisa empírica meticulosamente planejado” (DUARTE, 2003, p. 16).
A proposta, desde o início, foi desenvolver pesquisas sociais que resgatassem
elementos filosóficos do marxismo, associando-os às ciências humanas “burguesas” – aí
consideradas a psicanálise, além de tópicos da sociologia de Max Weber –, a fim de que
pudessem se organizar para os desafios daquele momento presente. O diagnóstico mostrava
uma modificação do capitalismo, de concorrencial, como no momento histórico do
diagnóstico feito por Marx, para “monopolista”, como acontecido já no início do século XX.
Mas, o que se procura mostrar nesta seção é que a pesquisa social empírica sempre foi
uma parte muito importante dos trabalhos dos frankfurteanos, em geral, e de Adorno em
particular.
Para se atingir esse objetivo, inicialmente apresenta-se o conceito de pesquisa
sociológica em Adorno para, em seguida, descrever os projetos de pesquisa empírica, tanto
quantitativas como qualitativas, por ele conduzidas.
O que se pode registrar também é algo que diz respeito à estrutura do texto. Muitos
dos temas a serem tratados já foram, de um modo ou de outro, avaliados quando se discutia
ou as bases filosóficas do pensamento de Adorno ou em algumas das discussões anteriores
referentes à teoria crítica e à discussão com o positivismo.
86
Pode-se dizer que essa estrutura de texto é a expressão do procedimento constelatório,
no qual um objeto que faz parte de uma constelação com outros objetos pode, mudando-se um
pouco a mirada, tomar parte em uma constelação com outros objetos – ainda que alguns
possam ser comuns a muitas.
Passa-se então ao que, para os efeitos deste estudo, é uma das partes mais importantes
deste capítulo, que é o relato sobre a pesquisa social empírica para T. Adorno
2.2.1 Algumas peculiaridades da pesquisa social empírica em Adorno
De acordo com Wiggerhaus (2006), ao retornar para a Alemanha no início da década
de 1950, e a partir de sua experiência em pesquisa social nos Estados Unidos, T. Adorno
assumiu atividades de teórico da pesquisa sociológica: “o ponto alto de seus estudos tratava
da relação entre pesquisa sociológica empírica e conceitual de teorias sociológicas, em última
análise, portanto, sobre o projeto de uma pesquisa sociológica empírica crítica”, sendo projeto
seu “lançar a pesquisa sociológica empírica no sentido lato contra as especulações guiadas
pelas ideologias” (WIGGERHAUS, 2006, p. 487-489), lançando-se contra o modelo vigente
do que se denominava pesquisa social empírica – as pesquisas de opinião e os estudos de
mercado, que ele vai chamar de administrative research.
No intuito de escapar da ideologia, as pesquisas deveriam se utilizar de instrumentos
que pudessem se completar, abrangendo simultaneamente os aspectos objetivo e subjetivo do
objeto. E para deixar bem claros os diversos aspectos relativos ao que Adorno considerava
relevante na pesquisa social empírica, essa questão está subdividida em quatro itens: o
primeiro, sobre a singularidade do objeto de pesquisa; a seguir, serão descritos o método de
modo geral e o lugar que ocupam os procedimentos qualitativos e quantitativos; por fim,
como a teoria e a dialética participam do método.
A) Sobre a singularidade do objeto
Para Adorno (1977b), a diferença entre a tradição filosófica que avalia a sociedade
desde Platão e Aristóteles até Hegel e o que Comte chamou de Sociologia é encontrada não só
na sua concepção, mas também no método. A novidade em Comte foi a busca de
conformidade da Sociologia a vínculos causais regulares, no método que ele chamou de
“positivo” – a exemplo do que ocorre nas ciências naturais – o qual deveria se circunscrever
aos dados, estabelecendo uma relação positiva com o existente, fosse ela boa ou má, ou seja,
sem levar em conta considerações de valor.
87
O resultado, para Adorno (1977b, p. 22), foi uma sociologia suspeita, pois a ciência
“só pode ser mais do que a simples duplicação da realidade no pensamento se estiver
impregnada de espírito crítico”, o que, como já foi visto, significa confrontar a coisa com seu
próprio conceito, com a finalidade não só de livrar a observação da superficialidade, mas
também – o que, para a ciência, seria ainda mais grave – da falsidade.
De acordo com Adorno e Horkheimer (1985), a limitação da sociologia positivista se
manifesta quando ela quis buscar ser uma ciência nos moldes das ciências naturais. Como as
ciências naturais se constituíram no processo de dominação da natureza, a sociologia
positivista reivindicaria, em relação à sociedade, o mesmo poder de controle e domínio que as
ciências naturais reivindicam em relação à natureza. Nesse tipo de sociologia, a busca de leis
essenciais não seria objeto da maioria das investigações empíricas, uma vez que essas só
podem ser alcançadas a partir de uma reflexão crítica sobre seus resultados.
Na ciência positivista, mesmo aqueles que, como Popper, defendem uma atitude
crítica para o cientista, o fazem na busca de uma unanimidade do conhecimento, e não a
legitimação da coisa conhecida, que é a finalidade da crítica defendida por Adorno. Na
pesquisa social empírica defendida por Adorno, refletir sobre os princípios é tão necessário
quanto conhecer os resultados. E isso inclui a reflexão sobre si mesma, conduzida sobre seus
métodos e sobre os modelos de seu trabalho – uma vez que o que se revela empiricamente na
pesquisa social é muitas vezes apenas o epifenômeno – como no caso da pesquisa de opinião.
Como em pesquisa social o objeto da Sociologia e o sujeito conhecedor se confundem,
Adorno (2008a) refere que, a partir da visão kantiana apresentada, em sociologia é possível
conhecer o objeto a partir de seu interior, ao contrário do que acontece na Física Nuclear ou
na tabela periódica. Daí que esse tipo de objeto vai precisar de uma abordagem diferente
daquela demandada pelos objetos das ciências naturais – o que vai determinar uma diferença
tanto no método como nos objetivos da pesquisa.
Daí se precisar discutir com mais detalhe as questões de método e objetivos.
C) Método e objetivos da pesquisa
Custa-me renunciar à suspeita de que a crescente exatidão dos métodos da
sociologia empírica, por irrefutáveis que sejam seus argumentos, muitas vezes
maniata a produtividade científica (ADORNO, 1995a, p. 166)
A pesquisa social não deveria ter um método único: para Adorno (2008a), uma
diferença importante entre as escolas positivista e a de Frankfurt em relação à pesquisa
88
empírica está mais na concepção de que o método em Sociologia não deve separar de modo
instrumental o objeto, como postula o positivismo, mas sim adequá-lo aos objetos.
Como o desenvolvimento de métodos próprios da ciência possibilitou grande avanço
nas ciências naturais, isso acabou por determinar certo grau de fetichismo na ciência
envolvendo o próprio método. Só que, no caso da Sociologia, que tem que lidar com
conceitos como reificação, fetichização e ideologia, a ciência deveria fornecer, se quiser
escapar da falsidade, além do método para refletir sobre os objetos, a incorporação nesse
método de uma reflexão sobre si mesma e sobre sua relação com os seus objetos.
Esta é, como foi visto no capítulo anterior, uma das diferenças mais importantes entre
as sociologias da Escola de Frankfurt e a positivista: a característica essencial da Escola de
Frankfurt é a busca por não sucumbir ao fetichismo do método, próprio de “uma Sociologia
que não pretende ser algo além de Sociologia”19
. Com seus métodos imanentes e nexos de
fundamentação, a ciência positivista acaba por se converter em fim em si mesma, sem
referências ao objeto do qual deveria se ocupar (ADORNO, 1977b; 2008a).
Tanto Adorno (2008a) quanto Horkheimer (2007) atribuem esse apego ao método ao
medo ou à insegurança intelectual. Considerando que o ideal da metodologia é o tautológico –
ou seja, o conhecimento tem determinação operacional, apresentando um resultado que
corresponde às exigências próprias do método –, só serão produtivos os conhecimentos que
puderem ultrapassar esse caráter tautológico-instrumental. Disputas metodológicas costumam
esconder divergências sobre conteúdos e se perdem numa discussão que se esgota no método.
O que Adorno (2008a) chama de “sensatez racional metodológica” é ponderar
rigorosamente todos os aspectos relevantes de cada caso. Isso inclui a ponderação de que
resultados qualitativos, que parecem individuais, encontrados em questões sociológicas como
opiniões arraigadas, comportamentos, atitudes e ideologias, por serem socialmente mediados,
extrapolam os indivíduos. Por isso mesmo, isso pode justificar a inclusão de momentos
quantitativos – que podem revelar opiniões, ideologias e o senso comum – aos qualitativos.
São sociais fatos que a sociologia empírica atribuiria aos indivíduos, mas que, ao
serem remetidos à Estatística, podem ser generalizados, de modo que o que é aparentemente
específico pode adquirir um valor mais geral do que poderia parecer ao olhar ingênuo
(ADORNO, 2008a). Quando os objetivos do conhecimento são claros, esse tipo de
conhecimento pode ajudar a estabelecer uma racionalidade orientada para os fins. Isso inclui
as questões referentes à amostra, a qual, para se atingir determinado objetivo, poderia, em
19
Termo usado por Erwin Scheuch no Congresso de Sociologia de 1968 em Frankfurt (ADORNO, 2008a, p.
246).
89
alguns casos, ser de algum modo escolhida pelo pesquisador que, para esse fim, poderia
abandonar alguns fetichismos metodológicos (amostra aleatória, etc.).
O método deve ser desenvolvido a partir do assunto, e não o contrário. Como
exemplo, Adorno (2008a) cita a produção das escalas “Guttman”, “Thurstone” e “Likert”20
(1961): a “Guttman”, que apesar de ser um avanço metodológico sobre as mais antigas na
busca de minimizar ambiguidades expressas pelas respostas, acaba tendo como desvantagem
diminuir a fecundidade das informações obtidas. Já a escala F que Adorno desenvolveu em
Authoritarian Personality (ADORNO et al., 1982) teve como vantagem justamente a
ambiguidade de algumas perguntas, possibilitando “acertar várias moscas em um só golpe”
(ADORNO, 2008a, p. 189): a eliminação de ambiguidades, se, por um lado, aumenta a
confiabilidade da escala e a confiança no item, por outro reduz a riqueza de conhecimentos
passível de ser retirada de sua avaliação.
Essa é uma discussão que pede uma abordagem voltada mais diretamente para a
questão da estatística em pesquisa social empírica como realizada pelo ISF – tema que tem
originado muita confusão e controvérsia no seu entendimento, e que por isso merecerá uma
abordagem específica.
C) O papel das pesquisas qualitativas e quantitativas para Adorno
Adorno e Horkheimer (1977a) acreditam que muitos dos debates contra a aplicação
dos métodos científicos desenvolvidos para investigação da natureza às ciências humanas
pecaram por não levarem em consideração a “naturalidade” que é conferida pela sociedade
aos objetos das ciências sociais. As características desses objetos são derivadas do
racionalismo utilitário humano ou, como denominou Horkheimer (2007), da racionalidade
instrumental, o que não significa que eles sejam nem racionais, nem humanos, ainda que
sejam úteis.
Esse é um tipo de racionalidade que tende a transformar o que é humano em mais um
objeto da natureza, sendo que a responsabilidade dessa transformação retirada do homem é
transferida para a ciência que o estuda. Daí que, segundo Adorno, “a falta de humanismo dos
20
Escala de Guttman: é um exemplo de escala chamada de “cumulativa” – nela, os itens da escala se relacionam
entre si, de modo que a resposta favorável a um item deve ter resposta que seja coerente com os itens anteriores.
Foi elaborada de modo a se poder inferir as respostas parciais do resultado final da escala.
A escala de Thurnstone: é um exemplo de escala chamada de “diferencial” – nela, a posição dos itens tem uma
ordenação que é previamente determinada, que leva em conta as medianas de atribuição de significado dos itens.
A mediana do item assinalado é interpretada como sendo a indicação de sua posição numa escala de atitude
favorável-desfavorável em relação ao objeto. A escala Likert: é um exemplo de escala chamada de “somatória” –
nela os indivíduos respondem a cada item especificando o grau de acordo ou desacordo com o item apresentado.
Tem como finalidade uma tentativa de quantificação de uma posição de acordo ou desacordo.
90
métodos empíricos é mais humana que a interpretação humanista do que não é humano”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1977a, p. 127). Wiggerhaus (2006) relaciona essa última
afirmação à insatisfação que Adorno demonstrava quanto ao resultado de algumas pesquisas
empíricas conduzidas pelo ISF na década de 1950, já na Alemanha, dizendo que “as pessoas
estudadas permaneciam como objetos que, mesmo mais tarde, só eram encarados como
objetos pelos esclarecimentos dados pela pesquisa e por suas utilizações” (WIGGERHAUS,
2006, p. 491).
A ideia de validade estatística da amostra está ligada, para Adorno (2008a), a um
comportamento cego das pessoas – algo que se poderia considerar discutível, num momento
quando pessoas emancipadas pudessem decidir conscientemente em função de seu desejo.
Para Adorno sempre existirá a possibilidade de os homens manterem a sua capacidade de
formar livremente a sua opinião quando eles estão em meio a relações que não conseguem
distinguir. Esse seria o ponto no qual a “lei dos grandes números” encontraria os seus limites.
A construção de modelos estatísticos válidos na atualidade chegou a um ponto tal que
permite, à ciência positivista, considerar ser suficiente seguir os critérios por ela estabelecidos
para se ter a garantia de “idoneidade” dos resultados. Entretanto, pode-se considerar que a
aplicação de um modelo rigoroso a problemas para os quais o método é inadequado, ou
incompatível, pode produzir resultados errados ou absurdos. Ou seja, a estatística deveria
servir mais para controlar do que para gerar concepções, as quais deveriam nascer, em geral,
de estudos mais profundos de casos particulares (ADORNO; HORKHEIMER, 1977a).
Adorno (2008a) reconhece que o dado quantitativo é mais confiável. Mas também
entende que, para se obter os números, é preciso renunciar à diferenciação dos instrumentos
de pesquisa que forneceriam conhecimentos detalhados mais produtivos. Nesse sentido, o
método qualitativo pode produzir coisas mais fecundas. A questão é que os métodos
qualitativos podem nos colocar diante de outro problema: os resultados obtidos por esses
métodos podem ser generalizados ou apenas se sustentam em casos particulares?
A resposta está na ponderação de que a sociologia empírica perde em especificidade
pela generalização estatística, pois no detalhe pode aparecer algo decisivo acerca do
universal que escapa à generalização. Daí ser fundamental complementar os levantamentos
estatísticos com estudos de casos. A quantificação funcionaria, assim, apenas como meio para
discernir o qualitativo, ou seja, a ligação entre os métodos estatísticos e sua aplicação deve ser
feita utilizando-se elementos cognitivos qualitativos (ADORNO, 1980, 2008a).
O exemplo de Adorno encontra em sua própria experiência na pesquisa da
Authoritarian personality:
91
Já no planejamento, tínhamos previsto compensar o perigo da mecanização implícita
nos trabalhos quantitativos mediante estudos de casos qualitativos complementares.
A aporia de que o apurado de forma puramente quantitativa raras vezes alcança os
mecanismos genéticos profundos, mas que, com a mesma facilidade, pode ser
negada aos estudos qualitativos a possibilidade de generalização e, portanto, a
validade sociológica objetiva, procuramos superá-la utilizando toda uma série de
técnicas (ADORNO, 1995a, p. 163).
Mas, se Adorno (2008a) considera superficial a ideia de que a “ciência é medida”, ele
também atenta contra uma atitude de superioridade em relação aos métodos qualitativos pois,
como já foi visto anteriormente, para se investigar a vida social contemporânea padronizada,
os métodos padronizados não só podem expressar de modo mais fiel essa situação, como
podem também ser o instrumento mais adequado para entendê-la e descrevê-la.
O método de pesquisa “análise de conteúdo” também é um exemplo do que se está
tratando. Na forma como foi conduzida por Harold Lasswell – autor que já foi abordado no
capítulo anterior – na década de 1920 nos Estados Unidos, a partir da análise da propaganda
inimiga durante a Primeira Guerra, e com caráter basicamente quantitativo, o método tinha
por intenção abordar todo o tipo do que se chamou de “formação espiritual” (textos, filmes,
etc.).
De modo sumário, o objetivo era, tendo escolhido temas para estudo, enumerar entre
eles temas mais específicos que o constituíam, averiguando o peso relativo de cada um dos
temas individuais. Os detalhes do procedimento foram publicados em um ensaio intitulado
Why be quantitative?21
, o que estimulou a resposta de um pesquisador alemão, Siegfried
Krakauer (1952), em um artigo no qual defendia procedimentos qualitativos para a análise de
conteúdo.
Essa é uma discussão que Adorno (2008a) aconselha que não pode ser superada nos
termos de que uma é a certa e a outra a errada, devendo ser conduzida em relação ao objeto a
ser analisado. No caso de Lasswell, o método basicamente quantitativo estava totalmente
apropriado à publicidade. Mas, mesmo Lasswell, para desenvolver os seus procedimentos
quantitativos, precisou de um momento qualitativo – no caso, enumeração das categorias.
Por outro lado, quanto mais diferenciadas e autônomas forem as “formações
espirituais” a serem investigadas, tanto mais sem sentido se torna, para Adorno (2008a), uma
análise puramente quantitativa. O que seria importante neste caso seria o aprofundamento na
análise do material específico:
21
Esse ensaio está disponível no capítulo 3 de Lasswell e Leithes (1949).
92
O conteúdo social de formações organizadas e diferenciadas em si mesmas só pode
ser apreendido mediante a análise de seu sentido, em vez de se vincular de algum
modo esse sentido de antemão ao seu efeito, que possivelmente nada tem a ver com
o conteúdo em si. Aqui se encontra o que precisa ser elaborado e que é
sociologicamente relevante: o conteúdo. Esse só é apreendido por uma análise
imanente, a qual, entretanto, deve-se acrescentar também a análise dos efeitos, ou
seja, a descoberta dos efeitos de tais formações (ADORNO, 2008a, p. 221-222).
Como exemplo em suas próprias pesquisas, Adorno (2008c) cita o trabalho que deu
origem ao livro As estrelas descem à terra:
Empreguei o procedimento qualitativo, embora não tenha recusado calcular a
frequência, pelo menos grosso modo, dos truques básicos que se repetiam no
material escolhido que abarcava um lapso de dois meses. Entre as justificações do
método quantitativo, conta-se o de que os produtos da indústria cultural estão
planejados, eles mesmos, desde pontos de vista como que estatísticos. A análise
quantitativa mede-os com sua própria medida (ADORNO, 1995a, p. 172).
Com essas observações chega-se ao próximo passo conceitual relacionado à pesquisa
empírica, que diz respeito à dialética como método e como a teoria se relaciona com ela.
D) A importância da teoria e a dialética como método
Defendendo a dialética como método de pesquisa empírica da sociedade, Adorno
(2008a) afirma que a sua função é unir os dois momentos contrapostos, inferidos a partir da
sociedade: de um lado, sua opacidade e ausência de inteligibilidade; e, de outro, o seu caráter
redutível ao que é humano e, portanto, compreensível. O erro do positivismo é não evoluir
para essa compreensão, ficando preso na ingenuidade do dado imediato ou, recuperando
Hegel, no primeiro momento da dialética, que é o do “entendimento”.
Mas, talvez um dos diferenciais mais importantes na pesquisa empírica para Adorno
reside no fato de que, para propiciar um julgamento equilibrado, a pesquisa, além de superar
seus preconceitos, deve estar fundada em teoria: para Adorno e Horkheimer (1977a) não é
possível uma investigação social empírica sem teoria.
Essa teoria, no entanto, deve ser admitida como “hipótese figurada”, e não como
“instância legítima”. É com a teoria que os dados obtidos devem ser tensionados, de modo
que do tensionamento possam emergir as contradições – ou o segundo momento da dialética
hegeliana ou o momento negativo que Adorno identificou em Kant.
Voltando à sua experiência de produção da Authoritarian personality, para Adorno:
93
O mérito que, porventura, tenha a Authoritarian personality não consiste na absoluta
precisão das análises positivas, nem nos índices quantitativos, senão, antes de mais
nada, em sua problemática, a qual está perpassada por um interesse social essencial e
se move no marco de uma teoria que antes não tinha sido aplicada a investigações
quantitativas (ADORNO, 1995a, p. 167).
Christie e Jahoda (1981), em uma obra que foi crítica em relação a vários aspectos
metodológicos da pesquisa conduzida por Adorno et al. (1982), questionaram a circularidade
de que a teoria pressuposta por instrumentos de investigação estava sendo validada pelos
mesmos instrumentos, ao que Adorno (1995a) respondeu:
Nunca consideramos a teoria simplesmente como hipótese e sim sempre como algo
em certo sentido independente; daí que tampouco pretendêssemos provar ou refutar
a teoria pelos resultados, mas sim exclusivamente derivar dela questionamentos
concretos no plano da investigação, que logo caminhassem por seus próprios pés e
demonstrassem certas estruturas psicológico-sociais correntes [...] Esses problemas
metodológicos, formulados todos eles segundo o modelo hipótese-prova-conclusão,
motivaram posteriormente minha crítica filosófica ao conceito científico
convencional do absolutamente primeiro (ADORNO, 1995a, p. 168-169).
Citando o resultado de outra pesquisa conduzida por Adorno e outros membros do
grupo, o “Child Study”, que também utilizou as categorias do Authoritarian personality, o
surgimento de alguns resultados inesperados possibilitaram a Adorno a conscientização de:
Aalgo daquilo que Robert Merton, desde outro ponto de vista, identifica uma das
justificações mais importantes das pesquisas empíricas, a saber: em maior ou menor
medida, qualquer achado, uma vez posto, pode ser explicado teoricamente, mas
também o seu contrário. Em poucas ocasiões tenho experimentado tão vividamente
como então a legitimidade e necessidade de uma investigação empírica que responda
realmente aos problemas teóricos (ADORNO, 1995a, p. 170)
Na sociedade, tendências essenciais, como certos desenvolvimentos políticos, não
atuam de maneira uniforme ou, dito de outra forma, segundo amostragem estatística, mas de
acordo com interesses mais poderosos e com a eficácia de ação de quem consegue fabricar a
opinião pública. É por isso que uma teoria da sociedade é necessária para a adequada
interpretação do que vai sendo descoberto pela pesquisa empírica (ADORNO;
HORKHEIMER, 1977a).
Como a pesquisa social não tem suas raízes no que se poderia chamar de cultura
universal, ela acaba por se aproximar muito mais do pragmatismo norte-americano, que
adapta as técnicas de investigação a objetivos comerciais e administrativos. O resultado seria
uma ciência que oferece saber de domínio e não saber de cultura.
94
A sociologia empírica, quando influenciada pelo que chamou de administrative
research22
, termina por se desenvolver de modo unilateral, na medida em que forma o seu
potencial apenas para assegurar informações úteis, deixando os aspectos que possuem
implicações críticas tratados de forma precária. Essa limitação reside no fato de que esse tipo
de conhecimento pressupõe teoria, sem a qual não se tem instrumentos para pôr em questão
esse saber de domínio. Acontece que a teoria é pobre na administrative research.
Muitas das diferenças entre as pesquisas empíricas em Sociologia, relativas tanto ao
método como ao resultado, podem ser evidenciadas pelas diferenças entre a administrative
research e pesquisa empírica sociológica de cunho mais crítico, como têm sido realizadas no
campo da administração. Por estar no campo da pesquisa a ser realizada nesta tese, esse tema
necessitará ser mais bem trabalhado.
2.2.2 Adorno e a pesquisa empírica em administração
No curso das discussões com Lazarsfeld (1941), com quem Adorno trabalhou durante
os primeiros anos de sua permanência nos Estados Unidos, ficou claro haver duas concepções
inconciliáveis da Sociologia: de um lado, a que constata fatos sociais, preparando-os e
disponibilizando-os para posicionamentos administrativos de qualquer ordem – o que Adorno
caracteriza como administrative research –; e, de outro, a investigação crítica da comunicação
dos achados.
A diferença entre as duas não estaria apenas nos fins: uma considera o tratamento dos
homens como objeto (veja-se o exemplo da indústria cultural, que busca saber como arranjar
seus programas, para maximizar sua comercialização), enquanto a outra insiste no potencial
da sociedade como sujeito. É da primeira visão a reivindicação de poder pela Sociologia, a
totalização da reivindicação administrativa da sociedade – o que implica tudo, menos uma
posição de neutralidade, como preconizado pela ciência positivista (ADORNO, 2008a).
O que Adorno denomina “administrative research” pode ser assim caracterizado:
Quando não se dispõe de poder, quando a resignação domina, os investigadores
limitam-se, voluntariamente, já que as informações sobre o mercado são muito
apreciadas nesses períodos, a determinar que uma tarefa previamente fixada – por
exemplo, a venda de uma mercadoria, a influência que se deseja obter sobre
determinado grupo humano, etc. – seja resolvida com a máxima eficácia e em
condições econômicas perfeitas (ADORNO; HORKHEIMER, 1977a, p. 129).
22
O termo será utilizado aqui muitas vezes em inglês, pois essa é a forma como Adorno o utilizava no original,
tendo sido mantido assim por seus tradutores para o português em muitas de suas obras. Quanto ao termo,
Adorno não se lembra “se foi Lazarsfeld quem cunhou esse conceito ou se fui eu em meu assombro diante de um
tipo de ciência diretamente orientada para o prático, coisa para mim insólita” (ADORNO, 1995a, p. 142).
95
Podem-se esperar interesses divergentes na aplicação prática da ciência social,
dependendo do que pretende a sociedade em seu momento histórico: mudar a sua estrutura ou
apenas eliminar um inconveniente. Essa última é a função da “administrative research”, em
que o que se quer saber é, por exemplo, o que vende mais ou que método de produção é mais
eficiente. Essa é a razão pela qual os métodos em ciência social empírica se prestam com tanta
facilidade a servir aos interesses da manipulação social. Sem poder e tendo a pesquisa sido
contratada como encomenda de alguém com a finalidade de responder às perguntas que o
contratante deseja, e não outras, os investigadores limitam-se a garantir que algo que foi
previamente fixado – a venda de uma mercadoria, a identificação da influência exercida sobre
determinado grupo, etc. – seja resolvido com eficácia, e apenas isso (ADORNO, 2008a).
O que se tem estudado são setores delimitados da estrutura social. E o estudo de
objetos retirados do contexto social exclui o tratamento da sociedade como totalidade, daí o
caráter de informação gerada, útil apenas para fins administrativos, na forma como tem sido
realizada e que Adorno experimenta já na década de 1940 nos Estados Unidos (ADORNO,
1995a; ADORNO; HORKHEIMER, 1977a).
Mas esse tipo de investigação social empírica, observada na administrative research,
não precisaria se comportar como um campo distinto da Sociologia, pois, como foi visto na
seção anterior, nada impede que uma investigação que se ocupe de opiniões, motivações e
comportamentos subjetivos também possa se ocupar de fatos objetivos da sociedade. A
questão é que esse tipo de investigação se comporta mais como um método do que como um
setor do conhecimento – e, como foi visto na discussão sobre a polêmica com o positivismo,
como método, os papéis dos critérios de quantificação, de verificabilidade, falsidade e de
repetição devem ser repensados nesse tipo de pesquisa (ADORNO; HORKHEIMER, 1977b).
Adorno não considerava a Sociologia uma ciência humana: as suas questões não são
questões de consciência ou do inconsciente, mas sim as que envolvem, além do conflito entre
o homem e a natureza, as das formas objetivas de socialização. Por isso, o objeto da pesquisa
social empírica deveria ser especulações guiadas pela ideologia, usando, para isso, além da
“pesquisa de opinião”, métodos que pudessem ajudar a elucidar também o lado subjetivo da
sociedade. Ou seja, as pesquisas de opinião só teriam sentido se estudassem as relações entre
processos econômicos, psiquismo e cultura (ADORNO, 2008a), pois:
96
Sabemos que os homens de que tratamos permanecem, desde então, homens com
sua capacidade de formar livremente sua opinião e com sua espontaneidade quando
são integrados a relações que eles próprios não conseguem distinguir, e sabemos que
a lei dos grandes números tem seus limites com esse elemento espontâneo e
consciente (ADORNO apud WIGGERHAUS, 2006, p. 491).
O esforço de Adorno (2008a) na defesa da pesquisa social empírica (PSE) se
concentrava nos pontos em que ela significava mais do que técnicas sutis de entrevistas,
considerando que ela já havia elaborado por si mesma, e com o auxílio da psicanálise, os
métodos graças aos quais ela poderia superarar a superficialidade – como os questionários
indiretos, os testes, as entrevistas em profundidade e a discussão em grupo.
Adorno (1982) demonstra isso, na prática, usando como exemplo a pesquisa que
realizou em associação com outros pesquisadores de Berkeley, Estados Unidos, a qual deu
origem à escala F, que será apresentada com mais detalhe no capítulo sobre a personalidade e
os fundamentos psicossociológicos do seu desenvolvimento.
A visão de Adorno sobre a prática da PSE será tratada em dois momentos importantes
para a sua experiência nesse campo: aquele que envolveu as pesquisas realizadas nos Estados
Unidos da América e as pesquisas realizadas na Alemanha, quando da reinstalação do ISF na
década de 1950.
A) Adorno e a pesquisa social empírica (PSE) nos Estados Unidos da América
Em seu relato sobre as pesquisas realizadas nos Estados Unidos, Adorno (1995a)
manifesta o seu primeiro estranhamento relacionado a uma objeção muito ouvida por ele, em
resposta a alguns de seus textos teóricos: “onde está a evidência?” – o que, para ele, traduzia
uma demanda por demonstrações de ordem estatística.
Mas também lhe chamou a atenção o fato de que o contrato de seu primeiro projeto
tinha estipulado que o sistema comercial norte-americano, com seus pressupostos sociais e
econômicos e consequências socioculturais, não poderia ser o objeto da análise. No
andamento da pesquisa e em suas palavras, “ninguém me pedia teorias medulares sobre a
relação entre música e sociedade; esperavam de mim informações utilizáveis” (ADORNO,
1995a, p. 145). Para tanto, empregava-se um “círculo metodológico” em que a reificação
cultural deveria ser capturada com o uso de métodos reificados.
Também digno de nota foi a observação de que o pesquisador norte-americano não se
permitia fazer inferências sobre as observações, nem registrar impressões baseadas no senso
comum, se estas não estivessem fundadas nos dados, sob o risco de que elas fossem
consideradas simples especulações: “a educação universitária produzira nele o efeito de
97
incapacitá-lo para considerações que não estivessem respaldadas por fatos estritamente
observados e registrados”, o que levou Adorno a considerar que “o ceticismo frente ao
indemonstrado pode transformar-se na proibição do pensar” (ADORNO, 1995a, p. 151). Para
essa discussão, Adorno (1995a) recupera a ideia de especulação em Hegel, o qual:
Pôs a maior ênfase em que o pensamento especulativo não é algo absolutamente
diverso do que costuma chamar-se sã razão humana, do “common sense”, e sim que
consiste essencialmente em sua autorreflexão e autoconsciência crítica [...] Quem,
como eu faço, vai tão longe na crítica do “common sense”, deve cumprir a exigência
simples de ter “common sense” (ADORNO, 1995a, p. 177).
Como discutido por Adorno (1995a), muitas das conclusões a respeito de métodos de
pesquisa empírica em Sociologia ou sobre uso de metodologias qualitativas ou quantitativas,
como apresentadas na seção anterior, são fruto de sua experiência com os trabalhos nos
Estados Unidos. Em suas palavras, “somente nos Estados Unidos experimentei deveras o peso
do que significa empiria, por mais que, desde cedo, me guiasse a consciência de que o
conhecimento teórico fecundo só é possível em estreito contato com seus materiais”
(ADORNO, 1995a, p. 177-178). E acrescenta que:
Na forma do empirismo transportado à praxis científica nos Estados Unidos, eu tive
de aprender que a amplitude total, não regulamentada, da experiência, vê-se
reduzida pelas regras de jogo empiristas a limites mais estreitos que aqueles que
impõem o próprio conceito de experiência. Depois de tudo aquilo, não seria a
expressão mais falsa do que estou a imaginar a de uma espécie de restituição da
experiência, contra seu arranjo empirista. Tal foi, não por último, junto com a
possibilidade de prosseguir na Europa as minhas próprias tarefas antes estorvadas e
a de contribuir um pouco ao esclarecimento político, o motivo de meu retorno
(ADORNO, 1995a, p. 178).
Abre-se espaço para a próxima discussão, referente às pesquisas conduzidas na
Alemanha, quando da reinstalação do ISF em Frankfurt, na década de 1950.
B) Adorno e a pesquisa social empírica na Alemanha na década de 1950
A proposta de Adorno, na reinstalação do ISF, era então, como ele defendia, lançar a
pesquisa empírica contra as especulações guiadas pela ideologia. O exemplo do ele que
pretendia é apresentado por Wiggerhaus (2006) da seguinte forma:
Se depararmos, sob o manto de qualquer pretensa autoridade da Sociologia como
ciência humana, com o enunciado de que o homem que qualificamos de rural e
recalcitrante a toda inovação técnica ou social devido à sua mentalidade
fundamentalmente conservadora ou sua “atitude”, não ficaremos satisfeitos com tais
explicações [...] mandaremos, por exemplo, ao local, entrevistadores que gozem da
confiança dos camponeses com a missão de aprofundar as questões [...] (ADORNO
apud WIGGERHAUS, 2006, p. 489).
98
Também havia a intenção do ISF de publicar obras sociológicas norte-americanas, em
função da constatação de que:
A maioria dos especialistas, como dos não iniciados, não está a par da contribuição
dos sociólogos norte-americanos ao pensamento e à teoria sociológicos e não
percebe também que, nos Estados Unidos, como aliás em toda parte, a teoria e a
pesquisa sociológicas são estreitamente dependentes uma da outra e influenciam-se
mutuamente (ADORNO apud WIGGERHAUS, 2006, p. 515).
Mas o ISF passava por dificuldades financeiras naturais naquele reinício. Se logo após
o retorno para a Alemanha, em 1950, Horkheimer pôde recusar uma encomenda realizada
pelo grupo empresarial Hoechst, em 1954 ele enfrentou numa situação financeira na qual se
viu compelido a aproveitar a oportunidade de uma outra encomenda, dessa vez feita pela
Mannesmann. O grupo do ISF praticamente não tinha experiência em sociologia empresarial,
mas Horkheimer aceitou o encargo, de um lado como desafio, mas também muito pressionado
pela necessidade de obter recursos para o ISF (WIGGERHAUS, 2006).
Por parte da Mannesmann, a pesquisa teve que ser realizada sob forte pressão de
prazos. A diretoria da empresa procurava resposta para a seguinte pergunta: “o que pensa e o
que quer o pessoal de nossa empresa e por que pensa e quer assim”? Ou seja, a diretoria
queria ser informada do clima social e dos fatores que eram decisivos nesse clima. Queria
conhecer as causas profundas, fundamentos conceituais e raízes sentimentais da formação das
opiniões, pois julgava que a partir daí a pesquisa poderia ser utilizada para resolver os
problemas da empresa – o que para o ISF era um tema promissor, por sua orientação
metodológica, pois, como foi visto anteriormente, em seu programa constava a ambição de
penetrar a superfície das opiniões (WIGGERHAUS, 2006).
A metodologia usada foi a seguinte:
a) 15 entrevistadores experientes entrevistaram 1.172 operários e empregados, escolhidos
por amostragem aleatória entre os mais de 35.000 empregados;
b) contramestres ou representantes do pessoal eram informados pela direção pouco antes
da entrevista e convocados para um local reservado das fábricas, onde ocorriam as
entrevistas, que se compunham de declarações orais individuais de aproximadamente
50 minutos, seguidas da aplicação de um questionário;
c) depois, assistentes do ISF organizaram discussões em grupo envolvendo 539
participantes. Para essas discussões, o estímulo fundamental eram pontos considerados
99
importantes para a satisfação ou insatisfação nas fábricas, retirados de uma pesquisa
preliminar realizada com os trabalhadores, usando-se um questionário;
d) o rascunho do relatório foi entregue à presidência da sociedade em janeiro de 1955 e
em junho de 1955 foi entregue o relatório principal (WIGGERHAUS, 2006).
A questão mais importante foi saber, de uma lista de oito, quais seriam os fatores mais
importantes para os empregados. Para determinar a importância de diferentes fatores para a
atitude dos empregados para com a fábrica e, num segundo momento, o ambiente da empresa
que se procurava conhecer, procedeu-se de forma indireta, pois as pessoas interrogadas não
eram consideradas capazes de indicar diretamente os fatores decisivos de sua atitude para com
a fábrica.
Foram feitas perguntas específicas, como “há um trabalho que você preferiria
realizar?”, na parte relativa à atitude para com o cargo, usando-se respostas positivas e
negativas como critério de satisfação ou insatisfação em cada setor.
A expectativa que Adorno tinha para o estudo era combinar a análise quantitativa dos
resultados das entrevistas de uma amostra considerada representativa com a análise qualitativa
dos relatórios das discussões de grupo, visando à psicologia profunda, como realizado na
Authoritarian Personality.
Entretanto, no relatório, Wiggerhaus (2006) observa que só se percebiam vestígios da
teoria crítica na introdução, chamada de Problemática, que trazia claramente a marca de
Adorno. Nela, mostrava-se uma consciência aguda das graves limitações do estudo,
explicando que faltava uma análise dos personagens-chave (diretor e principais executivos) e
de suas opiniões. Também chamava a atenção para a dimensão histórico-social que foi
desprezada pelo estudo no que diz respeito à ideia de representação dos assalariados por
pessoas qualificadas (no contexto do tema da cogestão) e para a tendência a uma apatia, nos
pontos em que não se encontra uma situação democrática historicamente estabelecida
(WIGGERHAUS, 2006).
O capítulo “Observações metodológicas” desse estudo indicava que, graças ao contato
imediato com a pessoa interrogada, o entrevistador dispunha também de impressões globais
cujo único defeito era o de resistirem à eliminação do fator constituído por sua subjetividade.
E, num raciocínio com a marca de Adorno, explicava que “é precisamente a capacidade total
de reação subjetiva do entrevistador que se torna, aqui, um „instrumento de pesquisa‟ que é
ainda o mais adequado a seu objeto imponderável em sua dinâmica e sua complexidade, a
relação com a fábrica” (WIGGERHAUS, 2006, p. 527).
100
A questão era que as entrevistas foram confiadas a 15 pesquisadores que, ao final,
apenas indicavam sua impressão geral quanto ao grau de cooperação do entrevistado,
qualidade do contato, sinceridade das respostas, dedicação à empresa do sujeito interrogado e
à intensidade da atividade sindical. Mas quanto ao grau com que a “inteira capacidade de
reação subjetiva” dos “assistentes” do ISF encarregados de conduzir as discussões em grupo
melhorava os resultados, o relatório nada citava.
Adorno não completa os estudos empíricos críticos com que sonhava. Em um
manuscrito de 1957, Teamwork in der Socialforschung (equipe de trabalho em pesquisa
social), ele radicaliza a autocrítica da pesquisa sociológica empírica, entre a qual e a crítica ele
via dois elementos dissociados e incompatíveis na prática. Em suas palavras:
Quem conhece a prática da pesquisa social por ter ele próprio trabalhado nela foi
obrigado a observar que, na área dessas pesquisas, o teamwork não pode ser
substituído pelo trabalho do erudito isolado à moda antiga. Os one man studies são
sempre dúbios e a maior parte trabalho de amadores (WIGGERHAUS, 2006, p. 531)
Segundo Wiggerhaus (2006), Adorno sabia que quem quisesse ser levado a sério por
seus colegas não poderia dispensar controles que só são possíveis com o teamwork – como o
inventário ou a classificação dos dados de acordo com as categorias que acompanham a
opinião, para diminuir a subjetividade. Mas a um preço muito alto, pois, segundo Adorno:
Não só as continências individuais desaparecem nesse processo de eliminação, mas
também tudo o que o indivíduo refletiu e adquiriu como compreensão objetiva do
processo e que desaparece no processo de abstração, que reduz vários indivíduos à
fórmula de uma consciência comum que apaga as diferenças específicas
(WIGGERHAUS, 2006, p. 531).
A questão estava no fato de que, se o responsável pela pesquisa tentasse reunir ao final
tudo o que forneceu de pessoal no início e que se perdeu durante o processo institucionalizado
da pesquisa, a relação com os dados seria irremediavelmente rompida e as suas reflexões
seriam sem fundamento, podendo ser no máximo toleradas como hipóteses para outros
estudos – que provavelmente não surgiriam. Em suas palavras:
A falta, sempre lamentada, de pessoas capazes de concluir com êxito a redação final
dos estudos não se explica por uma ausência de dons literários. Um relatório desse
tipo não é uma questão de prática literária, mas exige a compreensão completa da
pesquisa. O problema reside antes na aporia: tal relatório final deve apresentar uma
espécie de sentido do conjunto, ao passo que o sentido imanente do método sobre o
qual tudo se baseia é precisamente a negação desse sentido de conjunto, e a
decomposição em pura factualidade. Presta-se, pois, uma homenagem puramente
verbal à teoria, porque o objetivo da tendência imanente da research não é chegar a
uma teoria por meio dos fatos (WIGGERHAUS, 2006, p. 531-532).
101
Essas observações de Adorno são muito importantes para este estudo, uma vez que
uma tese é normalmente o trabalho de um autor isolado. Mas a solução deve ser buscada em
Adorno mesmo.
Segundo observa Wiggerhaus (2006), a consequência da ruptura de Adorno com a
PSE foi fazer o que se pudesse fazer sozinho ou, dito de outra forma, trabalhar na teoria. Mas,
em que tipo de teoria e como se precaver de cair em pura especulação? Foi por isso muitas
vezes acusado por sociólogos positivistas norte-americanos.
A resposta veio dois anos depois, quando Adorno iniciou a redação da Dialética
negativa (2009), na qual se volta para a tese de que os fatos importantes se escondem diante
da abordagem empírica. Sua crítica estava voltada para a pesquisa estabelecida, e não para o
projeto de uma pesquisa sociológica empírica crítica, que lhe daria os meios para se
concentrar na teoria filosófica sem deixar de insistir na necessidade de uma pesquisa de
campo para a sociologia crítica. É por isso, então, que se deve buscar, nessa obra, a Dialética
negativa, as pistas para a pesquisa empírica.
É o que se procura fazer em seguida, ainda que, ciente das limitações de compreensão
impostas por uma obra filosófica da maturidade, se necessite utilizar de outras obras nas quais
Adorno busca tornar compreensíveis as suas ideias para alguma plateia ou da referência a
outros autores que já se dedicaram especificamente à obra.
2.2.3 A Dialética negativa como o fundamento para a pesquisa empírica
Em face da possibilidade concreta da utopia, a dialética é a ontologia do estado falso
(ADORNO, 2009, p. 18 – grifo do autor da tese).
Não é tarefa fácil escolher o que é relevante para a apresentação, no conteúdo de uma
obra densa como a Dialética negativa, sem correr o risco de deixar o tema fragmentado. Mas,
para a finalidade desta pesquisa, e considerando a centralidade da obra dentro do seu
pensamento, esse esforço não pode ser negligenciado. O que se precisa encontrar são os
critérios para a abordagem.
Existem várias ideias que são próprias da obra, mas que por sua anterioridade histórica
no pensamento de Adorno foram tratadas em outros momentos deste capítulo – como foi o
caso de conceitos como os de campo de força e constelação. Também existe o contraponto
entre o pensamento de Adorno com autores, como Heidegger e os fenomenólogos, o que
também já foi feito – ainda que sumariamente, uma vez que essa discussão é considerada
102
muito mais um acerto de contas entre Adorno e a filosofia do que propriamente algo que
tenha relevância na abordagem empírica do objeto social.
Para se ganhar em concisão sem perder em conteúdo, decidiu-se utilizar aqui as aulas
que o próprio Adorno ministrou sobre o tema em 1965 (ADORNO, 2001b; 2006; 2008a),
além dos tópicos apresentados na introdução e na parte II da Dialética negativa (conceitos e
categorias), sem deixar de considerar as escolhas de tópicos feitas por autores que são
considerados referência na obra em nosso meio – como Nobre (1998) e Tiburi (2005).
Também foram de fundamental importância as orientações de aula do Prof. Dr. Eduardo
Silva, muitas das quais podem ser encontradas em sua tese de doutoramento (SILVA, 2006).
A seguir, serão apresentados os tópicos identificados como os mais relevantes para a
compreensão da Dialética negativa de Adorno. Em primeiro lugar, buscar-se-á a justificativa
de Adorno para a sua dialética como negativa – no contraponto com a dialética hegeliana, que
ele chama de positiva. Após, serão apresentadas algumas das categorias fundamentais para a
compreensão da Dialética negativa.
Para a apresentação das categorias, e em congruência com o pensamento de Adorno,
decidiu-se apresentá-las como fazendo parte de constelações ou grupos de categorias que,
apesar de possuírem cada uma um sentido em si mesmas, se relacionam entre si com o que se
poderia chamar de um sentido adicional.
Não é pretensão deste trabalho esgotar aqui o assunto de uma obra da complexidade da
Dialética negativa, mas tão somente registrar o que se considerou fundamental para a
compreensão do pensamento de Adorno naquilo que se constitui como fundamento tanto no
desenho da pesquisa no qual se baseou esta tese quanto na interpretação dos achados obtidos
na investigação. Esses aspectos, segundo o entendimento do autor, diferenciam uma pesquisa
baseada na dialética negativa de uma pesquisa que utiliza a metodologia habitual de
investigação positivista – ainda que se considere crítica.
2.2.3.1 A justificativa da terminologia “dialética negativa”
De acordo com Adorno (2008a), dialética não é um construto arbitrário ou uma
posição filosófica, mas um tipo de pensamento. É o oposto de um mero ponto de vista
filosófico – o que não é suficiente para torná-lo um ponto de vista. O termo grego coincidia
mais ou menos com epistemologia e lógica, mas era mais geral.
103
No sentido de contradição, a dialética existe em duas versões: a idealista, que pode ser
vista como o apogeu da especulação idealista, a partir de Kant, mas da qual Hegel é o
exemplo mais acabado; e a materialista, da qual Marx é o melhor exemplo.
Considerando a forma dialética de pensar e, nela, o componente de contradição, não
teria toda dialética um elemento de negatividade, sendo o termo “negativa” uma tautologia?
Adorno (2008a) considera que não, chamando a atenção para o fato de que a dialética
hegeliana, pela forma como conduz os seus procedimentos, pode ser considerada positiva.
Isso porque Hegel liga o conceito de negatividade à subjetividade – podendo sua filosofia ser
chamada de idealismo objetivo.
A positividade de sua dialética está expressa na ideia de que a negação de uma
negação deve originar algo de positivo, o que, numa representação gráfica como na
aritmética, seria algo como (-) x (-) = (+). Adorno (2008a) lembra que, em sua Filosofia do
direito, Hegel defende realidades positivas contra a negatividade de apenas pensar
subjetivamente, dependendo apenas de si (daí o direito positivo).
Um dos aspectos relevantes da filosofia de Hegel é a sua natureza dinâmica – suas
categorias surgiram historicamente e por isso estão sujeitas a mudanças. A despeito disso, seu
aparato conceitual tem muito de imutável, de constante – o que se volta contra as intenções de
sua própria filosofia.
Por um lado, Hegel destruiu a ilusão kantiana do ser-em-si, mostrando que o sujeito é
um aspecto da objetividade social, inferindo disso o fato de que, lidando com a subjetividade
abstrata, os aspectos sociais se mostram mais fortes e prevalecem na sua objetividade. Mas a
crítica a Hegel, que justifica a formulação de uma dialética negativa, começa com a pergunta:
é essa objetividade realmente o fator maior? Ela não permaneceria – como o que Hegel
mesmo reprovava – pura externalidade, um coletivo coercitivo? E isso também não
significaria uma regressão do sujeito, que só recentemente na história humana ganhou sua
liberdade, à custa de muito esforço e dor?
Esse mecanismo prende a subjetividade e o pensamento numa objetividade que se
opõe a eles. Devido a essa dependência do que se poderia chamar de lógica dos fatos, que leva
a um triunfo da objetividade, não é óbvio o porquê de tal mecanismo significar que essa
objetividade sempre deveria estar com a razão.
Por tudo isso, Adorno (2008a) não admite que a negação da negação seja
automaticamente positiva. Ele percebe que o que predomina no grande público é um ideal de
positividade abstrata, que existe a convicção de que o positivo é positivo em si mesmo, sem
que ninguém se pergunte: o que é ser visto como positivo? Ninguém também se pergunta se é
104
uma falácia considerar o existente como positivo – no sentido do que existe, adornado (que
seja perdoado o chiste) pelos melhores, maiores e aprováveis atributos.
O termo positivo possui hoje essa ambivalência linguística: significa o que é dado,
postulado, está lá – como ao se referir ao positivismo como a doutrina que se atém aos fatos.
Mas também se refere ao bom, ao ideal, ao aprovável – o que faz muita gente considerar
desejável uma “crítica positiva”. Ou seja, uma das funções do termo “dialética negativa” é o
desejo mesmo de se afastar da fetichização do positivo. Em termos dialéticos, pode-se dizer
que o que aparece como positivo é essencialmente o negativo ou a coisa a ser criticada. E esse
é o motivo essencial para a concepção e nomenclatura da Dialética negativa.
O conceito de positividade é fruto do pensamento moderno, que torna a crítica suspeita
– a despeito de seu conteúdo. Mas é falso e superficial tanto restringir um fenômeno às
atitudes dominantes de positividade, como em relação à negatividade. Os conceitos, no
pensamento moderno não são mais medidos de acordo com seu conteúdo, mas são isolados,
de modo a se poder considerar as atitudes em relação a eles, sem se preocupar com o
conteúdo de verdade daquilo a que eles se referem. Daí o problema de posições críticas
contra-hegemônicas, que propõem como adequadas a ruptura com o atual, criando apenas
uma nova positividade – como pode ser encontrado em alguns autores de orientação marxista.
Quando a mente não possui significados predeterminados inquestionáveis e
substanciais, ela tende a compensar fetichizando conceitos que ela produz, transformando em
absoluto o que ela criou. O valor do negativo está na resistência a esses hábitos de
pensamento, pois é a esse ter algo fixo, dado e inquestionável que o pensamento deve resistir.
A negatividade, nesse sentido, converge para o que Hegel chamava de negação determinada –
ela confronta conceitos com seus objetos e objetos com seus conceitos.
Ou seja, a negatividade em si é sem sentido, uma vez que se em si um conceito que só
existe no contexto, para outros se transforma em seu oposto, uma má positividade – o que é
indefensável. O conceito de positivo não tem validade em si, mas em relação a algo que é
afirmado ou negado. O que se vê é que, devido aos valores emocionais que ele adquiriu, ele é
retirado do âmbito no qual tem validade e é transformado em algo independente e absoluto,
em medida de todas as coisas. Essa é uma tendência que vem da consciência reificada, de
deixar paralisados todos os conceitos do mundo e fetichizá-los (ADORNO, 2008a).
Nos termos de Adorno (2008a), o segredo da dialética hegeliana é que todas as
negações que contém devem culminar num sentido positivo, em sua proposição dialética de
que “o real é racional”. É esse o ponto que parece a Adorno indefensável: o fato de se poder
105
reconhecer a totalidade como racional, na irracionalidade de seus componentes constitutivos;
o fato de se poder declarar a totalidade como significativa – ou cheia de sentido.
Para Adorno (2008a), a sugestão positiva de que o real é racional (ou seja, que tem
sentido) não é admissível. Essa é uma negação de Hegel, que ficou expressa em um de seus
aforismos mais conhecidos. “O todo é o não verdadeiro” (ADORNO, 1993b, p. 42).
O termo dialética negativa tem, assim, a finalidade de clamar pelo contrário do que
propõe a dialética hegeliana. Para Adorno (2008a), os termos teoria crítica e dialética
negativa teriam o mesmo sentido. Para ser mais exato, a diferença entre os dois estaria no fato
de que o termo teoria crítica apela para lado subjetivo do pensamento – a teoria –, enquanto a
dialética negativa se refere não apenas ao pensamento (o processo), mas à realidade (a coisa)
que é por ele afetada. Daí se constituir em um arcabouço conceitual mais adequado à pesquisa
empírica.
Sobre a síntese, ideia à qual Adorno (2008a) resiste, ele observa que não é um termo
muito encontrado em Hegel. Mesmo se considerando a tríade dialética em Hegel (tese-
antítese-síntese), pode-se perceber que a síntese tende a tomar a forma da tese, uma vez
postulada, reafirmando-se dentro da antítese. Encontrada a identidade dos dois conceitos
contraditórios – pelo menos, a que é defendida na antítese –, segue-se uma reflexão, o que os
coloca como idênticos.
Mas é claro que eles também não são idênticos. A negação da negação é o
reconhecimento de que, juntando os dois termos opostos, o pesquisador, de um lado, se curva
a uma necessidade implícita neles e, de outro, comete contra eles uma violência que tem que
ser retificada. Se ela pode ser caracterizada como um pensamento que se movimenta para
frente, também é um movimento para trás, que incorpora aquilo do que quer se distanciar. Se
a síntese é a expressão da não identidade da tese e da antítese, implica que ela não é muito
diferente do conceito de dialética negativa de Adorno. Só que essa pequena diferença tem
grandes implicações em larga escala (ADORNO, 2008a).
A partir dessa defesa de uma dialética que, diferentemente da hegeliana, é negativa,
pode-se passar a algumas das categorias que estão nela contidas. As categorias que Adorno
apresenta não estão apresentadas de forma sistemática, estanques ou em pares dialéticos,
como pretendem alguns autores – inclusive no campo da administração, buscando
operacionalizar os conceitos de Adorno em pesquisas empíricas, como no exemplo, no Brasil,
de Batista-dos-Santos, Alloufa e Nepomuceno (2010).
Talvez fosse mais apropriado se falar em constelações de categorias e de conceitos.
Nas palavras de Adorno (2006):
106
O fato de que devemos utilizar toda uma série de definições – a ideia de liberdade
em Hegel ou a tese de Marx da luta entre as forças de produção e das relações de
produção são exemplos óbvios – mostra que a história é uma constelação que só
pode ser apreendida com a ajuda de uma teoria filosófica elaborada, e não através da
sua redução a conceitos individuais ou a pares de conceitos (ADORNO, 2006, p.
87).
Por razões didáticas ou em um texto cujo objetivo é didático, é preciso, muitas vezes,
cometer certa violência ao conjunto para conseguir abordar os conceitos de modo
compreensivo. Entretanto, para não cometer uma violência muito grande, aqui se buscará
abordá-los em forma de constelações de conceitos.
A primeira constelação escolhida relaciona-se justamente à tríade da lógica hegeliana.
Para essa abordagem, o conceito equivale ao entendimento e a contradição ao racionalmente
negativo. Mesmo sabendo que em Hegel a especulação é o que leva à síntese, esta será aqui
abordada no sentido que foi conferido por Adorno.
2.2.3.2 O conceito, a contradição e o especulativo
A filosofia tradicional seria impensável sem que se considerasse o conceito como
imutável e a sua capacidade de definir a verdade do mutável. O que a dialética negativa
pretende é se libertar dessa necessidade.
Para Adorno, todo primeiro é, na verdade, posterior, por já ter sido pensado. Adorno
sabe que o pensamento só se estrutura e se organiza no que é pensado. Este, entretanto, não
deve se confundir com o real, que não deve ser reduzido ao pensável (TIBURI, 2005). Mas
Adorno (2009, p. 13 – grifo nosso) sabe que “pensar significa identificar” e que a
“contradição é o não idêntico sob o aspecto da identidade”. A inter-relação que existe entre os
conceitos não deve ser compreendida como ligação de um conceito ao outro, mas como uma
mediação que ocorre dentro dos conceitos: “[...] o exercício de se fazer uma ponte (entre duas
partes) não cria uma ligação entre as duas partes, mas deve estabelecer uma mediação por
dentro delas mesmas” (ADORNO, 2006, p. 133). Daí não ser possível abordar um desses
aspectos sem considerar o outro – de onde se iniciar pelo conceito de mediação.
A primeira noção que se deve ter é que:
A rigor não existe nada entre o céu e a terra – ou propriamente na terra – que não
seja mediado pela sociedade – até mesmo o seu contrário aparentemente extremo, a
natureza e o conceito de natureza, encontra-se mediado pela necessidade de domínio
da natureza e, por essa via, pela necessidade social (ADORNO, 2008c, p. 169).
107
Para o próprio conceito, a mediação é essencial: o conceito é a mediação do imediato
– uma ideia que só faz sentido em relação ao que é contraposto ao conceito, o imediato. É o
saber sobre o conceito e sobre os limites de tal saber. O conceito de imediato designa o que
não pode ser retirado do conceito (esse entendido nos termos de Hegel). A mediação não
significa absorver tudo nela, mas postula que aquilo que é mediado é algo que não se deixa
absorver; enquanto o imediato representa um momento que não precisa de conhecimento
(mediação) (ADORNO, 2009).
A ideia é que a mediação entre o que é e o que aparenta, entre conceito da coisa e a
coisa, não é, como propõe a fenomenologia, a subjetividade no objeto, mas se dá por meio da
objetividade. Como tanto na fenomenologia de Husserl como no idealismo todas as
mediações acontecem pelo lado do sujeito, eles não conseguem conceber o momento da
objetividade no conceito senão como algo imediato (ADORNO, 2009).
O que medeia os fatos não deve ser um mecanismo subjetivo que previamente os
concebe e forma, mas a objetividade que existe por trás daquilo que o indivíduo pode
experimentar. Aquilo que se conhece como julgamento subjetivo na verdade tem a ver com o
senso comum. É a supremacia do que é objetivado entre os sujeitos – o mesmo que os impede
de se tornarem sujeitos – o que inviabiliza o conhecimento do objetivo (ADORNO, 2009).
Sendo o conceito a mediação do imediato, passa-se ao conceito e dele à dialética entre
o conceito e a contradição – uma vez que o processo dialético, em Adorno, vai começar pelo
conceito (o que, em Hegel, significava iniciar pelo entendimento – como foi mostrado
anteriormente).
A) O conceito e a contradição no conceito
Definição é entendida, por Adorno (1995a), da seguinte forma:
Definir é o mesmo que capturar – objetividade, mediante o conceito fixado, algo
objetivo, não importa o que isso seja em si. Daí a resistência de sujeito e objeto se
deixarem definir (ADORNO, 1995a, p. 182).
Como pontuou Nobre (1998), na Dialética negativa Adorno (2009) se refere à
dialética como sendo a “ontologia do estado falso”. Deve-se entender o “estado falso” como o
estado de identidade entre o conceituado e o conceito. Nesse sentido, a contradição:
108
É o indício da não verdade da identidade, da dissolução sem resíduos daquilo que é
concebido no conceito. Todavia, a aparência de identidade é intrínseca ao próprio
pensamento em sua forma pura. Pensar significa identificar” (ADORNO, 2009, p.
12-13 – grifo nosso).
A identidade é uma “ilusão necessária”, recuperando uma ideia kantiana. Só que, ao
contrário de Kant (1983), que a considera “natural”, Adorno (2009) tem a ilusão não só como
não natural, mas como algo que é radicalmente histórico. Ou seja, se de um lado ela é
necessária, por outro ela é também contingente – já que histórica (NOBRE, 1998).
A contradição, ou “o indício da não verdade da identidade” (ADORNO, 2009, p. 12),
vai se ocupar com o que existe no objeto que ficou fora do conceito – o seu excedente, nos
termos propostos por Silva (2006).
A preocupação com a contradição não é nova no pensamento ocidental: vem dos
gregos a preocupação com os padrões de raciocínio, que poderiam ser transformados em leis
enunciáveis. Para isso, Aristóteles codificou os silogismos e Euclides a geometria. Mas
também os gregos já haviam identificado que, em algumas situações, a utilização correta da
lógica não livra o pensamento de contradições (HOFSTADER, 2001).
O exemplo clássico é o “Paradoxo de Epimênides”: Epimênides foi um cretense que
declarou que “todos os cretenses são mentirosos”. É uma formulação semelhante à de uma
sentença como “esta afirmação é falsa” ou a de que “eu estou mentindo nesse momento”.
Todas essas sentenças são consideradas autocontraditórias23
.
Apesar de bem conhecidos, o enfrentamento dos paradoxos dependia do
desenvolvimento do raciocínio axiomático – algo que não foi conseguido até o século XIX,
quando a descoberta de geometrias não euclidianas se constituíram num desafio à ideia de que
a Matemática estuda o mundo real. Na mesma época, os lógicos ingleses George Boole
(1815-1864) e Augustus de Morgan (1806-1871) avançavam na codificação de raciocínios
dedutivos. Em todos os seus esforços encontrava-se a orientação de deixar claro o que se
entende por “demonstração” – algo que deve ser realizado dentro de sistemas fixos de
proposições (HOFSTADER, 2001).
Concomitantemente, Cantor (1845-1918) desenvolvia a teoria dos conjuntos a qual,
pouco após seu desenvolvimento, já revelava alguns paradoxos – num momento em que a
Matemática acabava de se recuperar dos paradoxos relativos à teoria dos limites. O paradoxo
mais famoso da teoria dos conjuntos é o de Russell, que pode ser explicado da seguinte
forma: parece que a maioria dos conjuntos não era membro de si próprio (o conjunto de
23
São consideradas autocontraditórias aquelas proposições nas quais a contradição só surge quando ela se reflete
sobre si mesma.
109
professores da PUC não é um professor da PUC; o conjunto que contém apenas o Presidente
da República do Brasil não é o Presidente da República do Brasil).
De novo, o problema surge quando a proposição se inclui. São conjuntos que se pode
chamar de “relativamente comuns”. No entanto, existem alguns conjuntos que podem se
incluir: o conjunto de todos os conjuntos; o conjunto de tudo o que não é o Presidente da
República do Brasil, etc. São os que se denominam “autodevoradores”. Portanto, pode-se
concluir que existem apenas dois tipos: o conjunto de conjuntos “relativamente comuns” e o
conjunto de conjuntos “autodevoradores”.
Nesse caso, o conjunto de conjuntos “relativamente comuns” seria “relativamente
comum” ou “autodevorador”? Nem um, nem outro – ambas as escolhas levam a um paradoxo
(HOFSTADER, 2001).
Uma variante do paradoxo de Russell, o “paradoxo de Grelling”, é composta de
adjetivos: os adjetivos em duas categorias, os que são autodescritivos – como “pentassílabo”,
“esquisitezíssimo”, usando os exemplos de Hofstader (2001) – e os que não são – ou os “não
autodescritivos” como “dissílabo” ou “esquisito”, para se estar na mesma categoria de
adjetivos. Mas, como a palavra “não autodescritivo” é um adjetivo, a que categoria ele
pertence? Novo paradoxo...
Para tentar banir da lógica, da teoria dos conjuntos e da teoria dos números as
autorreferências – as que levam aos paradoxos –, Bertrand Russell e Alfred North Whitehead
desenvolvem a Principia mathematica, publicada entre 1910 e 1913. A ideia – de forma aqui
muito superficial – foi desenvolver uma hierarquia na linguagem, uma metalinguagem em que
a referência em cada nível da linguagem só poderia ser feita em um nível específico.
Assim, se se considerar em Epimênides que “todo cretense é mentiroso” e que
“Epimênides é um cretense”, uma das sentenças deve estar em um nível hierárquico superior
ao outro para fazer sentido. Como, nesse caso, isso não é possível, as duas sentenças são
consideradas “sem sentido” – ou elas não podem ser formuladas em um sistema baseado em
uma hierarquia de linguagens. Tem-se aqui então o objetivo da Principia mathematica:
derivar a Matemática da lógica e, portanto, sem contradições (HOFSTADER, 2001).
Mas, para se ter certeza de ter atingido os objetivos, seria preciso demonstrar que toda
a Matemática estava contida dentro dos métodos delineados por Russell e Whitehead (ou seja,
que eram completos) e que eles eram autocoerentes (ou livres de contradições)
(HOFSTADER, 2001).
Mas, como explicar um raciocínio usando o mesmo raciocínio?
110
O desafio foi enfrentado pelo matemático Kurt Gödel. Gödel percebeu que uma
afirmação da teoria dos números poderia se referir a uma afirmação da teoria dos números –
ou até à própria teoria dos números. Em seu trabalho “sobre proposições formalmente
indecidíveis em Principia Mathematica e sistemas correlatos”, desenvolveu em sua
proposição IV o que ficou conhecido como Teorema de Gödel: “a cada classe k, coerente com
w e recorrente, de fórmulas, correspondem signos de classe r recorrentes, de tal modo que
nem v Gen r nem Neg (v Gen r) pertencem a Flg (k) (sendo v a variável livre de r)”. Ou, em
uma paráfrase realizada por Hofstader (2001) para facilitar a compreensão por quem não é
matemático, “todas as formulações axiomáticas consistentes da teoria dos números incluem
proposições indecidíveis”; ou, ainda, dito de outra forma: “essa afirmação da teoria dos
números não tem qualquer demonstração no sistema de Principia Mathematica” – sendo o
Principia mathematica o sistema fixo de raciocínio ao qual a palavra “demonstração” se
refere. O que Gödel revela é que “a demonstrabilidade é uma noção mais fraca que a verdade,
qualquer que seja o sistema axiomático envolvido” (HOFSTADER, 2001, p. 18-20).
Com esses exemplos, pode-se avaliar que mesmo a lógica linear, que busca a
eliminação das contradições (como já havia sido discutido anteriormente, no debate entre
Adorno e Popper), que é utilizada como fundamento para o raciocínio no positivismo, tem
dificuldade na tentativa de atingir o objetivo de eliminar todas as contradições no pensamento
científico.
Saindo da lógica matemática e entrando no campo da filosofia analítica, essa questão
foi abordada por vários autores, entre os quais se inclui Habermas (1987b), no que foi
denominado de autocontradição performativa ou pragmática. Não cabe aqui uma discussão
pormenorizada do tema, mas interessa saber qual seria a solução para uma crítica que se inclui
sem cair em uma contradição performativa.
Neste caso, a proposta – por exemplo, para sair de um paradoxo como o de
Epimênides, de que “todos os cretenses são mentirosos”, dito por um cretense – está na
distinção de diversos níveis lógicos ou cognitivos, como foi feito no Principia Mathematica:
o nível da declaração e o nível da metalinguagem ou da declaração que se refere à declaração.
Esse princípio é reconhecido por Adorno na Dialética negativa, criticando o argumento
utilizado por quem confunde a negação universal de um princípio com sua elevação à
afirmação, sem levar em consideração o lugar que cabe a ambos (ADORNO, 2009). Mas
como aceitar a contradição ou incorporá-la sem buscar eliminá-la?
A dialética de Hegel é uma forma de enfrentar as contradições. Tem mais a ver com a
forma, como Hegel mesmo expressou, que o conceito se move em direção ao seu oposto – o
111
não conceitual. Mas essa é uma contradição no conceito, e não entre conceitos. Adorno
propõe como termo alternativo a “lógica da desintegração” (que é o nome do tema do 1º
trabalho individual realizado por Adorno).
A natureza contraditória do conceito, como relatado até aqui, pode ser vista então da
seguinte forma: o conceito entra em contradição com o que ele se refere; ele é menos que o
que refere – visto que é um conjunto de características do que define, mas não todas – e mais
do que refere – e por ser a soma de características pode indicar em casos individuais alguma
característica que o indivíduo não tem.
Para o pensamento dialético, para o qual a contradição é central, o que é necessário é a
estrutura do conceito e sua relação com a coisa que ele conceitua. Uma sociedade
antagonística – como é visto pela teoria crítica – não é uma sociedade com contradições ou a
despeito de suas contradições, mas uma sociedade devido às suas contradições.
Adorno (2008a) não se diz tão malicioso a ponto de odiar todas as definições e rejeitá-
las. Ele apenas acredita que as definições estão mais bem colocadas no movimento do
pensamento do que como uma introdução a ele. A definição que ele busca quer usar o
conceito para alcançar além do conceito – o que quer dizer que, mesmo depois de renunciar
ao idealismo, a filosofia não pode se ver livre da especulação.
Esse, então, é o próximo tema a ser abordado.
B) O especulativo e a intuição em Adorno
O especulativo, em Adorno (2008a), difere do especulativo em Hegel, que se relaciona
com a tese da identidade. Ele pode ser entendido, de forma bem mais simples, como algo mais
próximo do senso comum do termo: a ideia de que se deve continuar pensando de forma
motivada. Não cegamente, mas de forma motivada, consistente, ultrapassando o ponto no qual
o pensamento é suportado pelos fatos.
Para Adorno (2008a), existe o risco de pensar que falar de especulação em filosofia
seria “contrabandear pela porta dos fundos o idealismo que foi ejetado pela porta da frente”
(ADORNO, 2008a, p. 95). Entretanto, mesmo um pensador como Marx, que representou o
extremo oposto do idealismo, não podia deixar de ser especulativo. Aliás, positivistas e
críticos habituais de Marx o atacam justamente como um pensador especulativo ou até mesmo
como um metafísico.
Existem elementos especulativos em Marx a partir dos quais se pode ver claramente o
que se quer dizer quando se fala que uma filosofia que é não idealista em princípio pode não
dispensar o elemento de especulação (ADORNO, 2008a). Por exemplo, Marx mantém a
112
distinção entre essência e aparência, que é especulativa, uma vez que, por definição, essência
não é um fato, algo que se possa tocar, mas algo que transcende todos os fatos.
A ideia de natureza objetiva do processo social total e da totalidade que envolve toda a
sociedade também não é imediatamente dada. E a ideia de um processo social objetivo que
tem prioridade sobre qualquer sujeito, de uma totalidade que compreende não apenas todos os
seres humanos, mas todos os atos sociais individuais, é uma premissa implícita em toda a
filosofia marxiana. Entretanto, não é um dado imediato que não seja possível se mover de
dados imediatos para esses conceitos se referindo a eles ou abstraindo deles. Ainda assim,
esses conceitos em Marx têm funções reais. Com essas observações, o que Adorno (2008a)
pretende é chamar a atenção para o quanto elementos especulativos estão entranhados em uma
filosofia cujas intenções básicas são materialistas.
Mais do que um idealismo, Adorno (2008a, p. 96) fala de uma metafísica em Marx – a
“metafísica das forças de produção”. Essa é uma ideia que significa que Marx atribui caráter
absoluto às energias produtivas dos seres humanos e à sua extensão à tecnologia, o que é
congruente com a ideia de espírito criativo e com o conceito kantiano de “apercepção
original”. Mas não somente Marx: uma metafísica pode ser vista também na proposição de
Engels de que “a liberdade se refere a fazer conscientemente o que é necessário”, o que só
tem sentido se o que se entende por necessário, o “espírito do mundo”, o desenvolvimento das
forças de produção, for um a priori (ADORNO, 2008a, p.97).
A especulação, em Adorno (2008a), está ligada à ideia de “experiência intelectual”.
Aqui, o conceito de experiência contém um elemento de tendência empiricista – apesar de ser
necessário ficar claro que, em Adorno (2008a), o conceito de experiência intelectual está
muito longe do conceito trivial de experiência. Pois o conceito de dado, que é canônico para a
filosofia empiricista, baseado na experiência sensível (dado sensível) não tem validade para a
experiência intelectual ou a experiência de algo que é intelectualmente mediado.
O conceito de experiência intelectual sempre contém a possibilidade do que se pode
chamar de espiritualização do mundo (ADORNO, 2008a). Trata-se de um modo reflexivo de
comportamento, que é possível somente na forma de um processo de sublimação levada tão
longe quanto possível, ou seja, não baseada em fatos brutos, mas que coloca os fatos em seu
contexto e em seu significado próprio.
Tendo experiências intelectuais que vão além da mera experiência sensível imediata,
fica-se tentado a transformar o objeto de experiência em algo espiritual e a justificá-lo. O tipo
de experiência intelectual esperada pela dialética negativa, concebida como autocrítica e
autorreflexiva, deve ser particularmente crítica nesse ponto – o que quer dizer que deve estar
113
alerta para corrigir tendências a espiritualizar seus objetos, tendência que acompanha sua
própria metodologia, como foi apresentado no capítulo sobre Adorno e pesquisa empírica.
A questão é que os conceitos especulativos estão sujeitos à falibilidade. Quando se
busca elementos que não se possui a priori e sobre os quais o pensamento não tem poder
autorizado, estamos na esfera do incontrolado e sob o tabu do conceitual. A razão
especulativa – aquela que vai além da ordem conceitual do dado positivo, já apropriado –
necessariamente deve possuir um elemento irracional que agride o conhecimento seguro que
ele já possui (ADORNO, 2008a).
Mas, para Adorno (2008a), não há racionalidade sem um elemento intrínseco de
irracionalidade. Ao se postular esse elemento de irracionalidade, o risco está em ele se
transformar ou em algo autônomo ou mesmo absoluto, que se degenera em ilusão e mentira.
Isso representa o que na Dialética do esclarecimento foi chamado de “elemento mimético” –
aquilo que ocorre quando as pessoas e a consciência se fazem idênticas ao que difere deles.
Seria tarefa da filosofia se apropriar, em favor do conceito, do elemento de
identificação com a coisa (o elemento mimético) e não da identificação da coisa, como
acontece habitualmente no conceito. Esse elemento já está presente, não conceitualmente, na
instância mimética que foi herdada pela arte, o que traz o potencial fazer do elemento estético
algo essencial, e não apenas algo acidental, para a compreensão do real (ADORNO, 2008a).
É interessante notar como o tabu colocado no elemento mimético tende a se estender à
intuição – a ponto de, segundo o relato de uma experiência que teve Adorno (2008a), um
arquipositivista ter dito com orgulho que nunca teve uma intuição. Na comunidade científica
positivista, a intuição é vista no status de preconceito: se se tem uma intuição a respeito de
algo e não se consegue manter a mente aberta para investigá-lo, pode-se considerar que já se
sabe de antemão aquilo que se quer investigar.
Existe uma polarização estéril entre, de um lado, o método de dedução lógica – do
qual nada mais se retira do que já estava no começo – e, de outro lado, certo culto à intuição
por ela mesma, que a desqualifica, uma vez que as intuições envolvidas não são adequadas
para as tarefas que lhes foram conferidas (ADORNO, 2008a).
Deve-se ter claro que intuições podem não passar de um elemento na confusão do
pensamento e não algo merecedor de atenção particular. Como saber se ela será merecedora
de atenção? É pelo fato de que elas devem se manter de pé sozinhas. Quando se tem uma
intuição, deve-se investigá-la cuidadosamente para ver se ela se aplica ou não ao que se
intenta (ADORNO, 2008a).
114
Associações não são a verdadeira intuição seminal, mas justamente o contrário, pois,
aderindo ao problema, a intuição se aparta do problema em vez de colocá-lo todo à luz. Pode-
se dizer que, se um modo de pensar não pode ser dissuadido de usar a intuição como um de
seus componentes, ele então deve formular uma crítica rigorosa à intuição – que não a deve
proscrever, mas se certificar de que sua precisão e relevância podem ser controladas
(ADORNO, 2008a).
Para Adorno (2008a), a eliminação da intuição pode privar o pensamento das
qualidades que o qualificam como pensamento em primeiro lugar. Daí a importância de não
se considerar esse elemento de intuição como algo qualitativamente diferente de outros modos
de cognição. O insight que ilumina o pensamento, que às vezes parece um relâmpago, não
deveria ser comparado a um raio que vem do alto, mas a um rio ou fluxo de água que flui no
subsolo por longas distâncias e que, de repente, vem à superfície e que fica lá, dando a ilusão
de ter sido repentino porque nós não sabemos onde ele estava. Dito de outra forma, seriam
cristalizações de um conhecimento inconsciente.
Esse primeiro conjunto de objetos – o conceito e a especulação que nos permitem
encontrar a contradição no conceito – também pode ser abordado sob a ótica das relações
dialéticas entre o sujeito e o objeto e entre o particular e o universal.
Daí, então, se passa ao que se poderia considerar como sendo uma outra constelação.
2.2.3.3 As dialéticas entre sujeito-objeto e particular-universal, e o primado do objeto
Essas categorias serão abordadas aqui reunidas sob um mesmo subtítulo, na ideia de
que, mesmo sabendo que cada uma delas tem vida própria, elas possuem uma inter-relação
que permite tratá-las em um conjunto que, por sua vez, tem sentido.
O que as categorias aqui reunidas possuem em comum de mais significativo é a
centralidade que desfrutam no pensamento de Adorno. O capítulo Sobre sujeito e objeto da
obra Palavras e sinais: modelos críticos 2 (ADORNO, 1995a) é, inclusive, considerado por
muitos como uma apresentação da ideia central da Dialética negativa24
.
O fio condutor para a abordagem ou de mediação entre essas categorias pode ser
identificado na discussão sobre o objeto, já que, de acordo com Jay (1988), a filosofia de
Adorno foi essencialmente uma “filosofia da consciência”, voltada para o problema de como
os sujeitos se relacionam com os objetos no mundo atual e como poderiam vir a se relacionar
24
Anotações de aula do Prof. Dr. Eduardo Neves Silva, no curso sobre a Dialética negativa, ministrado no
segundo semestre de 2011 no programa de pós-graduação em Filosofia da UFMG.
115
em um outro mundo futuro possível – ideia essa que pode explicar, inclusive, a razão de seu
desdém em relação ao positivismo.
Passa-se então ao primeiro tema.
A) Sobre as dialéticas entre o sujeito e o objeto e o primado do objeto
A separação entre sujeito e objeto é real e aparente: verdadeira, porque no domínio
do conhecimento da separação real consegue sempre expressar o cindido da
condição humana, algo que surgiu pela força; falsa, porque a separação que veio a
ocorrer não pode ser hipostasiada nem transformada em invariante (ADORNO,
1995a, p. 182).
Há um trecho na Mínima moralia de Adorno (1993a) interessante para a introdução da
dialética entre o sujeito e objeto. É como se segue:
O que a verdade objetivamente é permanece algo bastante difícil de determinar [...]
Para tanto, há critérios que de início são suficientes. Um dos mais confiáveis é
objetar a alguém que uma certa afirmação é “subjetiva demais”. Se se faz valer isso,
ainda mais com aquela indignação onde ecoa a harmonia enfurecida de todas as
pessoas razoáveis, então se tem motivo para ficar satisfeito consigo mesmo por
alguns segundos. Os conceitos de subjetivo e objetivo foram completamente
invertidos. O que se chama de “objetivo” é o lado não controverso pelo qual
aparecem as coisas, seu clichê aceito inquestionavelmente, a fachada composta de
dados classificados, em suma: o que é subjetivo; e o que as pessoas chamam de
“subjetivo” é o que rompe com tudo isso, o que entra na experiência específica de
uma coisa, dispensa os juízos convencionados sobre isso, colocando a relação com o
objeto no lugar da resolução majoritária daqueles que sequer o contemplam, quanto
menos o pensam, em suma: o que é objetivo (ADORNO, 1993a, p. 59-60).
A discussão de Adorno com o idealismo e a fenomenologia diz respeito a essa questão
da separação entre sujeito e objeto. Adorno (1995a) reconhece que não há como pensá-los
senão como separados, mas a falsidade dessa separação se manifesta no fato de que ambos se
medeiam: o objeto é mediado pelo sujeito, mas também o sujeito é mediado pelo objeto.
No idealismo o sujeito (transcendental) ou constrói o mundo objetivo a partir de um
material não qualificado – como foi visto em Kant – ou simplesmente o engendra – como em
Fichte. Este é um sujeito que não passa de uma abstração do sujeito singular vivente. Se
considerado como homo economicus, cujas relações têm seu modelo na troca (de
mercadorias), esse sujeito se aproxima do sujeito transcendental (ADORNO, 1995a).
O sujeito empírico, nesse sentido, é como algo ainda não existente – ele se constitui.
Assim, o sujeito, que seria a origem dos objetos, fica objetificado – como propõe Kant para o
sujeito transcendental. O indivíduo particular deve ao universal a possibilidade de sua
existência – uma vez que ele é um sujeito social, o que é uma condição universal (ADORNO,
116
1995a). A confrontação entre o sujeito e o objeto no realismo ingênuo, como pode ser visto no
positivismo, é historicamente necessária e, portanto, não vai desaparecer num ato de vontade.
O primado do sujeito, dessa forma, acontece atendendo ao interesse subjetivo da liberdade,
algo necessário na visão de mundo da burguesia porque constitutivo desta.
A primazia do objeto significa que o sujeito é objeto (pois é socialmente constituído),
mas o será num sentido distinto do que se entende por objeto, pois, só podendo ser conhecido
pela consciência, ele também é sujeito – a mediação, que é a consciência, se refere ao
mediado. A “primazia do objeto”, nesse sentido, é em relação ao sujeito, comprovada pelo
fato de que o objeto altera qualitativamente as opiniões da consciência reificada (ADORNO,
1995a).
Mesmo a ciência da natureza, quando olha “por cima do muro que ela mesma ergueu,
vislumbra uma pontinha do que não está de acordo com suas decantadas categorias”
(ADORNO, 1995a, p. 190), com um potencial para abalar o subjetivismo. Mas como a
primazia do objeto necessita da reflexão subjetiva, a subjetividade conserva aqui o seu
momento – ao contrário do que ocorre no materialismo primitivo.
De acordo com Maar (2006), com a tese da primazia do objeto Adorno pretende
substituir a tese idealista da supremacia do sujeito para a constituição do objeto. Para Adorno
e Horkheimer (1985), os pressupostos idealistas apresentariam um nexo com a reificação, a
partir do conceito, o que traria como consequência o afastamento do sujeito do conhecimento
do objeto. Enquanto a tese do primado do sujeito encontra seu limite no sujeito
transcendental, a do primado do objeto busca reabilitar a objetividade do sujeito empírico,
real, possibilitando a esse sujeito uma apreensão mais aprofundada do objeto (MAAR, 2006).
Considerando a primazia do objeto, se o que se deseja é alcançá-lo, as suas
determinações, ou qualidades subjetivas, não devem ser eliminadas: se o sujeito tem um
núcleo de objeto, as qualidade subjetivas do objeto também constituem um momento do
objetivo – o objeto só é algo enquanto determinado (pelo sujeito). Um objeto supostamente
puro ou sem acréscimos do pensamento ou da intuição é reflexo de subjetividade abstrata
(ADORNO, 1995a).
Para a fenomenologia, nada se pode saber, a não ser por intermédio do sujeito
cognoscente. Mas a subjetividade deve ser entendida como a configuração do objeto e a ilusão
como o encantamento do sujeito em seu próprio fundamento de determinação. Na
fenomenologia, a ilusão é necessária, já que ela reflete o ofuscamento irresistível que, pela
falsa consciência, o sujeito produz e da qual é integrante (ADORNO, 1995a).
117
A ideia de identidade do objeto com o sujeito, como apresentado pela fenomenologia,
muda a absolutização de um sujeito para outro, aparentemente antissubjetivista e suposto
cientificamente objetivo, que é o reducionismo. Mas, se se prestar atenção, o que conta para a
objetividade de um pensamento que é orientado pelo lucro não é a coisa mesma – visto que a
coisa se perde naquilo que ela rende para alguém. Ou seja, para Adorno (1995a), o
conhecimento deveria ser orientado não pelo que é modificado nas relações de troca, mas pelo
que se oculta por trás das operações de troca. Mas, se de um lado o objeto não é algo posto
pelo sujeito, de outro também não é um resíduo desprovido de sujeito. A objetividade só pode
ser descoberta pela reflexão sobre cada nível da história e do conhecimento, sobre o que a
cada momento se considera sujeito e objeto e sobre as mediações destes, sendo
inesgotavelmente proposto (ADORNO, 1995a).
A chave para o sujeito no conhecimento é a experiência, não a forma. O esforço do
conhecimento é a violência contra o objeto: o ato se aproxima do conhecimento quando o
sujeito rasga o véu ideológico que ele tece em torno do objeto, o que só é possível quando se
confia na própria experiência. O sujeito é agente, não constituinte do objeto. Liberado do
encanto subjetivo, o objeto deveria ser o não idêntico – muito próximo da “coisa-em-si”
kantiana – apreensível a partir da autocrítica do subjetivo. A pretensão de supremacia do
sujeito sobre o objeto engana o sujeito sobre aquele: como não idêntico, o objeto é tanto mais
afastado do sujeito quanto mais o sujeito constitui o objeto. Eliminado o momento subjetivo,
o objeto se desfaria, como ocorreria também com os momentos fugazes da vida subjetiva. Ou
seja, o objeto nada é sem o sujeito (ADORNO, 1995a). Nesse processo circular de
identificação, que termina por não identificar mais do que a si mesmo, o pensamento
identificador que quer igualar todos os desiguais é próprio de um pensamento totalitário,
historicamente determinado pela ameaça que representa a natureza (ADORNO, 2009).
A unidade do que existe sob os conceitos universais é diferente do particular que foi
conceituado. O conceito é, para ele mesmo, o seu negativo, tirando o negativo que não se
deixa denominar (de imediato) e o substitui pela identidade. É aqui que a dialética atua. Como
o particular não pode ser determinado sem o universal, por meio do qual ele é identificado, ele
acaba por não ser idêntico a si mesmo (ADORNO, 2009).
A polaridade entre sujeito e objeto aparece como uma estrutura não dialética, algo que
não pode ser unificável. Mas o sujeito nunca é só sujeito, nem o objeto só objeto. Contra uma
tendência totalizante do pensamento, é preciso insistir criticamente em sua dualidade. Mas,
devido à disparidade que existe no conceito de mediação, a forma como o sujeito aborda o
objeto é diferente da forma como o objeto o faz para o sujeito – o objeto só pode ser pensado
118
por meio do sujeito, mas diante do sujeito é sempre outro. Mas a constituição do sujeito faz
dele também um objeto. E, se de um lado não é possível abstrair o objeto do sujeito (pertence
à subjetividade ser objeto), por outro é possível esvaziar o sujeito do objeto (não pertence à
objetividade ser sujeito) (ADORNO, 2009).
O que seria, então, para Adorno (2009), o “primado do objeto”?
O primado do objeto significa o progresso da diferenciação qualitativa daquilo que é
mediado em si, um momento da dialética que não se acha para além dela, mas se
articula nela. [...] O primado do objeto só é alcançável em uma reflexão subjetiva e
em uma reflexão subjetiva sobre o sujeito. [...] O primado do objeto enquanto algo
que é mediado por si mesmo não rompe a dialética do sujeito e do objeto. [...]
Apesar do primado do objeto, a coisidade do mundo também é uma aparência. [...]
Por meio da passagem para o primado do objeto, a dialética torna-se materialista. O
objeto, a expressão positiva do não idêntico, é uma máscara terminológica
(ADORNO, 2009, p. 158-160, 165).
Mas, na abordagem do objeto, a superação do dado imediato, que pode revelar o que o
objeto é – e não o que aparenta ser –, só pode se dar por um processo de interpretação.
Essa será, então, a estrela mais importante da próxima constelação.
2.2.3.4 A interpretação e sua relação com a história, com o progresso e com a liberdade
Interpretação é a crítica ao fenômeno que chegou a um ponto de paralisia; consiste
em revelar o dinamismo que está encerrado nele, de modo que o que surge como
uma segunda natureza pode ser visto como sendo história. Por outro lado, a crítica
assegura que o que evoluiu perde sua aparência como mera existência e se revela
como um produto da história. E isto é, em essência, a crítica marxista (ADORNO,
2006, p. 135).
A partir dessa definição, vê-se que Adorno relaciona a interpretação com a história – é
com base na interpretação que o que parecia natural passa a ser histórico, enquanto o que é
histórico passa a ser natural, devido à sua transitoriedade, destruindo a ilusão do imediato pela
dissolução de sua aparência de naturalidade, para que ele não se degenere em ideologia. Isso
requer, para a adequada compreensão da interpretação, que se discuta a história e sua relação
com a natureza.
Mas, como Hegel descreveu a história como sendo o “progresso na consciência da
liberdade” (HEGEL apud ADORNO, 2006, p. 138) e como, para Kant, a filosofia do
progresso da história medeia necessidade e liberdade, para complementar a compreensão
desse conjunto de categorias algo deve ser dito também a respeito do progresso e da
liberdade.
119
Para Adorno (2006), a interpretação ajuda a romper com a existência superficial; ela
promete – talvez assegure – que o que existe não é a realidade última, melhor dizendo, que o
que existe não é apenas o que ele diz ser. Interpretar significa tornar-se cônscio dos traços que
indicam para além da existência, a partir do insight na transitoriedade e nas falhas e
falibilidade da existência comum.
A fonte de satisfação da interpretação está na recusa em se manter cego pela aparência
do imediato (o entendimento, em Hegel), desvendando o processo pelo qual o que é se
transforma no que é, para que a sua aparência possa ser transcendida. E, ao mesmo tempo, ela
também se relaciona com a capacidade da mente em manter seu autocontrole, em face da
tristeza que surge ao se contemplar o passado. A fonte desse prazer vem do fato de que o
fenômeno sempre significa algo diferente do que ele realmente é (ADORNO, 2006).
Para Adorno (2006), o modelo de interpretação pode ser encontrado no entrelaçamento
que existe entre a história e a natureza. Em suas palavras:
[...] este entrelaçamento de natureza e história deve, em geral, ser um modelo para
todo procedimento interpretativo em filosofia. Pode-se quase dizer que ele fornece o
cânone que possibilita à filosofia adotar uma postura interpretativa sem cair em pura
aleatoriedade. [...] Interpretação e crítica vêm juntas em um nível profundo. Isso
explica por que eu acho uma bobagem se pedir para que primeiro se compreenda
uma coisa para só depois a criticar. Pois, como os processos de compreensão e
interpretação envolvem negação, a consciência da entrega imanente de um
fenômeno está de acordo com a visão crítica do que o mundo fez com ele25
(ADORNO, 2006, p. 133-134).
No modelo crítico apresentado pela Dialética negativa, é a negatividade da história
natural que é capaz de dizer o que o fenômeno foi, em que se transformou e o que ele será. É
ela que retém a vida possível do fenômeno em oposição à sua existência atual. Daí se
necessitar discutir um pouco mais a relação da história com a natureza.
A) A história da natureza e a natureza da história
Este foi um tema com o qual Adorno se ocupou desde o final da década de 1920. Em
palestra proferida na época, escrita, de acordo com Jay (1988), sob o impacto da obra de
Benjamin (2009), denominada A ideia de história natural, Adorno já apresenta muitos dos
pontos essenciais desenvolvidos posteriormente na Dialética negativa.
Adorno resume a relação entre história e natureza na seguinte frase:
25
“[...] do que o mundo fez com ele” – É uma referência muito citada por Adorno de um verso de Karl Kraus:
“como eu faço para encontrar o segredo de novo?/ Ele me foi roubado./ O que foi que o mundo fez conosco!/ Eu
me viro, e o lilás floresce de novo” (em tradução livre, sem a estrutura de poema, feita pelo autor desta tese).
Schrieften (1989, p. 289).
120
[...] a natureza está presente na história como algo transitório [...] De outro lado,
podemos também dizer que a história está presente na natureza como algo que
evoluiu e é transitório. [...] como esses dois aspectos estão indissoluvelmente
ligados, toda interpretação também está posta – e eu acredito que qualquer um que,
como eu, enfatiza o ponto de vista da interpretação e crítica imanentes se obriga a se
abster de fetichizar essa imanência. [...] O que significa descobrir o elemento do
devir, ou do ter sido, naquilo que evoluiu (ADORNO, 2006, p. 135).
Vem do idealismo a noção ingênua de que a história é construída em blocos. Adorno
está mais próximo da ideia apresentada por Benjamin (1994) em Sobre o conceito de história,
de que os fatos não se distribuem ao longo do tempo, como ideias eternas e imutáveis. Na
verdade, os fatos possuem um núcleo de tempo dentro deles ou eles cristalizam o tempo
dentro de si – o núcleo temporal de verdade, já apresentado anteriormente. O que é chamado
de ideia, na verdade, é esse núcleo de tempo cristalizado no fenômeno individual e que só
pode ser decodificado pela interpretação.
Visto dessa forma, pode-se dizer que a história é descontínua, representando a vida
permanentemente interrompida. Mas como esse processo é repetitivo, e porque a vida se adere
a esses fragmentos, a despeito de sua unidade superficial enganosa, a interpretação da história
(ou, a sua construção) adquire o formato de totalidade. Mas, ao mesmo tempo, a história
detecta nesses fragmentos traços de possíveis desenvolvimentos, que se mostram em oposição
ao que a totalidade parece mostrar. A consciência dessa descontinuidade vem de mãos dadas
com a dúvida crescente sobre a possibilidade de compreender a história como uma revelação
unificada da ideia (ADORNO, 2006).
Geralmente a estrutura da história baseia-se no pressuposto de que uma ideia particular
percorre a história em sua inteireza e que os fatos é que se aproximam dela. A tarefa da
filosofia dialética da história é manter em mente duas concepções, que se contrapõem a esse
pressuposto. São elas: a da história universal e a da descontinuidade. Não uma ou outra coisa,
mas as duas simultaneamente: a história é contínua na descontinuidade (ADORNO, 2006).
A maneira de retirar a história universal da ideia de história que Adorno (2006)
apresenta é incluir os fatos da história que surgem em seu curso, sem enfatizar o lado não
idêntico – pois, ao enfatizar o não idêntico, confirma-se o curso da história que ignora os
destinos individuais. Para Adorno (2006), os particulares históricos são, constantemente,
vítimas do curso da história. Mas esse curso só é possível porque esses particulares se tornam
inflexíveis, querendo ou não – o que significa que os particulares merecem a totalidade na
qual eles se encontram.
Em Hegel, a natureza entra em questão apenas como a base natural, geográfica ou
eventualmente antropológica para a história. Assim, o que se conhece como história natural
121
estaria mais ligado à composição interna dos elementos da natureza junto com os elementos
da história na história (ADORNO, 2006).
No texto Sobre o conceito de história, Benjamin (1994) aborda o progresso como algo
que não está relacionado a avanços em habilidades e conhecimentos das pessoas, mas sim no
processo histórico de progresso da humanidade como um todo. Adorno baseia-se nesse texto
para a sua discussão do progresso, nesse contexto de história como algo relevante para a
interpretação. É o que se vê na sequência.
B) O progresso e a liberdade
Esta é uma categoria que, para Adorno, tanto “engloba todo o problema da filosofia da
história como cria a ponte que a liga à teoria da liberdade” (ADORNO, 2006, p. 138).
O conceito de progresso resiste a um exame mais profundo, desfazendo-se assim que
se começa a especificar o que progride e o que não progride: quanto mais se insiste na
investigação, menos sobra do conceito. E o que Adorno (2006) observa é que quem buscar
uma definição muito precisa corre o risco de destruí-la.
A questão é que não há algo na realidade que possa cumprir a promessa inerente à
palavra progresso que, no entender de Adorno, pode ser resumida de forma muito simples
como: as pessoas não terem razão para o medo ou não haver qualquer catástrofe iminente no
horizonte. E essa definição não se enquadra no que se tem desenhado para a humanidade.
Como Adorno e Horkheimer (1985) mencionaram na Dialética do esclarecimento, o
progresso tecnológico representa, em termos mais amplos, o domínio da natureza, o que
contém em si o potencial para realizar justamente o contrário da definição de progresso de
Benjamin (1994): o potencial de o progresso inibir o progresso.
Nessa mesma obra, Adorno e Horkheimer (1985) concluem que todos os seres vivos
estão, ou parecem estar, sob o efeito de um encanto. E, discorrendo sobre a liberdade
(ADORNO, 2006), Adorno define a liberdade como a fuga desse encanto ou a construção do
caminho que nos leva para fora desse encanto – o que permite pensar na liberdade mais como
uma tendência do que como um dado de qualquer tipo. Ou, dizendo de outra forma, a
liberdade não existe como uma determinação positiva (no sentido hegeliano), não existe como
uma coisa, mas é algo a ser criado.
Deve-se compreender que a liberdade é uma categoria histórica, o que significa que
não há como se conceituá-la de modo definitivo, como queriam os filósofos, e que ela não
somente é determinada como é também modificada pela história – veja-se o que significava a
122
liberdade para os gregos ou o que significa ainda hoje para as sociedades totalitárias – o
privilégio de poucos.
O problema entre o determinismo e a liberdade não foi objeto de discussão até o
século XVII, cuja questão foi abordada principalmente por Spinoza e John Locke. Isso
significa que as questões referentes à liberdade – como a liberdade interior ou a liberdade dos
seres humanos – surgem associadas à emancipação da burguesia, interessada na liberdade
frente às restrições e dependências impostas pelo feudalismo.
Em seus esforços para dominar a natureza, a burguesia necessitou de um processo
progressivo de racionalização como instrumento de domínio. E o “desencantamento” do
mundo, tornando-o mais científico, é uma ameaça mortal à liberdade. Assim, a burguesia
chega à tendência dicotômica entre postular a liberdade – e, para isso, olhar para o passado – e
restringir a liberdade, especialmente nas demandas que ultrapassem a ordem burguesa
(ADORNO, 2006).
Para sair da concepção de liberdade, como criada pela burguesia, Adorno (2006)
avalia a liberdade a partir da ideia hegeliana de uma “segunda natureza”, conceito que
envolve a totalidade do que foi aprisionado pelos mecanismos sociais e racionais – os quais
são indistintos – de forma que nada mais se apresenta, adquirindo, assim, o aspecto de algo
natural – no sentido de dado, de existente – e que é por isso convertida na única realidade.
Nesse sentido, a liberdade não é algo que se deva compreender como sendo puramente
individual, pois isso seria uma abstração do cenário no qual nos encontramos, de seres sociais,
fora do qual a ideia de liberdade simplesmente não tem sentido. Para Adorno (2006), quanto
mais o processo de socialização se difunde sobre cada aspecto das relações humanas e
interpessoais, menos possibilidade há de se recuperar as origens históricas do processo e mais
irresistível a aparência externa do social como algo natural. E a adaptação dos seres humanos
ao que é determinado pela sociedade apenas indica ausência de liberdade.
Se o que se pretende é atualizar o conceito, Adorno (2006) sugere que o que se deve
perguntar é no que a liberdade se transformou, e no que ela deve se transformar no futuro,
uma vez que tomá-la como dado é reduzi-la a um clichê. Lidar com os conceitos que
compõem a constelação do que se compreende como liberdade significa lidar com outras
categorias que estão entrelaçadas com ela – e o panorama mais diretamente relacionado a isso
é o da negação da liberdade, como exemplificado pelos campos de concentração: se
Auschwitz acontecer de novo, é porque a liberdade não existe, no sentido de responsabilidade
moral, que só é possível em uma sociedade livre, a qual, para Adorno (2006), só pode ser
concebida como uma sociedade que não produza nazistas.
123
Em nossa sociedade, são comuns as situações nas quais alguma instituição delega a
alguém responsabilidades, sem fornecer a autoridade para impor sua vontade no exercício de
controle, no âmbito do que se é responsável. Entretanto, só se pode falar em responsabilidade
no sentido de poder exercer influência nas áreas onde se tem autoridade.
Essa é a antinomia que pode fornecer o insight para a confusão que existe no mundo
real: se a liberdade parece algo subjetivo, esse insight permite observar o quão dependente a
liberdade é de realidades objetivas. Considerando-se a forma como se compreende as relações
sociais objetivas hoje, pode-se dizer que a possibilidade de tornar a ideia de liberdade em uma
realidade é algo que deve ser buscado, e o locus onde isso deve acontecer é nas relações de
produção (ADORNO, 2006).
Daqui se tira uma pista para a interpretação dos dados obtidos na pesquisa empírica,
referente às definições apresentadas no capítulo anterior, a respeito da liderança, associado ao
que foi visto aqui, em relação à liberdade, entendida historicamente como uma criação da
sociedade burguesa: o fato de que as definições de liderança envolvem, de alguma forma, a
influência exercida por um indivíduo sobre outros, em um ambiente de relações sociais.
Mas ainda resta um aspecto a ser tratado, deixado por último por se constituir em um
método de lidar com o objeto e que, justamente por seu caráter metodológico, é tão
importante nesse âmbito, onde o que se vai realizar é uma pesquisa empírica: a crítica
imanente. Esse é o tema da próxima seção.
2.2.3.5 A crítica imanente como um método para lidar com a ideologia
Rouanet (1989) caracteriza a crítica imanente como “a interseção metodológica entre a
teoria crítica e a psicanálise, dizendo que ambas procedem segundo uma crítica imanente do
seu objeto” (ROUANET, 1989, p. 103). Sua tensão dialética se dá com a crítica que Adorno
(1962) chama de crítica transcendente, presente, por exemplo, na sociologia do conhecimento
– daí a sua crítica contundente à sociologia da cultura de Mannheim (2004) – na qual o objeto
pretensamente poderia ser visto de uma posição de fora da cultura, como se o observador
pudesse dessa posição avaliar o objeto social sem estar inserido na sociedade. Adorno chama
esse pensamento de “topológico”: um pensamento que situa o objeto, mas não capta sua
essência. Ele tem afinidade com sistemas paranoicos que evitam o contato com o objeto.
As raízes da crítica imanente estão na tradição hermenêutica de Schleiermacher e
Dilthey que tem como base, de um lado, o reconhecimento de que o crítico de uma cultura
está firmemente embebido da cultura que deseja criticar e, de outro, a admissão de que
124
justamente o fato de estar na cultura é que pode deixar o crítico em situação de vantagem para
criticar os valores dessa cultura (ADORNO, 1962). Fazer crítica imanente é tratar esses
valores como ideologias, pois essa é uma crítica que leva a sério “o princípio segundo o qual a
falsidade não reside na ideologia em si, mas em sua pretensão de corresponder à realidade”,
buscando, “através da análise da forma e do sentido desses fenômenos, a contradição existente
entre a sua ideia objetiva e a sua pretensão” (ADORNO, 1962, p. 26).
É por isso que, antes de abordar como a crítica imanente pode ser usada contra a
ideologia, será preciso primeiro abordar a ideologia, na visão de Adorno e Horkheimer.
A) A ideologia: na visão de Adorno e Horkheimer
A ideologia já não é mais um invólucro, mas é a imagem mesma, ameaçadora, do
mundo (ADORNO; HORKHEIMER, 1971, p. 204).
Seguindo os passos de Adorno e Horkheimer (1971), para explicitar o conceito de
ideologia que será operacionalizado na pesquisa, deve-se percorrer o movimento histórico do
seu desenvolvimento, a partir da ideia de uma falsa consciência.
De acordo com os autores, a condição de constituição do conceito foi posta no final do
século XVI, a partir dos manifestos antidogmáticos de Francis Bacon, em sua luta contra os
ídolos – ou preconceitos coletivos – que já naquele momento pesavam sobre a sociedade
burguesa incipiente e dos quais o “espírito” deveria se libertar. Nesse primeiro momento, o
foco estava na tutela exercida pela Igreja sobre os indivíduos. O que Bacon preconizava era
que, apesar dos homens necessitarem das palavras para se associarem, estas são atribuídas às
coisas sem um cuidado especial, o que permite que denominações inadequadas possam
confundir o intelecto.
Adorno e Horkheimer (1971) criticam essa compreensão da ideologia por duas razões.
Primeiro, pela atribuição do engano à natureza constitutiva do homem, sem considerar as
condições materiais e históricas que o determinaram, o que pode ser usado para justificar uma
dominação que tenha como fundamento essa condição – como o fez Hobbes, discípulo de
Bacon. Segundo, porque, ao se atribuir as aberrações à nomenclatura ou a uma inadequação
lógica, essas ficam ligadas aos sujeitos e à falibilidade humana, e não à condições postas pela
sociedade.
A teoria da falsa consciência de Bacon foi retomada no século XVII pelos
enciclopedistas, de modo especial Helvécio e Holbach, quando declararam que os
preconceitos atribuídos por Bacon aos homens, em geral, cumprem a função social de manter
a injustiça e dificultar a construção de uma sociedade racional. A ideologia nesse momento foi
125
retirada do conjunto da sociedade e reposicionada na distribuição estatística de certas
opiniões, que são engendradas pelos poderosos – ainda que Helvécio já tivesse colocado o
foco da análise nas necessidades objetivas da sociedade: “nossas ideias são consequência
necessária da sociedade na qual vivemos” (HELVÉCIO apud ADORNO; HORKHEIMER,
1971, p. 187).
A escola francesa chamou de ideólogos os estudiosos das ideias, sendo um dos
maiores nomes dessa escola Destutt de Tracy, um autor ligado ao empirismo filosófico. Para
de Tracy, não interessava, como a outros dessa escola, apenas as condições de validade dos
juízos. Ele buscava unir à observação dos conteúdos da consciência os fenômenos ideais, de
modo a decompô-los, como se fossem objetos das ciências naturais. O que de Tracy
procurava é a origem das ideias nos sentidos, o que as colocam a um passo da concepção da
necessidade social de todos os conteúdos da consciência (ADORNO; HORKHEIMER, 1971).
Os ideólogos buscavam organizar o mundo, a partir do domínio da razão, em proveito
dos homens, a partir do pressuposto liberal do equilíbrio harmônico das forças sociais, que se
poderia observar quando cada um age de acordo com os seus próprios interesses: ou seja,
bastaria pôr ordem à consciência para se ordenar a sociedade.
Mas essa análise não era irreconciliável com os interesses do poder – ao contrário do
que julgou Napoleão Bonaparte26
–, pois ela se fazia acompanhar de um momento técnico-
manipulativo, posteriormente explorado pelo positivismo que lhe sucedeu. Não só os
conceitos foram utilizados por quem fazia as leis, com a finalidade de garantir a ordem
desejada, como também já se percebia que o correto conhecimento das ideias poderia ser
utilizado para dominar os homens (ADORNO; HORKHEIMER, 1971).
Como os elementos conceituais da ideologia fazem parte de um momento histórico no
qual a sociedade industrial ainda não estava desenvolvida, não se colocava em dúvida, à
época, que a liberdade seria obtida com a realização da igualdade civil. Também se deve
considerar que, quando estão em ação relações de poder simples e imediatas, não se pode falar
propriamente de ideologia: esta pressupõe a experiência de uma condição social que se tornou
problemática e que é percebida como tal.
26
Napoleão, “[...] apesar de tudo o que vinculava a sua ditadura à emancipação burguesa, levantava contra os
ideólogos a mesma acusação de dissolução da sociedade que depois acompanhou, sempre, como uma sombra, a
análise social da consciência. Com uma linguagem tingida elementos tipo Rousseau, valorizava precisamente os
momentos irracionais [...]”. Mesclando “[...] o direito natural da Revolução Francesa com a posterior fisiologia
da consciência, fica claro, de qualquer modo, que pressagiava, em qualquer análise da consciência, um perigo
para o positivo, que lhe parecia melhor cuidado e garantido com o coração” (ADORNO; HORKHEIMER, 1971,
p. 191).
126
Uma teoria racional do sistema monárquico que identificasse a sua irracionalidade
soaria como crime de lesa majestade. Assim, uma crítica ideológica como a confrontação da
ideologia com sua verdade íntima só é possível se a ideologia tiver um elemento de
racionalidade, de onde a crítica possa tirar elementos. Em seu sentido estrito, a ideologia só
pode ocorrer onde as relações de poder não são transparentes, mediatas e, nesse sentido,
atenuadas (ADORNO; HORKHEIMER, 1971).
De fato, ideologia é justificação. Quando o comunismo soviético estava vivo, o
conceito de ideologia era utilizado naqueles países para atacar o pensamento rebelde,
enquanto do lado capitalista o conceito foi desgastado pelo “mercado científico”, retirando
dele todo seu conteúdo crítico e de verdade. Para teóricos como Wilfredo Pareto, qualquer
produção cultural foi transformada em ideologia – aliás, nesse sentido, levada às últimas
consequências, a teoria de ideologia em Pareto pode desaguar em mera psicologia
(ADORNO; HORKHEIMER, 1971).
Com Mannheim (2004), a ideologia se transforma em um ramo da sociologia do
conhecimento. Desta forma, toda forma de conhecimento, seja falso ou verdadeiro, deve ter
demonstrado seu condicionamento social. A falsa consciência hoje é algo cientificamente
adaptado à realidade – adaptação esta que é realizada pela indústria cultural.
Segundo os autores:
Para resumir em uma só frase a tendência imanente à ideologia da cultura de massas,
seria necessário representá-la em uma paródia do ditado “converta-se naquilo que
és”, como duplicação e justificação ultravalidadora da situação já existente, a qual
destruiria toda perspectiva de transcendência e de crítica (ADORNO;
HORKHEIMER, 1971, p. 204).
Para Adorno e Horkheimer (1971), a doutrina da ideologia sempre teve a função de
fazer o “espírito” se lembrar de sua fragilidade. Chegam a afirmar que a consciência, como
definida por Hegel, só sobrevive se assumir a crítica da ideologia. Para eles, “só se pode falar
com sensatez de ideologia quando um produto espiritual surge do processo social como algo
autônomo, substancial e dotado de legitimidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1971, p. 201).
O prognóstico que apresentam é, ao mesmo tempo, otimista e sombrio, uma vez que:
Justamente porque a ideologia e a realidade correm desta maneira uma para a outra;
porque realidade dada, à falta de outra ideologia mais convincente, se converte em
ideologia de si mesma, bastaria ao espírito um pequeno esforço para libertar-se do
véu desta aparência onipotente, e isso com quase nada. Entretanto, esse esforço
parece ser o mais difícil de todos (ADORNO; HORKHEIMER, 1971, p. 205).
127
A partir dessas observações, pode-se perceber que o conceito de ideologia pode ser
tratado de modo muito diverso, dependendo da escola ou linha de pensamento envolvida. É
por isso que se faz aqui a opção para o conceito de ideologia a ser utilizado para a
interpretação dos dados da presente pesquisa por esse aqui apresentado, definido por Adorno
e Horkheimer (1971), chamando-se a atenção para os seguintes pontos abordados:
a) A ideologia só pode ocorrer quando as relações de poder não são transparentes;
b) ideologia é justificação;
c) a ideologia refere-se a um “produto espiritual” que surge do processo social como algo
autônomo, substancial e dotado de legitimidade;
d) mais do que um véu que esconde a realidade, a ideologia se confunde com a realidade.
Passa-se, então, à crítica imanente e como ela pode ser usada contra a ideologia.
B) A crítica imanente: e o seu uso conta a ideologia
De acordo com Nobre (1998), para Adorno a crítica imanente:
Não significa a comparação do conceito com o conceituado em vista de sua unidade
(atual ou potencial), mas a não identidade de conceito e conceituado em vista da
ilusão necessária de sua identidade real. Com isso, entre outros, a “crítica imanente”
está obrigada a acolher dentro de si propriamente o elemento material do
conceituado que não pode ser absorvido pelo conceito [...] essa apropriação da ideia
de crítica imanente é, na verdade, um modelo de apropriação de conceitos
hegelianos e marxistas que alcança longe: “ideologia”, por exemplo, passa a ser
agora naturalização da ilusão necessária de identidade. E “imanência”, por sua vez,
só pode ser lida como o conjunto de “posições de identidade” que perfazem a série
completa do espírito sobre o pano de fundo da não identidade de ser e pensar, de
modo que “crítica imanente” é, de fato, uma comparação de conceito e conceituado,
mas sem que algum dos termos possa ser a medida do outro (NOBRE, 1998, p. 175).
A diferença básica entre uma crítica total e a crítica imanente está no fato de que a
total perdeu a perspectiva do que está desagregado em relação ao todo, enquanto a imanente
sabe-se outra em relação ao objeto que critica e faz um esforço para chegar nesse objeto. A
crítica total que seria uma “investida contra o mundo que não passou por uma
autoaveriguação acerca de seus próprios processos e implicações, seria crítica cega” (TIBURI,
2005, p. 40).
A crítica imanente buscada por Adorno é autorreflexiva, em que o elemento criticado
deve servir de espelho para que a crítica não se torne ideológica, defendendo seus próprios
interesses e escondendo o componente de verdade do que é criticado – usando o aforismo 22
da Mínima moralia, uma crítica que não joga fora a criança junto com a água do banho
128
(ADORNO, 1993a, p. 36-37). Em outros termos, é uma autorreferência negativa ou que
afirma o que a crítica não é em relação ao objeto, visto que uma crítica positiva seria aquela
que anula o que foi dito sobre o objeto. Seu caráter emancipatório está na possibilidade da
crítica de olhar para si, sem compaixões ideológicas e aceitando, na busca pela verdade, a sua
própria derrota (TIBURI, 2005).
Uma crítica absoluta, que está incluída na lógica não dialética, é fruto de um
pensamento totalizante, que parte do pressuposto de que existe um princípio que define todas
as coisas. A crítica imanente, sendo autorreflexiva, é não totalitária, pois é crítica de si
mesma. Ela é um tipo de crítica reativa, uma vez que surge como consequência das
contradições do objeto que critica (TIBURI, 2005).
A filosofia de Adorno rompe com o elemento de autossobrevivência do pensamento
que o aproxima da ideologia ou o tornaria uma ideologia. Para Adorno, a ilusão e sua verdade
se entrelaçam. Caberia então à crítica imanente a tarefa de investigar a relação da ideologia
com a verdade, e não a sua relação com os interesses de classe. Daí sua relação tão próxima
com a psicanálise: é justamente pelo fato da verdade do inconsciente estar presente no nível
manifesto (ainda que deformada pela censura) que se pode desvendar seu conteúdo latente – o
que faz do conteúdo manifesto o entrelaçamento da mentira com a verdade. Em psicanálise, a
ilusão é sempre a realização de um desejo, e por isso ela é verídica (ROUANET, 1989).
Entretanto, segundo Nobre (1998, p. 162), “a ilusão socialmente necessária, por sua
vez, encontra o seu limite no fato de que ela não é capaz de fornecer legitimação para sua
existência, a não ser a sua própria existência de fato”. Ela é, “para a vida imediata dos
homens, o ens realissimum27
” (ADORNO, apud NOBRE, 1998). A crítica, do mesmo modo
que a dialética, é a autoconsciência de um cenário em que é difícil ver as coisas como elas
realmente são. Não é possível que ela apareça sozinha, sem ajuda ou provocação.
Uma diferenciação cabível entre a ideologia e o conteúdo inconsciente é que, como foi
visto, para Adorno (1962) ideologia é justificação, ou seja, pressupõe ou a experiência de uma
situação social que é problemática – e sabida como tal –, mas que deve ser defendida, ou a
ideia de justiça, sem a qual não seria possível a apologia e na qual se baseia o modelo de
intercâmbio de equivalentes. Esta última ideia baseia-se no fato de que em relações de poder
mais simples e imediatas não há ideologia propriamente dita, podendo ser utilizada a
argumentação e a lógica discursiva, que contêm em si um elemento de igualdade e de anti-
hierarquia (ADORNO, 1962). A crítica ideológica – a confrontação da ideologia com sua
27
O que realmente existe, em tradução livre do autor da tese.
129
verdade – só é possível se houver na ideologia um elemento de racionalidade que possa ser
utilizado pela crítica. Daí a dificuldade de se estabelecer uma crítica nesses moldes a sistemas
totalitários, como o nazismo, ou o absolutismo monárquico. Em sentido estrito, as ideologias
exigem relações de poder não transparentes, mediatas e, por isso, mais atenuadas.
Com Mannheim (2004) a ideologia, mantida sob o conceito de falsa consciência, de
véu que se interpõe entre a sociedade e a compreensão de sua natureza transforma-se em
matéria acadêmica na sociologia do conhecimento. Todo conhecimento deve ter demonstrado
o seu condicionamento social. A doutrina da ideologia serve para demonstrar a fragilidade do
espírito. Mas a falsa consciência socialmente condicionada atual não é mais espírito objetivo,
é algo adaptado à sociedade, mediante os produtos da indústria cultural. E a sociologia, nesse
contexto, contribui com os estudos dos meios de comunicação de massas, voltados para o
mercado, dedicando-se às reações de consumidores e às interações de consumidores e
produtores (ADORNO, 1962).
2.3 A personalidade, na ótica de Adorno
Não nos tornamos ariscos em relação à Psicologia, mas sim lhe outorgamos em
nosso projeto o valor que lhe correspondia como um momento da explicação. Mas
nunca duvidamos da primazia dos fatores objetivos sobre os psicológicos. Ativemo-
nos à ideia, a meu ver plausível, de que, na sociedade contemporânea, as instituições
e tendências objetivas de desenvolvimento adquiriram tal predomínio sobre as
pessoas individuais, que estas se transformam, aliás em medida visivelmente
crescente, em funcionários da tendência que se impõe sobre suas cabeças.
Dependem cada vez menos de sua própria maneira de ser consciente e inconsciente,
da sua vida íntima. Entretanto, de muitas maneiras, a explicação psicológica, assim
como a psicológico-social dos fenômenos sociais tem-se convertido em um tipo de
imagem encobridora ideológica: quanto mais os homens são dependentes do
conjunto do sistema, quanto menos são capazes de transcendê-lo, tanto mais se lhes
inculca, desproposital e propositalmente, que tudo dependeria deles (ADORNO,
1995a, p. 160).
Os estudos sobre a personalidade são consequência da preocupação dos frankfurteanos
com o problema da ideologização. Já na década de 1930, Horkheimer (2001) realizou um
estudo empírico com a finalidade de investigar esse problema. Percebe-se, em sua parte
teórica, uma forte influência dos estudos dos freudo-marxistas28
, mas sem a rigidez de
28
Movimento que acontece na Alemanha, entre as décadas de 1920 e 1930, que buscava entender o motivo do
comportamento social irracional dos indivíduos oprimidos pelo sistema econômico. Justificavam a proximidade
dos dois campos pelo fato de ser a psicanálise a “ciência da história psíquica do indivíduo e da humanidade” e
que, por ser uma ciência empírica, não estaria em contradição com o marxismo: é materialista como o marxismo,
pois tem como seu substrato a Biologia; também é histórica, pois seu método é o desvendamento biográfico do
indivíduo; e é dialética, pois sua essência é o conflito – Ego versus Id, libido do objeto versus libido narcisista,
Eros versus Tânatos, etc. (ROUANET, 1989, p. 17).
130
resultados que os caracterizava, mencionando a ideologia de forma dialética. Para
Horkheimer, ideologias nascidas em cenário de repressão não seriam necessariamente
repressivas e a interiorização da cultura – que equivaleria à introjeção da violência – também
poderia significar a introjeção de impulsos e tendências emancipadoras (ROUANET, 1989).
Nesse espírito, a família, mediadora da introjeção no indivíduo dos valores da
sociedade tanto poderia mediar a modelação de estruturas para o sistema de dominação, como
poderia funcionar como uma reserva de intimidade, um anteparo entre o indivíduo e a
sociedade. Horkheimer, semelhante a Hegel, considerava que a família proporciona um
ambiente afetivo, sendo o local onde os indivíduos são valorizados por si mesmos, ao
contrário de outros momentos da vida social, regidos pelos valores da troca mercantil, nos
quais os indivíduos são unidades do processo econômico (ROUANET, 1989).
As generalizações desenvolvidas a partir desses primeiros estudos são transpostas para
a investigação empírica, com a finalidade de enriquecer a teoria. O produto final mais
importante nesse segundo momento foi publicado com o título de Authoritarian personality
(ADORNO et al., 1982).
Conhecer os fundamentos teóricos utilizados por Adorno et al. (1982) na pesquisa que
deu origem à Authoritarian personality é interessante, uma vez que eles diferem, em alguns
aspectos, das visões de personalidade citadas no capítulo anterior. A pesquisa foi orientada
pela hipótese de que as convicções sociais, políticas e econômicas do indivíduo formam um
padrão coerente, que são a expressão de traços de camadas profundas da sua personalidade.
Ela foi desenhada para buscar uma resposta às seguintes perguntas principais:
a) Se existe um indivíduo potencialmente fascista, como ele é?
b) O que acontece para que pensamentos antidemocráticos se desenvolvam?
c) Quais são as forças constituintes dentro da pessoa?
d) Se essa pessoa existe, quão comum é sua existência em nossa sociedade?
e) E se ela existe, quais foram os determinantes para o seu surgimento e qual será o curso
de seu desenvolvimento?
A premissa é de que o que o indivíduo diz em público, o que diz quando se sente livre
de críticas, o que ele pensa, mas não ousa dizer ou pensa, mas não admite pensar, ou o que se
dispõe a pensar ou fazer quando estimulado, tudo isso em conjunto é concebido como fazendo
131
parte de uma estrutura única. Para se compreender essa estrutura, é necessária uma teoria da
personalidade como um todo.
Na teoria que conduziu a pesquisa, a personalidade é tida como uma organização de
forças mais ou menos estável do indivíduo que o ajudam a responder a várias situações na
vida, explicando certa consistência no comportamento de uma pessoa, mas deixando claro que
não se deve confundir o comportamento com a personalidade: a personalidade está por trás do
comportamento, dentro do indivíduo (ADORNO et al., 1982).
A expressão dessas forças da personalidade depende não só da sua prontidão em uma
situação, mas também de outra(s) prontidão(ões) que possa(m) a ela se opor. As forças da
personalidade que são inibidas estão em um nível mais profundo do que aquelas que imediata
e consistentemente se expressam em um comportamento aberto. E quais seriam essas forças?
Para responder a essa pergunta, é necessário compreender qual das teorias de
desenvolvimento da personalidade foi utilizada. Como foi visto, a definição de personalidade
não é uma tarefa fácil, sendo objeto de debate entre especialistas até os dias atuais. Por ser um
conceito central em Psicologia, o tema é extenso, tendo sido abordado a partir de várias
teorias, baseadas ou na observação clínica ou em experimentos controlados em laboratório,
como apresentado no capítulo anterior (DAVIDOFF, 2001).
Como consequência do desenvolvimento teórico sobre o tema realizado pelo ISF,
associado à linha teórica dos pesquisadores aos quais se associou Adorno em Berkeley,
Califórnia, a definição escolhida para a Authoritarian personality envolveu basicamente a
teoria freudiana, que sofreu modulações impostas pelas concepções dos frankfurteanos.
Em sua concepção final, as forças que envolvem a personalidade seriam necessidades
que variam de indivíduo para indivíduo em qualidade, intensidade, modo de gratificação,
objetos ao quais está ligada e também com as suas interações com outras necessidades,
formando padrões de harmonia ou de conflito (ADORNO et al., 1982).
Nessa visão, a personalidade seria determinante das preferências ideológicas – ainda
que ela não seja a determinante final. Longe de ser algo fixo que se recebe de início e
permanece inalterada durante toda a vida, a personalidade evolui sob o impacto do ambiente
social, não podendo ser isolada da totalidade social na qual ocorre. E, de acordo com a teoria
que conduziu a pesquisa, os efeitos das forças ambientais na modulação da personalidade
seriam tão mais profundos quanto mais cedo na história do indivíduo elas ocorrerem – de
modo especial, aquelas que acontecem na vida familiar da criança (ADORNO et al., 1982).
Mas, apesar de ser produto do ambiente social do passado, após se desenvolver, ela
não será um mero objeto no ambiente vivencial. O que se desenvolveu foi uma estrutura no
132
indivíduo, algo capaz de uma ação autoiniciada e de seleção no ambiente social em relação
aos vários estímulos recebidos. Mas é uma estrutura “plástica”, formada por padrões espaciais
de interconexão de sinapses de neurônios, como comprovado por estudos neurológicos
recentes, que mostraram que alterações anatômicas podem se fazer corresponder por
alterações também na personalidade (DAMÁSIO, 2000).
Apesar de modificável, a personalidade é frequentemente muito resistente a uma
mudança fundamental – o que explicaria a consistência do comportamento em diversas
situações, de tendências ideológicas em face de fatos contraditórios e condições sociais
radicalmente alteradas e o porquê de as pessoas, em uma mesma situação sociológica,
possuírem diferentes, ou mesmo conflitantes, visões dos aspectos sociais (ADORNO et al.,
1982).
2.3.1 Tipos e síndromes
Este é um capítulo do Authoritarian personality que foi escrito apenas por Adorno
(1982). Considerou-se interessante apresentá-lo aqui, em seus aspectos mais gerais, em
função do fato de que nesse capítulo Adorno explicita, de certa forma, a sua visão da dialética
entre o universal e o particular em um tema de pesquisa empírica que, no caso, vai envolver a
personalidade.
No capítulo anterior, quando o objeto de pesquisa – a liderança – foi conceitualmente
descrito, em alguns pontos foi feita uma referência a tipos definidos na literatura do
mainstream. É preciso que esse tipo de relato esteja congruente com a abordagem sociológica
empírica proposta por Adorno. Por esta razão, considerou-se importante apresentar aqui o
significado de uma classificação tipológica de indivíduos, na ótica de Adorno, para
demonstrar que não há inconsistência teórica nesta pesquisa quando da realização desse tipo
de avaliação.
Adorno (1982) não vê o uso de tipos e síndromes para a caracterização de indivíduos
como algo sem problemas, pois, além do fato de essa caracterização nunca ser capaz de captar
o único, as generalizações apresentam ainda os problemas de não possuírem validade
estatística, além de não serem capazes de oferecer ferramentas heurísticas produtivas. No caso
da personalidade, ela apresenta, em geral, para Adorno (1982), problemas, como:
a) Na teoria dinâmica geral da personalidade, percebe-se uma tendência a “forçar o
buraco”, transformando traços que são altamente flexíveis em características estáticas,
quase biológicas, negligenciando o impacto de fatores sociais e históricos;
133
b) a tipologia moderna, em contraste com a dos temperamentos, tem origem na
psiquiatria – com Kraepelin e Lombroso – e vem da necessidade de uma classificação
patológica que facilite diagnóstico e prognóstico, para fins de abordagem terapêutica,
sendo assim algo de difícil aplicação para os indivíduos normais;
c) os tipos mistos sempre desmentem os construtos originais puros;
d) Adorno (1982) considera, ainda, que a crítica é um impulso humano natural contra a
submissão de indivíduos a classes preestabelecidas – como ocorreu no Nazismo.
Desta forma, pesquisas preocupadas com o preconceito devem ter cuidado especial
com a questão da tipologia, pois elas podem indicar, inclusive, uma mentalidade
“estereopatica29
”, própria do caráter fascista.
Mas Adorno (1982) também defende a possibilidade de uma tipologia que não seja
estática nem biológica, mas dinâmica e social, visto que a divisão social por classes afeta o
indivíduo que participa dessas relações. Durkheim (2008) mesmo já havia demonstrado como
a ordem social hierárquica permeia atitudes, pensamentos e comportamentos individuais,
formando “classes psicológicas” de indivíduos. Nesse sentido, a relativa rigidez de altos e
baixos escores em escalas de personalidade deve refletir a rigidez na qual nossa sociedade
tende a colocar os indivíduos em dois ou mais campos opostos.
A crítica a uma tipologia não deve desconsiderar o fato de que muitas pessoas nunca
foram “indivíduos”, no sentido da filosofia do século XIX. Um processo social padronizado,
opaco e que sobre-enfatiza o poder deixa aos indivíduos pouca liberdade de ação e diminui as
possibilidades para uma verdadeira individuação. Os tipos são possíveis porque nosso mundo
é tipificado e, por isso, produz diferentes “tipos” de pessoas. É com a identificação e denúncia
dos traços estereotipados do homem moderno que se pode desafiar a tendência a uma
classificação que busca envolver toda a sociedade (ADORNO, 1982).
A construção de tipos psicológicos não apenas tenta ordenar a confusão observada no
mundo real, mas é também uma forma de conceituar a diversidade, para que se possa chegar à
melhor compreensão da realidade. O afastamento do fatual, na tentativa de se aproximar do
significado psíquico (como Freud assim o compreendeu) envolve generalizações que
transcendem o caso único, implicando a identificação de certos núcleos ou síndromes
regulares que se aproximam da ideia de tipos. Deve-se considerar que há certo grau de
“tipologia” em toda teoria psicológica (ADORNO, 1982).
29
Trata-se de um neologismo. O autor desta pesquisa entende o termo como significando uma estereotipia
(formação de uma ideia preconceituosa a respeito de alguém) de caráter patológico.
134
Para Adorno (1982), a ideia de individualismo, bem como a categorização desumana
dos indivíduos, representa o véu ideológico de uma sociedade desumana, cuja tendência à
subordinação de tudo se revela também na classificação das pessoas. Mas, no seu estudo,
havia também uma outra razão pragmática que justificava a busca de padrões de
comportamento: o fato de que a ciência deveria prover a sociedade com armas contra a
mentalidade fascista.
Para a classificação usada na pesquisa da Authoritarian personality, o grupo de
pesquisadores usou os seguintes critérios (ADORNO et al., 1982), que são aqui citados,
porque podem ser orientadores para uma classificação da qual se precise lançar mão na
pesquisa da tese:
a) Não classificar seres humanos em tipos estatísticos claros, nem em tipos ideais (no
sentido que eles seriam suplementados por misturas). A classificação só faria sentido
quando um número de traços e disposições de conjunto viesse a contexto, trazendo
unicidade de significado. Eles foram considerados cientificamente mais produtivos se
integrassem traços, de outra forma dispersos, em continuidades significativas,
evidenciando a interconexão de elementos que estão juntos em uma “lógica” (em
termos de compreensão psicológica de uma dinâmica interna). Não se permitiu uma
subordinação mecânica de traços sob o mesmo tipo. O critério para isso foi não
considerar os desvios como sendo acidentais, quando confrontados com traços
“genuínos”, mas sim reconhecê-los como significativos, em termos estruturais;
b) a tipologia deve ser crítica, no sentido de que deve envolver a tipificação do homem
como uma função social: quanto mais rígido, mais deve o tipo mostrar as marcas do
carimbo da sociedade. A maior dicotomia da tipologia é: a pessoa é padronizada e
pensa de forma padronizada ou ela é realmente individualizada e se opõe à
padronização na esfera da experiência humana. Esse aspecto deve ser um
diferenciador para os altos e baixos escores: visto de perto, quanto mais tipificados,
mais os baixos escores devem expressar potencial fascista desconhecido dentro de si;
c) os tipos devem ser produzidos para uso pragmático, o que quer dizer que diferenças de
caráter individual deverão ser desconsideradas. Isso torna essa tipificação
conscientemente superficial. Essa simplificação pode ser obtida integrando critérios
sociológicos aos construtos psicológicos, como identificações de grupo, metas sociais,
atitudes e padrões de comportamento. Torna-se, então, facilitado, pelo fato de se ter
identificado que categorias clínicas se relacionam a atitudes sociais, possibilitando a
integração das duas.
135
A tipologia deve ser organizada para estar adequada aos dados empíricos, uma vez que
o material não existe num espaço vazio, mas é estruturalmente predeterminado pelas
ferramentas – o questionário e esquemas de entrevistas.
Um aspecto muito importante a ser lembrado é que categorias derivadas da teoria
psicoanalítica ficam limitadas pelo fato de os indivíduos não terem sido “analisados” e que
essas categorias devem se concentrar em aspectos significativos para a teoria psicoanalítica,
em detrimento de outros padrões psicologicamente significativos. No caso desta tese, isso diz
respeito principalmente a algumas categorias que serão apresentadas na seção 3.4.2.1,
utilizadas para orientar algumas das análises e discussões dos dados, nos capítulos 5 e 6.
Antes, entretanto, será preciso apresentar o objeto de pesquisa, na forma como tem
sido compreendido pelo mainstream – compreensão essa que vai influenciar o próprio
aprendizado sobre o objeto – buscando também apontar algumas das contradições nele já
identificadas pela literatura. Será a partir desse contraponto que se buscará realizar uma
discussão crítica sobre a evolução do conceito, discussão essa que terá como consequência a
apresentação da liderança na ótica da ideologia.
Esse será o “fio condutor” que orientará o desenvolvimento do próximo capítulo.
136
3 O LÍDER E A LIDERANÇA
Da mesma forma que em outros modelos de ciência, a linguagem usada para discutir
a liderança consiste em termos descritivos específicos que são cunhados para regular
a disciplina, copiando ou representando um paradigma particular – termos como
liderança transformacional, liderança servidora, liderança carismática, e liderança
estratégica. Cada um desses termos descritivos perpetua o paradigma dominante,
indicando alguma variação do modelo industrial de liderança (BARKER, 2001, p.
471).
O objetivo deste capítulo é buscar caracterizar o objeto de investigação da pesquisa.
Por ter experiência com o grupo social escolhido para investigação em sua práxis30
– o que,
como foi visto no capítulo anterior, é item fundamental para se fazer crítica imanente –, o
autor da tese sabe que, neste grupo, ainda que as relações liderança se renovem, após a sua
emergência, o ser líder e a própria liderança costumam ser aprendidos em cursos de MBAs e
na literatura de management31
– fato que será confirmado na pesquisa – os quais, em sua
grande maioria, se conduzem pelo que é discutido dentro do mainstream. São esses os
aprendizados que modulam os comportamentos e as expectativas, organizando as ações e as
conversas sobre a liderança. Se a pesquisa busca conhecer o objeto a partir das contradições
no conceito, é do conceito que se tem do objeto que se deve partir – e esse conceito tem sido,
pelo menos no discurso, fortemente influenciado pela literatura do mainstream.
Mas também não se pretende, nesta revisão, ficar preso a uma única linha de
abordagem. Para organizar as informações relevantes sobre o campo no qual está inserido o
objeto de pesquisa, pretende-se realizar uma revisão histórica envolvendo não apenas o modo
como a liderança tem sido compreendida pelo mainstream, acrescentando também outras
visões, críticas ou alternativas, que “conversem” com o mainstream – visões estas que, por
suas características, podem ajudar a revelar algumas de suas contradições.
O termo “campo” aqui utilizado se refere ao fato de que, para muitos dos autores
consultados sobre a teoria e pesquisa em liderança, esse é o melhor termo para caracterizá-la.
Hunt (1999, p. 132), por exemplo, defende que a liderança é “um campo com várias escolas,
modelos e abordagens”. Explorar esse campo exige, assim, repassar as escolas, modelos e
30
A práxis é usada aqui em seu sentido aristotélico, e não como é entendida no marxismo: é a atividade mesma,
concreta, que se opõe à reflexão meramente teórica. 31
O termo management será utilizado no original, pois desta forma ele expressa melhor as práticas e os saberes
que estão envolvidos em seu uso – o gerenciamento científico, orientado por valores veiculados prioritariamente
pela literatura gerencial anglo-saxã.
137
abordagens mais importantes que têm orientado a pesquisa dos autores que, no século XX, se
interessaram pelo tema.
Para organizar o campo, algumas classificações têm sido propostas. A escolhida para
conduzir a teoria desta tese toma por base, inicialmente, a proposta de Bryman (2009), pelo
fato de ser esta frequentemente a citada por autores que necessitam organizar a discussão em
uma linha histórica, dentro do mainstream.
De modo geral, Bryman (2009) divide as escolas, modelos e abordagens em dois
grandes momentos. O primeiro, o que reúne as abordagens que são chamadas por outros
autores – como Hunt (1999) – de tradicionais. Esse primeiro momento inclui três abordagens
principais: a do traço pessoal, a do estilo e a contingencial. O segundo momento foi o que
Bryman (2009) denominou de “nova liderança”, que inclui as lideranças transformacional e
transacional, a reconceituação das lideranças carismática e visionária e novos modelos como o
de liderança dispersa (ou distribuída). A esse último momento podem-se também associar
outras abordagens que normalmente não são incluídas pelos autores sob o título de “nova
liderança”, mas desenvolvem-se dentro do mesmo corte temporal, estabelecendo com as
anteriores algum tipo de afinidade, e que são aquelas que levam em consideração a cultura
(organizacional, local, nacional, etc.).
Mas a discussão a ser conduzida neste capítulo acrescenta à classificação de Bryman
(2009) algumas outras abordagens – ainda que temporalmente coincidam com as da “nova
liderança”. Essas são: a) as que estão incluídas, de modo genérico, sob o título de críticas e
pós-estruturalistas; b) aquelas que levam em consideração categorias propostas pela
psicanálise de Freud; c) as abordagens que mais recentemente retomaram as características de
personalidade do indivíduo como um fator a ser considerado nas análises.
Esta é, de modo geral, a sequência que se busca seguir neste capítulo.
3.1 Abordagens tradicionais de liderança
O que ela realmente é não é assim tão importante como o é a questão de se ela
funciona, se ela cria ordem, unidade ou aumenta a performance e a efetividade da
organização (KELLY et al., 2006, p. 183).
O historiador inglês Carlyle defendeu que “a história do mundo era a biografia dos
grandes homens” (CARLYLE apud JUDGE et al., 2002, p. 765). Essa citação é identificada
por Judge et al. (2002) como a motivação para a primeira tendência observada nos estudos
138
sobre liderança, voltada para se pesquisar os atributos daqueles que eram chamados de
“grandes líderes”.
Ainda segundo Judge et al (2002), o estudo identificado como o mais antigo nessa fase
inicial das investigações sobre traços de personalidade e liderança foi conduzido por Terman,
em 1904. Mas a partir da década de 1920 podem-se encontrar vários outras obras importantes
nessa linha. Bernard (1926) é uma destas obras, citado pela maioria dos autores que fizeram
uma revisão histórica do tema – como Bass (1990) e Hogan et al (1994), para citar dois
exemplos. Com um trabalho desenvolvido no campo da Psicologia social, o autor busca
explicar a liderança a partir de características inatas no indivíduo, as quais poderiam
diferenciá-lo dos seus seguidores, e Cowley (1931). Esse último autor realizou, na década de
1930, revisão dos trabalhos conduzidos nessa linha até então, concluindo que “a abordagem
dos estudos sobre liderança tem sido, e talvez devam sempre ser, conduzidos por intermédio
do estudo dos traços” (COWLEY, 1931, p. 144).
O que se pensava nesse momento era que os grandes líderes nasciam para serem
líderes e que esse tipo de indivíduo não podia ser “criado”. A ideia motivadora da pesquisa
era a de que, se características inatas existiam e podiam ser identificadas, bastaria procurar
pessoas com essas características que se teria uma boa chance desse indivíduo apresentar um
bom desempenho como líder.
Os aspectos examinados nessa fase foram divididos por autores como Horner (1997) e
Bryman (2009) em três grandes grupos:
a) Aspectos físicos – como a altura, o tipo muscular e a aparência;
b) habilidades – como a inteligência e a habilidade de conduzir o discurso; e
c) os que se referem à personalidade do indivíduo (introversão/extroversão,
autoconfiança, conservadorismo, etc.).
Muitos dos autores consultados – entre os quais se encontram também Horner (1997) e
Bryman (2009) – reconhecem o trabalho de Stogdill (1948) como o principal marco para o
fim desta primeira linha de pesquisas. Nesse trabalho, Stogdill (1948) questiona o resultado
de toda pesquisa realizada no campo até aquele momento, pois, ainda que algum estudo
tivesse encontrado algo que pudesse ser considerado significativo, sempre era identificado
algo que impedia a confirmação dos achados. Como será visto mais à frente, essa linha é
retomada principalmente na década de 1980, com autores como Lord, De Vader e Alliger
(1986), entre outros cujos trabalhos serão revisados nesta pesquisa, nesse segundo momento
com foco basicamente nas características de personalidade – ainda que questões como a
139
inteligência e a habilidade de conduzir o discurso também voltem a ser consideradas por
alguns.
A abordagem de traços pessoais chamou a atenção dos pesquisadores para os tipos de
pessoas que se tornam líderes, motivando um segundo tipo de abordagem: a que leva em
consideração o comportamento do indivíduo. A ideia aqui era saber o que os líderes bem-
sucedidos fazem, e não mais como eles são ou como se apresentam para as pessoas. Essa linha
ficou conhecida como abordagem do “estilo” de liderança ou comportamental.
Os líderes são estudados, nesse momento, no contexto das organizações. A origem
dessa abordagem encontra-se em dois trabalhos importantes, nos quais o foco já recaía sobre
os executivos das organizações: o de Tead (1929) e o de Chester Barnard (1938), este último
conduzindo a discussão a partir do papel do executivo como tomador de decisões e
coordenador da vida organizacional. Mas as pesquisas mais conhecidas na literatura,
conduzidas sob a ótica do estilo do líder, ocorreram nos Estados Unidos, nas universidades de
Ohio e de Michigan – com resultados confirmados por pesquisas em outras universidades
norte-americanas –, principalmente entre as décadas de 1930 e 1950.
Na Universidade de Michigan, o foco estava na identificação de comportamentos de
líderes que estariam mais centrados ou na pessoa do trabalhador ou na atividade produtiva. E
na Universidade de Ohio, a linha principal de investigação envolvia a aplicação de
questionários a liderados – inicialmente em organizações militares – com foco principal em
dois componentes do comportamento do líder: a) as estruturas de iniciação – ou como o líder
estabelecia sua relação com os demais membros do grupo, definindo os padrões de
organização das relações como a comunicação e os procedimentos – que se relacionavam com
o estilo no qual o líder define claramente o que e como os subordinados devem executar algo;
b) as estruturas de consideração – ou nas relações interpessoais de amizade, confiança e
respeito do líder para com os membros do grupo. As principais conclusões foram que as de
consideração se associavam a mais satisfação no trabalho pelos liderados, enquanto as de
iniciação se relacionavam a melhor desempenho (ainda que com o custo de piorar o moral do
grupo).
No entanto, os resultados mais importantes dessas pesquisas voltadas para o
comportamento do líder foram, de um lado, desenvolver a noção de que a liderança poderia
ser ensinada e, de outro, a ampliar o foco das atividades em questão, que deveria se dirigir
tanto para as atividades que eram orientadas para as pessoas como para as tarefas (HORNER,
1997).
140
Na linha do estilo da liderança encontram-se alguns trabalhos importantes no
desenvolvimento posterior das pesquisas e da teoria sobre o campo. Alguns merecem ser
citados.
O trabalho de Likert (1961) que, a partir da aplicação de uma escala com a finalidade
de mensuração quantitativa, buscou identificar padrões de comportamentos para os gerentes
de alta produção;
O trabalho de Blake, Shepard e Mouton (1964), que desenvolveram um modelo
baseado no comportamento, semelhante ao desenvolvido em Ohio e Michigan, no qual
identificaram atributos para a composição do que denominaram grid gerencial: uma
orientação para pessoas e outra mais voltada para a “entrega” (ou resultado), sendo que
posteriormente acrescentaram a variável flexibilidade, a qual poderia interferir na expressão
dos atributos anteriores.
McGregor (1973) foi outro autor cujo trabalho foi desenvolvido na linha
comportamental. Utilizando a motivação como variável para análise, ele propôs o que ficou
conhecido como teorias X e Y. O pressuposto da teoria X era que, por serem naturalmente
preguiçosos, egoístas e resistentes à mudança, os indivíduos deveriam ter suas ações
controladas e conduzidas por um líder; já o pressuposto da teoria Y – a defendida por
McGregor (1973) – era de que os indivíduos tendem a ser responsáveis, competentes e
criativos e uma liderança baseada nisso tenderia a criar um ambiente de trabalho participativo,
que predispõe ao desenvolvimento individual e a melhores resultados organizacionais.
A ideia de um estilo de liderança influenciou os trabalhos até a década de 1960,
quando foi incorporada por uma terceira linha de abordagem, que já vinha se desenvolvendo
na década de 1950 nos estudos organizacionais: a abordagem contingencial – ainda que o
interesse já possa ser identificado antes da década de 1950, com os trabalhos de Kurt Lewin
(1947) e de Lewin, Lippitt e White (1939), autores considerados pioneiros na exploração
dessa relação.
Na linha contingencial, os pesquisadores buscavam a interação entre os traços e o
estilo de comportamento – na forma como desenvolvido pelas duas correntes anteriores –,
associado à ideia de que, para ser mais eficiente, não somente o estilo dos líderes, mas
também a situação e as características dos liderados deveriam ser levadas em consideração
(HOLLANDER; JULIAN, 1969).
Uma primeira adaptação empírica da proposta de Lewin para a literatura sobre
liderança foi realizada por Fiedler (1967), cujo trabalho busca caracterizar a efetividade do
líder a partir de duas variáveis: o estilo de liderança – como desenvolvido pelos autores que o
141
antecederam – e a condição de predisposição da situação ao exercício de influência. Esta
última foi definida a partir de uma combinação de fatores, como as relações pessoais do líder,
sua posição na estrutura de poder e a estrutura da tarefa.
Uma das consequências consideradas das mais importantes do trabalho de Fiedler
(1967) foi dar início às discussões e às pesquisas sobre a adequação da liderança a uma
determinada situação, a qual seria a mais apropriada ao estilo do líder em questão. Essa visão,
sim, que, do ponto de vista dos estudos organizacionais, se adequa à teoria contingencial que
se desenvolvia naquele momento (HORNER, 1997).
Como desenvolvimentos posteriores fundados na abordagem contingencial, citam-se:
Dansereau, Graen e Haga (1975), que propõem, a partir de uma abordagem diádica, a Teoria
da troca entre líder e liderado, buscando explicar o relacionamento entre os dois, envolvendo
ganhos mútuos, parceria ou comprometimento; e Hersey e Blanchard (1986), que se
interessam pelos estilos de liderança, no espectro democrático/autoritário, identificando três
estilos básicos: o democrático, o autocrático e o tipo laissez-faire.
Nesse aspecto, também os liderados passam a integrar a pauta de investigação, tendo
sido desenvolvidas várias abordagens a partir de diferentes visões da inter-relação entre
líderes e liderados. Alguns dos exemplos mais importantes são:
a) A teoria “path-goal”, de House e Mitchel (1974), que propõe que os líderes devem
ajudar os liderados a desenvolverem comportamentos que os ajudem a atingir metas
desejadas. A efetividade da liderança ficaria na dependência do tipo de tarefa (se a
satisfação que ela determina é intrínseca ou extrínseca) e do nível de autonomia e de
motivação dos liderados;
b) a teoria de Vroom e Yetton (1973), que busca descrever o que os líderes deveriam
fazer para serem mais efetivos, dependendo do grau de envolvimento dos liderados no
processo de tomada de decisões;
c) a “teoria do intercâmbio líder-liderado”, de Graen (1976), que aborda a relação líder-
liderado a partir da relação do líder com dois grupos diferentes de liderados, que ele
chamou de in-group e out-group;
d) um imbricamento entre as pesquisas envolvendo liderança e os estudos sobre a
motivação (HERZBERG, 1964; VROOM, 1964), cujo foco também sai das
características pessoais do líder e das situações para levar em conta os aspectos que
dizem respeito aos liderados. O que esses autores concluem é que a preocupação
principal do líder deveria ser a criação de um ambiente em que as pessoas possam se
sentir envolvidas e comprometidas com o seu trabalho.
142
Apesar de todo o avanço conceitual, Pfeffer publicou, em 1977, um artigo no qual
discute a insuficiência dos estudos até então realizados, pontuando principalmente a
ambiguidade do conceito de liderança, questionando a efetividade do líder no desempenho das
organizações e a irrelevância dos critérios de seleção no processo sucessório. Na mesma
época, Zaleznik (1977) levantava uma preocupação, muito significativa para aquele momento
do desenvolvimento do campo, que era a diferenciação entre a liderança e o que se entende
por gestão (ou administração, gerência ou qualquer outro termo com sentido correlato).
É nesse ponto que surge uma nova linha de abordagem e pesquisa, que foi chamada de
“nova liderança” e que será apresentada na sequência.
3.2 A nova liderança
A expressão “nova liderança” foi cunhada para categorizar diversas abordagens sobre
a liderança que pareciam tratar de temas similares, mas que apresentavam importantes
diferenças entre si. A despeito das diferenças, no conjunto elas descortinam um modo novo de
conceituar e pesquisar sobre a liderança, quando comparadas com os modelos apresentados
anteriormente (BRYMAN, 2009).
Como foi visto, algumas das ideias que vão se desenvolver nesse novo momento já
podem ser percebidas em trabalhos anteriores, como os de Zaleznik (1977). Mas o estímulo
mais significativo para a mudança no rumo da conceituação e pesquisa deriva da publicação
do trabalho de Burns (1978) sobre a liderança política – seguido pelo de Bass (1985), para o
campo dos estudos organizacionais.
Burns publicou seu trabalho em 1978 como resultado dos seus estudos sobre
movimentos políticos, revolucionários e ideológicos no século XX. Nessa obra, Burns (1978)
conclui que os líderes sempre acabam escolhendo uma de duas formas de conduzir as relações
de liderança, as quais foram por ele chamadas de lideranças transformacional e transacional.
Bass (1985, 1997) publicou o seu trabalho na década seguinte, a partir da proposta de
Burns (1978), só que desenvolvendo uma abordagem teórico-empírica mais voltada para os
estudos em organizações, chamada de paradigma transacional-transformacional (BASS,
1985). Por ter mudado o foco para as organizações, a proposta de Bass (1985) acabou sendo
um pouco diferente da de Burns (1978): enquanto para Burns (1978) a liderança
transformacional envolve uma troca mutuamente enriquecedora entre líder e liderado, em
Bass (1985) ela significa dar suporte aos seguidores para aumentar a sua performance,
143
utilizando-se de métodos que podem variar de uma motivação que esteja baseada em um
relacionamento de caráter carismático à atenção individualizada para com os seguidores.
Como o objeto de pesquisa aqui está mais de acordo com o tipo de liderança descrito
por Burns (1978) – a liderança política –, esse autor não pode deixar de ser consultado para
uma primeira classificação geral sobre as diversas formas de organizar as relações de
liderança. Bass (1985) será retomado posteriormente, por se constituir na base para as demais
abordagens voltadas para os estudos em organizações, também importantes para este trabalho.
A classificação de Burns (1978) está fundamentada no propósito da liderança. O autor
parte de um princípio diferente da visão mais corrente – aquela que vê a liderança como um
indivíduo, fazendo com que os outros realizem o que de outra forma eles não fariam – para
uma visão na qual o processo de liderança envolveria um indivíduo que induz outro(s) a agir
em direção a metas que representam tanto os valores e motivações, que são tanto os seus
próprios, como também os do líder. Nessa visão, as metas e as necessidades dos seguidores
devem ser inseparáveis das do líder (BURNS, 1978).
São essas metas e necessidades que vão colocar líderes e liderados em uma interação a
qual, como já se disse, deve tomar duas formas básicas: uma que define a liderança que ele
chama de transacional; e outra, que ele chama de transformacional. Essa ligação funcional
também faz da liderança um processo moral, uma vez que há um compromisso entre as
partes, baseado no compartilhamento de valores, motivos e metas (BURNS, 1978).
Apesar de funcionalmente inseparáveis, líderes e liderados não são a mesma coisa para
Burns (1978): os líderes diferenciam-se na relação por serem aqueles que criam as ligações
que permitem as trocas e as comunicações com os liderados, tendo, caracteristicamente, não
só mais habilidade na detecção das motivações alheias, como também detendo o papel mais
importante na manutenção do relacionamento. Além disso – e talvez seja essa a diferença
mais importante –, os líderes deveriam conduzir os desejos, necessidades e as motivações
alheias como se fossem as suas próprias.
Apresentam-se, a seguir, ainda que de modo sumário, as características mais
significativas de diferenciação entre os dois tipos principais propostos para as relações de
liderança: o transacional e o transformacional.
3.2.1 A liderança transacional
É um tipo de liderança encontrado nas situações em que uma pessoa toma a iniciativa
de contatar outras, com a intenção de intercambiar valores – que podem ser tanto de natureza
144
econômica como política ou psicológica (por exemplo, troca de bens por dinheiro, de votos
por representação ou de hospitalidade por disposição a escutar queixas alheias).
Cada parte reconhece a outra como uma pessoa cujo poder está nos recursos ou
atitudes que possuem. O processo de barganha é consciente, sendo que o relacionamento não
se estende para além do objeto que é de interesse mútuo (BURNS, 1978).
O que é característico nesse tipo de liderança são os valores de meios (em contraponto
aos valores de fins, como vai ser observado na liderança transformacional). São valores como
a honestidade, a responsabilidade, a integridade e o honrar os compromissos, sem os quais a
liderança transacional não pode funcionar (BURNS, 1978).
Ela pode ser observada nas seguintes formas:
A) O líder de opinião
É um tipo de liderança mais comumente visto nas democracias ocidentais do que em
regimes autoritários. Na visão de Burns (1978), a opinião pública é um campo em que líderes
e liderados “transacionam gratificações mútuas no mercado político” – o que a aproxima da
teoria sociológica da troca. A diferença está no fato de que a transação origina
relacionamentos curtos –, pois não se pode repetir uma troca de forma idêntica – o que leva as
duas partes a buscar outros tipos ou outros níveis de gratificação.
Se a transação no gabinete do político é clara, no campo da opinião pública ela é
menos tangível e mais “psíquica”: o líder se comunica com o seguidor, esperando deste uma
resposta que, por sua vez, fomenta outras iniciativas do líder. O apelo envolve o que seriam as
motivações do liderado, o qual, a partir de sua resposta, levanta novas expectativas, que são
exploradas pelo líder – mantendo, dessa forma, o processo de transação.
Esse tipo de transação pode ser aplicado apenas a uma parte do sistema de formação
de opinião, uma vez que o processo de socialização do indivíduo tende a estabelecer limites
para a sua visão. Os valores que são compartilhados pelos indivíduos procuram se reforçar em
sociedades mais fechadas – originando visões etnocêntricas e mesmo paranoicas em relação a
outras. Somente forças que conseguem se ligar às fontes de opinião podem conseguir romper
essas barreiras. A televisão seria uma dessas forças.
São três os tipos de liderança de opinião:
a) No mais visível, o líder tem objetivos maiores (ideológicos, de carreira ou de interesse
próprio) e busca mobilizar o maior número de pessoas em função desses objetivos;
b) um segundo tipo pode ser encontrado entre os que controlam os meios de
comunicação e que, por terem o poder de editar notícias, montarem a primeira página
145
do jornal ou escolherem o que e como será veiculado em um telejornal de âmbito
nacional, representam importante papel na formação da opinião pública;
c) O terceiro envolve o que pode ser chamado de “líder de opinião transacional”, que faz
a mediação entre a mídia de massa e o público. É um tipo de liderança ubíqua, que
pode ser encontrado tanto no taxista como no dono do botequim da esquina ou em
qualquer outra pessoa cuja posição na sociedade lhe facilite essa intermediação.
Políticos autoritários conhecem bem a importância dessas pessoas e, em geral, as usam
em seu benefício.
Por outro lado, existem três tipos de público sobre os quais atuam esses líderes:
a) O mais ativo é constituído por pessoas relativamente interessadas por política, cientes
de que existe uma competição entre as lideranças políticas, que são pelo menos um
pouco ativas em partidos ou grupos políticos e que estão atentas aos resultados das
eleições e à efetividade das ações governamentais;
b) Um segundo grupo, menos ativo, tem razoável noção em relação às pessoas mais
públicas e têm condições (e muitas vezes o fazem) de entrar em um debate político;
c) e um terceiro grupo, que não tem qualquer interesse por política, não participa de
qualquer atividade política, mas que tem o potencial de atentar (ou mesmo participar)
para assuntos políticos se estimuladas por líderes habilidosos – principalmente em
momentos mais traumáticos como depressões econômicas, guerras, crises internas, etc.
(BURNS, 1978).
De qualquer forma, os dois aspectos importantes no seu desenvolvimento envolvem
uma interação e um conflito. As contradições que surgem daí dizem respeito à dualidade entre
o seu próprio interesse e um interesse mais coletivo. Essa contradição é menos evidente
quando o líder de opinião representa grupos menores, mas cresce à medida que ele passa a
abarcar grupos maiores e mais heterogêneos, pela dificuldade de reunir uma opinião pública
que suporte suas ambições, sem correr o risco de entrar em conflito com ela.
Uma das estratégias utilizadas por esses líderes é a de organizar uma base larga de
seguidores, pois, como foi visto, uma liderança de tipo heroica deve se caracterizar pela
ausência de conflito. Uma estratégia alternativa é mobilizar o suporte de determinada classe
socioeconômica, o que parece uma solução fácil, já que a maioria das sociedades se divide em
classes que possuem interesses conflitantes. E uma terceira estratégia é a utilização de um
146
partido político cujo simbolismo e cuja máquina existem para ativar e estabilizar a opinião
pública.
B) O líder de grupo: pequenos grupos e burocratas
Desde a pesquisa sobre psicologia de grupo realizado por Freud (1987d), que será
objeto de estudo mais à frente, sabe-se que a liderança é fundamental para a manutenção da
coesão do grupo e que este se desorganiza, podendo vir a desaparecer com a sua ausência.
Grupos pequenos são caracterizados pela interação entre membros, com senso de
obrigação mútua e com forte tendência à conformidade entre os membros, originando
algumas das organizações mais sólidas, duráveis e bem estruturadas da sociedade. Os líderes
aqui emergem do grupo, possuindo algumas características: são agentes do grupo, são
criações e são prisioneiros do grupo, sendo também os membros mais conformados deste,
além de estarem no centro de sua estrutura de comunicação (BURNS, 1978).
Mas na liderança transacional também se observa intensificação de conflitos do grupo,
os quais têm origem na afiliação dos seus membros com outros grupos. As forças internas do
grupo podem produzir conflito quando as externas estão em equilíbrio ou neutralizadas. Nesse
caso, são as mudanças nas necessidades do grupo que costumam alterar tanto a composição da
liderança como as relações entre os membros, modificando tanto a autoestima do grupo como
a estima acordada entre os membros. E quanto mais estimado pelos outros, tanto maior a
possibilidade de ter sucesso no reconhecimento de sua liderança. Ainda, quanto mais
capacidade tiver o líder para satisfazer as necessidades dos membros, tanto mais capital
político ele deve acumular (BURNS, 1978).
Já numa burocracia, as características da liderança são opostas às encontradas nos
pequenos grupos e entre líderes transacionais: enquanto os pequenos grupos se organizam
espontaneamente, as burocracias são decisões conscientes de organização de recursos e
pessoas para se atingir determinados objetivos; a liderança nos pequenos grupos, ao contrário
daquelas das burocracias, são maldefinidas, conflitantes e sujeitas a mudanças no grupo; os
objetivos nos pequenos grupos são maldefinidos e sujeitos a mudanças; ao contrário das
burocracias, a liderança em pequenos grupos não é hierárquica; ela obtêm suas qualidades de
recursos obtidos do próprio grupo, e não de estruturas formais ou legais, como nas
burocracias. No conjunto, pode-se considerar que as características da liderança na burocracia
são antitéticas àquelas definidas para as lideranças, tanto as transformacionais como as
transacionais (BURNS, 1978).
147
C) A liderança partidária
Pode-se dizer que geralmente a liderança partidária é transacional, mas com
significativo potencial transformacional: os partidos fazem os líderes a partir de sua estrutura,
mas também convertem seguidores em líderes a partir dos conflitos surgidos entre suas
fileiras. E, para atingir seus objetivos, criam líderes cujo poder individual pode ser pequeno,
mas cujo poder coletivo os transforma mais em subordinados do que em controladores dos
seguidores.
O poder dos partidos está na capacidade de seus líderes identificarem e conduzirem os
desejos, necessidades e expectativas dos seguidores (atuais e potenciais), sejam eles
personalidades conhecidas ou obscuras. Sua fonte de conflito mais importante não está entre
partidos rivais ou entre rivais dentro dos partidos, mas entre os líderes do partido e líderes do
mesmo partido com posições no governo (BURNS, 1978).
D) A liderança legislativa
A estrutura da legislatura em países “livres” é o locus clássico da liderança
transacional, baseada em respostas recíprocas de líderes as quais são conduzidas por sua
percepção de necessidades, desejos, expectativas e valores daqueles que representa, em
conflito com outras. Tipicamente, aqui ela funciona como uma praça de comércio, em que
interesses e metas pessoais são harmonizados a partir de técnicas clássicas de negociação e de
reciprocidade, guiadas por valores de confiança, tolerância e de integridade. É por isso que, na
legislatura, não é possível exercer uma liderança transformacional (BURNS, 1978).
E) A liderança executiva
É um tipo de liderança indispensável em situações de crise e efetiva quando se
pretende atingir metas específicas e limitadas. Mas existem vários fatores que são inibidores
para esses líderes: perda de controle e direção dentro da estrutura de liderança; o peso
contínuo de compromissos, metas e motivos conflitantes; os limites próprios do processo
executivo; a limitação de tempo nas estruturas executivas, associado à incapacidade dos
líderes de conseguir recursos ideológicos e políticos fora do sistema (BURNS, 1978).
Essa liderança pode ser vista como ao mesmo tempo comum e incomum: comum, por
ser encontrada no dia-a-dia em grupos que perseguem metas comuns, podendo ser observada
em pais, professores, colegas de alguma atividade, pregadores e políticos; e incomum, pois
muitas das ações atribuídas à liderança não só não são frequentemente vistas (por ex., atos
148
ligados à oratória, à manipulação e às ações coercitivas e autoritárias), como também podem
não estar efetivamente ligadas ao que se poderia considerar como liderança genuína.
3.2.2 A liderança transformacional
É um tipo de liderança que surge quando uma ou mais pessoas se comprometem com
outras pessoas de forma que tanto os líderes como os seguidores se elevam mutuamente para
atingirem níveis mais altos tanto de motivação como de moralidade. O poder está ligado ao
suporte mútuo para se atingirem propósitos comuns. O relacionamento pode até ser moralista
(como em caso de líderes religiosos), mas ele é em si moral, uma vez que eleva o nível de
conduta e as aspirações tanto do líder quanto do liderado (BURNS, 1978).
Os valores envolvidos nesse tipo de liderança são os de fins – como a justiça, a
liberdade ou a igualdade, podendo ser observados basicamente em quatro diferentes situações:
a) A liderança intelectual (ou a ideia como um poder moral): existem muitos exemplos
na história: a liderança exercida na França do século XVIII por pessoas influenciadas
pelo pensamento dos filósofos – como Robespierre, filho intelectual de Montesquieu e
influenciado por pensadores como Rousseau, e os enciclopedistas e demais autores do
Iluminismo. Também é exemplo a liderança dos filósofos ingleses do século XVII,
como Locke e Hobbes, na defesa da liberdade do indivíduo contra o poder do governo;
b) a liderança reformista: segundo Burns (1978), líderes de verdade – aqueles que
ensinam e aprendem com seus seguidores – desenvolvem-se a partir das experiências
adquiridas no dia-a-dia, sendo a liderança reformista a que fornece mais exemplos de
líderes que desenvolvem suas melhores habilidades com a experiência. Alguns
exemplos seriam os de Bismarck, na Alemanha, e Roosevelt, nos Estados Unidos;
c) liderança revolucionária: mais do que outros tipos de liderança, a revolucionária é
essencialmente coletiva, dependendo (mais do que no caso do líder reformista) de
movimentos, partidos e organizações políticas e daí as grandes diferenças nas
revoluções, dependendo do contexto no qual ocorrem. Exemplos óbvios aqui seriam
os de Martinho Lutero e a Reforma Protestante, Danton, Marat e Robespierre na
Revolução Francesa, Lenin e a Revolução Russa e Mao Tse Tung na Revolução
Chinesa. A discussão dos detalhes do comportamento da liderança em cada uma
dessas revoluções foge ao escopo deste trabalho;
149
d) heróis e ideólogos (ou a liderança carismática): o herói estaria incluído no que Max
Weber chamou de líder carismático. Com o termo, Weber se refere a uma dádiva
divina – sem que ele explicasse se essa dádiva pertencia apenas ao indivíduo,
independentemente da sociedade na qual ele está inserido ou se ela dependeria do seu
reconhecimento pelos seguidores do líder para existir. Daí a sua compreensão permitir
diferentes significados: o de uma qualidade mágica, um laço emocional entre líder e
liderado, uma dependência das massas pela figura paterna ou, ainda, o pressuposto
popular de que o líder é poderoso, onisciente e virtuoso.
Considerando a impossibilidade de se recuperar o seu sentido inicial, Burns (1978)
define a liderança heroica ou carismática como sendo:
Uma crença no líder, que está fundamentada apenas em sua pessoa,
independentemente da existência de capacidades já demonstradas ou de experiência
e de resultados; é a fé na capacidade do líder superar obstáculos e crises; a prontidão
para garantir ao líder o poder para superar as crises; é o suporte de massa, que é
expresso diretamente ao líder – em votos, aplausos, cartas, apertos de mão – e não
por outros intermediários ou por instituições (BURNS, 1978, p. 244).
Assim, a liderança heroica não está baseada em algo que a pessoa possua, mas em um
tipo de relacionamento que acontece entre o líder e o liderado. O que o líder oferece é uma
solução simbólica para os conflitos internos e externos. Daí esse tipo de liderança possuir
como uma de suas características mais importantes a ausência de conflito entre as partes. São
líderes que costumam emergir em sociedades que enfrentam crises profundas. Os exemplos
mais óbvios seriam os de grandes líderes religiosos, como Moisés, Jesus Cristo e Maomé.
3.2.3 A liderança transformacional, no contexto organizacional
A partir da abordagem de Burns (1978) e de sua adaptação ao contexto organizacional
realizada por Bass (1985), Bass e Avolio (1994) propuseram que a liderança transformacional
seria caracterizada por envolver quatro componentes:
a) a motivação inspiracional, que envolve a criação e a apresentação de uma visão
atraente de futuro;
b) a influência idealizada, que envolve comportamentos como sacrificar-se em benefício
do grupo, dar exemplos pessoais e demonstrar altos padrões éticos;
150
c) a consideração individualizada, que significa fornecer suporte, encorajamento e
coaching para os seguidores;
d) o estímulo intelectual, que envolve comportamentos que devem ajudar a aumentar a
consciência dos problemas por parte dos seguidores, estimulando-os a enxergá-los a
partir de novas perspectivas.
Yukl (2002) modificou um pouco a classificação, propondo dividir a liderança em dois
grandes grupos: o primeiro, envolvendo uma liderança transacional e controladora, que
basicamente envolve a troca de recompensas para que o liderado se conforme ao demandado;
e o segundo representado pelas lideranças transformacional e carismática, em que se observa
por parte do liderado a modificação de seus valores e prioridades, de modo que eles se
motivem a atuar acima das expectativas.
Segundo Graen e Uhl-Bien (1991), mesmo considerando que muitas das relações de
liderança tenham início no modo transacional e controlador, para ser efetiva32
a liderança deve
se tornar transformacional – daí o grande foco da pesquisa contemporânea em liderança estar
nos tipos transformacional e carismático. E isso demanda um esclarecimento sobre o que se
entende por liderança carismática.
3.2.4 A liderança carismática
Para melhor compreensão da liderança nesse grupo, os autores buscaram caracterizar a
liderança carismática de modo diverso em relação à liderança transformacional – ainda que
muitos as abordem em conjunto. Vista de modo apartado, ela pode ser caracterizada por ser
uma linha que visa compreender a influência exercida pelo líder a partir de sacrifícios e da
busca de objetivos difíceis, desenvolvendo o conceito de carisma a partir do que foi proposto
por Weber (1999; 2001). Entre os pioneiros dessa linha, encontram-se os trabalhos de Conger
(1989), House (1977) e Shamir, House e Arthur (1993).
A teoria tem sugerido que os líderes carismáticos podem ser distinguidos por uma
série de características. Ehrhart e Klein (2001) reuniram na literatura quatro características,
que são as têm sido mais regularmente associadas à liderança carismática. São elas: a
comunicação, pelo líder, de suas altas expectativas de performance; a demonstração de
32
O conceito de efetividade da liderança também será discutido à frente, na seção 2.3.2.
151
confiança na capacidade dos liderados em atingirem metas; assumir riscos calculados, que se
opõe ao status quo; e a articulação de uma visão de futuro baseada em valores.
3.2.5 A nova liderança e a cúpula organizacional
Para Bryman (2009), a abordagem da nova liderança trouxe consigo o risco de
concentrar a atenção de modo excessivo na cúpula organizacional. De acordo com o autor:
Mesmo que uma mudança de orientação no estudo da liderança de organizações para
o estudo de liderança em organizações seja um antídoto para os estudos anteriores,
normalmente em escalas menores e no âmbito de grupo, pode-se argumentar que a
mudança no foco foi muito radical e gera o risco de ter muito pouco a dizer sobre a
maioria dos líderes. Em segundo lugar, como nas fases pioneiras da pesquisa, a nova
liderança tem pouco a dizer sobre os processos informais de liderança, apesar do uso
de estudos de caso qualitativos que têm crescido em popularidade em razão do seu
grande potencial. Por outro lado, as abordagens quantitativas, por exemplo, o
trabalho de Bass, costumam repetir a tendência em focar os líderes formalmente
designados. Terceiro, tem havido poucas análises situacionais. A tendência a exaltar
as virtudes da liderança transformacional e outros modelos da nova liderança cria o
risco de retorno a um pensamento universalista (BRYMAN, 2009, p. 266).
Essa observação de Bryman (2009) merece ser cuidadosamente explorada. Para tanto,
o que se pretende é:
a) Explorar o sentido da “mudança de orientação no estudo da liderança de organizações
para o estudo de liderança em organizações”. Será, então, necessário discutir o próprio
conceito de liderança e as suas interfaces com os conceitos de gestão e de comando;
b) uma vez caracterizado o conceito com o qual se pretende trabalhar nesta tese, parte-se
para as abordagens contemporâneas e emergentes sobre a liderança, mas que ainda
estão posicionadas no mainstream;
c) por fim, será realizado um apanhado de abordagens que coincidem temporalmente
com as da nova liderança, mas que se caracterizam por seu conteúdo mais crítico.
Com os estudos nessa linha pretende-se superar algumas das limitações identificadas
por Bryman (2009), além de abrir caminho para menções que possam facilitar a expressão
das contradições próprias do conceito, o que é um pressuposto teórico da abordagem
proposta para este estudo e que será o objeto de discussão do próximo capítulo.
Mas, por enquanto, volta-se ao conceito de liderança.
3.3 O conceito de liderança, de acordo com o mainstream
152
O grau de diversidade ao qual a liderança vai se referir deve ficar restrito. O que não
ocorre, uma vez que o discurso acadêmico sobre liderança se refere a um largo
espectro de fenômenos diferentes. A liderança é tipicamente definida em termos
gerais. A ambição é a de dizer algo que seja relevante para cenários bem diversos.
[...] Essa diversidade significa que uma definição coerente com aspirações universais
deve nos dizer pouco em termos da riqueza e complexidade do fenômeno ao qual ela
supostamente se refere (ALVESSON; SVENINGSSON, 2003b, p. 361).
Stogdill (1948, 1950), autor responsável por uma das mais extensas revisões sobre o
tema, a qual ainda hoje é considerada um dos trabalhos de referência sobre liderança, afirma
que “existem tantas definições de liderança quanto pessoas que tentaram cercar o conceito”
(BASS, 1990, p. 7). Também de acordo com Bennis e Nanus (1988), a academia teria
produzido, somente até a década de 1980, mais de 350 definições do termo liderança.
Mas, antes de procurar uma definição, será preciso primeiramente estabelecer um
conceito de liderança, delimitando os campos onde há interface com outros conceitos. Um
esforço razoável de demarcação conceitual vem sendo tentado por vários autores, de modo
especial a partir da década de 1970. E um dos autores que têm sido citados como sendo dos
primeiros a se preocupar com essa demarcação foi Zaleznik (1977).
Zaleznik (1977) referia uma das preocupações mais significativas naquele momento
do desenvolvimento do campo, que estava na diferenciação entre a liderança e o que se
entende por gestão (ou administração, gerência ou qualquer outro termo com sentido
correlato). Por isso, o primeiro passo do esforço conceitual a ser empreendido para esta
pesquisa visa apresentar como o mainstream tem estabelecido essa diferenciação e como tem
buscado classificar os diversos tipos de liderança.
3.3.1 Diferenças entre liderança, gestão e comando
Bennis e Nanus (1988) fazem um contraponto entre liderar e administrar: para os
autores, o termo liderar deve ser entendido no sentido de “influenciar, guiar em direção,
curso, ação e opinião”, enquanto administrar deve ser compreendido como “realizar, assumir
responsabilidades e conduzir”. O mesmo contraponto é feito por Barker (1997): “a função da
liderança é criar mudança, enquanto a função da administração é criar estabilidade”
(BARKER, 1997, p. 349).
Barker (2001) vê no uso do termo liderança, aplicado a qualquer indivíduo que esteja
no topo de uma hierarquia, o mesmo equívoco de se usar o termo “clássico” para qualquer
música sinfônica ou de câmara executada por uma orquestra. Daí a confusão frequente entre
líder e gestor.
153
As atividades consideradas como próprias da liderança foram enumeradas por vários
autores. Cita-se aqui, como exemplo, a relação proposta por Yukl, Wall e Lepsinger (1990),
por ser mais abrangente, contando 14 itens (alguns trabalhados em dupla, por envolverem
atividades semelhantes ou complementares): planejar e organizar, resolver problemas,
esclarecer, informar, monitorar, motivar, reconhecer, dar suporte, dar consultoria, gerenciar
conflitos, organizar grupos, fazer network, delegar, desenvolver e recompensar.
Como se pode ver, existe importante interface entre muitas dessas atividades citadas e
a atividade gerencial. Fica clara, então, a necessidade de se fazer uma demarcação conceitual
que seja capaz de captar melhor as características do que se quer estudar.
Karl Weick (1993) tenta resumir essa diferenciação, propondo que uma característica
da atividade do gerente é buscar resolver problemas, utilizando as soluções que em situações
semelhantes no passado já funcionaram, enquanto a do líder seria encontrar novos caminhos
para o conhecido ou caminhos frente ao desconhecido.
A divisão de Weick é problematizada por Grint (2005), considerando que um fator-
chave para a diferença está na complexidade envolvida para a resposta a um problema, uma
vez que algo já ocorrido pode não ter tido solução adequada e que uma situação interpretada
como complexa também poderá se constituir em um dificultador para a imposição da vontade
de um líder (tanto em uma persuasão como na dominação).
A partir desse questionamento, Grint (2005) propõe uma tipologia que relaciona a
incerteza sobre a solução do problema ao nível de necessidade de colaboração para sua
solução. Por ser uma abordagem cujo esforço resulta em apropriada delimitação de campos, o
que pode ajudar na delimitação do objeto da pesquisa, ela será apresentada aqui
sumariamente. Basicamente, Grint (2005) relaciona o tipo de problema ao tipo de exercício de
poder. Para a tipologia de problemas, ele se baseia em Rittell e Webber (1973), para quem o
problema, que é algo socialmente construído, pode ser dividido em três tipos:
a) Problema domesticado: pode até ser um problema complicado (muitas variáveis), mas
ele pode ser resolvido por atos unilineares, pois provavelmente já ocorreu e em
determinado ponto ele é resolvido. A incerteza é limitada e o que se necessita são
processos que levem à sua solução. A ação envolvida é a relacionada à gestão;
b) problema espinhoso: é um problema complexo (e não apenas complicado), pois pode
envolver não somente muitas variáveis, mas também variáveis desconhecidas. Nesse
sentido, é um problema original, cujas soluções aparentes costumam gerar outros
problemas. Não admite solução unilinear e não há uma resposta que se possa
154
considerar como “certa” ou “errada”. Como envolve alto grau de incerteza, é o tipo de
problema que está associado a uma ação de liderança;
c) problema crítico: como o nome sugere, envolve uma crise: é autoevidente e admite
pouco tempo para a tomada de decisão. A ação frequentemente é autoritária, no que se
pode chamar de uma ação de comando (no sentido militar mesmo). Ou seja, mesmo
que aquele que toma a decisão tenha internamente algum nível de incerteza quanto à
propriedade da decisão, essa incerteza não se torna aparente aos seguidores.
Em outras palavras, é o problema socialmente construído que legitima o tipo de
autoridade. O mesmo indivíduo (ou grupo) pode variar a sua ação, dependendo de como o
problema (às vezes, o mesmo problema) é percebido (GRINT, 2005).
A noção de poder “duro” ou “brando” Grint (2005) toma de Nye (2004), para quem o
poder “duro” representa o exercício tradicional de poder – coerção, força física e dominação –
implicando o seu exercício de modo assimétrico, e não por meio de ideias. Em contraponto,
“brando” é o poder exercido por influência, pelo discurso, que são derivados da legitimidade e
da atração, e que envolve valores. Em outros termos, é o tipo de poder mais apropriado para o
exercício da ideologia (GRINT, 2005).
Grint (2005) utiliza, ainda, Etizioni (1964) para a distinção entre diferentes
conformidades, que ele denominou de coercitivas, calculadas e normativas, dependendo de
como são exercidas nas organizações: a “coercitiva” é aquela praticada em organizações totais
(como prisões e exércitos); a “calculada”, a exercida em organizações “racionais”, como nas
empresas, de modo especial, que apresentam uma estrutura burocrática; e a “normativa”, que
em atividade em organizações onde os valores são compartilhados, como em associações em
geral (clubes, sindicatos, associações profissionais, etc.).
Associando essas conformidades à tipologia de problemas, Grint (2005) relaciona os
problemas críticos à conformidade coercitiva, os domesticados à conformidade calculada e os
espinhosos à normativa. Dessa forma, quanto mais o tomador de decisão definir o seu
problema como “espinhoso” e interpretar seu poder como normativo (ou brando), tanto mais
difícil será sua tarefa. Além disso, quanto menos certeza do que fazer, mais forte será a
tendência do tomador de decisões de buscar apoio coletivo. E, ainda, quanto mais alto o grau
de sutileza necessário para obter sucesso na solução do problema, tanto maior deverá ser a
evolução do comando para a gestão e para a liderança.
Esta foi uma divisão que atendeu bem ao que foi proposto por muitos dos autores que
trabalharam com a liderança. Khaleelee e Wolf (1996), por exemplo, em sua investigação
155
sobre como a experiência de vida impacta a personalidade, com consequências para a
liderança, partem do princípio de que:
Liderar envolve ser capaz de conceber uma visão, possuindo autoridade, energia e
clareza para comunicar a visão e perseverança para sustentar o programa de trabalho
necessário para trazer essa visão para a realidade. Para isso, o líder deve ser capaz de
suportar suas próprias incertezas e as incertezas dos outros [...] A administração é
mais previsível. Ela é uma ciência, não uma arte. Ela envolve planejamento, análise
e lógica (KHALEELEE; WOLF, 1996, pp. 5-6).
A tipologia de Grint (2005) está sumarizada na Figura 1.
Figura 1 - Tipologia de problemas, poder e autoridade
Fonte: adaptado de Grint (2005).
Para Kelly et al. (2006), a própria busca do conceito de liderança, utilizando a
classificação de Rittel e Webber (1973), já seria, em si, uma função que poderia ser
enquadrada no “problema espinhoso”. Ou seja, o esforço realizado por Grint (2005) ajuda a
organizar o campo, mas está longe de esgotar o problema. Ela pode ajudar a diferenciar
algumas ações que são comumente confundidas com o que se deve entender por liderança,
mas não fornece instrumentos adicionais para a compreensão dos diversos aspectos
envolvidos nesse conceito, que é complexo.
Busca-se então explorar outros aspectos que estão envolvidos no conceito. Dois pontos
que ultimamente têm sido muito utilizados para a caracterização da liderança são: a
efetividade da liderança e a emergência da liderança. Pela importância que têm assumido nas
Incerteza sobre a
solução do problema Problema
“Espinhoso” LIDERANÇA
Fazer
perguntas
GESTÃO
Organizar
processos
Problema
“Domesticado”
COMANDO Fornecer
respostas Problema
“crítico” Necessidade de
solução colaborativa
Normativa
Poder “brando”
Coercitiva
Poder “duro”
Calculada
156
pesquisas mais recentes, merecem ser mais bem explorados na conceituação da liderança,
antes de se prosseguir com as abordagens mais atuais.
3.3.2 A efetividade da liderança como um aspecto do conceito
De acordo com Kotter (1988, p. 16), se a liderança é “o processo de mover um grupo
(ou grupos) de pessoas e uma mesma direção usando (prioritariamente) meios não
coercitivos”, a liderança efetiva – que alguns poderiam chamar de “boa” liderança – poderia
ser caracterizada como sendo o “processo de mover as pessoas numa direção que está
genuinamente de acordo com seus interesses de longo prazo” (KOTTER, 1988, p. 17).
Para Erickson, Shaw e Agabe (2007), se os autores abordam o que se entende por
liderança efetiva, coincidindo com o que chamam de boa liderança, como se poderia
caracterizar uma má liderança? Seria o simplesmente o oposto? Nesse caso, quais
características definiriam esse oposto? Ou seria a ausência de traços e de comportamentos
relacionados à boa (ou efetiva) liderança? Poderia ainda estar relacionada a outras dimensões
totalmente diferentes dessas anteriores?
Para buscar a resposta a essas perguntas, o caminho a ser percorrido aqui é aquele que
discute a liderança efetiva. Northouse (2007) identifica quatro componentes centrais ao
fenômeno da liderança, que devem ser considerados em sua definição: a liderança (i) é um
processo que (ii) envolve influência, que (iii) ocorre dentro de um contexto de grupo e que
(iv) envolve atingir um objetivo. Uma liderança assim caracterizada e que atinge o(s) seu(s)
objetivo(s) poderia ser considerada uma liderança efetiva.
De acordo com Hogan, Curphy e Hogan (1994), enquanto uma boa liderança se
associaria a uma boa performance e àsatisfação dos liderados, a má liderança estaria
relacionada à alta rotatividade de pessoas, insubordinação, sabotagem e simulações de doença
– no que vários autores abordaram sob o título de resistência ao poder.
Esses autores sugerem que uma boa liderança deve envolver persuasão do liderado, e
não a sua dominação, e que só se deveria falar em liderança no caso de as pessoas “adotarem
voluntariamente, por um período de tempo, os objetivos do grupo como sendo os seus
objetivos” (HOGAN; CURPHY; HOGAN, 1994, p. 493 – grifo nosso). Em outros termos,
aquele que exerce o poder a partir da dominação tem o poder, mas não é um líder.
Hogan Curphy e Hogan (1994) exemplificam as consequências da boa e da má
liderança com o que ocorreu na corrida ao Polo Sul, com duas expedições conduzidas
simultaneamente por noruegueses liderados por Roald Amundsen e por ingleses liderados por
157
Robert Scott: enquanto os noruegueses atingiram o objetivo e voltaram para casa, a má
condução do grupo inglês lhes custou não só o fracasso, mas a vida.
Os mesmos autores, discutindo a relevância do tema, citam Hitler e Stalin como
exemplos de lideranças que produziram, como consequência, o sofrimento de muitos – mas
negligenciando o fato de que, pelo menos no caso de Hitler, essa foi uma liderança eleita, a
partir de um processo de persuasão do liderado. Ou seja, quando a discussão é realizada a
partir da noção de liderança como “boa” ou “má”, o que se tem não é apenas mais uma
questão conceitual – uma vez que não parece haver dúvidas quanto ao fato de Hitler ter sido
um líder –, mas uma questão de valor.
Esse aspecto envolvendo questão de fato e questão de valor em pesquisa social
empírica será abordado no próximo capítulo, a partir das definições feitas por Max Weber
(2001). Ele envolve algo que, apesar de estar incluído no objeto de investigação, depende do
sujeito, do investigador. E essa é uma questão muito relevante para as discussões sobre
liderança, pois se deve considerar que as necessidades do indivíduo nem sempre (ou talvez
raramente) são congruentes com as necessidades da organização.
Nesse sentido, pode-se discutir se a efetividade do líder em influenciar o grupo em
relação aos objetivos da organização pode se relacionar à sua efetividade no desenvolvimento
do liderado, como proposto pela liderança transformacional. Assim, ao se falar em boa ou má
liderança, deve-se perguntar para quem ela será boa ou má? Ou seja, um líder efetivo, sob o
ponto de vista da organização, pode ter colaborado para dificultar a identificação e a busca
dos objetivos que seriam próprios do indivíduo, de acordo com sua história pessoal – ou seja,
pode não ser efetivo, sob a ótica da liderança transformacional (BARKER, 2001).
Ainda no conceito de liderança efetiva, uma outra questão pode ser levantada: haveria
alguma relação entre a efetividade do líder e o fato dele ser um líder autêntico?
Como foi visto, é a efetividade em fazer com que uma pessoa ou grupo de pessoas
atinja determinado objetivo o que vai definir, para muitos autores, uma relação de liderança.
Entretanto, de acordo com Michie e Gooty (2005), um dos maiores desafios do líder autêntico
estaria em lidar com o conflito entre ser eficiente, nos termos do que foi discutido na seção
anterior, e ser ético.
É com base, então, nesse conflito, que será necessário definir-se o que é um líder
autêntico.
3.3.3 A liderança autêntica
158
A teoria sobre a liderança autêntica vem sendo desenvolvida a partir do início da
década de 2000, em uma visão que envolve a interseção entre três campos: a liderança, a ética
e a psicologia positiva – esta última sob o ângulo do comportamento organizacional.
Na definição de Harter (2002, p. 382), a autenticidade pode ser caracterizada pelo
indivíduo que a possui, o qual deve “ter as suas próprias experiências, sejam elas
pensamentos, emoções, necessidades, preferências ou crenças, processos que são obtidos pela
determinação em se conhecer” bem como “agir de acordo com o verdadeiro self, expressando-
se de modo consistente com os seus sentimentos e seus pensamentos interiores”. A partir
dessa definição, Luthans e Avolio (2003, p. 243) definiram a liderança autêntica como:
Um processo derivado tanto das capacidades da psicologia positiva como de um
contexto organizacional altamente desenvolvido, que resulta em uma maior
autoconsciência e comportamentos positivos autorregulados, tanto da parte dos
líderes como dos liderados, fomentando um autodesenvolvimento positivo.
Os autores caracterizaram ainda o líder autêntico como sendo aquele que apresente
intenções transparentes, procurando manter a coerência entre seus valores, seus
comportamentos e suas ações, além de ter desenvolvida a capacidade moral de realizar
julgamentos morais despojados de interesse próprio. Para estar de acordo com essas
características, ele deve ser um indivíduo “confiante, esperançoso, otimista, jovial, moral e
ético, orientado para o futuro e que prioriza o desenvolvimento da liderança nos seguidores. O
líder autêntico é verdadeiro consigo mesmo e seu comportamento visível transforma ou
desenvolve nos seguidores a liderança” (LUTHANS; AVOLIO, 2003, p. 243). Além disso, os
autores também propuseram que o que se espera de um líder autêntico é que ele seja capaz de
sacrifício de seus interesses próprios em favor do interesse coletivo.
Ilies, Morgeson e Nahrgang (2005), utilizando outra definição de autenticidade
baseada em conceitos como bem-estar e o “valor da vida”, propuseram um modelo de
autenticidade calcado em quatro componentes básicos: autoconsciência, processamento não
enviesado, comportamento e ação autênticos e uma autêntica orientação relacional. É uma
visão que tem como fundamento a noção de autenticidade multicomponente, como
desenvolvida por Kernis (2003).
O que Kernis (2003) salientou é que, ao se atingir a autenticidade, o indivíduo também
atinge níveis “ótimos” de autoestima, pois quando se conhece e se aceita – aí incluídas as suas
forças e fraquezas – ele apresenta um nível estável de autoestima. Isso o deixaria livre de
algum viés defensivo, o que possibilita relações mais abertas, transparentes e com mais
159
proximidade do que ocorreria com outras pessoas, além de comportamentos que poderiam
refletir mais consistência entre suas crenças, valores e ações.
A efetividade desse tipo de liderança também deveria ter, como consequência, uma
sensação de bem-estar eudaemonico33
, o qual pode ser identificado tanto por parte dos líderes
como dos liderados, pelas seguintes características: expressividade pessoal, autorrealização,
autodesenvolvimento, fluxo de experiências, autoeficácia e autoestima. O processo pelo qual
os líderes influenciariam positivamente os liderados ocorreria por: identificação do liderado
com o líder e com a organização, contágio das emoções positivas, modelo positivo de
comportamento, autodeterminação de suporte e trocas sociais positivas (ILIES;
MORGESON; NAHRGANG, 2005, p. 377).
A essas definições, mais voltadas para aspectos identificados com a psicologia social,
foram acrescidos outros dois componentes preconizados por Avolio (2004), Avolio e Gardner
(2005) e Gardner et al. (2005), que são o foco no desenvolvimento e a existência de um
componente moral inerente. O resultado final da caracterização realizada por Gardner et al.
(2005) ficou mais próximo da definição de líder transformacional de Burns (1978) em alguns
aspectos: o pré-requisito de possuir alto padrão moral e os objetivos voltados para fins – no
caso de Gardner et al. (2005), os de justiça e liberdade.
A partir dessas características, os autores ofereceram instrumentos para desqualificar
como não autênticos os líderes cujo comportamento pode ser identificado com um caráter
mais narcisista, como foi caracterizado por Kets de Vries (1990), e será apresentado à frente.
Revisando a literatura sobre a liderança autêntica, Shamir e Eilam (2005)
identificaram alguns elementos que eram comuns à maioria dos autores consultados: os
líderes autênticos eram descritos como possuidores de autoconhecimento e ponto de vista
pessoal, o que poderia refletir clareza em seus valores e suas convicções; e eles também eram
descritos como sendo altamente identificados com o seu papel de líder, expressando-se por
meio da representação desse papel e agindo com base em seus valores e convicções.
Walumbwa et al. (2008) buscaram integrar essas diversas perspectivas, definindo o
que seria o construto “liderança autêntica”, com a finalidade de desenvolver um questionário
– o Authentic leadsership questionnaire (ALQ). A definição proposta foi a seguinte: liderança
autêntica é um padrão de comportamento que deriva de, e promove, tanto capacidades
psícológicas positivas como um clima ético positivo, fomentando mais autoconsciência, a
33
Eudaemonismo: doutrina defendida por vários filósofos gregos, apresentada por Aristóteles na sua Ética a
Nicômaco como sendo a felicidade como princípio e que, segundo Houaiss e Villar (2001, p. 1273), “considera a
busca de uma vida feliz, seja em âmbito individual, seja coletivo, o princípio e fundamento dos valores morais,
julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade”.
160
internalização de uma perspectiva moral, processamento de informações equilibrado e
transparência relacional da parte dos líderes no trabalho com os seguidores, fomentando o
autodesenvolvimento positivo (WALUMBWA et al., 2008, p. 96).
Esse questionário está baseado na teoria sobre a liderança autêntica, de modo especial
a identificar quatro dimensões teóricas para o construto, abandonando perspectivas mais
filosóficas como as de Shamir e Eilam (2005) – que não levam em consideração os valores e
convicções, como fez a maioria dos outros autores.
Uma vez validado, a intenção seria poder utilizá-lo em pesquisas nas quais se tenha a
intenção de mensurar os resultados de relações de liderança baseadas nesse construto.
3.3.4 O desenvolvimento da liderança
Segundo Bryman (2009), a mudança da abordagem do traço pessoal para a do estilo
trouxe consigo uma implicação prática: se o comportamento pode ser modificado, a ênfase,
antes colocada na seleção dos líderes, muda para a possibilidade de treinamento dos
indivíduos. Desde então, são vários os métodos que têm sido propostos para treinar e
desenvolver a liderança, dada a importância que isso tem representado para muitas das
organizações – em algumas delas, ele chega a ser responsável pelo maior volume de recursos
empregados para os programas de treinamento e desenvolvimento (ARDICHVILI;
MANDERSCHEID, 2008).
Mas, para Barker (2001), treinar o líder para o exercício de uma liderança efetiva deve
implicar o conhecimento do que se quer obter como resultado do treinamento – em outros
termos, significa responder à pergunta: qual é o objetivo da liderança, o liderado ou a
organização? As dificuldades nesse sentido podem ser antecipadas pelo título de um de seus
artigos: “Como podemos treinar líderes se nós não sabemos o que é liderança?” (BARKER,
1997).
A questão é que, considerando os inúmeros modelos de liderança hoje disponíveis, são
também muitas as propostas disponíveis na literatura para esse fim – donde a necessidade de
dar alguma organização para esse campo, para que a discussão tenha algum proveito.
A literatura voltada para o desenvolvimento da liderança pode ser enquadrada, em
geral, em dois grandes grupos: a funcionalista e a construcionista – sendo que esta última
pode ser diferenciada da social-construtivista (CARROLL; LEVY, 2010).
Um dos primeiros trabalhos de desenvolvimento identificados na literatura, que foi o
de Conger (1992), pode ser classificado facilmente no primeiro grupo – pelo modo como é
161
conduzido, ele assume a forma de fornecimento de “know-how”, em que os participantes são
instrumentalizados a trabalhar consigo e com os outros “em nome da liderança” (CARROLL;
LEVY, 2010, p. 217). A metodologia proposta por Cacioppe (1998) – um modelo de sete
estágios, com avaliações após cada estágio – também pode ser inserido nesse grupo.
Autores da linha construcionista tendem a trabalhar em um quadro de
“desenvolvimento duradouro” que lida basicamente com a construção de identidades, que é
interna ao indivíduo (CARROLL; LEVY, 2010). Mas haveria ainda uma terceira linha, que
poderia ser diferenciada desta última chamando-a de socioconstrucionista, que leva em
consideração o processo que ocorre durante os relacionamentos.
A proposta de Day (2001) estaria nesse terceiro grupo. Considerando a liderança um
processo social por meio do qual ela é percebida como o efeito das relações entre líder e
liderado, Day (2001) refere que desenvolver a liderança significa desenvolver as habilidades
interpessoais do líder – que podem depender de suas habilidades pessoais, mas que não é a
mesma coisa. Já o desenvolvimento do líder é um processo orientado para desenvolver
habilidades associadas ao papel que o indivíduo desempenha. Processos de desenvolvimento
de líderes e de liderança são, por isso, boas oportunidades para marcar essas diferenças. Para
explicitar a diferença entre os dois conceitos, o Quadro 1, adaptado de Day (2001), faz uma
comparação a partir de quatro dimensões escolhidas.
Quadro 1 - Comparação entre líder e liderança a partir de
quatro dimensões escolhidas
DIMENSÃO
LÍDER
LIDERANÇA
TIPO DE CAPITAL Humano Social
MODELO Individual
Poder pessoal
Conhecimento
Confiabilidade
Relacional
Compromisso
Respeito mútuo
Confiança
COMPETÊNCIA Intrapessoal Interpessoal
HABILIDADES Compreensão de si mesmo
Consciência emocional
Autoconfiança
Autoimagem acurada
Autodireção
Autocontrole
Fidedignidade
Responsabilidade
Adaptabilidade
Consciência social
Empatia
Orientação para o atendimento
Consciência política
Habilidades sociais
Construção de vínculos
Orientação para equipes
Catalisação de mudanças
162
Automotivação
Iniciativa
Compromisso
Otimismo
Gerenciamento de conflitos
Fonte: Adaptado de Day (2001).
Nessa mesma linha, Olivares, Peterson e Hess (2007) enfatizam que:
Embora desenvolver o líder baseado no indivíduo seja algo necessário para a
liderança, isso não é suficiente. A liderança requer que o desenvolvimento pessoal
esteja integrado e entendido no contexto dos outros, dos sistemas sociais e das
estratégias, missões e metas organizacionais (OLIVARES; PETERSON; HESS,
2007, p. 79).
Em outras palavras, desenvolver o líder e a liderança são dois processos distintos –
ainda que relacionados – que, para ocorrerem de modo efetivo, demandam primeiramente
uma resposta para o que tem sido perseguido em todo este capítulo: o conceito de liderança.
Tendo explorado até aqui os diversos aspectos que têm sido utilizados pelos autores
para buscar estabelecer o conceito da liderança, já se pode continuar a discutir algumas das
menções mais contemporâneas e emergentes – ainda no mainstream.
3.4 Abordagens contemporâneas e emergentes da liderança
A despeito dos sinais de um incipiente desafio ao tipo de análise conduzida pelo
mainstream em torno do final da década de 1970, mais de 130 livros publicados na
década seguinte reforçaram a mensagem convencional e ortodoxa de que “a
liderança é basicamente fazer o que o líder quer que seja feito”. Esse reforço
continuado do foco tradicional de estudos é estranho, se forem considerados os
importantes esforços de reconfiguração de todo o campo da liderança (GRONN,
2002, p. 423).
Na fase mais recente da evolução das pesquisas surgiram várias linhas de investigação
que ainda são usadas em muitas das abordagens atuais. Serão abordadas de modo mais
detalhado a seguir, pois de alguma forma poderão ser utilizadas como fundamento na
discussão dos resultados encontrados nesta pesquisa empírica.
Para facilitar a abordagem, as linhas contemporâneas serão separadas em dois grandes
grupos:
a) As que levam em consideração a cultura, a teoria da complexidade, as competências, a
autoliderança e as que partem do princípio de que qualquer abordagem que busque se
163
aproximar da realidade deve levar em consideração os diversos níveis a partir dos
quais as relações de liderança se expressam;
b) as que possuem como foco principal a subjetividade e que por isso mesmo são
derivadas de teorias que envolvem, ou a psicanálise freudiana ou as demais teorias que
tomam por base a personalidade.
Um fundamento que pode ser utilizado para essa divisão reside em que, para
classificar os trabalhos no mainstream, um instrumento útil é o esquema de referência dos
paradigmas sociológicos, conforme Burrell e Morgan (2008)34
. Nesse esquema, o líder pode
ser compreendido, de forma bem geral, a partir de duas linhas principais: o indivíduo racional
da modernidade, possuidor de uma consciência que fundamenta os seus pensamentos, suas
escolhas e seus atos e dono de sua subjetividade, como é visto pelas sociologias de orientação
mais funcionalista; ou o sujeito que se define a partir das relações que estabelece com o outro,
como foi estabelecido pela psicanálise freudiana (FREUD, 1987a; 1987b; 1987c; 1987d;
1987e), em uma visão adotada também pela sociologia de orientação mais interpretacionista
(mas que, dependendo da forma de tratamento, também poderia se inserir no paradigma
estruturalista).
Dependendo da escolha adotada para a compreensão do indivíduo, sua abordagem em
uma relação de liderança pode mudar substancialmente – e as duas devem ser consideradas
aqui, uma vez que serão utilizadas por diferentes autores que conduzem pesquisas na
atualidade.
3.4.1 Abordagens cuja orientação estaria melhor caracterizada como funcionalista
O primeiro conjunto a ser mencionado é aquele identificado com as linhas mais
funcionalistas. Aqui não é tarefa simples definir, entre as diversas teorias relacionadas à
liderança, o que é história e o que é contemporâneo, uma vez que, como Gronn (2002)
apresenta na epígrafe desta seção, novos aportes teóricos não significam necessariamente uma
mudança na direção da abordagem do tema. Frequentemente, observam-se teorias
abandonadas sendo retomadas, às vezes modificadas à luz de alguma abordagem recente.
Em análise realizada por Hunt (1999) da produção acadêmica até o final da década de
1990, o autor identifica insatisfação com os dois binários, o líder-liderado e o liderança-
34
Já apresentado na nota 3, à pg. 22
164
seguidores, basicamente ou no que diz respeito à concepção individualista da liderança e do
lidercentrismo ou o seu oposto, com a antiliderança.
Gronn (2002) faz um apanhado de como vários autores buscaram lidar com esses
incômodos. Em relação ao lidercentrismo, foram identificados quatro tratamentos básicos:
revitalizando a noção de seguidor, em função da complementaridade dos dois construtos;
buscando abolir a categoria de seguidor, promovendo experiências de rotação de liderança;
simplesmente abandonando a ideia de seguidor; focando apenas o comportamento do
seguidor, baseado no fato de que os líderes seriam literalmente dependentes dos seus
seguidores.
Já no tocante ao individualismo, o foco voltou-se para os aspectos carismático e
transformacional da liderança. Alguns exemplos identificados foram:
a) Que, em contraste com a liderança carismática, a transformacional teria uma expressão
coletiva e que esses modelos, estando muito focados no indivíduo, se esquecem de
que, dependendo do indivíduo, essas lideranças tanto podem trazer benefícios como
prejuízos;
b) autores como Yukl (1999) discutem se essa visão de líder visionário não estaria
ultrapassada, tendo os seguidores migrado para uma visão que identifica os resultados
como produtos de esforços coletivos no lugar da ideia de uma criação de um indivíduo
isolado. Também nessa linha existe o questionamento sobre se seria apropriado
considerar que a maior parte do comportamento das pessoas poderia estar ligada a algo
que o líder faça (GRONN, 1995).
Em relação à antiliderança, um dos primeiros autores a se posicionar nessa linha foi
Argyris (1979), considerando que o conhecimento em liderança era aditivo e não cumulativo,
devendo se conectar à prática da liderança se quisesse ser útil e abandonando esse campo de
pesquisas. Nesse mesmo caminho, Calder (1977) via a liderança apenas como um rótulo para
o que se conhece como influência interpessoal, à qual se agregaria o construto privilégio, o
que, de acordo com Pfeffer (1977), seria reforçado pelos efeitos simbólicos das cerimônias e
dos processos de seleção e iniciação.
Já na década de 1990, quando já eram propostas ideias como autoliderança, substitutos
de liderança e lideranças compartilhada e distribuída, Shamir (1999, p. 51) menciona uma
dicotomia entre situações em que há uma liderança identificada, que ele denomina como
“forte”, descrita como possuidora de “influência social desproporcional. Nessa influência, a
parte que exerce forte influência sobre as outras (o líder) pode ser identificada”,
165
diferenciando-se daquelas que chamou de “fracas”, em que são identificadas as ações
coletivas sem liderança. Alternativa foi proposta por Miller (1998), de abandonar a categoria
de seguidores e transformando a organização em um processo de negociação entre líderes.
No Brasil, Fernandes e Vaz (2010) revisaram 44 artigos publicados no Academy of
Management Journal no período entre 1995 e 2008, detectando “grande predominância do
paradigma funcionalista, presente em 40 dos 44 artigos analisados, sendo que somente os
quatro restantes podem ser categorizados no campo teórico interpretativo” (FERNANDES;
VAZ, 2010, p. 160). Os autores apuraram também forte concentração nos estilos
transformacional, transacional e carismático (16 artigos), tendo ainda a metade de todos os
artigos feito referência aos estudos de House, o que mostra importante influência da
perspectiva situacional nos trabalhos publicados naquele periódico (FERNANDES; VAZ,
2010).
Entretanto, e considerando os fundamentos metodológicos determinados para esta
pesquisa, interessam aqui perspectivas que se poderia chamar de emergentes, uma vez que
exploram o campo, mas não se pode dizer que tenham definido um novo paradigma teórico.
É nesse sentido que, voltando um pouco na sequência histórica que vinha sendo
desenvolvida no item anterior, será abordada uma linha que teve o seu início na década de
1980, mas que ainda hoje exerce influência sobre muitos pesquisadores – que é a da cultura.
Pretende-se explorar, ainda que de modo sumário, outras referências encontradas na
literatura mais contemporânea, como as que exploram o modelo de competências, a teoria da
complexidade, autoliderança, a liderança como coaching e as abordagens que reconhecem que
a liderança deve ser tratada considerando-se os diversos níveis nos quais se dá a relação entre
líderes e liderados.
3.4.1.1 Liderança e cultura
Autores como Edgar Schein (1985), em sintonia com as teorias organizacionais
vigentes na década de 1980, entenderam que, para ser efetivo, o líder deve levar em
consideração a cultura organizacional. As variáveis de análise passam a considerar os
aspectos relativos às relações entre indivíduos, como valores, poder e expectativas criadas.
Nessa linha, uma importante função do líder seria gerenciar a cultura, estabelecendo
uma direção estratégica explícita, comunicando essa direção e definindo qual é a visão e quais
são os valores da organização (BARON, 1995). O líder passa a ser visto, então, como aquele
que deve interpretar e dar sentido ao que ocorre na organização (WEICK, 1993) ou aquele
166
que deve ter uma visão sobre para onde deve se dirigir a organização (BENNIS; NANUS,
1988). Para Nanus (1992), líderes são indivíduos caracterizados por possuírem – e
compartilharem – uma visão, num processo que faz com que os envolvidos se sintam como
parte de um grupo. E essa visão teria como finalidade criar sentido.
Para cumprir esse objetivo, deve-se entender o papel central representado pelos mitos,
os quais são compreendidos como “valores culturais encapsulados em forma narrativa”
(BURTIS; DOUGLAS; POND-BURTIS, 2001, p. 56). De acordo com esses autores:
Mitos são narrativas culturalmente compartilhadas para descrever um aspecto
importante da cultura ou seus valores, fornecendo um instrumento normativo, ou
cálculo, de “verdade” para aqueles que estão dentro da cultura, ajudando a
conformar valores, crenças e a realidade simbólica (BURTIS; DOUGLAS; POND-
BURTIS, 2001, p. 55).
Esses autores procuram fazer um resumo das funções mais importantes do mito,
reunindo-as em dois grupos principais: eles ajudam a coconstruir sentidos compartilhados, ao
indicar se a narrativa deve ser vista como “verdade” pelos membros da cultura, incluindo a
própria percepção de problema, a qual é possibilitada pela lente que é fornecida pelo mito; e
os mitos dão sentido ao que não pode ser sustentado racionalmente. Nesse aspecto, eles
justificam normas e instituições de uma cultura e dão suporte a algumas mudanças.
Como muito da visão apresentada pelo líder traz consigo um potencial para mudança,
os mitos podem ser utilizados para autorizar esse tipo de visão, como também a mudança a ela
relacionada. Por sua importância na relação líder-liderado, Burtis, Douglas e Pond-Burtis
(2001) reúnem algumas características da visão do líder, as quais serão aqui sumarizadas:
a) Ela é um processo comunicativo. Apesar dos autores consultados por Burtis, Douglas
e Pond-Burtis (2001) concordarem com esse aspecto da visão do líder, essa
comunicação pode acontecer de duas formas diferentes: uma comunicação direta da
visão do líder para o grupo, como é inferido pela maioria dos autores; mas ela também
pode ser parte de um processo de comunicação sinérgica do líder com o grupo que,
assim, constroem a visão conjuntamente;
b) a sua comunicação por um indivíduo é um facilitador para a percepção deste como
líder (NANUS, 1992). Na verdade, muitos autores no mainstream dos estudos sobre
liderança consideram que “comunicar uma visão” é um dos papéis mais importantes
exercidos por um líder;
c) uma terceira característica da visão é que a sua força aumenta durante uma crise;
167
d) a de que a visão implica valores, os quais funcionam como verdades culturais. Aqui se
deve lembrar que é nos mitos que estão reunidos os valores de uma cultura;
e) outra característica é que a visão deve ser baseada na realidade do grupo – lembrando
que essa realidade é uma construção social do grupo e que, portanto, carrega consigo
muito de simbólico (ou seja, ela não é necessariamente lógica ou “objetiva”);
f) uma sexta característica da visão é a de que ela está ligada a um futuro, o qual deve ser
diferente da condição presente;
g) A última característica é a de que ela intensifica o sentido da vida e das atividades do
grupo (BURTIS; DOUGLAS; POND-BURTIS, 2001).
Sob outra ótica, mas ainda de acordo com a ideia do líder como aquele que confere
sentido, Manz e Sims (1991) preconizaram o que chamaram de superliderança – que seria
mais bem compreendida como sendo uma autoliderança. Esses autores realizaram uma
revisão da produção acadêmica até a década de 1990, chegando a uma visão de liderança
como processo, como sendo o ápice do desenvolvimento de noções que partiram do
indivíduo, mas que chegam na relação entre indivíduos na cultura organizacional, como numa
compreensão da natureza complexa e de interdependência da liderança.
Drath e Palus (1994), num trajeto também derivado da administração de cultura,
também enfatizam a teoria da liderança como um processo. Esses autores não consideram os
líderes como indivíduos que estão envolvidos com os seus seguidores, mas como membros de
uma comunidade de prática – aqui definida como “pessoas reunidas em torno de um
empreendimento comum, compartilhando a mesma história e, por isso, certos valores,
crenças, modos de falar e de fazer as coisas” (DRATH; PALUS, 1994, p. 4).
Dessa forma, a liderança seria uma ferramenta da qual as pessoas lançam mão, muito
mais com a finalidade de “produzir sentido” do que de tomar decisões ou de influenciar
pessoas. Ela não seria a única maneira de produzir sentido – esse poderia ser produzido, no
nível do indivíduo, pelo aprendizado e por outros meios de desenvolver o Ego, e no nível
coletivo, pela linguagem, arte, sistemas de conhecimento, em outros termos, pela cultura. A
diferença entre a liderança e esses outros meios está na possibilidade de sua utilização em
uma comunidade de prática (DRATH; PALUS, 1994).
Por ser vista como um “gerenciamento da cultura”, pode-se levantar a questão sobre as
possíveis modificações que a liderança deve sofrer de acordo com o panorama cultural. Com a
finalidade de investigar esse aspecto, Bass (1997) realizou uma pesquisa empírica na qual
concluiu que não foi encontrada uma sociedade na qual não tenha havido alguma forma de
168
expressão da liderança, ainda que a forma de sua ocorrência tenha sido afetada pela cultura de
onde ela ocorre.
Ainda que modulada pela cultura, Bass (1997, pp. 131-132) cita cinco regularidades
(ou, como denominou, universais, definidos como conceitos universalmente aplicáveis) nas
relações líder-liderado que transcenderiam as culturas. São eles:
a) O universal simples: a partir da observação de que em qualquer grupamento humano
há um líder cujo sucesso é percebido como sendo o mesmo, independentemente de ser
uma empresa norte-americana ou num exército grego;
b) o universal variforme: que são regularidades influenciadas pela cultura: enquanto nos
Estados Unidos da América as empresas são chefiadas por um único executivo, na
Alemanha um diretor técnico e um comercial dividem a autoridade e as
responsabilidades:
c) o universal funcional, que é um universal entre variáveis: em qualquer lugar, um líder
que evita responsabilidades e se esquiva dos deveres é percebido como inefetivo e
desagradável pelos seguidores. Bass especifica melhor esse universal, chamando-o de:
universal variforme funcional (em que se constata correlação positiva entre o carisma
atribuído ao líder e a satisfação dos liderados com ele) e o universal sistemático
comportamental: é uma teoria que explica os resultados do tipo “se... então” entre
culturas e organizações.
Segundo Bass (1997), o modelo transacional-transformacional produz relacionamentos
que são mensuráveis para aplicação em tal teoria. O autor apresenta no artigo o resultado da
aplicação de um questionário em várias culturas, cujo resultado demonstraria que, apesar das
variações de ordem cultural, o conceito envolvendo liderança transacional-transformacional
estaria mantido.
Entretanto, deve-se chamar a atenção para o fato de que aproximadamente 98% de
toda a teoria envolvendo a liderança foi produzida nos Estados Unidos da América – estando,
assim, marcada pelas especificidades daquela cultura (HOUSE; ADITYA, 1997).
Trabalhos mais recentes referentes aos modelos de liderança compartilhada e
distribuída colocam em questão algumas dessas conclusões de Bass (1997). Esses trabalhos
serão apresentados a seguir.
3.4.1.2 Lideranças compartilhada e distribuída
169
Não é necessário que um indivíduo execute todas as funções essenciais da liderança,
mas que um conjunto de pessoas possa realizá-las coletivamente. Algumas funções
da liderança (como tomar decisões importantes) podem ser compartilhadas por
vários membros do grupo, algumas podem ser designadas para alguns membros
individuais, e uma função particular pode ser executada por indivíduos diferentes em
momentos diferentes. Ações de liderança de um líder individual são muito menos
importantes do que a liderança coletiva exercida por membros da organização
(YUKL, 1999, p. 292-293).
A ideia de uma liderança distribuída não é nova. Ela data da década de 1950, com os
trabalhos do teórico australiano Gibb (1954), mas foi negligenciada até sua recuperação, na
década de 1980, por Brown e Hosking (1986).
Gronn (2002) comenta o tema na ótica da divisão do trabalho, que é, segundo ele, a
fonte das relações de poder na sociedade e nas organizações. Está implícita na divisão do
trabalho a dualidade integração-diferenciação, que demanda formas diferentes de
interdependência e coordenação, as quais estão na origem dos diversos padrões de
distribuição da liderança. E identifica duas visões diferentes para uma distribuição de
liderança:
a) Visão numérica (ou múltipla), de acordo com Miller (1998), que parte do princípio de
que pessoas em pontos diferentes da organização (telefonista, recepcionista, o
vendedor, etc.) representam a organização para o mercado e espelham o mercado para
a organização, permitindo que se chegue ao ponto de que todos os componentes da
organização sejam líderes em algum estágio do processo;
b) visão holística, em consonância com Gibb (1954), em que a ação é vista como
conjunta, em lugar da visão de agregado – como na anterior. Nesse caso, podem ser
identificados ainda três modelos, que podem representar estágios diferentes em um
processo de institucionalização. Em todos os casos, identifica-se o que Gronn (2002)
denominou de agência conjunta, que pode ocorrer ou por sinergia entre os membros
ou por influência recíproca exercida entre eles. Os três modelos são:
(i) modelos colaborativos, como descritos por Spillane, Halverson e Diamond (2000),
em um contexto de escola e que nascem espontaneamente nos processos de
trabalho. A liderança aqui está na interação entre vários líderes, de modo que a
prática da liderança está “dispersa” pelo âmbito social da organização,e pode se
evidenciar tanto em situações programadas (p. ex., nas reuniões regulares), como
em não programadas (p. ex., crises). O processo pode ser originado de uma ou mais
pessoas (diferentes, em diferentes situações) as quais, por motivações de ordem
pessoal, dão o primeiro passo, desencadeando o processo subsequente;
170
(ii) modelos intuitivos, que seriam a consequência das relações de proximidade entre
colegas. Exemplos deste modelo foram descritos por autores como Fondas e
Stewart (1994);
(iii) formas mais estruturadas e institucionalizadas, com exemplos desse modelo
descritos por Greenleaf (1977), que observou um grupo de líderes encabeçados por
“um entre iguais”, no lugar de estruturas hierarquizadas.
Deve-se considerar que as descrições dessas formas mais distributivas de liderança
foram descritas em universidades, laboratórios de pesquisas, clínicas médicas, consultorias,
escritórios de advocacia, conjuntos de música, empresas de softwares ou de trabalho
informatizado em rede – apenas para citar alguns exemplos. São formas de trabalho que
implicam algum nível de interdependência, no sentido de que as responsabilidades tanto
podem se superpor como podem se complementar. Os padrões de coordenação das atividades
envolvidas são diferentes, entre formas mais ou menos explícitas, dependendo da atividade,
como descrito por Gronn (2002).
Os tipos de sinergia que Gronn (2002) chamou de agência conjunta e que serão
importantes para sustentar esse tipo de liderança podem ser obtidas de:
a) Hierarquia cruzada, em que as sinergias vão depender de negociações sobre os limites
de papel, nas quais elas podem ser dinamicamente expandidas ou limitadas. Os fatores
que mais comumente estão envolvidos no sucesso dessas negociações envolvem
valores comuns, temperamentos complementares e experiências prévias de
colaboração;
b) amizade, que determina sinergias não contratuais;
c) credibilidade, que vão determinar para as relações algo próximo do que se encontram
nas relações matrimoniais saudáveis;
d) paridade de relações cujo exemplo citado pelo autor é de um conjunto de música de
câmara, como grupo de trabalho autogovernado e interdependente;
e) separação de poderes, em que se cria o que foi chamado de “domínio pluralístico” ou
vários agentes perseguindo objetivos diferentes em relacionamentos fluidos, o que
gera tensões qualitativamente diferentes das anteriormente relatadas – principalmente
quando se disputam limites ambíguos. Os exemplos dessa situação podem ser vistos
em diferentes departamentos de pesquisa em universidades, clínicas de uma estrutura
hospitalar, entre várias outras instituições de caráter semelhante – veja-se, como
171
exemplo, o trabalho de Buchanan (2007), sobre esse tipo de distribuição da liderança
no contexto de uma organização do setor de saúde.
Gronn (2002) identifica uma implicação desse tipo de liderança, que é o fato de que
ela não admite a confusão entre liderar e administrar (ou gerenciar), o que poderia gerar uma
confusão entre divisão de trabalho e divisão de direitos. Além disso, por implicar modelos em
que o espaço de ação é flexível, também entra em conflito, por exemplo, com o modelo de
competências, que será discutido na sequência.
3.4.1.3 A liderança e os modelos de competências, a autoliderança e o “coaching”
Essas três linhas têm em comum o fato de estarem ainda no foco de muitos autores
contemporâneos, apesar de exibirem aspectos que as vão diferenciar de modo muito
significativo. Por essa razão, serão relatadas em subitens separados.
A) O modelo de competências
Essa ótica é derivada da linha que advoga a gestão de pessoas nas organizações a
partir de uma abordagem baseada em competências. A ideia é fazer uma ligação entre as
competências exigidas pela organização e por seu modelo de negócios com aquelas nas
pessoas. Para tanto, autores como Cacioppe (1998) têm defendido que para se atingir um
desempenho mais elevado dos líderes, a identificação de competências nos indivíduos seria
tão importante que reforçam o desenvolvimento de padrões de competências.
De acordo com Sant‟Anna (2010), apesar das dúvidas quanto à origem e ao conceito
de competências, ela é “comumente sublinhada como uma característica ou um conjunto de
características ou requisitos – saberes, conhecimentos, aptidões, habilidades – indicados como
condição capaz de produzir resultados e/ou solução de problemas” (SANT‟ANNA, 2010, p.
201). Em relação à liderança, as competências referem-se à mobilização de múltiplas
capacidades, reunidas a partir de pesquisa com diversos trabalhos realizados até 2002, como:
Visão empreendedora, paixão, integridade, confiança, curiosidade, ousadia, visão de
futuro, domínio da mudança, aprendizado previdente e contínuo, iniciativa, domínio
da interdependência, responsabilidade, saber ouvir, respeito pelos seguidores,
proatividade, capacidade de priorização, otimismo, capacidade de sinergia,
orientação para o serviço, ter uma vida equilibrada, vulnerabilidade, discernimento,
consciência do espírito humano, coragem nos relacionamentos, senso de humor,
amplitude, conforto com a ambiguidade, presença, capacidade de lidar e motivar
pessoas, capacidade de conquistar e manter a confiança, coragem e perseverança,
172
ascendência, domínio, afirmação, adaptabilidade e flexibilidade de abordagem
(SANT‟ANNA, 2010, p. 204).
Mesmo considerando onde se insere o líder, existe uma importante linha de discussão
que afirma que essas competências não devem se restringir à esfera profissional, mas que
devem envolver toda a vida do indivíduo, incluídas aí a sua formação pessoal, a educacional e
sua experiência profissional (BITENCOURT, 2002).
Tem sido discutida a pertinência de se incluir ou não os aspectos relativos à
personalidade, diferenciando competências soft – que incluiriam a personalidade, valores e
estilos de liderança – de competências hard – as que estão relacionadas às habilidades
específicas para uma função (NUNES, 2010). A discussão aqui envolve a caracterização de
personalidade, se algo nato ou adquirido, de forma a ser ou não passível de desenvolvimento.
Os pressupostos relativos à personalidade, nesta pesquisa, serão abordados mais à frente, no
subitem 2.1.5.
B) A superliderança (ou autoliderança) e o coaching
De acordo com Mainz e Sims (1991), na “superliderança” o líder confere poder ao
liderado ensinando-os como liderar a si mesmo, o que propiciaria uma divisão de poderes
entre líderes e liderados. Os autores introduzem um modelo de sete passos para se atingir a
superliderança, que é baseado em uma participação orientada, na qual os líderes vão
conformando o comportamento dos liderados dentro do que seria um comportamento
“desejado” para se atingir esse tipo de liderança. Nesse sentido, a superliderança tem grande
proximidade com outro modelo – o da autoliderança.
A autoliderança foi descrita como sendo “o processo pelo qual a pessoa se dirige e se
motiva a se comportar e a realizar algo, de uma forma que foi por ela desejada”, e que
consiste em “uma variedade de estratégias interligadas dirigidas à autoconsciência, à volição,
à motivação e ao comportamento do indivíduo” (GEORGIANA, 2007, p. 570).
Ela foi caracterizada por Markham e Markham (1995) da seguinte forma:
Em síntese, a aplicação de técnicas de autogerenciamento tende a permitir aos
empregados uma significativa autoinfluência que visa como completar a tarefa para
se chegar a um padrão (que é definido pelo sistema), enquanto a autoliderança se
dirige ao que deve ser feito e ao seu porque, associado ao como fazê-lo
(MARKHAM; MARKHAM, 1995, p. 344 – grifos no original).
Sua origem é a motivação por realizações, que teve por inspiração a psicologia de
metas. O foco aqui estava no aprendizado e no autodesenvolvimento do indivíduo, como
173
opostos à simples demonstração de habilidades, o que foi mais recentemente refinado na
separação entre aproximação e esforço de evitação, na tentativa de compreender o
comportamento relevante para a competência. São técnicas que foram estudadas e
desenvolvidas em países ocidentais industrializados e que, por envolver características que
são sensíveis a diferenças culturais, pode haver alguma diferença nos resultados da aplicação
dessas técnicas em pessoas advindas de culturas muito diversas (GEORGIANA, 2007).
Esses conceitos estão muito próximos do que se entende por líder “coach”. A ideia de
uma liderança voltada para o desenvolvimento de potenciais do próprio líder, os quais devem
resultar em aumento de performance do grupo por ele liderado, relaciona-se diretamente com
a superliderança de Mainz e Sims (1991), associado a uma ótica que a liga à programação
neurolinguística. Isso pode ser comprovado em outros autores, também na década de 1990,
como Flaherty (1999), Howard (1995) e Whitmore (1992). Por proporcionar uma
metodologia bem funcionalista, mais facilmente aplicável a cursos de “treinamento e
desenvolvimento de liderança”, tem feito algum sucesso entre executivos. Não será detalhada
aqui por fugir do objetivo proposto para esta pesquisa.
3.4.1.4 Liderança e influência social
São basicamente três as perspectivas que levam em consideração a influência social
exercida pelo indivíduo como fontes de liderança:
a) A teoria da troca entre líder e liderado (LMX) – cujo foco está no líder como um ponto
de ligação entre o liderado e os recursos que fluem a partir da hierarquia. Nesse caso, a
relação é crítica, porque alguns entre os supervisionados – os identificados como
pertencendo ao in-group – podem ser premiados com mais confiança e oportunidades
do que outros. A influência observada aqui é “específica da díada”, mas visa à
influência que o indivíduo pode exercer para além dessa díada (SPARROWE;
LINDEN, 1997, 2005). A percepção por outros membros dessa preferência do líder
pode se constituir em fonte de reputação para o indivíduo envolvido nessa preferência;
b) a perspectiva de network – que tem se tornado mais importante na medida em que as
estruturas organizacionais vão se tornando mais achatadas e flexíveis. Nesse caso, é a
composição dos contatos informais da rede de relacionamentos do indivíduo a
responsável por colocá-lo em condições de identificar oportunidades estratégicas – de
modo especial se esses contatos não possuem relacionamento uns com os outros
(SPARROWE; LINDEN, 1997, 2005). Nesse caso, mesmo aqueles que se presumem
174
ter amizade com pessoas poderosas acabam por gozar da reputação de serem os mais
efetivos (KILDUFF; KRACKHARDT, 1994). Aqui, a estrutura de relacionamentos
informais pode ser tanto facilitadora como dificultadora para a troca de recursos
valiosos – como informação estratégica e suporte social;
c) a integração das duas perspectivas, proposta por Sparrowe e Linden (2005). Essa
perspectiva parte do princípio de que a teoria LMX envolve indivíduos que participam
de rede de relacionamentos informais cuja estrutura deve ser compreendida até para se
compreender os processos de diferenciação dos relacionamentos entre os líderes e
aqueles que são considerados do in-group. É uma perspectiva que traz a vantagem
complementar às insuficiências apresentadas pelas duas outras.
A ideia aqui é de que indivíduos que possuem mais acesso à informação estratégica,
em função de uma relação privilegiada com o líder, também se encontrarão em melhor
posição para trocas com membros de outros grupos. Por outro lado, sua posição entre
relacionamentos com indivíduos estratégicos de outros grupos poderia explicar algo da
relação diferenciada com seu líder (SPARROWE; LINDEN, 2005). O impacto desse tipo de
influência nas relações de liderança pode ser visto no trabalho apresentado por Brass (1984).
Nessa terceira perspectiva, um importante conceito é o de apadrinhamento, no sentido
de que membros apadrinhados pelo líder podem se beneficiar dos mesmos relacionamentos
deste. Sob a perspectiva das relações informais, é um processo no qual liderados ganham a
confiabilidade e a legitimidade necessárias para obter os benefícios de sua rede de
relacionamentos sociais. São relacionamentos baseados em confiança, a qual, por isso mesmo,
facilita o intercâmbio de recursos valiosos a partir de mecanismos que encorajam a
cooperação e punem o comportamento oportunístico. Esses laços também facilitam a
circulação de informações sobre a confiabilidade de outros indivíduos. As relações aqui
podem evoluir para relações recíprocas fortes em tríades, baseadas em confiança
(SPARROWE; LINDEN, 2005).
3.4.1.5 Teoria da complexidade e liderança
Velhas teorias sobre liderança, gestão e administração estão contidas na linguagem
newtoniana e no positivismo lógico das antigas ciências físicas que não são
consistentes com as novas ideias sobre a natureza da realidade e da vida (BARKER,
2001, p. 471).
175
O que há de interessante na teoria da complexidade para esta pesquisa? Basicamente o
fato de que ela parece estar em contradição com muitos dos fundamentos da racionalidade
ocidental – como a teoria da entropia –, afirmando que a ordem é livre. No caso da liderança,
o pressuposto a partir do qual se trabalha a racionalidade ocidental é de que resultados
eficientes dependem de coordenação top-down e planejamento racional, que implica uma
força externa, com acúmulo de energia, para conformar resultados organizacionais desejados.
A teoria da complexidade não nega esse pressuposto, mas afirma, para além dele, que a ordem
também pode ser influenciada por forças autogeradas (UHL-BIEN; MARION, 2008).
Segundo Barker (2001), o problema de se estudar processos sociais contínuos e
complexos está no fato de considerar que um fenômeno contínuo é composto de vários
elementos conceituais, considerando que cada incremento conceitual do fenômeno tem
começo e fim e que esses elementos possuem limites bem definidos que os separam. Não se
considera, com esse pensamento, a complexidade do todo com as inúmeras interconexões
existentes entre aquilo que seriam os elementos conceituais incrementais. A liderança, como
nós a experimentamos, é um desses processos contínuos.
Barker (2001) identifica dois erros principais em uma classificação de liderança, como
as de Bass (1990) ou de Burns (1978): o pressuposto de que a análise de uma série de eventos
de um processo equivale à análise do processo contínuo e o pressuposto de que as ações de
um indivíduo identificado como um grande líder é o efeito, cuja causa são as muitas vontades
individuais a ele relacionadas. Esses erros seriam consequência do uso de métodos empíricos
positivistas, que buscam relações unívocas de causa-feito e que só devem levar em
consideração os fenômenos que puderem ser observados pelo pesquisador.
Autores consagrados pelo prêmio Nobel, como Ilya Prigogine (1996) e Murray Gell-
Mann, descobriram que a ordem pode ser criada dissipando energia (contra a segunda lei da
termodinâmica, que afirma que a ordem é criada acumulando energia): sistemas tensos e
desestabilizados repentinamente liberam energia, criando uma nova e inesperada ordem –
como em um micro big-bang. Por fim, afirmam que em situações como as relações sociais,
que envolvem interações dinâmicas e de interdependência, o futuro é menos previsível do que
nossas equações pareceriam afirmar.
Uhl-Bien e Marion (2008) chamam a atenção para três características importantes de
sistemas complexos:
a) A interação entre os seus elementos: sistemas complexos, ao contrário dos
complicados, não podem ter seus componentes individuais separados, uma vez que
esses componentes estão em interação dinâmica. Apesar de lidar com networks, não é
176
seu objeto o modo como as pessoas lidam umas com as outras em redes, mas a forma
como mecanismos dinâmicos emergem de interações adaptativas de vários agentes;
b) o processo dinâmico no qual as coisas mudam e emergem no tempo. A mudança é,
assim, uma característica do comportamento complexo;
c) a habilidade para se adaptar ou para estabelecer mudanças que ajustem respostas
sistêmicas ou individuais a pressões. A resposta de um indivíduo interage e se adapta
às respostas de outros, o que resulta em uma resposta que é local, mas que cria
capacidade de adaptação para o todo.
O que se chama aqui de um comportamento organizacional complexo se refere a
mudanças emergentes, caracterizadas por ocorrerem de modo não linear, a partir da interação
e interdependência de seus elementos, de modo imprevisível, em movimentos autocatalíticos
e dinâmicos. O resultado de interações complexas em organizações seriam ideias inovadoras,
soluções de problemas, novos insights ou novas maneiras de ver coisas antigas.
A liderança nesse contexto poderia ser a responsável por propiciar as condições para
que esse tipo de ambiente pudesse surgir, considerando que muitos dos problemas enfrentados
pelas organizações são complexos e, por isso, dificilmente resolvidos por decisões top-down
(UHL-BIEN; MARION, 2008).
Essa visão contrasta com a que vê o líder como aquele que pode se colocar fora do
sistema e, a partir dessa posição, formula uma visão de futuro, dá sentido ao que deve ser
feito, buscando o consenso entre os liderados. Na teoria da complexidade, a fonte da
criatividade está no sistema, nas interações que ocorrem entre os indivíduos e grupos de
indivíduos dentro das organizações ou sistemas sociais, as quais não podem ser controladas
(muitas vezes nem conhecidas) pelo líder.
Overman (1996) propôs o que chamou de “administração quântica”, que leva em
consideração a física do caos e que muda o foco da administração em relação aos modelos
atualmente conduzidos: na energia, e não na matéria; no porvir, e não no ser; nas
coincidências, e não nas causas; no construtivismo, e não no determinismo; e em novos
estados de consciência. Enquanto os sistemas caóticos são administrados considerando a
experiência, a liderança nesses sistemas não pode estar associada a alguma forma de controle
deliberado ou metas previamente determinadas.
Nesse sentido, o líder não é considerado o único influenciador na organização, pois
muitas das ideias mais produtivas teriam sua origem de dentro para fora, e não de cima para
baixo de algum sistema social. Talvez, uma função importante do líder seria dar significado
177
aos padrões emergentes e fornecer os elos para esses padrões de modo a fortalecer as
conexões entre os membros da organização. O líder, nesse cenário, deveria ter seu foco menos
em controlar o futuro do que em permitir a emergência de futuros produtivos (DOURADO,
2010).
Também a partir da teoria da complexidade pode-se questionar a premissa de que
líderes eficazes têm como função minimizar os conflitos e manter a ordem na organização,
uma vez que “qualquer organização é, simultaneamente, ordem e desordem, qualquer
organização necessita, ao mesmo tempo, de continuidade e mudança, de normas e de
liberdade, de controle e de autonomia, de tradição e de inovação, de ser e de devir”
(DOURADO, 2010, p. 56).
Para Barker (2001), o contexto real que deveria ser considerado nas ações de liderança
envolve:
a) A liderança está mais relacionada a sistemas caóticos e em transformação; portanto, o
controle não é algo adequado a esses sistemas;
b) o panorama no qual ocorrem as relações de liderança é do tipo dissipativo – ou seja,
conhecer o sistema não significa conhecer os seus elementos;
c) o contexto da liderança é irreversível: é progressivo e não repetitivo;
d) o nível mais alto de ordem no processo de liderança é percebido por poucos indivíduos
ou mais provavelmente por nenhum;
e) a liderança, como a ordem percebida, surge do sistema;
f) microssistemas, como as organizações ou como os próprios líderes, intercambiam
energia com o ambiente, e não podem ser percebidos fora do macrossistema.
Nesse tipo de ambiente, caos e complexidade não são problemas a serem resolvidos,
mas os mecanismos de evolução, adaptação e renovação a serem utilizados pela liderança
(BARKER, 2001, p. 489).
3.4.1.6 Abordagens que consideram os diversos níveis nas relações de liderança
Harter, Ziolkowski e Wyatt (2006), em artigo provocador, identificam o fato de que a
diferença linguística existente entre os termos líderes e seguidores pressupõe, para o líder, a
existência de uma individualidade psicologicamente autônoma, o que determinaria, para uma
análise das relações, a separação das psicologias individual e social. O papel do indivíduo,
para essa relação de liderança, seria central.
178
O líder é conceituado por Penteado (1978) como uma “pessoa que vai à frente para
guiar ou mostrar o caminho ou que precede ou dirige qualquer ação, opinião ou movimento”
(PENTEADO, 1978, p. 1). A partir dessa definição, o autor chama a atenção para duas
imagens nela contidas: ela evidencia um atributo que é do indivíduo – o de se destacar em seu
grupo, e a influência que exerce sobre outros, o que indica os aspectos relacionais da liderança
e, portanto, as abordagens de grupo (ou, no mínimo, diádicas). O que não fica claro na
primeira imagem é se o destaque do indivíduo em relação ao grupo acontece por motivações
de ordem pessoal ou se é socialmente determinada.
Yammarino e Bass (1991), Yammarino et al (2005) e Yammarino, Dansereau e
Kennedy (2001) foram responsáveis pelas revisões mais citadas referentes à abordagem da
liderança considerando os seus múltiplos níveis. Yammarino, Dansereau e Kennedy (2001)
comparam o estudo da liderança com a história dos cegos a quem se pede para descrever o
elefante. A proposta que fazem é a de se reconhecer que a liderança é um fenômeno que pode
ser abordado sob múltiplas perspectivas, pois ocorre em múltiplos níveis – de modo
esquemático, nos níveis do indivíduo, no de díades (que envolve apenas a relação entre o líder
e o liderado), o do grupo e o da coletividade. Cançado (2010), ainda que admitindo a
existência desses múltiplos níveis, opina que essa divisão deve ser considerada didática, pois,
na prática, deve-se lembrar que há uma inter-relação complexa entre eles.
Dependendo do nível envolvido, Yammarino, Dansereau e Kennedy (2001)
identificam, na literatura, diferentes conceitos para o tema. Após realizar revisão desses
diversos conceitos, concluem que: ao se ignorar uma das perspectivas, a visão sobre liderança
pode ficar distorcida; deve-se considerar as múltiplas dimensões do fenômeno, ou seja, de que
o líder deve estar envolvido, muitas vezes simultaneamente, em ações diferentes como as de
prover uma visão, aumentar a autoestima do liderado, sem descuidar das tarefas e dos
relacionamentos entre os indivíduos, além de se responsabilizar por orientar as atividades em
função dos valores e da missão da organização; o líder não deve se esquecer de que a base de
sua liderança são as pessoas que, como tal, possuem seus próprios processos humanos – de
afeto, cognição, de valores, adesão a normas, etc.; e, por fim, os líderes devem ter ciência do
impacto causado por seus atos sobre os diversos elementos envolvidos, como a estruturação
de equipes, a participação dos indivíduos nas decisões, a satisfação no trabalho, a
performance, o absenteísmo, etc. (YAMMARINO; DANSEREAU; KENNEDY, 2001, p.
162).
179
3.4.2 A psicologia do líder
Os psicólogos sabem há muito tempo que medidas de habilidade cognitiva e de
personalidade normal, entrevistas estruturadas, simulações e centros de avaliação
podem predizer razoavelmente bem o sucesso da liderança (HOGAN; CURPHY;
HOGAN, 1994, p. 494).
Se para os cientistas políticos uma questão fundamental nas relações humanas é “quem
vai governar?”, como psicólogos, Hogan, Curphy e Hogan (1994, p. 493) sugerem que a
questão deveria ser modificada para “quem deveria governar?”. Com isso, os autores estão
chamando a atenção para o fato de que as pessoas estão frequentemente enfrentando a questão
da identificação do potencial de liderança nos indivíduos, seja durante as eleições para os
cargos do Executivo ou do Legislativo, seja na substituição de cargos em organizações, como
os de presidentes de empresas ou reitores de universidades, para citar dois exemplos.
Barker (2001) informou que, normalmente, quando se define a liderança, essa
definição é feita a partir de características do líder – e não da liderança. Nas definições
apresentadas anteriormente, esse aspecto pode ser facilmente constatado. Daí que, desde os
trabalhos iniciais sobre a liderança, procurou-se identificar no líder traços de personalidade
característicos que justificassem a liderança.
Em função das dificuldades encontradas em se considerar apenas características de
personalidade, desconfiou-se de que algo mais, como o contexto no qual ocorre a liderança,
poderia também ser um fator relevante. O autor considerado pioneiro em considerar o âmbito
na pesquisa organizacional foi Kurt Lewin (1947) e a primeira adaptação da proposta de
Lewin para os estudos sobre liderança foi desenvolvida por Fiedler (1967), no modelo de
contingência discutido anteriormente, que considerava que o estilo do líder se relacionava
com uma característica individual, que se pode atribuir à personalidade do indivíduo, a qual
deveria se encaixar na situação adequada.
Uma segunda adaptação foi a teoria path-goal, no modelo de contingência, na qual
House e Mitchell (1974) informam que os líderes mudam de estilo de acordo com a situação.
Mas a partir da década de 1980, nos modelos envolvendo liderança transacional-
transformacional, o contexto começa a ser esquecido para retornar em abordagens híbridas,
envolvendo os traços de personalidade dentro de várias situações empíricas (LIM;
PLOYHART, 2004; ZACCARO; KEMP; BADER, 2004).
180
Kets de Vries (1990) considera que a adequada caracterização do que é a liderança não
dispensa uma análise das dimensões cognitivas e afetivas dos líderes, numa abordagem que
põe a personalidade do indivíduo em tensão com o seu comportamento e com o cenário social
em que a relação de liderança é estudada.
A psicologia interacional, desenvolvida em meados da década de 1970 por autores
como Endler e Magnusson (1976), considerava que situação e pessoa se influenciavam
mutuamente. Essa ideia foi trazida por autores como Schneider (1983) para o campo dos
estudos organizacionais, tendo sido considerada por vários outros como um tratamento
bastante apropriado para estudos sobre liderança (LINDEN; ANTONAKIS, 2009).
Um exemplo do que essa abordagem justificaria pode ser visto em Linden e Antonakis
(2009): situações que eles chamariam de “fortes”, como no caso militar, é a situação que se
sobressai ao comportamento do líder, enquanto em situações que chamaram de “fraca”
podem-se constatar mais facilmente variações de comportamento.
Considerando ser esse aspecto ainda relevante na literatura contemporânea sobre a
liderança, o que se vai fazer agora é uma discussão que tem o indivíduo como unidade de
análise. Essa discussão pode ser dividida em duas grandes linhas: aquelas cujas categorias são
derivadas diretamente da teoria psicanalítica de Freud – e que envolvem, a maioria, trabalhos
de caráter qualitativo – e as que têm como foco a personalidade do indivíduo – as quais
envolvem, prioritariamente, pesquisas de caráter quantitativo.
3.4.2.1 O líder na visão de Freud
Nesta seção, o que se pretende é, a partir da obra original de Freud, de modo especial
da obra Psicologia de grupo e análise do Ego (FREUD, 1987d), explorar os autores
contemporâneos cujo tratamento empírico tem por fundamento as pistas deixadas por Freud.
O foco aqui está no que ocorre, no nível inconsciente, entre indivíduos envolvidos em
relações que se pode caracterizar como sendo de liderança.
Freud (1987d) começa por analisar expressões mais primitivas dessa relação, tomando
por base autores reconhecidos à sua época, que já haviam escrito algo antes dele sobre o tema.
Inicialmente, descreve essa relação em seu aspecto mais primitivo, como pode ser observado
no comportamento da massa, que foi relatado de modo mais sistematizado no século XIX por
Gustave LeBon (LE BON, 1895; 1916).
O que LeBon identifica inicialmente é que, em grupos efêmeros, os indivíduos
formam uma unidade que manifesta o que ele chamou de “caráter médio”, que tem como uma
181
de suas características mais evidentes a intensificação das emoções e certa inibição do
intelecto – tal como pode ser visto em grupos humanos primitivos.
Freud (1987d) apresenta três as causas para o aparecimento desse tipo de caráter:
a) No grupo, o indivíduo é colocado em condições que lhe permitem se livrar de
repressões de seus instintos inconscientes;
b) pode haver o que chamou de “contágio”, fenômeno de ordem hipnótica em que o
indivíduo sacrifica o seu interesse pessoal ao coletivo, sendo esse um efeito dos
membros do grupo, uns sobre os outros;
c) a “sugestionabilidade”, fenômeno também hipnótico que explica, inclusive, o
contágio, mas que vem de outra fonte que não dos outros membros do grupo.
O grupo é crédulo e aberto a influência. Quem desejar produzir um efeito sobre o
grupo não necessita de argumentação lógica, mas apenas de atos – como os de exagerar ou de
repetir sempre a mesma coisa (FREUD, 1987d). Como consequência, o grupo será tão
intolerante quanto aberto à autoridade – dependendo do tipo de influência que está sendo
exercida sobre o grupo. Também sob a influência da sugestão, o grupo tanto pode dar
expressão aos instintos primitivos dos indivíduos, como pode ser capaz de elevadas
realizações, voltadas para um ideal.
Le Bon (1916) partiu do princípio de que se, de um lado, qualquer grupo de seres
vivos se organiza instintivamente sob a influência de um líder, a quem procura obedecer, por
outro, o líder também deve, por suas características pessoais, se ajustar ao grupo. Freud
(1987d) acrescenta que, nesse tipo de grupo, a influência exercida pelo líder se dá a partir de
ideias nas quais o líder deve acreditar fanaticamente. Ao poder exercido pelo líder – e por
suas ideias – Freud (1987d) chama de “prestígio” – que seria algo que despertaria um
sentimento como o da “fascinação” da hipnose e que pode ser reconhecível por sua
capacidade de evocar a sugestão.
Como foi visto, essa primeira menção tem como objeto grupos efêmeros. Para estudar
grupos mais organizados, cujo comportamento é diverso do descrito por Le Bon (1916),
Freud busca os fundamentos na obra de McDougall (1920), para quem, para que uma
multidão constitua um grupo, deve haver uma emoção comum aos indivíduos. Quanto mais
elevado o número de indivíduos com a mesma emoção, maior será a influência por ela
exercida.
Para que surja esse grupo com um nível mais alto de organização, seriam cinco as
condições identificadas por McDougall (apud FREUD, 1987d): deve haver continuidade de
182
existência do grupo; cada membro deve formar uma ideia do grupo de forma a desenvolver
com ele uma relação emocional; o grupo deve estar em interação com outros grupos; esse
grupo deve ter tradições, costumes e hábitos que determinem as relações entre seus membroso
grupo deve ter uma estrutura.
Para estudar esse tipo de grupo, Freud (1987d) utiliza os exemplos da Igreja e do
exército. Nos dois casos, existe o pressuposto de haver um cabeça – Cristo para a Igreja, o
comandante no exército – que dedicaria a todos os componentes do grupo um “amor” de igual
tamanho. É dessa ilusão que depende a coesão do grupo. O grupo assim formado pode
momentaneamente substituir a sociedade, que é para o indivíduo socializado em uma cultura a
detentora da autoridade (FREUD, 1987a). É em consequência da percepção dessa função de
substituição que o indivíduo percebe não ser prudente se opor ao grupo, mas sim obedecer a
essa nova autoridade.
Identificados esses dois tipos básicos de organização grupal, Freud (1987d) crítica
tanto Le Bon como McDougall por não terem dado a devida importância ao líder na
psicologia do grupo: se no grupo o indivíduo deve estar ligado por laços libidinais aos demais
membros do grupo, de outro lado deve estar também ligado ao líder. Essa dupla ligação deve
servir para explicar tanto a falta de liberdade do indivíduo no grupo que está ativo, como a
desagregação do grupo em situações de pânico – situação na qual os laços mútuos se rompem,
um medo desproporcional toma conta do indivíduo e ele passa a se preocupar apenas consigo,
não acatando mais as ordens superiores. Esse medo, no pânico, não pode ser explicado pela
intensidade do perigo – o mesmo grupo poderia enfrentar perigo até maior – mas apenas pelo
rompimento dos laços emocionais. A perda do líder ou o surgimento de suspeitas contra ele
são exemplos de fatores que podem gerar o pânico nos indivíduos do grupo.
O próximo passo, então, será estudar as diferenças entre grupos que possuem líder em
relação àqueles que não os têm, orientado pelo seguinte questionamento: pode o líder ser
substituído por uma abstração, ou seja, por uma ideia?
Para essa discussão, Freud (1987d) lança mão de seu conceito de narcisismo35
. Aqui
ele lembra que toda relação íntima e duradoura – como a que ocorre na família ou na amizade
– contém um misto de amor e hostilidade, que não são percebidos em função da repressão. Já
nas aversões que as pessoas demonstram contra estranhos, o que se identifica é apenas a
expressão do amor a si mesmo – ou do narcisismo. Na formação de um grupo, e enquanto ele
persistir, essa intolerância, própria do narcisismo, deve desaparecer, o que só pode ocorrer se
35
Amor que o indivíduo tem por si mesmo. Os autores que utilizam o narcismo como fundamento para estudar a
liderança serão abordados no item 2.4.2.2. Para mais informações sobre o tema, ver Freud (1987c).
183
o indivíduo estabelece laços libidinais com outras pessoas. E o mecanismo para explicar o
desenvolvimento desses laços emocionais é o da identificação36
.
A identificação é uma expressão muito primitiva de laço emocional com outra pessoa.
Ocorre, por exemplo, no complexo de Édipo, quando o menino se identifica com o pai – quer
ser como ele e tomar o seu lugar em tudo. Ou, de forma regressiva, quando o Ego estabelece
um vínculo com um objeto de libido por introjeção (por exemplo, quando um filho começa a
apresentar o mesmo sintoma – tipo uma tosse – que o pai). Mas a identificação também pode
ser vista quando determinado Ego percebe uma qualidade comum (ou uma analogia) em
relação a outro Ego que não é objeto de seu instinto sexual. Nesse último caso, quanto mais
importante essa qualidade, mais bem-sucedida pode vir a ser a identificação.
Segundo Freud (1987d), o laço mútuo entre os membros de um grupo é uma
identificação desse último tipo. Mas essa qualidade comum deve ser encontrada em algum
lugar no grupo. Freud (1987d) suspeita de que ela esteja na natureza do laço que o indivíduo
estabelece com o líder, acrescentando, ainda, que, para que a compreensão do que ocorre
entre os indivíduos nessa relação fique completa, deve-se levar em consideração também um
outro fator – que é a idealização.
A idealização é um conceito que pode ser compreendido utilizando-se, como exemplo,
o amor sexual. Se os impulsos sexuais são reprimidos, pode-se ter a ilusão de que o objeto
será amado por seus méritos espirituais, e não sexuais. Nesse caso, parte importante da libido
narcisista transborda para o objeto: nós o amamos devido às perfeições que desejamos para o
nosso Ego e que aqui buscamos adquirir indiretamente, de modo a satisfazer nosso
narcisismo. O Ego aqui se torna mais despretensioso e o objeto mais sublime e precioso,
como que consumindo o Ego num mecanismo que fica ainda mais exacerbado no amor que
não pode ser satisfeito, pois, nesse caso, o objeto do amor toma o lugar do ideal do Ego.
Feitas essas definições, o próximo passo é estabelecer a diferença existente entre a
identificação e a fascinação (ou servidão). Para Freud (1987d), na identificação o Ego se
enriquece com o objeto, ele o introjeta em si mesmo. O objeto então é perdido, sendo
novamente erigido dentro do Ego, que se altera segundo o modelo do objeto. Na fascinação
(ou servidão), o objeto é mantido: Ego se empobrece e se entrega ao objeto. Daqui à hipnose é
somente um passo: existe a mesma sujeição humilde para com o objeto amado, o mesmo
debilitamento de iniciativa – o hipnotizador se coloca no lugar do ideal do Ego.
36
A identificação é um dos mecanismos utilizados por alguns autores como fundamento para se compreender o
fenômeno da liderança, como será apresentado mais à frente, no item 3.4.2.3.
184
Já se está, então, em condições de entender a fórmula libidinal do grupo que tem um
líder, mas que, por ausência de uma organização forte, não pode adquirir características de um
indivíduo primitivo (como ocorre nos grupos transitórios apresentados por Le Bon): “um
grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e o mesmo
objeto no lugar de seu ideal do Ego e, consequentemente, identificaram-se uns com os outros
em seu ego” (FREUD, 1987d, p. 126).
Uma última questão referente ao grupo transitório, como descrito por Le Bon, ainda
precisa ser resolvida: por que alguns aspectos desses grupos, como a diminuição da
capacidade intelectual, o aumento das reações emocionais, a incapacidade de moderação,
entre outros, possuem características regressivas enquanto nos grupos organizados, como os
descritos por Mac Dougall, esses aspectos podem ser bem controlados?
Para solucionar esse problema, deve-se retomar a discussão sobre a sugestão na qual o
papel do líder não é mais importante do que aquele representado pelos indivíduos, que vão
exercer influência mútua uns sobre os outros. O porquê disso Freud (1987d) busca em Trotter
(1916), na descrição que esse autor faz do instinto gregário, que existe tanto nos animais
como nos homens, mas que no homem envolve o grupamento humano mais geral no qual ele
passa toda a sua vida: a sociedade, que lhe fornece a sua base psicológica.
Essa é uma explicação que dispensa a necessidade da existência de um líder. Deve-se,
então, procurar entender melhor como isso ocorre.
Para Freud (1987d), o sentimento social “baseia-se na inversão daquilo que a princípio
constituiu um sentimento hostil em uma ligação de tonalidade positiva, da natureza de uma
identificação” e que “essa inversão parece ocorrer sob a influência de um vínculo afetuoso
comum com uma pessoa fora do grupo” (FREUD, 1987d, p. 131). Para exemplificar essa
afirmação, Freud cita um grupo de mulheres apaixonadas por um músico que, em vez de se
digladiarem umas com as outras por ciúmes, consideram que, diante de seu número e da
impossibilidade de alcançarem individualmente o objetivo de seu amor, renunciam a ele,
prestando homenagem ao seu “amado” em ações comuns.
Volta-se, então, às associações estáveis, como descritas por McDougall (p.ex., a Igreja
e o exército). Deve-se lembrar que a premissa aqui é a de que todos os membros devem ser
amados da mesma maneira por uma pessoa – o líder – e que a exigência de igualdade deve
envolver todos os membros, exceto o líder. Essa observação muda a afirmação de Trotter de
que o homem é um animal gregário para a de que o homem é um animal de horda – ou seja, o
homem é uma criatura individual, numa horda conduzida por um líder. As características
observadas então por Le Bon – a diminuição da ação consciente, a predominância da
185
afetividade e das emoções, o foco de pensamento e sentimento em uma direção e a tendência
a execuções imediatas – podem ser explicadas com a regressão a um estado mental primitivo,
que para Freud (1987e) corresponde ao estado mental existente na horda primeva37
.
Na horda primeva, os membros do grupo estavam sujeitos a vínculos, como os que são
vistos em membros dos grupos de hoje – à exceção do pai, que era livre. Os atos e
pensamentos do pai eram fortes e independentes: sua vontade não dependia de outros. Freud o
compara, no passado, ao Übermensch, que Nietzsche projetava para o futuro: “não necessita
amar ninguém mais, pode ser de uma natureza dominadora, absolutamente narcisista,
autoconfiante e independente” (FREUD, 1987d, p. 134).
A partr do impedimento imposto aos filhos na satisfação de impulsos sexuais, o pai
primevo os forçava ao estabelecimento de laços emocionais para com ele e uns para com os
outros – ou seja, forçava-os à psicologia de grupo. Aquele que era tornado seu sucessor – em
geral, um filho que havia sido membro do grupo – também recebe a possibilidade de
satisfação sexual sem adiamento, o que terminava com os impulsos sexuais que nele estavam
inibidos, permitindo ao seu narcisismo elevar-se até o nível mais alto possível.
Voltando um pouco, ao início da discussão, quando se afirmou que na formação dos
grupos foram identificadas a sugestão e a hipnose como as forças que a explicavam, deve-se
lembrar que, naquele momento da discussão, a sugestão havia ficado sem explicação. As
observações de agora, referentes à horda primeva, entretanto, podem se constituir em uma
pista para a explicação da sugestão, em sua relação com a hipnose. Pois na hipnose, o que se
imagina é que o hipnotizador detenha a posse de um poder misterioso, que despoja o sujeito
de sua vontade. Um dos métodos para se obter isto é poe meio do olhar – e era a visão do
chefe o que era insuportável para os primitivos, como mais tarde ocorreu com a visão da
divindade para os mortais.
Para Freud (1987d) existem dois tipos básicos de indução hipnótica, os quais no fim
apresentarão o mesmo efeito: um, do tipo persuasor e tranquilizador, que é modelado na mãe;
o outro, do tipo ameaçador, que é derivado do pai.
Reunindo todas essas observações em uma conclusão, Freud (1987d) relaciona o líder
com o pai primevo temido, que é o ideal do grupo, dirigindo o Ego no lugar do ideal do Ego.
Chega-se aqui, então, ao indivíduo nos grupos que compõem a sociedade atual.
Na sociedade, cada indivíduo é uma parte componente de numerosos grupos, acha-se
ligado por vínculos de identificação em muitos sentidos e construiu seu ideal do Ego segundo
37
Para mais informações sobre a horda primeva ver Totem e tabu (FREUD, 1987e).
186
os modelos mais variados. Cada indivíduo, portanto, partilha de numerosas mentes grupais –
as de sua raça, classe, credo, nacionalidade, etc. –, podendo também se elevar sobre elas, na
medida em que possui um fragmento de independência e originalidade. Essas formações
grupais estáveis e duradouras, com seus efeitos constantes e uniformes, são menos notáveis
para um observador do que são os grupos rapidamente formados e transitórios, a partir dos
quais LeBon traçou seu esboço psicológico do caráter da mente grupal (FREUD, 1987c). Ou
seja, o indivíduo abandona seu ideal de Ego, substituindo-o pelo ideal de grupo, corporificado
pelo líder. Mas isso não acontece com a mesma intensidade sempre, e em muitos casos os
dois ideais ainda podem se confundir, permitindo ao Ego manter o seu narcisismo. Nesse
caso, a seleção do líder fica muito facilitada: basta que ele apresente características que
forneçam a impressão de mais força e de mais liberdade de libido. Os outros membros do
grupo são arrastados ou por sugestão ou pela identificação (FREUD, 1987c).
Com isso, podem-se compreender as diferenças nas relações estabelecidas dos
indivíduos no grupo, entre si e com o líder, para os três grupamentos humanos básicos: os
transitórios, os organizados e estáveis e os grupos maiores, que se inter-relacionam com
outros grupos, como na sociedade.
Essa é, em linhas gerais, a visão de Freud (1987c) sobre o tema. Mas não se pode aqui
deixar de lembrar um questionamento feito por ele, que fica sem solução: a distinção entre os
grupos com e sem líderes, com a possibilidade de que grupos nos quais uma ideia possa tomar
o lugar do líder não seriam esperados no processo de evolução das sociedades. Em suas
palavras:
Teremos de nos interessar, acima de tudo, pela distinção existente entre grupos que
possuem um líder e os grupos sem líder. Teremos de considerar se os grupos com
líderes talvez não sejam os mais primitivos e completos, se nos outros uma ideia,
uma abstração, não pode tomar o lugar do líder (estado de coisas para o qual os
grupos religiosos, com seu chefe invisível, constituem etapa transitória) e se uma
tendência comum, um desejo, em que certo número de pessoas tenha uma parte, não
poderá, da mesma maneira, servir de sucedâneo [...] Surgiria então a questão de
saber se o líder é realmente indispensável à essência de um grupo e outras ainda,
além dessa (FREUD, 1987c, p. 111).
Como a teoria psicanalítica exerceu grande influência nos desenvolvimentos
relacionados à compreensão do sujeito durante todo o século XX – tanto as que as utilizam
como fundamento, quanto aquelas desenvolvidas em oposição à sua visão –, o tema foi
abordado aqui, antes que se pudesse explorar as linhas de investigação que levam em
consideração, primordialmente, a subjetividade, tanto dos líderes como a dos liderados.
187
A partir daqui há condições de avaliar algumas das abordagens empíricas sobre a
liderança – primeiramente, as que lançam mão da própria teoria psicanalítica, para, após,
explorar as abordagens que têm como fundamento os aspectos que vão envolver os traços de
personalidade.
3.4.2.2 Líder e narcisismo
Retoma-se aqui a citação do texto de Freud sobre a sua concepção do que seriam as
características do pai primevo: “não necessita amar ninguém mais, pode ser de uma natureza
dominadora, absolutamente narcisista, autoconfiante e independente” (FREUD, 1987d, p.
134).
De acordo com Kets de Vries (1990, p. 8), “o narcisismo é, muitas vezes, a força
condutora alimentando o desejo de obter um cargo de liderança”. Daí a importância de se
conhecer esse tipo de indivíduo. Rouanet (1989, p. 131) também afirma que “o líder é a
projeção narcisista dos atributos que o indivíduo massificado ambiciona ter e que lhe são
negados pela realidade”.
Freud (1987c) escreveu, em 1931, um artigo para tratar do que chamou de “tipos
libidinais”, buscando organizar a multiplicidade de características observadas nos indivíduos.
Entre os tipos apresentados, destaca-se para os fins desse artigo o narcísico, que foi
caracterizado da seguinte forma:
Não existe tensão entre o Ego e o Superego (na verdade, se predominasse esse tipo,
dificilmente se teria chegado à hipótese de um Superego), e não há preponderância
de necessidades eróticas. O principal interesse do indivíduo se dirige para a
autopreservação; é independente e não se abre à intimidação. Seu Ego possui uma
grande quantidade de agressividade à sua disposição, a qual também se manifesta na
presteza à atividade. Em sua vida erótica, o amar é preferido ao ser amado. As
pessoas pertencentes a esse tipo impressionam os outros como “personalidades”; são
especialmente apropriadas a atuarem como apoio para os outros, a assumirem o
papel de líderes e a darem um novo estímulo ao desenvolvimento cultural, ou a
danificarem o estado de coisas estabelecido (FREUD, 1987c, p. 226).
Esse tipo de indivíduo tem sido abordado por vários autores desde então, entre os
quais se destaca Kernberg (1979, p. 33), que afirma que “porque as personalidades narcisistas
são frequentemente motivadas por necessidades intensas de poder e de prestígio a assumir
cargos de autoridade e de liderança, os indivíduos dotados dessas características se encontram
muitas vezes nos altos cargos de liderança”.
Kets de Vries faz um apanhado mais completo desse tipo, afirmando que:
188
Os narcisistas sentem que devem confiar em si próprios mais do que nos outros, para
saciar suas necessidades. Estão persuadidos de que não podem confiar no amor ou
na lealdade de ninguém. Acreditam ser autossuficientes mas, no seu íntimo,
ressentem-se de um sentimento de perda e de vazio. Para fazer face a esses
sentimentos, e talvez para mascarar sua insegurança, os narcisistas preocupam-se em
estabelecer sua competência, seu poder, sua beleza, seu status, seu prestígio e sua
superioridade. Paralelamente a isso, os narcisistas desejam que os outros partilhem
da autoestima que eles próprios têm de si mesmos e que satisfaçam suas
necessidades. O que espanta no comportamento dessas pessoas é a exploração dos
outros. Os narcisistas vivem na ilusão de que eles devem ser servidos, de que seus
desejos têm preferência sobre os dos outros. Acreditam merecer atenções
particulares (KETS DE VRIES, 1990, p. 8).
A partir de sua experiência clínica, de Kets de Vries (1990) subdivide os indivíduos
narcísicos em três tipos, os quais, em uma visão funcionalista, variariam do que chamou de
mais patológico ao mais funcional.
O Quadro 2 apresenta um resumo da visão proposta por Kets de Vries (1990), a qual
não será detalhada aqui por fugir do objetivo da pesquisa, mas que fica registrada para o caso
de comparação durante a análise e discussão dos dados.
Quadro 2 - Três tipos de narcisismo, formas de liderança
que assumem e seus modelos para decisão
Narcisismo reativo Narcisismo autoilusório Narcisismo construtivo
TIPO DE LIDERANÇA
Transformadora Transacional Transformadora e
Transacional
- Só tolera os bajuladores
- Tirano cruel
- Ignora as necessidades
dos subordinados
- Tem raiva da crítica
- Prefere subordinados
não críticos
- Diplomata
- Considera subordinados
como instrumentos
- Fere-se com críticas
- Meritocrático
- Inspirador
- Desempenha o papel de
mentor
- Aprende algo da crítica
Tomada de decisão
• Projetos espetaculares,
importantes e arriscados
• Não consulta ninguém
• Esmaga os opositores
• Utiliza-se de bodes-
expiatórios
• Não admite derrota
• Conservador, pouco
inclinado ao risco, muito
prudente
• Consulta gente demais
• Indecisão
• Consulta muito para
coletar informações, mas é
independente na tomada de
decisões
• Dirigido interiormente
Fonte: adaptado de Kets de Vries (1990).
189
A respeito da idealização, Rouanet (1989) faz uma ponderação que a liga tanto ao
narcisismo como à assimilação da pessoa do líder à imagem do pai:
A idealização, como se sabe, é o processo pelo qual o indivíduo atribui a um objeto
qualidades de perfeição que o próprio sujeito não se sente capaz de alcançar.
Confrontado com ideais excessivamente exigentes, o sujeito não tem alternativa
senão investi-los num objeto externo e, em seguida, identificar-se com ele. A
idealização é uma forma de narcisismo: o objeto idealizado é parte do próprio
sujeito, e amá-lo significa amar-se a si mesmo. A relação entre a massa e o Führer
segue esse padrão. O líder é a projeção narcisista dos atributos que o indivíduo
massificado ambiciona ter e que lhe são negados pela realidade. O chefe onipotente
é a imagem da impotência do indivíduo e o reflexo dos seus ideais de onipotência.
Ao fazer do líder o seu ideal, o indivíduo massificado ao mesmo tempo em que se
ama a si próprio (em sua imagem fictícia de força) reprime o que nele não merece
ser amado (a realidade da fraqueza) (ROUANET, 1989, p. 130-131).
Mas, como compatibilizar a realidade da sua fraqueza com os seus ideais de
onipotência no processo de identificação? Rouanet (1989) apresenta a seguinte solução:
Mas a identificação narcisista com o líder exige que este se pareça com a massa dos
seus seguidores. Nem toda a libido narcisista extravasou-se no objeto; parte continua
aderindo ao Ego do indivíduo. Por isso, o líder deve ser ao mesmo tempo onipotente
e banal, Super-homem e homem da rua [...]. Para que o indivíduo se reconheça no
líder, o líder tem que se assemelhar ao indivíduo. A identificação da massa ao líder é
obtida pelo líder através da técnica de identificar-se parcialmente com a massa. O
líder é um “great little man”, incomensuravelmente forte pela coragem com que luta
por seus ideais, mas não tão forte a ponto de criar uma barreira intransponível entre
si mesmo e a massa (ROUANET, 1989, p. 130).
O que Rouanet (1989) afirma ajuda a compreender lideranças como as de Luis Inácio
Lula da Silva, Barack Obama e Margareth Tatcher. Além disso, levanta a possibilidade de que
um indivíduo que expresse traços de personalidade mais autoritários tenda a projetar38
para
seus líderes esses mesmos traços. O que significa que, se chamado a escolher um líder em
determinada situação, ele pode tender a escolher pessoas nas quais identifique esses traços.
Esse pode ser um dos mecanismos para explicar os achados da pesquisa pelo autor
desta tese, na qual, utilizando uma escala de autoritarismo baseada na escala F de Adorno, os
líderes escolhidos por meio de um processo político eletivo, por indivíduos integrantes de
sociedades cooperativas, apresentaram níveis bem mais altos de autoritarismo, quando
comparados com a liderança de empresas escolhidas por currículo, indicação ou
conhecimento pessoal (VILELA, 2008).
38
Projeção: “No sentido propriamente psicanalítico, operação pela qual o sujeito expulsa de si e localiza no
outro – pessoa ou coisa – qualidades, sentimentos, desejos e mesmo „objetos‟ que ele desconhece ou recusa nele
[...] o sujeito atribui a outros as tendências, os desejos, etc. que desconhece em si mesmo: o racista, por exemplo,
projeta no grupo desprezado as suas próprias falhas e as suas inclinações inconfessadas” (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1992, pp. 374, 375).
190
Os aspectos levantados por Rouanet (1989), envolvendo inter-relacionamento entre
narcisismo e identificação, abrem caminho para se explorar melhor esse aspecto, também
apresentado anteriormente por Freud (1987f), que é o da identificação.
3.4.2.3 Liderança e identificação
Como foi visto, a identificação é uma expressão muito primitiva de laço emocional
com outra pessoa, que pode ser vista, em sua forma regressiva, na introjeção ou quando um
indivíduo percebe uma qualidade comum (ou uma analogia) em relação a outro indivíduo que
não é objeto de seu instinto sexual. É pela identificação que o indivíduo internaliza e
incorpora crenças, valores e atitudes, num mecanismo que é fundamental para o
estabelecimento de vínculos sociais, os quais devem se constituir por: definição de sua
filiação a uma categoria social; distinção e prestígio dos valores e práticas de seu grupo,
comparados com outros semelhantes; fatores associados à formação psicossocial do grupo.
Esse conjunto afeta e é afetado pela relação do indivíduo com o grupo e com o líder (DAVEL;
MACHADO, 2001).
Erik Erickson (1980) refere que, durante as diversas etapas da vida, são vários os
modelos perseguidos pelos indivíduos no processo de definição de identidade. É a síntese
dessas múltiplas identificações durante o ciclo de vida que vai variando de acordo com os
grupos aos quais o indivíduo se vincula e com as diversas necessidades manifestadas nos
diversos momentos da vida, o que constitui a identidade do indivíduo.
De acordo com Lord e Brown (2001), o autoconceito é dinâmico e multifacetado.
Forças em vários níveis – traços de personalidade, relações diádicas e cultura organizacional –
influenciam no estabelecimento do autoconceito, ativando níveis de identidade em momentos
diferentes. Nesses níveis, o de relações diádicas se relaciona com o comportamento do líder, o
qual detém a capacidade de ativar diferentes níveis e aspectos do self do liderado – por
exemplo, enfatizando similaridades entre colegas, o líder pode aumentar a ativação de
identidades coletivas, inibindo as identidades no nível individual.
Segundo Hogg e Terry (2000), as relações sociais evoluem em um processo de
categorização, em que o eu é assimilado nos protótipos do grupo, e de despersonalização, em
que o autoconceito e a percepção dos outros sobre o indivíduo mudam. O eu é afetado por
essa atividade de identificação, até que o indivíduo atinja certo grau de autonomia, num
decurso que persiste com o indivíduo refazendo a sua identidade nas diversas etapas de seu
desenvolvimento.
191
De acordo com Davel e Machado (2001), a identificação se relaciona com:
a) Segurança psicológica – as pessoas copiam para resolver suas inconsistências
emocionais;
b) afiliação – necessidade de se perceber como membro de um grupo, para vencer o
isolamento social;
c) autovalorização – busca-se copiar alguém cujo comportamento se julga importante
para a construção de um autoconceito positivo;
d) significado – quando se busca referências de valores a fim de dar um propósito à
própria vida.
Os argumentos apresentados por Sarsur (2010) na discussão sobre a identidade entre
líder e liderado são de que a identidade do líder atrai o liderado, fazendo com que os líderes se
tornem modelos a serem seguidos, servindo como referência de sucesso, suprindo
necessidades e interesses e ajudando o liderado em sua inserção no grupo. E também que há
uma influência mútua mantida entre líder e liderado, sendo que o liderado se espelha na
identidade do líder – o que supõe uma relação de mão dupla, com influência mútua entre líder
e liderado. O nível de influência mútua não seria de igual intensidade, havendo mais
identificação por parte do liderado do que por parte do líder: se o processo de construção de
identidade do liderado é fortemente influenciado pelo líder, o líder, por sua vez, deve buscar
outras fontes para estabelecer o processo de alteridade que suporta a permanente reconstrução
de sua identidade (SARSUR, 2010).
Nessa linha, de acordo com Rouanet (1989), e a partir do que se discutiu anteriormente
referentemente ao narcisismo, pode-se dizer que:
A relação indivíduo-líder é assim um jogo de espelhos, um vaivém entre rosto e
imagem, cópia e modelo, em que não se sabe o que é real e o que é reflexo e em que
a identificação do indivíduo ao líder parece representar a outra face da identificação
do líder ao indivíduo. Mas tal impressão seria falsa, pois a interação não é aleatória,
e sim orientada; o desfecho desse jogo de identificações é previsível e corresponde à
identificação com o líder e, através dele, com o sistema de forças sociais que ele
representa (ROUANET, 1989, p. 132).
Como foi visto tanto no narcisismo como nos processos de identificação, as emoções
estão envolvidas na sua gênese. Desta forma, discute-se na sequencia alguns dos autores que
têm buscado investigar essa relação.
192
3.4.2.4 Liderança e emoções
Quando pensamos em líderes e na liderança, uma multidão de imagens vem à
cabeça, muitas vezes coloridas de reações emotivas. Alguns líderes fazem nascer um
sentimento de força, de poder e de responsabilidade. Outros evocam as forças do
terror, a perseguição e a destruição. Nossas percepções da ''bondade'' ou da
"maldade" de um líder são refletidas nos epítetos que lhes damos: Akbar, o Grande;
ou Ivan, o Terrível (KETS DE VRIES, 1990, p. 6).
O debate que envolve o contraponto entre a racionalidade da ação do indivíduo nas
organizações e as emoções não é novo: deve-se lembrar que, já na década de 1940, Simon
(1945) questionava a racionalidade do tomador de decisões nas organizações. E Zaleznik
(1977), em um dos primeiros artigos que buscam a diferença entre o líder e o gestor, observa
que:
Frequentemente escutamos falar dos líderes em termos ricos de conteúdo emotivo.
Os líderes suscitam fortes sentimentos de identificação e de diferenciação ou de
amor e de ódio. Nas estruturas dominadas por um líder, as relações humanas
aparecem frequentemente agitadas, intensas e às vezes desorganizadas. Uma tal
atmosfera intensifica as motivações individuais e produz resultados inesperados
(ZALEZNIK, 1977, p. 74).
Autores que têm abordado a efetividade da liderança transformacional e carismática,
como Bass e Avolio (1994), Burns (1978) e Conger (1989, 1991), identificam a origem dessa
acentuada efetividade justamente na capacidade do líder em envolver emocionalmente seus
liderados.
Goleman (1995) reporta que as características descritas para o que chamou de
inteligência emocional (IE) relacionam-se positivamente com a efetividade da liderança, ainda
que não tenha descrito a que tipo de liderança se referia – como o fizeram Hogan, Curphy e
Hogan (1994), que consideraram as emoções um fator motivacional primordial para as
lideranças carismática e transformacional.
Fambrough e Hart (2008), em artigo crítico envolvendo a inteligência emocional e
liderança, fazem revisão sobre como as emoções foram abordadas em se tratando das
organizações a partir dos anos 1980. Identificaram Hochschild (1983) como uma das
pioneiras em levantar a questão, seguida pelo movimento em favor do positivo – o positive
organization scholarship – que Fineman (2006) relaciona com a teoria Y de McGregor
(1960). É nesse movimento se inclui a IE, identificada como uma nova fonte para o
desenvolvimento de lideranças na literatura não acadêmica.
193
Megerian e Sosik (1996) identificaram, nos trabalhos envolvendo emoções e liderança,
dimensões da personalidade que poderiam estar relacionadas à IE. Assim também Stogdill
(1974), que detectou as dimensões de sociabilidade, autoconfiança e controle emocional, ou
Hogan, Curphy e Hogan (1994), que reconheceram a sociabilidade, estabilidade emocional,
conscienciosidade e amabilidade como dimensões diretamente relacionadas à efetividade do
líder. Daí os autores ressaltarem que são os traços de personalidade que, conformando o
comportamento do líder, poderiam influenciar na sua efetividade.
Em artigo crítico, Zeidner, Matthews e Roberts (2004) compararam os diferentes
modelos de IE que foram, ao fim, divididos em dois grandes grupos: um, baseado em
habilidades, e o segundo, em traços ou misto. Para mensurar a IE nas características próprias
do primeiro grupo, Caruso, Mayer e Salovey (2002) elaboraram uma escala. Como ela não se
relacionou com alguma escala de personalidade, a IE foi considerada pelos autores um
construto diverso da personalidade. Para o segundo grupo, Lyusin (2006) introduziu uma
abordagem que envolvia medir a frequência de comportamentos particulares, com a
identificação de sua ocorrência em diversas situações.
O modelo de Goleman (1998) é operacionalizado a partir do que chamou de
competências emocionais. Vários autores tentaram desenvolver escalas que mensurassem as
dimensões propostas por Goleman, mas os resultados não têm sido satisfatórios,
provavelmente por serem desenvolvidas para mensurar as categorias e domínios próprios de
cada autor (FAMBROUGH; HART, 2008).
Quanto às emoções, outro aspecto a ser abordado, considerado significativo por Freud
(1987d), diz respeito à sedução. Como foi apresentado anteriormente, Freud (1987d)
estabelece relação direta entre sedução e hipnose. Essa, no entanto, não foi uma relação muito
explorada na literatura de liderança posterior a Freud. O que se encontra são mais indagações
do que investigações propriamente ditas. O que se busca reunir são algumas dessas
abordagens, ainda que se saiba que elas não pretenderam ser conclusivas.
Mais do que focar na dialética entre controle e resistência – que será vista mais à
frente, nas abordagens mais críticas sobre a liderança –, Collinson (2005, p. 1427) acredita
que os pesquisadores necessitariam compreender “como, por que e com quais consequências
os seguidores se conformam, consentem ou se mantêm comprometidos com suas
organizações e com seus líderes”.
Calas e Smircich (1991) também chamam a atenção para o fato de que o sucesso do
líder está em sua capacidade de sedução do liderado, sem aprofundar na exploração dessa
característica do líder.
194
Uma característica de muitos líderes enfatizada por Kets de Vries (1990), de modo
especial aqueles identificados como carismáticos, é a de despertar emoções muito primitivas
em seus seguidores por meio de manipulação de símbolos que são significativos para estes.
De acordo com esse autor, “os seguidores, quando estão „sob o charme‟ de certos tipos de
líderes, sentem-se, muitas vezes, fortes e orgulhosos ou então impotentes e profundamente
dependentes” (KETS DE VRIES, 1990, p. 7).
Também se percebe em muitos dos seguidores desse tipo de líder um comportamento
do tipo regressivo. Nas palavras do autor:
Alguns seguidores podem escolher um líder idealizado, "onipotente", que responde
às suas necessidades de dependência. Isso pode levar a uma suspensão destrutiva de
suas faculdades racionais. Essa influência hipnótica pode igualmente conduzir ao
sacrifício do bem comum em proveito da loucura pessoal. As atividades ligadas às
tarefas podem ser suplantadas por rituais de adulação. A forma tende a substituir o
conteúdo quando o seguidor vira um peão passível de manipulação (KETS DE
VRIES, 1990, p. 7).
Gabriel (1997) também discorre em seu trabalho sobre os fundamentos para afirmar
que o líder mantém controle psíquico sobre o liderado.
O que se percebe aqui é a recuperação da discussão que leva em consideração aspectos
da personalidade tanto do líder quanto do liderado. Volta-se, nesse momento, ao que motivou
os primeiros trabalhos sobre o líder, no início do século XX, que são as dimensões da
personalidade do indivíduo que poderiam ser facilitadores para o estabelecimento de relações
efetivas de liderança.
Por sua importância para a teoria e para esta pesquisa, a personalidade do líder será
tratada em seção específica.
3.4.3 A personalidade do líder
Como foi visto na história das pesquisas sobre liderança, os estudos que envolveram
aspectos relativos à personalidade do líder sempre tiveram papel importante, a começar pela
teoria dos traços, que foi a primeira teoria historicamente mais significativa para esses estudos
no campo. Mas, ao se observar a evolução histórica das abordagens, pode-se constatar que
mesmo nos desenvolvimentos posteriores envolvendo os estilos de liderança e a teoria
contingencial, os aspectos relativos à personalidade do líder nunca foram totalmente
abandonados. O que se percebe é uma tentativa de aprimoramento com acréscimos teóricos.
195
De acordo com Salter et al. (2009), a pesquisa envolvendo a teoria dos traços e
liderança tomou novo vigor após a publicação do modelo de liderança de Bass e Avolio
(1994), cuja proposta demandou estudos sobre a percepção dos seguidores sobre a liderança.
Bass (1990), no seu Handbook, questiona se haveria traços distintivos para os líderes e, caso
existam, quais seriam. O autor chegou a sugerir que a identificação de traços de personalidade
relacionados à liderança transformacional fosse utilizada, inclusive, como um indicativo da
universalidade desses traços para toda a humanidade.
Revisão das publicações que envolviam liderança e personalidade foi feita por Judge
et al. (2002). A partir do que encontraram, os autores concluíram que:
Fica claro que há uma sobreposição de traços identificados pelos revisores. Por
exemplo, a autoconfiança só não aparece em duas revisões; e outros traços
(ajustamento, sociabilidade e integridade) surgem em múltiplas revisões. Por outro
lado, apesar de alguma concordância, as revisões não são abertamente consistentes
(JUDGE et al., 2002, p. 765).
Ao se fazer revisão atualizada das pesquisas contemporâneas sobre o tema, o que se
constata é que são inúmeros os autores que continuam fazendo referência à personalidade,
nesse momento interessados tanto pela personalidade de líderes como pela de liderados.
Assim, não há como negligenciar esse aspecto do tema em um trabalho que se proponha a
conhecer esse objeto a partir do próprio objeto.
Mas esse não é tema simples, motivando debates ainda hoje, mesmo no campo da
Psicologia. Por isso, antes de apresentar as linhas de pesquisa que têm levado em
consideração a personalidade nos estudos sobre liderança, será necessário relatar, ainda que
de modo sucinto, o conceito de personalidade a ser utilizado para operacionalizar a pesquisa –
incluindo aqui também a visão do ISF sobre o tema, uma vez que, como será apresentado no
próximo capítulo, é a partir desse corte epistemológico que é desenhado o estudo e que sua
interpretação é conduzida.
3.4.3.1 O conceito de personalidade
Por ser um conceito central em Psicologia, o tema personalidade é extenso, tendo sido
abordado a partir de várias teorias, baseadas ou na observação clínica ou em experimentos
controlados em laboratório. Em termos gerais, pode-se resumir que os debates em torno da
personalidade giram, ainda hoje, em torno de quatro variáveis: as duas primeiras são o
individual e o social, ou seja, se a personalidade depende principalmente de fatores
196
individuais (como a hereditariedade), se depende primordialmente de fatores sociais, ou ainda
se seria uma mescla dos dois; as duas outras se referem a ser a personalidade uma estrutura
estável ou se ela pode ser modificada no transcurso da vida.
Para ajudar a conduzir esse raciocínio, citam-se aqui apenas as principais teorias da
personalidade, com foco nas características que as diferenciam umas das outras, como
descrito por Davidoff (2001).
A) Teorias psicodinâmicas
Partem do pressuposto de que a personalidade desenvolve-se à medida que os
conflitos psicológicos são resolvidos, geralmente na infância. Sua ênfase está nos motivos,
nas emoções e em outras forças internas. Seus principais representantes são:
a) Sigmund Freud, que defendia que a personalidade é moldada pelas primeiras
experiências, enquanto as crianças passam por fases que ele denominou de
psicossexuais. Ao final das três primeiras fases (oral, anal e fálica), por volta dos cinco
anos, Freud acreditava que a essência da personalidade estava formada. Após período
de latência de cerca de cinco anos, tem início a última fase, que ele denominou de
genital, quando a personalidade adquire sua estrutura final;
b) Carl G. Jung, cuja contribuição mais importante para a teoria da personalidade foi a
noção de inconsciente coletivo. Para Jung, as pessoas são o resultado de uma mescla
da história individual com experiências que são compartilhadas com toda a
humanidade. Essas experiências, guardadas em cada pessoa em forma de imagens que
ele denominou de arquétipos, influenciam as expectativas e o comportamento.
Durante a vida do indivíduo, o seu relacionamento com esses arquétipos vai
modulando o que se manifesta como personalidade;
c) Alfred Adler, que ressaltava a importância das forças sociais e conscientes.
Sentimentos de inferioridade são centrais na estruturação da personalidade,
identificando em cada ato psicológico o que ele chamou de luta pela superioridade,
que a iria desenvolvendo;
d) Karen Horney, que, como Adler, enfatizou o contexto social no desenvolvimento da
personalidade. Para ela, as soluções encontradas para a hostilidade que todo jovem
desenvolveria contra seus pais seria o motor do desenvolvimento de sua
personalidade;
e) Erik Erikson, para quem a personalidade se forma à medida que as pessoas passam por
oito fases psicossociais, havendo em cada qual um conflito a enfrentar e resolver. É no
197
processo que envolve a solução desses conflitos que a personalidade vai se
estruturando.
Os teóricos baseados na teoria psicodinâmica usam vários instrumentos para acessar a
personalidade do indivíduo. Os principais são:
a) Entrevistas: é a mais comum. O método oferece insights durante a interação do
paciente com o entrevistador, relacionados a aspectos pessoais e privados da
personalidade. Tem a desvantagem de estar sujeito à manipulações e interferências dos
entrevistados e de depender de habilidades e tendências pessoais do entrevistador.
Esse foi um dos métodos utilizados como complemento no desenvolvimento da escala
“F” de autoritarismo por Adorno et al (1982);
b) testes projetivos: como os teóricos psicodinâmicos acreditam que as pessoas projetam
no mundo suas percepções, emoções e pensamentos, esses testes foram concebidos
para revelar esses conteúdos inconscientes. Assim, se for apresentado algo de
conteúdo ambíguo para o paciente, ele irá utilizar seus recursos para interpretá-lo,
revelando facetas escondidas de sua personalidade. Os testes projetivos mais
comumente utilizados são o teste de Rorschach, no qual as pessoas devem dizer o que
veem ao examinar 10 borrões de tinta; os testes de completar sentenças, quando a
pessoa é solicitada a completar fragmentos de sentenças; os testes de desenhos e
figuras, em que características pessoais são inferidas a partir de desenhos realizados
pelo examinado; e o Teste de Apercepção Temática (TAT), que envolve a invenção de
histórias, com base na observação de algumas figuras dadas.
B) Teorias fenomenológicas
Partem do princípio de que as pessoas estão continuamente atribuindo significados às
informações que adquirem, os quais estão sempre relacionados às suas experiências. Seu
principal representante é Carl Rogers, que, embora supusesse que a personalidade seria
modelada pela hereditariedade e pelo ambiente, considerava que os limites das pessoas (que
são autoimpostos) geralmente podem ser ampliados.
A mensuração da personalidade, na perspectiva fenomenológica, utiliza basicamente
entrevistas gravadas e testes de personalidade chamados “Técnica Q”. Esse teste é
classificado como “objetivo”, no sentido de que seus resultados, ao contrário dos testes
projetivos, independem de quem o administra ou analisa.
198
C) Teorias behavioristas
Sua característica principal é a ênfase em rigorosos métodos científicos, incluindo
estudos com animais de laboratório. Afastam-se das outras linhas, pois, enquanto aquelas
procuram qualidades internas duradouras, os behavioristas se preocupam com ações
observáveis em situações específicas.
Um de seus teóricos mais importantes, B.F. Skinner, considerava a personalidade uma
ficção. As pessoas infeririam características que são subjacentes às ações dos outros, o que
estaria presente apenas aos olhos do observador. Mesmo aceitando que o comportamento
fosse um produto de forças genéticas e ambientais, Skinner enfatizava as explicações do
comportamento pelo condicionamento.
O estudo da personalidade nessa linha é feito tipicamente com experimentos e
observações de caráter quantitativo, que são realizados em alto número de indivíduos.
D) Teorias disposicionais, com dois representantes: as teorias dos traços e a dos tipos
Os traços referem-se a características singulares que incluem temperamento,
motivação, ajustamento, capacidade e valores. Seu principal representante, Raymond Catell,
coletou 18.000 palavras que descreviam pessoas, posteriormente reduzidas para 200 ao se
retirarem as repetições, e as submeteu a uma análise fatorial, identificando 16 grupos de
traços que foram considerados como dimensões básicas da personalidade. Esses traços seriam
relativamente estáveis durante a vida, parecendo estar relacionados à herança genética,
funcionando como blocos de construção da personalidade.
Os tipos referem-se à classificação de pessoas em categorias de personalidade, com
base em diversos traços relacionados. Ou seja, enquanto os traços seriam pequenas partes da
personalidade, os tipos seria toda a personalidade. Ainda nessa linha, William Sheldon e
colaboradores procuraram ligar o tipo físico à personalidade.
Entre os testes utilizados para mensurar a personalidade nessa linha, o mais importante
e um dos mais amplamente utilizados até hoje é o Minnesota Multiphasic Personality
Inventory (MMPI), que avalia uma série de características pessoais com ênfase em distúrbios
e anormalidades. Várias escalas para medir diferentes aspectos da personalidade foram
derivadas do MMPI. Uma limitação do teste é a sua necessidade de validação com a mudança
do contexto social e após períodos mais longos de tempo.
Entre as diferentes teorias de personalidade, Flores-Mendoza (2007) realça que a
maioria dos trabalhos científicos utiliza a teoria dos traços, enquanto os livros-textos usam
predominantemente as psicodinâmicas. O motivo mais provável dessa diferença parece estar
199
no fato de que a teoria dos traços utiliza exclusivamente métodos quantitativos – que são os
preferidos para a realização de pesquisas cientificas – o que não acontece com as outras.
A escala a ser empregada na pesquisa também está enquadrada nesse grupo, que tem
como fundamento a teoria dos traços. Busca-se, a partir de agora, caracterizar os aspectos
mais importantes para a compreensão dessa escala para o argumento da pesquisa realizada.
3.4.3.2 A escala NEO-PI-R
Para McCrae (1982), traços de personalidade não constituem comportamentos ou
soma de comportamentos, mas “disposições globais e abstratas que resumem as tendências,
estilos e preferências dos indivíduos. Suas inferências requerem consideração do significado
do comportamento quanto às metas, motivos e valores da pessoa” (MCCRAE, 1982, p. 301).
Os métodos utilizados para esse tipo de investigação são os questionários, testes objetivos e as
histórias de vida.
O Revised Neo Personality Inventory (NEO-PI-R) está classificado entre os
questionários. Seu desenvolvimento teve início na década de 1970, a partir de modelos
desenvolvidos anteriormente e que eram os mais aceitos na comunidade científica – de modo
especial o modelo dos cinco grandes fatores (CGF), ou Big Five, como era conhecido na
literatura. O nome vem dos três primeiros domínios envolvidos no questionário – N
(neuroticismo), E (Extroversão) e O (abertura para experiências – openness) – acrescido de PI
(personality inventory). Na década de 1980 são reconhecidos os outros dois domínios – a
amabilidade (A) e a conscienciosidade (C).
Na década de 1990, foram também desenvolvidas escalas para mensurar as facetas de
cada um desses domínios, quando a escala passou então a se chamar NEO-PI-R (FLORES-
MENDOZA, 2007). A escala completa é composta de 240 itens, que avaliam 30 facetas que
se organizam em cinco dimensões (ou em seis facetas por dimensão).
A versão original foi traduzida inicialmente para o português de Portugal em 2000,
tendo sido essa versão adaptada à população brasileira para a produção da escala usada nesta
pesquisa. Essa última versão foi analisada e validada, sendo hoje a oficial no Brasil – e,
portanto, a que foi aplicada aos pesquisados neste estudo, como será detalhado no capítulo 4,
dedicado à metodologia utilizada na pesquisa.
Os resultados mais importantes, apresentados por Costa Jr. e McCrae (1988, 2007),
foram:
200
a) Validade: (i) critérios externos - “em geral, esses dados trazem evidências positivas de
validade ao NEO-PI, uma vez que as associações estão próximas das encontradas em
estudos correlacionais do NEO-PI com variáveis de critério semelhantes aos da versão
americana” (COSTA JR.; MCCRAE, 2007, p. 70); (ii) validade convergente e
discriminante: “pode-se concluir que as evidências positivas de validade convergente-
discriminante dão suporte interpretativo aos construtos medidos pelas escalas do
NEO-PI-R (COSTA JR.; MCCRAE, 2007, p. 69).
b) Normatização: “[...] as escalas N, E e O têm distribuição praticamente normal. As
escalas A e C desviam ligeiramente da distribuição normal. O maior desvio ocorreu na
escala de amabilidade, na qual os escores tendem a se acumular mais à direita, com
pico mais elevado ao redor da média. Entretanto, esses índices indicam que, em geral,
a distribuição normal pode ser assumida (COSTA JR.; MCCRAE, 2007, p. 74).
c) Precisão e consistência: “todos os coeficientes dos fatores estão acima de .80 e,
portanto, podem ser considerados bastante adequados. [...] Pode-se concluir, portanto,
que as escalas do NEO-PI-R apresentam níveis adequados de precisão” (COSTA JR.;
MCCRAE, 2007, p. 70).
De modo muito sucinto, os domínios serão apresentados a seguir. Como cada domínio
possui seis facetas, estas serão também nominadas, sendo o seu significado apenas muito
sumariamente apresentado, pois não estão no foco da análise do material de pesquisa em
apreço. Todas as definições foram retiradas de Costa Jr. e McCrae (2007), já que esse é o
texto oficial de apresentação da escala. São eles: neuroticismo, extroversão, abertura a
experiências, amabilidade e conscienciosidade.
(N) Neuroticismo: contrasta ajustamento ou estabilidade emocional com o
neuroticismo (mau ajustamento). O núcleo desse domínio está na tendência a experimentar
afetos como medo, tristeza, vergonha, raiva, culpa e nojo. Indivíduos com altos escores nesse
domínio são propensos a apresentar ideias irracionais e de terem pouca habilidade para
controlar seus impulsos e lidar com o estresse; já os que apresentam resultados baixos tendem
a ser emocionalmente estáveis, calmos e capazes de enfrentar situações estressantes sem se
aborrecerem ou se perturbarem. As facetas, junto com o que representam, são as seguintes:
a) Ansiedade: relacionada a tensão, medo, sensação de apreensão e grande preocupação;
b) raiva/hostilidade: tendência a vivenciar a raiva como frustração e amargura;
c) depressão: diferenças individuais normais na experiência de um afeto negativo;
201
d) embaraço/constrangimento: emoções relacionadas à vergonha e embaraço (é
semelhante àtimidez e à ansiedade social);
e) impulsividade: inabilidade de controle de anseios e ímpetos (não deve ser
confundidocom espontaneidade, ousadia e rapidez na tomada de decisões);
f) vulnerabilidade: suscetibilidade ao estresse e às agressões psicológicas.
(E) Extroversão: os traços mais importantes são os de sociabilidade, assertividade,
busca de excitação e estímulos. Escores altos são encontrados em pessoas alegres e bem
dispostas e o domínio também se relaciona a interesse por empreendedorismo. Já os escores
mais baixos são de mais difícil caracterização – talvez mais como ausência de extroversão do
que introversão. Também não há relação com introspecção e reflexão (estas últimas irão se
relacionar com o próximo domínio, o de abertura a experiências). As facetas aqui são:
a) Acolhimento caloroso: relaciona-se a afeto e amizade. É a mais próxima do domínio
A;
b) gregarismo: preferência pela companhia de outras pessoas, estimulação social;
c) assertividade: refere-se a dominância, liderança e independência (não deve ser
confundida com agressividade verbal);
d) atividade: agilidade, vigor, energia e necessidade de movimento;
e) busca de sensações: busca de excitação e estimulação;
f) emoções positivas: tendência a experienciar emoções positivas como alegria,
amor,animação.
(O) Abertura a experiências: os elementos desse domínio envolvem a imaginação
ativa, sensibilidade estética, atenção aos próprios sentimentos, preferência por variedade,
curiosidade intelectual e independência de julgamento. Os escores desse domínio estão pouco
relacionados à educação ou medidas de inteligência, mas há relação com aspectos da
inteligência, como o pensamento divergente – um aspecto que se relaciona com a criatividade.
Suas representatividades são:
a) Fantasia: imaginação vívida, vida fantasiosa ativa;
b) estética: grande apreciação de harmonia, gosto por diversas formas de arte e beleza;
c) sentimentos: receptividade após próprios sentimentos e emoções (tem a emoção como
parte importante da vida);
d) ações variadas: disposição para atividades diferentes e para o conhecimento de novos
lugares e situações;
202
e) ideias: curiosidade intelectual, não apenas dos próprios interesses, mas também
abertura e disposição a considerar ideias novas (até mesmo as não convencionais);
f) valores: prontidão a rever valores (sociais, familiares, políticos, religiosos).
(A) Amabilidade: assim como a extroversão, essa é uma dimensão que se relaciona às
tendências interpessoais. É uma predisposição a se sensibilizar com a situação dos outros, a se
colocar no lugar deles – o que pode resultar em um comportamento de complacência. Os
aspectos e o que representam são:
a) Confiança: disposição a acreditar na honestidade e nas boas intenções dos outros;
b) franqueza: relaciona-se à própria sinceridade e à lealdade para com a verdade;
c) altruismo: preocupação ativa com o bem-estar dos outros; demonstração de
generosidade e disposição para a assistência a quem necessita de ajuda;
d) complacência: considera as reações aos conflitos interpessoais; tendência a deferir em
favor dos outros, evitando situações de ruptura;
e) modéstia: humildade, modéstia e pouca vaidade (não é baixa de autoestima);
f) sensibilidade: simpatia, compaixão, preocupação com o humano das questões sociais.
(C) Conscienciosidade: o autocontrole (que pode estar relacionado a um N alto)
também pode se relacionar a processos mais ativos de organização, planejamento e condução
de tarefas. Escores mais altos nessa dimensão pode se associar à escrupulosidade. Compõe as
facetas:
a) Competência: percepção de que é capaz, sensível, prudente e efetiva;
b) ordem: atitudes de organização, planejamento, preparação, metodismo;
c) senso do dever: cumprimento de obrigações sociais, morais ou éticas;
d) esforço por realizações: tendência a aspirar a altos níveis e atitudes para alcançá-los;
e) autodisciplina: habilidade de iniciar tarefas e conduzi-las até o fim,
independentemente de tédio, fastio ou outras distrações (não confundir com
impulsividade);
f) ponderação: tendência a pensar e deliberar cuidadosamente, antes de agir.
A versão brasileira da escala é apropriada para indivíduos com mais de 18 anos, mas
não há normas para pessoas com mais de 60 anos – o que limita a interpretação para as
pessoas desse grupo, e envolveu quatro indivíduos na pesquisa. O nível de instrução deve
corresponder a, no mínimo, o ensino médio completo e não deve ser aplicado a pessoas com
203
alterações de consciência e julgamento (como em psicoses e demências) ou do nível
intelectual (como no retardo mental) (COSTA JR.; MCCRAE, 2007, p. 76).
Para a interpretação podem se utilizadas tanto a avaliação simples – observando-se
traços diferentes de modo isolado – como interpretações mais complexas, que vão depender
de mais conhecimento e experiência por parte do avaliador. Neste trabalho, pelo tipo de
abordagem utilizada, será utilizada a avaliação simples39
.
A princípio, serão considerados apenas os domínios para as comparações. Entretanto,
em função de aspectos relacionados ao que foi discutido na seção 2.4.2.2, uma das facetas
será utilizada também para as comparações: a modéstia, da amabilidade.
Nas ponderações sobre as facetas, apresentadas no manual do Neo-Pi-R (COSTA;
MCCRAE, 2007), encontra-se a seguinte observação referente à faceta modéstia, da
amabilidade: “baixos escores acreditam que são pessoas superiores e podem ser consideradas
presunçosas e arrogantes pelos outros. A falta patológica de modéstia é parte da concepção
clínica de narcisismo” (COSTA; MCCRAE, 2007, p. 85-86 – grifo nosso).
Em função desse aspecto, ela será utilizada nas discussões que envolvam o narcisismo.
3.4.4 Abordagens de liderança que consideram as características da personalidade
Como foi visto na seção conceitual, Khaleelee e Wolf (1996, p. 5) acreditam que o
diferencial do líder reside no fato de ele “ser capaz de suportar suas próprias incertezas e as
incertezas dos outros”. Essa resiliência é algo que é desenvolvido com a maturidade. De
acordo com a teoria psicoanalítica, a capacidade de tolerar a incerteza está muito ligada ao
desenvolvimento emocional da infância – como apregoa Melanie Klein (1946).
No seu artigo com o estudo de dois casos, os autores buscam demonstrar:
As demandas e frustrações da experiência de vida contribuem para o
desenvolvimento de mecanismos de defesa que vão influenciar a personalidade. A
natureza desses mecanismos de defesa afeta a capacidade do indivíduo em se manter
estável sob estresse e de tolerar as incertezas, o que é algo exigido pelas posições de
liderança (KHALEELEE; WOLF, 1996, p. 10).
Judge et al. (2002), em sua revisão sobre a personalidade e liderança, identificaram as
cinco dimensões abordadas pelo Neo-Pi-R como as mais adequadas para as pesquisas sobre
liderança. Em relação a cada uma, os autores se posicionaram:
39
Sob a responsabilidade de psicóloga que faz parte do grupo de pesquisa do NERHURT, regularmente inscrita
no Conselho Regional de Psicologia.
204
Quanto ao neuroticismo: a revisão realizada por Bass (1990) mostrou que em quase
todos os estudos havia relação entre a autoconfiança – que está ligada a baixo neuroticismo –
e a liderança. Outra revisão, realizada em 1977 por Hill e Ritchie (apud JUDGE et al., 2002),
sugeriu que a autoestima – outro indicador de baixo neuroticismo – seria um fator preditivo
para a liderança. Além disso, Hogan, Curphy e Hogan (1994) apresentaram evidências de que
indivíduos neuróticos teriam menos probabilidade de serem percebidos (emergência) como
líderes.
Em se tratando da extroversão: na revisão de Bass (1990), os resultados da relação
entre a extroversão e a liderança foram inconsistentes. Mas no trabalho dos autores
responsáveis pelo Neo-Pi-R (COSTA; MCCRAE, 1988) a extroversão está fortemente
relacionada à liderança social. De acordo com Hogan, Curphy e Hogan (1994), a extroversão
estaria relacionada ao fato de ser percebido como líder. Outro autor citado por Judge et al.
(2002) - Gough (1990) - também encontrou que as duas facetas mais importantes da
extroversão – dominância e sociabilidade – também se relacionavam à classificação do
indivíduo como líder, tanto própria como por parte de outros. Como resultado, Judge et al.
(2002) entendem que a extroversão deva se relacionar tanto à emergência como à efetividade
da liderança – embora seja mais forte a relação com a emergência;
No tocante à abertura: na revisão de Bass (1990), a originalidade – uma marca da
abertura – encabeçava a lista. Para Yukl (2002), a criatividade – também uma faceta da
abertura – é uma das habilidades esperadas do líder. Assim, também a abertura deve estar
positivamente relacionada tanto à emergência quanto à efetividade da liderança.
Na amabilidade: para Bass (1990), a disposição para cooperação tende a se relacionar
à liderança. Mas indivíduos agradáveis tendem a ser modestos e a modéstia excessiva não é
um traço esperado para o líder (BASS, 1990). A necessidade de afiliação, que também é
considerada um aspecto da extroversão, foi negativamente relacionada à liderança por Yukl
(2002). Assim, para Judge et al. (2002), há evidências ambíguas sobre a relação da
amabilidade com a liderança.
A respeito da conscienciosidade: na revisão de Bass (1990), “a competência para
tarefa resulta em esforços para liderar, o que deve provavelmente resultar em sucesso para o
líder, efetividade para o grupo e em reforço de tendências” (BASS, 1990, p. 109). Como a
conscienciosidade está positivamente relacionada ao desempenho da tarefa, ela deve se
relacionar à efetividade do líder. Além disso, como indivíduos conscienciosos são mais
persistentes e como a persistência está relacionada à liderança, Jugde et al. (2002) acentuam
que a conscienciosidade está positivamente relacionada à efetividade da liderança.
205
Na revisão conduzida na literatura publicada até o ano 2000, Judge et al. (2002)
identificaram que: a extroversão foi o domínio com a maior correlação com a liderança; a
amabilidade mostrou a correlação mais fraca; as demais facetas mostraram correlação
positiva, menos intensa que a extroversão; e o neuroticismo não foi um bom preditor de
liderança na análise multivariada.
Os autores concluíram:
Depois da extroversão, a conscienciosidade e a abertura a experiências foram os
correlatos mais fortes e consistentes com a liderança. A conscienciosidade foi o
segundo correlato mais forte com a liderança e, na análise multivariada (utilizando
correlações N-ponderadas), foi o maior preditor de liderança em duas de três
regressões. A consciensiosidade foi mais fortemente relacionada à emergência de
liderança do que à efetividade da liderança; as atividades de organização de
indivíduos conscienciosos (por exemplo, tomar notas, facilitar processos) podem
permitir que esses indivíduos emerjam como líderes. Dos cinco grandes traços, a
abertura a experiências é o mais controverso e menos entendido (JUDGE et al.,
2002, p. 773).
A investigação de Judge e Bono (2000) teve o intuito de relacionar alguns traços de
personalidade, expressos no modelo dos cinco fatores, com a liderança transformacional. As
hipóteses investigadas eram de que a extroversão, a abertura a experiências e a amabilidade
estariam positivamente relacionadas à liderança transformacional, enquanto o neuroticismo se
relacionaria negativamente a esse tipo de liderança. Como resultado, apuraram que, das cinco
dimensões, a amabilidade foi a que se relacionou de modo mais intenso à liderança
transformacional, apesar de a extroversão e a abertura a experiência também terem mantido
relação estatisticamente significativa. No entanto, em todas as três dimensões as correlações
foram de baixa magnitude. O neuroticismo e a conscienciosidade não mostraram qualquer
relação, positiva ou negativa, com a liderança. Os resultados revelaram que essas dimensões
da personalidade não parecem predizer bem a liderança transformacional em um indivíduo.
3.4.5 Liderança, personalidade e participação política
Como o estudo empírico conduzido na pesquisa desta tese envolveu líderes de
organizações de caráter associativo – e que, por esse caráter, costumam ser escolhidos com
base em um processo político –, não se pode deixar de apresentar pesquisas que tiveram como
foco essa associação entre os aspectos de personalidade e a liderança escolhida por processo
político.
206
Entre diversas linhas de abordagem possíveis, e para se manter a consistência teórica
da pesquisa, foi feita a escolha por autores ou que estivessem identificados com os
frankfurteanos ou que tivessem sido por eles citados (seja pelo tipo de metodologia, seja pelo
tipo de abordagem e de resultado alcançado) – de modo especial, os que tenham sido
mencionados por T. Adorno.
Um autor que se enquadra nos critérios apresentados é Harold Lasswell (1963), que
tanto consta da bibliografia da Authoritarian personality (ADORNO et al., 1982) como foi
citado em algumas das aulas de introdução à sociologia, proferidas por Adorno (2008a).
Na década de 1930, Lasswell (1963) realizou uma pesquisa com a finalidade de
entender o percurso político de alguns líderes a partir de suas histórias de vida. Sua
dificuldade inicial foi o local onde obter histórias de vida que deixassem de lado os
convencionalismos, com informações que fossem recolhidas e organizadas por especialistas
nas influências sociológicas, psicológicas e somáticas que atuam sobre o indivíduo. A escolha
recaiu sobre instituições psiquiátricas, pela forma como as informações eram recolhidas por
um corpo multidisciplinar de especialistas.
As informações foram obtidas tanto diretamente do examinado, em várias fases de
evolução de sua vida médica, como por intermédio de seus parentes – além de incorporar
outros documentos importantes como cartas, desenhos, pinturas ou outras produções plásticas.
Segundo o próprio autor, Lasswell (1963) não teve com esse trabalho o propósito de mostrar
que os políticos seriam insanos. Seu objetivo principal foi mostrar o perfil de
desenvolvimento de diferentes homens públicos, sendo o patológico algo de secundário na
pesquisa.
Para atingir o objetivo traçado, começa por desenvolver uma tipologia baseada em
termos que retira da linguagem popular, complementado por tipos delineados por estudiosos
da cultura, buscando um termo comum entre as duas descrições. Faz ainda uma distinção para
o uso do termo “político” nos sentidos “institucional” e “funcional”, dependendo do contexto
de seu uso, ainda que considere que as contribuições ao entendimento de um sentido
terminam por influenciar o entendimento do outro.
A partir da visão funcional, ele identifica o líder político como sendo um indivíduo
que está presente em qualquer lugar onde as vontades estejam em conflito, o que implica que:
207
Manifestações intensamente políticas da sociedade não estão confinadas aos
funcionários do governo e aos partidos, mas envolvem firmas bancárias, fábricas,
serviços de distribuição, organizações eclesiásticas, associações e sociedades
profissionais. É possível que indivíduos mais agressivos, mais ávidos de poder, na
sociedade moderna, encontrem seu caminho nos negócios e fiquem fora das
legislaturas, dos tribunais, da administração pública e do serviço diplomático. Se
isso é verdade, o estudioso das personalidades políticas encontrará seu objeto mais
interessante em J.P. Morgan & Cia, U.S. Steel Corporation, políticos empregados,
educadores ou médicos (LASSWELL, 1963, p. 56).
Os “tipos” construídos por Lasswell se assentam numa base tríplice de relações:
a) O tipo que chamou de nuclear, fundado no conceito de “homem de poder”, que leva
em consideração o político como sendo aquele cujo valor principal é a busca pelo
poder. A essência de seu poder é entendida como a capacidade, e habitualmente a
vontade, de impor aos outros seus próprios valores, como motivos permanentes ou
transitórios. Esse “homem de poder” pode ser diferenciado nos tipos “administrador”,
“agitador” e “teórico”, cada um dos três subdivididos entre “especializados” ou
“múltiplos”;
b) os tipos chamados correlacionais, que são encontrados a partir de referências dos tipos
nucleares a situações específicas (como, por exemplo, se o exercício de poder se
relaciona a uma estrutura hierárquica);
c) a de tipo evolutivo é desenvolvida a partir do lugar destinado ao homem político nos
principais sistemas caracteriológicos modernos, subdividida entre duas polaridades em
cada dimensão: sexualidade (masculino, feminino), psicomotilidade (sádico,
masoquista), emocionalidade (hiper ou hipoemotivo), moralidade (moral, imoral),
intelectualidade (superior, inferior) e elementos acessórios (altruísta, egoísta)
(LASSWELL, 1963).
Usando a teoria de desenvolvimento da personalidade a partir de Freud, Lasswell
(1963) criou uma fórmula que sumariza a sua visão de desenvolvimento do homem político,
expressa da seguinte forma:
p } d } r = P
Sendo:
P = homem político
p = motivos privados: organizados em relação à sua constelação familiar e ao seu Ego;
d = deslocamento dos motivos privados e objetos familiares para os objetos públicos;
r = racionalização do deslocamento, como se dando em função do interesse público;
} equivalendo ao termo “é transformado em”.
208
Para Lasswell (1963), p é comum a todos os homens. O que diferencia o político é d e
r. A pergunta, então, seria: de que dependem o deslocamento e a racionalização?
A resposta é que a seleção de certos objetos públicos depende do “acidente histórico”
que o ambiente do indivíduo lhe oferece nas fases críticas de seu desenvolvimento. Pode-se
predizer que há mais políticos em famílias com tradição política, mas essa conclusão é
simplista e não explica muita coisa.
O que Lasswell procurou descobrir foi “a diversidade de circunstâncias motivadoras
que levam o indivíduo a adotar, rechaçar ou modificar modelos de atos e palavras que lhe são
oferecidos em seu ambiente” (LASSWELL, 1963, p. 84). A ideia aqui se refere aos aspectos
motivadores, como apresentado na teoria contingencial de liderança.
Após a sua pesquisa com estudo de casos, divididos inicialmente por suas “relações
nucleares” (administrador, agitador e teórico), Lasswell (1963) conclui que as interpretações
de fatos observados, em termos de tendências, podem se dividir em cinco classes principais,
que dependem da natureza da relação entre a situação postulada e a terminal (ocorrida) e são:
a) Aproximação ou realização de metas que são comunicadas pelo sujeito: pode-se
confiar em alguém que diz que vai tomar um trem, se o vemos correndo em direção à
estação;
b) graus de aproximação de acontecimentos subsequentes que são realmente observados:
a solicitude de alguém pela saúde e bem-estar dos mais necessitados de seu município
é compreendida pela sua subsequente campanha a candidato a deputado;
c) os acontecimentos da personalidade são a reiteração de situações terminais que já
haviam sido observadas: ficar na cama depois de acordar pela manhã, sempre que
existem problemas a serem enfrentados, pode ser interpretado como a reativação de
um impulso psíquico anterior de ficar quieto e esperar ser atendido por alguém;
d) acontecimentos da personalidade podem ser aproximações de acontecimentos
terminais “normais”, observados na categoria cultural ou biológica do indivíduo;
e) acontecimentos da personalidade podem ser interpretados em função de uma situação
terminal “extrema” para os membros da espécie ou de uma cultura: os atos de alguém
podem ser vistos como uma aproximação do suicídio, homicídio ou incesto.
Genericamente falando, a investigação dos componentes inconscientes do “agitador”
mostrou para um grupo a tendência a obter satisfação na condução de amplos auditórios em
função de sua necessidade de obter afeto e respeito e, para outro, uma motivação na
necessidade de condenar o outro, considerando condenação como a aplicação de uma norma,
209
proclamando e denunciando o afastamento desta, em uma visão entre o justo e o injusto. Essas
pessoas são vistas pela investigação psicoanalítica como impulsionados pela culpa, para a
qual buscam alívio a partir de mecanismos como a projeção sobre outros de características
suas que rejeita (LASSWELL, 1963).
Já os “administradores” foram considerados ávidos de gratificação por parte dos
outros. A predileção do tipo “burocrata” pela rotina estava ligada à sua luta interna por
controlar impulsos destrutivos. No tipo mais orientado aos negócios, foi evidente a orientação
primordial para ganhar dinheiro, alimentando seus negócios privados com os ganhos no
governo. Na análise de sua personalidade ficava evidente que sua motivação era orientada
para consolidar sua segurança pessoal e de sua família. Além de afeto e respeito, lhes
importava o bem-estar, alcançado pela saúde, segurança e conforto (LASSWELL, 1963).
No caso do “teorizador”, o peso maior estava no conhecimento e na capacidade.
Observou-se que muitos desses indivíduos haviam enfrentado muitas frustrações quando
muito jovens. E, em alguns casos, a motivação para o poder estava na superfície e tomava a
forma de apego a um político sobre o qual o sujeito esperava exercer influência.
Lasswell (1981) estende a sua abordagem em um trabalho posterior, no qual discute os
resultados do trabalho de Adorno et al. (1982). Nesse trabalho, o autor observa criticamente
que, em The Authoritarian Personality, não se estudou o comportamento político dos sujeitos,
por não contar em sua amostra com a elite ativa dos partidos, “deixando uma lacuna entre a
concepção de personalidade autoritária e a demonstração de que tais fatores de personalidade
exercem importante efeito seletivo na escolha de papéis de interesse particular aos cientistas
políticos” (LASSWELL, 1981, p. 203).
Seria plausível considerar que o sujeito autoritário, sendo pessoa centrada no poder –
como descrito na The Authoritarian Personality –, em períodos de crise venha a desempenhar
papéis de liderança na sociedade e que, “se essa hipótese for verificada em pesquisas futuras,
a concepção de personalidade autoritária contribui muito para refinar o modelo teórico de
homo politicus a ser investigado” (LASSWELL, 1981, p. 204).
Baseando-se nas hipóteses da The Authoritarian Personality, Lasswell (1981) elabora
uma teoria sobre a origem e o desenvolvimento da personalidade centrada no poder, tentando
explicar a ligação entre personalidade e participação política, definida como aquisição e
exercício de papéis no processo social.
Para esse autor, o “incidente que precipita o desenvolvimento de uma pessoa centrada
no poder” é dado pelo conceito de “experiência de privação”, entendida como privação de
valores – afeição, poder, respeito, riqueza, bem-estar, etc –, semelhante à hipótese de Frenkel-
210
Brunwik (uma das autoras de The Authoritarian Personality), que tinha como hipótese que
perdas sérias de qualquer um dos valores do indivíduo poderia estar na origem das defesas.
Dessa forma, circunstâncias traumatizantes, como determinadas perdas (como, por exemplo, a
de status social), originam uma defesa ativa, a menos que as privações sejam tão grandes que
destruam completamente a autoconfiança (CARONE, 1995).
O que Lasswell (1981) verificou foi que, na história de países que possuem
instituições democráticas, os líderes políticos têm o poder como uma coordenada ou valor
secundário, em comparação com outros valores como respeito (popularidade), retidão
(reputação de servidor do bem comum) e riqueza (um meio de vida, o foco é em enriquecer).
Essa hipótese de Lasswell (1981) está de acordo com os resultados obtidos em outra
pesquisa, que utilizou a escala F de Adorno para analisar a liderança política nas forças
armadas (HOLLANDER, 1954). Nessa pesquisa, contrariamente às expectativas do autor,
numa instituição onde os princípios de autoridade e hierarquia não podem ser questionados –
as Forças Armadas –, os indivíduos não autoritários foram preferidos aos autoritários como
líderes. Não se registrou conexão necessária entre a síndrome autoritária (traço de
personalidade, como definido em The Authoritarian Personality) e o “autoritarismo” ou
comportamento autoritário como exercício da autoridade de lideranças políticas, educacionais,
militares, etc.
Hollander (1954) também faz outro achado interessante: ao contrário do que ele
esperava para uma instituição militar, os indivíduos que foram considerados pelos
pesquisados como sendo as melhores lideranças foram justamente os que apresentaram
índices mais baixos de autoritarismo, expresso pela escala F, tanto para os pesquisados que
apresentaram índices “altos” como “baixos” em autoritarismo pela mesma escala. Ou seja, o
grau de autoritarismo do pesquisado não interferiu no resultado, que foi a escolha de líderes
menos autoritários.
Esse resultado, entretanto, não está em conformidade com o encontrado em outra
pesquisa realizada pelo autor desta tese (VILELA, 2008; VILELA; CARVALHO NETO;
LOPES, 2010). No presente estudo, aplicando-se uma escala de autoritarismo baseada na
escala F, indivíduos escolhidos para exercerem cargos na diretoria de empresas apresentaram
nível de autoritarismo inferior ao dos que exerciam cargos de nível gerencial. No entanto, os
escolhidos para exercerem cargos de diretoria em cooperativas – portanto, lideranças
políticas, escolhidas através do voto – expressaram nível de autoritarismo não só superior ao
dos indivíduos de nível gerencial das mesmas cooperativas, como também superior a todos os
demais (gerentes e dirigentes de empresas). Ou seja, o tipo de liderança – “político”, para
211
diferenciar do tipo que Lasswell denominou de “administrador” – interferiu no resultado da
pesquisa.
Em trabalho com estudantes, Mussen e Wyszinski (1952) avaliaram a relação entre
autoritarismo e participação política, traçando perfis psicológicos de indivíduos ativos e
apáticos politicamente. Como resultado, concluíram para os politicamente ativos que:
Uma das características marcantes do indivíduo politicamente ativo é o seu esforço
de autocompreensão, sua consciência, exame e aceitação de suas emoções e
sentimentos, incluindo os de inadequação e inferioridade. Sua consciência e
orientação sociais ficam aparentes em sua ênfase na oferta de amor e contribuição
social, respeito pelos direitos e sentimentos alheios e admiração por cientistas
sociais e líderes políticos liberais (MUSSEN; WYSZINSKI, 1952, p. 80).
Já o politicamente indiferente foi descrito como alguém que:
Parece ser geralmente passivo, insatisfeito e geralmente ameaçado e embora dê
evidências de ser fundamentalmente hostil, não aceita seus impulsos hostis. Ao
contrário, parece ser completamente submisso e não desafiador contra autoridades,
rígido e incapaz de desfrutar de experiências emocionais profundas. Ele enfatiza
valores convencionais como obediência, boas maneiras e etiqueta social. Em
conformidade com convenções sociais, recusa a se tornar cônscio de sentimentos
profundos e submissão, tudo isso podendo ser instrumentos que ajudam indivíduos
apáticos a lidar com suas inseguranças básicas, no que ele identifica como um
ambiente ameaçador (MUSSEN; WYSZINSKI, 1952, p. 80).
Os autores acrescentaram que não existiam diferenças significativas entre os dois
grupos quanto ao etnocentrismo, antissemitismo e fascismo potencial, indiscriminadamente
ocorrendo em qualquer espécie de ideologia ou orientação política. E ressalvam que o estudo
apenas utilizou escalas para medir predisposição e potencialidades autoritárias, sendo que
seria necessário uma outra avaliação do comportamento efetivo nesse sentido, o que poderia
ainda revelar diferenças significativas entre os dois grupos (CARONE, 1995).
3.4.6 Liderança emergente, sua relação com a personalidade e com a inteligência
Hogan, Curphy e Hogan (1994, p. 496) exploram esse tema no contexto em que
levantam a seguinte pergunta: por que escolhemos líderes tão ruins?
Na visão dos autores, escolhe-se mal porque, apesar das pesquisas sobre características
dos indivíduos que podem favorecer a liderança, elas são pouco utilizadas. E a simples
percepção de que um indivíduo teria um “jeito de líder”40
resultaria em falhas na efetiva
40
Tradução livre para leaderlike.
212
atuação no papel de liderança em cerca de 50 a 60% das vezes. Daí se tratar do tema
emergência de liderança e liderança implícita no âmbito da percepção para a liderança
potencial.
As características de personalidade identificadas como facilitadoras para a liderança
podem ser observadas nas pesquisas relacionadas a duas categorias: a liderança emergente e a
liderança implícita. Mas os próprios autores têm dúvidas sobre se isoladamente apenas a
aferição de características de personalidade poderia ser utilizada como um bom preditor de
sucesso da liderança (HOGAN; CURPHY; HOGAN, 1994).
Já na primeira edição da hoje clássica obra de Stogdill (1974), em 1948, esse autor
fazia referência a características de personalidade que poderiam ser consideradas facilitadores
para a emergência da liderança em vários tipos de grupos não estruturados – entre os quais se
citam a extroversão, a sociabilidade, ambição, responsabilidade, integridade, autoconfiança,
controle emocional e de humor, diplomacia e disposição à cooperação. E, de acordo com
Hogan, Curphy e Hogan (1994), em sua revisão de 1974, as características de personalidade
apresentadas por Stogdill (1974) já podiam ser facilmente enquadradas no modelo de cinco
dimensões, que é o utilizado neste trabalho.
Autores que usaram outras escalas chegaram a conclusões semelhantes. Entre eles,
destacam-se: o trabalho de Gough (1990) que, com a aplicação do Inventário Psicológico da
Califórnia, identificou que as escalas de dominância, capacidade de status, sociabilidade,
presença social, autoaceitação, realização por meio da independência (relacionada com
estabilidade emocional) e empatia correlacionavam-se positivamente com a emergência da
liderança em grupos de discussão sem líderes; o de Zacaro et al. (2004), que mostrou que a
capacidade de controlar emoções estaria positivamente relacionada à emergência da liderança;
e a metanálise de trabalhos anteriores, realizada por Lord, De Vader e Alliger (1986), para
estimar as correlações entre traços de personalidade e a emergência de liderança, o qual
revelou correlação de 0,50 entre inteligência e emergência de liderança.
Já a teoria sobre a liderança implícita é apresentada inicialmente no trabalho de
Hollander e Julian (1969). O pressuposto aqui é o de que pessoas com certas características
pessoais – relacionadas a inteligência, personalidade ou valores – poderiam ser vistas por
outras como podendo ser líderes, quando essas características são congruentes com as noções
preconcebidas dessas pessoas sobre como deve ser um líder. De acordo com Hogan, Curphy e
Hogan (1994), muitos desses atributos preconcebidos também podem ser identificados no
modelo de cinco dimensões.
213
Ilies, Gerhardt e LE (2004), investigando liderança emergente, realizaram metanálise
sobre a relação entre habilidade, traços de personalidade e a emergência da liderança e
estimativas comportamentais da possibilidade de que esses traços tivessem alguma influência
genética.
3.4.7 A personalidade do liderado
Os pesquisadores, já entre as décadas de 1980 e 1990, começaram a mudar o foco na
abordagem das relações de liderança, antes colocado apenas no líder, para incluir também os
liderados. Dois autores pioneiros nessa linha foram Lord (1985) e Lord, De Vader e Alliger
(1986), em suas pesquisas voltadas para o processamento de informações pelas pessoas, e
Meindl (1995) e Meindl, Ehrich e Dukerich (1985), que em sua perspectiva fundada no
construcionismo social propuseram o que chamaram de “romance da liderança”, numa
abordagem que o autor mesmo chamou de “centrada no liderado”41
. Ainda na década de 1990,
Sogunro (1998) salientou:
A ênfase está rapidamente mudando da ideia de que a efetividade da liderança é
influenciada unilateralmente por características da personalidade do líder para a
noção de que a efetividade da liderança é influenciada bilateralmente pela dinâmica
das características de personalidade tanto do líder quanto dos membros do grupo
(SOGUNRO, 1998, p. 26)
O motivo apresentado pelo autor é o mais óbvio: não existe liderança sem liderado(s).
O que se observa em muitos dos trabalhos realizados, nesse momento já na perspectiva
da liderança transformacional como sugerida por Bass (1985), é a detecção da necessidade de
examinar o papel da personalidade do seguidor na percepção do líder como transformacional
e na aceitação desse estilo de liderança (SCHYNS; FELFE, 2006).
Considerando que as lideranças transformacional e carismática são frutos de um
processo de relacionamento entre líder e liderado (GARDNER; AVOLIO, 1998) e que, por
isso, é a percepção do liderado que diz algo sobre o líder, alguns autores resolveram explorar
os aspectos de personalidade relativos do liderado, que poderiam influenciar nessa relação –
uma vez que a percepção pode ser influenciada por características individuais de quem
percebe.
Alguns dos primeiros autores a enfrentar o tema sob a ótica teórica, ainda na década de
1990, foram Klein e House (1998) – nesse momento com foco na liderança carismática. Os
41
Tradução livre de “follower-centric theory”.
214
autores trabalhavam com três hipóteses: a de que os seguidores de líderes carismáticos
deveriam ser vulneráveis ou estariam buscando uma direção ou um sentido psicológico para a
vida – o que foi chamado de seguidores “fracos”; também poderiam se sentir confortáveis,
compatibilizando-se com o estilo do líder – o que seriam seguidores “fortes”; ou, ainda, havia
a possibilidade de que não diferissem de seguidores de líderes não carismáticos (KLEIN;
HOUSE, 1998, p. 5).
Motivados por essas questões, Ehrhart e Klein (2001) realizam uma pesquisa empírica
para testar alguns dos pressupostos para o comportamento do liderado, como têm sido
apresentados na literatura:
a) Os liderados vão diferir em resposta a um mesmo comportamento do líder – o que é
conhecido desde a teoria path-goal de House e Mitchel (1974);
b) preferências e reações a diferentes tipos de líderes baseiam-se em atração de
similaridades (de atributos e valores do líder) e necessidade de satisfação, quando o
indivíduo percebe que os líderes vão responder às suas necessidades;
c) as preferências por determinado estilo de liderança podem predizer a sua resposta ao
trabalhar com aquele tipo de líder;
d) a descrição e avaliação de seu líder constituem um preditor de resultados
organizacionais (como satisfação do empregado, intenções e efetivação de turn over e
performance, como se sabe desde Bass (1990).
De acordo com Schyns e Felfe (2006), existem evidências para se considerar que
seguidores que percebem características no líder que classificariam como transformacional
devem ter com esse líder algumas características em comum, como:
a) O líder como protótipo do grupo, como pode ser encontrado no trabalho de Hogg
(2001): proposta que pode ser resumida dizendo-se que líderes que possuem atributos
de personalidade que podem ser considerados prototípicos da personalidade dos
membros do grupo exercem mais influência sobre esse grupo do que outros líderes
exerceriam. Ideia que Schyns e Felfe (2006, p. 524) sumarizam do seguinte modo:
“seguidores individuais que percebem seu líder como prototípico – ou, nesse contexto,
seria mais apropriado dizer representativo – deles próprios perceberão mais a liderança
carismática ou transformacional”. Esse aspecto foi testado em um estudo empírico
conduzido por Salter et al. (2009), cujo resultado revelou significativa relação entre
respondentes afiliados a partidos políticos e a classificação da liderança
transformacional realizada por questionário;
215
b) de acordo com Meindl (1995), a percepção de carisma é contagiosa: o que quer dizer
que a percepção de um pode contagiar a percepção de outros. Ou, conforme Schneider
(1998), seguidores com personalidade semelhante tendem a concordar mais em sua
percepção sobre o líder do que seguidores com características de personalidade muito
diferentes. O carisma, desta forma, se espalharia do líder para membros do grupo e no
grupo entre os seus membros;
c) para Watson, Hubbard e Wiese (2000), indivíduos tendem a ver os outros como
similares a si mesmos. A partir desse pressuposto, Schyns e Felfe (2006) inferem que
seguidores que possuem características de personalidade em comum com líderes
transformacionais devem perceber ainda mais a liderança transformacional em seus
líderes.
A partir desses três modos propostos de influência de percepção, os autores
conduziram uma investigação que obteve o seguinte resultado: seguidores com altos níveis de
extroversão na escala Neo-Pi-R tendem a perceber líderes que também possuem essa
característica de personalidade – a qual, como foi visto na seção anterior, relaciona-se
positivamente à liderança transformacional – como sendo líderes transformacionais. O
resultado foi apresentado da seguinte forma: “nesta amostra também foi confirmada a
observação do efeito da personalidade dos seguidores na percepção da liderança
transformacional” (SCHYNS; FELFE, 2006, p. 532). Isso traz, como implicação prática, que
o conhecimento de que a percepção de um estilo de liderança está submetido a um viés
relacionado à personalidade pode ajudar os líderes a entender certas reações de seus liderados.
Judge et al. (2002) conduziram metanálise para estudar a relação entre traços de
personalidade e satisfação com o trabalho, identificando relação negativa com o neuroticismo
e positiva com a extroversão e abertura a experiências.
Smith (1996, p. 200) também defende a ideia de que, para serem bem-sucedidos, os
líderes “devem prestar muita atenção às situações nas quais a opção mais efetiva é a de seguir
– não porque a hierarquia determina que eles obedeçam, mas porque um bom desempenho
requer que eles dependam das capacidades e insights de outras pessoas”.
3.5 Abordagens críticas e pós-estruturalistas da liderança
Liderança é uma defesa social cujo foco central é reprimir necessidades
desconfortáveis, emoções e desejos que emergem quando as pessoas esforçam-se
por trabalhar juntas (GEMMILL; OAKLEY, 1992, p. 114).
216
De acordo com Zoller e Fairhurst (2007), o fato de o tema liderança ser abordado no
mainstream na ótica gerencial tem como consequência atribuir a esse construto uma
característica individualista de crença no poder isolado de um indivíduo (GRONN, 2002). A
consequência natural é adotar-se uma ótica de efetividade gerencial, e não de uma crítica
social.
Chen e Meindl (1991) já haviam chamado a atenção para o fato de que a liderança,
como construto social, tem sua compreensão modulada pelas interações sociais, estando por
isso aberta às forças institucionais que criam e disseminam informações sobre negócios.
Considerando a mídia de massa como um fator poderoso para conformar o mundo
social, influenciando a forma como os indivíduos percebem o mundo, determinado o que é
importante discutir, transmitindo informações e conhecimento e reforçando ou modificando
crenças existentes, ela adquire importante papel na construção da realidade social – e,
consequentemente, da ideologia (CHEN; MEINDL, 1991).
Para Ford (2010), a literatura sobre liderança tem utilizado esse conceito como uma
forma de panaceia, com potencial de resolver vários dos problemas das organizações. Existe
uma aceitação acrítica de que o que as organizações precisam é de líderes mais eficazes, sem
que se possa ter ideia do que isso significaria na prática. O que a autora se ressente é da falta
de abordagens críticas que utilizem abordagens interpretativas levando em consideração
experiências individuais, relações de poder, além das questões de gênero – que incluem o que
chamou de “pressupostos masculinos de atributos de liderança” (FORD, 2010, p. 49). E,
como um corretivo para essa situação, propõe priorizar pesquisas qualitativas que levem em
consideração o contexto.
Apesar de boa parcela das teorias sobre liderança afirmar que não existe a liderança
sem o liderado, e que mais importante do que estudar o líder seria o estudo da relação entre
líderes e liderados, Collison acredita que os pesquisadores do mainstream continuam
trabalhando a partir de pressupostos funcionalistas, concentrando as pesquisas nas pessoas de
líderes efetivos e bem-sucedidos, no sentido dos resultados organizacionais a eles atribuídos.
Com esse pressuposto, eles desconsideram o relevante papel que o liderado pode exercer no
processo.
O problema, para Collinson (2005), é que muitos dos autores que reconhecem a
insuficiência e a parcialidade dessa visão acabam por adotar um tipo de abordagem que
mantém o dualismo, mudando apenas o polo, sugerindo, como fizeram autores como Meindl
(1995), focar-se no seguidor.
217
As ponderações que partem do pressuposto de que existe convergência entre os
interesses de líderes e de liderados tendem a desconsiderar que os mecanismos de controle
utilizados por líderes e as relações assimétricas de poder são manifestações não problemáticas
da estrutura de autoridade. E que a resistência seria algo de anormal ou de irracional nessas
relações (COLLINSON, 2005).
A relação entre liderança e o exercício de poder não passou despercebida por autores
funcionalistas. Bennis e Nanus (1988), por exemplo, ao estudarem as mais de 350 definições
de liderança produzidas pela academia até a década de 1980, identificaram, em comum a
todas elas, estreita correlação entre os conceitos de liderança e poder, mas não avançaram,
como fez Gordon (2002, 2010), no reconhecimento de que os antecedentes que marcam o
panorama histórico das relações de poder são cruciais para a compreensão das relações de
liderança.
Smircich e Morgan (1982) também discutem como os líderes exercem o controle a
partir do “gerenciamento de sentido”, mecanismo do qual se utilizam para retirar poder dos
liderados.
3.5.1 Liderança e história de vida
Os líderes ou criam sua própria história ou usam as histórias que já existem na
cultura [...] aprimorando-as ou revisando-as de algum modo. Se os líderes querem
ser efetivos, eles devem incorporar a história de suas próprias vidas. Líderes contam
histórias sobre muitas coisas, mas a história essencial é aquela que (re)define a
identidade dos membros da audiência (GARDNER, 1996, p. 112).
Para Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005, p. 17), a narrativa presume que “o que uma
pessoa sente, pensa e age forma um “sistema de significados” que permite a ela analisar e
interpretar a realidade de modo a conceder-lhe um significado pessoal” e que as narrativas
não devem ser um registro de fatos, mas “um sistema de concessão de significado, que
confere sentido à massa caótica de percepções e experiências da vida” (JOSSELSSON apud
SHAMIR; DAYAN-HORESH; ADLER, 2005, p. 17).
Ainda segundo Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005, p. 17), compreender a vida em
termos de uma história coerente “implica iluminar algumas partes e participantes e ignorar ou
esconder outras. Isso não significa que narradores de histórias de vida mentem
deliberadamente, apesar de fazê-lo ocasionalmente”. Essas histórias expressam a identidade
do narrador, a qual resulta da relação entre a experiência e a história organizada da
experiência. A identidade seria então o produto das histórias que foram criadas, contadas,
218
revisadas e recontadas durante o percurso da vida. O narrador, nesse processo, não somente
narra, mas justifica. Uma outra implicação importante desse processo é que, na narrativa,
tanto o início da história indica o fim, como o fim se relaciona com o princípio (SHAMIR;
DAYAN-HORESH; ADLER, 2005).
Mas não é apenas a própria história o que deve ser contado pelo líder: frequentemente
ele se utiliza de histórias existentes na cultura, pois as histórias mais eficazes são as simples,
uma vez que, de acordo com Gardner (1996), mentes com pouca escolaridade não toleram
sutilezas, ambiguidades, paradoxos e relativismos. É provavelmente nesse aspecto que se
assenta a diferença entre o que Gardner (1996) chamou de líderes diretos e líderes indiretos.
Os líderes indiretos seriam aqueles que criam algo – produtos ou teorias – que afetam de
modo significativo a vida das pessoas, como fizeram Einstein ou Steve Jobs, mas cuja história
é sofisticada e que, por isso, vão exercer a sua influência nos meios em que a expertise é um
pressuposto importante. Já os líderes diretos têm o seu discurso fora das fronteiras das
disciplinas, falam a plateias mais numerosas, mais heterogêneas e menos educadas e por isso
devem ter um discurso mais simples. Para esse autor, somente em situações pontuais
discursos com alto nível de complexidade, como o de Mahatma Gandhi, atingem plateias mais
extensas.
Em relação à história da própria vida, espera-se que sejam narrativas construídas para
explicar como se desenvolveu o papel representado pelo líder e o seu autoconceito, que inclui
sua identidade, o que, em geral, envolve também a história de seu autodesenvolvimento. Essa
narrativa poderia, segundo Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005), desempenhar uma série de
funções que a teoria prevê para o líder. Entre elas:
a) Facilitar, para o liderado, a percepção de traços da personalidade do líder;
b) também seria a partir dessa narrativa que o líder poderia acumular o que Hollander
(1958) chamou de “créditos idiossincráticos”, o que, segundo o autor, seria um tipo de
capital social que permitiria ao líder estabelecer mudanças, desafiando normas e
crenças do grupo;
c) expectativas sobre o líder podem influenciar a sua relação com liderados e essas
podem ser criadas tanto pelas primeiras interações como por informações que
precedem o relacionamento entre ambos – as quais podem incluir narrativas sobre sua
vida pregressa;
d) como foi visto na seção sobre liderança e cultura, uma função prevista para o líder é o
gerenciamento de sentidos, realizado a partir da manipulação dos símbolos – o que
pode ser conseguido por meio de suas narrativas;
219
e) o fato de que os líderes precisam se perceber como tal, sua identidade é algo
importante no papel que irão exercer (GARDNER; AVOLIO, 1998) e a narrativa é um
meio eficaz de se conseguir essa identidade.
Gronn (2005) chama a atenção para alguns riscos da abordagem recomendada por
Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005), se o contexto não é levado em consideração, uma vez
que este, além de ser considerado o veículo de posicionamento de um fenômeno que lhe
confere significado, também é tido como o modo de se capturar a sua contingência. Isso
significa que sua verossimilhança depende de atributos preexistentes, de onde o fenômeno
retira o seu sentido.
A questão do contexto apresentada por esses autores remete a situações que levam em
consideração mais do que a psicologia do indivíduo e as relações de liderança. Elas serão
apresentadas no próximo item, sob o título genérico que pretende agrupar várias correntes
diferentes, mas que possui em comum o que se poderia nominar como abordagem crítica.
3.5.2 Relações de liderança e relações de poder
Segundo Northouse (2007), a liderança é uma relação de poder que ocorre entre líder e
liderado; e, de acordo com Hersey e Blanchard (1986), líderes que sabem como usar o poder
são mais efetivos do que aqueles que não sabem.
Um autor que faz uma revisão interessante sobre o tema nesta ótica é Braynion (2004).
O que pode ser percebido na consulta ao seu trabalho – bem como nas entrelinhas de vários
outros que não estabelecem uma relação tão direta –, é que existe evidente interface entre os
estudos desenvolvidos sob a ótica das relações de liderança e aqueles desenvolvidos com base
nas relações de poder, a tal ponto que muitas vezes se chega a questionar se não se está
falando de uma mesma coisa.
Para conduzir essa análise, será realizado, em primeiro lugar, breve apanhado a
respeito da evolução dos conceitos sobre as relações de poder, para proceder-se a uma
discussão em relação ao que já foi desenvolvido neste capítulo sobre a evolução do
pensamento quanto às relações de liderança.
Apesar do tema ter sido tratado no Ocidente desde os gregos, Clegg (2002) apreende
em Hobbes e Maquiavel42
as duas principais bases históricas alternativas, uma vez que, ao
42
Maquiavel escreve, em uma cidade, Florença, que não pertencia a uma nação unificada, e o faz na posição de
um explorador do poder que lhe recusou um emprego e o desprezou. Já Hobbes era o conselheiro de um
220
contrário de seus antecessores, a menção ao problema por esses dois autores foi analítica e
empiricamente orientada. Só que o trabalho de Hobbes, por ter surgido um século depois do
de Maquiavel, já de acordo com o pensamento moderno, foi mais facilmente assimilado como
o mais adequado à interpretação dos problemas do mundo moderno, permanecendo no
mainstream da concepção moderna de poder. Foi Hobbes quem introduziu o termo “agência”,
relativo à situação em que um agente causa a ação de outro agente, ação esta que, de outro
modo, não ocorreria. Seu modelo tem uma visão de poder que dirige a nossa atenção para
agentes individuais que agem intencionalmente, o que evidencia o ethos modernista dessa
noção, cujas raízes remontam às metáforas retiradas da mecânica de Galileu43
.
Hume e Locke desenvolveram suas noções de poder a partir de Hobbes, de modo que
o modelo de poder mecanicista, causal e atomista, hoje o mais difundido, é fruto do modelo
de “agência”, que usa as mesmas metáforas usadas por Hobbes, Locke e Hume, ainda que
com vocabulário um pouco modificado (BALL, 1978).
No século XX houve evolução dos estudos sobre o tema. Para efeito didático, e
seguindo Clegg (2002), o progresso desses estudos pode ser assim dividido em duas etapas:
Na primeira etapa, o poder nas elites: inicialmente, autores como o italiano Mosca
(apud CLEGG, 2002) criticava o que consideravam problemas políticos insuperáveis na
implementação da democracia, com a convicção de que em qualquer sociedade uma elite deve
governar. Michels (1968), outro fundador da teoria da elite, tinha na organização o foco
motivador para produzir um argumento funcionalista para um governo da elite e da
burocracia, contra os ideais de democracia e do governo participativo. Ainda nessa linha,
outro autor importante foi Pareto (1935), para quem o poder seria um “meio circulante”
conduzido pelas elites, que estariam divididas em duas partes: uma mais conservadora, que
ele comparava a um leão, capaz de estabilizar a sociedade, mas que estava sujeita a se tornar
presa da outra parte, mais inovadora, esperta e estrategista, que ele comparava às raposas.
Após retirar o conservador de sua posição de elite, a raposa se tornaria um novo leão.
Hunter (1953) produziu o estudo de mais significado entre as elites, tornando-se
referência para os estudos críticos subsequentes. Sua pesquisa empírica foi desenvolvida a
partir de uma amostra não aleatória, escolhida entre pessoas que tinham acesso às elites (como
jornalistas, líderes de grupos de interesses, executivos, etc.) que produziram uma lista das
pessoas que eles consideravam mais influentes, denominadas por Hunter de “elite política da
Monarca de uma nação britânica recém-unificada, que mantinha o controle estatal de uma entidade cultural e
religiosa, donde a sua concepção estar baseada no conceito de soberania (CLEGG, 2002). 43
Hobbes trata o poder em termos mecânicos, como bolas de bilhar, com a diferença de que o homem pode
escolher onde ou com quem ele vai “colidir” ou mesmo se não prefere permanecer imóvel.
221
comunidade”. O foco era a identificação de elites governantes, cujo poder vinha de sua
visibilidade. Nunca ficou claro o que era poder nesse estudo, mas partiu-se do pressuposto de
que um perfil produzido por pessoas que estavam em posição de saber quem detinha o poder
teria muitas chances de ser acurado.
Na segunda etapa, Dahl (1957) propõe o desafio aos defensores do modelo da elite
governante questionando se o modelo suporta a evidência empírica ou se seria apenas uma
doutrina metafísica polêmica. Partindo de um exemplo empírico de alguém que pretende
mudar o fluxo do trânsito em uma rua, comparando o resultado da atuação de um homem
comum com o de uma autoridade de trânsito, ele desenvolve o conceito de poder como “A
tem poder sobre B na extensão em que ele consegue com que B faça algo que ele de outro
modo não faria” (DAHL, 1957, p. 203). Dessa definição, pode-se tirar que:
a) O poder é uma relação entre atores (indivíduos, grupos, governos ou outros agregados
humanos);
b) é introduzida uma nomenclatura que se torna convencional nas discussões sobre o
poder, em termos de “A tendo poder sobre B”;
c) ele nota que o poder de A sobre B possui o que ele chama de uma origem, uma base,
conceituada em termos de recursos passíveis de exploração de A frente a B e expressa
por: meios ou instrumentos de poder (dinheiro, medo, amor, etc.); quantidade de poder
(em forma probabilística); por um limite da extensão ou do escopo do poder de A
sobre B (nem tudo o que B possa fazer cai no escopo do poder de A, mas apenas uma
extensão específica de coisas) (DAHL, 1957).
Uma crítica ao modelo de Dahl, que leva em consideração o fato de a ação de B poder
ou não corresponder à intenção de A, foi feita por Bertrand Russel (1986), afirmando que “A
tem mais poder do que B se ele atinge mais efeitos intencionados do que B”.
Essa ideia de ligar o poder à intenção não era nova, já existindo em Max Weber, que
identificava a intenção como “vontade” e definia o poder, numa estrutura de dominação,
como “a probabilidade de um ator em uma relação social estar em posição de impor a sua
vontade, a despeito de resistência e independente do fundamento dessa probabilidade”
(WEBER, 1999).
Wrong (1979) redefine o poder, a partir de Russell, como “a capacidade de algumas
pessoas produzirem efeitos intencionados e previstos em outras pessoas” (WRONG, 1979, p.
2), acrescentando a Russell o critério da efetividade.
222
Mas os autores mais críticos ao modelo de Dahl (1957) foram Bachrach e Baratz
(1962), num modelo que eles chamaram de “processo da não tomada de decisão”, no qual “A
devota energia para criar ou reforçar valores sociais e políticos e práticas institucionais. Nesse
modelo, o escopo do processo político que é levado à consideração pública fica limitado
apenas àqueles itens que são comparativamente inócuos para A” (BACHRAC; BARATZ,
1962, p. 948). Essa limitação de escopo pode ocorrer de três formas:
a) Os mais poderosos podem não atentar ou não ouvir as demandas dos menos
poderosos. E se elas chegarem à agenda política, podem ser anuladas por comitês e
investigações infindáveis ou por cooptação;
b) B antecipa a oposição de A e não estabelece a questão;
c) criando viés na situação, de forma a que os interesses dominantes controlam valores,
crenças e opiniões de grupos menos poderosos, de modo não só a determinar se
algumas demandas devem ser expressas, como a impedir mesmo que sejam sequer
consideradas. Com essa visão, Bachrach e Baratz (1962) pretendem iluminar o que
seria uma segunda face do poder que a ortodoxia de Dahl não permitiria enxergar.
Lukes (1974) radicaliza a teorização de Bachrach e Baratz em uma abordagem
“dialética” do problema, que ele chama de “radical”, centrada nos “interesses” que a motivam
e que acrescenta ao modelo o que ele chama de uma “terceira dimensão”.
O Quadro 3 sumariza as diferentes visões desses três autores.
Quadro 3 - Comparação dos elementos relacionados às três dimensões do poder
ELEMENTOS 1ª DIMENSÃO 2ª DIMENSÃO 3ª DIMENSÃO
Objeto da
análise
Comportamento Interpretação da ação
intencional
Teorização
avaliativa sobre
interesses da ação
Decisões concretas Não decisões Agenda Política
Assuntos em geral Assuntos potenciais Assuntos potenciais
e gerais
Indicadores Conflito aberto Conflito encoberto Conflito latente
Campo da
análise
Preferências políticas
reveladas na
participação política
Preferências políticas
estão incorporadas em
queixas “subpolíticas”
Relação entre
preferências
políticas expressas e
os “interesses reais”
Autores
principais
Dahl (1957) Bachrach e Baratz (1962)
Wrong (1979)
Lukes (1974)
Fonte: adaptado de Clegg (2002, p. 90).
223
Posteriormente, Giddens (1979) desenvolveu sua própria noção de poder, a que
chamou de “teoria da estruturação”, em que o poder é visto como a “capacidade de atingir
resultados”. Seu foco estava no relacionamento entre a ação e a estrutura, um problema
central para Lukes (1974), cuja visão Giddens (1979) criticava por manter o dualismo entre
estrutura e agência.
Enquanto Lukes (1974) entendia essa relação como dialética, Giddens (1979) refutava
a ideia de que era uma relação que acontecia entre coisas distintas, um “dualismo”. Ela seria,
antes, uma “dualidade” na qual poder e estrutura se interpenetravam. A isso ele denominava
“dualidade da estrutura”: a agência humana produzia a estrutura, que passava a servir como
condição para reproduzir a agência humana, num processo contínuo. Dito de outra forma, o
poder é definido em termos de agência, que é definida em termos de ação que, por sua vez, é
definida como poder (GIDDENS, 1979).
Nem Lukes nem Giddens resolveram de forma satisfatória a relação entre a agência e a
estrutura nos estudos sobre o poder. Para ambos, a perspectiva da agência permanece. Em
Lukes, a agência predomina como resultado de um relativismo moral. Em Giddens, a
predominância se assenta no pressuposto ontológico em favor da agência e num
posicionamento contra a preocupação com a estrutura (CLEGG, 2002).
Tentando superar a discussão voltada para o indivíduo e a estrutura, muito do debate
que se seguiu focou as formas como a ideologia opera a partir das concepções de hegemonia,
em que o conceito de ideologia envolve dois aspectos: a sugestão de que muito da sociologia e
do marxismo atuais foram caracterizados pela tese desnecessária de uma “ideologia
dominante”; e que, em lugar de se pensar ideologia e hegemonia como um estado da mente,
seria melhor considerá-las como um conjunto de práticas primariamente provenientes do
discurso, que procura privar as indefinidas possibilidades de elementos significantes e suas
relações (CLEGG, 2002).
A crença nesse segundo aspecto deriva da perspectiva pós-estruturalista, encorajada
particularmente pelo trabalho de Foucault sobre o poder disciplinar (FOUCAULT, 2007a), no
qual ele explicitamente põe fim a qualquer concepção de ideologia – gerando debates
acirrados entre marxistas e foucaultianos. Mais recentemente, outros pesquisadores em
sociologia da ciência foram além, utilizando os insights do pós-estruturalismo em uma
abordagem da sociologia do poder, incluindo a discussão sobre “circuitos de poder”: o poder
seria mais bem visualizado não como tendo duas faces ou três dimensões, mas como um
processo que pode perpassar distintos circuitos de poder e de resistência (CLEGG, 2002).
224
Do outro lado do debate, ainda na década de 1980, encontravam-se autores como
Mintzberg (1983) que, sob uma orientação funcionalista, abordavam o poder na perspectiva da
autoridade. Para esse autor, a autoridade é o poder formal ou “legítimo”, que está revestido em
um ofício ou posição, sendo que a pessoa que o possui pode transferi-lo (ou delega-lo) para
outra pessoa. Nesse aspecto, ela se diferencia a autoridade da ação política, constituída na luta
tanto para alcançar como para escapar do poder na organização, e que teria como objetivo
deslocar o poder legítimo, exercendo um poder que Mintzberg (1983) chama de “ilegítimo”.
Essa autoridade, para Mintzberg (1983), teria origem no que chamou de “coalisão
externa” da organização: pessoas influentes que possuem o poder “legítimo”, como os donos
ou o governo, que delegam a autoridade ao executivo principal, em geral por meio de um
intermediário como o conselho de administração. A partir e para abaixo do executivo
principal, é estruturada a cadeia de autoridade (hierarquia) através da qual ele delega alguns de
seus poderes formais (MINTZBERG, 1983).
Os “subordinados” também exerceriam influência, mas, tendo objetivos próprios para
alcançar, possuiriam um grau de compromisso com a organização que seria menor do que o do
executivo principal. A função do executivo seria então a de conseguir uma integração entre os
objetivos organizacionais e os das pessoas, a ser implementado pela diretoria através de uma
“coalisão interna”. Para exercer sua autoridade, o executivo principal (em alguns casos, com
os diretores) desenha a estrutura, estabelece o sistema de recompensas e utiliza dois sistemas
formais de controle do comportamento: um pessoal, outro burocrático (MINTZBERG, 1983).
Na visão funcionalista, ao transformar poder em autoridade, o exercício da influência é
modificado de forma sutil, mas com consequência econômica: o exercício da autoridade pelo
poder “legítimo”, por ser “esperado, desejado e aceito” envolveria menos custos e menos
esforços para ser mantido, enquanto as consequência do exercício do poder que foi chamado
de “ilegítimo” poderia incorrer em custos para a organização (MINTZBERG, 1983).
A visão apresentada até aqui pode ser complementada pelo que Clegg (2002) chamou
de estruturas superficial e profunda do poder: a superficial seria facilmente identificada –
organograma, nome do cargo, etc; já a profunda envolve constrangimentos mais dificilmente
detectados – como os códigos de comportamento, ou o caminho das ordens dentro da
organização.
As abordagens que identificam a liderança com o exercício do poder tendem a deixar o
líder no exercício de um papel bem diverso daquele proposto pelos autores que discutem as
lideranças carismática e autêntica – alguém que tem uma visão que outros devem seguir. Ele
seria muito mais um porta-voz da organização ou do estado, tendo como função básica
225
garantir que os indivíduos internalizem normas de cuja constituição não participaram, de
modo a cumprir os interesses das organizações que os líderes representam. O líder, nesse
sentido, seria tanto produto como produtor desta estrutura de poder (BRAYNION, 2004).
Conhecer essas diferentes abordagens sobre o poder vai ajudar a estabelecer a ligação
entre as discussões sobre o poder e as relações de liderança, para daí se chegar à ideologia.
Segundo Gordon (2002), as abordagens realizadas desde o início dos estudos sobre liderança,
passando pelos traços comportamento, estilo, contingência, até o modelo que Bryman (2009)
chamou de “Nova Liderança”, têm como base a relação líder-liderado. Nesse tipo de relação,
o líder é colocado em posição de privilégio, por possuir habilidades naturais ou por atributos
adquiridos que o torna “superior” ao liderado – sem o que eles não poderiam ser “seguidos”.
A superioridade do líder é vista pelos teóricos dessa linha como “natural” e “não
problemática”. Como consequência, entendem o líder como aquele que tem voz – é o líder
quem estabelece a visão e quem dá o sentido, o que é feito por meio do discurso, que silencia
a voz dos liderados. A análise de relações de poder por pesquisadores dessa linha é vista como
desnecessária, dadas as características “naturais” da liderança. Não é por outra causa que o
exercício de poder pelos “liderados” é tratado como disfuncional por Mintzberg (1983),
referindo-se a ele por termos como resistência e “poder ilegítimo” (GORDON, 2002).
A liderança chamada de “dispersa” por Bryman (2009), que envolve os tipos descritos
principalmente após a década de 1990, aí incluídas a superliderança de Manz e Sims (1991), a
autoliderança (UHL-BIEN; GRAEN, 1998), a liderança como processo (KNIGHTS;
WILLMOTT, 1992) e a liderança distribuída (GRONN, 2002), têm em comum o que se pode
chamar de “descentralização da liderança”, que envolve diferentes modos de dar voz àqueles
identificados nos modelos mais tradicionais como sendo os liderados.
Nesses modelos, a dispersão da liderança tira o foco do líder – e da relação líder-
liderado – e o reposiciona no processo. O poder, nesses casos, tende a ser ignorado, ainda que
autores como Clegg (2002) e Foucault (2007a; 2007b) tenham mostrado que os códigos
históricos constituídos para organizar o comportamento social – o que Clegg (2002) chamou
de “estruturas profundas” – mantêm os padrões históricos e socialmente construídos de
comportamento dos indivíduos em relação ao poder, dificultando atingir completamente o
objetivo proposto por esses modelos de liderança. Ou seja, o que é suposto pela teoria nessas
abordagens pode não ser atingido na prática: justificados pelo discurso de divisão de poder e
controle, os detentores dominantes de poder podem continuar a exercer o seu poder por meio
de uma rede formada por indivíduos que, para esse fim, são chamados de “autolíderes”
(GORDON, 2002).
226
Não é preciso nem realizar um esforça para tentar se definir por uma posição ou outra,
já que num o noutro caso, a relação entre poder e liderança é negada, e no outro é ignorada.
Ou seja, nos dois casos o que pode ser percebido é o véu ideológico que busca esconder um
aspecto do real. O que deve ser entendido, então, é a ideologia da liderança.
Mas, para chegar nesse ponto da discussão, que é nuclear para a o tipo de abordagem
proposta para esta tese, um último passo será necessário: apresentar algumas das abordagens
mais críticas, que de alguma forma evidenciaram algumas das contradições presentes nos
diversos modelos apresentados pelo mainstream. É o tema da próxima seção.
3.5.3 Abordagens críticas – buscando algumas contradições nos modelos de liderança
Apesar de experimentarmos a liderança como um processo social contínuo, no qual
ora se é líder, ora liderado, os estudos de liderança em organizações têm sido conduzidos, em
sua maioria, utilizando abordagens mais funcionalistas, isolando-se um evento ou uma série
limitada destes, como se tivessem um começo e um fim, e analisando-os com o pressuposto
de relação causa-efeito – o que, para autores como Barker (2001), não corresponde ao que
ocorre no processo social real. Além disso – o que talvez seja o mais grave –, os valores do
pesquisador, que motivaram sua pesquisa e que modulam a sua percepção, não são
considerados nem como parte do processo, nem como parte da análise.
Autores identificados com a linha de pesquisa que ficou conhecida como critical
management studies têm, desde a década de 1980, buscado perspectivas alternativas ao
funcionalismo. Em um primeiro momento, estudos críticos como os conduzidos nas décadas
de 1980 e 1990 tendiam a focar, basicamente, os processos de controle e dominação. Mais
recentemente, pode ser percebida uma tendência dos estudos derivarem para temas como a
resistência. Uma proposta mais realista talvez devesse levar em consideração a relação
dialética, complexa e contraditória da dinâmica entre o controle e a resistência. E, para tal,
Mumby (2005) aconselha a visão dialética proposta pela Dialética negativa de Adorno
(2009), associada a uma abordagem organizacional como a recomendada por Benson (1977).
Para Gemmill e Oakley (1992), da forma como são conduzidas hoje, as relações de
liderança levam a um sentimento de “desamparo aprendido”, que teria como função produzir
pessoas que demonstrassem um comportamento robotizado – comportamento esse que tanto
pode ser observado nos liderados como nos líderes. Neste último caso, seria o modelo de
liderança orientado por competências que se encarregaria de modular o comportamento – daí
227
esses modelos terem se tornado objeto de críticas por autores não identificados com o
mainstream, como será apresentado ainda nesta seção.
Por fim, existem os autores cujo trabalho visa desmistificar o discurso sobre a
liderança, investigando o que é realmente feito pelos indivíduos no papel de líder,
classificando a liderança como uma atividade banal.
A fim de organizar o conhecimento produzido por autores que lançaram um olhar
sobre a liderança a partir dessas óticas, serão discutidas na sequencia algumas dessas
abordagens, uma vez que foi a partir de seus estudos que muitas das contradições existentes
nas linhas mais identificadas com o mainstream podem ser encontradas.
Para facilitar a caracterização daquilo que acentuam, e do que divergem, elas serão
apresentadas em itens separados. Ao final, o que se pretende é reunir elementos suficientes
para, em associação com o que foi apresentado na discussão anterior sobre a relação entre
liderança e o poder, realizar uma ultima discussão sobre a ideologia da liderança, uma vez que
esse é o aspecto nuclear, dentro desta linha teórica escolhida, para a análise dos dados.
A) Liderança e resistência
O termo resistência é uma metáfora que, como outras nos estudos organizacionais, foi
retirada das ciências naturais – mais especificamente da Física newtoniana, que postula que a
toda ação corresponde uma reação contrária, de intensidade semelhante (FLEMING, 2005) e
que é muito utilizada pelo mainstream na política organizacional – veja-se, como exemplo, a
obra de Mintzberg (1983). Essa metáfora dispõe o exercício de poder e a resistência a ele
como polos diferentes de forças, o que não estaria de acordo com autores como Foucault
(2007a; 2007b), que as vê como forças que se interpenetram, nem com autores dialéticos,
como Adorno (2009), que as vê como aspectos de uma mesma coisa.
Em pesquisa social, o dissidente típico normalmente é um líder de opinião (ver
classificação de Burns, no item 2.1). Já na literatura organizacional, o tema tem sido tratado
na academia como “gerenciamento da discórdia” e a liderança, confundida com a gestão, deve
lidar com o que seriam formas ilegítimas de poder (HARDY; CLEGG, 1996). Zoller e
Fairhurst (2007), entretanto, conceituam a resistência como uma forma potencial de liderança.
De acordo com Hardy e Clegg (1996), a liderança tem sido tratada na literatura crítica,
junto com a cultura e a estrutura, como formas de dominação, tendendo a desviar as pesquisas
para a estrutura e não para as relações entre os indivíduos – numa abordagem que seria, como
foi visto no capítulo 2.1, a mais apropriada para o tema.
228
Nas formas tradicionais, a resistência era apenas um ato de rebelião aberto e
organizado. Para os mecanismos de controle baseados na identidade, os estudos acadêmicos
tiveram que se voltar para outras formas, mais cotidianas e mais subjetivas, de resistência ao
domínio gerencial. Esse tipo de resistência não é visto como efeito de antagonismo estrutural
ou de interesses de classe, mas como o contingente de táticas que podem ter algum nível de
sucesso em desafiar os mecanismos de controle baseados em identidade. Entre elas, citam-se a
ironia, o humor, a sexualidade, as estratégias de consumo e o cinismo (FLEMING, 2005).
B) Uma crítica aos modelos de superliderança e autoliderança
A superliderança de Manz e Sims (1991), segundo Gordon (2002), não leva em
consideração algumas contradições produzidas pelo modelo. Ao procurar conduzir os
liderados para um padrão “desejado” de comportamento, não fica claro quem deseja o
comportamento proposto. Fatores culturais na organização referentes à história sobre como as
relações entre líderes e liderados foram estabelecidas para aquele grupo também não são
considerados. Desta forma, pode-se supor que os liderados possam escolher, como melhor ou
“desejado”, os comportamentos que estejam de acordo com as expectativas históricas (e
culturais) dos superiores daquela organização. Também se deve lembrar que as organizações
não se constituem em sistemas sociais equitativos, o que significa que, nelas, pessoas em
posição de dominância, a quem é dado voz, estão em melhores condições de conformar a
realidade, produzindo sentido e “verdade”.
C) A dialética da liderança
Mumby (2005) critica o fato de os estudos sobre poder e resistência ainda trabalharem
de modo dicotômico, adotando modelos que colocam os dois polos em oposição binária, com
foco ou nos processos de controle ou nos de resistência. Ao adotar o polo dominante como
aquele que conforma a relação, os autores que adotam esse modelo acabam por marginalizar o
polo oposto, reificando o polo dominante e subssumindo o outro.
Para Smircich e Morgan (1982, p. 258) a liderança é algo que acontece “no processo
durante o qual um ou mais indivíduos obtêm sucesso em conformar e definir a realidade de
outros”. Mas Fairhurst (2001) aponta que, ao contrário do que prelecionam aqueles autores, o
sentido criado pelo líder na verdade seria coconstruido em um intercâmbio dialético que
envolve, inclusive, a contestação por parte do liderado.
Bresnen (1995) realizou uma pesquisa qualitativa com executivos, que buscava
compreender o que as pessoas queriam dizer ao falar sobre a liderança. Analisando os
229
resultados, o autor concluiu que os enfoques radical humanista e estruturalista não
conseguiam lidar com os aspectos relacionados às interpretações subjetivas e à questão da
agência, tão caras aos indivíduos entrevistados. Foram registrados muitos pontos de
convergência na leitura desenvolvida por pesquisadores de visões mais funcionalistas,
sugerindo, ainda, que abordagens mais interpretacionistas poderiam lidar melhor com as
interações complexas entre os níveis social e psicológico. Sua proposta para trabalhos futuros
envolve “explorar áreas de proporcionalidade entre os diferentes paradigmas atualmente
utilizados na pesquisa em liderança” (BRESNEN, 1995, p. 511). Apesar de não ter
apresentado um desenho claramente dialético para a sua pesquisa, ele não está longe da forma
de investigação que é objetivo desta tese.
D) A crítica ao modelo de competências
O esforço desenvolvido para definir liderança se justifica na busca do exercício de
controle e regulação das identidades dos indivíduos nas organizações (FORD, 2010). São,
assim, instrumentos autorregulatórios e de automonitoração, desenvolvidos para que os
indivíduos, no papel de líderes, possam se considerar autônomos, autorregulados e proativos.
Tendo sido definidas as competências, o indivíduo é alimentado com um arsenal de
vocabulários e de modos de comportamento que o manipulam, influenciando-o e
constrangendo-o no processo de formação de sua identidade.
Hollenbeck et al (2006) identifica algumas contradições nos pressupostos que
envolvem o modelo de competências para a liderança. Segundo os autores, esses pressupostos
não são verdadeiros, pois não existe um único conjunto de características que se aplicam a
todos os líderes eficazes e essas características não são independentes entre si, nem em
relação ao contexto. Além disso, os tipos de competências detectados em gerentes seniores
não representam o melhor modelo para se pensar o problema. E basear o sistema de recursos
humanos no modelo de competências não significa que, como consequência, ele
necessariamente será mais eficaz. Um dos fatos para o qual esses autores chamam a atenção é
que, no mundo empírico, líderes eficazes são diferentes entre si. E, talvez mais importante do
que possuir algumas competências, é a forma como o indivíduo as mobiliza e utiliza
(HOLLENBECK; MCCALL JR.; SILZER, 2006).
Modelos como o de competências, que apresentam uma lista de comportamentos que
devem ser aprendidos e praticados por aqueles que quiserem ser líderes bem-sucedidos,
produzem, como resultado, apenas a normalização dos comportamentos. Esse tipo de modelo,
para a liderança, tende a desenvolver uma homogeneidade de comportamento para o líder,
230
com a finalidade de manutenção do modelo hegemônico desejado pelas organizações para o
modelo atual de negócios. Para assumir a identidade de líder, existiriam comportamentos a
serem adotados tanto por gestores como por pessoas cuja posição na organização envolve uma
expectativa de comportamento, esperado para os que exercem papel de líderes (FORD, 2010).
Nessa linha, discutindo contradições que podem ser identificadas em ações que
buscam a normalização do comportamento, Sant‟anna (2010) faz uma análise iluminada pela
perspectiva de poder de Michel Foucault. A perspectiva desse ultimo autor passa, falando
muito resumidamente, das investigações arqueológicas sobre a organização disciplinar – cuja
finalidade última seria a normalização dos indivíduos para que funcionem de acordo com as
regras estabelecidas, pelo poder disciplinar (o qual é exercido sobre o corpo) – para chegar a
um outro poder, não disciplinar (ainda que inclua o anterior), representado pela biopolítica e
que é exercido sobre a população. O elemento comum aos dois tipos de poder é a norma.
Avaliando os atributos de competência exigidos do líder, como exposto, e comparando
com a noção de normalização, como identificado por Foucault, o que se observa é que, ao se
comparar os atributos gerenciais normais exigidos hoje – ou, os encontrados na parte central
da curva de Gauss – com os exigidos no passado, pode-se observar uma tendência à
incorporação hoje, pelos gerentes, de atributos que estavam no passado nas pontas da curva e
que antes eram exigidos apenas dos líderes (SANT‟ANNA, 2010).
Entretanto, ainda que as duas pontas da curva de Gauss tendam a diminuir nesse
processo, sempre haverá uma pequena parte cuja aquisição deve se tornar objeto de desejo
para as organizações – e que será o fator de diferenciação entre o líder e o gerente. Ou seja,
uma contradição nítida no modelo é que, se o que se espera do líder é o que foge do
tradicional – ou do que foi normalizado –, o desafio estaria em desenvolver ou encontrar
indivíduos cujos atributos deveriam estar justamente fora do que se espera serem atributos
tradicionais de competência (SANT‟ANNA, 2010).
É nesse sentido que, para o autor:
Não obstante as contribuições de programas e ações em torno do construto da
competência, em especial nas tratativas de incorporações de novos conhecimentos,
habilidades e atitudes, antes típicas de posições de primeira escala das organizações
[...] desvelam-se, no entanto, limitações notadamente quanto aos limites que tais
abordagens impõem à incorporação e gestão de perfis de liderança, propriamente
ditos, limitando-se à normalização e ao controle de perfis típicos de posições
gerenciais, impedindo o desenvolvimento de modelos de liderança e a construção de
contextos capacitantes favoráveis a seu exercício e capazes de respostas mais
efetivas aos desafios do atual contexto dos negócios e das organizações
(SANT‟ANNA, 2010, p. 214).
231
O que está de acordo com as críticas dos autores anteriormente apresentadas sobre o
modelo de competências para a liderança.
E) O discurso sobre a liderança
Kelly (2008) enfatiza que a razão dos estudos sobre liderança terem derivado da sua
relação com o discurso foi a insatisfação com os resultados obtidos com o estudo dos traços
de personalidade e os referentes ao estilo, aí incluídas teorias e métodos de obtenção de dados
visíveis e calculáveis.
O embrião dessa mudança pode ser visto na “teoria da atribuição”, de Calder (1977),
na qual o autor busca separar os métodos adotados pelos indivíduos na construção de sua
percepção sobre a liderança no trabalho de pesquisa, e sua utilização de teorias prontas e o faz
com foco no papel da linguagem nessa construção. Alguns anos depois, Smircich e Morgan
(1982) mudaram o foco para a liderança como um conceito socialmente construído no
processo de elaboração de sentido entre líder e liderado. Contribuíram para essa linha os
trabalhos de Gronn (1982, 1995) e de Gronn e Ribbins (1996) sobre a separação entre a
linguagem e a ação, na realização de um trabalho interpretativo de caráter etnometodológico.
Ainda na década de 1970, Ponty (1978) defendeu que a confusão envolvendo a
compreensão do termo liderança se relaciona à familiaridade que se tem com o fenômeno:
Será que fomos mal-orientados pela existência de um termo único em nossa língua
para achar que ele reflete uma realidade uniforme? Gregory Bateson afirmava que
nossa língua é orientada por coisas e que fica empobrecida quando ela necessita
pensar sobre, descrever ou falar de relacionamentos [...] Será que nossa insistência
em um termo único “liderança” diz respeito à nossa familiaridade ou experiência
com ele? (PONTY, 1978, p. 88).
O intuito de Ponty (1978) é de que a liderança seja considerada um conjunto de jogos
de linguagem que são produzidos a partir da ação que a envolve – ou seja, o sentido é dado
pelo uso – e que podem ser utilizados de modos diferentes em situações particulares.
Sob essa terminologia encontram-se as abordagens que, segundo Fairhurst (2009),
envolvem perspectivas que se poderiam classificar como social construcionistas: aquelas que
partem do princípio de que a linguagem não representa a realidade, mas a constitui; que a
comunicação não é transmissão de informação, mas construção e negociação de significados.
Nessa perspectiva, os atores envolvidos com a liderança tanto podem ser receptores
disciplinados de significado como agentes de transformação, sendo que, nesta última situação,
eles podem tanto cocriar o contexto como conformar outras realidades sociais – como a
232
identidade e a legitimidade –, dependendo de como o contexto é construído com base no
discurso. O que importa nessa linha de pesquisa é o discurso mesmo, como está organizado e
o que está fazendo. A pergunta adequada para esses pesquisadores seria “o que o discurso está
fazendo?”, e não “o que o discurso está representando?” (FAIRHURST, 2009).
Pesquisadores da linha discursiva geralmente são orientados por problemas. A
pergunta inicial motivadora costuma envolver mais o como do que o por que motivador das
pesquisas positivistas. A ideia de produzir um conhecimento generalizável para eles não é
relevante – o que os deixa mais à vontade para considerar o contexto com suas bases
históricas, políticas e culturais (FAIRHURST, 2009).
Ford (2010) observa que a conotação dada pelos discursos sobre liderança
frequentemente toma a forma do masculino, competitivo, agressivo, controlador,
individualista, autoconfiante, o que significa que as pesquisas que buscam responder sobre a
importância da liderança nas organizações a fazem nesse arcabouço conceitual – o que é
reafirmado por Barker (2001) – sem perceber a contradição existente nesta postura.
Para Mumby (2005), autor já apresentado anteriormente na “dialética da liderança”:
Uma análise dialética do discurso deve focar menos em identificar o significado dos
discursos particulares e mais nas batalhas interpretativas entre discursos e práticas.
As análises exploram como os atores sociais tentam “emendar” os significados de
modo e resistir e/ou reproduzir as relações existentes de poder (MUMBY, 2005, p.
24).
Segundo Shaw (2010), a narrativa é uma forma de buscar a autenticidade, fundamento
da liderança autêntica, já apresentada, a qual, para o autor, relaciona-se à busca da unidade do
indivíduo ou a acabar com algum gap existente entre a autoidentidade e os comportamentos
manifestados na materialidade dos atos. Isso faz com que a liderança autêntica deva
necessariamente derivar da reprodução de narrativas universais para se manter na
materialidade – aqui entendida não só como experiência corpórea, mas também como quadro
sociocultural que fornece os paradigmas que dará o sentido para a experiência corpórea.
F) A liderança como atividade banal, e o “romance” da liderança
O trabalho que a “liderança” realiza na organização da vida diária usualmente não é
tão importante quanto as teorias e os conceitos que foram preparados pelo
pesquisador (KELLY et al., 2006, p. 184).
233
O fato de a liderança ser teorizada, tanto no mainstream como na literatura crítica,
como algo extraordinário – exercício de poder, gerenciamento da cultura, estabelecimento de
visão, metas e objetivos, entre outras características – define-a como um fenômeno que não é
observável no dia-a-dia da organização, que transcende o ordinário e, portanto, o mundo
experimentado pela prática da atividade real.
Em função disso, “os que foram designados líderes em nosso campo de pesquisa
acham que devem se enquadrar nessas noções imaginárias de liderança, demonstrando que
são fortes, poderosos, carismáticos e agentes positivos de mudança e melhoria” (KELLY et
al., 2006, p. 183).
Uma contradição identificada por Alvesson e Sveningsson (2003a) é que a literatura
sobre liderança normalmente trata como insignificantes a maioria das atividades do dia-a-dia
que são efetivamente exercidas por líderes, tais como pedir ou dar informações, resolver
problemas práticos ou técnicos, administrar, conversar amenidades, fofocar, ouvir as pessoas
e criar um clima ameno de trabalho.
Habitualmente, os líderes são retratados como grandes comunicadores, que mais falam
do que ouvem. As pesquisas desses autores, entretanto, têm mostrado que, em muitos casos, o
sentido da liderança estaria muito mais nessas ações mundanas do que nas ações heroicas
frequentemente retratadas na literatura. E afirmam, a partir dos seus achados, que: “nossa
impressão geral é a de que é difícil se dizer algo sobre a possibilidade de existência de
liderança na grande maioria das organizações e das situações de gestão” (ALVESSON;
SVENINGSSON, 2003a, p. 377). Nas entrevistas com os líderes, o que Alvesson e
Sveningsson (2003a) apuraram foram relatos ambíguos e contraditórios, que pareciam se
esquivar de capturar o conceito.
Kelly (2008), por outro lado, verifica é que a liderança pode ser identificada em
“reuniões para discussão de orçamento ou com equipes de trabalho ou em contar anedotas, em
conversas de café ou fazer discursos, lidar com reclamações, enviar e-mails, abrir
correspondência e, de modo geral, dar conta do trabalho comum do dia-a-dia” (KELLY, 2008,
p. 770).
Mesmo autores como Bennis e Nanus (1988), consonantes com a literatura
funcionalista, ao final de sua pesquisa não foram capazes de identificar as características da
liderança indicadas pelo senso comum. Pelo contrário, as contradições nos achados podem ser
utilizadas para caracterizar como mitos muitas das afirmações que apresentam a liderança
como algo fora do comum. Entre esses mitos, citam-se:
234
A liderança é uma característica rara entre os indivíduos: Bennis e Nanus (1988)
consideraram essa ideia completamente falsa. Se, de um lado, um grande líder pode ser algo
tão raro como o é um grande pintor ou grande desportista, por outro todas as pessoas teriam
um potencial para o exercício da liderança, como o teriam também para pintar ou para praticar
um esporte. Existem hoje em nossas sociedades milhões de papéis de liderança e todos esses
postos estão preenchidos. Além disso, pessoas que são líderes em determinadas organizações
são pessoas comuns em outras de que participam. Assim, as oportunidades para o exercício da
liderança são abundantes e ao alcance da maioria das pessoas.
Os líderes são natos e não podem ser feitos, como pretendia a teoria dos traços:
Bennis e Nanus (1988) também reconhecem nessa ideia uma mistificação, pois, segundo
inferiram, as maiores competências detectadas nos líderes podem ser aprendidas e os “dotes
naturais” relacionados à liderança podem ser melhorados. O processo de aprendizado pode
não ser simples, mas é possível, como é possível aprender a ser pai, amante, bem como vários
outros papéis sociais que são exercidos sem que se tivesse desempenhado antes.
Os líderes são carismáticos: os achados empíricos de Bennis e Nanus (1988) mostram
que alguns são, mas que a maioria não é. Entre as pessoas investigadas havia altas e baixas,
comunicativas e introvertidas, bem e malvestidas. Em resumo, nada havia em suas aparências
físicas, personalidades ou estilo – como foi buscado nas pesquisas iniciais sobre a liderança –
que as diferenciasse de seus seguidores. O carisma poderia ser mais um resultado do que um
efeito na relação líder-seguidor.
A liderança é encontrada na cúpula da organização: também foi falso. Segundo
Bennis e Nanus (1988), quanto maior a organização, mais alto o número de papéis de
liderança, formais ou não, a serem exercidos por seus empregados.
O líder controla, dirige, impulsiona e manipula: de acordo com Bennis e Nanus
(1988), a liderança é habitualmente muito mais uma concessão de poder do que o seu
exercício. Líderes costumam traduzir intenções em realidade, utilizando metas para o
alinhamento das energias individuais.
A ideia de que a liderança também pode ser vista como uma atividade banal é próxima
da ideia do “romance da liderança”, apresentada por Meindl, Ehrich e Dukerich (1985).
Segundo esses autores:
Como observadores e como participantes das organizações, nós podemos ter
desenvolvido visões altamente romantizadas e heroicas da liderança [...] Um dos
principais elementos dessa concepção romantizada é a visão de que a liderança é um
processo organizacional central e a força primária no esquema de eventos e
atividades organizacionais [...] Essa “romantização” é sugerida nos comentários
235
feitos por vários analistas sociais e organizacionais que observaram a estima, o
prestígio, carisma e heroísmo ligados a várias concepções e formas de liderança
(MEINDL; EHRICH; DUKERICH, 1985, p. 79).
O contraponto na visão romanceada da liderança está em atribuir toda a
responsabilidade do que ocorre nas organizações – sucessos e fracassos – à liderança.
Mudando a ótica da liderança para a visão a partir do liderado, Meindl (1995) se refere
ao romance da liderança como uma construção e representação dos seguidores – o que
significa que o comportamento dos liderados é muito mais conformado por suas próprias
concepções do que por traços de comportamento próprios do líder.
G) A relação entre a liderança e o tédio ou “aborrecimento”
Carroll, Parker e Inkson (2010) realçaram, durante análises de discurso de líderes em
programas de desenvolvimento, que quando eles discutiam as motivações de carreira, muitas
vezes o termo “aborrecimento” era utilizado em contraponto a desafio e à criatividade na
carreira – o que foi inesperado para os autores que definiam os líderes como imunes ao
aborrecimento.
A questão que as autoras se propuseram foi a de tentar caracterizar o aborrecimento ou
como emoção – em que ela traz conotações de apatia, insatisfação e indiferença – ou sensação
– a qual pode trazer consigo um potencial de dar sentido, de fornecer insights em processos de
reflexão, construção e aprendizado, os quais costumam acompanhar a prática da liderança.
Considerando, em concordância com Gemmill e Oakley (1992), que o fastio e a falta
de sentido costumam ser experimentados como o resultado de um sistema social defeituoso,
pode-se considerar o aborrecimento uma construção social como as outras que erigimos na
interpretação de nossas vidas e que são dependentes da cultura (CARROLL; PARKER;
INKSON, 2010).
O aborrecimento pode estar associado a aspectos negativos ou positivos. Os negativos
podem se relacionar a: temporariedade – percepção de trajetórias sem futuro, desenlace
previsível, percepção de suspensão, estagnação ou desaceleração do tempo ou, ainda,
sensação de eterna recorrência; e algo trivial ou mais sério – neste último caso, associado à
desintegração social ou ao comportamento desviante. Mas também se pode associar a
aspectos positivos, como um ímpeto para realizações, uma fonte de energia ou a calmaria que
precede a mudança, o conflito e a criatividade (CARROLL; PARKER; INKSON, 2010).
A percepção de algo como positivo ou negativo está ligada à autoconsciência, que é
algo com o qual autores como Day (2001) relacionam à liderança.
236
No contexto organizacional, o fastio tem sido abordado nos cenários de trabalho
repetitivo e rotineiro, algo que causa insatisfação e baixo desempenho e que pode estar
relacionado, de modo genérico, aos gaps entre a expectativa e a vida experimentada. O
pressuposto é o de que ele é algo comum e indesejável, sendo função dos administradores
eliminá-lo ou mitigá-lo.
As autoras afirmam que a literatura sobre liderança normalmente foca os “picos” da
experiência (inspiração, visão, direção) sem considerar o potencial oferecido pelos “vales”
para a reflexão e a melhoria. Líderes sem pausa e reflexão apresentam potencial de
empobrecimento.
H) Crítica às abordagens empíricas puramente quantitativas em liderança
De acordo com Bryman (2009), as linhas de abordagem de liderança envolvendo a
cultura organizacional e aquelas classificadas sob o título genérico de Nova Liderança criaram
as pesquisas em liderança (mesmo os do mainstream), antes de cunho basicamente
quantitativas, a demandarem o uso de métodos qualitativos.
Entretanto, como o próprio Bryman (2009) chama a atenção, o papel tipicamente
atribuído às pesquisas qualitativas na ciência positivista é o de explorar o campo, produzindo
hipóteses que deverão ser verificadas por pesquisas quantitativas posteriores, mantendo para a
quantitativa posição de destaque.
Outro aspecto a ser considerado é que, no mainstream, “o uso combinado da pesquisa
quantitativa e qualitativa ainda é bastante incomum nos estudos da liderança” (BRYMAN,
2009, p. 276). Além disso, considerando o modo como as relações de liderança são vistas nos
modelos da Nova Liderança, Bryman (2009, p. 276) sublinha que “a pesquisa qualitativa está
muito mais apta a abordar essas questões abertas requeridas por essas novas abordagens”.
A linha de pesquisa adotada neste trabalho está de acordo com essas ponderações de
Bryman (2009). Mas faz a opção por outra linha de abordagem qualitativa a qual, na ótica do
autor, teria o potencial de tratar mais adequadamente um tema que, de acordo com alguns dos
autores mais críticos apresentados, pode ser a expressão da reificação de uma ideologia. Daí
ser necessária ainda uma ultima abordagem, que leve em consideração especificamente a
relação da liderança com a ideologia.
3.6 A ideologia da liderança
237
Considerando, como apresentado na seção 2.2.3.5, que a crítica imanente é uma forma
proposta por T. Adorno para lidar com a ideologia, o que será abordado nessa seção é o
núcleo em torno do qual deverá girar a discussão dos achados.
Como se pode perceber nas seções anteriores, nas quais se buscou caracterizar o
desenvolvimento do tema para o mainstream, toda revisão realizada sobre o tema data o seu
início no princípio do século XX. Mesmo nas situações nas quais foram utilizados exemplos
de figuras históricas – religiosas, como Moisés, Jesus Cristo e Maomé, ou militares, como
Alexandre Magno e Napoleão Bonaparte, entre outros – esses “líderes” foram identificados
como tal a partir de critérios que foram sendo estabelecidos no transcurso das discussões do
século XX.
O que significa o conceito não pode ser aferido levando em consideração o referencial
sociocultural do momento histórico das figuras citadas: se essas pessoas estivessem em ação
hoje seriam consideradas o que é identificado como líder. Mas, como eram identificadas,
então, pelos membros de seus grupos sociais? A sensação que se tem, durante a leitura de
muitos dos autores em questão, é de que estão dizendo: “ora, é óbvio que essas pessoas são
exemplos de líderes”! Mas, a partir do que foi apresentado na seção 2.2.3.5, não é difícil
perceber que, se há um lugar apropriado para resguardar a ideologia, esse lugar é no óbvio.
Foi no contexto da revisão da literatura, orientada pela pergunta da tese – o que é
liderança? – que chamou atenção um questionamento feito por Kelly et al (2006):
Buscando compreender o que há de tão “especial” no líder e na liderança, como
diferenciar a boa da má, o problema da solução, o que permanece largamente
inexplicado é como a liderança emerge como uma palavra, um conceito, ou uma
prática observável, que possa ser empregada no mundo da prática” (KELLY et at,
2006, p.184).
Este questionamento motivou a investigação sobre a origem do termo em português.
De acordo com o dicionário Houaiss da língua portuguesa (2001), o primeiro registro
do termo “líder” em português é encontrado, aproximadamente, apenas por volta do ano de
1900. Consultando um dicionário português um pouco mais antigo, o Novo diccionário
encyclopédico luso-brasileiro44
, em sua terceira edição publicada em 1931, observa-se que
não há a palavra líder, aportuguesada, mas apenas a citação de leader, como um termo da
língua inglesa com o significado de “a personagem mais em vista de um partido político”.
Apesar dessa conotação poder ser utilizada dentro da nossa compreensão atual do termo, não
44
DE SÉGUIER, J. Novo diccionário encyclopédico luso-brasileiro. 3ª Ed, Porto: Lello limitada editores,
1931.
238
se pode dizer que expressa de modo apropriado a forma como tem sido operacionalizado pelo
mainstream, como foi apresentada nesse capítulo.
A etimologia da palavra é o termo inglês mesmo, leader, “algo ou alguém que guia,
conduz” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1755). Em inglês, o termo tem o seu primeiro
registro datado, de acordo com o mesmo dicionário, no século XIV. Não foi possível obter
informações a conotação do termo no século XIV, se seria a mesma com relação à existente
nos dias atuais45
. Mas a citação de Kelly et al (2006), mostra que também para os autores de
língua inglesa existe uma dúvida sobre como o termo adquire a sua conotação atual,
colocando em dúvida a “naturalidade” conferida pelos autores de hoje à conotação do termo.
A partir desta constatação, uma pergunta se impôs: como, nos países de língua
portuguesa, até o início do século XX, as pessoas se referiam a essa situação social que hoje
se entende como sendo uma relação de liderança, e àquele ator nesta relação que se conhece
hoje como sendo um líder? Outras pistas precisavam ser encontradas.
Uma pista interessante estava na relação apontada entre a liderança e o poder. Mesmo
autores de orientação mais funcionalista como Bennis e Nanus (1988) observaram, como
resultado das pesquisas que realizaram, que independentemente das muitas definições
existentes sobre liderança, um denominador comum entre todas foi a estreita relação entre os
conceitos de liderança e o poder. Também foi observado, em muitos dos artigos consultados,
que as definições de liderança envolviam algum tipo de “influencia exercida por A sobre B”,
noção esta também encontrada nas definições das relações de poder – veja-se Clegg (2002).
Nos escritos de Max Weber (1999, 2001) sob as formas de dominação, onde o autor
apresenta a sua visão sobre os diversos tipos de líderes – também datados no início do século
XX – o líder é apresentado ligado às relações de poder, nas diversas formas observadas no
ocidente e no oriente. Ou seja, novamente observa-se um imbricamento entre os estudos sobre
relações de poder e aqueles sobre relações de liderança.
Autores, como Clegg (2002), que buscaram fundamentos históricos para a abordagem
do tema no ocidente, costumam citar, como exemplos, as obras de Hobbes e Maquiavel.
Entretanto, ao se consultar O príncipe, percebe-se que o termo líder não aparece no texto. O
que pode ser compreendido hoje como líder na obra é chamado de príncipe – termo mais
adequado à visão de mundo de uma sociedade de estrutura feudal, pré (ou proto) burguesa,
45
O questionamento sobre a conotação do termo não é irrelevante. Vale lembrar que a conotação de “condutor”
no Brasil, quando se refere a indivíduo (e não um “fio condutor”, por exemplo), se considerada no contexto da
primeira metade do século XX, envolve também o responsável por transporte publico urbano, como os bondes,
ou ainda o indivíduo que cuidava de bagagens e conferia as passagens, nos trens – e não o que se entende hoje
como líder. Para as conotações do termo em português hoje, veja-se Houaiss (2001).
239
que era o objeto de discussão de Maquiavel à época. Também não é coincidência o fato da
obra se situar muito mais no fundamento dos estudos sobre as relações de poder – como, de
fato pode ser visto na maioria dos trabalhos que fazem uma revisão histórica neste campo –
do que como exemplo de liderança. O mesmo se pode dizer de Hobbes: o autor não fala em
líder, mas aborda as relações de poder com foco em um modelo de ordem, a partir da visão de
um servidor do Estado, de dentro da estrutura monárquica (CLEGG, 2002).
Ou seja, estava claro que a contextualização do tema envolve, de alguma forma, a sua
relação com o poder – como apresentado na seção 3.5.2. Mas, seria possível estabelecer
alguma relação entre a liderança, as relações de poder e o aparecimento tardio do termo em
português (ou mesmo, nessa conotação, em outras línguas)? O momento histórico do
capitalismo no qual surgem as primeiras referências à liderança poderia ser uma pista.
Segundo Barker (2001),
O cânone das teorias de liderança da era industrial é uma adaptação da visão
hierarquizada do universo adotada pelos primórdios da Igreja Católica, e presume
que a liderança diz respeito à pessoa no topo da hierarquia, com suas qualidades e
habilidades excepcionais para gerenciar a estrutura da hierarquia, e as atividades
dessa pessoa em relação ao atingimento de metas (BARKER, 2001, p. 471)
Desta forma, o que se entende por liderança hoje, na ótica da organização, é algo
construído a partir do conhecimento que se tem de hierarquias sociais e de suas estruturas de
comando e de controle – ou, das relações de poder envolvidas – que serão também os
instrumentos de validação da teoria, sem que o resultado seja submetido a uma analise crítica.
O modelo básico utilizado para abordar a liderança é o modelo bélico, centrado na
imagem de um líder fálico e poderoso, que fica no topo de uma estrutura hierárquica
controlando tudo o que está relacionado com esta estrutura – não é irrelevante o fato de que as
primeiras motivações para os estudos, no início do século XX, são identificadas no exército
norte americano. O poder do líder, nesse sentido, está fundado no conhecimento, no controle
e na habilidade de vencer (a guerra) – o que pode ser interpretado, na organização capitalista,
como ganhar fatias de mercado, ou outros ativos, financeiros ou materiais (BARKER, 2001).
Autores que trabalharam dentro da visão de cultura organizacional, como Smircich e
Morgan (1982), veem a liderança como algo que “é concretizado no processo em que um ou
mais indivíduos obtêm sucesso na tentativa de enquadrar e definir a realidade de outros”
(SMIRCICH, L.; MORGAN, 1982, p. 258) – uma noção que também relaciona a liderança
com o poder. Mas a abordagem da liderança como “gerenciamento da cultura” também é
compatível com a ideia de que a liderança vai ser definida na construção social da realidade.
240
Alvesson e Sveningsson (2003) apresentam como conclusão de suas pesquisas que:
O material empírico aponta para o desaparecimento da liderança. Um olhar mais
próximo, que seja sensível às incoerências e desvios das ditas características da
liderança, mostra que estas se dissolvem. Nem como discurso ela se sustenta. Nem a
presença maciça de scripts para a articulação da liderança nas organizações
contemporâneas, fornecidas por publicações populares e educadores de negócios,
parecem suficientes para produzir um tratamento coerente dessa matéria
(ALVESSON; SVENINGSSON, 2003a, p.379).
Mas o que o material empírico de Alvesson e Sveningsson (2003) revelou não foi
exatamente novo. Argyris (1979) já havia apontado algo nesse sentido no final da década de
1970. Aliás, considerando que o conhecimento em liderança produzido até então foi aditivo e
não cumulativo, e que estava desconectado da pratica da liderança, Argyris abandonou esse
campo de pesquisa. Na mesma linha, Calder (1977) via a liderança apenas como um rótulo
para o que se conhece como influencia interpessoal, à qual se poderia agregar o construto
privilégio, o que, de acordo com Pfeffer (1977), seria reforçado pelos efeitos simbólicos das
cerimônias e dos processos de seleção e iniciação em liderança.
Em resumo, de um lado a literatura conduzida pelo mainstream trata o líder e a
liderança como um dado da realidade, o qual, em uma visão funcionalista, deve ser
conhecido, para que se possa ter sobre ele uma ação – treinando e desenvolvendo líderes e
liderança, ou identificando “disfuncionalidades”, as quais, uma vez abordadas, poderiam
aumentar a efetividade do líder e da liderança. Do outro lado, autores mais críticos como
Alvesson e Sveningsson (2003) e Calder (1977) chegam a colocar em dúvida a própria
realidade da liderança. Entre eles, podem ser encontrados autores de orientação
interpretacionista, que identificam na liderança uma construção social – o que, na maioria das
vezes, apenas explica a sua relação com outros construtos.
Para desenvolver a teoria da tese, apresentada nesse capítulo, foi preciso considerar
todos esses movimentos: ao contrário do que ocorre no positivismo, onde a identificação de
uma contradição é usada para eliminar o conhecimento que gerou a contradição, dando
origem a um outro conhecimento que deve ser livre de contradições, a Dialética negativa de
Adorno (2009) admite que a realidade social é contraditória, uma vez que fruto de uma
construção coletiva, e não algo dado pela realidade. A identificação da contradição deve
apontar um “bloqueio” do que seria uma expectativa gerada pelo diagnóstico da realidade, a
qual, por sua vez, é historicamente determinada. É por isso que, para Adorno, não se pode
querer conhecer um objeto social buscando a eliminação de suas contradições. Pelo contrário,
para conhecê-lo, deve-se buscar também as contradições que nele convivem.
241
Na seção 2.2.3.5, foram apresentados quatro aspectos que pretendem caracterizar a
ideologia, como apresentada por Adorno e Horkheimer (1971): ela é uma justificação, que se
refere a um produto espiritual que surge no processo social como algo autônomo e dotado de
legitimidade, e que ocorre nas situações onde as relações de poder não são transparentes. Por
fim, na forma como se apresenta hoje, mais do que esconder a realidade, a ideologia se
confunde com ela.
Gemmill e Oakley (1992), afirmam que a liderança é uma ideologia, que teria como
finalidade dar suporte à ordem social existente, fornecendo tanto uma explicação para
disfunções como apontando onde se deve encontrar culpados (GEMMILL; OAKLEY, 1992).
Essa é finalidade uma possível.
Entretanto, se é uma ideologia, uma pergunta que se impõe é: a quem interessaria?
A pista pode ser encontrada em um fato ocorrido durante uma conferência sobre a
liderança, relatado por Barker (2001):
O corpo docente de programas de educação em liderança internacionalmente
conhecidos se envolveram em uma discussão sobre o que seria liderança: uma arte,
um estudo, uma disciplina, um construto teórico, o que afinal? A discussão foi
interrompida pelo mestre de cerimônias que inadvertidamente respondeu a questão,
declarando que a liderança é uma indústria. Essa resposta indica algo sobre a crítica
subjacente, que é o fato de que a venda de treinamento e educação em liderança
criou uma agenda a priori para as pesquisas e para as conclusões a respeito da
liderança (Barker, 2001, p. 469).
Se esse é o caso, poderia até mesmo haver interesse da academia de evitar qualquer
definição precisa, que possa destruir o mito de que para alguns indivíduos na sociedade
estariam reservadas uma maior porção de riqueza e poder, o que estaria relacionado com as
suas habilidades para liderar (Barker, 2001).
Pelo que foi apresentado na seção 3.5.1, todo o desenvolvimento conceitual, que
orientou as pesquisas sobre a liderança, desde o início do século XX até a década de 1980 –
quando é identificado o início da linha abordagem chamadas por Bryman (2009) de “Nova
liderança” – parte do princípio de que a superioridade do líder é “natural”, “não
problemática”, dispensando qualquer análise das relações estabelecidas entre a liderança e o
poder, dadas as características de ser “natural” e “legítima”. E por isso, o exercício do poder
pelos liderados era discutido, para o funcionalismo, sob o título de “resistência”, e não de
“relação de poder” (como foi apresentado na seção 3.5.3 A), e apresentado como “ilegítimo” e
“disfuncional” – como se pode ver em Mintzberg (1983) e Gordon (2002).
242
Esses aspectos da relação entre a liderança e poder, identificados nas abordagens
tradicionais, enquadram facilmente a liderança nos critérios para a caracterização da ideologia
apresentados por Adorno e Horkheimer (1971). Mas, e o que dizer daquelas desenvolvidas no
que foi chamado de “Nova liderança”? Revendo o que foi apresentado nas seções 2.2 e 2.4, é
possível perceber que as abordagens reunidas sob o título de “Nova liderança” também
partem do pressuposto da “naturalidade” da liderança, acrescido, de acordo com Bryman
(2009), do risco de concentrar o foco de atenção na cúpula organizacional. Mais do que
“naturalidade”, Bass (1997) chega mesmo a propor a universalidade do paradigma
transacional-transformacional.
Mesmo nos modelos que buscam tirar o foco do líder, como no caso das lideranças
dispersa e distribuída (apresentadas na seção 3.4.1.2), que reposicionam o foco no processo,
as relações de poder são ignoradas, desconsiderando o que Clegg (2002) chamou de
“estruturas profundas”, as quais mantêm os padrões socioculturais de comportamento
construídos em relação ao poder, hipostasiados e naturalizados para os integrantes daquele
grupo social, não só impedindo que o tipo de liderança proposta por esses modelos possa
ocorrer “naturalmente”, como também, de acordo com Gordon (2002), permitindo que
detentores dominantes do poder continuem a exercê-lo por meio de uma rede, sob a qual eles
possuem algum controle, em uma outra forma de exercício do poder.
Entre os autores identificados nesta revisão como fazendo parte de uma linha mais
crítica (apresentados na seção 3.5.3), são raros os que, a exemplo do que fizeram Alvesson e
Sveningsson (2003a) e Calder (1977), põe em dúvida a realidade e a naturalidade da
liderança. De qualquer modo, mesmo partindo do pressuposto de sua naturalidade e
necessidade, alguns dos resultados das pesquisas conduzidas por autores mais críticos podem
ser utilizados para minar as bases desta construção ideológica, tanto quando identificam as
contradições presentes em muitos dos seus pressupostos – como foi mostrado para os modelos
de superliderança e autoliderança, e de competências – como nos momentos nos quais
identifica “bloqueios”, ou as contradições entre expectativas e o que é efetivamente
encontrado empiricamente, desfazendo alguns dos mitos envolvidos no conceito, ou ainda
quando identificam nas ações envolvendo a prática do que é conceituado como liderança, algo
de trivial e “mundano”, longe do extraordinário, como apresentado pelo mainstream.
Com essas considerações no horizonte, se chega ao ponto de apresentar o que foi
desenvolvido para pesquisa empírica no grupo social escolhido.
243
4. METODOLOGIA
A possibilidade de gerar o método a partir do assunto, mediante o aprofundamento
no assunto, naturalmente suprime o princípio da separação entre método e assunto.
Na verdade, na sociologia o método é em grande medida mediado pelo objeto e é
decisivo que a sociologia se torne ciente dessa mediação (ADORNO, 2008, pg.
179).
Em função das peculiaridades presentes no método proposto por Adorno para a
abordagem empírica do objeto, a metodologia será apresentada buscando-se, sempre que
possível, a referência à teoria. E como expresso na epígrafe deste capítulo, o método deve ser
desenvolvido de acordo com as necessidades de conhecimento do pesquisador, mas
considerando das dificuldades próprias do objeto que se busca conhecer. É como buscar, entre
os instrumentos disponíveis, aquele que melhor se prestaria a “romper a casca” ideológica que
esconde o objeto – ainda que considerando que a casca não deixa de ser parte integrante dele.
Como não existe um roteiro, ou qualquer outro tipo de organização de procedimentos
metodológicos, que pudesse orientar os passos de um pesquisador interessado por utilizar uma
abordagem empírica do objeto social a partir de fundamentos propostos por T. Adorno, não se
pode desconsiderar aqui a influência exercida pelos princípios gerais que orientaram a
pesquisa conduzida para o desenvolvimento da escala F. Entretanto, para que não fiquem
dúvidas sobre como essa influência impactou a tese, e principalmente o que as diferenciam,
alguns pontos referentes a essa relação devem ser esclarecidos:
a) o desenvolvimento da escala F não foi uma “aberração” na trajetória acadêmica de
T. Adorno. Não apenas ela nunca foi renegada por ele, como, pelo contrário, é
utilizada como exemplo de abordagem empírica não apenas em aulas posteriores à
publicação da Dialética negativa – veja-se Adorno (2008a), que são aulas de 1968
– mas também em seus textos teóricos, como acontece no capítulo “Experiências
científicas nos Estados Unidos” de Palavras e sinais, um dos últimos trabalhos de
T. Adorno, publicado pela primeira vez em 1969, ano do seu falecimento.
b) em nenhum momento se pretendeu desenvolver nesta pesquisa algum tipo de
“escala”. Não somente a intenção é outra, como os procedimentos a serem
utilizados para esse fim seriam bem diversos. Aliás, a escala utilizada nessa
pesquisa já existe, está validada para o Brasil, e foi utilizada apenas para gerar
informações a respeito da coletividade dos indivíduos – e não para investigar
aspectos clínicos de um indivíduo específico.
c) em resumo, a Authoritarian personality é usada apenas como exemplo prático da
utilização vários procedimentos para buscar romper a opacidade do objeto social.
244
Em relação aos procedimentos utilizados nessa pesquisa, autores críticos questionam
abordagens que partem do pressuposto da realidade do construto liderança, a partir da qual o
pesquisador passa a “„forçar‟ os respondentes a responderem a itens de um questionário sobre
a liderança, desta forma produzindo o fenômeno” (ALVESSON, M.; SVENINGSSON,
2003a, p.360). E, na última seção da teoria – sobre a ideologia da liderança –, foi discutido
como o conceito é construído em nossa cultura, o qual fica refletido nas abordagens
identificadas com o mainstream apresentadas nas seções anteriores, além de apresentar
algumas das contradições identificadas em aspectos que foram incluídos no conceito.
Em outros termos, para a condução da pesquisa, a liderança não foi considerada como
algo dado e natural nas relações sociais, mas uma ideologia, cuja realidade é expressa pelo
fato de que as pessoas, de fato, se organizam em suas relações sociais a partir desse
pressuposto, mas que esconde o fato de que as relações poderiam se organizar a partir de
outros pressupostos escolhidos – e que, como outras construções sociais, é contraditória.
Assim considerado, pode-se dizer que o objeto de pesquisa é e não é conhecido – o
que trás um primeiro problema de ordem metodológica: essa será ou não uma pesquisa
exploratória?
A pergunta de estímulo para o relato da entrevista vai buscar não passar para o
entrevistado uma ideia específica que possua o entrevistador sobre o objeto, mas estimular o
entrevistado, em sua resposta, a partir de algo que ele identifica como tal em sua realidade.
Nesse sentido, o pressuposto é de que o objeto é algo identificado, existente. Mas, se é
ideológico, a sua existência não é natural e necessária, existindo nesse objeto algo oculto, que
como tal deve ser explorado.
A consideração desse pressuposto vai deixar o pesquisador diante de uma primeira
contradição: a pesquisa não seria considerada exploratória se se parte do principio que o
objeto é conhecido, e já foi investigado em inúmeras pesquisas anteriores; mas é exploratória,
porque nessa pesquisa não deve ser considerada a realidade daquilo que já foi desenvolvido
em torno do conceito pelo mainstream, devendo o conceito, para o grupo social estudado, ser
resultado do que foi obtido dentro do próprio grupo – não a partir do que foi dito pelos
indivíduos, mas do que foi interpretado.
No entendimento do autor desta tese, qualquer escolha nesse sentido pode ser
apontada como contraditória. Mas, como para a apresentação de um trabalho científico é
esperado que essa caracterização seja apresentada, será necessário realizar escolhas.
Defende-se que, de modo geral, a pesquisa será caracterizada como:
245
- Exploratória, uma vez que não se parte do pressuposto de que aquilo que já foi
investigado dentro do conceito de liderança é o mesmo objeto a ser explorado nessa pesquisa
– ainda que a pergunta orientadora da entrevista apresente algo que pode ser identificado;
- Baseada em um estudo de caso
- De caráter qualitativo.
A base da pesquisa são as entrevistas, realizadas utilizando a metodologia a ser
descrita mais adiante. Também foram utilizados textos oficiais – como publicações em jornal,
atas de reunião, etc. – anotações de participação em reuniões e assembléias, além de quaisquer
outras informações objetivadas, que tivessem sido produzidas no contexto líder/liderado
estudado, como os registros realizados pelos participantes de reuniões sobre algum assunto.
Recursos quantitativos foram utilizados apenas com a finalidade de dar suporte para o
trabalho com os dados qualitativos. Nesse caso, foram utilizadas, basicamente:
a) a estatística descritiva, para organização de dados produzidos nas entrevistas;
b) uma escala de personalidade, para abordar esse aspecto no conjunto de indivíduos;
c) procedimentos para análise da diferença entre os grupos, quando o tipo de dado
numericamente organizado demandar a verificação desse aspecto.
O que se foi realizado, então, na pesquisa, foi o seguinte:
1) Partiu-se do princípio de que, para o objeto sociológico construído no processo das
relações socialmente estabelecidas entre os indivíduos, não se pode falar em uma completa
identidade entre o conceito e o objeto. Mas, como foi apresentado na seção 3.5.2, se pensar é
identificar, o conceito deve ser o ponto de partida. Em outras palavras, só será possível
superar o conceito a partir do conceito. Mas a intenção foi, em todo tempo, fornecer as
condições de expressão das contradições presentes no conceito, identificadas por aquilo que é
parte do objeto, mas é excedente no conceito.
O conceito deve ser produzido pelos entrevistados. Por princípio, o conceito de
liderança – um universal – só pode ser compreendido a partir dos indivíduos – os particulares
– que participam da relação social que se estabelece entre indivíduos que se identificam como
líderes e liderados, e que é compreendida pelos participantes como sendo uma relação de
liderança. Ou seja, parte-se do princípio de que o objeto da pesquisa existe, pois os atores
envolvidos nessa relação social concordam sobre o que estão dizendo – ainda que seja algo
que foi discursivamente constituído.
246
Tanto nas abordagens do mainstream, como para muitos autores de orientação mais
crítica – como pode ser observado no capítulo 3 – percebe-se que qualquer contradição
eventualmente existente nessa relação deve ser identificada entre líderes e liderados.
Entretanto, ao estabelecer esse tipo de pressuposto, o pesquisador está hipostasiando as
relações de liderança, conferindo ele mesmo uma realidade absoluta a algo que, por hipótese,
deve ser apenas uma construção social, que cristaliza padrões ideológicos de relações,
relativos ao meio no qual foram criados.
Barker (2001) já havia reportado que, apesar da nossa experiência com as relações de
liderança indicar um processo social contínuo, no qual ora se é líder, ora liderado, os estudos
de liderança em organizações têm sido conduzidos, em sua maioria, isolando-se um evento ou
uma série limitada destes, como se tivessem começo e fim, e analisando-os com o pressuposto
de relação causa-efeito – o que não corresponde ao processo social real. Foi partindo dessa
observação que, na presente pesquisa, partiu-se do princípio – observável nas relações sociais
reais – de que um indivíduo que é líder em determinada situação ou relação social pode vir a
ser o liderado em outra(s) situação(ões) ou relação(ões), no mesmo grupo social. Em outros
termos, não pareceu sensato rotular um indivíduo como líder e outro como liderado, com base
na relação que estabelece apenas em uma situação social escolhida.
A forma que se pensou para propiciar esse tipo estudo foi a utilização de um meio que
pudesse facilitar a visualização de relações sociais múltiplas, em rede, como as que acontecem
em um campo profissional. Fazendo assim, foi possível escapar do tipo de relação verificada
em uma única organização cuja estrutura – também uma criação social – pode induzir o
pesquisador a conferir naturalidade à relação do líder com o liderado, em uma confusão (ou
mesmo escolha) gerencialista do conceito de liderança – que não pareceu ser a mais adequada
para descrever o objeto da pesquisa.
Os indivíduos podem assumir papéis de liderança por muitas razões: serem
proprietários, únicos ou financeiramente majoritários, de alguma organização; por estarem
dentro de uma estrutura hierárquica na qual, por razões normativas, com o passar do tempo, o
indivíduo necessariamente deve assumir funções identificadas como sendo de liderança;
podem ter sido contratados, a partir da avaliação de currículo, para assumir um cargo que,
numa estrutura organizacional hierárquica, está ligado à execução de funções identificadas
(ou definidas) pela organização como sendo de liderança; ainda, podem ter sido eleitos, em
um processo político, para assumir funções estatutariamente previstas em organizações de
caráter associativo; ou mesmo podem se identificados como liderança em grupos não
profissionais dos quais participam, pela forma como se conduz nas relações nesses grupos.
247
Um campo profissional possui, em geral, muitas instituições de caráter associativo.
Cada instituição deve ter, como objetivo, responder às diversas e específicas demandas
daquele grupo profissional, podendo, para isso, envolver as mesmas pessoas – ou elevado
número delas – em instituições diferentes, para atender às necessidades diferentes do mesmo
indivíduo. Para atingir o objetivo de buscar pessoas que pudessem assumir papéis sociais
diferentes em momentos diferentes – ora o de liderado, ora o de líder, se o mesmo indivíduo
puder ser observado em uma estrutura social mais ampliada, de rede de relacionamentos
interinstitucionais – foram escolhidos líderes em uma rede organizações, de caráter
associativo, em um determinado campo profissional.
A escolha do pesquisador, baseada na teoria, refere-se ao fato de que a possibilidade
de entrevistar um indivíduo avaliando-o a partir da ótica dos dois papéis poderia ajudar a
expressar contradições nesse objeto – o líder e a sua liderança, como expressa na rede de
organizações.
O critério para a escolha dos entrevistados dentro desta rede de organizações de um
grupo profissional foi ocupar a posição de presidência de instituições que possuíssem caráter
associativo – posição essa cujo acesso se dá por um processo de escolha político entre os
pares. Ainda que essas instituições possuam toda uma diretoria cuja atuação tenha um caráter
também operacional, o cargo de presidente destaca um dos diretores para o exercício de
atividades de representação e de articulação com outras instituições – como se pode constatar
pela leitura dos estatutos sociais. Isso diferencia esse indivíduo, descaracterizando o seu papel
como mais associado à gestão e caracterizando-o mais como liderança naquele grupo, a partir
da caracterização de liderança, na forma como foi realizada na teoria.
2) Mas essa escolha de relações em rede, se ajuda a expressar contradições entre o
papel de líder e o de liderado no mesmo indivíduo, ainda não permite uma expressão de
contradições dentro do papel de líder – que é o objetivo perseguido para este estudo. Não se
desejava escolher, como contraponto, o que o mainstream identifica de modo genérico como
“liderados”, uma vez que, como foi visto na teoria, essa visão diádica da liderança, que tem
orientado muitas pesquisas pode revelar as contradições do papel de líder – já que esse é um
papel que também pode ser representado pelo mesmo indivíduo identificado como “liderado”,
dependendo da posição na qual ele se encontra na relação – mas não no papel de líder.
Após avaliar possíveis formas que pudessem facilitar a expressão dessa contradição,
chegou-se à conclusão de que o que poderia ser introduzido na pesquisa, a fim de induzir a
expressão de uma contradição no papel de líder, poderia ser a observação da evolução das
248
relações da rede no tempo: deve-se considerar que os líderes de hoje podem não ser os
mesmos de ontem, como poderão não ser os mesmos de amanhã.
Ou seja, considerando um corte temporal, ao escolher líderes hoje em atuação para
investigação estaríamos deixando de fora pessoas que, em outros momentos do mesmo grupo
social, seriam os escolhidos para a pesquisa, mas que hoje, se fossem entrevistados, o seriam
no papel de liderados. Esse aspecto temporal da liderança parecia conter o potencial de ocultar
alguma informação relevante para a compreensão do objeto que se queria estudar. Deveria ser
encontrada uma forma para dar expressão a esse aspecto.
A forma utilizada na pesquisa foi a condução das entrevistas com base em dois grupos,
considerando a mesma rede de relacionamentos e a mesma tipologia de liderança:
a) um grupo de líderes identificados como tal a partir dos critérios anteriores e em
atividade no momento da pesquisa; e
b) um grupo de indivíduos que estiveram nas mesmas posições no passado, mas que, no
momento da pesquisa, por razões diversas (que foram exploradas na pesquisa), não
eram mais identificados pelo grupo como lideranças – estando, conceitualmente, no
grupo social escolhido, no papel de liderados.
Essa escolha foi feita com a intenção de possibilitar a expressão da contradição que é
imanente ao conceito. Ressalta-se que não seria possível chegar a essa escolha sem um
momento de especulação, entendida a partir do que foi discutido na seção 3.5.2 (B) – por
parte do pesquisador.
3) Uma vez escolhidas as unidades empíricas de análise, discorre-se sobre as formas
propostas para obtenção das informações. Em outros termos, a metodologia escolhida para
lidar com os objetos de investigação, deixando que eles possam se expressar, com o mínimo
de interferência possível por parte do pesquisador.
Parte-se do princípio de que não é possível nem uma neutralidade axiológica, nos
moldes weberianos, nem a manutenção de uma posição de observador isento durante a
entrevista, como discutido na seção 3.5.5 – visto também que algumas categorias de
informações serão estimuladas, para efeito de comparação. Mesmo assim, todo o desenho da
entrevista foi pensado de modo a poder deixar o objeto falar, o mais possível, a partir de sua
própria ótica.
Também as participações nas reuniões de junho de 2010 e de junho de 2012 foram
conduzidas de modo a estimular a expressão dos participantes, cuidando para que se
expressassem com o máximo de autonomia, com um mínimo de interferência do pesquisador.
249
Em relação às demais informações obtidas a partir da participação em reuniões e
assembleias, onde o registro foi sobre o que ocorria durante a interação entre os presentes, e
dos documentos envolvendo a vida social dessas organizações, o grau de intervenção do
pesquisador ficou, por princípio, limitado.
4) Por fim, são apresentadas as estratégias para o preparo, a apresentação e a análise
dos dados obtidos. No momento do preparo e apresentação, são necessárias interpretações
referentes ao conteúdo do material, de modo a aproximar e reunir objetos semelhantes,
facilitando a sua comparação pela proximidade. Sempre que possível, neste momento de
organização dos dados, as interpretações estarão relacionadas à teoria – uma vez que ela se
refere à forma como os entrevistados se veem nessa relação. Onde não couber teoria para a
interpretação, as bases utilizadas para interpretar o material são apresentadas de modo a
propiciar, para o leitor, a avaliação da propriedade da interpretação realizada – dito de outra
forma, facilitar para o leitor dizer se é possível utilizar o critério de intersubjetividade na
interpretação daquele dado.
Os dados serão analisados a partir de suas relações intragrupo e entre grupos,
buscando ao máximo manter-se na informação que pode ser retirada do dado. Isso significa
que todo movimento de interpretação deverá ser aferido no dado, na forma como se apresenta,
e não inferido a partir de impressões não registradas. Se em algum momento esse tipo de
inferência puder ser útil, deverão ser apresentados fundamentos que a sustentem.
O passo seguinte, o da discussão dos achados ficará para o capítulo 6. Nesse momento
os dados, organizados dentro de uma visão de naturalidade do conceito de liderança, serão
utilizados para a sua reconstrução. A ideia é realizar a aproximação, na forma constelatória,
dos conceitos produzidos pela reunião dos fragmentos resultantes do processo de análise.
Passa-se, então, ao primeiro item proposto: o dos critérios de seleção.
4.1 Critérios para a seleção das unidades empíricas de investigação
A pesquisa foi conduzida de modo a permitir realizar-se uma “crítica imanente”. O
primeiro pré-requisito, portanto, deve ser: o pesquisador deve familiarizar-se com o objeto a
ser investigado. Deve ter participado da dinâmica dos processos sociais que o caracterizam,
dito de outro modo, o objeto deve ser conhecido em suas relações internas, no seu modo de
“funcionar”.
O tema são os líderes e a liderança. Isso significa que o pesquisador deve ter
participado da dinâmica das relações entre líder e liderado – de preferência nos dois polos
250
dessa relação46
. O objeto escolhido para estudo, em cumprimento a esse pré-requisito, foram
os líderes e sua liderança em uma rede de organizações que reúne as várias unidades
associativas de um grupo profissional de nível superior, em que os diversos líderes são
escolhidos a partir de um processo político representativo, efetivado por meio de eleições.
Considerou-se que, durante a fase de pesquisa, não seria desejável que o pesquisador
fosse um ator ativo nesse processo, pois, se a neutralidade axiológica (nos termos weberianos)
pode não ser alcançável. Por outro lado, estar ativamente posicionado em uma relação poderia
criar um viés de percepção, o qual poderia carregar, em si, um potencial para dificultar a
interpretação do que está em andamento.
Desta forma, o segundo pré-requisito foi: o pesquisador deve afastar-se de todo o jogo
de poder envolvendo as relações de liderança escolhidas para investigação, por algum tempo
antes de se dar início à realização da pesquisa de campo e durante o período em que ela
ocorreu.
Considerou-se que um afastamento completo poderia dificultar a realização de uma
“crítica imanente”. A forma de se contornar esse problema, sem desconsiderar os dois pré-
requisitos apresentados anteriormente, foi a seguinte: a maioria dos líderes de instituições de
caráter associativo desse grupo social já há alguns anos é convidada a participar de um grupo
de discussão e de formação para as lideranças, patrocinado por uma federação de associações.
E muitos participam, ainda que, por não ser algo obrigatório, as pessoas não sejam exatamente
as mesmas todos os meses. Esse grupo de discussão e de formação para as lideranças é
mediado por profissionais com muitos anos de experiência nas áreas de Psicologia e
Sociologia organizacionais.
O pesquisador foi convidado a participar desse grupo, inicialmente no papel de um dos
mediadores, o que propiciou um lugar estratégico para a observação das relações interpessoais
e interinstitucionais nessa rede de associações. Essa posição foi ocupada por cerca de um ano
e meio a dois anos, na fase de pesquisa que coincidiu com as entrevistas.
Uma vantagem desse tipo de grupo está no fato de que, como já foi dito anteriormente,
pessoas que são líderes escolhidos em algumas das associações são os liderados de outras, o
que rompe com a visão unidirecional líder-liderado, propiciando novos insights sobre essa
relação. Assim, uma das fontes de informações utilizadas foram as reuniões desse grupo.
46
Considerando os papéis formais, o pesquisador já foi presidente eleito de uma sociedade anônima de capital
fechado e presidente de conselho de sociedade anônima de capital fechado do ramo financeiro, eleito nos dois
casos pelos acionistas. Foi também diretor eleito de sociedades associativas no ramo financeiro, além de ter
exercido papéis de liderança em organizações do setor público de estrutura hierárquica e em uma organização na
área educacional.
251
O grupo foi informado sobre a existência da pesquisa – até porque muitos de seus
membros foram individualmente entrevistados. Mas foi considerado que a gravação das
reuniões poderia interferir na espontaneidade das relações e limitar algumas das participações.
Dessa forma, os dados relevantes para a pesquisa foram anotados para utilização posterior,
como em uma pesquisa etnográfica.
A forma primordial para a obtenção de informações, como já foi dito, foi a realização
de entrevistas diretamente com os indivíduos. Considerando a própria dinâmica desse tipo de
grupo, no qual nem as pessoas nem as relações, ao longo do tempo, são fixas, foi necessário
estabelecerem-se critérios para a seleção dos entrevistados.
O primeiro critério é o mais óbvio e já citado: a presidência de uma dessas
organizações. O cargo de presidente em uma instituição associativa diferencia esse indivíduo
dos outros componentes, por exemplo, os outros membros de sua diretoria. Essa diferenciação
comumente está associada ao reconhecimento, pelo grupo, de que esse indivíduo deve
assumir funções de ordem mais ligadas à representação política do que de ordem operacional.
Assim, ainda que, em muitos casos nessas organizações, toda uma diretoria já possa implicar
posições de liderança, o cargo de presidente destaca esse indivíduo efetivamente como líder
do grupo. Como consequência dessa observação, todos os presidentes das organizações
associativas foram convidados a participar das entrevistas.
Para esse grupo, foram escolhidos também mais dois indivíduos que desempenharam
importantes papéis no desenvolvimento das relações interinstitucionais no grupo escolhido,
apesar de não terem exercido o papel de presidentes dessas organizações: o primeiro, do sexo
masculino, ocupou e ocupa importantes posições em diretorias atuais, enquanto o outro, do
sexo feminino, já foi diretor em várias instituições associativas, mas não ocupava posição de
destaque há algum tempo e até o momento da pesquisa.
O critério de escolha para o segundo grupo, como foi anteriormente apresentado, levou
em consideração a busca das contradições que existem no objeto. Foram convidados a
participar indivíduos que já foram presidentes dessas e de outras organizações associativas,
mas que, atualmente, por qualquer que fosse a razão, não ocupam mais nem a presidência,
nem outras posições de liderança em qualquer instituição representativa nesse mesmo grupo
profissional. Para a escolha desse segundo grupo de indivíduos, além dos casos mais
evidentes (para o grupo) foram também consideradas as citações feitas por indivíduos que
estavam sendo entrevistados – uma vez que, pelo tipo de objeto de investigação escolhido, a
atenção deveria estar voltada para a rede de relações.
252
Na metodologia de abordagem do objeto proposta por Adorno, como apresentado na
seção 3.4, são consideradas significativas as ocorrências localizadas fora das medidas de
tendência central. Para isso, durante as conversas com os indivíduos previamente
identificados como objeto de investigação na pesquisa (e, portanto, que faziam parte da rede
de relacionamentos), atentou-se para a citação de pessoas que, estando no mesmo grupo social
profissional, eram vistos como lideranças “diferentes” ou “fora da média”.
De três casos citados nesse critério, dois foram contatados e participaram das
entrevistas: o primeiro, do sexo feminino, é uma pessoa que, apesar de não ter sido presidente
de alguma organização profissional nem de ter tido qualquer participação político-partidária,
já havia assumido posições de chefia, formais e informais, por escolha da base, e que, além
disso, era reconhecida, em seu grupo, como uma liderança social efetiva, funcionando como
núcleo aglutinador de indivíduos que, talvez, sem a sua presença, não seria um grupo. O
segundo indivíduo, do sexo masculino, já havia dirigido durante oito anos uma instituição
ligada ao poder público, é identificado como liderança local pelo poder público e por políticos
ligados à sua região de atuação e que, a despeito disso, apresenta comportamento bem diverso
da média dos indivíduos que fizeram ou fazem parte da rede de lideranças das organizações
associativas.
Nesse momento, impõe-se um terceiro critério para a formação dos grupos: como o
número de indivíduos para o grupo de líderes inativos não está previamente dado – ao
contrário do que ocorre no grupo de líderes que são “presidentes” atuais, o que se refere a um
número limitado de posições de liderança –, para a decisão sobre a quantidade a ser
considerada suficiente de líderes inativos buscou-se equilibrar o número desses indivíduos
com aquele observado no primeiro grupo. A finalidade foi minimizar algum tipo de tendência
que pudesse ser determinada por uma desproporção no número de indivíduos, quando da
análise dos resultados.
O número inicial de indivíduos com perfil que pudesse enquadrá-los na pesquisa ficou
em quase 35. Nesse grupo, houve dois indivíduos que, apesar de num primeiro contato terem
se disponibilizado a participar da pesquisa, ou não compareceram no dia agendado
(fornecendo uma desculpa questionável) ou simplesmente não conseguiram apresentar uma
data para a sua realização. Isso foi interpretado como uma recusa à participação e o fato
respeitado como tal.
O grupo final ficou composto de 33 indivíduos subdistribuídos da seguinte forma: 16
lideranças de organizações associativas, em atividade no momento, das quais apenas um não
exercia o cargo de presidente; e 17 indivíduos que foram presidentes ou líderes associativos
253
reconhecidos em seus grupos, mas que, no momento, não estavam em papéis, em seus grupos
associativos, que se possa caracterizar como sendo de liderança.
Essas mesmas pessoas podem ser subdistribuídas em 30 indivíduos do sexo masculino
e três do sexo feminino – os critérios utilizados não permitiram encontrar muito mais
mulheres para a pesquisa, e uma das convidadas “não conseguiu agenda” para participar.
Também podem ser subdistribuídas entre 30 indivíduos que são ou foram presidentes
de instituições de caráter associativo e três que foram diretores ou assumiram posições
identificadas pela teoria como sendo de liderança – muitas vezes em mais de um mandato
e/ou em mais de uma instituição –, mas que não foram presidentes dessas instituições.
Como já foi dito, em uma rede, o indivíduo que é identificado como líder em um ponto
pode ser liderado em relações envolvendo outros pontos da mesma rede. Isso facilita a
descrição de uma questão que pode surgir em pesquisas sobre relações de liderança: se é
relação, não se deveria pesquisar apenas um polo (o do líder), negligenciando o outro (o do
liderado). Em uma relação em rede, em que os papéis são mutáveis, esse problema fica um
pouco diminuído, pois escolhendo um indivíduo – líder ou ex-líder – estão dadas as condições
para a abordagem dos dois polos da relação.
Nesse ponto, enfatiza-se o que já foi feito. Para o primeiro grupo, o de líderes, tem-se
um critério de escolha que poderia ser o mesmo utilizado por qualquer pesquisa usual e que
pode ser aferido nas medidas de tendência central, ou seja, a observação das coisas como são
dadas pela realidade atual, que estejam pautadas na identidade entre o conceito e o objeto.
Para o segundo grupo, ainda que formado a partir de um critério que busca a contradição, para
abordar os casos como grupo exigiu organizar os dados de modo semelhante ao do primeiro
grupo.
Escolhidos os indivíduos a serem investigados, passa-se às estratégias que foram
utilizadas para a coleta dos dados.
4.2 Estratégias para a coleta dos dados
A abordagem de objetos tão complexos como as relações de liderança não deve
acontecer a partir da exploração de apenas uma única linha. Se o tema envolve indivíduos e a
relação entre eles, de início já se pode postular dois níveis de abordagem: o dos indivíduos e o
das situações nas quais acontecem as suas relações.
A forma básica escolhida para obtenção dos dados foi:
254
a) A realização de entrevistas com os indivíduos escolhidos pelos critérios demonstrados.
Mas foram escolhidos outros meios de produção de informação, com potencial de
propiciar a expressão do objeto nas duas abordagens – a do indivíduo e a das relações
entre os indivíduos;
b) do lado do indivíduo: como foi visto na teoria, vários foram os trabalhos que
consideraram, nas relações de liderança, fatores relacionados à personalidade. Assim,
foi realizada a aplicação de uma escala com essa finalidade;
c) para investigar as relações, foram acompanhadas situações nas quais as relações
ocorrem efetivamente, como as assembleias ordinárias e extraordinárias das
organizações das quais fazem parte os indivíduos escolhidos, e reuniões de lideranças;
d) também foram pesquisados os editoriais dos jornais das organizações associativas,
instrumento muito utilizado pelos presidentes para comunicação de ideias e propostas
(de modo especial as que ainda estão em fase de acertos de ordem política) ou
quaisquer outros documentos impressos pela mídia que digam respeito ao tema
abordado.
Também foram incluídas nesse grupo pesquisas realizadas em redes sociais, como o
facebook. Para tanto, o autor conectou-se, na rede, às organizações que mantêm conta no
facebook, bem como aos grupos de discussão específicos na categoria profissional.
Em função das divergências, as diferentes formas serão abordadas em seções diversas.
4.2.1 Abordando o indivíduo: as entrevistas e a escala
Uma vez estabelecidos os critérios, os indivíduos foram contatados para a marcação da
entrevista. No momento acertado, era explicado o objetivo geral da entrevista, colocado de
forma bem genérica como “uma investigação sobre liderança”, sem entrar em mais detalhes
para não influenciar as respostas. Obtida a concordância, era solicitada a leitura e assinatura
de um termo de consentimento, no qual o indivíduo era informado de que seu nome seria
mantido em sigilo durante todo o processo da pesquisa e ele era informado de que, se
desejasse, poderia ter acesso a todo o seu material a qualquer momento da pesquisa, inclusive
com o direito de discutir alguma parte do texto que lhe fizesse referência.
Considerou-se que, quanto mais estruturada fosse a entrevista, mais ampla poderia ser
a interferência do entrevistador sobre o resultado da mesma – em outros termos, menor a
255
possibilidade do objeto de falar sobre si mesmo. O desenho da entrevista, então, passou a ser
um fator primordial para se obter o resultado desejado.
A) A entrevista
Buscando atingir esse objetivo, a primeira fase da entrevista teve início com uma única
pergunta, a mesma para todos os entrevistados – ainda que o tom coloquial da entrevista
pudesse modificar um pouco o modo como a questão era formulada. A solicitação era
apresentada, em termos gerais, do seguinte modo: “conte-me a sua história relacionada ao
tema liderança”. Se, na sequência, o indivíduo perguntasse algo como “desde quando?” ou
“liderança de que?” ou “você quer saber sobre minha atividade como presidente da ... ?” ou
qualquer outra pergunta semelhante – o que foi relativamente comum nas entrevistas –, a
resposta era sempre a mesma: “à vontade, você escolhe”.
É importante deixar claro aqui que não se trata da utilização do método de pesquisa
“história de vida”. Mesmo considerando que alguns dos entrevistados foram abordados em
mais de uma seção para abordagem de pontos que não ficaram claros na primeira entrevista,
para a maioria dos entrevistados a abordagem foi realizada em uma única seção, pois a
intenção era a de observar as suas escolhas – o que não seria adequado, se a “história de vida”
fosse o método escolhido. O “você escolhe” teve a intenção justamente de deixar que o
indivíduo fizesse escolhas, associando livremente o que era considerado para ele importante, e
não a de buscar reconstruir sua história, ou de registrar toda a sua memória para depois tentar
estabelecer relações entre as ocorrências e o tema.
Para não descuidar do fato de que a personalidade, para Adorno et al. (1982), não é
algo fixo que se recebe de início e permanece inalterado durante toda a vida, e sim algo que
evolui sob o impacto do ambiente social – e que, por isso, não pode ser isolada da totalidade
social na qual ocorre – foram considerados alguns aspectos relevantes a se atentar. Por
exemplo, considerando a importância das experiências vividas na infância e adolescência
referentes ao tema – a partir do que foi apresentado na teoria (seção 3.5.2) – caso, depois de
esgotada a resposta inicial, o indivíduo não tivesse abordado espontaneamente essa fase, era
realizada uma pergunta do tipo “e como foi isso na sua infância/adolescência?”. Entretanto,
como o foco eram as escolhas realizadas pelo entrevistado, era registrada a importante
observação de que ele não escolheu abordar o tema nesta fase da vida.
De acordo com a teoria que conduziu a pesquisa para o desenvolvimento da escala F,
os efeitos das forças ambientais na modulação da personalidade seriam tão mais profundos
quanto mais cedo ocorressem na história do indivíduo – de modo especial, os efeitos daquelas
256
que acontecem na vida familiar da criança. Por essa razão, percepções espontâneas
relacionadas à liderança de um familiar próximo, como parentes de primeiro grau (pais, avós,
irmãos e tios), foram consideradas com cuidado. Da mesma forma, atentou-se para a
proximidade da família com o poder local, principalmente para os indivíduos que foram
socializados em cidades pequenas, onde frequentemente se pode observar mais proximidade
das famílias envolvidas em disputas de caráter político-partidário.
Durante as entrevistas, o que se apurou foi que os indivíduos que referenciaram a sua
história de liderança na infância, frequentemente identificaram espontaneamente essa relação.
E, por isso, para efeito de comparação, para aqueles que não fizeram menção espontânea a
essas relações na infância, a pergunta direta sobre a questão era realizada em algum momento
posterior da entrevista, quando o assunto criava a oportunidade.
Levando-se em consideração esses aspectos da vivência do indivíduo durante a sua
infância, com o poder, para a transformação das entrevistas em categorias a serem analisadas,
atentou-se, então, para os seguintes aspectos:
a) Em que fase da vida ele vai se identificar com o tema da liderança: infância,
adolescência, vida universitária, início da vida profissional ou no momento de sua vida
profissional que se relaciona ao que está acontecendo no momento atual?;
b) como ele vai lidar, no início do relato, com a sua caracterização como líder feita pela
pergunta inicial. Aqui se inclui a sua percepção do que seja a liderança, se algo ligado
ao indivíduo ou mais ligado à estrutura, como nas atividades de gestão;
c) qual a sequência escolhida para o relato, ou seja, o que ele inclui na sua visão de
liderança – o que também se relaciona à duração desse seu relato inicial;
d) quais as pessoas que ele, espontaneamente, escolhe para associar, no relato, à sua
trajetória de liderança – aí incluídas as influências familiares e sociais recebidas;
e) como ele, espontaneamente, caracteriza ou conceitua a liderança, com atenção especial
aqui às peculiaridades apresentadas nos relatos – se ele considera essa atividade como
um ônus ou uma vantagem; se ele se considera um sedutor para suas causas ou se ele
se considera manipulado por aqueles que estimularam as suas ações.
É a partir dessa primeira resposta que foram realizadas as perguntas subsequentes.
Elas deveriam ser o mais breves possível, visando apenas estimular respostas para se obterem
as informações que ainda não haviam sido espontaneamente fornecidas, com o mínimo
possível de interferência do pesquisador. A ideia era a de que, ao final da entrevista, houvesse
informações suficientes sobre:
257
a) A sua infância: como eram as relações com colegas de turma e com os parentes mais
próximos, no ambiente familiar, no que poderia se relacionar com o tema;
b) as influências sofridas dos pais e parentes de primeiro grau: pais, irmãos
(principalmente os mais velhos), avós, tios e primos;
c) se havia, em seu ambiente familiar, atividade política partidária: com participação
direta ou indireta de seu núcleo familiar;
d) como havia sido a sua participação nos grupos que normalmente se formam na
adolescência, pontuando, se necessário, sua participação em grupos religiosos,
grêmios estudantis ou quaisquer outros grupos de adolescentes identificados pelo
respondente como relevantes;
e) como havia sido a sua vida universitária, desde o início, ressaltando, se necessário, a
participação em diretórios acadêmicos, participação em política estudantil,
participação político-partidária, participação em atividades sociais próprias do grupo
estudantil como shows, festas, movimentos artísticos ou quaisquer outros movimentos
próprios dos grupos sociais dos quais participava nesse período;
f) como havia sido o início de sua atividade profissional, perguntando mais
especificamente sobre movimentos relacionados à sua formação e inserção na vida
profissional, atividade político-partidária, atividades associativas ou quaisquer outras
atividades relacionadas ao início da participação na vida de um grupo profissional
específico;
g) como havia sido a sua evolução nos grupos em que exerceu a liderança, solicitando
que especificasse melhor os aspectos que, durante o relato, ele interpretasse como
relevante;
h) como ele via a atividade representativa de grupo ou a liderança de movimentos
associativos, atentando para se, em sua interpretação, ela poderia ser caracterizada
como algo fácil e natural ou um sacrifício, um fardo;
i) se havia a sensação de ter sido usado ou “explorado” pelos indivíduos de sua base de
representação;
j) se ele considerava o exercício da liderança um sacrifício, uma exploração por quem
não quer se comprometer ou uma vantagem, uma distinção;
k) percorrida essa trajetória, era solicitado ao indivíduo que, a partir de sua experiência
no campo, conceituasse a liderança;
l) a partir de sua conceituação de liderança, era solicitado que exemplificasse o que, em
sua percepção, seria um líder verdadeiramente e o que ele considerava como falso
258
líder. Nesse momento, deixava-se o indivíduo à vontade para fornecer ou não
exemplos, a partir dos grupos do qual participava – nesse caso, utilizando sua visão de
liderado.
É importante também acrescentar que, dependendo do transcorrer da entrevista, caso o
entrevistador identificasse que algo relevante estava sendo mencionado pelo indivíduo, ainda
que não fizesse parte da sequência habitual a ser percorrida, ele era estimulado a discorrer um
pouco mais sobre esse tema.
É certo que, em uma pesquisa com um objeto social do qual faz parte o pesquisador,
este não pode deixar de se relacionar, de alguma forma, com o seu objeto de investigação. A
atenção que foi preciso desenvolver em todos os momentos da pesquisa nos quais era preciso
estimular uma resposta específica do entrevistado foi fazê-lo de modo a não sugerir uma
impressão prévia. Quando cabia uma pergunta geral, do tipo “como você foi escolhido?” ou
algo direto desta forma, não havia problemas. A questão mais difícil era a produção de uma
resposta para comparação com outras. Como exemplo, no caso de saber sua posição quanto a
se sentir ou não “explorado” por aqueles que o elegeram ao papel de líder, uma das formas
utilizadas para isso foi fazer a pergunta apresentando contrapontos do tipo “algumas pessoas
pensam „x‟, outras „y‟ ou „z‟: qual é a sua impressão sobre essa questão?”. Felizmente, foram
poucas as situações desse tipo.
Não havia duração prévia estabelecida para as respostas – o entrevistado sempre era
deixado muito livre para discorrer sobre o que considerasse relevante, do modo como
considerasse mais adequado. Eventualmente, um entrevistado perguntava se estava sendo
muito prolixo ou se estava fugindo do que era perguntado, e a resposta era “fique à vontade”.
A razão para isso era a de que as escolhas dos caminhos a serem percorridos para responder a
uma pergunta deveriam ser consideradas relevantes para a pesquisa e, portanto, levadas em
consideração quando de sua interpretação. Em função desse fato, houve entrevistas que
duraram cerca de 30 minutos, enquanto algumas outras duraram mais de uma hora – uma das
quais com duração total de quase três horas. A maioria, no entanto, teve a sua duração situada
entre esses dois extremos, entre 40 minutos e uma hora.
Deve-se registrar que muitos dos entrevistados foram abordados em mais de um
momento – ou para se tirar uma dúvida surgida durante a transcrição ou análise da entrevista
ou para se perguntar algo que se tornou relevante após a sua entrevista ter sido realizada ou
para qualquer outro tipo de esclarecimento necessário. Isso porque, durante a fase de
entrevista, os indivíduos sempre foram deixados bem livres para a condução de suas
259
respostas. Como consequência, algumas questões surgiram com frequência, sendo
espontaneamente feitas por muitos indivíduos, o que fez com que elas fossem relevantes,
mesmo sem serem parte da estrutura original programada para as entrevistas. Com isso, foi
necessário, em alguns casos, remarcar um novo momento de entrevista para perguntar sobre
essas questões, principalmente em relação aos primeiros indivíduos entrevistados, se essas
questões não tivessem sido feitas.
Todas as entrevistas foram registradas com um gravador digital que também permitia
o seu arquivamento em back up. Quase a totalidade das entrevistas foi transcrita por uma
mesma bolsista do programa de iniciação científica, sendo que apenas as quatro últimas foram
trabalhadas ou por outra bolsista ou pelo pesquisador.
Para a transcrição, a bolsista foi orientada a redigir exatamente o que era falado,
mantendo-se os erros de linguagem, vícios de fala, eventos como tosse, gaguejar ou quaisquer
outros aspectos da fala que fossem percebidos durante a transcrição. Caso alguma palavra não
fosse adequadamente compreendida, ela era orientada a anotar a dúvida e a marcação de
tempo do momento para aferição posterior pelo pesquisador – uma vez que o arquivamento
digital permitia ao pesquisador o acesso à gravação para as devidas correções da transcrição.
B) A aplicação da escala
Terminada essa primeira fase, a da entrevista, o indivíduo era convidado a marcar a
escala NEO-PI-R. Uma psicóloga do grupo de pesquisa do qual participava o autor desta tese
foi a responsável técnica pelos aspectos referentes a essa fase.
Era explicado ao indivíduo o que se desejava: ele deveria ler uma afirmação contida
no caderno de aplicação, marcando em seguida, na folha de respostas, uma de cinco
possibilidades: (i) se ele discordava fortemente da afirmação ou (ii) se ele apenas discordava;
(iii) se nem concordava nem discordava, o que quer dizer que não tinha opinião formada
sobre ela; (iv) se concordava; (v) se concordava fortemente com a afirmação.
Eventualmente, após a interrupção oficial da entrevista, em conversas mais
descontraídas com o entrevistado, alguma informação relevante para a entrevista era
produzida. Nesse caso, a informação era anotada à parte, de modo a poder ser acessada
durante a preparação e organização dos dados para análise. Nesses casos, nem sempre o texto
efetivo, como dito pelo entrevistado, era aquele que era possível registrar. O que se buscou,
nesses casos, foi manter o espírito da fala (considerando-se o contexto).
260
4.2.2 Abordando as relações de liderança
Aqui serão expostas as estratégias de investigação dos indivíduos envolvidos nas
relações de liderança, a partir de diversas abordagens, uma vez que, pela diversidade dos
indivíduos envolvidos na pesquisa, são muitas as possibilidades existentes para se observar
essas relações. As quatro estratégias usadas para obtenção de informações serão apresentadas
separadamente.
A) Reuniões do grupo de lideranças das organizações associativas
Há mais de 10 anos existe uma reunião mensal para lideranças, fomentada por uma
federação de associações, com a finalidade de desenvolvimento dos indivíduos e de suas
relações, além de ser um espaço para discussões de caráter político envolvendo temas afeitos
às relações entre organizações. Durante o período de desenvolvimento da pesquisa, o autor
desta tese participou de 10 reuniões como mediador, junto com outros profissionais ligados
aos campos da psicologia organizacional e sociologia.
Como parte da dinâmica, em geral os participantes eram convidados a ler algum texto,
que poderia ser um artigo científico, trecho de livro, uma obra literária ou qualquer outro texto
relevante para o tema da reunião. A primeira etapa da reunião era conduzida pelos mediadores
e girava em torno do tema proposto. A segunda etapa envolvia as discussões de ordem
político-estratégicas.
Em função das características da reunião e do grupo, essas reuniões não foram
gravadas. Os aspectos mais relevantes foram anotados pelo pesquisador, com vistas à sua
utilização posterior, quando da análise do material.
B) Assembleias gerais ordinárias e extraordinárias
Foram acompanhadas, durante o período da realização da pesquisa, cinco assembleias
gerais, entre ordinárias e extraordinárias, de organizações consideradas importantes no grupo
profissional, em função de sua abrangência ou número de líderes envolvidos. Duas dessas
assembleias foram gravadas com autorização do presidente que as conduzia e as demais foram
acompanhadas, tendo sido anotados os aspectos considerados mais relevantes para o tema da
pesquisa – as relações de liderança.
As assembleias gravadas foram transcritas, mas o material de gravação não pôde ser
arquivado, pois o gravador utilizado não possuía dispositivo de transmissão digital de dados.
261
C) Editoriais de jornais de organizações associativas
Durante o ano no qual os dados para a pesquisa estavam sendo coletados, o autor
acompanhou os editoriais dos jornais de organizações associativas. A intenção nesse caso era
observar posicionamentos de caráter político, de interesse para o grupo social ao qual as
organizações estavam ligadas. Os artigos de interesse foram impressos e mantidos para estudo
documental durante a pesquisa.
D) Participação em redes sociais
Durante o período de pesquisa, o autor, que não fazia parte de redes sociais, começou
a participar da rede facebook, a convite de um dos líderes entrevistados. A ideia era participar
de grupos de discussão, em que eram discutidos temas relevantes para ações de caráter
político do grupo social envolvido. Devido ao tipo de investigação conduzida, este foi o meio
que menos produziu material, sendo que durante a análise não foi detectada alguma
informação relevante para os objetivos perseguidos.
4.3 Estratégias para o preparo e a análise dos dados
A partir do que foi nascendo das entrevistas, foram criadas categorias47
para análise.
Essas categorias foram enumeradas de modo a se poder, em uma segunda etapa, trabalhá-las
estatisticamente, usando-se estatística descritiva e a estatística U, para comparações entre
grupos.
Com a estatística descritiva pretendeu-se organizar os dados para comparações, a fim
de poder separar as situações que se enquadram no conceito daquelas que são menos
frequentes, marginais em relação a ele. A estatística U foi utilizada sempre que a informação
que se buscava dizia respeito a comparações entre grupos de dados produzidos.
Em função de sua importância, o preparo e a análise desses dados da pesquisa será
detalhado em seção à parte.
47
Categoria – segundo Minayo (1998, p. 109-110), “a palavra categoria, em geral, se refere a um conceito que
abrange elementos ou aspectos com características comuns ou que se relacionam entre si. Essa palavra está
ligada à ideia de classe ou série. As categorias são empregadas para se estabelecer classificações. Nesse sentido,
trabalhar com elas significa agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito capaz de abranger
tudo isso”. Uma compreensão mais geral do termo é obtida em Houaiss e Villar (2001), para quem a categoria é
um “conjunto de pessoas ou coisas que possuem muitas características comuns e podem ser abrangidas ou
referidas por um conceito ou concepção genérica”. Em ambas as visões, nota-se que o conceito é um elemento
nuclear para caracterizar uma categoria. Desta forma, para a análise das entrevistas, a categoria reúne um
conjunto de informações, que serão chamadas de “itens”, os quais se referem a um mesmo tipo de informação
geral, abrangida por um conceito.
262
4.3.1 Preparo e análise das entrevistas
Foram abertas várias planilhas do programa Excel® do pacote Office® do Windows®.
Em cada planilha foram abertas algumas categorias de análise, dispostas nas colunas. E em
cada categoria foram reunidos os diversos itens de análise, para os quais foi dado um número.
As linhas correspondiam aos indivíduos, sendo o material impresso de cada indivíduo
marcado com o mesmo número da planilha, para facilitar trabalho estatístico posterior. A
intenção, nesse caso, foi transformar os dados retirados das entrevistas e da escala em
variáveis não paramétricas, com a finalidade de facilitar a análise estatística desses dados.
O resultado final das categorias criadas a partir da análise das entrevistas, com o título
genérico que a caracteriza, será sumariamente apresentado:
PLANILHA 1: Início do relato e a vivência de liderança no núcleo familiar
Coluna A: escolha do entrevistado para o início do seu relato
Coluna B: se há citação relacionada à escola de 1º grau, como o entrevistado a percebe
Coluna C: existência ou não de modelo familiar de liderança – especificando, se for o caso
Coluna D: vivência de atividades políticas na infância, relacionadas ao seu núcleo familiar
Coluna E: na ótica do entrevistado, se há líderes entre os irmãos – e, nesse caso, quais seriam
Coluna F: duração da resposta espontânea à primeira pergunta
Coluna G: se, pela forma como responde à 1ª pergunta, ele assume que se considera um líder
Coluna H: a ordem posicional do indivíduo entre os irmãos
PLANILHA 2 – Participação em grupos na infância e adolescência
Coluna A: participação em grupos religiosos
Coluna B: participação em grupos sociais
Coluna C: participação em grupos políticos
PLANILHA 3 – Participação associativa e político-partidária durante a vida universitária
Coluna A: participação em Diretórios Acadêmicos e Diretório Central de Estudantes
Coluna B: participação em partidos políticos
Coluna C: participação em atividades sociais em seu grupo universitário
PLANILHA 4 – Atividades associativas e político-partidárias no início da vida profissional
Coluna A: liderança, participação ou não participação em atividades associativas
263
Coluna B: liderança, participação ou não participação em atividades político-partidárias
Coluna C: liderança, participação ou não participação em atividades sociais na profissão
Coluna D: liderança, participação ou não participação em atividades sociais fora da profissão
PLANILHA 5 – Como exerce a liderança
Coluna A: liderança profissional
Coluna B: liderança político-partidária
Coluna C: liderança social
Coluna D: forma como assumiu sua primeira posição reconhecida como de liderança
Coluna E: forma como assumiu as posições subsequentes reconhecidas como de liderança
Coluna F: motivação para se envolver com as atividades reconhecidas como de liderança
Coluna G: sensações percebidas ao assumir a liderança (prazer, sacrifício ou exploração?)
Coluna H: quantidade de presidências assumidas em organizações associativas
Coluna I: se é atualmente, ou já foi, chefe ou coordenador em organizações burocráticas
PLANILHA 6 – Conceito de liderança; exemplos positivos e negativos; diferenças de gestão
Coluna A: o que é liderança
Coluna B: o que não é liderança
Coluna C: exemplo de líder
Coluna D: exemplo de não líder
Coluna E: se na percepção do entrevistado a liderança é nata ou o líder pode ser formado
Coluna F: características que podem ser observadas em um líder
Coluna G: durante o relato, se demonstra segurança na definição do que é um líder
Coluna H: no discurso, faz diferença entre estrutura e gestão e entre liderança como algo que
é identificado apenas no indivíduo, apenas na estrutura ou em ambos
PLANILHA 7 – Idade e sexo
Coluna A: idade
Coluna B: sexo
PLANILHA 8 – As cinco dimensões e as 60 facetas do NEO-PI-R
PLANILHA 9 – Se não for liderança em atividade, qual seria a razão para o afastamento
264
O próximo passo foi transformar os dados em variáveis não paramétricas.
Utilizando estatística descritiva, os dados foram apresentados em tabelas, com a
finalidade de aproximá-los, para comparações que tivessem o potencial de evidenciar alguma
informação relevante. Os dados produzidos nas planilhas foram, inicialmente, organizados na
forma mais simples de distribuição de frequências.
As tabelas foram produzidas, em sua grande maioria, a partir da reunião dos mesmos
dados dos grupos de líderes em atividade e daquele dos indivíduos que já não estão mais no
exercício do papel de liderança.
Para comparações entre os dois grupos, foi realizado o teste de hipóteses, utilizando-se
o pacote estatístico Minitab 16®. A hipótese nula investigada era a de que os grupos seriam
semelhantes. Foi feita a seguinte escolha: sempre que o número apresentado em um grupo
fosse maior que o dobro das ocorrências do outro grupo (para essa regra, desde que houvesse
pelo menos uma ocorrência para comparação), a diferença era considerada significativa.
Assim, se houvesse uma ocorrência em um grupo, três ocorrências no outro já seria motivo de
atenção. A constatação de nenhuma ocorrência em um grupo tornaria a comparação
significativa a partir de duas ocorrências no outro.
Esse foi um critério orientador geral, mas não era rígido, ficando o pesquisador livre
para investigar qualquer relação que parecesse suspeita. Inicialmente, interessava saber se
havia alguma proximidade nas distribuições de frequências como um todo: a ideia era saber se
os dois grupos se apresentavam como grupos realmente ou se seriam apenas uma associação
aleatória de dados.
A seguir, os grupos foram comparados entre si.
Ressalta-se que a estatística descritiva foi utilizada para o cumprimento de sua
finalidade básica: a descrição ou a organização dos dados. O objetivo aqui, desta forma, é
diverso daquele quando se pretende generalizar conclusões a partir de análises estatísticas: o
número de indivíduos de cada grupo não é o suficiente para se pensar em generalizações.
Além disso, os grupos foram formados por critérios de escolha (não aleatórios) e
algumas “variáveis” tiveram muito poucas ocorrências para se pensar em comparações
conduzidas no rigor estatístico, com a finalidade de generalizações. A pesquisa, como foi dito,
é basicamente qualitativa e o recurso aos números foi utilizado apenas com a finalidade de
organizar os dados para propiciar comparações de caráter qualitativo.
Para as comparações dentro do mesmo grupo, a avaliação do comportamento médio
dos indivíduos teve a finalidade de observar se o comportamento médio era congruente com a
teoria, onde esta se relacionava com a ocorrência, e, também – ou, principalmente –, orientar
265
a investigação para que se pudesse focar nas discrepâncias, no incomum, no inesperado –
tanto a partir da teoria quanto em relação ao próprio comportamento médio do grupo.
Em outros termos, foi apresentado, na teoria, que uma das maneiras para superar o
conceito a partir do conceito é atentar para os excessos no conceito, aquilo que transborda ou
que é deixado de fora da delimitação, da definição do objeto. Para se ter acesso ao que
excede, transborda, é preciso primeiro saber o que está contido, abarcado pelo conceito. A
partir daí, e por um movimento de especulação do pesquisador – esta última entendida pelo
que foi apresentado na seção 2.5.2 (B) – é que se vai buscar o que deve ser investigado,
aprofundado, com base em todos os dados e informações produzidos pelos diversos métodos
utilizados para obtenção dos dados.
Em muitas das tabelas comparativas produzidas, as categorias existentes não
permitiam comparação utilizando programas estatísticos, pois os dados eram textuais e, ainda
que enumerados, não se organizavam em sequência. E também porque havia reduzido número
de indivíduos em uma categoria para cada grupo. Nesses casos, os dados produzidos foram
organizados na forma de distribuição de frequências e as distribuições eram comparadas entre
os dois grupos.
Ressalta-se que o critério aqui não deveria ser buscado em textos de Estatística, pois,
como já foi dito, os dados não permitiam comparações dessa ordem. As comparações tinham
como finalidade apenas evidenciar as discrepâncias entre os dois grupos, a partir das quais se
poderiam realizar análises comparativas mais aprofundadas das entrevistas, no tocante àquelas
informações, para aqueles indivíduos identificados.
O próximo passo foi organizar os dados produzidos a partir da escala de
personalidade.
4.3.2 Preparação dos dados da escala NEO-PI-R
A escala NEO-PI-R foi discutida na teoria sobre personalidade.
Como foi apresentado, o entrevistado era solicitado a se posicionar diante de
afirmativas como a de número (72): “Já fui muitas vezes líder de grupos a que pertenci”,
diante do que ele podia marcar (DF) para “Discordo fortemente”, (D) para “Discordo”, (No)
para “Neutro”, (C) para “Concordo” e (CF) para “Concordo fortemente”. Após a marcação
dos 240 itens, os resultados das marcações foram transportados para o programa específico
que tabulou os dados e apresentou os resultados – o que poderia ter sido feito em forma de
tabela ou gráfico.
266
Para a pesquisa, foi escolhida a forma gráfica, como se pode ver no exemplo
apresentado na Figura 2.
Figura 2 - Resultados do NEO-PI-R como fornecido pelo programa
Fonte: Material da pesquisa.
Cada folha de resultado foi enumerada de acordo com o número recebido pela
entrevista (o caso da FIG. 2 corresponde à entrevista de nº 29, como escrito à mão e marcado
em vermelho na parte de cima da folha).
Para a avaliação inicial, a atenção estava voltada para os cinco domínios da escala,
como está marcado em vermelho à direita (cinco primeiras linhas). O programa classifica os
domínios e as facetas, de acordo com o valor obtido e pelo escore T que lhe corresponde,
entre muito baixo, baixo, médio, alto ou muito alto (como marcado em vermelho, à direita). A
identificação, feita apenas com as iniciais, e a data de nascimento foram aqui ocultadas para
que o entrevistado não seja identificado.
As seis facetas de cada um dos cinco domínios também são apresentadas e também
foram transpostas para a planilha de Excel®, para as comparações intrafacetas. No entanto,
considerando-se os objetivos desta pesquisa e a própria teoria de personalidade como
conduzida pelo ISF, que prioriza o conjunto, em relação aos traços isolados, a princípio o foco
267
ficou nos cinco domínios – com exceção apenas da faceta A5, que foi utilizada em um tipo de
comparação a ser apresentada no próximo capítulo.
Para compor a planilha de Excel®, o resultado nominal foi transformado em dado
numérico, variando de 1 a 5: muito baixo (1) , baixo (2) , médio (3) , alto (4) e muito alto (5).
Esses dados, gerados a partir da transformação de escala nominal em escala numérica, são
considerados não paramétricos48
. Isso implica que as comparações devem ser realizadas a
partir das medianas de cada grupo de dados, e não das médias, como nos dados paramétricos.
Os dados foram organizados em dois grupos: os referentes aos indivíduos que estão no
exercício do papel de líderes e o daqueles que atualmente não exercem este papel.
Preparados dessa forma, foi possível proceder às comparações entre os resultados dos
grupos, utilizando a estatística U, de Mann-Whitney. Para essa comparação, a hipótese nula a
ser testada era a de que os grupos eram iguais – ou, H0: ƞ1= ƞ2. A hipótese alternativa, como
consequência, era a de que os grupos eram diferentes – Ha: ƞ1≠ ƞ2.
O nível de significância utilizado foi de 5% – o que significa que a obtenção de um p-
valor > 0,05 não rejeita a hipótese nula (de que os grupos são iguais).
Realizada a comparação entre os grupos, pode-se proceder à comparação dentro dos
grupos, de modo a se pesquisar se os achados estão de acordo com o que seria esperado
encontrar a partir da teoria discutida – ou seja, se haveria, para um líder, um padrão esperado
de apresentação dos cinco domínios da escala.
4.3.3 Preparação dos demais documentos
Como foi dito, a entrevista foi utilizada como a base para a pesquisa.
Para informações adicionais, esclarecimentos, críticas de impressões, ou seja, para
tensionar os dados da entrevista com as vivências das pessoas do grupo, várias outras formas
de produção de informação foram utilizadas.
Nesta seção, o que se pretende mostrar é como esses dados foram produzidos,
preparados, organizados e utilizados na pesquisa para atingir os objetivos propostos.
48
Parâmetro: é a medida (ou a quantidade) que é característica de uma população e que normalmente é estimada
a partir dos dados da amostra em que a média aritmética da amostra é utilizada como uma medida da média
populacional e a variância da amostra empregada para estimar a variância da população (HAIR JR. et al., 1998).
268
A) Assembleias das organizações associativas e reunião de diretores de federação
Foram acompanhadas três assembleias gerais ordinárias e duas extraordinárias no
período de um ano (março de 2011 a março de 2012) de algumas das organizações que
reúnem maior número de indivíduos envolvidos com a pesquisa e uma reunião de diretores
que compõem o quadro social de uma organização federativa.
Em uma dessas organizações, como as assembleias envolviam limitado número de
participantes (menos de 80 pessoas), foi solicitado ao presidente (que também foi um dos
entrevistados individuais) autorização para gravação de som. Essas gravações foram
posteriormente transcritas para análise.
Em outras duas organizações as assembleias foram acompanhadas e os dados
relevantes anotados para eventual utilização em análise. Questões mais específicas que
poderiam identificar pessoas ou grupos que, por qualquer razão, não autorizaram a sua
participação na pesquisa não foram utilizados, ainda que anotados.
Para a análise, foram priorizadas as falas e anotações que envolveram as relações de
liderança no grupo, destacadas para serem analisadas, independentemente do tema em questão
ter sido abordado em entrevistas.
A reunião de associação federativa foi marcada para discussão em uma fase de crise
envolvendo remuneração – em um grupo profissional. A gravação conta mais de duas horas,
durante as quais se registraram, além do presidente da organização e de outro diretor
compondo a mesa, intervenções de outros 27 participantes e a apresentação de um vídeo com
reportagens sobre o grupo profissional, o qual funcionou como motivador para as discussões.
Essa gravação foi transcrita para a realização da análise.
B) Participação em reuniões
Como já foi apresentado anteriormente, o pesquisador participou de reuniões do grupo
de líderes tanto ativamente, como mediador de discussões, como passivamente, como
participante apenas em algumas. Fatos relevantes de ocorrência eram anotados, durante ou ao
final das reuniões, para utilização posterior.
As reuniões podem ser divididas, pelo tipo de material produzido, em três tipos:
A primeira reunião, em junho/2010: nessa reunião, o aspecto mais relevante para esta
pesquisa foi relacionado às definições de “poder”, conceitualmente e como empiricamente os
participantes se enquadravam na definição. Não foi informada a razão pela qual foram
pedidas essas definições e em nenhum momento a palavra “liderança” foi citada antes do
início do trabalho.
269
Reuniões mensais entre julho de 2010 e maio de 2011: em algumas das reuniões
ocorridas entre julho de 2010 e maio de 2011, foram levantados temas que poderiam motivar
discussões no âmbito no qual se conduzia a pesquisa – modelos de gestão veiculados pelos
Master of Business Administration (MBA) e a sua influência sobre o comportamento do
indivíduo em posição de exercício de liderança nas nossas organizações; a influência da
cultura nacional na modulação de modelos considerados os mais efetivos em outros países e o
papel exercido pelos indivíduos na posição de liderança nessas organizações; a ideologia
como mecanismo produtor de “verdades”. Essa reuniões não foram gravadas, pois, em
comum acordo com os mediadores das reuniões, considerou-se que a gravação poderia causar
algum tipo de inibição ou viés na participação, dadas as características do grupo. As questões
mais relevantes sobre os temas apresentados, bem como as falas mais relevantes para orientar
tanto a condução como a interpretação das entrevistas, foram anotadas e preparadas para
utilização durante o processo de análise, na seção 5.4.2.
A reunião de junho de 2012: foi organizada uma reunião para apresentar alguns dos
dados obtidos a partir das entrevistas individuais, com a finalidade de obter dos participantes
as suas impressões sobre o que estava sendo reunido como resultado, até aquele momento.
Nessa reunião estavam presentes muitos dos indivíduos que participaram da pesquisa, como
entrevistados individuais, no grupo de líderes em atividade. Mas também havia indivíduos
que, apesar de atuarem nas organizações associativas que fazem parte da rede de associações
ligadas ao grupo profissional escolhido, ou não exerciam papéis que estavam enquadrados
dentro dos critérios de escolha para as entrevistas individuais ou já o exerceram, tendo sido
por isso elegidos para a entrevista individual no grupo de líderes inativos. A reunião foi
preparada da seguinte forma:
a) Como o material individual já havia sido trabalhado, foram selecionados conjuntos de
falas de entrevistados que se referiam a um mesmo tópico, o qual foi derivado do
processo de entrevistas. Esse tópico pode ser identificado como o que Adorno chamou
de “constelação”, na qual constava um conjunto de “estrelas”, constituídas por falas
escolhidas de entrevistas – os particulares –, representando ângulos de visão ou de
abordagem diferentes, a partir das vivências, que são individuais, sobre um mesmo
tópico – o qual, por envolver um conceito, funciona como um universal. Os tópicos
escolhidos foram: o que é a liderança? Líder ou gestor? Como se identificar um líder?
Liderança e a sua relação com interesses, independência do líder e com a exploração
do líder pelos liderados. O líder pode ser nato ou ele é desenvolvido? As falas
escolhidas fazem parte do APÊNDICE A.
270
b) A reunião foi dividida em dois tempos: no primeiro, para não haver contaminação de
opiniões entre os presentes, as impressões foram escritas. As folhas com as anotações
foram recolhidas pelo pesquisador, para análise posterior. No segundo momento, foi
solicitado aos indivíduos que expressassem de público a sua impressão sobre o que foi
apresentado, sendo que o indivíduo era deixado livre para escolher o que dizer. O
resultado das falas foi anotado para análise posterior, individual e em conjunto com as
demais anotações de reuniões e de entrevistas, cujos temas fossem congruentes.
C) Material impresso e redes sociais
Foram reunidos editoriais de jornais e revistas de comunicação interna da organização.
Após a leitura de todo o material, foram descartados os documentos cujo conteúdo dizia
respeito a questões específicas ou de caráter técnico, referente ao grupo.
Já os documentos que traziam informações cujo conteúdo revelava caráter político ou
relacionado a disputas de poder foram separados de modo a serem utilizados no estudo.
Essa foi a metodologia utilizada para selecionar as unidades empíricas de investigação,
coletar os dados das unidades selecionadas e preparar os dados para a análise. O resultado
final, envolvendo o preparo e a apresentação dos dados a partir dessa metodologia, será objeto
do próximo capítulo.
271
5 PREPARO, APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DO MATERIAL
Considerando que o preparo começa na produção do material, volta-se aqui a alguns
pontos da metodologia, para recordar como o material foi criado.
Como foi apresentado no capítulo anterior, a entrevista foi conduzida com um mínimo
de interferência: foi feito um estímulo inicial, do tipo “conte-me a sua história relacionada à
liderança”, com a intenção de provocar a recordação do momento associado ao trajeto da vida
do entrevistado, relacionado aos papéis de liderança assumidos. O tempo gasto pelo
entrevistado para finalizar a sua ideia era livre, tendo variado entre algo em torno de dois ou
três minutos as respostas cujo tempo médio ficou em torno de meia hora. Independentemente
do tempo gasto, esse primeiro relato foi traduzido na categoria “início do relato”.
As intervenções que se seguiram a esse primeiro estímulo tiveram a intenção de:
a) Estimular o indivíduo a esclarecer melhor um ponto do tipo “vamos detalhar isso:
você falou que desde a infância já se viu em posição de liderança, como foi isso?”;
b) estimular a abordagem de algum período da vida que havia sido esquecido, como “e
na adolescência, como foi isso?”;
c) abordar algum tema que tivesse sido espontaneamente mencionado por algum dos
entrevistados, de modo a poder obter um termo de comparação.
A segunda parte da entrevista envolveu perguntas gerais que estavam no script e que
deveriam ser feitas a todos para comparação entre grupos. Elas envolviam temas como “a
partir do que você me relatou, que características você identifica em um líder?” Ou “qual é a
sua definição de liderança?” Ou, ainda, “dentro desta definição, cite-me exemplos
relacionados à sua vida, de indivíduos que você considera líderes e também do contrário”.
Como se pode constatar, foram perguntas abertas com a finalidade de deixar para o
entrevistado a possibilidade de fazer escolhas. A intenção também era tentar diminuir a
interferência que a própria pergunta do entrevistador – ou modo de fazê-la – poderia induzir
na resposta do entrevistado. Uma eventual participação mais ativa do entrevistador, durante a
entrevista, tinha a finalidade de esclarecer uns pontos ou estimular a abordagem de outros.
Mas havia um limite que não deveria ser ultrapassado: ao final de uma pergunta clara, a
resposta do entrevistado deveria ser respeitada, ainda que ele não tivesse – muitas vezes,
deliberadamente – encarado o tema da maneira desejada pelo entrevistador. Essa “resistência”
era anotada de modo a se considerar um possível significado na análise.
272
De qualquer forma, em alguns momentos, considerando-se as múltiplas possibilidades
apresentadas, foi necessário realizar algumas escolhas, as quais serão explicitadas.
A) As categorias para análise
Para conduzir a análise das respostas, foram organizadas algumas categorias. Estas
podem ser enquadradas, no que foi apresentado pela teoria, como sendo uma “constelação” de
achados. Essa “constelação” é formada por um conjunto de “objetos” – chamados de “itens” –
obtidos de falas, textos, anotações de campo ou qualquer tipo de informação que se refira ao
item, os quais serão denominados de “achados”.
Esses achados podem estar relacionados a um conceito – por exemplo, quando se
referem à concepção de “liderança”, de “autonomia” ou qualquer outro conceito abordado na
teoria. Outras vezes, podem ser referentes a aspectos próprios de alguns conceitos – por
exemplo, o de que existem características de personalidade que podem ser facilitadoras para
que o indivíduo assuma papéis de liderança. E outras vezes nasceram espontaneamente dos
relatos – como no caso da percepção apresentada pelo entrevistado de que quando exerceu o
papel de líder sentiu-se “explorado” pelos liderados.
Essas categorias podem estar fundadas na teoria – como é o caso de uma categoria que
se refere a um conceito. Mas boa parcela delas teve a sua origem apenas no discurso do
entrevistado. Foi por isso que, ao se identificar um aspecto importante do tema, apresentado
na teoria, mas sobre o qual não havia sido feita uma referência pelo entrevistado, era realizada
uma pergunta direta sobre a questão. Por outro lado, se vários indivíduos abordavam
espontaneamente uma questão que não havia sido expressamente citada pela teoria, o autor
voltava a revisar a literatura, em busca da teoria que, no corte epistemológico escolhido,
pudesse se relacionar ao tema. Deve-se dizer que, como vai ser visto na apresentação dos
dados, nem sempre foi possível referenciar um achado à teoria.
O resultado obtido foi que tanto a teoria ajudou a iluminar o conteúdo dos relatos
quanto os relatos orientaram o que se deveria buscar na teoria. Eventualmente, realiza-se neste
capítulo a explicitação de alguma referência da teoria ao achado – apesar do tensionamento
dos achados com a teoria não ser feito prioritariamente nessa fase de categorização, mas no
próximo capítulo, que é aquele que cuidará da discussão dos achados.
Nesse ponto, registra-se um primeiro ato de interpretação, sob a responsabilidade do
pesquisador: identificar, para uma informação apresentada, a ideia geral ou o conceito ao qual
ela se refere, criando uma “categoria” de análise. A categoria foi nominada. Esse nome é fruto
273
da interpretação do autor, referente ao que está sendo expresso por aquela categoria. Por
exemplo: categoria “Motivo do afastamento dos papéis de liderança”.
A partir da criação das categorias, os achados foram organizados em itens.
B) Os itens que compõem uma categoria
Numa categoria, o algarismo romano indica os “itens”, que são os grupos de
subdivisão dentro da categoria, ou seja, o que surgiu das falas é que caracteriza os diversos
aspectos relativos àquela categoria.
Por exemplo, na categoria “Motivo do afastamento dos papéis de liderança”, os itens
foram os seguintes:
Tendo em vista o campo conceitual que fornece os fundamentos para esta pesquisa,
pode-se considerar que essa categoria, formada por esse conjunto de sete grupos de falas, é
um tipo de “constelação”49
que aproxima objetos, mas que não está fechada: uma nova
entrevista, que fornecesse uma nova razão para o afastamento, poderia criar um oitavo item –
uma oitava “estrela” – nessa constelação.
Cada item é formado por um conjunto de objetos.
49
Para melhor explicar o que se pretende com a metáfora da constelação nesse contexto, pode-se usar um
exemplo real, como o da constelação de Órion. As pessoas podem olhar para o céu e ver um conjunto de três
estrelas, que serão identificadas como formando um conjunto, que em alguns lugares são denominadas de “Três
Marias”. Mas também se pode enxergar o mesmo conjunto de três estrelas dentro de um conjunto maior, o da
constelação de Órion, dentro da qual elas podem ser “vistas” como formando o cinturão de um guerreiro, cujos
quatro membros estão marcados no céu noturno por outras estrelas. Ou seja, pode-se ver um conjunto dentro de
um conjunto, cada um com o seu significado próprio atribuído.
I: terminado o último mandato (ou atividade de liderança) não quis se envolver no
exercício de atividades que abrangiam o papel de liderança;
II: a dedicação aos estudos não tem permitido se dedicar a outras atividades;
III: o trabalho (relacionado à sua profissão) não tem permitido se dedicar a outras
atividades;
IV: necessidades pessoais e familiares: dedicar mais tempo ao casamento e/ou aos filhos;
V: desilusão ou decepção com os pares;
VI: afastamento anterior muda o tipo de envolvimento, mantendo a situação até hoje;
VII: dúvidas pessoais, de caráter moral.
274
C) O conjunto de objetos que vai compor um “item”
Cada item foi formado a partir de um conjunto de falas obtidas de diversos indivíduos.
Quando foi necessário citar uma fala para a exemplificação, um algarismo arábico entre
parênteses indicava o número que foi atribuído ao entrevistado no conjunto de pesquisados.
Esse número acompanhou todos os documentos e informações que foram geradas a partir
daquele entrevistado – transcrição das entrevistas, escala de personalidade, anotações de
reuniões, etc.
Como exemplo, na categoria “Motivo do afastamento dos papéis de liderança” usou-se
o exemplo do item I- “Terminado o último mandato – ou papel – de liderança, não quis se
envolver, ou não foi indicado, para o exercício de atividades que envolviam o papel de
liderança”, para a qual, entre outros, tomou-se o exemplo do entrevistado ao qual foi atribuído
o número (14):
Tem muito tempo que eu não participo, tem uns oito, uns oito anos [...] coincidiu
com a mudança de gestão da [...] De lá pra cá eu não tive mais nenhuma
participação em temos de cargos [...] me dediquei mais ainda à área, é... da [...]
acadêmica, né... eu sou professor da UFMG [...].
Também nesse caso o conjunto de falas pode ser considerado uma outra
“constelação”. As falas, também nesse caso, são objetos próximos, que no conjunto ajudam a
definir alguma coisa, fruto de uma interpretação, mas que possuem existência independente.
Mantém a característica constelatória de ser aberta, uma vez que outras entrevistas poderiam
acrescentar novas falas a essa “constelação”.
5.1 A caracterização dos dois grupos
Os dois grupos a serem estudados estão caracterizados da seguinte forma: o primeiro,
formado por presidentes de organizações de caráter associativo, os quais ocupam posição em
seu grupo que não deixa dúvidas quanto ao seu papel de liderança no momento no qual a
entrevista foi realizada. Por estarem em atividade, serão referidos como líderes ativos; e o
segundo, formado por ex-lideranças dessas mesmas organizações ou de outras a elas de
alguma forma relacionadas. Por terem sido, em algum momento, enquadrados nos critérios
que a literatura caracteriza como sendo lideranças, serão identificados como líderes inativos.
Como foi visto na metodologia, os dois grupos foram equilibrados em termos
quantitativos, para evitar distorções relacionadas a esse aspecto, o que resultou na seguinte
distribuição: 16 indivíduos que eram lideranças ativas dentro dos critérios de escolha e 17
275
indivíduos que, apesar de terem sido lideranças dentro do mesmo critério, já há algum tempo
não representavam esse papel – por qualquer que fosse a razão (falta de interesse, mudança de
interesses, questões de ordem íntima não especificadas ou por falta de oportunidade, apesar de
manifestarem desejo de exercer esse papel). Um 17º indivíduo no primeiro grupo (o de líderes
em atividade) convidado para participar das entrevistas por preencher os critérios
estabelecidos não conseguiu agendar um horário para a entrevista até um momento em que
não houvesse prejuízo para as análises – daí a diferença de um indivíduo entre os dois grupos.
Uma outra questão que necessitou ser definida antes das análises diz respeito ao fato
de que, após o período de desenvolvimento da pesquisa de campo, dois dos indivíduos
entrevistados do segundo grupo passaram a exercer o papel de liderança, enquanto um
indivíduo do primeiro grupo também mudou sua condição. Foi feita a escolha de conduzir as
análises considerando a situação do indivíduo no momento em que ocorreu a entrevista, uma
vez que as informações que foram fornecidas à época estavam influenciadas pela visão de
mundo de quem exercia o papel que o indivíduo estava desempenhando naquele momento.
Como foi visto, também não houve como equilibrar o gênero dentro de cada grupo,
uma vez que o número de mulheres que exercem ou exerceram o papel de liderança no grupo
social escolhido foi, e ainda é, muito reduzido. Esse aspecto não pôde ser explorado na
análise, uma vez que demandaria outro referencial teórico envolvendo questões de gênero,
podendo ser explorado em uma outra pesquisa desenhada para esse fim.
Em relação à idade, os grupos apresentaram a distribuição apresentada na Tabela 1:
Tabela 1 - Distribuição dos dois grupos por idade
IDADE LÍDER ATIVO LÍDER INATIVO
45 – 49 02 02
50 – 54 06 09
55 – 60 04 06
60 – 65 04 0
Fonte: dados da pesquisa.
A estatística descritiva para as idades é a apresentada na Tabela 2:
Tabela 2 - Estatística descritiva para as idades
N MÉDIA DP Mínimo Máximo Mediana
LÍDER ATIVO 16 55,56 5,73 46 65 55
LÍDER INATIVO 17 53,24 3,47 46 59 55
DP.: Desvio-padrão.
Fonte: dados da pesquisa.
276
Como a faixa de distribuição não é grande – 20 anos distribuídos entre os 45 e os 65
anos de idade –, possíveis distorções de percepção influenciadas, por exemplo, por diferenças
de gerações, ficam minimizadas.
Em resumo, o que se pode notar em relação às idades é que os grupos têm perfis muito
próximos, com a maior distorção verificada apenas em relação aos indivíduos com mais de 60
anos, faixa na qual se constatam quatro ocorrências entre os líderes em atividade e nenhuma
entre os inativos.
A mediana, entretanto, que é uma informação muito importante, pois será a utilizada
na comparação dos grupos para dados não paramétricos – os quais constituem a absoluta
maioria dos dados da pesquisa –, ficou igual para os dois grupos, em 55 anos.
A distribuição das idades, em resumo, não compromete a homogeneidade dos grupos.
5.1.1 Características de personalidade nos dois grupos
A intenção é comparar os resultados de cada um dos cinco domínios entre os grupos.
De acordo com a revisão realizada por Judge et al. (2002) – apresentada na seção 3.4.4
–, a percepção, pelo liderado, de aspectos relacionados à personalidade do líder pode se
constituir em fator facilitador para a emergência ou para a efetividade da liderança. Como foi
visto, por emergência entende-se o momento em que o líder é identificado como tal; e
efetividade a capacidade da liderança em atingir os objetivos esperados pelo grupo.
O resultado da revisão realizada por Judge, Heller e Mount (2002), na qual os autores
apresentam as expectativas em relação à liderança para os cinco domínios, foram os
seguintes:
a) (N): níveis mais baixos se relacionariam com a emergência, não com a efetividade;
b) (E): níveis mais altos se relacionariam mais com a emergência e menos com a
efetividade;
c) (O): níveis mais altos se relacionariam tanto com a emergência como com a
efetividade;
d) (A): as evidências são ambíguas;
e) (C): níveis mais altos se relacionariam com a efetividade (e não com a emergência).
Deve-se recordar aqui o que foi apresentado na metodologia: tendo sido as respostas
transformadas em dados não paramétricos, as comparações são realizadas utilizando-se as
medianas, e não as médias, das respostas obtidas.
277
Para as comparações foi utilizado o pacote estatístico Minitab® 16. Levaram-se em
conta as seguintes definições, cujos valores são fornecidos pelo pacote estatístico:
a) Mediana: é o valor que vai dividir o grupo, com 50% de respostas abaixo do valor da
mediana e 50% das respostas acima desse valor;
b) estimativa pontual: é a verdadeira diferença entre as medianas dos dois grupos;
c) intervalo de confiança: indica que, se extraídas sucessivas amostras, mais de 95% dos
achados deverão ser encontrados dentro desse intervalo;
d) o p-valor, extraído da estatística U. Nesta investigação, apenas o p-valor será
demonstrado – lembrando que, para o nível de significância desejado de 95%, o p-
valor ≤ 0,05 não vai rejeitar a hipótese nula (Ho) de que os grupos são iguais.
Realizadas as comparações entre os resultados dos cinco domínios dos dois grupos,
foram obtidos os seguintes resultados, apresentados na Tabela 3:
Tabela 3 - Resultados das comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R para os
dois grupos
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Ativo 2,0 (Baixo) 0,0 0,0 – 1,0 0,7057
Inativo 2,0 (Baixo)
Extroversão Ativo 3,0 (Médio) 0,0 0,0003 e 0,9998 0,4168
Inativo 3,0 (Médio)
Abertura Ativo 4,0 (Alto) 0,0 0,0 – 1,0 0,3851
Inativo 3,0 (Médio)
Amabilidade Ativo 3,0 (Médio) 0,0 -0,9999 e -0,0003 0,5457
Inativo 3,0 (Médio)
Consciensiosidade Ativo 4,0 (Alto) 0,0 0,0 – 1,0 0,6917
Inativo 3,0 (Médio)
Fonte: dados da pesquisa.
Domínio neuroticismo:
a) A mediana foi de 2,0 (Baixo) para os dois grupos, com estimativa pontual de 0,0 e
intervalo de confiança entre 0,0 e 1,0. Esse é um resultado que está de acordo com a
expectativa apresentada por Judge et al. (2002), relacionado à emergência da
liderança;
b) o p-valor de 0,7057 não rejeita a hipótese nula de que os dois grupos são iguais.
278
Domínio extroversão:
a) A mediana foi de 3,0 (médio) para os dois grupos, com estimativa pontual de 0,0 e
intervalo de confiança entre 0,0003 e 0,9998. Esse resultado não é completamente
congruente com o apresentado por Judge et al. (2002), que apresenta expectativa de
resultados mais altos para a emergência da liderança – estando menos relacionado à
sua efetividade;
b) o p-valor de 0,4168 não rejeita a hipótese nula de que os dois grupos são iguais.
Domínio abertura:
a) A mediana foi 4,0 (alto) para o grupo de ativos e 3,0 (médio) para o de inativos, com
estimativa pontual de 0,0 e intervalo de confiança entre 0,0 e 1,0. O resultado para o
grupo de líderes ativos estaria mais próximo do apresentado por Judge et al. (2002),
tanto para a emergência quanto para a efetividade. No entanto, o p-valor de 0,3851 não
rejeita a hipótese nula de que os grupos são iguais. Portanto, não se pode dizer que o
grupo de líderes em atividade está mais de acordo com o previsto na literatura do que
o grupo de líderes inativos.
Domínio amabilidade:
a) A mediana foi de 3,0 (médio) para os dois grupos, com estimativa pontual de 0,0 e
intervalo de confiança entre -0,9999 e -0,0003. Esse resultado, de qualquer modo,
apresentou resultados ambíguos na revisão de Judge et al. (2002), motivo por não se
caracterizá-lo aqui;
b) O p-valor de 0,5457 não rejeita a hipótese nula de que os grupos são iguais.
Domínio consciensiosidade:
a) A mediana foi de 4,0 (alto) para o grupo de ativos e 3,0 (médio) para o de inativos,
com estimativa pontual de 0,0 e intervalo de confiança entre 0,0 e 1,0. Esse resultado,
semelhante ao apresentado para o domínio “abertura”, indicaria o esperado em relação
à maior efetividade na liderança para o grupo de líderes ativos. No entanto, o p-valor
de 0,6917 não rejeita a hipótese nula de que os grupos são iguais. Ou seja, novamente
não se pode dizer que o grupo de líderes em atividade está mais de acordo com o
previsto na literatura do que o grupo de líderes inativos.
Esses resultados revelam que:
279
a) Como grupos, não existem diferenças significativas entre os cinco domínios que
definem as características da personalidade dos indivíduos que compõem os dois
grupos;
b) de todos os cinco domínios, apenas o “neuroticismo” apresentou resultados
congruentes com a expectativa obtida pela revisão de Judge et al. (2002).
Não se pode deixar de registrar aqui, como síntese do que sugerem esses resultados,
que os dois grupos apresentaram características de personalidade muito semelhantes. Isso
significa que esses resultados revelam a possibilidade de que o fato de não estar no papel de
líder no momento da pesquisa é independente das características dos indivíduos referentes às
suas personalidades. Em outros termos, é possível que os indivíduos que se dispõem ou que
são escolhidos para assumir o papel de líder possuam características semelhantes de
personalidade, independentemente de, no momento histórico de suas vidas, estarem ou não no
exercício desse papel.
Essa impressão, entretanto, precisará ser confirmada por outros aspectos da pesquisa
que envolvam a comparação das características de personalidade dos indivíduos dos dois
grupos.
5.1.2 Outras características dos indivíduos relevantes para a diferenciação dos grupos
A partir dessa etapa foi necessário retirar das entrevistas as falas que se referiam ao
que se pretende caracterizar. Não se pode deixar de pontuar que esse foi um momento no qual
as escolhas do pesquisador fizeram mais diferença, uma vez que cabe considerar, entre tudo o
que foi relatado pelo indivíduo –, o qual seguiu uma lógica que envolveu uma
intencionalidade visada pelo discurso –, escolher as falas que se referem mais
apropriadamente ao tema que está sendo o objeto da investigação50
.
Na maioria das situações essa escolha foi fácil, uma vez que o tema foi conduzido de
modo direto pelo entrevistado. Mas, para alguns dos aspectos a serem estudados e para alguns
indivíduos, essa escolha foi fruto de interpretação, que levou em conta o contexto da fala (o
momento em que surge na entrevista) ou algum esclarecimento adicional que pode ter
50
Não se pode deixar de observar que, também na pesquisa quantitativa, na forma fechada como a pergunta é
apresentada no questionário, também é possível identificar as escolhas do pesquisador. Só que, nesse caso, por
serem fechadas, as perguntas apresentaram maior potencial para interferir na resposta fornecida.
280
ocorrido fora do momento da gravação. Quando esse for o caso, os critérios de escolha
deverão ser demonstrados.
Como primeira caracterização mais geral dos grupos, três aspectos devem ser
esclarecidos para a compreensão de sua constituição: os motivos que levaram pessoas, muitas
vezes durante muitos anos a assumirem papéis relevantes de liderança a abandonarem esses
papéis, assumindo o papel que o maisntream chama de liderado; a caracterização do tipo de
liderança exercida pelos indivíduos, nos dois grupos; a investigação sobre se haveria
semelhanças ou diferenças importantes entre os indivíduos que, dentro desse grupo
profissional, foram escolhidos por mais vezes para o exercício de papéis de presidente.
As categorias serão apresentadas em letras maiúsculas.
A) Motivos para o afastamento dos papéis de liderança
Tendo exercido papéis de liderança em algum momento de sua trajetória de vida –
muitas vezes por muito tempo –, o que se quis investigar foram as razões que levaram esses
indivíduos a estar e/ou se manter hoje afastados.
As respostas, após analisadas, foram distribuídas em sete itens diferentes, aqui
exemplificadas por uma ou mais falas, retiradas das entrevistas:
I: Terminado o último mandato – ou papel – de liderança, não quis se envolver no
exercício de atividades que abrangiam o papel de liderança.
(6) Então hoje, se eu estou afastado dessa..., de algum cargo político, aí mais pela
circunstância mesmo, porque acabei minha, minha... meu tempo lá na (xxx), dos meus
anos lá e, e assim eu num... né... Eu vejo muito os colegas assim, né, pedindo,
articulando para assumir uma posição, um posto, tal, é... assim, essa... essa
necessidade eu não tenho [...].
(14) tem muito tempo que eu não participo, tem uns oito, uns oito anos [...] coincidiu
com a mudança de gestão da (xxx). De lá pra cá eu não tive mais nenhuma
participação em temos de cargos [...] me dediquei mais ainda à área , é... da (yyy)
acadêmica, né... eu sou professor da UFMG [...].
II- O trabalho ou estudos não tem permitido se dedicar a outras atividades.
(32) Eu preferi dedicar talvez assim os últimos 10 anos...seis anos! Mais à questão
profissional, sabe? Eu tinha, eu tinha afastado um pouco. E, por necessidade, tanto
pessoal, quanto do próprio serviço em que eu trabalho, eu tive que dedicar mais ao
serviço[...]”
III- Necessidades pessoais e familiares – dedicar mais tempo ao casamento e/ou
filhos.
(5) Momento da família, tudo que eu tinha que... que eu preferi não... perturbar
naquele momento. Também uma necessidade minha de... porque o tempo passou a
resolver algumas questões... íntimas, pessoais que não estavam resolvidas, né? Nesse
processo eu fiz sete anos de análise também [...] eu queria acertar umas coisas comigo
mesmo, né? Principalmente essa experiência familiar que eu passei[...]
(34) Desgaste, desgaste pessoal foi um fator determinante. E eu queria ficar perto dos
meus filhos. Eles eram pequenos, eu não ficava perto deles.
IV- Desilusão ou decepção com os pares
281
(7) As pessoas, até você achava que estava junto com você, aí chegava na hora de
provar se estava com você ou não viu que o sujeito vira casaca, era diferente, né?
Então, eu não gosto desse tipo de situação, isso me afasta [...] [...] eu peguei e fiz a
opção de cuidar da minha vida; aí peguei estou afastado [...] por enquanto não quero
ver mais nada disso, já falei lá em casa assim: [...] se vocês me verem mexendo com
um trem desses vocês me prendem que devo ter ficado doido.
(8) Daí teve um fato que foi muito marcante, muito sofrido pra mim, que foi a questão
política [...] não estou muito na ativa até porque não quero, tive um sofrimento muito
grande nessa ruptura que houve em 2008.
(13) Sofri muito, sô! Os companheiros que eu achava que estavam do meu lado, não...
Aí eu fui me decepcionando, você vai... vendo coisas de companheiros históricos te
puxar o tapete. Eu cheguei à conclusão que eu não preciso mais disso aqui não. Não
vou ser rico, não vou... Não quero pleitear cargo nenhum mais, né?
V- Afastamento anterior muda o tipo de envolvimento, mantendo a situação até hoje
(28) Agora, como essas coisas, também elas têm um...um momento na vida, elas
passam, né? [...] tem seus momentos de assumir certas posições, certos cargos, depois
passa”
VI- Dúvidas pessoais, de caráter moral
(34) Então muitas vezes a gente chegava lá, eu ia e pensava: puxa vida, arrebentei a
boca do balão aqui hoje, arrasei. E ia embora. Aí, chegava em casa, tomando um
banho... aí tinha um cara que era meu amigo na reunião. Aí, eu... caía a ficha, aí
falava: „pô, sacaneei com fulano, isso que eu falei eu coloquei ele na maior saia justa.
Aí você ganha o embate político, mas a qual custo?Aquele trem foi... eu falei: „pô,
esse trem aqui você pode usar para o mal. Entendeu? E antes de eu começar a usar
para o mal eu resolvi interromper, porque os limites são muito tênues. Os limites entre
o bem e o mal são muito tênues. Então você tem que ficar atento, e a isso eu não tava
me dispondo. Começou a me incomodar e eu falei: tchau!
A distribuição de frequências nesse caso ficou como apresentado na Tabela 4:
Tabela 4 - Distribuição de frequências:
razões para se manter afastado
Fonte: dados da pesquisa.
Essas razões também podem ser agrupadas em dois grandes grupos:
a) Um afastamento mais inercial, em que o indivíduo não parece ter feito uma escolha
para se afastar, que envolve os grupos I e V (terminado o mandato, não procurou ou
não foi chamado a se envolver ou o afastamento anterior prolongado acaba por mantê-
lo afastado). Esse grupo envolve os entrevistados (5), (6), (8), (14), (23), (26), (27) e
(28);
b) um afastamento motivado por fatores de ordem mais pessoal: que será chamado de
volitivo, envolvendo os entrevistados (2), (5), (6), (7), (8), (13), (19), (22), (29), (30),
(32) e (34).
I II III IV V VI
LÍDER INATIVO 6 2 4 5 2 1
282
Reunidos dessa forma, a distribuição fica como apresentado na Tabela 5:
Tabela 5 - Distribuição de frequências:
razões para se manter afastado com itens agrupados
Fonte: dados da pesquisa.
Ainda que o número de pessoas que escolheram estar afastadas de papéis de liderança
seja mais alto do que os casos mais inerciais, chama a atenção o fato de que 40% das citações
de motivo se relacionem à falta de ação volitiva ou de autodeterminação para indivíduos que,
em algum momento da vida, assumiram papéis de liderança – papel que o mainstream, como
foi apresentado na teoria, costuma relacionar a comportamentos mais caracterizados por
atitudes volitivas do que inerciais. A pergunta aqui é se essa diferença poderia se relacionar a
diferenças na personalidade entre os dois grupos de líderes inativos.
Para responder a essa pergunta, uma comparação que pode ser feita entre esses dois
grupos de líderes inativos se relaciona à existência ou não de diferenças significativas entre os
cinco domínios de personalidade, a qual pode ser feita utilizando-se as medianas dos
domínios dos dois grupos. O resultado das comparações está apresentado na Tabela 6:
Tabela 6 - Resultados das comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R para os
dois grupos
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Inercial 2,0 (Baixo) -1,0 -2,0 e 0,0 0,1031
Volitivo 3,0 (Médio)
Extroversão Inercial 3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 1,0 0,8919
Volitivo 3,0 (Médio)
Abertura Inercial 4,0 (Alto) 0,0 -1,0 e 1,0 0,6836
Volitivo 4,0 (Alto)
Amabilidade Inercial 3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 0,0 0,2976
Volitivo 3,0 (Médio)
Consciensiosidade Inercial 4,0 (Alto) 0,0 0,0 e 1,0 0,2215
Volitivo 3,0 (Médio)
Fonte: dados da pesquisa.
Para minimizar interferências, como os entrevistados (5) e (8) possuem argumentos
que os posicionam nos dois grupos, foi realizada uma releitura da entrevista para avaliar qual
I+V: Inercial
Absoluto %
II+III+IV+VI: Volitivo
Absoluto %
LÍDER INATIVO 8 40 12 60
283
seria o fator mais preponderante nos dois casos. Após essa releitura, o entrevistado (5) ficou
apenas no grupo “inercial” e o entrevistado (8) no grupo “volitivo”.
Analisando os dados, observa-se o p-valor acima de 0,05 em todos os cinco domínios,
revelando que os grupos são iguais. Assim, não se pode dizer que haja alguma diferença entre
os líderes inativos que decidiram não mais exercer papéis de liderança e aqueles que não estão
no exercício desse papel por razões circunstanciais (ou seja, não pessoais). Se existir alguma
diferença entre esses indivíduos, ela deve ser buscada em outros aspectos, diferentes da
personalidade.
B) Comparando os indivíduos que mais exerceram os papéis de presidente
Considerando que um dos critérios para seleção dos entrevistados envolvia ser ou ter
sido presidente de alguma organização de caráter associativo, para se ter melhor ideia sobre os
grupos de entrevistados, decidiu-se também registrar o número de vezes que o indivíduo
assumiu o papel de presidente em diferentes instituições.
Além disso, considerando o contraponto apresentado na teoria entre o papel de líder a
partir da escolha pelos pares e o executivo que exerce papel de liderança sobre em
organizações com estruturas bem hierarquizadas, também se entendeu apropriado levantar
esse dado a fim de realizar também essa comparação entre os dois grupos.
Para o cargo de presidente, foi registrado se ele exerceu esse papel uma vez, duas, três
ou mais vezes, considerando que o exercício do papel de presidente por três ou mais vezes
poderia indicar, para esse indivíduo, uma tendência percebida por seu grupo social que
poderia ser explorada nas análises.
No caso do papel de chefe, coordenador ou função gerencial mais alta na hierarquia, o
registro foi o seguinte:
I: Sim, atual
II: Sim, passado
III: Não
IV: Não informado
A distribuição de frequências para as duas observações, nos dois grupos, apresentada
em conjunto para facilitar a visualização, ficou como apresentado na Tabela 7.
284
Tabela 7 - Distribuição de frequências: a liderança nos papéis de presidente ou em
estruturas hierárquicas
Fonte: dados da pesquisa.
Note-se, pelo apresentado na Tabela 7, que o número total de posições hierárquicas
(somatório de I e II) é semelhante para os dois grupos, representando mais de 2/3 das
ocorrências totais: 11 de 16 casos ou 68,75% para líderes ativos; e 12 de 17 casos ou 70,58%
para os líderes inativos.
Tendo-se que o item IV apenas indica que essa informação não estava disponível – o
que significa ser possível que mais indivíduos nos dois grupos possam ter ocupado essas
posições –, o resultado total mostra que, mesmo nas organizações em que esses indivíduos
não exerceram o cargo de presidente, eles ocuparam posições de dominância. Essas posições,
como foi visto na teoria, têm o seu exercício envolvido em algum grau de influência, a qual,
por sua vez, foi associada por muitos autores ao conceito de liderança.
Em relação aos papéis de presidente em organizações associativas, quatro líderes em
atividade já foram presidentes em mais de três instituições diferentes, contra apenas um entre
os inativos. Por apresentarem a característica de terem sido escolhidos com frequência por
seus pares para posições de representação, esses indivíduos serão usados prioritariamente nas
análises posteriores, cujo objeto possa envolver essa característica.
Os quatro indivíduos que tiveram três ou mais presidências foram os de número (3),
(15), (21), (24), entre os líderes em atividade, e (34) entre os inativos. O que se encontrou nas
entrevistas sobre como assumiram esses papéis entre os líderes em atividade foi:
(3) [...] na minha vida inteira nunca participei de... sempre o pessoal quer me colocar
nos lugares. Eu nunca procurei... por exemplo, nunca fiz um trabalho “eu quero ir
pra [...]” [...] eu vim a ser diretor sem querer aquilo, quando me pediram pra ser
presidente eu até queria continuar diretor... eu tinha feito um, trabalho que eu achei
interessante [...] eu acho que queria continuar como diretor... o pessoal queria me
colocar como presidente. Então entrei para presidente relutando pra ser presidente.
Se tivesse... ninguém aceitou o osso, só tinha que ser eu [...] Não sou de oratória,
não sou político desse tipo, não faço... minha política era agente fazer esse trabalho.
(21) Quando eu entrei na faculdade [...] eu nunca tinha trabalhado... mexido com a
questão política, alguma coisa de mais monta, vamos dizer, em participações sociais
[...] Então, algumas lideranças lá que faziam o movimento me deixavam, assim, bem
impressionado pela disposição, pela disponibilidade, conteúdo sério das discussões
que eram feitas, e isso... comecei então a me envolver em movimento estudantil,
né?”
Chefia, gerência ou coordenação Número de Presidências
I II I+II III IV Total 00 01 02 03 ou mais
LÍDER ATIVO 1 10 11 2 3 16 1 4 7 4
LÍDER INATIVO 4 8 12 3 2 17 3 7 6 1
285
(15) Talvez os papéis que você exerce no decorrer da vida acabam te colocando na
posição de liderança, né? As pessoas esperam que você tenha, é... atitudes por elas,
assim, condutas, definições que muito mais ligadas ao cargo que você ocupa... pelo
menos no meu caso... do que mesmo por uma ... uma vontade de exercer talvez a... a
liderança. Isto é, acho que tem pessoas que são talhadas para isso, querem isso,
procuram isso, né? E... e se alimentam disso. Outras, como no meu caso, acho que a
liderança veio de maneira indireta, parece que você está disponível para exercer
esses papéis e, quando exercidos, procura exercê-los da melhor maneira com
aqueles valores [...] os valores maiores que têm me orientado a atuar como líder [...]
assim eu... é... acho... acho que muitas das chefias e lideranças que eu exerci eu te
diria que caíram no meu colo, eu não vinha deliberadamente procurando fazer isso.
(24) Então, até o segundo grau eu não... eu estudei demais, né? [...] o primeiro dia
que entrei na (faculdade) pensei... pensei em me candidatar [...] então no primeiro
ano ganhei a associação [...]”.
Já para o líder inativo:
(34) Eu não fui membro de DA, nem de DCE. Era sempre derrotado nas eleições
[...] fui assumir cargo de diretoria depois de formado [...] fui presidente da
Associação Nacional de [...], participei de três gestões do sindicato [...] aí assumi
rapidamente cargos de gestão dentro do (partido político).
O que se encontra em comum entre ativos e inativos é o fato de nenhum deles ter
exercido qualquer papel que se pode caracterizar como sendo de liderança até chegar à
universidade – no caso dos indivíduos (3) e (15), até a vida profissional propriamente dita.
A princípio, esse achado não pode ser considerado congruente com uma característica
que fosse inata ao indivíduo. Mas não afasta a possibilidade de que ocorrências na história do
indivíduo pudessem atuar como algo a ser desenvolvido no futuro – na fase profissional.
Se for analisado o relato desses indivíduos quanto ao seu histórico de liderança, o que
se observa é que todos começaram ou no movimento estudantil na universidade – indivíduos
(21), (24) e (34) – ou no início de sua vida profissional – o entrevistado (3) – ou na vida
profissional mais recente, relacionado às atividades que exerce atualmente – o (15).
Ou seja, todos os indivíduos que foram ou são escolhidos pelo seu grupo social para
representarem o maior número de papéis de liderança não referem um histórico pessoal de
liderança antes da vida adulta. Esses resultados, apesar de não negarem, não são consistentes
com a hipótese dos traços de personalidade como fator, se não determinante, pelo menos
influenciador para os indivíduos emergirem como liderança.
Interpretando serem esses os indivíduos os que mais foram mantidos nos papéis de
liderança, poderia ser esperado que apresentassem características facilitadoras para os dois
aspectos – a emergência e a efetividade. Deve-se então comparar os resultados dos domínios
286
de personalidade entre si e com o que a revisão de Judge et al. (2002) atribui como
características de personalidade esperadas para os líderes.
Os resultados dos cinco domínios para os cinco indivíduos estão expressos na Tabela
8:
Tabela 8 - Os cinco domínios do NEO-PI-R: os cinco líderes com mais
presidências e a revisão de Judge et al. (2002)
Domínio* Líder
(3) (15) (21) (24) (34) Judge et al. (2002)
Neuroticismo (N) 3 3 2 2 2 1 – 2
Extroversão (E) 3 3 4 3 3 4 – 5
Abertura (O) 3 2 3 2 4 4 – 5
Amabilidade (A) 4 3 4 3 4 ?
Consciensiosidade (C) 3 3 4 3 4 4 – 5
* Valores, em cada domínio, correspondem a: (1) muito baixo; (2) baixo; (3) médio; (4) alto; (5)
muito alto
Fonte: dados da pesquisa.
Como se pode notar, os resultados mais próximos do previsto pela revisão de Judge et
al. (2002) contemplaram um líder em atividade (21) e o líder inativo (34), ou seja, nada que se
possa inferir como uma expectativa baseada na teoria. E, novamente, houve equilíbrio entre
os grupos de líderes ativos e inativos.
Para comparação, buscaram-se os mesmos resultados para os líderes que nunca
ocuparam posição de presidência, o que inclui o entrevistado (25), entre os líderes ativos, e os
(27), (28) e (29) entre os inativos. Os resultados são os apresentados na Tabela 9:
Tabela 9 - Comparação dos cinco domínios do NEO-PI-R para os cinco líderes
que nunca assumiram presidências
Domínio* Líder
(25) (27) (28) (29) Judge et al. (2002)
Neuroticismo (N) 3 3 1 3 1 – 2
Extroversão (E) 4 3 3 5 4 – 5
Abertura (O) 3 3 4 4 4 – 5
Amabilidade (A) 3 3 4 4 ?
Consciensiosidade (C) 3 4 4 1 4 – 5
* Valores, em cada domínio, correspondem a: (1) muito baixo; (2) baixo; (3) médio; (4) alto; (5)
muito alto.
Fonte: dados da pesquisa.
Nesse caso, o resultado que mais se aproximou do que foi apresentado na literatura
como perfil de líder foi o do entrevistado (28), líder inativo (que nunca exerceu uma
presidência). Deve-se verificar, também, que esse resultado está mais próximo dos
287
apresentados pela revisão de Judge et al. (2002), do que o dos dois entrevistados que tiveram
mais posições de presidência.
Na caracterização do que é liderança, o entrevistado (28) o faz sob uma ótica de
atividade de trabalho, e não de atividade política ou de representação de grupo – o que, talvez,
possa explicar o fato de nunca ter exercido uma presidência: (28) “é... uma postura, um
resultado, então essa pessoa, ela pode ser seguida, ela pode ser um exemplo, sabe? Mas isso
tudo eu vejo, tudo com, por baixo, uma linhazinha que chama trabalho, ou produção, seja o
nome mais moderno que se dê hoje em dia...”.
Essa fala está bem congruente com o que se espera de um indivíduo com alta
“conscienciosidade” – como foi o caso em questão.
O próximo passo é comparar os dois grupos representados por indivíduos que
exerceram muitas presidências e por aqueles que nunca as exerceram. As comparações entre
os cinco domínios de personalidade para os dois grupos estão apresentadas na Tabela 10.
Tabela 10 - Comparação dos cinco domínios NEO-PI-R: os que mais assumiram e
que nunca assumiram presidências
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Mais
Presidências
2,0 (Baixo) 0,0 -0,999 e 2,0 0,7133
Nenhuma
Presidência
3,0 (Médio)
Extroversão Mais
Presidências
3,0 (Médio) 0,0 -2,0 e 1,0 0,4624
Nenhuma
Presidência
3,5 (Médio)
Abertura Mais
Presidências
3,0 (Médio) -1,0 -2,0 e 1,0 0,2703
Nenhuma
Presidência
3,5 (Médio)
Amabilidade Mais
Presidências
4,0 (Alto) 0,0 -1,0 e 1,0 0,9025
Nenhuma
Presidência
3,5 (Médio)
Consciensiosidade Mais
Presidências
3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 3,0 1,0
Nenhuma
Presidência
3,5 (Médio)
Fonte: dados da pesquisa.
As medianas, nessa tabela, estão muito próximas do resultado das medianas
apresentadas para o grupo inteiro, não havendo diferenças dignas de nota entre os domínios.
288
Mais importante é a constatação de que todos os p-valor estão acima de 0,05, não se
rejeitando a hipótese nula de que os grupos são iguais.
Portanto, considerando que: a presidência foi a expressão de uma posição de mais
prestígio entre os pares; não houve diferenças significativas entre os resultados das Tabelas 8
e 9, ou seja, não existem diferenças consideráveis entre as personalidades dos líderes que
foram escolhidos para o maior número de presidências, dentro do grupo estudado, e aqueles
que nunca assumiram presidências; e que não existiram diferenças entre os resultados dos dois
grupos (os que mais exerceram e os que menos exerceram presidências) e os dos grupos de
líderes ativos e inativos, pode-se dizer que, contrariando a expectativa da literatura do
maisntream, não foram detectadas evidências de que as características da personalidade
possam ter se constituído em um fator diferenciador entre os indivíduos que mais exerceram
ou que nunca exerceram o papel de presidente de organizações de caráter associativo, dentro
desse grupo profissional.
C) Caracterizando os indivíduos quanto ao tipo de liderança exercida
Outro aspecto que se buscou caracterizar foi o tipo de liderança associativa que o
entrevistado ou exercia ou que já havia exercido. Essa não é uma classificação que foi
encontrada dessa forma na literatura, mas que foi fruto da interpretação das descrições que
foram ocorrendo espontaneamente durante os relatos e que se aplicou bem ao conjunto de
indivíduos que foram objeto de investigação desta pesquisa.
A finalidade aqui era, ao se estabelecer algumas comparações, fazê-lo procurando
comparar objetos semelhantes. Por exemplo, quando se compararam aspectos que envolveram
líderes cuja trajetória abrangeu apenas lideranças de ordem político-partidária com indivíduos
cuja liderança exerceu apenas atividades profissionais – como a liderança de organizações
associativas de objetivo econômico – ou com os que se destacaram apenas em atividades
sociais, podem ser descritas diferenças que devem ser consideradas nas discussões.
Para atingir esse objetivo, as lideranças foram subdivididas nos grupos profissional,
político-partidária e social, as quais foram caracterizadas da seguinte forma:
a) Liderança profissional: encontrada nos grupos associativos que possuem como
objetivo comum os interesses próprios de uma atividade profissional. Nesse grupo
estão incluídas as associações sindicais, outras associações voltadas para objetivos
profissionais e as associações cooperativas, desde que tenham objetivos econômicos
voltados para um determinado ramo profissional. Por objetivos econômicos ficam
entendidas todas as atividades que envolvam trabalho, produção, comércio e
289
intermediação financeira – desde que próprias de um determinado setor profissional,
para os efeitos desta pesquisa;
b) liderança político-partidária: considerada para os efeitos desta pesquisa a liderança
cuja expressão se faça por meio de processos político-partidários, tanto para assumir
cargos eletivos no Executivo e no Legislativo em qualquer nível – municipal, estadual
ou federal – como na intermediação de interesses de caráter partidário, que se
expressem dentro de determinado setor profissional; também foram considerados os
cargos não eletivos, mas de indicação política, nos ministérios, secretarias de governo
ou demais órgãos de apoio ao Executivo e Legislativo;
c) liderança social: está expressa na organização, condução e demais cuidados
necessários ao bom andamento de todas as atividades demandadas para a organização
de grupos com objetivos sociais. Essas atividades podem incluir, entre outras,
comemorações coletivas como festas de formaturas, comemorações oficiais de turma e
apresentações de caráter cultural (teatros, shows e similares), desde que haja
reconhecimento da liderança exercida por um ou mais indivíduos em relação a todo o
seu grupo de referência.
Definido o tipo genérico de liderança que está sendo exercido, o indivíduo foi
classificado como:
I: ativo no primeiro plano - se presidente ou na posição mais alta de uma dessas associações;
II: ativo no segundo plano - se diretor ou exerce liderança onde haja(m) outra(s) liderança(s);
III: inativo - se já foi uma liderança caracterizada nos itens I e II, mas não o é no momento;
IV: não se aplica - ou não é liderança do tipo que está sendo classificado.
A distribuição de frequências relacionada a essa caracterização ficou como
apresentado na Tabela 11.
Tabela 11 - Distribuição de frequência dos tipos de liderança para os dois grupos
TIPO DE LIDERANÇA PROFIS-
SIONAL
POLÍTICO-
PARTIDÁRIA
SOCIAL
I II III IV I II III IV I II III IV
LÍDER EM ATIVIDADE 14 2 0 0 0 4 2 10 0 0 0 16
LÍDER INATIVO 2 0 13 1 0 0 5 11 3 0 2 12
Fonte: dados da pesquisa.
290
As diferenças observadas no primeiro grupo – o profissional – não levantam
questionamentos, já que estão na base da classificação dos grupos. O que merece alguma
atenção é a diferença apurada em relação à atividade político-partidária: apesar de
aproximadamente 2/3 de ambos os grupos nunca terem se envolvido com liderança nesse tipo
de atividade, entre os entrevistados que não estavam em papéis de liderança nenhum esteve
envolvido com qualquer atividade desse tipo no momento, enquanto 25% dos líderes em
atividade (04 de 16) mantinham algum contato com liderança político-partidária.
Não se pode dizer que o quadro se inverteu quando se tratou de liderança em
atividades de caráter social, pois apenas três de 16 indivíduos que não estavam em papéis de
liderança praticavam esse tipo de atividade. Mas não deixa de chamar a atenção o fato de que
nenhum dos líderes em atividade exercia liderança que se pudesse caracterizar como social.
Isoladamente, não há o que considerar sobre esse achado. É preciso caracterizar algo
do perfil desses quatro indivíduos, líderes que não estão em atividade, para tentar encontrar
algo em comum ou muito destoante em relação aos outros que possa ser considerado
relevante para uma explicação.
Os entrevistados em questão são os de número (7), (13), (28) e (29), cujas trajetórias
podes ser caracterizadas do seguinte modo:
(7) Teve liderança social na adolescência, mas não teve mais esse tipo de atividade
desde então:
Sempre fui de diretoria de grêmio estudantil, sempre organizava campeonatos de
futebol, comandava fanfarras, fazia é... comandava festas, shows – eu que
programava os shows todos: dia dos pais, dia das mães [...] eu organizei negócio de
teatro sem o menor conhecimento, mas só por intuição, só por gostar desse negócio.
(13) Identifica esse tipo de liderança desde a infância:
A infância minha, sempre fui líder de muita coisa: vamos fazer uma excursão... esse
negócio de tomar iniciativa... ah, meu tio tem uma empresa de ônibus, deixa eu
olhar com ele; vamos fazer um jogo de futebol: oh, tem um amigo meu, amigo do
meu pai que tem uma fábrica de camisa, vamos lá comprar com ele [...] não político.
Eu nunca fui de causa muito politizada, não.
Esse entrevistado (13) já passou por várias posições de domínio em organizações,
entre diretorias e chefias, e pela presidência de uma associação profissional. Hoje abandonou
todas essas atividades, com certo grau de desilusão com o grupo – como foi visto na
exemplificação do item V da Tabela 1 –, mas mantém a liderança de atividades sociais em sua
cidade, próximo de Belo Horizonte:
291
viramos uma liderança na cidade em termos culturais, promoções recreativas,
lúdicas, festivas, entendeu? [...] dos meus 14 até os meus 40 anos... pra não falar que
até hoje, né – já tô quase com 60 – fazendo coisa pra comunidade.
O (28) tem sua atividade de liderança atual caracterizada como social:
Dá muito trabalho, organizar, montar, dá muito trabalho, mas existe uma
gratificação [...] festa de turma, vai dar um enorme trabalho, inclusive umas coisas
desgastantes, de contato com as pessoas, né? Mas todas as vezes que a gente fez, a
gratificação no final, ela é enorme, entende? E a gratificação ela... ela extrapola é...
esses dois últimos anos foram muito massageadores para o meu Ego, tá?[...] Me deu
aquela placa e flores, e me chamaram então isso... isso é excelente pra isso.
O (29) está inativo como liderança profissional e partidária – as quais só foram
assumidas durante a sua vida profissional – mas observa tendência à liderança do tipo social
desde a infância. Esse entrevistado se define, no momento, da seguinte forma:
Eu acho que... não sei se seria liderança no certo, mas uma capacidade de
entusiasmar o outro, de motivar o outro, isso aí um pouquinho tem sim. Eu tenho o
que leva esse outro a cometer atos irracionais em nome da causa, por exemplo, em
nome de plantar o arroz vermelho que está em extinção, e não de lutar contra a
sociedade de consumo.
O que a análise dos dois grupos mostra, então, sobre esse aspecto, é que por alguma
razão, no grupo profissional investigado, indivíduos que se mantiveram em atividade de
liderança profissional e político-partidária não puderam ser caracterizados como lideranças
sociais, enquanto as lideranças assim caracterizadas ou nunca exercerem papéis como outros
tipos de liderança ou então, após abandonarem os papéis de liderança partidária ou
profissional, mantiveram-se no exercício de papéis de liderança que podem ser consideradas
sociais.
Não foi encontrada na literatura consultada alguma referência que pudesse contribuir
para a explicar essas diferenças. Torna-se necessário reunir mais informações nesta pesquisa
ou realizar algum outro tipo de investigação para que se possa tentar encontrar alguma
explicação fundamentada para esse achado.
Passa-se, então, às comparações dos grupos quanto aos aspectos que são os
caracterizadores do conceito de liderança na percepção dos entrevistados.
292
5.2 O conceito de liderança
Aqui se repetiu o que já havia sido comprovado na teoria com Stogdill (1974) e Bennis
e Nanus (1988): não só não houve consenso para essa resposta, como a tentativa de definição
tendeu a apresentar resultado final próximo do número de entrevistados.
Para a criação desse grupo de análise, foi necessário cuidado adicional, pois a tentativa
de reunir várias respostas em um mesmo item trazia o risco de descaracterizar uma resposta
que poderia representar uma visão muito específica da liderança – a qual, por isso mesmo, não
poderia ser desconsiderada.
Assim, quando um item reuniu respostas diferentes, procurou-se manter nele as
características mais significativas de diferenciação de cada resposta, ainda que compreendidas
em uma ideia geral.
Caracterizados os itens, foi possível reuni-los em grupos que compartilhavam uma ou
mais características – o que pode vir a ser útil no momento da análise. E, após um primeiro
esforço de interpretação mais genérico das respostas, já se puderam identificar duas noções
que, de algum modo, estavam presentes na maioria das definições:
a) A de que a liderança envolve alguma forma de influência de um indivíduo sobre
outro(s) indivíduo(s) ou grupo(s) e que é congruente com as teorias do mainstream;
b) a de que o contexto no qual ocorrem as relações de liderança pode ser identificado
com aquele no qual ocorrem as relações de poder – aspecto também explorado na
teoria, nesse caso relacionado com os autores de orientação mais crítica.
Para facilitar a identificação de entrevistas a serem visitadas na caracterização do
conceito, as respostas foram organizadas em grupos, com sentido semelhante. São eles:
A) Respostas ao questionamento direto sobre o que é o líder e o que é a liderança
Considerando-se as referências ao questionamento direto – que, de modo geral,
acontecia no terço final da entrevista, quando se solicitava ao entrevistado buscar caracterizar,
“após todas as suas considerações, o que significam liderança e ser líder?”, pode-se resumir o
resultado obtido pelas respostas da seguinte forma:
Sobre a liderança, foram apresentadas 11 características gerais. Muitas delas iniciam
com o termo capacidade. Esse termo é fruto de interpretação do autor da tese e resume
respostas do tipo “o sujeito para ser líder tem que...” ou “o sujeito quando é líder mesmo
ele...”, apenas para citar dois exemplos.
293
Assim entendida, essa categoria reuniu os seguintes itens:
I: capacidade de sintetizar o sentimento de um grupo e a partir daí propor ações
que mudem ou que ajudem a construir algo;
II: capacidade de ouvir, relação empática (entender por que o outro pensa assim);
III: aquele que se preocupa, que quer cuidar, ou quer servir, aos outros;
IV: capacidade de agregar pessoas em uma ideia (que represente um objetivo);
V: aquele que quer mudar uma realidade;
VI: fazer, executar;
VII: transmitir confiança;
VIII: capacidade de formar equipes e organizar o trabalho dos grupos;
IX: capacidade de influenciar;
X: capacidade de enxergar à frente de seu tempo;
XI: capacidade de diminuir incertezas.
A distribuição de frequências para esses itens encontra-se na Tabela 12:
Tabela 12 - Distribuição de frequência das características da liderança para os dois
grupos
I II III IV V VI VII VIII IX X XI
LÍDER EM ATIVIDADE 4 6 3 4 0 5 2 2 0 0 1
LÍDER INATIVO 4 2 0 4 5 3 5 1 3 1 1
Fonte: dados da pesquisa.
Existem três aspectos na comparação das distribuições de frequência na Tabela 12 que
devem ser mais bem explorados: o que diz respeito ao contraponto entre os itens II e VII; o
que diz respeito ao contraponto entre os itens III e IX; e o que se refere à distorção de
distribuição entre os dois grupos, observada no item V.
Em relação aos dois primeiros contrapontos, cada grupo de dois itens se refere a um
aspecto da relação de liderança – que será apresentado na sequência –, mas invertendo a ótica
quando se comparam líderes ativos com inativos (TAB. 13).
Tabela 13 - Comparação entre as frequências dos
itens II eVII, e III e IX da Tabela 12
II VII III IX
LÍDER ATIVO 6 2 3 0
LÍDER INATIVO 2 5 0 3
Fonte: dados da pesquisa.
294
O que foi chamado “inverter a ótica” pode ser explicitado da seguinte forma:
(i) Pode-se considerar que os itens II e VII possuem em comum entre si, de modo bem
genérico, o que se poderia chamar “relação empática entre líder e liderado”. A diferença entre
os dois reside no fato de que no item II (capacidade de ouvir, relação empática com o outro –
entender porque ele pensa assim) o ato de buscar ouvir, de se colocar no lugar do outro ou
buscar entender por que o outro pensa de determinada forma faz com que a relação seja
ativamente estabelecida do líder para o liderado. Um exemplo seria o do líder em atividade
(9) “liderar é ouvir... e... depois executar alguma coisa diante do que você ouviu”.
Um contraponto no próprio item II pode ser identificado pela fala do líder inativo (5):
“saber o que as pessoas querem ouvir”. Aqui não há mais a conotação de ouvir primeiro e agir
depois, mas sim a de agir sabendo que tipo de discurso usar para atingir meus objetivos, mais
de acordo com o que foi apresentado na teoria, na seção 2.5.3 (E).
Já no item VII (transmitir confiança) a relação empática é mais passiva, sem muito
controle por parte do líder, sendo algo que é mais percebido pelo liderado do que
desencadeado ativamente pelo líder. O exemplo está na fala do líder inativo (23): “o líder é
um indivíduo que ele... ele não precisa evocar nada pra que ele tenha uma capacidade de ter
confiabilidade” ou do líder ativo (12) “o líder eu acho que é aquele sujeito que pouco... meia
hora de conversa e você acredita no cara”.
O que chama a atenção quando se comparam esses dois itens da tabela 12 é a inversão
de ocorrências.
(ii) Pode-se considerar que os itens III e IX também apresentam um contraponto: no
item III (aquele que se preocupa, que quer cuidar ou quer servir aos outros) tem-se um
indivíduo cuja atenção está voltada para os interesses do liderado, enquanto no item IX
(capacidade de influenciar) o líder tem a sua atenção voltada para os seus interesses, os quais,
para serem realizados, dependem da aquiescência do outro (daí ter que influenciá-lo).
Esses dois contrapontos mostram a reunião de alguns itens em conjuntos que possuem
algum denominador comum. Uma possibilidade para essa organização é reunir características
que envolvem:
a) atenção voltada para o liderado como indivíduo – representadas pelos itens II, III;
b) organização da atividade coletiva – representadas pelos itens I, IV, VIII;
c) motivação interna do líder – representada pelos itens V, VI, VII, IX, X, XI.
Se os três conjuntos forem comparados, tem-se o resultado da Tabela 14:
295
Tabela 14 - Organização dos itens das tabelas 15 e 16 por conjuntos com características
próximas
LÍDER
Atenção com
o liderado
Atenção na
organização da
atividade coletiva
Motivação interna
do líder
ITENS II, III I, IV, VIII V, VI, VII, IX, X, XI
ATIVO 09 10 08
INATIVO 02 09 18
Fonte: dados da pesquisa.
Ao comparar os dois grupos de líderes a partir dos conjuntos de itens, constata-se que:
a) Há significativa discrepância no conjunto que reúne os itens II e III, os quais
caracterizam o conjunto (a), com maior concentração envolvendo os líderes em
atividade;
b) há concentração de respostas envolvendo os itens V, VII e IX – os quais caracterizam
o conjunto (c), uma motivação interna do líder – entre os entrevistados que não estão
mais no papel de líderes. Nesse conjunto chamam a atenção os itens V, IX e X, os
quais não apresentaram alguma ocorrência entre os líderes em atividade.
Têm-se aqui evidências, a partir dessas observações, para considerar-se que houve
tendência de indivíduos que veem a liderança caracterizada por comportamentos do líder
voltados para a atenção com o outro a permanecerem na liderança de organizações
associativas. E líderes que se envolvem com a liderança em atendimento a motivações
internas, por alguma razão, abandonam mais frequentemente esse papel social.
Considerando essa diferença entre os dois grupos, procede-se à comparação entre os
domínios da personalidade dos indivíduos que compõem os dois grupos de líderes. Mas como
alguns entrevistados apresentaram definição que envolveu mais de uma categoria, para formar
os grupos de análise eles foram mantidos no grupo que envolveu mais alto número de
características por eles citadas. Como exemplo, o entrevistado (3) forneceu uma definição que
poderia ser enquadrada nas categorias 2, 3 e 6. Para a divisão ele ficou no grupo de “atenção
com o liderado”, o qual reúne as categorias 2 e 3; já o entrevistado (6) forneceu uma
definição que poderia ser desdobrada nas categorias 2, 5 e 9. Na divisão, ficou no grupo
“motivação interna do líder”, que reúne as categorias 5 e 9 (entre outras).
Os dois grupos ficaram, assim, formados pelos seguintes entrevistados (TAB. 15):
a) Atenção com o liderado: (2), (3), (5), (6), (9), (11), (18), (21), (31), (32);
b) motivação interna do líder: (6), (8), (9), (10), (12), (13), (16), (20), (21), (22), (23),
(25), (27), (28), (29), (33), e (34).
296
Tabela 15 - Resultados das comparações dos cinco domínios do
NEO-PI-R para os dois grupos
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Atenção
c/liderado
2,5 (Baixo) 0,0 0,0001; 1,0001 0,5468
Motivação
interna
2,0 (Baixo)
Extroversão Atenção
c/liderado
3,5 (Médio) 0,0 -1,0; 0,0 0,8408
Motivação
interna
3,0 (Médio)
Abertura Atenção
c/liderado
3,0 (Médio) 0,0 -1,0; 0,0 0,4364
Motivação
interna
4,0 (Alto)
Amabilidade Atenção
c/liderado
4,0 (Alto) 0,0 0,0; 1,0 0,6695
Motivação
interna
3,0 (Médio)
Consciensiosidade Atenção
c/liderado
3,0 (Médio) 0,0 -1,0; 0,0 0,4666
Motivação
interna
4,0 (Alto)
Fonte: dados da pesquisa.
Como se pode perceber pelo resultado, também aqui todos os p-valor estão acima de
0,05, não se rejeitando a hipótese nula de que os dois grupos são iguais.
Uma outra forma de aglutinar é reunir os itens que indicam visões da liderança mais
relacionadas ao exercício de poder – e, portanto, com o que Bryman (2009) chamou de
“abordagens tradicionais” – e itens que identificaram uma visão mais próxima do que Bryman
(2009) chamou de “nova liderança”, envolvendo formas mais próximas da liderança
transformacional e demais modelos nos quais o liderado vai exercer um papel preponderante.
Tendo-se esse critério, ficaria da seguinte forma a aglutinação dos itens:
a) Tradicional (o foco está na vontade do líder): IV, V, VI, IX, X, XI
b) Nova liderança (o foco está mais nos interesses do liderado): I, II, III, VII, VIII
O resultado dessa aglutinação pode ser confirmado na Tabela 16:
297
Tabela 16 - Organização dos itens da Tabela 12 por conjuntos
de tipo de liderança
LÍDER Tradicional
Nova liderança
ITENS IV, V, VI, IX, X, XI I, II, III, VII, VIII
ATIVO 10 17
INATIVO 17 12
Fonte: dados da pesquisa.
Registrou-se aqui a tendência à inversão, com mais líderes em atividade com perfil
de “nova liderança” e mais inativos no perfil da liderança “tradicional”.
Essa inversão permite questionar, em organizações de caráter associativo, nas quais o
líder é escolhido por voto, se a percepção de um comportamento do líder mais voltado para o
atendimento às necessidades do grupo (e não de seus próprios interesses) poderia constituir
um fator de facilitação para a manutenção do indivíduo e posições de liderança. Não há
elementos obtidos na pesquisa até esse ponto para responder a esse questionamento, devendo
esse aspecto ser objeto para abordagem posterior.
B) Características observadas no comportamento do líder
Sobre o ser líder, foram apresentadas, no conjunto, em torno de 23 características –
após se ter buscado traduzir algumas falas em um tipo ou grupo de características que
pudessem reunir referências realizadas por pessoas diferentes. São as seguintes:
I: buscar convencer ou saber comunicar aos liderados suas ideias, convicções ou crenças;
II: atribuir aos liderados as boas ideias do líder, para satisfazê-los ou motivá-los;
III: elogiar o trabalho dos liderados para estimulá-los a realizar (algo de interesse comum);
IV: propor, sem impor;
V: ter disposição, interesse ou capacidade para ouvir as pessoas;
VI: discernimento – para saber identificar o que é melhor ou pior para a situação;
VII: saber o que as pessoas querem ouvir e aquilo que as faz irem para onde se deseja;
VIII: é uma pessoa que não age por impulso – no sentido de ser racional, ponderada,
reflexiva;
IX: considera a possibilidade de estar errado e ter a capacidade de admitir erros;
X: tem tendência a identificar oportunidades (e necessidades) de inovação e mudança;
XI: tem das coisas uma visão ampla ou clara ou à frente de seu tempo ou ainda de ter a
capacidade de fazer uma síntese da realidade;
XII: transmitir confiança – ter facilidade para criar empatia;
298
XIII: falar o que pensa, mesmo que isso desagrade a alguns;
XIV: possuir senso de oportunidade aguçado;
XV: contornar conflitos;
XVI: formar equipes e organizar o trabalho dos indivíduos;
XVII: conduzir o grupo, podendo utilizar o melhor de cada um;
XVIII: presteza para participar de movimentos que envolvem os seus grupos sociais;
XIX: abnegação ou possuir “espírito de sacrifício”;
XX: colocar-se tanto nos sentidos de se colocar à disposição, como no de se posicionar;
XXI: independência: tanto financeira como pessoal (no sentido de convicções e opiniões);
XXII: psiquicamente não deve ser uma pessoa considerada como normal;
XXIII: dar sentido, diminuindo incertezas.
A distribuição de frequências e os itens de I a XII estão apresentados na Tabela 17:
Tabela 17 - Distribuição de frequência das características dos líderes citadas pelos dois
grupos – Itens I a XII
LÍDER I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII
ATIVO 2 2 1 2 5 0 0 1 0 2 2 5
INATIVO 8 0 0 0 5 0 1 1 1 2 8 5
Fonte: dados da pesquisa.
Os itens de XIII a XXIII estão demonstrados na Tabela 18:
Tabela 18 - Distribuição de frequência das características dos líderes citadas pelos dois
grupos: itens XIII a XXIII
XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX XXI XXII XXIII n.c.
ATIVO 1 2 0 2 2 1 1 2 3 0 1 0
INATIVO 0 0 1 1 2 1 2 2 1 1 0 1
Fonte: dados da pesquisa.
n.c- Não pode citar uma característica (não sabe, ou não quis, citar).
Houve certa homogeneidade nas percepções, exceto em relação aos itens I (buscar
convencer o liderado de suas convicções) e XI (ter das coisas uma visão ampla ou clara ou à
frente de seu tempo ou, ainda, ter a capacidade de fazer uma síntese da realidade), para os
quais há franca concentração entre os entrevistados que não estão mais no papel de líder.
Pode-se tentar fazer aqui o mesmo exercício feito para a Tabela 14, reunindo os itens
em conjuntos de:
299
a) Atenção voltada para o liderado como indivíduo – representada pelos itens I, II, III,
IV,V, VII, XII e XIX
b) organização da atividade coletiva – representada pelos itens VI, XVI, XVII e XXIII;
c) motivação interna do líder – representada pelos itens VIII, IX, X, XIII, XIV, XI, XV,
XVIII, XX, XXI e XXII.
Como pode ser constatado, os itens I e XI ficaram em grupos diferentes.
O resultado final da associação de itens poderia ser como está na Tabela 19:
Tabela 19 - Organização dos itens das tabelas 17 e 18 por conjuntos
com características próximas
LÍDER
Atenção no
liderado
Atenção na
organização da
atividade
coletiva
Motivação interna
do líder
ITENS I, II, III, IV, V,
VII, XII, XIX
VI, XVI, XVII,
XXIII
VIII, IX, X, XIII, XIV, XI,
XV, XVIII, X, XXI, XXII
ATIVO 18 5 14
INATIVO 21 3 17
Fonte: dados da pesquisa.
Nesse caso, já não se observam distorções significativas que poderiam indicar uma
diferença entre grupos ou indivíduos.
O item I (buscar convencer ou saber comunicar aos liderados suas ideias, convicções
ou crenças) poderia ser incluído no que foi chamado de “atenção no liderado”. Se esse item
for considerado com o conjunto de itens que expressam uma característica semelhante, ele
fica diluído, podendo-se considerar que tem uma expressão igual para os dois grupos.
Também o item XI (ter das coisas uma visão ampla ou clara ou à frente de seu tempo
ou, ainda, ter a capacidade de fazer uma síntese da realidade) foi reunido com outros que
expressassem tendência semelhante.
Reunidos dessa forma, não é mais possível perceber uma distorção que mereça ser
aprofundada a partir das entrevistas, apresentando os dois grupos, novamente, certa
homogeneidade na apresentação das definições sobre a liderança.
Uma outra forma de expressar a sua percepção sobre a liderança, com potencial para
revelar contradições ou distorções, seria buscar dizer o que ela não é. Nesse caso, o que foi
apresentando pelos entrevistados foram as seguintes características:
300
I: dificuldade de escutar o que outro tem para dizer;
II: o sujeito que manda ou aquele que precisa demonstrar força ou que é autoritário;
III: o contrário da definição anterior sobre o que a liderança é;
IV: o sujeito que pensa em si em primeiro lugar: o líder deve considerar primeiro o coletivo;
V: não sabe, não conseguiu ou não quis se expressar sob esse aspecto;
VI: o chefe, entendido como indivíduo que está em posição hierarquicamente superior.
A diferença entre os itens II e VI reside no fato de que, em II, a ação de mando pode
ser observada em qualquer grupo social – como um grupo efêmero, formado para resolver
uma questão específica – e relaciona-se ao comportamento do indivíduo no grupo, enquanto
em VI ela está identificada como alguém posicionado na estrutura, exercendo um cargo
previsto na norma, independentemente do seu comportamento nessa posição.
Sob esse aspecto, a distribuição de frequências pode ser vista na Tabela 20.
Tabela 20 -Distribuição de frequências: o que a liderança não é
I II III IV V VI
LÍDER EM ATIVIDADE 1 6 5 7 1 0
LÍDER INATIVO 0 5 4 6 5 1
Fonte: dados da pesquisa.
A distorção detectada nessa Tabela está assentada em um item de menos relevância –
o item V: não sabe, não conseguiu ou não quis se expressar sobre esse aspecto.
Nos demais itens – os que expressam alguma visão definida sobre a questão – os
grupos são basicamente semelhantes.
Quanto a manifestar dúvida, quando da explicitação do conceito, a divisão dos itens
expressa abaixo, resultou na distribuição de frequências apresentada na Tabela 21:
I: sim, verbaliza a dúvida;
II: não, afirma com certeza;
III: afirma, mas a dúvida é perceptível pela confusão durante a fala.
Tabela 21 - Distribuição de frequências:
dúvidas ao conceituar a liderança
Fonte: dados da pesquisa.
I II III I+III TOTAL
LÍDER EM ATIVIDADE 4 5 7 11 16
LÍDER INATIVO 5 10 2 7 17
301
Quando se somam os itens I e III (relacionados à dúvida sobre o conceito), apura-se
uma pequena inversão. O que se percebe, como tendência, é que indivíduos que exercem a
liderança tiveram mais dúvidas sobre o que é isso do que aqueles que já a exerceram, mas que
estão inativos: somente cinco entre os 16 afirmaram com certeza o seu conceito de liderança.
Entre os que atualmente não estão no exercício deste papel, o dobro de indivíduos apresentou
um conceito sobre liderança que para ele estava claro: 10 dos 17 entrevistados.
Antes de buscar explicação para esse achado, analisa-se um outro aspecto investigado
e a ele relacionado, que foi o referente à ideia do entrevistado, relacionada à diferenciação
entre a liderança e a gestão.
As respostas foram organizadas basicamente em três grupos:
I: verbaliza a confusão: o líder o é porque é parte da estrutura – com funções de gestão;
II: verbaliza a diferenciação: liderar é uma coisa diferente de fazer gestão numa
organização;
III: líder é o indivíduo, independentemente de onde esteja.
Alguns exemplos dos itens, obtidos a partir das falas dos entrevistados:
Item I: (14) Eu tenho muita dúvida sobre o conceito de líder, né? Então, é... até por
uma falta de... uma interpretação mais sólida sobre a conceituação... eu tenho muita
dúvida. Na minha vivência em termos de... ou melhor, a convivência com líderes,
né? [...] eu comecei a tomar é... a tomar um contato é... mais próximo com essas
questões de liderança é... em função de um processo de desenvolvimento estrutural
da (empresa). Até então eu não tinha tido um contato com essa questão de gestão,
essa questão de líder, né?
(10) E essa dificuldade de coordenar, a gente colocava muito na situação... sem
preparo isso aí me levou... me obrigou a procurar formas de atuar de forma mais
adequada nisso, então, né... com isso eu fui procurar uma especialidade, procurar
cursos no mercado de liderança [...] tive a necessidade de buscar essas habilidades.
Item II: (5) Cargo... cargos que... que tem liderança... não é a mesma coisa. Não é de
se esperar que todo mundo que está nos cargos tenha capacidade de liderança, né?
(12) [...] é... é eu não sei falar como é que certas pessoas chegaram a ocupar
determinados cargos, porque o sujeito não representa nada, e... e principalmente tem
muito nego que... que pra ser líder ou pra aparecer como tal, ele tem que demonstrar
força, né? E ao passo que a liderança boa mesmo não precisa de força. Você vai
atrás do sujeito sem ele ter essa força, né... é... física ou sei lá que nome dá pra isso
[...] mas líder, líder, no nosso meio não é muito não... na minha cabeça não é muito
não [...] O que aconteceu é o tal do vácuo, entra no vácuo e vai embora51
.
51
Vácuo – o que o entrevistado está se referindo com esse termo é a um conceito que já foi tema de discussão
sobre liderança, no passado (da qual participou o pesquisador), envolvendo alguns dos entrevistados que
pertencem hoje aos dois grupos pesquisados: o fato de que algumas pessoas iniciam em posições de liderança em
um vácuo de poder, em um momento que, por razões conjunturais, há pouco interesse para as pessoas se
envolverem com a liderança, como atividades com pouca importância social no momento, em instituições de
pouca projeção, cargos de pouca visibilidade para o grupo social, sem remuneração ou com muito pouca
302
(13) [...] mas se coloca uma pessoa na chefia... e na verdade aí existe uma diferença
que eu aprendi com um grande tio meu, irmão de meu pai, o líder é diferente de
chefe. [fulano] sabia chefiar, mas nunca foi líder. Incapaz de... de contornar um
conflito... é muito fácil ser líder hoje com a experiência que eu tenho, eu vejo
direitinho o que é que é líder e o que é chefe, entendeu?
(22) [...] tem que saber bem o que que você está perguntando: se é sobre o sujeito
que organiza uma atividade de grupo... ou, sei lá... coletiva, né, ou aquele indivíduo
que está num cargo de chefia, de mando, coisa assim...
Item III: para classificação nesse item, o que se levou em consideração foi o fato de o
entrevistado se referir, durante toda a entrevista, ao indivíduo que era líder, em todas as suas
referências – influências, vivências, ações (tanto as próprias como de outros líderes citados) –
sem menção a cargos ou funções de gestão, mas apenas com foco em suas características,
comportamentos ou ações.
A distribuição de frequências é apresentada na Tabela 22.
Tabela 22 - A liderança é exercida na estrutura
ou é característica de indivíduo
Fonte: dados da pesquisa.
Em relação a essa Tabela, o dado mais significativo a ser citado diz respeito à grande
concentração em líderes que não mais estão nesse papel para verbalizar a diferença. Na
verdade, um único líder em atividade – o entrevistado (12) – verbalizou a diferença. Esse é
um indivíduo do sexo masculino, que começou o seu relato pela vida universitária, que à
época da entrevista já tinha exercido duas presidências e várias outras posições de liderança,
entre diretorias e chefias, que caracteriza a liderança basicamente por uma relação de
confiança, e que tem uma visão crítica a respeito de muitos dos indivíduos que estão no papel
de líderes. Uma citação de sua entrevista está na página anterior, no exemplo do item II. Aqui,
cabe acrescentar os seguintes aspectos adicionais de sua fala: (12) “e tem muito é... hoje,
acho, cargo de liderança...”; e ainda: “você vai vendo que o sujeito está ali por falta de outro
ou até por contingência política”.
Para os outros dois itens, a frequência de ocorrências foi semelhante.
remuneração para muita demanda de envolvimento ou qualquer outro motivo que torne a posição de liderança
como de pouca importância para o grupo social naquele momento. Esse tema vai ser abordado por alguns
entrevistados, no contexto do “início de suas atividades como líder”.
I II III
LÍDER ATIVO 7 1 9
LÍDER INATIVO 6 4 9
303
Analisando, então, os dados obtidos das Tabelas 21 e 22, o que se percebe como
tendência é que quem está na liderança são os que menos identificam as diferenças entre
liderança e gestão, além de serem também os que mais expressam dúvidas em relação ao
conceito. Reconsultando as entrevistas, não foi possível encontrar algo que pudesse revelar
uma noção consciente que explique essa discrepância. Uma interpretação possível seria a de
que a vivência da liderança possa deixar o indivíduo em uma posição que permita revelar
contradições em relação aos conceitos previamente estabelecidos sobre o que ela significaria,
enquanto o olhar sem o comprometimento de quem não está no exercício da atividade poderia
dificultar a percepção dessas contradições. Será necessário progredir na investigação, de
modo a buscar outros dados que ajudem a confirmar ou descartar essa interpretação.
C) Percepção dos entrevistados quanto a ser a liderança algo nato ou desenvolvido
Quanto à percepção de entrevistados se a liderança seria algo nato ou se poderia se
desenvolvido durante a vida, a distribuição dos itens foi a seguinte:
I: o líder é formado;
II: liderança é algo nato;
III: não sabe ou não citou;
IV: há um componente nato, mas também pode ser aprendido ou pode ser aprimorado.
A distribuição de frequência das respostas está exposta na Tabela 23:
Tabela 23 - Distribuição de frequências:
a liderança é algo nato ou pode ser aprendida
Fonte: dados da pesquisa.
O que salta aos olhos na análise da Tabela 23 é o fato de que nenhum dos líderes em
atividade considerou a liderança como algo que é apenas inato no indivíduo – ainda que a
metade não tenha apresentado qualquer posicionamento sobre isso. O objeto de investigação,
nesse caso, poderia recair sobre os indivíduos que a consideraram como algo inato, que são
três indivíduos que não estão, no momento, exercendo papéis de liderança.
Busca-se, então, nas entrevistas os pontos em que fazem referência ao tema:
I II III IV
LÍDER EM ATIVIDADE 2 0 8 6
LÍDER INATIVO 2 3 7 5
304
a) O entrevistado (13) cita, a partir de sua história de liderança identificada na infância,
que “isso aí eu sempre tive em mim, uma coisa meio inata”;
b) o entrevistado (29) não se refere propriamente a algo “inato”, mas sim a algo
relacionado à personalidade, sem especificar se, na visão dele, a personalidade é algo
inata ou aprendida. Sua fala deixa transparecer que esses aspectos são determinados na
primeira infância (e não propriamente “inatos”), da seguinte forma:
Todas as grandes lideranças políticas, todos os grandes líderes militares, eles tinham
um motivo de distúrbio comportamental, tinham algum tipo de carência que remete
à primeira infância que fazia... O Alexandre Magno tinha isso, tinha essa questão
com a relação incestuosa, com a mãe [...] o líder tem um pouco disso de
megalomania, de loucura, idolatria a algo que não é muito óbvio, apesar de São
Francisco de Assis também ter sido líder, Mahatma Gandhi ter sido líder [...];
c) quanto ao terceiro, o entrevistado (30), ele começa seu relato na infância, observando
que “a liderança é... ela acompanha sua vida o tempo todo, né?” e mais à frente na
entrevista, afirma que”
A liderança é uma coisa que ela... ela pode ser trabalhada, né, mas a verdadeira
liderança ela é inata, que a pessoa que é carismática ela não consegue... um líder, ele
pode assumir uma condição de liderança e tudo, mas ele... ele tem que ter, eu acho
que tem um fator aí até de personalidade, um fator aí realmente inato em relação a
tudo isso [...].
A compreensão desse aspecto pode depender de se encontrar outros dados a ele
relacionados. Fica aqui registrado, para discussão posterior.
D) Percepção do entrevistado quanto a ser, ele mesmo, um líder
Uma última questão, que foi espontaneamente mencionada por alguns dos
entrevistados e perguntada para os demais, para possibilitar a comparação, foi a relacionada
ao fato de o entrevistado se considerar um líder.
As respostas foram divididas em quatro grupos:
I: sim;
II: não;
III: não citou ou não colocou esse dado como uma questão relevante;
IV: sim, com ressalvas – por exemplo, acha que não tem perfil de presidente, apesar de
exercer esse papel.
A distribuição de frequências para essa resposta pode ser vista na Tabela 24:
305
Tabela 24 - Distribuição de frequências:
se o entrevistado se considera um líder
Fonte: dados da pesquisa.
Apesar do número semelhante de indivíduos que estão exercendo a liderança,
comparados com aqueles que não estão no seu exercício, perceberem-se como líderes (I+IV =
11 líderes ativos e 12 inativos), existem entre os líderes em exercício uma pessoa que faz uma
ressalva em relação a se perceber como tal. Ou seja, talvez o aspecto mais relevante a ser
aprofundado diz respeito ao caso do líder em atividade que coloca em questão a sua condição.
Esse é um indivíduo que, além da experiência de várias posições de chefia em
diferentes instituições no passado, já foi presidente de três organizações associativas – posição
cujo acesso se deu por processo político eleitoral –, sendo no momento presidente de uma
sociedade anônima que atua no mercado nacional e vice-presidente de uma organização
associativa, também de âmbito nacional. De todo o grupo de 33 entrevistados, apenas um
outro líder em atividade – o identificado pelo número (24) – e um inativo – o número (34) –
possuem, em seus currículos, a mesma quantidade de exercício de chefias e lideranças.
Na sequência, comparam-se as entrevistas desses três indivíduos:
No início de seu relato, solicitado a contar a sua história relacionada ao tema
“liderança”, o entrevistado (15) começa, no momento atual, da seguinte forma:
Eu acho assim... muito difícil é... eu... me considerar líder, porque assim é... é... se
você for analisar eu sou um líder. Falar isso eu acho que é uma coisa difícil... talvez
os papéis que você exerce no decorrer da vida acabam te colocando na posição de
liderança, né? As pessoas esperam que você tenha, é... atitudes por elas, assim,
condutas, definições que muito mais ligadas ao cargo que você ocupa... pelo menos
no meu caso... do que mesmo por uma... uma vontade de exercer talvez a... a
liderança. Isto é, acho que tem pessoas que são talhadas para isso, querem isso,
procuram isso, né? E... e se alimentam disso. Outras, como no meu caso, acho que a
liderança veio de maneira indireta, parece que você está disponível para exercer
esses papéis e, quando exercidos, procura exercê-los da melhor maneira com
aqueles valores [...] os valores maiores que têm me orientado a atuar como líder [...]
assim eu... é... acho... acho que muitas das chefias e lideranças que eu exerci eu te
diria que caíram no meu colo, eu não vinha deliberadamente procurando fazer isso.
Quando a pergunta dizia respeito aos indivíduos que, a partir de sua visão sobre a
liderança, e dentro de seu meio social, ele considerava serem líderes, portanto, no momento
em que ele é colocado na condição de liderado, a resposta foi:
I II III IV I+IV
LÍDER EM ATIVIDADE 8 1 4 3 11
LÍDER INATIVO 9 3 2 3 12
306
(15) “É... eu... eu tenho muita dificuldade em... em aceitar liderança. Talvez seja por
isso que eu nunca tenha, deliberadamente, procurado ser líder de alguma coisa [...] a
gente vê às vezes muitas pessoas que exercem posição de líder, mas de uma maneira
muito personalista, muito individualista, que não é uma maneira que eu acho que o
líder deve ser. Isso... a pessoa tem que exercer liderança democrática”.
Ao ser indagado, finalmente, sobre sua definição de liderança, ele afirmou:
(15) Ser líder seria... é... uma capacidade que você... é... ou recebe ou procura...e... e
faz com que no exercício dessa sua atividade você é... aglutine pessoas que pensem
de maneira semelhante para tentar é... juntas é... edificar uma coisa melhor. Então o
líder [...] acho que ele... ele conduz, mas ele... ele comanda, mas assim sempre é o...
o aquela palavra, aquele prefixo co-mandar, con-duzir, quer dizer você tem que co-
mandar com alguém, con-duzir com alguém, tudo utilizando o melhor de cada um,
né, no benefício de todos.
Um aspecto que ele acentuou durante a conversa foi que, para ele, o líder deve ter
independência, inclusive e principalmente, financeira em relação à posição que ocupa:
(15) ele não pode depender financeiramente do cargo não... senão perde a
independência.
No contraponto, o indivíduo (24) que também tem em seu currículo quantidade
significativa de chefias e lideranças apresentou, para os mesmos estímulos, o seguinte: ele
inicia o relato no movimento estudantil, na universidade, em nenhum momento colocou em
questão a sua condição de liderança, teve passagem pela política partidária. Seu conceito de
liderança foi o seguinte:
(24) O líder é... é... é a pessoa que... que... tem o falso líder e o verdadeiro líder, né?
É... o líder não pode depender do cargo que está ocupando. Ser ele estiver ocupando
um cargo para sobrevivência dele, o líder... ele não pode... é... ter interesse diferente
da pessoa que ele representa, então eu acho que o exercício da liderança é... é
compartilhar os interesses e sentimentos que as pessoas têm.
Em comum, os dois identificaram a necessidade de uma independência financeira em
relação à posição que ocupam. Esse aspecto da independência merece ser aqui mais bem
explorado: como foi apresentado na Tabela 18, no item XXI, ter independência financeira e
de opinião foi considerado uma característica importante para três indivíduos que estão no
exercício da liderança – dois dos quais foram os citados – e para um dos que não estão no
exercício.
O outro líder em atividade que citou espontaneamente a independência financeira
também o fez em resposta à pergunta “o que motiva o líder em uma situação como essa, a
despeito do sacrifício pessoal?”, nos seguintes termos:
307
(25) Primeiro, você tem que gostar daquilo que está fazendo, senão... você não leva
adiante. Você tem que, isso eu falo, você tem que ter uma missão [...] eu
particularmente acho, você não pode ter uma dependência financeira,
principalmente quando você assume um cargo de liderança, porque aí sim [...] deixa
de ser ideal e passa a ser dependência financeira.
Para o único entrevistado inativo que citou a independência, ficou claro, em sua fala, o
valor que dá à independência de opinião – e não financeira – como apresentado no trecho da
entrevista abaixo. O contexto foi o momento de mudança de governo, quando outra pessoa
havia sido indicada para substituí-lo pelo novo governo, mas a parte da coalizão que ficou
com a secretaria na qual ele estava ligado gostaria que ele continuasse na direção, em função
de sua projeção política local. O relato diz respeito à sua última posição de liderança
assumida, que lhe custou o afastamento das posições de liderança desde então, até o momento
da entrevista – com impacto financeiro, mas que não foi citado em seu discurso:
(29) Não, não, eu saí da direção no governo [fulano de tal] também por radicalismo
meu. Eu briguei – brigar com superintendente é a minha vocação, né? Eu falei: não,
eu não quero, são mais de oito anos, eu tenho meus filhos pra educar, tá, tá, e eu
estou dedicando todas as minhas energias aqui, já chegou a hora de parar. Aí eles
falaram: não, mas você vai continuar... Mas as diretrizes do partido vão ter que ser
cumpridas, inclusive o comparecimento nas reuniões para as quais o partido
convocá-lo... Eu falei: então eu peço demissão é agora... Não dá, incompatível, eu
iria virar refém de um partido político, eu admiro o (partido x), tem uma história
gloriosa [...] mas não tenho saco para ficar em reuniões, fazer boca de urna que eu
acho um absurdo, ultrajante, no dia da eleição eu ficar tentando ganhar um voto do
meu vizinho com toda aquela sedução, com papel na mão... boca de urna... eu teria
que me prestar a esse tipo de coisa...
Esse não foi o único líder inativo que apresentou a independência como valor. O
entrevistado (22), também na caracterização do que é o líder, afirmou que:
(22) [...] o cara tem que ter independência. As pessoas têm que perceber que ele tem
posições de independência.
A independência financeira também foi uma questão abordada, de forma não direta,
mas muito incisiva, pelo entrevistado (8). O aspecto citado foi muito interessante, pelo fato de
que não tem sido abordado pela teoria no mainstream: o relato da percepção de que o papel de
liderança pode ser exercido por pessoas que mostravam a disposição – por motivos diversos,
relacionados à história do indivíduo – de se colocar em risco, sendo essa sua disposição
motivo de conforto para aqueles que, ainda que almejando objetivo comum, não desejavam
colocar em risco seus ganhos financeiros, seu tempo com familiares e amigos ou mesmo, em
algumas situações, sua carreira.
308
O contexto era o do relato inicial sobre a “sua história relacionada à liderança”:
(8) Eu também já estava no cheque especial, ou seja, eu acreditava tanto no projeto
que eu fui consumindo as reservas. A minha mulher já estava brava com a história,
como a gente vê muitos casos assim, né? Aí vai mais um pouquinho, mais um
pouquinho e o dinheiro já está acabando e o sindicato começou a me ajudar, mas era
muito chato o sindicato e a burocracia dele. Tinha que ter pauta: o que você vai
fazer em Brasília para eu te liberar a passagem? Eu não sei, eu tenho que ir lá, se eu
não estiver lá não acontece nada. E era assim que acontecia: você marcava alguma
coisa, eu vou ver o amigo do fulano de tal e ele mudava a agenda, não estava mais
lá. Você vai voltar? Ou então, não dá pra programar: quem quer ter uma atuação
política em Brasília tem que ir sem pauta; chega lá telefona pra um, telefone pra
outro, opa! Estou indo aí [...] depois que alguém se sobressai e mostra que é capaz
de se expor em nome dos outros – porque o colega quer é que você se ferre em
nome dele. Então hoje eu sei disso com muito mais clareza; inclusive, nunca mais
me iludi também, aparece um que seja louco, maluco a ponto de pôr em risco uma
carreira... eu fui ameaçado por ministro [...] a relação é muito perversa, não é... você
não tem... Pra você ser líder, você tem que ser maluco, tem que estar disposto a tudo
– eu me dispus até a morrer, Zé... Torcia pra ser preso pra ganhar capital político...
não tinha... não estava nem aí... É um período meio de loucura pra conseguir o que
eu liderava.
Como esse indivíduo estava entre os primeiros entrevistados, a partir de sua entrevista
essa pergunta foi incluída nas pesquisas subsequentes, além de, por sua importância aparente,
ter sido referida também a alguns dos que já haviam sido entrevistados. A pergunta, de modo
genérico, era algo como “você se sente de alguma forma explorado no seu papel de líder ou
sente que existe um sacrifício pessoal para que esse papel possa ser exercido?”.
O resultado dessa pergunta, bem como as manifestações espontâneas a esse respeito,
foram resumidas em três tipos de respostas:
I- Sim II- Não III- Não citou, ou não tinha uma resposta
A distribuição de frequências foi a expressa na Tabela 25:
Tabela 25 - Distribuição de frequências:
percepção de sacrifício ou “exploração”
Fonte: dados da pesquisa.
Chama a atenção a homogeneidade apresentada pelos dois grupos.
O entrevistado (19), que se situa entre os inativos, não foi perguntado especificamente
sobre ser explorado, mas se referiu espontaneamente ao fato de se sentir usado ou manipulado
I II III
LÍDER EM ATIVIDADE 6 4 6
LÍDER INATIVO 6 6 5
309
por pessoas que tinham interesse em algo que ele, por razões que ele refere como sendo de
ordem comportamental, se colocaria na posição de fazer ou de resolver – e que ele identifica
como sendo uma das causas de ter assumido tantas posições de liderança. Foi a seguinte a sua
fala:
(19) Eu descobri que eu não era o filho mais velho lá de casa eu tinha mais de 40
anos, quando eu comecei a perceber que eu não tinha tanta responsabilidade assim...
com tantas coisas [...] as pessoas estavam, todo mundo, na zona de conforto, né?
Então, assim, deixa ele, deixa ele tomar a liderança e resolver. E resolvia, né?
Pegava pra resolver e resolvia [...] Eu acho que as pessoas... quem têm o tipo de
personalidade que eu tenho, eu acho que é... existe um jogo de sutilezas, tanto em
casa como na... na... na área profissional. As pessoas sabem como conseguem as
coisas de você, né? [...] tem gente que é mestre nisso, né? Tem gente que se
aproxima de você e ela sabe exatamente qual... qual é o jogo de poder que ela tem
que utilizar com você pra você sair correndo fazendo as coisas.
O entrevistado (28), que nunca exerceu presidência, mas que já assumiu várias
posições de liderança, também abordou espontaneamente o tema:
(28) Como havia muitas pessoas mais velhas do que eu e eu era mais nova, um
colega meu... acho que hoje eu sinto que ele me usou... mas usou de uma forma que
beneficiou o pessoal e eu continuei trabalhando de certa forma em uma liderança
informal.
O entrevistado (30), ao ser questionado sobre a sua percepção quanto à possibilidade
de que o indivíduo que se coloca como líder em num projeto ser, na verdade, alvo de
exploração pelos que, ainda que tendo interesses comuns, teriam algo a perder, a resposta veio
nos seguintes termos:
(30) Eu acho isso muito comum, porque o que acontece, dos dois lados, eu acho que
você tem situações que o... situações que você precisa de alguém, tem que ter
alguém lá em determinado cargo, então eu acho que as... as pessoas mais
articuladas, eu vejo hoje, as mais articuladas, elas procuram associar a questão da
liderança com remuneração, então essas duas coisas são importantes, você procura...
e é natural isso... você procura aquele cargo que ele te dá mais projeções , mas junto
com uma questão de remuneração. A não ser que essa questão de remuneração já
está resolvida, então o cara já está aposentado, largou tudo então ele quer só o
glamour, entendeu? Mas normalmente você procura a associação da remuneração
com o... o poder [...] ele entra nessa fogueira , mas almejando que dali ele dê um
salto para uma coisa que seja destaque e remuneração [...] Você pega um cara que é
um... um executivo na empresa x, ele vai caminhando nessa empresa, ele vai
caminhando, ele tem uma liderança nessa empresa, ele vai caminhando [...] e se ele
aqui está vendo espaço em outras empresas, então ele consegue fazer a sua liderança
com remuneração justa e ele muda pra outra com remuneração boa, às vezes pode
ser até menor mas com uma projeção maior [...].
310
Ou seja, para esse entrevistado, mesmo as posições de caráter político-representativo
trariam consigo, no fundo, uma aspiração que seria de ordem econômica, envolvendo
benefício financeiro pessoal.
Têm-se aqui duas posições interessantes, de certa forma opostas, mas que não deixam
de ser a expressão do que ocorre em muitas das relações de liderança.
Há que se chamar a atenção para o fato de que esses três entrevistados pertencem ao
grupo dos indivíduos que há algum tempo estão afastados do papel de líderes. O que levanta
uma questão: teriam os indivíduos, que não estão em posições de liderança, mais liberdade
para falar de sua experiência de modo menos “romanceado”, posicionando a liderança dentro
das questões relativas à divisão social do trabalho e menos relacionadas a atributos
excepcionais? Para explorar essa linha, levanta-se a fala de mais um líder inativo, o de
número (26), sobre possíveis “sacrifícios” da liderança:
(26) [...] é aquilo que eu digo, a gente é líder mas é... uma liderança que não é de
maneira nenhuma assim... um ônus; não é difícil e... também não é nenhuma
vantagem ser líder [...] Então eu acho assim... que cada um tem uma habilidade que
desenvolve, essa habilidade que lhe dá prazer. Como lhe dá prazer, eu acho que ele
está sendo beneficiado com isso, ele está fazendo uma coisa que gosta, ele está
tendo prazer com aquilo, e... então não vejo assim, não sei se era essa questão em
relação a liderança, é... não há uma diferença entre liderado e líder. Pra mim, eu
acho que o líder vai se tornar líder dependendo da necessidade [...] Então... pra mim
a... a liderança em relação à pessoa, pessoalmente, minha pessoa é... uma coisa que
dá muito prazer, é uma coisa que eu gosto [...] se eu sou ou serei líder de [...] é uma
coisa, assim... que eu acredito, imagino que seja natural que eu faço o que gosto, e
que fazendo o que eu gosto eu tenho algum destaque, e tenho que colaborar para
tentar... então eu vejo dessa forma, não é nenhuma obrigação, uma necessidade, é...
é assim... fazer o que gosta e... vejo a liderança muito assim, uma coisa natural e
prazerosa [...].
E acrescenta mais à frente, quando a pergunta envolve caracterizar a liderança, que:
(26) “ele cumpre uma função com prazer, é... não por motivo financeiro, ou por julgar que
aquilo é bacana pra ter, pra aparecer em alguma revista, destacar na sociedade”.
Essa é uma linha diversa das anteriores. Aqui, apesar de também posicionar a
liderança dentro da divisão social do trabalho, ele não vê algo de extraordinário nessa atuação,
uma vez que é algo que o indivíduo realiza “naturalmente”, por ter habilidades desenvolvidas
para isso – que, para ele, se relaciona com a personalidade, é inato ao indivíduo. Mas há uma
contradição no fato de que, se está na divisão social do trabalho, como destacar as questões de
ordem financeira, e de ascensão social, das atividades de liderança?
Aqui, a contradição fica evidente quando se compara o momento no qual fala de
liderança a partir de sua experiência e quando fala da liderança projetada no “outro”.
311
Outra resposta que ajuda a explorar o tema foi dada também por um líder inativo:
(6) Não, até assim... é estranho quando as pessoas falam assim... você sacrifica
muito... Não, pra mim eu sempre é... por mais que eu tenha deixado , às vezes,
minha família, é claro que me incomodava, às vezes, num ir, tal, mas aquilo, se eu
colocasse que a... a soma das vantagens era muito maior que as desvantagens, né? É
assim, num... num faria... não me arrependo de nada que eu fiz por ter feito isso, não
acho assim. Eu recebi, foi... foi... me pagaram pra eu fazer [...] não tem esse... esse
sentimento que eu fui explorado, não, na minha história não.
Aqui o posicionamento da liderança dentro da divisão social do trabalho fica ainda
mais evidente, quando ele usa termos como “Eu recebi” e o “me pagaram pra eu fazer”.
Outro líder inativo cuja fala pode ser explorada: (5) “procurando assim, não fazer, é...
mas continuar participando, contribuindo, usufruindo também, né, porque não é só uma
doação... usufrui também, né, com oportunidades, contatos de desenvolvimento”.
Também aqui fica evidente a percepção de que há vantagens a serem exploradas nas
atividades envolvidas com a liderança, tanto em termos de oportunidades a serem
identificadas, como com relação ao desenvolvimento pessoal. Nesse caso, o entrevistado tem
um negócio próprio que é mais rentável do que a maioria das atividades envolvidas com os
papéis de liderança, que envolve também prestação de serviços para as organizações do setor
envolvido na pesquisa – e cujas oportunidades podem ser melhor identificadas se houver uma
proximidade maior com os líderes das organizações desse setor da economia.
Saindo dos líderes inativos, e explorando um pouco as posições daqueles que estão em
atividade, tem-se o entrevistado (21), que fala do início de sua liderança no movimento
estudantil e sindical:
(21) [...] eu sei que na época o movimento não tinha dinheiro, né? Hoje a gente se
vira pra poder viajar de avião, coisa e tal, os tempos são outros, mas naquela época
eu ia de ônibus. Saia daqui, numa assembleia em [...] ia pra outra assembleia em
[...], pegava ônibus pra Vitória, dormia dentro, chegava lá, assembleia em dois [...] –
tentava marcar tudo no mesmo dia, já pegava outro ônibus à noite pra ir pro Rio de
Janeiro e assim... a gente dormia era dentro de ônibus nessa... nessas campanhas aí
[...] eu tive um papel destacado no sindicato, tive... muito por opção própria mesmo
tive que investir em algumas coisas: casado, filho, depois descasei, mais outro
casamento, mais filho... então eu tinha que arrumar trabalho, né? Então, eu só passei
a ter um papel destacado agora.
Novamente, um posicionamento que admite relação com a divisão social do trabalho.
Ou, ainda, o entrevistado (18), líder em atividade, ao definir um líder:
312
(18) o líder é um indivíduo abnegado, disposto a muito sacrifício, desprendido de
egoísmo, e sempre pronto a participar dos movimentos aí... principalmente aqueles
que visam o bem estar coletivo... o líder é isso!
Aqui uma descrição típica do que a teoria denominou como “romance” da liderança.
Revendo as entrevistas no tocante a esse aspecto, ficou clara a tendência de líderes em
atividade apresentarem visões mais “romanceadas” da liderança, em contraponto com os
inativos, que tiveram posições mais “críticas”. Para exemplificar, apresentam-se em primeiro
lugar algumas falas sobre liderança de líderes em atividade:
(2) Capacidade de se colocar em presença, ser identificado pelas pessoas como
alguém que tenha capacidade de, até, de fazer uma síntese, né, de fazer um
apanhado geral do sentimento que está permeando aquele grupo social, criar
mecanismos de realização e tomada de decisões que possam fazer a mudança.
(3) Tem a preocupação com o todo, com todos, que quer cuidar de todos. Eu vejo
uma associação do líder com cuidado, com atenção e aquele interesse de que todo
mundo se sinta bem na casa e fazer que tudo funcione pra poder... eu tenho que ser
um servidor, aquela história de líder servidor. Eu penso que o líder não é o cara que
manda, entendeu?
(9) liderar é ouvir... e... depois executar alguma coisa diante do que você ouviu.
(10) O líder é aquela pessoa que consegue ver acima, né, das coisas, ter uma visão
ampla, vê que ele tem que lidar com várias dificuldades... muitas vezes são boas, né,
porque isso que vai motivar transformações.
(12) Líder, eu acho, é... é aquele sujeito que pouco... com meia hora de conversa
você acredita no cara, esse cara tá com boas intenções.
No contraponto, algumas falas apresentadas pelos inativos:
(5) Cargos que têm liderança, não é a mesma coisa, não é de se esperar que todo
mundo que está nos cargos tenha capacidade de liderança;
(6) Eu penso muito na questão da liderança em... complementar, tá [...] não penso
muito em liderança como um... destaque, vamos dizer assim.
(14) Então o indivíduo hoje entra pra exercer um cargo executivo preocupado com
ele mesmo, primeiro o dele, depois ele vai pensar nas outras pessoas. Então, dentro
dessa visão conceitual minha de líder, nós realmente estamos, é, com uma falta
muito grande.
(29) O indivíduo que está obcecado por algum projeto persegue esse projeto
passando pelas dificuldades maiores que os outros não conseguem transpor; a
personalidade, deve ter algum distúrbio, é, ele deve ser enquadrado em algum
daqueles quadros de psicopatologia.
(34) Então, a liderança é determinada pela circunstância. O herói é o cara que não
conseguiu fugir.
313
Isso não quer dizer que muitos dos inativos também não apresentem uma visão mais
romanceada – na verdade, mesmo alguns dos aqui citados começaram com definições mais
idealizadas, antes de derivarem para aspectos mais críticos da liderança. Mas, o que não se
pode deixar de considerar é que, como tendência, houve muito mais observações críticas por
parte dos inativos do que por parte dos líderes em atividade.
Para organizar algo do material apresentado até aqui, nesta seção pode-se dizer que,
associando o que foi apresentado sob as designações (A), (B) e (C) apresentadas até aqui, já
se têm condições de registrar algo do que foi retirado das falas em alguns grupos gerais:
a) Concordando com muito do que foi apresentado na literatura mais crítica sobre a
liderança, esta é percebida como se enquadrando dentro da divisão social do trabalho.
O líder, nesse contexto, é visto por alguns dos indivíduos que exerceram ou exercem
esse papel muito mais como alguém com capacitação para exercer uma atividade que
exige habilidades operacionais do que como um representante do interesse coletivo;
b) ao contrário do que propõem algumas linhas no mainstream, a liderança não é
percebida pelos indivíduos que a exercem ou que a exerceram como algo de especial,
quando o discurso sobre a liderança envolve questões mais práticas – como, por
exemplo, as de ordem financeira ou a que se refere ao “uso” pelos liderados do
indivíduo que se dispõe a assumir os possíveis ônus da exposição de quem está na
posição de líder;
c) no entanto, quando se pede uma definição de liderança – momento esse quando se
percebe, no indivíduo, uma atitude compatível de quem fala sobre outros – esta
costuma vir acompanhada de toda uma carga de expectativas romanceadas, com o uso
de frases prontas, noções retiradas do senso comum ou projeções de expectativas.
E) O modo como assumiu o primeiro papel de líder e os subsequentes
Outra questão relevante, na exploração do significado da liderança, diz respeito ao
modo como o indivíduo assume pela primeira vez o papel de líder, além da forma prioritária a
partir da qual ele assume os demais papéis, após o primeiro. Tanto em um caso como no
outro, a caracterização da forma como assume o papel será a seguinte:
I: convite de outros líderes
II: disputa eleitoral
III: solicitação dos liderados (base ou pares)
IV: evolução em estrutura hierárquica
314
V: sem informações
A distribuição de frequências comparativa encontra-se Tabela 26. Pode-se dizer que os
dois grupos são muito semelhantes, pois, consultando os dados da tabela, percebe-se que:
a) Em ambos os grupos existe certo equilíbrio na forma como assume o primeiro papel
de líder;
b) após essa primeira experiência, percebe-se uma forte concentração, também em ambos
os grupos, para se manter nesse papel a partir do convite feito por outros líderes que
participam da rede de relacionamento interinstitucional.
Tabela 26 - Distribuição de frequências: modo como
assumiu os papéis de liderança
Fonte: dados da pesquisa.
O que destoa do conjunto são os dois casos – um em cada grupo – que se mantém no
papel de líder a partir da demanda dos “liderados”. As entrevistas desses dois casos devem ser
aprofundadas: a do entrevistado (11), entre os líderes em atividade, e a do entrevistado (28)
entre os inativos.
O entrevistado (11) começa seu relato na infância, identificando sua liderança no fato
de que era “bom em esportes”:
(11) Eu... eu desde que eu me entendo por pessoa, sempre fui assim...
intrinsecamente alguém que puxou outras pessoas, seja do ponto de vista de esporte,
de organizar [...] mesmo na época da escola, assim... apesar de nunca ter pertencido
a nenhuma organização formal, do tipo D.A., eu sempre estava puxando alguma
coisa dentro da escola, participando, por exemplo, de festa de formatura e... é uma
coisa assim... bem espontânea. Num... num é algo que me custe um esforço especial.
É... simplesmente eu me sinto chamado a comparecer, e compareço.
Sua família não tinha qualquer relação com atividade político-partidária em sua terra
natal, mas, a despeito disso, vários dos seus irmãos também são considerados líderes:
(11) [...] de certa forma essa questão é... da liderança é meio familiar, porque... se
pegar os outros irmãos, nas suas características, eles fazem a mesma coisa, todos
eles são puxadores, vamos dizer assim...
MODO COMO
ASSUMIU O(S)
TIPO DE LÍDER
PRIMEIRO PAPEL DE
LIDERANÇA
PAPÉIS DE LIDERANÇA
SUBSEQUENTES
I II III IV V I II III IV V
LÍDER EM ATIVIDADE 6 6 4 0 0 12 3 1 0 0
LÍDER INATIVO 5 5 7 0 0 12 4 1 0 0
315
Para o seu primeiro papel de liderança, já na fase da vida profissional, ele relata que:
(11) [...] foi um movimento espontâneo dos colegas. Algumas pessoas me
procuraram, „você tem perfil‟ ou „a maioria das pessoas gosta de você‟, „você tem
sua atuação‟, aí eu aceitei [...] fui escolhido pelos colegas. Não fiz campanha [...].
E para a presidência que exerce hoje, foi indicado por outra liderança, tendo sido
realizada uma “composição de chapa” para não haver disputa.
Já o entrevistado (28), que nunca exerceu o papel da presidência de alguma
organização, mas que sempre foi escolhido pelos colegas para ocupar posições de liderança,
relata que:
(28) Eu era a mais nova do (grupo), então eu nunca cogitei em termos de liderança
é... formal, tipo chefe de [...] Como havia muitas pessoas mais velhas do que eu e eu
era mais nova, um colega meu... acho que hoje eu sinto que ele me usou... mas usou
de uma forma que beneficiou o pessoal e eu continuei trabalhando de certa forma
em uma liderança informal, certo? Como ele viu que eu tinha facilidade para a
organização [...] me passou a organização da [...] toda pra mim, então na realidade
eu acabei sendo a organizadora da [...] sem ser a chefe da [...] mas a gente exerceu
outras coisas [...] batalha de reposição salarial, nivelar piso salarial com Brasília [...].
A comparação dos cinco domínios de personalidade referentes aos dois mostra o
seguinte resultado:
Tabela 27 - Os domínios do NEO-PI-R para os dois líderes
mantidos na liderança por demanda
Domínio* Líder
(11) (28) Judge, Heller e
Mount (2002)
Neuroticismo (N) 2 1 1 – 2
Extroversão (E) 3 3 4 – 5
Abertura (O) 4 4 4 – 5
Amabilidade (A) 3 4 ?
Consciensiosidade (C) 4 4 4 – 5
Fonte: dados da pesquisa.
É interessante observar a proximidade dos resultados desses dois entrevistados, entre
si e com o previsto na revisão de Judge et al. (2002) – diferentemente do que foi observado
para a média dos dois grupos, a qual, como foi visto na seção 5.1.1, ficou algo diferente do
previsto pela revisão.
Cabe aqui a indagação sobre se as pessoas que possuem o perfil de personalidade
previsto pela literatura como facilitador para emergência e efetividade da liderança teriam
316
mais probabilidade de, após uma primeira experiência, serem conduzidos a esse papel por
demanda dos liderados.
No estágio atual de organização e análise dos dados, não há elementos que ajudem a
responder essa pergunta.
F) Motivações para assumir a liderança
Quando perguntado se identifica as suas motivações para se envolver com os papéis de
liderança, as respostas fornecidas podem ser agrupadas em seis itens:
I: mudar as coisas, vontade ou ímpeto para inovar;
II: não cita ou não percebe qual foi a motivação;
III: participar “das coisas”, no sentido das atividades associativas envolvendo o seu grupo;
IV: mais por falta de gente para participar do que por mérito se viu envolvido;
V: incontrolável – acha que é parte da sua “personalidade”;
VI: simplesmente por gostar do que está fazendo;
Alguns desse itens, por estarem fora do senso comum, merecem exemplificação.
O item, IV, por exemplo, tem representantes tanto entre líderes em atividade como
entre inativos. Como exemplos de fala, citam-se, entre líderes em atividade:
(10) Eu acho que a forma como fui introduzida, eu não busquei isso, eu fui
normalmente conduzida, né, prá situação, e tive a necessidade de buscar essas
habilidades [...] Na [associação x] que também entrei... não lembro quando começou
a [...] que eu fui na primeira reunião... acho que era 90, 88... eu fui para uma reunião
da [...] que tinha umas quatro pessoas lá e eu achava que tinha que ser convidado
para ir, e como eu ia, eu fui pra ver como que funcionava, que eu cheguei lá não sai
mais, fui três vezes presidente da [sociedade x], agora diretora da (sociedade y)
também e também da (sociedade z), porque faltam pessoas pra isso, né? O que a
gente observa é isso, você está, você aparece um pouquinho (risos), vem alguém e te
pega pra participar de atividades, que é realmente uma falta terrível, né?
Outro exemplo é o do entrevistado (27), nos seguintes termos:
(27) As coisas não estavam dando certo, alguém precisava tocar aquilo e... de
repente nós começamos a frequentar e tentar entender aquilo, por eu estar talvez
mais presente e...e...e interesse pelas coisas e participar e estar nas reuniões e
perguntar e me interessar por aquilo, pelo... pelas coisas que estavam acontecendo
no dia...no dia-a-dia, é que foram aparecendo oportunidades pra estar também... e
outra coisa foi o momento de ter poucas pessoas envolvidas [...] E eles começaram
a... como pode fazer, eleger uma nova diretoria. E como eu estava na frente disso,
quem vai, vamos comigo? E começamos lá [...] quando teve aquele grande
movimento da [...] que a [...] participou, de novo poucas pessoas querendo tomar a
frente, querendo mostrar a cara, querendo estar presente como a gente tava [...].
317
Algumas citações apresentaram componentes que se poderia incluir em mais de uma
situação – daí a totalização diferente para os dois grupos. Veja-se o relato a seguir, que foi
incluído nos itens I e IV, de um indivíduo que criou e foi o primeiro presidente de uma
associação de caráter nacional, conduzindo greves nacionais e embates que envolveram o
congresso nacional e mesmo ministros da República:
(8) Não diria nem que os colegas me reconheciam em mim um tipo de líder. Então
nunca... nunca fui destaque em termos de liderança. Tanto que sou até mais
introvertido... eu não acredito na atuação da militância política pela política, não
tenho nenhuma vocação pra isso, mas nesse caso eu me identifiquei. Foi... eu diria
que foi uma questão pontual [...] então nesse momento eu me tornei um líder. Talvez
pela falta de outro, não diria, não... não tem ninguém que se disponha a uma
exposição, a um sacrifício que a situação exigia... então eu acho que coragem é uma
característica que eu tenho, é... convicção, um pouco de teimosia, talvez,
persistência numa coisa que eu acreditava profundamente. Agora, nos outros... nas
outras situações de vida eu nunca vivi nada parecido com isso que... me motivasse
a... a juntar as pessoas e fazer qualquer coisa.
Outros casos foram de enquadramento difícil, entre motivações internas e externas ou
entre os itens I e V. Veja-se, como exemplo, o relato da motivação de um líder – atualmente
no grupo dos inativos – que foi o mesmo que, na caracterização do líder, considerou que este
deve ter algum distúrbio de personalidade:
(29) Eu acho que, não sei se seria liderança no certo, mas como uma capacidade de
entusiasmar o outro, de motivar o outro, isso aí um pouquinho eu tenho sim [...] tudo
isso é tipo Dom Quixote, ninguém com faculdades normais, antenado aqui e agora
se mete em uma aventura desse tipo [...] eu era um autoritário, um onipotente, um
diretor que decidia tudo, que enfrentava tudo e às vezes partia pra violência,
tratamento violento, ilegal, que essa mulher me chama de (fulano), o louco (risos)
[...] Então eu comecei a me dedicar ali, mas nunca quis ser diretor. Às vezes me
ofereceram, recusei, mas teve um momento em que o [partido x] ganhou a política
aqui em [...] foi uma revolução, o medo de sonhar, de colocar em prática [...] houve
uma eleição direta, eu não quis participar da eleição [...] eu não queria participar de
jeito nenhum porque eu achava que meu papel era ficar contra o governo, ficar
independente na instituição para exatamente poder fazer as intervenções que achava
adequadas. Mas não teve jeito, foram ali pedindo, você tem que ser o diretor [...],
porque o pessoal gosta aqui de você e você passa a credibilidade pra fazer essa nova
direção que está começando, que está enfrentando uma série de oposições [...] ou
seja, minha entrada nesse cargo foi dessa forma, foi de uma forma conflituosa... e a
forma de gestão que eu imprimi foi autoritária, centralizadora, no melhor daqueles
caudilhos de antigamente. Mas como por trás das condutas autoritárias tinha tal do
idealismo, o tal de defender, eu fiquei legitimado nesse papel.
A distribuição de frequências ficou como expresso na Tabela 28:
318
Tabela 28 - Distribuição de frequências: motivação
para assumir papéis de liderança
Fonte: dados da pesquisa.
Se forem associados os itens que estão relacionados, de algum modo, à falta de ação
intencionada para o exercício do papel – o item II (não cita ou não percebe qual foi a
motivação) e o V (incontrolável, por ser parte do que identifica como sendo a personalidade)
–, percebe-se que sob esse aspecto está incluída praticamente a metade dos indivíduos, nos
dois grupos (oito de 18, entre os ativos, e 10 de 21, entre os inativos). Esses indivíduos devem
ser investigados no que se poderia chamar aqui de uma expressão de algo que não é
consciente.
O interessante aqui é que a maioria das verbalizações da relação do exercício do papel
de líder como algo inconsciente – ou relacionado à personalidade – concentrou-se nos líderes
inativos (cinco entrevistados contra apenas um líder em atividade). Algumas falas a esse
respeito que podem ajudar a compreender a percepção dessas pessoas sobre o tema:
(26) [...] acho que a gente... na personalidade de quem participa, de quem exerce
alguma função de liderança, já tem alguma coisa na personalidade que de alguma
forma, isso te traz algum prazer [...] acho que tem a questão da minha infância que
eu tinha... imaginava meus pais como líderes... não sei como isso veio a influenciar
na formação da minha personalidade, mas é... eu passei a me posicionar e com isso,
às vezes, eu, de maneira voluntária, às vezes solicitado pelo grupo, me colocava na
posição de líder [...].
(28) [...] Acho que vem da infância, você vem sendo treinada para isso... acho que é
genética, acho que entra alguma coisa disso. É produto do ambiente, mas acho que a
gente é produto também de hereditariedade, né? Tive pais líderes em sua, cada um
em sua, como é que fala? Área, né?
(19) Eu acho que sempre consegui é... influenciar as pessoas é... mostrar pra elas o
meu ponto de vista e conduzir as pessoas que estavam trabalhando comigo pros...
pros objetivos que eu almejava [...] acho que algumas dessas habilidades a gente tem
de nascença, outras a gente tem que desenvolver muito, né? Eu acho que eu sempre,
de uma certa forma, tentei seduzir as pessoas – e a palavra é essa, né? Para
acreditarem naquilo que eu acreditava.
(23) O que eu acho curioso é o seguinte... que desde pequeno, desde que eu me
entendo, é... [...] sempre a gente era elencado pra ser chefe de alguma ou
representar, então, por exemplo, eu me lembro muito claramente, eu era o
representante de classe, você tá entendendo? Era escolhido para representar as
pessoas...
I II III IV V II+V VI TOTAL
LÍDER EM ATIVIDADE 2 7 4 2 1 8 2 18
LÍDER INATIVO 6 5 2 3 5 10 1 21
319
Ao consultar a planilha na qual foi feita a distribuição dos itens, é possível constatar
que nos três casos nos quais, entre os líderes inativos, houve necessidade de distribuir a fala
em mais de um item, todos incluíram o item I – o que poderia ser um fator a explicar a
observação de que a única distorção na distribuição se localiza apenas no item I. Veja-se que a
diferença na totalização também é de três unidades.
G) Exemplos de liderança, e de não liderança, considerando o seu grupo social
Para esta parte da entrevista, o indivíduo era solicitado a citar, a partir de sua
caracterização do que seria a liderança, exemplos tanto de líderes como de pessoas que, ainda
que assumindo esse papel, não seriam propriamente o que o entrevistado compreendia, pelo
seu conceito, como sendo uma liderança de fato, dentro do seu grupo social de referência.
Evitou-se a utilização do termo liderança autêntica porque, como foi apresentado na
seção 2.3.3, esse é um conceito que implica a identificação de algumas características na
relação de liderança que poderiam não ser levadas em consideração pela maioria dos
entrevistados – daí a utilização aqui da caracterização dessas relações identificadas como
liderança de fato ou de acordo com a concepção de liderança apresentada pelo entrevistado.
Alguns entrevistados perguntavam se seria referente somente a um grupo social
específico, em que a sua atuação é maior – e a resposta era que ele poderia decidir citar quem
ele considerasse adequado para exemplificar a sua visão. Outros entrevistados mostraram-se
incomodados com a possibilidade de citação nominal de exemplos. Nesse caso, deixava-se
bem claro que ele deveria ficar à vontade para não citar nominalmente qualquer pessoa – o
que ocorreu efetivamente com alguns dos entrevistados – ou apenas para fazer referência a
cargos ou posições, de modo genérico, se fosse do seu interesse.
Muitas citações envolveram pessoas de fora da rede de organizações associativas
estudadas – algumas do campo da política partidária e outras que, mesmo pertencendo ao
mesmo campo profissional, eram líderes de organizações cujas características não as incluíam
entre os que deveriam ser entrevistados. Mas a maior parte dos indivíduos espontaneamente
citados fazia parte das organizações que foram selecionadas para a pesquisa, o que permitiu a
realização de comparações.
Reunindo os citados que foram entrevistados, a frequência de citações dos exemplos
de liderança ficou como apresentado na Tabela 29:
320
Tabela 29 - Distribuição de frequência de exemplos de liderança
Nº do Entrevistado 2 3 5 11 12 17 22 26 27 30 31 33
LÍDER ATIVO 4 0 1 1 0 4 2 0 0 0 3 10
LÍDER INATIVO 3 1 0 0 0 2 2 0 0 1 3 7
TOTAL 7 1 1 1 0 6 4 0 0 1 6 17
Fonte: dados da pesquisa.
Já os que participaram das entrevistas e que foram citados como referências negativas
de liderança são os que estão reunidos na Tabela 30:
Tabela 30 - Distribuição de frequência de exemplos de não liderança:
apesar de estarem exercendo este papel
Nº do Entrevistado 2 3 5 11 12 17 22 26 27 30 31 33
LÍDER ATIVO 0 0 0 0 1 0 0 1 0 1 0 0
LÍDER INATIVO 3 0 0 0 0 2 0 0 1 0 0 2
TOTAL 3 0 0 0 1 2 0 1 1 1 0 2
Fonte: dados da pesquisa.
É interessante no notar que, numa rede de relações de caráter profissional, com
organizações cujo objetivo social envolve cuidar de interesses muito diversos – às vezes
conflitantes –, não é de estranhar que algumas pessoas sejam representadas na liderança de
algumas dessas organizações por um indivíduo que, por razões que incluem as questões de
ordem pessoal, não são identificadas como sendo efetivamente uma liderança.
Consultando as Tabelas 29 e 30 e comparando os seus resultados com os dados das
entrevistas, observa-se que:
a) Pode-se constatar que praticamente os mesmos indivíduos citados como exemplo de
liderança também são os dados como exemplos de indivíduos que, apesar de estarem
nesse papel, não seriam líderes. Apenas um desses indivíduos, o entrevistado (31),
teve citação apenas como exemplo de liderança.
b) os líderes mais citados na Tabela 30 como rejeição de sua liderança o foram apenas
por líderes inativos;
Seria interessante, então, explorar melhor dois aspectos:
a) A comparação do perfil do entrevistado (31) com os dos outros três, os entrevistados
número (2), (17) e (33);
b) a exploração das entrevistas dos líderes inativos, no contexto no qual citam as
rejeições de liderança.
321
A comparação do perfil do entrevistado (31) com os dos entrevistados (2), (17) e (33),
está apresentada no Quadro 4.
Quadro 4 - Comparativo de características dos entrevistados
mais citados como líderes e como não líderes
Fonte: dados da pesquisa.
(2) (17) (31) (33)
Idade 49 56 50 46
Início do relato Infância/família Infância/escola Infância/escola Infância/escola
Modelo líder Pais Pai Pai e irmão
mais velho
Pais
Vivência familiar Pais participam
de partido, não
eram
candidatos
Sem vivência
política na
família
Família
participa de
política sem
envolvimento
direto
Família
participa de
política sem
envolvimento
direto
Forma de início Solicitação dos
liderados
Convite de
outros líderes
Disputa
eleitoral
Disputa
eleitoral
Forma das
demais
Disputa
eleitoral
Convite de
outros líderes
Convite de
outros líderes
Convite de
outros líderes
Motivação Mudar, inovar Não percebe
(ou não cita)
Gostar do que
faz
Não percebe
(ou não cita)
Nº de presidências 2 1 2 2
Conceito
liderança
(ideias centrais)
Sintetizar
sentimentos do
grupo,
capacidade de
ouvir
Agregar em
torno de ideias,
formar equipes
e organizar
trabalho
coletivo
Sintetizar
sentimentos do
grupo,
capacidade de
ouvir
Mudar
realidade,
diminuir
incertezas
Características
de um líder
Ouvir, propor
sem impor, se
colocar em
disponibilidade
Formas
equipes e
organizar
trabalho
coletivo
Ouvir, ter
independência
(financeira e
de opinião)
Ter visão,
capacidade de
síntese,
diminuir
incertezas
Domínios
NEO-Pi-R
N
E
O
A
C
3
4
4
3
2
2
2
3
3
5
3
4
4
4
3
1
4
5
2
3
322
Comparando os quatro entrevistados, não é possível identificar diferenças marcantes.
Nos domínios de personalidade, o entrevistado (31) apresenta um perfil muito próximo do
entrevistado (2). Talvez, a diferença mais significativa entre os dois possa ser observada na
faceta (A5) a “modéstia”, cujo resultado foi 1- muito baixo para o entrevistado (2) e 3- médio
para o entrevistado (31). O significado dessa diferença será explorado no próximo item, que
tratará da relação entre o narcisismo e a liderança.
Dois itens que aparecem nas citações do entrevistado (31) e que não são citados pelos
outros, três dizem respeito a: ter como motivação gostar do que faz e considerar uma
característica importante do líder a independência (financeira e de cargo).
Na entrevista, esses dois aspectos foram mencionados do seguinte modo:
(31) [...] você ao mesmo tempo percebe que as pessoas enxergam isso em você e
que... e cabe a você tomar a atitude de ser ou não, de se tornar responsável ou não
por aquilo, quer dizer é uma coisa... pode abrir mão, você pode abrir mão, caso não
tenha interesse. Mas eu sempre tive, eu sempre gostei disso, sempre gostei de ser
solicitado, ser é... é... estimulado a... a... ser líder. Eu acho que isso tem um pouco de
qualidade também, porque é... é... obviamente você se sente bem sendo ouvido e...
e... e perguntado pelas outras pessoas qual direção tomar, qual rumo tomar e... isso
conforta, isso é interessante, porque te dá uma satisfação pessoal de... de poder
interferir no destino, não só seu como do grupo também; tem muito disso.
Em outras palavras, não se percebe, pelas falas ou por características de personalidade,
algo que possa ser considerado significativo para explicar o seu destaque. Entretanto, um
aspecto a ser considerado é o fato de que na época da entrevista os quatro eram presidentes
em exercício do mandato de organizações reconhecidas como muito significativas no grupo
social estudado. Isso ressalta a possibilidade de terem sido os citados apenas porque seriam
referências mais óbvias na exemplificação do conceito que cada entrevistado apresentou sobre
o líder e a liderança.
Outro aspecto a ser analisado entre os quatro mais citados é que, se for considerada a
revisão de Judge, Heller e Mount (2002), o entrevistado (33) seria o que mais se aproximaria
do perfil proposto como o mais favorável tanto à emergência quanto à efetividade da
liderança. Esse entrevistado também foi o mais citado como exemplo positivo de liderança,
em congruência com o previsto na revisão. Por outro lado, também está entre os mais
mencionados como exemplo negativo. Além disso, já foi sugerido que a citação poderia ser
facilitada pelo fato de ele ser uma referência mais fácil, por estar no exercício da liderança de
uma organização de muita visibilidade no grupo social. A compreensão desse resultado pode
ser ampliada com alguma informação adicional a ser obtida com a progressão da análise para
323
o segundo item proposto: a investigação das entrevistas dos líderes inativos no âmbito no qual
citam as rejeições.
Para realizar essa exploração, uma forma pode ser a leitura das entrevistas desses
líderes inativos a partir de suas óticas como liderados. Para tanto, e de acordo com o discutido
na seção 2.4.7, o primeiro passo pode ser comparar os domínios de personalidade dos
liderados e dos líderes citados como rejeitados, revisitando também as entrevistas dos
indivíduos nos trechos em que a rejeição foi apresentada.
A comparação entre os domínios da personalidade dos envolvidos nessa comparação –
líderes e liderados – está apresentada na Tabela 31.
Tabela 31 - Comparação dos domínios NEO-PI-R para os indivíduos
citados na rejeição de liderança
ENTREVISTADO
DOMÍNIO
(5)
(6)
(7)
(8)
(14)
(22)
(2)
(17)
(33)
N – Neuroticismo 2 3 3 3 2 2 3 2 1
E – Extroversão 3 4 4 3 4 3 4 2 4
O – Abertura 3 4 2 4 3 4 4 3 5
A – Amabilidade 2 3 4 3 3 2 3 3 2
C – Conscienciosidade 2 4 3 3 4 3 2 5 3
Fonte: dados da pesquisa.
Em resumo, são os seguintes os dados levantados nas entrevistas dos envolvidos:
a) O líder inativo (14) mencionou tanto os líderes (2) e (33) como exemplos negativos de
liderança. A fala pode ser exemplificada da seguinte forma: “o (33), como eu disse, é
um grande executivo [...] mas ele falha muito, ele não preenche esse conceito que eu
tenho de liderança [...] o (2) ele é... encaixou muito bem, mas engraçado que ele
parece que atingiu um patamar e dali num, então desse patamar empacou...”. Na
análise da entrevista e dos dados obtidos na história desse entrevistado observa-se que
ele se identifica com um grupo político contrário ao que, no momento da entrevista,
tinha lideranças como as representadas pelos líderes (2) e (33). Ou seja, é como se
dissesse que mau líder é o líder que “não joga no meu time” – o que, do ponto de vista
da teoria, é congruente. Assim, a rejeição é de ordem política, e não necessariamente
relacionada a aspectos pessoais dos líderes citados;
b) o líder inativo (8) também indicou o líder (2) como exemplo negativo de liderança.
Ressalta-se que esse líder inativo (8) foi o adversário político quando da eleição do
324
líder (2) para o papel que ele hoje ocupa, o que, do mesmo modo que no caso anterior,
pode ser uma explicação para a rejeição;
c) o líder inativo (7) destacou o líder (33) como exemplo negativo de liderança. Também
nesse caso a história política do grupo coloca esses dois líderes em posições com
interesses conflitantes. Em sua argumentação durante a entrevista ficaram explicitadas
as diferenças de interesses: “[...] é muito ruim, às vezes a gente começa a falar das
características dessas pessoas [...] político é igual em qualquer área [...] são pessoas
que mudam muito de casaca, hoje falam umas coisas, amanhã falam outras e agem de
outras maneiras”. Assim, novamente, a posição política antagônica pode explicar –
ainda que em parte – a rejeição;
d) o líder inativo (6) escolheu o líder (2) como exemplo negativo de liderança. Nesse
caso, não houve fato político identificado na trajetória comum entre os dois com
potencial para explicar a rejeição. Comparando-se os resultados dos domínios de
personalidade, chama atenção a similaridade dos resultados – com exceção apenas da
faceta (C), a qual não foi relacionada como importante para a relação líder-liderado.
Essa similaridade, de acordo com o trabalho de Schyns e Felfe (2006), poderia facilitar
a percepção da liderança transformacional pelo liderado – o que, no caso, não ocorreu. Para
esse caso, dois questionamentos podem ser levantados: se a liderança não é transformacional,
a similaridade de personalidade poderia atuar como rejeição do líder?; e a presença da faceta
A5 (modéstia) muito baixa no líder ativo (2) e média naquele que está no papel de liderado
poderia ser fator de rejeição em indivíduos que apresentam características semelhantes de
personalidade? Esses são questionamentos para os quais os dados levantados até o momento
não fornecem pistas que possam orientar na busca de uma resposta.
a) O líder inativo (22) apontou o líder (17) como exemplo negativo de liderança. Ambos
não ocupam posição politicamente antagônica; a identificação negativa está expressa
na fala: “[...] ele é um bom gestor, faz o negócio direitinho... Mas líder ele não é não”.
Nesse caso, então, avaliam-se os resultados dos domínios de personalidade, que nos
dois casos estão próximos da média de ambos os grupos. Exceto pela faceta (C), não
há distorções que chamem a atenção (não se podendo responsabilizar características de
personalidade de ambos pela rejeição) – lembrando que (C) alto está muito ligado ao
empenho na execução de tarefas, o que foi identificado na fala. Ou seja, nesse caso,
nem posicionamento político antagônico, nem aspectos relacionados à personalidade,
325
estariam relacionados à rejeição. Mas, como esse líder foi citado por outro líder
inativo, a investigação dessa outra rejeição talvez possa ajudar a esclarecer esse caso;
b) o líder inativo (5) identificou o mesmo líder (17) como exemplo negativo de liderança.
Também nesse caso não existe antagonismo político. A rejeição está expressa na fala:
“[...] não é um líder mobilizador. Um cara bacana, gosto demais dele,
interessantíssimo, mas não é um líder... não tem essa característica”. Comparando os
domínios de personalidade, também nesse caso os resultados estão muito próximos.
Exceto pela faceta (C), não se podem identificar distorções importantes. Assim, não se
obteve, com os dados levantados até o momento elementos que pudessem explicar a
rejeição da liderança no caso do líder ativo (17).
Em resumo, a rejeição percebida entre os entrevistados não se opõe, mas também não
corrobora o que os pesquisadores têm apresentado sobre a relação entre as características de
personalidade de líderes e liderados e as relações de liderança, estando em muitos dos casos
ligada apenas a questões de oposição de ordem política – o que se justifica pelo perfil dos
indivíduos entrevistados. Ou seja, as razões pelas quais ocorrem as rejeições de liderança
parecem mais complexas do que as apresentadas pela literatura consultada, merecendo ser
mais bem exploradas – talvez, com um outro tipo de pesquisa voltada para essa finalidade.
Outra questão a ser explorada diz respeito aos indivíduos que, na Tabela 29, foram
citados como líderes, mas que fazem parte do grupo dos que não estão em atividade. Essa
análise tem importância para este trabalho, uma vez que a ótica é invertida (líderes não ativos
que são vistos como líderes efetivos). Pode-se estabelecer para esses três indivíduos o mesmo
tipo de comparação, cujo resultado está apresentado no Quadro 5.
326
Quadro 5 - Comparativo de características de três líderes inativos, citados como sendo
exemplo de líder citados como sendo exemplo de líderes
Fonte: dados da pesquisa.
O que pode ser percebido a partir de uma análise comparativa de cada item é que os
três são bem diferentes, de modo que, quando são identificadas semelhanças para dois dos
entrevistados em um aspecto, nos itens subsequentes eles serão bem diferentes – ainda que um
dos dois possa ser semelhante ao terceiro naquele aspecto avaliado.
No que se refere à personalidade, nos dois primeiros domínios os três são semelhantes
e seguem a mediana dos dois grupos. Mas nos domínios (A) e (C) os três apresentam
resultados bem diversos – baixo para (5), alto para (34) e médio a baixo para (22). No
domínio (O) o entrevistado (5) segue a média dos grupos e os (22) e (34) apresentam
resultado mais alto que a média. Em resumo, não há algo que possa ajudar a destacar os três,
(5) (22) (34)
Idade 54 53 55
Início do relato Infância/família Adolescência Universidade
Modelo líder Pai e irmão mais velho Avô Irmão mais velho
Vivência familiar Sem vivência política
na família
Parente próximo
político
Sem vivência
política na família
Forma de início Solicitação dos
liderados
Disputa
eleitoral
Disputa eleitoral
Forma das demais Disputa eleitoral Convite de outros
líderes
Disputa eleitoral
Motivação Gostar do que faz Mudar, inovar Mudar, inovar
Nº de presidências 2 1 3
Conceito liderança
(ideias centrais)
Capacidades de ouvir,
de sintetizar
sentimentos do grupo, e
de influenciar
Transmitir confiança,
e ter um desejo de
mudar a realidade
Ter um desejo de
mudar a realidade
Características
de um líder
Ouvir, e falar sabendo
o que as pessoas
querem ouvir,
buscando convencer o
grupo, mas sabendo
que pode estar errado
Ouvir, e falar
buscando convencer o
grupo. Transmitir
confiança, ter
independência e visão
ampla das coisas
Falar, buscando
convencer o
grupo
Domínios
NEO-Pi-R
N
E
O
A
C
2
3
3
2
2
2
3
4
2
3
2
3
4
4
4
327
sob o aspecto de alguma percepção diferenciada da personalidade do líder pelo liderado,
como foi abordado na seção 2.4.7. A questão é que para esses três não cabe a explicação de
lembrança como referência por estar em exercício atual de papel de liderança, uma vez que os
três são líderes inativos.
Voltando ao texto das entrevistas dos indivíduos que fizeram as referências aos três,
percebe-se que um histórico de liderança em comum a dois deles – os entrevistados (5) e (34)
– e que por isso se citam mutuamente. Mas o entrevistado (34) teve outras duas citações.
Investigando as entrevistas, identificou-se que elas partiram de indivíduos que, apesar de
atualmente inativos, exerciam papel de liderança na mesma época que o entrevistado (34).
Fica claro, então, o mecanismo de referência e contrarreferência entre indivíduos que eram
líderes de instituições que, à época, eram próximas em relação ao seu objetivo social.
Já o líder inativo (22) foi citado por quatro outros como exemplo de liderança, entre os
quais dois são líderes inativos – os entrevistados (7) e (26) – e dois em atividade – os
entrevistados (25) e (31). Em todos os casos, encontrou-se a mesma motivação descrita na
situação anterior, ou seja, o fato de que houve concomitância no exercício do papel de
liderança entre os envolvidos. Mas, onde estaria a diferença relacionada à citação por parte
dos dois líderes que estão em atividade – o que não aconteceu nos dois outros casos
abordados? Voltando à entrevista, o que se percebe é que o último papel de líder exercido
pelo entrevistado (22) foi na mesma organização na qual os líderes em atividade (25) e (31)
também eram líderes naquele momento e o entrevistado (22) foi lembrado, durante a
entrevista, no contexto de uma crítica por ele exercida a outros líderes da época. Ou seja, a
lembrança se deve mais à sua posição de par em relação aos entrevistados que o citaram do
que de algo que poderia ser identificado como próprio da relação entre líder e liderado.
Para finalizar esta parte da análise, observa-se que alguns dos políticos atualmente em
exercício foram citados como referências positivas e negativas de liderança. Em geral, as
observações sobre eles ou ficaram próximas do senso comum ou eram marcadas pela
proximidade partidária – como entrevistados ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT)
citando o Luís Inácio Lula da Silva ou aqueles ligados ao Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB) citando Fernando Henrique Cardoso.
Também foram citados como referência negativa (de não liderança) outros indivíduos
que são líderes de organizações que não se enquadraram nos critérios de escolha para esta tese
e que por isso não puderam ser incluídos nos mesmos critérios para a análise.
Para essas duas últimas situações, vale a mesma observação anteriormente apresentada
para os líderes citados nas Tabelas 29 e 30: a de que a exposição pública desses indivíduos,
328
em posição de destaque em relação às instituições que representam, é o que pode se constituir
na explicação mais plausível para a sua lembrança como referência, negativa ou positiva, da
liderança.
H) Narcisimo e liderança
Há ainda um último aspecto a ser investigado no conceito de liderança. É o que diz
respeito ao que foi abordado na teoria na seção 2.4.2.2, onde foi tratada a relação entre o
narcisismo e a liderança.
Durante as entrevistas, foram feitas algumas referências a lideranças que ou são hoje
lideranças em outros setores que não fazem parte da rede profissional citada ou estão na rede
profissional, mas na direção de organizações que, por não serem de caráter associativo, não
tiveram os seus líderes escolhidos para participarem das entrevistas.
Muitos dos adjetivos usados para esses indivíduos podem ser encontrados na
caracterização que Kets de Vries (1990) realiza a respeito do líder narcísico. Por não terem se
enquadrado nos critérios para a participação nas entrevistas, eles serão identificados aqui
como “x” e “y”. Algumas citações desses casos são:
(3) Um cara vaidoso. Eu vejo assim, o “x” tinha liderança, mas tudo em função dele;
(15) O “x” é uma pessoa, o tipo de liderança que eu não acho boa [...]
antidemocrática, né, muito personalista, vaidoso [...] me incomoda muito;
(22) O “x” é liderança... mas Hitler também era; e, em outro momento: o “y” tá no
mesmo padrão: vaidoso, egolátrico, só enxerga ele mesmo;
(31) Tem características que são muito piores, que são mais é... questionáveis e
criticáveis, que é o líder mentiroso, o líder oportunista, [...] tudo isso somado e
presente na mesma pessoa, que é o “x”; e, em outro ponto, abordando a mesma
pessoa: na verdade está basicamente cumprindo um objetivo pessoal [...] vaidoso ...
(11) O “y”... esse só representa ele mesmo;
(21) Olha, eu acho que o “y” é uma liderança realmente negativa [...] eu acho que
essa não é uma liderança que eu gostaria de estar compartilhando muita coisa;
(27) O “y”, eu tenho bastante aversão a ele, o jeito dele, sabe, assim, meio vaidoso...
num... não me representa.
329
O primeiro aspecto a ser verificado aqui diz respeito às sensações desencadeadas por
esses líderes nos liderados entrevistados: “[...] me incomoda muito”, “não gostaria de estar
compartilhando” ou “aversão”. E, como caracterização desses indivíduos, o adjetivo vaidoso
foi o mais diretamente citado pela maioria dos entrevistados. Infelizmente, considerando os
objetivos desta pesquisa, não foi possível detalhar as características de personalidade desses
dois indivíduos, uma vez que não foram entrevistados.
Mas, e para os que foram entrevistados, o que se poderia dizer referente ao narcisismo
entre os líderes das organizações associativas e os inativos?
A partir do que foi apresentado na seção 3.4.3.2, decidiu-se buscar no material os
indivíduos que apresentaram a faceta A5 (modéstia) na classificação “muito baixo” e
observou-se que apenas dois indivíduos entre os 33 apresentaram essa classificação: o
entrevistado (2), entre os líderes em atividade, e o entrevistado (26), entre aqueles que não
estavam nesse papel.
Comparando-se os resultados de todas as planilhas (e, portanto, das categorias
identificadas a partir das entrevistas), não se registraram muitos aspectos em comum aos dois.
Foram comuns, a ambos os entrevistados, os seguintes aspectos:
a) Eles têm os pais (o pai e a mãe) como referência de liderança;
b) participaram ativamente da política estudantil, inclusive com filiação a partidos;
c) iniciaram em papéis de liderança por demanda da base;
d) não fizeram referência de se sentirem sacrificados ou explorados, exercendo o papel;
e) houve coincidência em mais de 50% das referências que ambos fizeram aos indivíduos
que eles identificaram como sendo liderança verdadeira;
f) houve coincidência na caracterização de liderança, como sendo uma atividade que
exige tanto a capacidade para ouvir os liderados como a disponibilidade para dedicar
tempo; e
g) considerando a revisão de Judge, Heller e Mount (2002), ambos apresentam altas
extroversão e abertura. O neuroticismo não é congruente, sendo médio para (2) e
muito baixo para o (26).
Deve ser registrado que o líder (2) foi um dos três citados na Tabela 27, relacionada à
rejeição da liderança. O entrevistado (26) não foi citado – talvez, como discutido para as
tabelas 29 e 30, por ser líder inativo, não teria sido lembrado como líder pelos entrevistados
no momento da pesquisa.
330
Um aspecto cuja investigação que pode ajudar na compreensão da relação entre o
narcisismo e a rejeição da liderança é a avaliação do resultado da faceta (A5) para todos os
citados como não sendo exemplo de liderança. O resultado foi:
Tabela 32 - Faceta (A5) nos sete entrevistados rejeitados como liderança
Fonte: dados da pesquisa.
Avaliando os resultados, nota-se que:
a) Nenhum dos mencionados apresentou resultado “alto” ou “muito alto” para a faceta
A5;
b) os dois únicos resultados “muito baixo” de todo o conjunto de entrevistados – os dos
líderes ativo (2) e inativo (26) – estão entre os destacados na rejeição de liderança;
c) o líder ativo (33), também com mais indicações de rejeição, apresenta o resultado
“baixo”, portanto, abaixo da mediana dessa faceta para o grupo, que é o resultado
“médio”;
d) o líder ativo (17) e os demais que tiveram apenas uma citação – o líder ativo (12) e os
inativos (26), (27) e (30) – apresentam resultado “médio”, o que coincide com a
mediana de todos os entrevistados;
Esse resultado revela a possibilidade de que a percepção de níveis mais baixos de
modéstia (A5) pode ser um fator de estímulo à rejeição do líder. Em alguns casos pode estar
associado às características do que foi descrito como narcisismo, pelo menos para os liderados
que também são líderes e dentro do grupo social estudado.
O próximo passo diz respeito às comparações entre os dois grupos, relacionadas aos
aspectos familiares e sociais dos entrevistados, os quais, na ótica de algumas das abordagens
sobre liderança – como apresentado na teoria –, poderiam ter exercido alguma influência para
que o indivíduo se dispusesse a assumir papel de líder nos grupos sociais dos quais participa.
5.3 Aspectos familiares e sociais relacionados com a liderança
Como foi apresentado no referencial teórico nas seções 2.4.5 e 2.5.2, existem disputas
quanto à existência de características de personalidade ou de outras situações relacionadas à
ENTREVISTADO (2) (12) (17) (26) (27) (30) (33)
FACETA (A5) 1 3 3 1 3 3 2
331
história do indivíduo. As primeiras, teoricamente, poderiam ser identificadas precocemente na
vida do indivíduo; e as últimas estariam relacionadas, na infância, mais à vida familiar e às
influências sociais percebidas dentro da estrutura familiar, que pudessem influenciar na
expressão de um comportamento que fosse precocemente percebido socialmente como sendo
característico do comportamento de um líder.
Quais seriam as características de tal comportamento não foi previamente
determinado, uma vez que, sendo algo socialmente percebido, pode variar de acordo com o
grupo social. Desta forma, o que se procurou foi identificar essas características a partir do
relato dos entrevistados.
Como orientação para o pesquisador, o esperado, a partir da teoria, era que esse
comportamento devesse envolver alguma forma de influência. A expressão dessa influência
também poderia ser observada tanto na vida escolar – na infância ou na adolescência – como
na vida social mais ampliada, em cidades menores ou em grupos sociais (como grupos
religiosos ou grupos com finalidade recreativa, como os desportivos) em cidades maiores.
Deve-se lembrar, ainda, que, de acordo com Gardner (1996, p. 112), “se os líderes
querem ser efetivos, eles devem incorporar a história de suas próprias vidas”. E que, segundo
Shamir Dayan-Horesh e Adler (2005), essas histórias devem expressar a identidade do
narrador, resultante da relação entre a experiência e a história organizada da experiência,
processo no qual ele não somente narra, mas justifica.
Em relação à história da própria vida, buscaram-se narrativas construídas para
explicar como se desenvolveu o papel de líder e o seu autoconceito, o que vai incluir a
identidade de líder – que pode envolver a história de seu autodesenvolvimento (SHAMIR;
DAYAN-HORESH; ADLER, 2005).
Os relatos foram, então, organizados de modo a produzir informações relacionadas a
cada uma dessas etapas da história do indivíduo e as categorias foram constituídas de modo a
se poder realizar comparações entre as informações.
As categorias que nasceram das entrevistas estão relacionadas aos seguintes âmbitos:
A) A influência familiar
A maior parte dos entrevistados, independentemente de ter relacionado o início da
expressão da liderança à infância, foi capaz de citar – em sua grande maioria de forma
espontânea – algum modelo familiar próximo para o exercício da liderança.
Esses modelos foram distribuídos em sete classes:
332
I: o pai;
II: os pais;
III: a mãe;
IV: um parente de primeiro grau – como um tio ou um primo de primeiro grau;
V: um irmão(ã) mais velho(a) – não necessariamente o primogênito ;
VI: um avô – ou ambos os avós (masculinos);
VII: sem referência familiar – ou não houve citação de um familiar como influência.
O total em cada grupo pode ficar superior ao número de indivíduos, no caso de haver
mais de uma citação de influência. A distribuição de frequências para os dois grupos ficou
como mostra a Tabela 33.
Tabela 33 - Distribuição de frequências: influência familiar
para a história de liderança
Fonte: dados da pesquisa.
Pode-se perceber uma semelhança muito acentuada entre os dois grupos, tanto quando
se consideram os itens isoladamente como em pequenos conjuntos – como é o caso, por
exemplo, da influência dos pais, isoladamente ou em conjunto (itens I, II e III).
Entre os sete itens, o que destoa é o referente à influência do pai, o qual foi citado,
isoladamente ou em conjunto com a mãe, em mais da metade dos casos (10 citações entre
líderes ativos e nove entre os inativos). Note-se também que se forem observadas apenas as
influências familiares masculinas, elas representam a grande maioria nos dois grupos – 10 de
17 citações (ou 58,8%) para os líderes ativos e 14 de 19 citações (73,68%) para os inativos.
Considerando a influência familiar, volta-se a atenção, como objeto de investigação,
para o que foge ao esperado e ao senso comum: os casos únicos nos dois grupos que têm a
mãe como referência, e o líder inativo (34) que cita a irmã mais velha como influência.
No caso das citações maternas, trata-se dos entrevistados de números (7) entre os
líderes inativos, 59 anos, masculino e uma presidência, e o de número (18) entre os ativos, 65
anos, masculino, com duas presidências de organizações associativas em suas histórias.
I
Pai
II
Pais
I+II III
Mãe
IV V VI VI
I
I+IV+V+V
I
Masculino
Total
LÍDER ATIVO 7 3 10 1 0 2 1 3 10 17
LÍDER INATIVO 7 2 9 1 2 3 2 2 14 19
333
Primeiramente, vê-se como foi a referência à influência materna:
(7) [...] minha mãe tinha um espírito desse também, entendeu... minha mãe é... na
minha época, minha mãe já estava mais velha, então ela mexia com comércio, essa
coisa toda. Mas na história dela ela sempre teve uma participação maior. Acho que
eu puxei isso dela: uma participação, assim, de estar ali, dentro da turma, né? Então,
por ser um aluno na época, um bom aluno – ao menos pros padrões do lugar que eu
estudava [...].
(18) [...] minha mãe era uma ativista na política municipal. O pai dela, meu avô [...]
era um líder. Tanto é que a rua que tem o nome dele lá em (cidade) é Coronel [...].
Outros aspectos que os dois possuem em comum: a religião não teve qualquer
influência identificada sobre eles, também não tiveram participação político-partidária, mas
ambos relataram que já na infância ocupavam papel central entre os colegas de escola em
termos de organização de atividades – sociais, no caso (7), como já apresentado na seção
anterior, e políticas, no (18), assim caracterizado:
(18) Eu tinha 15 anos [...] faltou energia elétrica lá e era dito que por causa da
inércia do prefeito [...] então nós reunimos na praça pra soltar umas bombas e no dia
seguinte nós: “ah, vamos fazer um dia do enterro”, fizemos o enterro do prefeito,
apesar da polícia ter tentado desafiar a gente, né? Esse foi o primeiro movimento
que eu fiz.
Ambos tanto começaram a ocupar papéis de liderança como tiveram sua participação
posterior motivada por convite de outros líderes – e não por disputas eleitorais ou demanda de
liderados. Também ambos não citaram motivação pessoal para assumir esses papéis. Além
disso, os dois veem o papel de liderança como sendo um sacrifício pessoal.
Sob todos os demais aspectos da pesquisa, os dois entrevistados apresentaram posições
diferentes. Por exemplo, quando solicitados a caracterizar a liderança, as respostas foram:
(7) [risos] senão a gente começa a entrar de novo... apesar de estar aqui na
intimidade com você e ter toda a confiança de que as coisas vão ficar entre nós dois,
mas é... é muito ruim... às vezes a gente começar... às vezes falar é... características
dessas pessoas. Mas o que eu acho aqui num... num bate muito com meu conceito,
sabe Zé... político é igual em qualquer área [...] são pessoas que mudam muito de
casaca: hoje falam umas coisas, amanhã falam outra e agem de outras maneiras [...].
(18) O líder é um indivíduo abnegado, disposto a muito sacrifício, desprendido de
egoísmo e sempre pronto a participar dos movimentos aí, principalmente aqueles
que visam o bem estar coletivo... o líder é isso!
Em relação às características de personalidade, o obtido está expresso na Tabela 34:
334
Tabela 34 - Cinco domínios do NEO-PI-R dos dois líderes
com influência materna de liderança
Domínio* Número do entrevistado
(7) (18)
Neuroticismo (N) 3 2
Extroversão (E) 4 3
Abertura (O) 2 2
Amabilidade (A) 4 3
Consciensiosidade (C) 3 3
* Valores, em cada domínio, correspondem a: (1) muito baixo; (2) baixo;
(3) médio; (4) alto; (5) muito alto
Fonte: dados da pesquisa.
Não se pode falar de distorções significativas na comparação entre os dois: o
entrevistado inativo tem um ponto a mais de (N) e (E) em comparação com o líder ativo – o
que significa que o domínio (N) estaria mais dentro do padrão esperado no entrevistado (18) e
o domínio (E) mais dentro do esperado no entrevistado (7), de acordo com a revisão realizada
por Judge, Heller e Mount (2002). Em resumo, com os dados obtidos não foi possível
identificar fatores de diferenciação, entre si ou entre eles e os outros líderes estudados.
No caso do líder inativo (34) que cita a irmã, ele o faz em conjunto com um irmão,
sem identificar alguma diferença na influência exercida pelos dois – apenas o fato de serem
mais velhos: “Tinha meu irmão, tinha minha irmã, tinha os amigos...”. Ainda assim, por ser
um tipo de referência que foge ao comumente citado, deve ficar aqui registrada.
B) Vivência familiar referente à atividade político-partidária
Muitos dos indivíduos se referiram, espontaneamente, a uma vivência familiar
referente à atividade político-partidária. No caso dos entrevistados que não fizeram essa
referência espontaneamente, foi feita uma pergunta direta, em algum ponto da entrevista,
quando surgia uma oportunidade adequada para tal. A finalidade de se fazer a pergunta direta
era a de, nesse caso, criar um termo de comparação para os dois grupos, relacionado a esse
aspecto. Os relatos foram, ao final, divididos em sete itens básicos:
I: o pai foi político;
II: os pais participavam de partidos políticos, mas nunca foram candidatos;
III: irmão(s) político(s);
IV: um parente de primeiro grau era político: um tio, um primo de primeiro grau ou avô;
V: o entrevistado não teve convivência com atividade político-partidária na vida familiar;
VI: a família participava de atividade política, mas sem envolvimento atividade partidária;
335
VII: convivência próxima com político, mas que não era familiar próximo (primeiro grau).
Ao se considerar a informação do entrevistado quanto a ter ou não vivenciado
atividade política em sua vida familiar – fato relacionado mais especificamente à infância do
indivíduo –, a distribuição de frequências ficou como está expresso na Tabela 35:
Tabela 35 - Distribuição de frequências: vivência familiar
com atividade político-partidária
Fonte: dados da pesquisa.
O que se percebe é que os dois grupos são bem semelhantes quanto a esse aspecto, não
sendo possível identificar alguma distorção que pudesse estimular uma investigação.
Também chama a atenção o fato de que a maior concentração, nos dois casos, é de
indivíduos que não tiveram qualquer experiência vivencial com atividade político-partidária:
se forem somadas as ocorrências dos itens V e VI, isso vai significar mais da metade dos dois
grupos: nove de 17 líderes ativos (ou 53%) e 10 de 18 líderes inativos (ou 55,55%).
Ou seja, não existem evidências de que esse tipo de vivência possa ter exercido
alguma influência na história e as atividades de liderança para a maioria dos indivíduos desse
grupo social – não se podendo descartar essa influência em casos isolados.
Em outros termos, se esse tipo de influência pode ser importante em uma história de
vida específica, por outro lado não existem evidências de que seja um tipo de influência
esperada para que um indivíduo se motive a assumir esses papéis – pelo menos dentro do
grupo social estudado.
C) Posição entre os irmãos
A literatura consultada não fez referência a influências que poderiam ter sido
induzidas pela posição do indivíduo entre os irmãos. Esse, entretanto, foi um aspecto
espontaneamente citado por muitos dos entrevistados. E, como foi citado, produziu uma
categoria, que será aqui constituída para facilitar a visualização de congruências ou
inconsistências entre os dois grupos.
A divisão foi realizada de modo a explicitar a sua posição entre os irmãos:
I II III IV V VI VII V+VI TOTAL
LÍDER EM ATIVIDADE 2 1 2 2 6 3 1 9 17
LÍDER INATIVO 3 0 1 3 7 3 1 10 18
336
I: o entrevistado é o irmão mais velho;
II: o entrevistado é o irmão do meio;
III: o entrevistado é o irmão caçula;
IV: não informa ou a pergunta não é pertinente – por exemplo, não tem irmãos.
A distribuição de frequências encontra-se na Tabela 36:
Tabela 36 - Distribuição de frequências: posição
do entrevistado entre os irmãos
Fonte: dados da pesquisa.
Entre os líderes em atividade, a distribuição entre os quatro itens é tal que não se pode
falar de alguma tendência nesse sentido. Já entre os inativos, há mais concentração de
indivíduos na posição intermediária entre os irmãos – nove de 17 casos ou 53%.
Para avaliar se essa diferença poderia significar algum tipo de tendência, investigam-
se: a distribuição de frequências entre os irmãos dos líderes inativos que estão em posição
intermediária entre os irmãos e a liderança que se observa entre os irmãos, considerados
ambos os grupos:
a) A distribuição de frequências para a liderança, entre os irmãos dos líderes inativos
que estão em posição intermediária, será conduzida a partir das falas das entrevistas.
Buscando-se nessas entrevistas algo que pudesse traduzir uma influência relacionada a essa
posição entre os irmãos, para os nove entrevistados o que se encontra é o seguinte:
(4) – O irmão caçula é liderança local, mas o irmão mais velho não é citado como tal;
(6) – existem líderes entre irmãos mais velhos e entre os mais novos;
(7) – não há lideranças identificadas entre os irmãos, mais velhos ou mais novos;
(8) – um irmão mais novo é uma liderança local. Os demais não são citados como tal;
(16) – foi muito influenciado pelo irmão mais velho, que o entrevistado define como
“diferenciado” do ponto de vista intelectual, o qual teve uma trajetória pessoal vitoriosa
na carreira profissional – mas sem citação de destaques na representação de interesses
coletivos;
I II III IV Total
LÍDER EM ATIVIDADE 5 3 3 5 16
LÍDER INATIVO 3 9 3 2 17
337
(19) – identifica características de liderança no irmão caçula, mas não nos outros;
(26) – não identifica liderança entre os irmãos;
(28) – irmão mais velho é liderança em vários dos grupos sociais dos quais participa;
(34) – o irmão mais velho foi liderança político-partidária.
Para facilitar a comparação, esses resultados estão organizados na Tabela 37:
Tabela 37 - Distribuição de frequências: lideranças entre os irmãos
Fonte: dados da pesquisa.
Ou seja, ao se fazer a distribuição de frequência dos irmãos que foram identificados
pelo entrevistado como sendo a fonte de influência para a liderança, o que se percebe é uma
distribuição bem equitativa – e que, por isso, não mostra alguma tendência específica.
Assim, não há evidências de que estar na posição intermediária entre os irmãos seja
um fator influenciador na liderança, no caso de líderes que não estão mais nesse papel.
b) Distribuição de frequência para a liderança entre os irmãos, de ambos os grupos
Quanto à repercussão das vivências familiares sobre os irmãos, da mesma forma que
no item anterior, esse foi um dado espontaneamente relatado por muitos dos entrevistados.
Também para efeito de comparação, nas entrevistas em que não houve relato espontâneo, este
foi estimulado pelo entrevistador, também para facilitar a comparação entre os grupos.
Importante acrescentar que o critério para a caracterização da liderança era dado pelo
entrevistado, mas que em todos os casos essa caracterização ficou congruente com aquela que
o entrevistado havia estabelecido para si mesmo – a qual, por definição, está dentro dos
critérios estabelecidos para a pesquisa.
Os relatos foram divididos em sete itens:
I: o irmão mais velho é líder;
II: algum(ns) do(s) irmão(s) do sexo masculino são(é) líder(es);
III: todos os irmãos são líderes;
IV: nenhum dos irmãos é líder;
Posição do(s) irmão(s) que é(são) líder(es)
Mais
novo
Mais
velho
Mais velhos e
mais novos
Nenhum
dos irmãos
Total
LÍDER INATIVO 3 3 1 2 9
338
V: alguns dos irmãos são líderes – homens e/ou mulheres – mas não todos;
VI: não se aplica – por exemplo, não tem irmãos ou não cita;
VII: alguma(s) da(s) irmã(s) do sexo feminino são(é) líder(es).
A Tabela 38 mostra como ficou a distribuição de frequências nesse caso:
Tabela 38 - Distribuição de frequências: liderança entre
os irmãos do entrevistado
Fonte: dados da pesquisa.
A distorção mais significativa – a do item VI (não se aplica, por não ser algo citado ou
por não ter irmãos) – não parece ser relevante, uma vez que apenas se refere aos casos nos
quais a observação não se aplica.
Além disso, como se pode ver pelas duas colunas finais da Tabela 38, existe uma
distribuição equitativa nos dois grupos – de irmãos que expressam o que o entrevistado
identifica como sendo características de liderança e daqueles que não as expressam.
Desta forma, não se encontrou, para esse item, alguma distorção que pudesse estimular
uma investigação específica, não havendo evidências de que a posição do indivíduo, entre os
irmãos, possa se constituir em um fator que tenha relevância na formação de um indivíduo
que deverá se tornar um líder em seu grupo social.
5.4 Ocorrências na história do indivíduo indutoras para a liderança
Aqui serão investigadas as ocorrências na história do indivíduo que poderiam ser
indutoras para o entrevistado assumir papéis de liderança durante sua vida. Novamente,
a base teórica que fornece sustentação para essa linha de investigação pode ser encontrada, de
modo especial, em Lasswell (1963), na seção 3.4.5, e nos autores discutidos na seção 3.5.2
(liderança e história de vida).
A divisão da discussão, entretanto, será realizada a partir das categorias identificadas
nas entrevistas, e não a partir de alguma outra categoria teórica apresentada na literatura.
I II III IV V VI VII Nenhum é
líder
IV+IV
Algum é líder
I+II+III+V+VII
LÍDER ATIVO 3 2 1 4 2 4 0 8 8
LÍDER INATIVO 3 4 0 7 1 1 1 8 9
339
A) Momento identificado pelo entrevistado como referência para início do relato
No início da entrevista, ao respondente era solicitado que contasse sua história
relacionada à liderança. Se o entrevistado perguntasse a partir de qual momento deveria
iniciar o relato ou sobre o tipo de atividade que deveria considerar para esse início, era
respondido que ele poderia fazer a escolha que quisesse. A ideia aqui era saber qual seria, na
percepção dele, o momento-chave para o início de sua trajetória como líder.
Analisando as respostas, foi possível dividir esse início do relato em seis momentos:
I: primeira infância, na vida familiar;
II: primeira infância, na vida escolar;
III: na adolescência – escola ou grupos sociais;
IV: na universidade – movimento estudantil ou grupos sociais;
V: no início da vida profissional – movimentos associativos ou ambientes profissionais;
VI: na vida profissional relacionada à situação atual na qual atua como liderança.
O resultado apresentou a seguinte distribuição de frequências (TAB. 39):
Tabela 39 - Distribuição de frequências: início do relato
de sua história como liderança
Fonte: dados da pesquisa.
Ao se comparar os dois grupos, o que chama a atenção são os seguintes aspectos:
(i) o fato de que apenas um dos indivíduos que atualmente não estão no papel de líder
faz referência à universidade – e, por consequência, ao movimento estudantil – momento esse
que, em contrapartida, foi importante para quase 31% dos líderes em atividade (cinco em 16).
Além disso, ao se somar o período de estudante universitário com aquele
imediatamente relacionado ao início de suas atividades profissionais – período no qual, pelo
que se pode notar em alguns dos relatos, o indivíduo cria e desenvolve a sua identidade com o
seu grupo profissional –, a distorção é ainda mais significativa: quase a metade dos líderes em
atividade (sete de 16 ou 43,75%) refere-se a esse momento o início de suas atividades como
líderes, enquanto apenas um de 17 dos líderes inativos (ou 5,88%) fizeram essa referência.
Como a distorção é significativa, esse aspecto deve ser mais bem estudado.
I II I+II III IV V IV+V VI Total
LÍDER EM ATIVIDADE 1 4 5 1 5 2 7 3 16
LÍDER INATIVO 2 8 10 1 1 0 1 5 17
340
Buscando-se nas entrevistas a forma como a referência foi feita, o que se registra, a
partir das falas, é o seguinte:
a) (3) – Não há relato de participação em movimento estudantil. Mas, assim que se
formou, voltou para sua cidade de origem, tendo assumido logo em seguida um cargo
de diretor da associação de classe de sua cidade;
b) (10) – identifica o início das atividades de liderança na graduação, no que definiu
como sendo “fazer parte de [...] idealizar e definir a direção” da escola;
c) (12) – identifica o seu primeiro papel de liderança na diretoria do diretório acadêmico;
d) (20) – já na entrada para a universidade foi eleito líder de turma, tendo participado da
fundação do diretório acadêmico do instituto de ciências básicas recém-formado, ao
qual estava ligado o seu curso. Mas ao ser questionado mais especificamente sobre os
períodos anteriores de vida, o entrevistado resgata o fato de ter estado em alguma
posição de liderança desde a infância: “se eu olhar pra trás, se eu olhar a minha
infância, desde menino é isso, era a mesma coisa com o time de futebol de várzea
[...]”.
e) (21) – Relata nunca ter liderado qualquer atividade de grupo antes de entrar para a
faculdade. Mas já com dois anos de faculdade foi eleito para a direção do diretório
acadêmico e desde então nunca mais deixou de participar em atividades, inclusive as
político-partidárias;
f) (24) – Nunca teve qualquer participação como liderança de grupos antes da
universidade: “Então, até o segundo grau eu não... estudei demais, né”. Mas, ao entrar
para a faculdade, já no “primeiro dia que eu entrei na (faculdade) pensei em me
candidatar, então no primeiro ano já ganhei a [associação de classe] [...] eu parava a
escola de greve pra poder não ter aumento [...]” - e desde então vem encabeçando
vários movimentos e atividades em seu grupo profissional.
g) (32) – Sem qualquer relato de papéis de liderança antes de terminar a faculdade. Mas
já nos primeiros meses de vida profissional encabeçou a criação de uma associação de
classe, a partir do que se manteve na liderança de várias associações de caráter
profissional, até hoje.
Para o líder inativo, o que se observa da entrevista foi que:
a) (34) – Nunca teve experiência de liderança de grupos sociais até entrar para a
faculdade, período no qual iniciou com uma militância política, participando – mas
não liderando – do diretório acadêmico. Seus papéis de liderança mais expressivos
341
começaram logo no início da vida profissional, quando assumiu a liderança de vários
movimentos e instituições de caracteres associativos, chegando, inclusive, à direção
estadual de partido político.
(ii) a referência à infância foi mais significativa para líderes inativos, que apresentam
mais do que o dobro de ocorrências (10 casos) em relação àqueles em atividade (cinco
casos).
Pode-se investigar se existiriam diferenças significativas na personalidade dos dois
conjuntos de líderes, que são formados pelos seguintes entrevistados:
Início na infância: (3), (10), (12), (20), (21), (24), (32), e (34).
Início na vida profissional: (2), (4), (5), (7), (11), (16), (17), (19), (23), (26), (28), (29),
(30), (31), e (33).
Vê-se o resultado na Tabela 40:
Tabela 40 - Comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R: início do relato na
infância x na vida profissional
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Infância 2,0 (Baixo) 0,0 -1,0 e 1,0 0,6985
Fase profissional 2,0 (Baixo)
Extroversão Infância 3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 0,0 0,2200
Fase profissional 4,0 (Alto)
Abertura Infância 3,0 (Médio) -1,0 -1,0 e 0,0 0,1752
Fase profissional 4,0 (Alto)
Amabilidade Infância 4,0 (Alto) 0,0 0,0002 e
1,0001
0,1967
Fase profissional 3,0 (Médio)
Consciensiosidade Infância 3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 1,0 1,0000
Fase profissional 3,0 (Médio)
Fonte: dados da pesquisa.
Novamente, como se pode constatar pelos dados da tabela, para todos os cinco
domínios o p-valor esteve acima de 0,05, não se rejeitando a hipótese nula de que os grupos
são iguais. Em outras palavras, não há evidências de que alguma característica do indivíduo
ligada à personalidade poderia estar ligada à identificação, pelo entrevistado, de que o seu
papel de líder tenha sido marcado por fatos ocorridos na infância ou na vida adulta.
Outro achado a ser investigado diz respeito à percepção do fator que poderia estar
associado à identificação, por parte do entrevistado, da identificação social de seu papel de
342
líder, nos casos em que a vida escolar, na escola de primeiro grau, foi identificada como o
início de sua história de liderança.
Nesses casos, foram identificados os seguintes itens relatados:
I: ser bom aluno;
II: ser bom em esportes;
III: ser bom para organizar a vida social;
IV: identificado pelos colegas como representante de grupo;
V: sem citação de escola primeiro grau;
VI: características pessoais (que ele não consegue caracterizar bem).
A distribuição de frequências para os dois grupos ficou como está na Tabela 41, na
qual podem-se agrupar as respostas em dois grandes grupos:
a) O que agrega as categorias I, II e III e que se poderia identificar como estando
relacionado aos atos do entrevistado no seu grupo social; e
b) o que agrega as categorias IV e VI, que se relaciona a características pessoais
identificadas de modo espontâneo pelos pares (ou seja, sobre a qual o entrevistado não
identifica alguma ação motivadora que dele tenha partido).
Tabela 41 - Distribuição de frequências: fator que, na vida escolar,
pode ter contribuído para a liderança
Fonte: dados da pesquisa.
Tendo-se que os indivíduos incluídos agregados nos itens IV e VI não identificam
algum fator que possa ter contribuído para que outros os tivessem percebido como “líderes”
(aqui entre parênteses, por se tratar de uma presunção), é possível que esses indivíduos
possuam alguma característica de personalidade que os diferencie dos restantes.
Para testar essa hipótese, comparam-se os dois conjuntos, que serão denominados:
a) “Ações” (I+II+III), formado pelos entrevistados (6), (7), (8), (11), (13), (15), (16),
(17), (20), (21), (22), (23), (26), (27), (28), (29), (30), (31);
b) “características não identificadas” (IV+VI), formado pelos entrevistados (12), (19),
(25) e (33). O resultado do teste de Mann-Whitney está apresentado na Tabela 42:
I II III I+II+III IV V VI IV+VI
LÍDER EM ATIVIDADE 3 4 1 8 3 7 0 3
LÍDER INATIVO 8 3 2 13 0 4 1 1
343
Tabela 42 - Comparações dos cinco domínios do NEO-PI-R: ações que diferenciam e
características não identificadas
Domínio Líder Mediana Estimativa
Pontual
Intervalo de
confiança
p-valor
Neuroticismo Ações 2,0 (Baixo) 0,0 -1,0 e 1,0 0,8315
Não identificada 2,5 (Baixo)
Extroversão Ações 3,0 (Médio) 0,0 -1,0 e 1,0 0,9661
Não identificada 3,5 (Médio)
Abertura Ações 4,0 (Alto) -1,0 -2,0 e 1,0 0,3714
Não identificada 4,0 (Alto)
Amabilidade Ações 3,0 (Médio) 1,0 0,0 e 1,0 0,1479
Não identificada 3,0 (Médio)
Consciensiosidade Ações 4,0 (Alto) 0,0 -1,0 e 1,0 0,8984
Não identificada 3,5 (Médio)
Fonte: dados da pesquisa.
Mais uma vez o p-valor acima de 0,05 não rejeita a hipótese nula de que os grupos são
iguais. Ou seja, ainda que o entrevistado não tenha identificado algo que pudesse sinalizar
para os colegas de grupo que ele seria um “líder”, não se pode dizer que a sua personalidade,
da forma como se expressa hoje pelos cinco domínios, possa fornecer alguma pista para essa
diferenciação identificada pelo seu grupo social.
B) Atividades de liderança nas quais se envolveu antes da vida universitária
O próximo passo foi a caracterização dos indivíduos dos dois grupos quanto ao tipo de
atividade social na qual ele teve a oportunidade ou intenção ou motivação para participar
como liderança, antes de entrar para a universidade.
Essa participação foi dividida, de modo genérico, em três grandes grupos: liderança
(i) social; (ii) política; e (iii) religiosa.
Para cada um desses grupos, buscou-se identificar, a partir do relato espontâneo das
entrevistas, o tipo de participação que poderia ter tido. Para os indivíduos que não relataram
espontaneamente esse tipo de participação, foi realizada a pergunta direta, dentro das mesmas
categorias já criadas. A divisão final ficou como se segue:
(i) Grupos sociais (GS)
I: organizava festas, teatros, apresentações, etc., entre colegas de escola;
II: organizava festas, teatros, apresentações, etc., entre familiares;
III: ambos os anteriores;
IV: participava, mas não organizava, os eventos sociais entre colegas e familiares;
V: não citou ou não participava de eventos sociais entre colegas e familiares.
344
(ii) Grupos políticos (GP)
I: participava de grupos políticos;
II: não participava de grupos políticos.
(iii) Grupos religiosos (GR)
I: líder de grupo religioso;
II: participou ativamente de grupo religioso, mas não era líder;
III: nunca participou de grupos religiosos, mas família era religiosa;
IV: não havia relação pessoal ou familiar com religião ou não foi um fator importante citado.
A distribuição de frequências, realizada levando-se em consideração cada grupo social
em separado, uma vez que o que se quis foi comparar os dois grupos de líderes dentro dos três
grupos sociais, ficou da seguinte forma (TAB. 43):
Tabela 43 - Distribuição de frequência das características
da liderança para os dois grupos
Fonte: dados da pesquisa.
Alguns aspectos que chamam a atenção nessa tabela:
a) Também sob esse aspecto os dois grupos são muito semelhantes;
b) uma das semelhanças se refere a que a maioria dos indivíduos nos dois grupos não
teve qualquer experiência prévia com atividade representativa de caráter político-
partidária;
c) em relação à liderança em atividades de caráter social, percebe-se que a única
diferença significativa entre os dois grupos é que os líderes em atividades
expressavam essa liderança nos ambientes sociais que uma criança frequenta (família
e escola), enquanto aqueles que estão inativos se concentravam mais na escola. Mas,
no conjunto, quando se considera o fato de já haver algum tipo de expressão de
liderança nas relações sociais da infância – a soma de I+II+III –, pode-se constatar que
os dois grupos também são iguais.
TIPO DE GRUPO
TIPO DE LÍDER
GRUPO
SOCIAL
GRUPO
POLÍTICO
GRUPO
RELIGIOSO
I II III I+II+III IV V I II I II III VI
LÍDER ATIVO 1 1 5 7 3 6 3 12 0 5 4 7
LÍDER INATIVO 5 0 2 7 2 7 1 15 2 3 4 7
345
Em resumo, a semelhança entre os grupos é tão grande que não há algo, sob esse
aspecto, que mereça investigação aprofundada para buscar algo que, fugindo da média ou do
senso comum, possa ressaltar alguma característica diferenciadora da liderança.
C) Participação no movimento estudantil
O próximo passo será, então, investigar a sua participação política e social durante o
período de universidade.
A partir do que foi produzido nos relatos, essa participação foi dividida em três
aspectos: a) o seu envolvimento com a política estudantil, representada por sua participação
em diretórios acadêmicos (DA) e diretório central de estudantes (DCE); b) o seu
envolvimento com a política partidária, representado por sua afiliação a partidos e/ou por sua
atuação como ativista político; c) sua atividade social estudantil, que implica a participação
em comissão de formatura, organização de festas, shows ou quaisquer outras atividades
coletivas das quais possa ter participado na posição de condutor do processo.
Os itens levantados para cada subdivisão foram os seguintes:
(i) Política estudantil
I: participava da diretoria de DA/DCE;
II: participava de DA/DCE, mas não da diretoria;
III: não participava de DA/DCE ou não foi algo importante citado.
(ii) Política partidária
I: participação político-partidária direta (ativista);
II: participação político-partidária indireta (filiação);
III: sem participação político-partidária;
IV: participação política, sem relação com partidos.
(iii) Liderança em atividades sociais estudantis
I: organizava as atividades sociais, por exemplo, shows, festas, comissão de formatura, etc.;
II: participava diretamente, mas não organizava as atividades sociais;
III: pouca participação em atividades sociais ou não foi citado como relevante na sua história.
A distribuição de frequências nesse conjunto de características ficou como
demonstrado na Tabela 44:
346
Tabela 44 - Distribuição de frequência na liderança
estudantil para os dois grupos
TIPO DE LÍDER POLÍTICA
ESTUDANTIL
POLÍTICO-
PARTIDÁRIA
ATIVIDADES
SOCIAIS
I II I+II III I II I+II III IV I II I+II III
LÍDER ATIVO 8 1 9 7 3 1 4 11 1 5 6 11 5
LÍDER INATIVO 5 3 8 9 4 0 4 11 2 5 5 10 7
Fonte: dados da pesquisa.
A soma dos entrevistados identificados nos dois primeiros itens (I+II) indica alguma
forma de participação direta na atividade social que se quer investigar, diferenciando-os
daqueles incluídos nos itens III e IV, que indicam a não participação nessas atividades. Desta
forma, ao se analisar a tabela a partir desses dois conjuntos, o que se percebe é que os dois
grupos são muito semelhantes em todos os três aspectos, não havendo necessidade de se
aprofundar a investigação.
D) Participação em atividades associativas no início da vida profissional
Também interessa saber como foi a participação em atividades sociais no início de sua
atuação como profissional. As atividades sociais que poderiam trazer algum impacto para a
sua história relacionada à liderança podem ser resumidas em basicamente dois grupos:
atividades associativas, que de alguma forma envolvia aspectos voltados para a profissão;
atividades sociais voltadas para o relacionamento entre os indivíduos nos outros campos
sociais, não voltados para os objetivos da profissão, ainda que pudessem envolver também os
colegas de profissão – entre as quais se encontra a participação político-partidária.
A divisão geral do que se pode depreender da fala, no tocante a esses dois campos,
ficou do seguinte modo:
(i) Atividades associativas voltadas para os objetivos da profissão (ASP)
I: liderava atividades associativas – com objetivo profissional – entre os pares;
II: participava ativamente, mas não liderava atividades associativas de objetivo profissional;
III: participava pouco ou não participava de atividades associativas de objetivo profissional;
IV: sem informações ou não se aplica;
V: liderava atividades sociais – de cunho não profissional – de seu grupo profissional;
VI: participava ativamente – mas não liderava – atividades sociais de seu grupo profissional;
VII: participava pouco ou não participava de atividades sociais de seu grupo profissional;
VIII: sem informações, ou não se aplica.
347
(ii) Atividades sociais voltadas para outros objetivos que não os profissionais (ASNP)
I: liderava atividades associativas político-partidárias;
II: participava ativamente, mas não liderava atividades político-partidárias;
III: participava pouco ou não participava de atividades político-partidárias;
IV: sem informações ou não se aplica;
V: liderava atividades sociais fora de seu grupo profissional;
VI: participava ativamente, mas não liderava, atividades sociais fora do grupo profissional;
VII: participava pouco ou não participava de atividades sociais fora de seu grupo profissional;
VIII: sem informações ou não se aplica.
A distribuição de frequências referente ao primeiro grupo é a apresentada na Tabela
45:
Tabela 45 - Distribuição de frequências relacionadas às atividades associativas
profissionais
LÍDER
Atividades associativas voltadas para os objetivos da profissão
ASSOCIATIVAS SOCIAIS
I II I+II III IV Total V VI V+VI VII VIII Total
ATIVO 5 2 7 4 5 16 2 1 3 7 6 16
INATIVO 6 1 7 5 5 17 3 2 5 4 8 17
Fonte: dados da pesquisa.
A distribuição de frequências relativas ao segundo grupo encontra-se na Tabela 46:
Tabela 46 - Distribuição de frequências relacionadas às atividades associativas de
caráter não profissional
LÍDER
Atividades sociais voltadas para objetivos não
profissionais
POLÍTICO-PARTIDÁRIAS SOCIAIS
I II I+II III IV V VI V+VI VII VIII
LÍDER ATIVO 1 1 2 9 5 1 0 1 6 9
LÍDER INATIVO 3 0 3 10 4 2 0 2 3 12
Fonte: dados da pesquisa.
Apartando-se nas tabelas o grupo que liderava ou participava ativamente das
atividades em pauta (I+II e V+VI) daquele que participava pouco ou não participava (III e
VII), o que se observa, novamente, é uma distribuição que se mantém muito equilibrada para
os dois grupos, sem distorções significativas que mereçam ser aprofundadas.
348
5.5 Material de reuniões
Nesta seção serão dois os grupos de informações reunidas a serem investigadas:
aquelas relacionadas às assembleias de três das organizações associativas, realizadas entre
março de 2010 e março de 2012; e as anotações realizadas durante as participações no grupo
que reúne um número razoável de líderes entrevistados – número esse que não pode ser
especificado, uma vez que é muito variável de reunião para reunião.
5.5.1 Anotações da participação em assembleias e reuniões do quadro social
Durante o período de duração da pesquisa, o autor participou de cinco assembleias
gerais, entre ordinárias e extraordinárias, de três das organizações associativas, cujos
presidentes foram escolhidos para a entrevista, e uma reunião de diretores que compõem o
quadro social de uma organização federativa. Em uma das organizações, obteve-se permissão
para gravação, desde que mantido em sigilo os nomes da organização e dos envolvidos nos
debates; nas outras duas, em função de peculiaridades das organizações e/ou dos temas a
serem abordados, decidiu-se por não gravar as assembleias, mas apenas anotar para a pesquisa
os fatos relevantes nelas ocorridos.
A assembleia geral é, como previsto no estatuto de todas as organizações envolvidas, o
órgão supremo, com poderes para, dentro dos limites legais, tomar toda e qualquer decisão de
interesse do quadro social. Ela é conduzida pelo presidente da organização, que convoca
outros diretores, pessoal da área técnica ou quaisquer outras pessoas necessárias às
apresentações referentes ao tema em pauta. As decisões, que envolvem o voto dos
participantes, são conduzidas pelo presidente – exceto nos temas que lhe são afeitos (como
estabelecimento de honorários), momento no qual algum membro da assembleia é convocado
para conduzir a reunião – e estatutariamente estão restritas ao que foi publicado como pauta
para convocação da assembleia. Assuntos não constantes da pauta podem ser objeto de
discussão no item “assuntos gerais”, não cabendo votação para temas discutidos nesse ponto
da pauta.
As assembleias gerais podem ser ordinárias – as quais são de realização obrigatória no
primeiro trimestre do ano, com pauta prevista em estatuto – ou extraordinárias – as quais
podem ocorrer em qualquer momento do ano e que, apesar de possuírem pautas previstas, têm
o seu âmbito de discussão mais ampliado.
O que se observou nas assembleias acompanhadas foi:
349
a) As assembleias ordinárias: possuem pauta obrigatória anual, relacionadas a:
prestação de contas, estabelecimento de honorários, apresentação de orçamento e votação de
mudanças nos conselhos.
O exercício do poder nesse caso está normativamente organizado, sendo que o espaço
para emergência de liderança costuma estar mais dentro dos “assuntos gerais”. Esse espaço
não foi politicamente explorado em duas das assembleias acompanhadas – ou não houve tema
apresentado ou o que surgiu foi algum assunto relacionado a questões periféricas, não
envolvendo relação de poder. Deve-se observar que nessas assembleias de organizações, onde
não se apurou posicionamentos mais políticos, o calendário não envolvia mudança na
estrutura de poder naquele ano ou no subsequente.
Em uma assembleia ordinária de organização federativa em 2010 (envolvendo
diretores de outras organizações, as quais, por sua vez, estão mais ligadas à base – ou ao que
aqui se poderia chamar de liderados), o espaço dos “assuntos gerais” foi mais bem explorado:
um diretor de uma organização da base a ela filiada, recém-empossado, aproveitou esse
momento para falar sobre como encontrou a situação ao assumir sua posição e o que estava
fazendo no momento para corrigir a situação, sugerindo ações semelhantes para a organização
federativa. E acrescentou: “a gente quando envolve com isso, não tem jeito, acaba
prejudicando mesmo as outras atividades, porque um dia tem que ir na reunião disso, noutro
dia tem que representar na reunião da [...] então, se já tá envolvido mesmo, pode envolver
com as outras”.
Esse mesmo diretor, em um momento posterior da assembleia, defendeu o aumento de
honorários para a diretoria da federação, baseado no argumento defendido anteriormente: o de
que, estando envolvido com tantas atividades de representação do grupo, a sua possibilidade
de ganho financeiro na sua atividade profissional ficava prejudicada, o que justificaria
adequado ganho em sua atividade de representação de grupo, com a finalidade de recompor o
que havia sido perdido.
Como ouvinte, o que pareceu implícito para o autor desta tese na fala desse indivíduo
foi a sugestão de que ele gostaria participar mais ativamente dos processos decisórios no
âmbito federativo, pois a questão apresentada não interessava diretamente aos outros
presentes. E por isso soou mais como um marketing pessoal. Apreendeu-se também a
justificativa para uma possível demanda em termos de aumento de honorários em sua
organização de base.
Deve-se deixar claro que essa impressão é fruto de interpretação, não tendo sido
apresentada demanda clara pelo indivíduo em nenhum desses sentidos. Essa impressão foi
350
compartilhada pelo presidente da assembleia – o qual é um dos entrevistados – com o qual o
autor da tese conversou ao final da assembleia.
b) Assembleias extraordinárias: esses são momentos em que se tem mais espaço para
participação política. Ainda que os temas para debate e votação também estejam previstos em
pauta publicada em periódico de circulação pública no âmbito geográfico do quadro social,
eles permitem mais espaço para posicionamentos de ordem política: envolvem mudanças no
estatuto, fusões, incorporações, desmembramentos, mudança do objeto social, dissoluções ou
quaisquer outros temas de interesse do quadro social em que não está prevista autonomia de
decisão pela diretoria.
A palavra é habitualmente franqueada aos participantes após a apresentação do item de
pauta e antes da votação. O que se percebeu, como ouvinte, é que algumas pessoas
apresentavam questionamentos importantes, de interesse coletivo, aparentemente não
previstos ou registrados pela diretoria e que por isso se transformam em objeto de votação.
Outras pessoas apresentam questionamentos e observações explicitamente envolvendo
interesses voltados para os seus negócios pessoais ou de um pequeno grupo dentro do quadro
social, os quais, se considerados, podem não contemplar os interesses da maioria. As duas
falas anotadas a esse respeito não são aqui apresentadas por identificarem pessoas ou
instituições (identificações que, se retiradas, fariam com que a frase perdesse o sentido). Por
não ser possível objetivar as falas de modo documental, de forma a poder ser aferida pelo
leitor da pesquisa, elas não serão utilizadas na análise e discussão da tese.
De qualquer forma, conversando com o presidente da organização (também um dos
entrevistados), após a assembleia ele observou que “é interessante como a gente consegue
identificar bem o interesse pessoal que está por trás da maioria dos indivíduos que pega o
microfone. Às vezes é coisa que já foi, inclusive, discutida e acordada com o indivíduo antes
da assembleia...”.
c) Reunião na organização federativa com diretores de organizações de base: o que se
percebeu foi que esse tipo de reunião permitiu mais participação dos indivíduos nas relações
de poder, uma vez que lidam com um tema de interesse de todos, que está relacionado ao
objetivo social da organização e, principalmente, numa situação em que a palavra é
franqueada a todos.
A reunião em questão foi marcada para discussão em uma fase de crise envolvendo
remuneração no grupo profissional. Como foi apresentado na metodologia, foi realizada uma
gravação que conta mais de duas horas, durante as quais foram registradas as intervenções do
presidente da organização, de outro diretor compondo a mesa e de mais outros 27
351
participantes, além da apresentação de um vídeo com reportagens sobre o grupo profissional,
utilizado como motivador para as discussões.
Após ter lido todo o material por três vezes, não se encontrou algo que tenha fugido do
senso comum, do que seria o esperado mesmo para esse tipo de reunião.
Resta, assim, pontuar algumas percepções relacionadas à participação nessas reuniões
e assembleias apresentadas:
a) Em termos gerais, pode-se dizer que alguns dos entrevistados cujas participações,
quando estavam no poder, eram em geral no sentido favorável aos posicionamentos da
liderança em exercício passaram ou a não a participar mais ativamente das
assembleias ou a ter participações que iam sempre em sentido contrário ao da
liderança em exercício;
b) comparando-se as três organizações acompanhadas, também se pode perceber que na
menor organização – a qual, por seu porte, oferecia menos ganho financeiro para a
liderança e menos visibilidade social no grupo profissional – as participações estavam
mais relacionadas às questões operacionais, e não aos interesses pessoais ou de
pequenos grupos;
c) por outro lado, na organização maior, onde o ganho financeiro e a visibilidade social
são maiores, foi onde se pôde perceber as participações mais calorosas, ligadas ou a
questões relacionadas aos interesses de pequenos grupos – e contra os interesses da
grande maioria, como reservas de mercado ou ganhos diferenciados para determinados
grupos – ou a questões que se poderia chamar de “governança” (limitações para
diretores fora de mandato, mudanças na forma de representação assemblear, etc.);
d) por fim, na organização de tamanho intermediário, que também proporciona ganho
intermediário, mas que por ser uma federação proporciona mais visibilidade social – o
que indica posições de liderança mais sustentáveis no futuro – as participações eram
mais importantes em momentos políticos, como na proximidade das eleições de
organizações maiores e de mais visibilidade, e envolviam interesses relacionados à
coletividade das bases, as quais dão o suporte político para posições de representação
em outras organizações, que não as da base.
Esses achados, relacionados com os posicionamentos ocorridos em assembleia, serão
discutidos, à luz da teoria, de modo especial na seção 6.4.1.
352
5.5.2 Anotações nas participações das reuniões de um grupo de lideranças
Aqui serão apresentadas as anotações realizadas nas reuniões do grupo de lideranças,
no período compreendido entre junho de 2010 e junho de 2012. Serão divididas entre as
reuniões mensais, em algumas das quais o autor da tese participou como mediador, e a
reunião de junho de 2012, quando foi apresentado a todo o grupo uma parte do resultado das
entrevistas, disponível naquele momento, com a intenção de obter um feed-back dos
participantes, quanto a se identificarem ou não com o resultado da análise, na forma que ela
estava naquele momento.
As reuniões não foram gravadas. Foram realizadas anotações referentes ao que era
considerado relevante pelo autor, principalmente no que se refere às interfaces entre liderança,
ideologia e relações de poder. Também foi produzido material escrito pelos participantes, com
a finalidade de obter impressões individuais com o mínimo possível de interferência de
opiniões dos outros participantes.
O que será apresentado é somente o que foi considerado relevante para a discussão.
A) Reuniões mensais entre os meses de junho de 2010 e junho de 2011
Nessas discussões, foram oferecidos temas para discussão e debate, a partir dos quais
se pretendia observar o posicionamento dos participantes, de modo especial nos pontos nos
quais os temas se relacionavam com as vivências de liderança. Entre os temas, destacam-se:
modelos de gestão veiculados pelos MBAs e a sua influência sobre o comportamento do
indivíduo em posição de exercício de liderança nas nossas organizações; a influência da
cultura nacional na modulação de modelos considerados os mais efetivos em outros países, e
o papel exercido pelos indivíduos na posição de liderança nessas organizações; a ideologia
como mecanismo produtor de “verdades”.
Os temas eram entremeados com outras discussões, envolvendo questões políticas de
impacto na vida do grupo profissional em questão.
Os resultados obtidos são apresentados:
(i) A primeira reunião, em junho/2010
Nessa reunião, foi solicitado aos participantes que definissem “poder” e que
relatassem como eles mesmos se enquadrariam nesse conceito. Deve-se ressaltar que não foi
informada a razão pela qual se pediu essas definições e também que em nenhum momento a
353
palavra “liderança” foi citada antes do início dos trabalhos. As repostas obtidas, de interesse
para esta pesquisa, estão transcritas no APÊNDICE A.
O que chama facilmente a atenção é a relação estabelecida entre o poder e o exercício
da liderança. Fica clara, pelas definições, a relação espontaneamente estabelecida entre os
dois conceitos, sendo que os dois são mediados, para muitos dos participantes, pelo conceito
de influência ou pela ideia de mudar uma realidade, conceitos estes que se referem de modo
intercambiável à liderança e ao poder.
A “influência”, por sua vez, é citada por vários autores como sendo uma característica
da liderança – veja-se a seção 2.3.4 no referencial teórico. Autores como Shamir (1999, p. 51)
chegam a utilizá-la como critério para identificá-la em um indivíduo, propondo que é a
presença de uma “influência social desproporcional, na qual a parte que exerce forte
influência sobre as outras (o líder) pode ser identificada”, o que vai diferenciar contextos de
liderança “forte”, captada no indivíduo, da “fraca”, mais difusa no grupo.
Deve-se, então, analisar o inverso, ou seja, se há menção ao poder quando a solicitação
diz respeito à definição de liderança – o que vai ocorrer em outras reuniões.
(ii) Reuniões mensais entre julho de 2010 e maio de 2011
As anotações das demais reuniões até maio de 2011 não revelaram algo significativo
para a investigação do objeto da pesquisa, razão pela qual não serão abordadas.
Em junho de 2011, houve uma reunião cujo tema, proposto por integrantes do grupo,
foi o editorial do jornal de uma das entidades do grupo profissional, a qual possui função
normativa e fiscalizadora para esse grupo. Por não ser uma organização associativa, essa
entidade possui características diversas das demais, o que inclui o processo de escolha da
presidência, razão pela qual esse foi o único presidente de entidades ligadas ao grupo
profissional que não foi selecionado para entrevista.
O que chamava a atenção nesse editorial (o que já se desenhava no número anterior do
jornal) era o fato de o órgão, cuja função era normativa e fiscalizadora, se envolver com temas
de caráter associativo, atingindo associações das quais o autor do editorial não fazia parte.
Com isso, criticava questões relativas à sua gestão, algumas das quais fruto de decisão
assemblear e de remuneração, o que é a razão de ser de duas das organizações associativas,
legalmente reconhecidas para esse fim. Na fundamentação do editorial, eram utilizados ditos
populares do tipo “mais vale um passarinho na mão do que uma centena deles em revoada” e
“o futuro a Deus pertence”.
354
O resultado dos debates pode ser resumido em algumas das falas apresentadas pelos
participantes. Elas foram anotadas (e não gravadas), donde serem apresentadas a partir do seu
conteúdo geral, e não in verbis, como nas transcrições das entrevistas. Como as falas foram
repetitivas, apenas algumas – as que transmitam a ideia geral da discussão – serão transcritas
(com itálicos do autor da tese):
Olha, a trajetória dele é na atividade privada. Quer dizer, essa não é uma
preocupação que o afeta pessoalmente. Parece que ele está é querendo se estabelecer
como liderança;
É interessante que isso não é tema para [entidade]. O que ele está fazendo é se
aproveitando de uma posição de poder, para atingir objetivos de caráter pessoal;
Não entendi a razão dos provérbios. Vai ver que ele não tinha era o argumento;
O que tem que entender é que grupos ele quer influenciar e com que interesses.
Novamente, o que se nota aqui é a estreita correlação entre liderança, poder e
influência – esta última veiculada pelo discurso, pelo argumento – associada à questão do
interesse.
Essas percepções estão bem dentro da linha apresentada no referencial teórico, por
autores como Fairhurst (2009), para quem, num discurso envolvendo liderança, a pergunta
orientadora deve ser “o que o discurso está fazendo?”, e não “o que o discurso está
representando?”. E também com Mumby (2005, p. 24), que propõe buscar reconhecer no
discurso as “batalhas interpretativas entre discursos e práticas”, visto ter sido percebida, por
aqueles que seriam, nesse contexto, os liderados, uma desconexão entre a sua prática
profissional e o discurso que está sendo produzido.
As falas registradas durante a reunião também estão voltadas para o tema da liderança
autêntica – como apresentado na teoria, na seção 3.1.3. Deve-se registrar aqui que o que foi
denominado de indivíduo “y” nas análises das entrevistas, quando dos exemplos de
indivíduos cuja liderança era rejeitada, foi justamente o presidente da organização citada, que
é também o autor do referido editorial. Ele foi mencionado como rejeição de liderança, direta
e espontaneamente, por sete entrevistados (e, indiretamente, por outros dois).
Como, entretanto, esse indivíduo não foi pessoalmente investigado (nem por
entrevistas nem por escalas ou quaisquer outras formas de abordagem), não é possível aqui
aprofundar uma discussão que o envolva.
355
B) A reunião de junho de 2012
Como foi apresentado na metodologia, a intenção nessa reunião foi avaliar o grau de
identificação que os indivíduos manifestariam frente à apresentação de “constelações” de
falas que se referissem a determinada categoria, identificada a partir das entrevistas. Foram
escolhidas cinco categorias entre as apresentadas anteriormente neste capítulo, para as quais
foi escolhido um conjunto de falas obtidas das entrevistas, consideradas pelo autor da tese
como as mais representativas das diferentes visões envolvendo uma mesma categoria.
Pela forma usada na apresentação, as categorias são chamadas “tópicos” de discussão.
Os tópicos foram: (i) o que é a liderança?; (ii) líder ou gestor?; (iii) como se identificar
um líder?; (iv) liderança e a sua relação com os interesses, com a independência do líder e
com uma possível “exploração” do líder pelos liderados; (v) o líder pode ser nato ou ele é
desenvolvido?
Para ganhar fluidez no texto e não forçar o leitor a rever trechos de falas que já foram
apresentadas e analisadas neste capítulo, a “constelação” de falas que foram retiradas das
entrevistas individuais, escolhidas para a apresentação na reunião, estão reunidas no
APÊNDICE B desta tese, organizadas por tópicos, na forma como foram apresentadas.
A reunião foi dividida em dois tempos: no primeiro, para não haver contaminação de
opiniões – como é usual em reuniões de grupo –, as impressões foram escritas, sendo que as
folhas, com as impressões escritas, foram entregues ao pesquisador e fazem parte do acervo
de documentos produzidos pela pesquisa; no segundo momento, foi solicitado aos indivíduos
que expressassem a sua impressão geral em relação a tudo o que foi apresentado. O indivíduo
era livre para escolher o que falar e não foram interditadas intervenções durante as opiniões de
cada um. Deve-se registrar que houve muito poucos apartes durantes as falas individuais.
Os comentários escritos pelos participantes, referentes aos trechos escolhidos das
entrevistas, e as falas anotadas durante a reunião, estão no apêndice B. Ao pesquisador
couberam as escolhas das observações para registro, dando preferência àquelas que, em sua
visão, se afastam do senso comum, com potencial para acrescentar algo à compreensão do
tema, nesse contexto.
Os aspectos mais relevantes reunidos a partir desse material serão utilizados no
próximo capítulo, no qual serão conduzidas as discussões referentes aos achados, orientadas
para se responder a pergunta que motivou a pesquisa – de modo resumido, o que é a liderança,
na ótica do grupo social escolhido para investigação.
356
6 DISCUSSÃO
Enquanto o capítulo anterior precisou ser mais descritivo, e sob alguns aspectos
analítico, na organização dos dados, o capítulo atual procura ser mais sintético. Mesmo nas
passagens nas quais for necessário retomar a análise para aprofundar algum aspecto dos
dados, a tendência é que, ao final, seja realizada uma síntese das observações apresentadas.
Mas essa síntese não deverá “fechar” uma conclusão, pois a premissa é a de que na
abordagem proposta por T. Adorno o resultado final continua aberto, podendo sofrer
modificações a partir de acréscimos ou remoções de dados referentes ao objeto.
Recuperando o que foi apresentado na introdução a esta tese, a experiência do autor
com as relações de liderança – nos papéis de líder e de liderado – foi interpretada ao mesmo
tempo como congruente e incongruente com a teoria, admitindo existir algo de verdade tanto
na teoria apresentada pelo mainstream dos estudos sobre liderança como na dos autores de
orientação mais crítica. Em outros termos, apesar da teoria não se referir bem àquela
experiência, também não se podia dizer que ela era falsa – percepção que está de acordo com
o enquadramento da liderança como uma ideologia, como apresentado na seção 3.6.
O passo que se vai dar nesse capítulo é, de posse do material empírico organizado a
partir do objeto, cujo “invólucro” se buscou romper com a utilização dos diversos
procedimentos metodológicos apresentados, tensionar o que foi encontrado e a teoria
apresentada, buscando, além das contradições no objeto, os bloqueios relacionados ao que era
esperado, a partir da teoria. O objetivo final é responder ao problema da pesquisa:
considerando os indivíduos identificados como líderes em uma rede de organizações de
caráter associativo de um grupo profissional específico, o que é a liderança para esse grupo de
líderes?
Para organizar a sequência a ser seguida, serão revisadas algumas das escolhas
metodológicas e alguns caminhos já percorridos. Começando pelos grupos investigados: além
do senso comum – indivíduos que estão no exercício do papel de líderes – também foi
investigado o grupo formado por indivíduos que já estiveram no exercício desse papel, mas
que há algum tempo não estão – a maioria, sem perspectiva de voltar – escolhidos por
expressarem uma contradição interna nesse papel: um indivíduo identificado como líder hoje
pode ser identificado apenas como liderado em outro momento. Não estando mais nesse
papel, essas pessoas não seriam habitualmente escolhidas para participarem de uma pesquisa
sobre o papel de líder – aliás, dependendo do desenho da pesquisa, poderiam até mesmo ser
objeto de investigação em uma pesquisa voltada para investigar apenas o papel de liderado.
357
Como foi apresentado no capítulo 2, a linha teórica assumida nesta pesquisa considera
o objeto social uma construção social, a qual, pela forma como foi construída, possui um
“núcleo temporal de verdade”, que poderá ser identificado nas relações entre os indivíduos. O
que quer dizer que, se a história é resultado das relações entre indivíduos, por outro lado são
as condições postas para a vida, frutos da história, que criam os limites para o comportamento
do indivíduo.
É nesse sentido que a personalidade, que se expressa no comportamento do indivíduo,
relaciona-se com as condições criadas pelo processo histórico. Dito de outra forma, como foi
apresentado na seção 3.4.3, em determinada condição histórica, e para determinado grupo
social, existem comportamentos que seriam esperados para os indivíduos que assumem
determinado papel social – os quais, como qualquer outro objeto social, trazem em si
contradições. Por outro lado, é possível encontrar, entre os comportamentos não esperados, as
sementes para lidar com algumas das contradições.
Como os trechos mais relevantes das entrevistas foram descritos no capítulo 5 de
modo muitas vezes extenso, neste capítulo as descrições tendem a ser mais sintéticas. Será
preciso também fazer referência frequente às tabelas já construídas para a organização dos
dados. Elas não serão repetidas aqui, mas para facilitar o acesso a elas será informado o
número da página para referência.
Em alguns momentos, o desenvolvimento de um conceito ou ideia pode demandar a
apresentação de uma fala ou conjunto delas em outro contexto ou considerando uma outra
disposição – ou seja, em uma outra constelação. Nesses momentos, será preciso reconvocá-las
para demonstrar o que está sendo discutido.
Considerando a base teórica escolhida para essa tese, não é apropriado esperar uma
estrutura linear de apresentação. O que se busca, como foi apresentado no capítulo 3, é manter
a visualização da inter-relação dialética existente entre os aspectos que forem surgindo da
discussão, fazendo também a referência de um achado com o apresentado em outras seções
diferentes, o que deve resultar em “figuras” que, vistas no conjunto, teriam como finalidade
evidenciar a proximidade constelatória dos objetos em estudo.
Se a contradição que se quer identificar está no conceito, será necessário explicitar os
conceitos relacionados ao tema da tese – o conceito de líder e o de liderança – e, durante o seu
desenvolvimento, ir identificando as contradições. Como a liderança se expressa a partir da
relação entre o líder e o liderado, a discussão vai buscar chegar aos dois grupos de líderes –
que estão no centro do problema de pesquisa – a partir das relações de liderança, na seguinte
sequência:
358
A) Para abordar a liderança, serão quatro os pontos principais, considerando o que foi
identificado nas entrevistas, organizados à luz da teoria apresentada no capítulo 2:
a) A formulação do conceito;
b) a liderança em sua interface com as relações de poder;
c) a liderança e interesses; e
d) a liderança abordada no contexto da divisão social do trabalho.
O conjunto de resultados apresentados nessas seções será integrado dialeticamente a
uma quinta seção específica. O intuito é apresentar o entendimento do grupo social estudado
sobre a liderança e as suas contradições.
B) Para a abordagem do líder, são reunidos elementos que devem ajudar a identificar a
relevância de dois dos aspectos que, de acordo com a teoria, se relacionam com o indivíduo
que exerce a liderança: a sua história relacionada com a liderança, e a sua personalidade.
O sentido da discussão progride dos aspectos na história dos líderes (em atividade ou
não) que poderiam ter sido fatores moduladores da personalidade – que, de alguma forma,
poderiam ter exercido alguma influência na expressão social da liderança que será por eles
exercida – para a discussão dos fatores que constituem a expressão da personalidade do líder,
no momento histórico de suas vidas, no qual ocorreu a investigação. Ao final desta segunda
etapa, a intenção é terem sido reunidos elementos suficientes para que se possa apresentar
uma resposta ao problema de pesquisa.
C) Por fim, serão apresentados alguns dos aspectos levantados na teoria, que não puderam ser
observados entre os achados empíricos da pesquisa, buscando compreender o significado
dessa ausência – ausência essa que, em uma investigação sobre ideologia, pode ser eloquente.
A liderança é uma das situações para a qual podem existir expectativas sociais – as
quais, por sua vez, podem ser bem diversas, dependendo do ambiente social no qual ela vai se
expressar (modelo econômico, culturas nacional, regional ou organizacional, influências
religiosas, etc.). É por isso que não se pode deixar de registrar aqui que a discussão a ser
conduzida nas próximas seções possui validade apenas para o grupo social pesquisado. Ainda
que elas possam ser identificadas em outros grupos, de nenhum modo se propõe aqui uma
generalização dos achados, pois o desenho da pesquisa não perseguiu os critérios exigidos
359
para uma tal generalização – além do fato de que é possível discutir os limites dentro dos
quais, para alguns temas, esse tipo de generalização poderia ser útil ou se seria sem sentido.
Por outro lado, há um universal no conceito de liderança, que deve ser encontrado no
grupo – e, cuja identificação, é um dos objetivos desta pesquisa.
Em todo o processo de discussão, o que se busca é identificar tanto o que os dados
revelam de modo positivo – o entendimento, evidenciado no dado – como as contradições que
nele puderem ser identificadas – o negativamente racional. A intenção é derivar dessa tensão,
sempre que possível, uma conclusão. Não uma síntese, nos moldes hegelianos, porque não se
pretende “fechar” uma conclusão, como em uma visão de sistema, mas deixá-la em aberto
para modificações que possam surgir a partir de novos dados ou novas visões sobre os
mesmos dados – ainda que, no momento no qual que ela é produzida, ela se apresente de
modo consistente em sua relação com o objeto.
Começa-se, então, pela primeira etapa proposta, envolvendo o conceito de liderança.
6.1 O conceito de liderança
A categoria que reúne os itens que se referem aos achados relacionados ao conceito de
liderança apresenta várias contradições que podem ser identificadas nas comparações tanto
entre itens como entre os achados. Este é um resultado que poderia ter sido antecipado quando
são considerados, na teoria, os autores que revisaram o conceito desde Stogdill (1974) ou os
que buscaram um conceito a partir de abordagens empíricas, como Bennis e Nanus (1988):
todos haviam verificado que o número de definições de liderança tendia a se aproximar do
número de entrevistados.
Durante a análise das entrevistas, foram identificados basicamente quatro aspectos
relacionados ao conceito de líder e de liderança: os esforços para a formulação do conceito;
nesses esforços, a aproximação, direta ou indireta, em relação ao conceito de relações de
poder; a identificação da relação do exercício do papel social da liderança com diversos tipos
de interesse; e, por fim, a identificação da liderança como sendo uma parte das atividades
existentes na divisão social do trabalho.
Apesar de interligados, esses aspectos do conceito de liderança surgem em momentos
diferentes das entrevistas e implicam também visões diferentes do exercício do papel de líder.
Por isso, serão abordados em seções diferentes. No entanto, por fazerem parte de uma mesma
constelação de conceitos – os referentes ao papel de líder e à relação de liderança – deverão
ser dialeticamente integrados, o que será conduzido em uma seção à parte das demais.
360
Para isso, os primeiros esforços serão os desenvolvidos na formulação do conceito.
6.1.1 A formulação do conceito
Ao serem comparadas as características da liderança apresentadas por Yukl, Wall e
Lepsinger (1990) com os 11 itens da Tabela 12 (pág. 293) que apresentam as características
identificadas a partir das entrevistas, apenas o item VIII – a capacidade para formar equipes e
organizar o trabalho dos grupos – é comum aos dois. Se a comparação for realizada
utilizando-se os 23 itens apresentados nas Tabelas 17 e 18 (pág. 298) – os que representam as
características citadas para o líder – novamente apenas um item (o XVI: formar equipes e
organizar o trabalho dos indivíduos, que está diretamente relacionado ao item VIII da Tabela
12) é comum às duas.
Uma explicação para esse achado pode estar no fato de que o foco das características
de liderança apresentadas por Yukl, Wall e Lepsinger (1990) estava muito voltado para as
atividades de gestão, enquanto nos grupos estudados as atividades de gestão se confundem
com as atividades de representação. Nos dois casos, formar equipes e organizar o trabalho
coletivo são funções importantes de quem exerce o papel de líder – ainda que seja possível
considerar que alguns dos outros itens da Tabela 12 (pág. 293) identifiquem atividades que
também podem ser executadas pelo gestor, apesar de não terem sido citadas por Yukl, Wall e
Lepsinger (1990).
Ou seja, há incongruência entre a proposta dos autores que reuniram o maior número
de características relativas à atividade de liderar (YUKL; WALL; LEPSINGER, 1990) e os
achados de entrevista – o que pode ser explicado, pelo menos em parte, pela diferença de
visão sobre a liderança, relacionada às duas fontes.
Considerando as definições dos dois grupos pesquisados (líderes ativos e inativos), na
multiplicidade é possível encontrar pelo menos três núcleos comuns a algumas definições. A
forma utilizada na análise para encontrar esses “núcleos comuns” foi aglutinar as definições
de liderança em três grupos – apresentados na Tabela 14 (pág. 295). Esse mesmo processo foi
realizado para o que foi identificado como sendo as características do líder, reunidas nas
Tabelas 17 e 18 e aglutinadas na Tabela 19 (págs. 298 e 299).
A análise das duas tabelas de aglutinações (TAB. 14 e 19, págs. 295 e 299) revela uma
contradição: quando as características da liderança (TAB. 14) são avaliadas no contraponto
entre a “atenção com o liderado” e a “motivação interna do líder”, percebe-se que mais líderes
ativos possuem uma visão de liderança voltada para o liderado, enquanto a visão dos líderes
361
inativos está mais concentrada em uma motivação interna, pessoal; quando as características
do líder são submetidas à mesma comparação (TAB. 19), essa distorção desaparece.
Para averiguar a possibilidade de que a distorção percebida na Tabela 14 estivesse
ligada às características de personalidade dos líderes, foi realizada a comparação entre os
fatores que caracterizam as personalidades nos grupos envolvidos em cada uma dessas visões
(atenção com o liderado versus atenção com os próprios interesses). Como foi apresentado na
Tabela 15 (pág. 296), o p-valor das medianas dos fatores envolvidos na personalidade dos
líderes não evidenciou diferença entre os dois grupos. O significado desse aspecto será mais
bem explorado na seção 6.2.2 em associação com os demais resultados referentes à
personalidade.
O que essa contradição indica é uma dificuldade na formulação do conceito a partir
das características da liderança e do líder. Como foi apresentado na seção 3.2, algumas
diferenças conceituais também podem ser identificadas na comparação entre o trabalho de
Burns (1978) – o qual, voltado para a liderança em geral, faz uma discussão muito apoiada
nas relações sociais e na liderança política – e a versão apresentada por Bass (1985, 1997),
que tem o seu foco muito voltado para a sua utilização nos estudos organizacionais. A
abordagem de Lasswell (1963), apresentada na seção 3.4.5, mais voltada para relações
políticas, mas a partir da ótica do indivíduo que se dispõe a participar dessas relações no papel
de líder, também pode ser utilizada como exemplo dessas diferenças conceituais.
Assim, considerando o discutido até aqui, uma primeira conclusão pode ser formulada:
apesar de poder ser evidenciada diferença no foco relacionado ao entendimento do que seja a
liderança (atenção com o liderado versus atenção com os próprios interesses), a caracterização
do conceito não é conclusiva, quando são comparadas as realizadas pelos líderes que estão em
atividade e as dos líderes que já não estão mais no exercício desse papel.
Outros aspectos também relacionados à formulação do conceito precisam ser mais
bem explorados. Essa exploração será conduzida a partir de três outras óticas: a percepção da
identidade entre conceito e conceituado pelos dois grupos de líderes; o conceito a partir da
vivência da liderança; e a percepção, por parte de quem a vivencia, de estar a liderança mais
relacionada a fatores inatos a algo que pode ser aprendido e desenvolvido.
A) A percepção da (não) identidade entre liderança e gestão
Esse aspecto pode ser explorado a partir do que foi apresentado nas Tabelas 21 e 22
(págs. 300 e 302). Ao consultar a Tabela 22 (pág. 302), infere-se que os indivíduos que estão
no exercício da liderança foram os que menos conseguiram verbalizar a diferença entre
362
liderança e gestão (apenas um entre 17). Uma explicação para essa diferença pode estar no
fato de que, em uma organização associativa, a posição de liderança, ainda que fruto de uma
ação política, vai envolver a cúpula de uma organização em uma posição que, por força
estatutária, envolverá também atividades de gestão.
Indivíduos que já ocuparam esses papéis, mas que, no momento da pesquisa, se
encontravam na posição de liderados e, portanto, menos envolvidos com as obrigações
administrativas das organizações podem se encontrar em uma posição que facilite a percepção
da diferença entre liderar e fazer gestão, enquanto a mescla das funções para os que estavam
no exercício do papel de líder pode ter dificultado a detecção dessas diferenças.
Ao analisar a Tabela 22 (pág. 302), nota-se que o mesmo número de líderes ativos e
inativos – nove pessoas, o que é mais do que a metade nos dois grupos – localiza a liderança
no indivíduo que é líder. No entanto, apenas um líder ativo verbaliza a diferença entre liderar
e fazer gestão, enquanto quatro líderes inativos fazem bem a diferenciação. Essa observação
está ligada ao que foi apresentado na Tabela 21 (pág. 300): a distribuição de frequências
mostra a tendência dos indivíduos que estão no exercício da liderança a apresentar dúvidas na
formulação do conceito – somente cinco entre os 16 líderes ativos formulam com certeza o
conceito de liderança, enquanto entre os inativos o dobro de indivíduos (10 dos 17
entrevistados) demonstrou mais segurança na formulação.
Ter dificuldade para formular um conceito não significa necessariamente
desconhecimento do conceito – principalmente quando a dificuldade é apresentada por quem
vivencia na prática a situação envolvida no conceito. A dúvida, nesse caso, pode ser a
expressão da percepção das contradições envolvidas no conceito.
Assim, como conclusão, nas Tabelas 21 e 22 (pág. 300 e 302) apurou-se que:
a) Não estar no exercício da liderança de um grupo social pode ser um facilitador para a
percepção das diferenças envolvidas no exercício da liderança e as atividades de
gestão de uma organização;
b) estar no exercício da liderança de um grupo social pode ser um facilitador para a
percepção das contradições envolvidas no conceito de liderança.
Essas conclusões ainda precisam ser aferidas por outros dados.
B) A relação entre o conceito e a experiência da liderança
As conclusões anteriores revelam a necessidade de aprofundar a exploração da relação
entre o conceito e o fato objetivo do exercício da liderança, usando outras abordagens. A
363
primeira será a análise das respostas ao questionamento direto sobre o que é um líder e o que
é a liderança. A outra será pela análise sobre o entrevistado considerar-se ou não um líder.
(i) O questionamento sobre o que é ser líder e o que é a liderança
Os dados para a análise das formulações sobre o que é ser líder e o que é a liderança
foram apresentados nas Tabelas 12, 13, 14, 15 e 16 (págs. 293, 295, 296 e 297). Quando os
itens apresentados na Tabela 12 são reorganizados na Tabela 14, chama a atenção a inversão
na frequência de ocorrências entre líderes ativos e inativos, quando se aglutinam os conceitos
relacionados à expressão de uma atenção com o liderado e os que expressam motivações
internas do líder para assumir papéis de liderança.
Pode ser útil buscar algum fator de diferenciação entre os dois grupos de líderes
(ativos e inativos), não no indivíduo que é líder, mas nas suas relações de liderança – o que
mostra a necessidade de se considerar aqui também o liderado. Como o indivíduo que é
apenas liderado não foi objeto de investigação, para acesso a essa informação será aqui
considerada a manutenção do líder nesse papel, o que é feito pelos liderados, uma vez que as
posições de liderança no grupo estudado envolvem um processo político-eletivo.
Como pode ser observado na Tabela 14 (pág. 295), os líderes para os quais o conceito
de liderança envolve atenção voltada para o liderado tendem a permanecer nesses papéis,
quando comparados com os que têm a sua atenção voltada para motivações próprias.
Essa visão está de acordo com o proposto por Meindl (1995) sobre ser a liderança uma
construção e uma representação dos seguidores. Isso também pode ajudar a explicar as
diferenças conceituais observadas entre os trabalhos que avaliam a liderança na estrutura de
uma organização quando comparados com os que a abordam em associações de indivíduos
cuja escolha se dá a partir de uma modalidade que lhe confere caráter político eletivo.
Já foi constatada, anteriormente, incongruência entre as características da liderança
citadas por Yukl, Wall e Lepsinger (1990) e as identificadas nas entrevistas no grupo social
pesquisado. E a Tabela 16 (pág. 297) reafirma a inversão de frequências entre líderes ativos e
inativos, se a comparação se refere à ótica que agrupa os itens entre o que se pode chamar de
“liderança tradicional” e a “nova liderança”. Apesar de serem visões contraditórias sobre o
exercício da liderança, elas representam a constelação de visões efetivamente existentes no
grupo, as quais expressam as contradições próprias do conceito de liderança, na forma como
ela é vivenciada nas relações sociais – pelo menos do grupo estudado.
As conclusões às quais se pode chegar a partir da análise de todas essas tabelas são:
364
a) A formulação do conceito de liderança expressa a forma como o líder se posiciona na
relação, revelando estarem os seus interesses mais voltados para suas motivações
pessoais ou mais voltados para uma atenção com os liderados;
b) existe mais frequência de indivíduos mantidos em posições de liderança pelos
liderados quando ele apresenta uma visão sobre a relação de liderança mais voltada
para a atenção com o liderado ou quando a conduz dentro do que a literatura do
mainstream caracteriza como a “nova liderança”.
(ii) Se o líder entrevistado se considera ou não um líder
Outra forma de investigar a relação entre o conceito e a vivência é explorar um aspecto
de ocorrência espontânea em algumas entrevistas, que é o que diz respeito ao entrevistado se
considerar ou não um líder – cujos resultados foram apresentados na Tabela 24 (pág. 305).
A primeira observação sobre as informações dessa Tabela diz respeito ao fato de que a
metade dos indivíduos dos dois grupos (ativos e inativos) não põe em dúvida essa questão.
São líderes, mesmo que não estejam no exercício da liderança, como é o caso dos líderes
inativos. E também que o mesmo número de entrevistados (três indivíduos em cada grupo de
líderes) se considera líder, mesmo que eles tenham sobre isso algumas ressalvas. Dois
exemplos de ressalvas são: saber que efetivamente exerce a liderança, mas não saber se tem o
perfil, por exemplo, de presidente; e considerar-se mais gestor do que líder, ainda admitindo
que seja viável a coincidência entre os dois papéis nas organizações envolvidas.
A discussão a ser conduzida na seção 6.2 vai mostrar que não há contradição no fato
de pessoas que não estão no exercício da liderança – mesmo que há muito tempo – se
considerarem líderes, quando a sua ótica está voltada ou para a sua história de vida ou para
atributos que ele identifica em sua personalidade. A contradição pode estar no conceito e não
no fato, da seguinte forma: para o senso comum, líder é quem está no exercício da liderança.
Entretanto, ter exercido em algum momento esse papel já não seria suficiente para mostrar
que existem atributos de líder no indivíduo?
Essa é uma pergunta que vai exigir a reunião de outras evidências da pesquisa para
que se possa buscar formular uma resposta – tarefa a ser conduzida na seção 6.2.
Mas, a despeito desse questionamento, houve uma contradição no fato do exercício da
liderança: conforme a Tabela 24 (pág. 305), há um líder ativo que, apesar de um histórico
prolífico de posições de liderança, não se considerava um líder. O seu próprio discurso estava
marcado por contradições:
365
(15) Eu acho assim... muito difícil é... eu... me considerar líder, porque assim é... é...
se você for analisar eu sou um líder [...] isto é, acho que tem pessoas que são
talhadas para isso, querem isso, procuram isso, né? [...] Outras, como no meu caso,
acho que a liderança veio de maneira indireta, parece que você está disponível para
exercer esses papéis.
Nesta segunda última fala, a diferença que o entrevistado marca entre ser líder ou não
está no uso dos verbos “procurar” e “estar disponível para”. Mas, quem está disponível para
liderar já não estaria se considerando em condições para o exercício do papel – e, portanto, se
considerando (até mesmo procurando ser) um líder?
Quando essa fala foi apresentada para análise para todo o grupo de líderes – que
incluía o próprio entrevistado (15) –, algumas ponderações entre os líderes ativos foram:
(2) As falas vão no sentido de “eu não queria... me colocaram lá”. Não acredito
nisso. As coisas são consequenciais, portanto, quem participa necessariamente
assume posições. Dizer “eu não queria” é uma forma de colocar a liderança como
sacrifício, quando ninguém é líder por acaso.
Essa percepção também foi identificada na entrevista do líder ativo (20), o qual,
tentando elaborar seu discurso sobre se a liderança envolve mais aspectos próprios do
indivíduo ou oportunidades situacionais, reporta que “você sai, se mostra e isso é uma coisa
meio instintiva, né?” O que as duas falas citadas demonstram é o entendimento dos
entrevistados de que o indivíduo pode até dizer que não quer ser líder, mas suas ações vão no
sentido de facilitar a sua identificação como tal.
Entre os inativos, o exemplo é o entrevistado (5): “na maioria das vezes reconhece-se
um líder por ele já ser considerado líder. Não é predição, é constatação”. Esse último trecho
da fala está de acordo com o que pode ser confirmado nas Tabelas 29 e 30, nas quais apenas
são citados, tanto como exemplo de liderança como de sua rejeição, líderes que estão em
atividade. Por exemplo, esse mesmo entrevistado (5), junto com os líderes ativo (21) e inativo
(30), citam o líder inativo (34) como uma influência importante em suas histórias de
liderança, mesmo estando esse líder inativo afastado dos papéis de liderança há muitos anos.
Mas ele não será lembrado ao final da entrevista, quando os entrevistados são
estimulados a dar exemplos de líderes que estariam congruentes com o seu conceito e de
indivíduos que, mesmo estando no exercício da liderança, não se enquadrariam no seu
conceito. O mesmo acontece com o líder em atividade (31) que, no início de sua entrevista,
durante o relato de sua história de liderança, menciona como influência o entrevistado (8), que
é líder inativo, o qual também não será referido ao final nem como exemplo nem como
rejeição de liderança.
366
O único líder inativo citado – o entrevistado (26) – o foi na entrevista com um líder
ativo, no momento em que ele levantava a possibilidade de o entrevistado (26) voltar a
assumir posições de liderança. Portanto, ainda de acordo com a ideia de que a identificação de
um indivíduo como líder depende de ele ser contextualizado como tal, no momento da
lembrança.
Voltando às falas nas quais o líder coloca em dúvida sua condição de líder, o
entrevistado (31) anota a respeito que:
o líder, ao falar de si mesmo, exprime uma modéstia falsa, relutando em admitir o
desejo de ser líder. Ora, ninguém é ungido a líder e aquele que nega a pretensão,
principalmente após sê-lo, faz uma representação caricata.
Talvez não se trate de falsa modéstia, mas de mecanismos ligados ou à representação
simbólica da liderança ou aos mecanismos de identificação abordados na seção 3.4.2.3 –
como é sugerido por uma fala posterior do já citado entrevistado (15):
“É... eu... eu tenho muita dificuldade em... em aceitar liderança. Talvez seja por isso
que eu nunca tenha, deliberadamente, procurado ser líder de alguma coisa”52
.
Esta última fala ressalta não só um tipo de motivação para o indivíduo buscar o
exercício da liderança, numa ótica dialeticamente negativa, como afirma o apresentado na
seção 3.4.2.3 – ou seja, que a não identificação pode ser tão importante quanto a
identificação, sendo os dois aspectos pontos opostos de um mesmo conceito (pois só é
possível não se identificar com o que, de alguma forma, já foi identificado...).
Isso também tem relação com uma das conclusões de Bresnen (1995), de que:
A análise sugere algum suporte para a noção de que os indivíduos constroem as suas
próprias “teorias implícitas de liderança” através das quais eles interpretam e julgam
(usualmente por suposição) as atitudes, ações e decisões dos líderes (BRESNEN,
1995, p. 509)
Associando os achados de entrevista apresentados à citação de Bresnen (1995) e ao
apresentado nas seções 3.4.7 e 3.4.2.3, nas quais foram abordados o processo de identificação
e a influência da personalidade do liderado, é possível concluir que:
52
Não é possível aprofundar a análise dessa fala baseado na teoria freudiana, uma vez que as condições de
abordagem em uma entrevista não são as mesmas que as que ocorrem em uma relação acordada entre analisado e
analista. Mas, é possível considerar, usando alguns elementos como a identificação e a projeção, apresentados na
seção 3.4.2.1, que talvez seja justamente a dificuldade em aceitar a liderança que tenha feito com que o
entrevistado (15) tenha “se colocado à disposição” (ou, inconscientemente, procurado) ser líder de tantas coisas.
367
a) Os achados revelam a importância da vivência do líder como liderado para o
estabelecimento das relações de liderança;
b) apesar de não ser condição necessária estar no exercício da liderança, isso aumenta a
possibilidade do indivíduo ser identificado como líder, positiva ou negativamente. A
condição contrária também se aplica: não estar no exercício da liderança aumenta a
possibilidade de o indivíduo com longo histórico de liderança não ser identificado
como líder.
Esses aspectos evidenciam a importância dos mecanismos sociais para as relações de
liderança (como os apresentados nas seções 3.4.1.4, 3.4.2.3, 3.4.2.4), a despeito de
facilitadores individuais, inatos ou desenvolvidos, porventura existentes. Isso demanda a
exploração de outro aspecto do conceito sobre ser a liderança algo inato ou desenvolvido – o
que, afinal, é a grande questão com que também se defronta o mainstream, desde a teoria dos
traços até a “nova liderança”.
C) A liderança é inata no indivíduo ou pode ser desenvolvida?
Quanto a ser a liderança algo inato (o que indicaria características individuais, como a
personalidade) ou desenvolvido no indivíduo (TAB. 23, pág. 303), nenhum dos líderes em
atividade a considera algo exclusivamente inato, sendo que, para aproximadamente um terço
deles (seis de 16 entrevistados, ou 37,5%), mesmo que haja algum aspecto inato, o líder
deverá passar por um processo de aprimoramento se quiser ser bem-sucedido. Um exemplo
disto é apresentado pelo entrevistado (20), do sexo masculino, com longo trajeto de
presidências e outras posições de liderança, para quem:
Isso aí é um traço de personalidade mesmo, um traço pessoal que... não é aleatório.
[...] agora, eu não acho que isso é exclusivo, eu acho que tem outras coisas que
somam nisso [...] eu acho que tem essas coisas, né, de um traço pessoal, tem uma
história, tem um momento que você está inserido e tem a oportunidade que aparece
na sua vida e você pega, como eu não peguei outras.
Entre os três líderes inativos que a consideraram como algo apenas inato, apenas um
teve um longo trajeto de liderança. Ou seja, dos achados de entrevista pode-se concluir que a
grande maioria dos indivíduos do grupo social estudado, que vivenciam o exercício da
liderança ou que tiveram longa experiência com a liderança no passado, tende a identificar
que o exercício da liderança demanda mais do que habilidades inatas – ainda que estas
possam eventualmente existir.
368
Neste ponto já se têm elementos suficientes para reunir os achados empíricos
referentes ao conceito. Nessa reunião, buscou-se evidenciar os contrapontos ou as
contradições presentes em cada item – e não entre eles –, apresentando-os da seguinte forma:
a) O conceito de liderança não é algo que é compreendido de forma homogênea, mesmo
quando se considera a liderança exercida dentro de um mesmo grupo social. Sua
concepção é influenciada pelo seu foco – interesses pessoais do líder ou mais voltados
para atenção com os liderados ou, ainda, uma relação mais próxima da “liderança
tradicional” ou da “nova liderança” –, sendo que essa diferença pode facilitar ou
dificultar a sua manutenção em posições de liderança. Essa relação entre a liderança e
os interesses do líder será mais bem explorada na seção 6.1.3;
b) estar no exercício da liderança pode facilitar a percepção de que o conceito não
consegue capturar o que ela é exatamente, mas pode dificultar a formulação de
diferenças presentes no conceito – como a diferença entre liderar e fazer gestão;
c) essa dificuldade pode estar ligada à mescla, nas organizações onde se encontram os
líderes investigados, de funções representativas com funções de gestão. Indivíduos que
apenas vivenciaram o papel de líder como gestor de uma organização podem tanto ter
mais dificuldade para perceber diferenças entre os dois papéis – o de líder e o de
gestor – como a ter mais dúvidas para formular o seu conceito de liderança;
d) O fato de estar vivenciando na prática as dificuldades para o exercício do papel de
líder de um grupo social pode facilitar a percepção de que, se existe algum fator inato
(como a personalidade) como facilitador para o exercício desse papel, também haverá
um componente ainda mais relevante de aprendizado e desenvolvimento pessoal para
o seu exercício efetivo;
e) apesar de não ser essa uma condição necessária, estar no exercício da liderança
aumenta a possibilidade de o indivíduo ser identificado como líder, positiva ou
negativamente. Isso também se aplica à condição contrária – não estar no exercício da
liderança aumenta a possibilidade de um indivíduo com longo histórico de liderança
não ser identificado como líder;
f) o fato de um indivíduo que exerce o papel de líder não se considerar líder pode estar
mais relacionado a fatores ligados aos mecanismos de identificação (ou de não
identificação) com outros líderes do seu grupo social do que as dificuldades na
formulação do conceito – o que vai implicar a importância de se considerar
características do liderado tanto para o processo de identificação como para a
formulação do conceito.
369
Esta última conclusão demonstra uma tensão dialética entre o indivíduo que lidera e a
relação de liderança, que vai envolver o liderado. Além dos aspectos próprios do indivíduo
que lidera, que serão abordados na seção 6.2, ela pode ser explorada também pelo estudo que
envolve a liderança e o exercício do poder – o objeto da próxima seção.
6.1.2 Liderança e relações de poder
A relação entre liderança e poder foi tratada na teoria de modo mais direto na seção
3.5.2. Entretanto, como será apresentado na sequência, ela também faz uma interface com o
narcisismo, discutido na seção 3.4.2.2, uma vez que, de acordo com Kernberg (1979):
Porque as personalidades narcisistas são frequentemente motivadas por necessidades
intensas de poder e de prestígio a assumir cargos de autoridade e de liderança, os
indivíduos dotados dessas características encontram-se muitas vezes nos altos cargos
de liderança (KERNBERG, 1979, p. 33).
Isso coloca a relação de poder no núcleo das discussões sobre relações de liderança.
Essa posição, entretanto, não está clara para a maioria dos entrevistados – o que pode
ser depreendido pela identificação de uma contradição a partir da análise do material,
relacionada com as conceituações produzidas: durante as entrevistas, quando solicitado a
apresentar um conceito de liderança, nenhum dos entrevistados fez referência direta à relação
entre a liderança e o exercício do poder. Entretanto, essa relação é estabelecida de forma
imediata e espontânea quando a lógica é invertida: na reunião de líderes de junho de 2010,
quando solicitados a registrarem a sua definição de “poder” – e não a de liderança –, a maioria
dos participantes (muitos dos quais foram posteriormente selecionados para as entrevistas)
estabeleceu espontaneamente essa relação – como apresentado na seção 5.5.2.
As referências ao poder foram imediatas, em alguns casos, e em outros mediadas por
conceitos como os de influência,– a qual, como foi visto na teoria, está na base do conceito de
liderança para alguns autores – ou de capacidade para alterar ou mudar a realidade. Essas
noções foram também utilizadas por muitos dos entrevistados quando da sua formulação do
conceito de liderança.
Assim, a pergunta que se impõe é a seguinte: apesar do nítido imbricamento entre os
discursos sobre o poder e sobre a liderança, por que essa relação não surge de modo imediato
quando se conceitua a liderança?
370
Para buscar responder a essa pergunta, a discussão em seguida será conduzida a partir
de três óticas diferentes:
a) A relação com o exercício do poder estabelecida a partir da discussão de liderança;
b) a relação entre a liderança e o exercício do poder mediada por verbos que exprimem
uma ação sobre a realidade – como os verbos “fazer”, “executar” e “mudar”;
c) a relação com liderança identificada a partir da discussão sobre exercício do poder.
A) A relação com o exercício do poder a partir da discussão sobre liderança
Durante as entrevistas, quando foi solicitado ao entrevistado que caracterizasse a
liderança, nenhum deles – nem entre os líderes ativos nem entre os inativos – citou o exercício
do poder como uma de suas características, como pode ser observado pelo resultado
apresentado na Tabela 12 (pág. 293).
No entanto, quando estavam sendo abordados outros temas – como a relação entre
liderança e interesses, que será apresentada na próxima seção 6.1.3 –, a relação entre liderança
e poder surgiu espontaneamente, ainda que apenas em dois dos entrevistados: os identificados
com os números (5) e (30), ambos líderes inativos.
Essa relação é significativa em dois aspectos:
a) Como pode ser observado em outros momentos desta discussão, é entre os líderes
inativos que têm identificadas percepções sobre liderança que mais tem se afastado do
senso comum;
b) mostra a relação percebida entre a liderança, o poder e a existência de interesses
pautando essa relação, por aqueles que falam de liderança fora do senso comum.
Como esse aspecto será abordado de modo mais extenso na seção 6.1.3, fica aqui neste
momento registrado para referência futura.
B) A relação entre a liderança e o exercício do poder mediada por verbos que exprimem uma
ação sobre a realidade: como os verbos “fazer”, “executar” e “mudar” – os quais, de alguma
forma, fazem referência à ideia de gestão
Em uma leitura cuidadosa dos 11 itens que identificam as características da liderança,
extraídos das entrevistas e apresentados na Tabela 12 (pág. 293), é possível identificar uma
noção de ação volitiva implícita em itens como os V e VI, expressa pelo uso dos verbos
“fazer”, “executar” e “mudar” (a realidade).
Nos escritos das reuniões, nos quais se pode observar a relação entre poder e liderança
(que será abordado no item C), a palavra “capacidade” foi utilizada por muitos dos
371
participantes – apenas para exemplificar, o líder inativo (26) poder: “capacidade de
influenciar pessoas; o líder inativo (6) poder: “capacidade de decidir com autonomia sobre
minha própria vida e influenciar as decisões coletivas”; e o líder inativo (b) poder:
“capacidade de obter o que se deseja ou grau de influência nas diferentes circunstâncias”.
Também na interpretação dos discursos sobre o que é a liderança para formar um item
a palavra “capacidade” estava associada a mais da metade destes – a seis dos 11 itens. Ou
seja, na maioria das definições, é possível observar, explicita ou implicitamente, a recorrência
da associação da liderança com a capacidade de (ou para) realizar algo.
O termo capacidade, de acordo com o dicionário Houaiss e Villar (2001), possui
outras conotações além das relacionadas a “volume”. Para o contexto desta discussão, as mais
significativas são: poder de produção, de execução; habilidade física ou mental de indivíduo,
aptidão, perícia; faculdade ou potencial para lidar com sentimentos e experiências; e
conotações jurídicas, que se referem à aptidão legal para o exercício de direitos e deveres.
Além da citação direta do poder, dois dos outros termos citados, além de serem
importantes para a compreensão das conotações, reforçam o objeto de nossa discussão:
a) A “aptidão”, que no mesmo dicionário tem a conotação de “requisitos necessários ao
exercício de determinada atividade”, referindo-se a aspectos que podem ser próprios
do indivíduo – e que serão discutidos na seção 6.2.2, no âmbito da relação entre
personalidade e liderança – ou adquiridos por experiência ou aprendizado, como serão
discutidos na seção 6.2.1 deste capítulo;
b) “potencial”, termo que é relativo à “potência”, a qual, de acordo com o mesmo
dicionário Houaiss e Villar (2001), é “característica do que é potente, poderoso, forte;
poder, força.
Etimologicamente, o termo deriva de potentia, “força, poder, autoridade, influência,
eficácia, capacidade, violência (da natureza)”. Portanto, carrega uma noção que se relaciona
ao poder, o qual é citado na primeira conotação (poder de produção, de execução).
Em resumo, o sentido atribuído pelas definições produzidas ao conceito de liderança,
reunidas na Tabela 12 (pág. 293), é o de expressar uma impressão pessoal de quem exerce ou
já exerceu esse papel, de que de alguma forma o exercício da liderança envolve ou vai
envolver o poder de realizar algo que, fora do papel de líder, o indivíduo poderia ter alguma
dificuldade de realizar. Essa interpretação tem mais sustentação quando se analisa o
produzido no sentido inverso: a relação com a liderança, que surge quando o que se discute é
o poder.
372
C) Relação com liderança estabelecida a partir da discussão sobre exercício do poder
Na análise do material, é possível identificar essa relação em três formas principais:
(i) Uma relação mediada pelo exercício da força ou pela participação na estrutura. Os
exemplos serão discutidos separados para cada tipo – o da força e o da estrutura.
a) O exercício do poder pela força (noção que está relacionada à definição de
potência). Exemplos desse tipo: o indivíduo (f), líder em atividade:
poder: é a capacidade... para a realização dos seus desejos, impor sua opinião ou
executar suas vontades.
E, nas entrevistas, o indivíduo (12), líder ativo:
[...] tem muito nego que... que pra ser líder ou pra aparecer como tal, ele tem que
demonstrar força, né? E ao passo que a liderança boa mesmo não precisa de força.
Você vai atrás do sujeito sem ele ter essa força, né... é... física ou sei lá que nome dá
pra isso [...].
Fica subentendido que esse entrevistado (12) – o qual, por sinal, foi o único líder ativo
que, na Tabela 22 (pág. 302), explicitou a diferença entre liderar e fazer gestão – deve ter
vivenciado a liderança, em seu meio social, sendo exercida pela força física ou qualquer outro
tipo que ele não soube definir bem (Coação moral? Ameaças? Chantagem? Ele mesmo não
define). De qualquer forma, apesar da relação entre liderança e o exercício da força serem
estabelecidas por líderes que estão em atividade, eles representam a minoria em seu grupo.
b) Exercido na estrutura (ou relacionado com à hierarquia) – em que o poder refere-se
à posição do indivíduo em uma estrutura. Os exemplos são o indivíduo (h), líder inativo:
poder: no plano individual, capacidade de realização. No plano social, posição
hierárquica;
Entre os entrevistados, tem-se, entre os líderes ativos, o entrevistado (10):
me colocou como coordenadora de (um setor) [...] com isso fui procurar cursos no
mercado de liderança.
Entre os inativos, o entrevistado (14),
eu não tinha muito contato com essa questão de gestão, essa questão de líder, né?
373
Essas relações envolvendo força e hierarquia estão na base das discussões teóricas
sobre o poder apresentadas na seção 3.5.2. O exercício da força é algo que pode ser
identificado já em trabalhos mais antigos, como os de Hobbes, Locke e Hume (ou seja, num
quadro histórico que se pode chamar de protoburguês), enquanto o poder exercido a partir da
estrutura tem sua origem referida nos trabalhos de Max Weber, entre o final do século XIX e
o século XX, mas baseado em exemplos mais antigos, que incluem a Igreja e os exércitos.
Como foi visto no capítulo 3, essa é uma visão que persiste de modo mais ou menos
tranquilo até a década de 1970, quando novas perspectivas com foco nos indivíduos e nas
relações entre eles – posteriormente denominadas pós-estruturalistas e críticas – são
incorporadas ao debate.
De acordo com o apresentado na Tabela 22 (pág. 302), para um número significativo
de indivíduos entrevistados (sete líderes ativos e seis inativos), a noção de liderar está
diretamente relacionada à participação do indivíduo na estrutura de algum tipo de
organização. E, ainda mais significativo: apenas um líder em atividade explicita a diferença
entre liderar e fazer gestão. Isso mostra que, ainda que o líder identifique algo que diferencie
os indivíduos que assumem o papel de líder daqueles que assumem prioritariamente o de
liderados, a estrutura que define esses papéis ainda é considerada bastante relevante para o
estabelecimento da relação. Em outras palavras, para esses indivíduos ser líder é buscar o
acesso a essas posições na hierarquia das organizações.
(ii) Relação direta, imediata, da liderança com o exercício do “poder”: aqui a liderança
é vista quase que como um sinônimo de poder. Nesse sentido, o conceito pode se confundir
tanto com as formas mediadas, abordadas no item (i), como com a forma indireta, com base
no exercício da influência, que será o objeto de discussão do item (iii).
São exemplos nas definições de poder, entre os líderes ativos:
(31) sou, como qualquer pessoa, parte do poder coletivo. Posso, em determinado
momento, estar à frente de um grupo como líder...;
(16) “poder: ordenamento e condução. Liderança e convencimento”;
Ou, ainda, entre os participantes das reuniões:
(a) poder: capacidade recebida/adquirida em relação ao grupo social de influir nas
decisões. Eu exerço poder em vários ambientes em que tenho liderança;
(c) “poder: é a capacidade de liderar pessoas...”;
374
(g) poder: está ligado ao exercício da liderança sobre grupos ou a massa.
Os indivíduos que estabelecem essa relação direta não fazem diferença entre os dois
termos, tratando-os ou como algo próximo de um sinônimo – como no entrevistado (16) – ou
como a expressão prática de um conceito teórico – como nos indivíduos (a), (c) e (g).
Considerando que são indivíduos que possuem a vivência da liderança, tanto no papel de
liderados como no de líderes, essa relação estabelecida não deve ser considerada irrelevante.
Em outros termos, para esses indivíduos liderarem vai significar o exercício do poder
sobre pessoas ou sobre grupos de pessoas. Essa correlação não é uma novidade para a teoria:
deve-se lembrar aqui que, ao estudarem as mais de 350 definições de liderança produzidas até
a década de 1980, Bennis e Nanus (1988) identificaram, em comum entre todas, apenas a
correlação estreita entre os dois conceitos – os de liderança e de poder.
Como foi apresentado na seção 3.5.2, essa noção também pode ser identificada, de
forma não direta, em teóricos mais antigos do poder, como Maquiavel e Hobbes (CLEGG,
2002). Como Hobbes é aludido por Clegg (2002) como o autor que, por intermédio de Hume
e Locke, está na origem de desenvolvimentos posteriores para as noções mais contemporâneas
sobre o poder no Ocidente, não é de estranhar o estabelecimento dessa relação em nosso meio.
Também como apresentado na seção 2.2.3.5(A), para Hobbes a dominação tinha como
fundamento a condição constitutiva do homem – não considerando que essa condição podia
ser explicada pelas condições históricas e materiais que a determinam. Nesse sentido,
voltando ao discutido na teoria (ADORNO, 1971), ela era ideológica.
A ideologia, a partir do que propõem Adorno (1971, p. 193), “em sentido estrito, se dá
onde regem relações de poder não transparentes em si mesmas, mediatas e, nesse sentido,
inclusive atenuadas”. Assim, é possível considerar que, para autores que escrevem num
cenário social marcado pela estrutura feudal de poder, a relação entre o poder e o que hoje
identificamos como sendo o líder – na época, o soberano ou um nobre, dependendo de onde a
relação de poder é visualizada – não era algo que precisasse ficar mascarado pelo discurso: ela
era, em uma ótica positivista, um dado da realidade. Nesse contexto histórico, uma
abordagem que não considerasse óbvio o poder absoluto do soberano poderia ser interpretada
como crime de lesa majestade e o autor poderia pagar com a vida por isso.
Nessa linha se encontra a abordagem de Gordon (2002), que considera o contexto
histórico das relações de poder para a compreensão das relações de liderança. E, tendo o
panorama temporal e social no qual ocorrem as relações de liderança dentro do grupo social
estudado nesta tese, parece que não há por que não reconhecer que, pelo menos para uma boa
375
parcela dos indivíduos entrevistados, está-se lidando com o exercício do poder. Isso se dá no
grupo social estudado, que é o de pessoas que estão ou estiveram no papel de líderes e cujo
discurso está dirigido para outras pessoas que estão identificadas com o exercício desse
mesmo papel social. Pode-se, inclusive, questionar se o discurso seria o mesmo se estivesse
direcionado para os liderados. O discurso, então, surge aqui como um aspecto relevante na
relação entre o poder e a liderança, como discutido na seção 3.5.3 (E).
O próximo passo envolve a análise do outro tipo de relação, menos direta, mais sutil e
que faz alguma interface com o discurso, que é a estabelecida a partir da influência.
(iii) Relação indireta, em que o poder está ligado ao conceito de influência: a
influência é apresentada em sua primeira conotação por Houaiss e Villar (2001) como o
“poder de produzir um efeito sobre os seres ou sobre as coisas, sem aparente uso da força ou
de autoritarismo”. Nesse sentido, não só está dentro do contexto desta discussão, que é o da
relação de poder, como também se coloca em contraponto com a primeira forma discutida,
que é a do poder mediado pelo uso da força. É nesse item que podemos incluir o discurso
como instrumento para o exercício do poder, uma vez que é o instrumento mais utilizado
“sem aparente uso de força ou de autoritarismo”.
Alguns dos exemplos diretamente relacionados à influência, apresentados na seção
5.4.2, são aqui reunidos para tornar claro o argumento. Entre os líderes inativos:
(26) poder: “capacidade de influenciar pessoas”;
(6) poder: “capacidade de decidir com autonomia sobre minha própria vida e
influenciar as decisões coletivas”;
(b) “poder: capacidade de obter o que se deseja ou grau de influência nas diferentes
circunstâncias”;
(d) “poder: ter poder significa fazer suas ideias prevalecerem e influenciarem o
cotidiano de um povo, de um grupo numeroso”.
A influência, nos estudos sobre liderança, é citada por inúmeros autores na própria
definição do que seja a liderança. Na discussão conduzida na seção 3.4.1.4, foi apresentado
que as primeiras abordagens mais sistematizadas sobre influência e liderança podem ser
identificadas na teoria da troca entre líder e liderado (LMX), de Graen (1976). Isso significa
que, do ponto de vista conceitual, ela pode ser enquadrada no que Bryman (2009) chamou de
“abordagens tradicionais”, em contraponto com a “nova liderança”.
376
Dessa forma, visando ao agente e à estrutura, o poder é tido como algo “natural”,
resultado de uma ação do agente A sobre B – ainda que determinada pela estrutura. O poder
exercido por quem deveria estar no papel de liderado é considerado disfuncional e chamado
por alguns autores de orientação funcionalista de “poder ilegítimo”.
Para autores de orientação pós-estruturalista, o poder está relacionado às práticas
discursivas, como foi apresentado na seção 3.5.2, e a influência é exercida pelo discurso. É
nesse sentido que se relaciona com a liderança, como apresentado na seção 3.5.3 (E).
Na presente pesquisa, são muitos os exemplos que podem ser utilizados para
relacionar o discurso à liderança, o que vai permitir explorar aspectos diferentes do tema.
Algumas falas, por exemplo, revelam as contradições internas que envolvem o exercício do
poder pelo discurso – como a do líder ativo (3), com várias presidências e outras posições de
liderança no grupo e que, em um momento da entrevista, refere-se à liderança mais
“democrática” que procura exercer dizendo que “não sou de oratória, não sou político desse
tipo, não faço... a minha política era a gente fazer esse trabalho...” e, mais à frente na
entrevista, “quer dizer, eu tenho que convencer as pessoas a participar daquela ideia, certo?”.
Ou seja, mesmo não valorizando a oratória, ele sabe que de alguma forma vai ter que
convencer as pessoas – e o recurso utilizado para isso será o discurso.
Uma outra ótica pode ser apreendida na entrevista do líder ativo (12), quando ele fala
de sua própria liderança:
Eu tenho uma vantagem [...] é a virtude de falar o que penso na hora certa... que às
vezes a gente faz umas colocações até, sei lá, grosseiras [...] a pessoa que tem
coragem de falar alguma coisa e efetuar as coisas. Eu nunca fui de falar muito,
quando tem que fazer discurso eu estou correndo disso. Então, mas em determinadas
situações e determinados eu consigo posicionar, dando a minha posição que
eventualmente é contrária à do grupo [...] o que não quer dizer que de vez em
quando você não tenha que dar uma engolida e não falar nada, não fazer nada.
Fica clara também, nessa fala, a relação que estabelece entre o fazer do líder e o falar.
Outros trechos consideram a capacidade instrumental do discurso no exercício do
poder – capacidade esta que pode ser relacionada a características tanto inatas como
adquiridas. Como exemplos são, o do líder ativo (20):
acho que tem vários tipos de liderança [...] tem outros líderes que já são liderança
pelo dom da palavra.
O termo “dom” utilizado nessa fala traz implícita a percepção de algo inato. O outro
exemplo é o do líder inativo (34), falando de forma mais direta:
377
Então você vai adquirindo um traquejo com a oratória, né, que na política é a arma
principal, e você se torna extremamente perigoso. E eu tinha uma facilidade de
oratória muito grande.
O termo utilizado, “adquirindo traquejo”, indica a percepção de uma habilidade que
pode ser adquirida. Ainda, o líder inativo (5):
saber o que as pessoas... o que mobiliza as pessoas – saber o que as pessoas querem
ouvir. Como você vai usar isso é outro problema.
Esta última fala já indica a utilização estratégica do discurso a partir de habilidades
que podem ser inatas ou adquiridas – nesse caso não importa, desde que o objetivo seja
alcançado.
Neste ponto já é possível reunir o que foi produzido na análise dos dados para
apresentar as conclusões que deles podem ser obtidas, referentes ao poder e liderança:
a) A liderança é indicada como forma de exercício do poder. A principal contradição
identificada nessa relação está no fato da liderança não ser diretamente citada como
uma forma de exercício do poder, mas indiretamente: o poder é que pode ser exercido
por meio da liderança;
b) esse poder será exercido coercitivamente, por meio da força ou da estrutura;
c) o poder também poderá ser exercido por meio da influência. Neste caso, o indivíduo
vai mobilizar habilidades inatas ou adquiridas para conduzir um discurso orientado
para atingir estrategicamente o seu objetivo;
d) a relação entre o exercício do poder e a liderança é estabelecida apenas por líderes que
não estão no exercício desse papel – o que traduz a possibilidade de existência de um
componente ideológico no discurso sobre a liderança.
Para abordá-la pelo viés da ideologia, o caminho escolhido é a discussão da relação
existente entre a liderança e os interesses. Esse é um tema que já surgiu quando da discussão
sobre a formulação do conceito, na seção 6.1.1, tendo ficado para ser mais bem explorado
agora, neste contexto.
6.1.3 Liderança e interesses
Em relação a esse aspecto da liderança, foram identificados nas entrevistas pelo menos
quatro tipos de interesses: os de ordem basicamente financeira; os relativos à diferenciação
378
em relação ao grupo social que representam – o que pode estar associado a algum grau de
vaidade pessoal; a oportunidade de aumentar sua visibilidade para atingir outros objetivos
pessoais – como o incremento da atividade de negócios próprios; o interesse no tipo de
trabalho executado pelos “executivos” em contraponto com o trabalho “operacional”, próprio
da classe profissional para o tipo de grupo social envolvido.
Os diversos tipos de interesse serão abordados separadamente, por envolverem
fundamentos teóricos diferentes – o que não impede que se possa identificar um
entrelaçamento entre eles. O exemplo desse entrelaçamento pode ser observado na análise de
um trecho do entrevistado (30):
As pessoas mais articuladas, eu vejo hoje, as mais articuladas, elas procuram
associar a questão da liderança com remuneração, então essas duas coisas são
importantes, você procura... e é natural isso... você procura aquele cargo que ele te
dá mais projeções, mas junto com uma questão de remuneração. A não ser que essa
questão de remuneração já está resolvida, então o cara já está aposentado, largou
tudo, então ele quer só o glamour, entendeu? Mas normalmente você procura a
associação da remuneração com o... o poder [...] ele entra nessa fogueira, mas
almejando que dali ele dê um salto para uma coisa que seja destaque e remuneração
Em outro ponto da entrevista do mesmo líder inativo:
Você pega um cara que é um... um executivo na empresa x, ele vai caminhando
nessa empresa, ele vai caminhando, ele tem uma liderança nessa empresa, ele vai
caminhando [...] e se ele aqui está vendo espaço em outras empresas, então ele
consegue fazer a sua liderança com remuneração justa e ele muda pra outra com
remuneração boa, às vezes pode ser até menor mas com uma projeção maior [...].
Nesses trechos, marcadas em itálico estão as palavras que indicam os diversos tipos de
interesse a serem abordados: a remuneração, que indica os interesses financeiros; o glamour,
que está relacionado à diferenciação em relação ao grupo e com a vaidade pessoal; a projeção
e o destaque que, além da diferenciação em relação ao grupo, significam o aumento da
visibilidade, com a finalidade de atingir outros objetivos pessoais – que podem incluir os
financeiros; a exemplificação da atividade de liderança usando o cargo de executivo – que o
entrevistado usa tanto para exemplificar o que fala sobre remuneração como sobre a projeção
social; e, por fim, o poder, que reforça o que já foi abordado na seção anterior 6.1.2.
As evidências para as discussões que se seguem, referentes a cada um dos itens, serão
obtidas de outras entrevistas, bem como de reuniões e assembleias. A razão de começar a
discussão pelo trecho do entrevistado (30) se deve à forma como surgiram simultaneamente
379
os diversos itens relacionados a essa discussão – o que mostra que existe entre eles um eixo
comum, que é o que foi aqui identificado pelo termo interesse.
O entrevistado (30), do sexo masculino, é líder inativo – o que, como já foi observado
no início desta seção, pode ser um fator de facilitação para a expressão de visões mais críticas,
uma vez que os líderes inativos se encontram em uma posição de distanciamento em relação
aos compromissos de quem tem, por força de ofício, que prestar contas de suas falas e ações
ao quadro social que o elegeu para o exercício desse papel.
Para as referências teóricas, como os temas são muitas vezes específicos, serão
citadas, além das seções, alguns dos autores de referência para determinada abordagem.
A) A projeção social: e sua relação com a “vaidade”
A citação do glamour como substituto para a remuneração mostra o primeiro interesse,
que é o da projeção social, pelo destaque que pode promover em um grupo. A base teórica
para essa abordagem pode ser encontrada nas seções 3.4.1.4, 3.4.2.2 e 3.4.2.3.
Como pode ser observado nas falas, há uma mistura entre a noção de projeção social e
o que foi chamado de “vaidade” por alguns dos entrevistados. E as falas que se relacionam a
esse aspecto ou o fizeram de forma autorreferida ou estavam se referindo a terceiros.
Exemplos de falas autorreferidas: entrevistado (6), do sexo masculino, líder inativo,
sobre o porquê de ele buscar posições de liderança:
uma coisa meio de... é... de estar sempre querendo estar participando. E assim
também uma questão de status, né, de ser uma referência assim, sabe... de ter uma...
de se destacar.
E o entrevistado (11), do sexo masculino, líder ativo de uma organização na qual não
há remuneração para o exercício dos papéis de liderança:
não posso não deixar de colocar um certo grau de vaidade pessoal [...] Isso eu tenho
deixado claro em alguns discursos que eu fiz agora em relação à [cargo atual], que
existia um grau de vaidade pessoal.
Entre os exemplos da vaidade de terceiros, pode-se citar um outro trecho da entrevista
de (6):
não penso muito em liderança como um... destaque, vamos dizer assim, fora daquele
grupo de pessoas que contribuem de formas diferentes para atingir aquele objetivo.
380
Aqui uma contradição em sua fala: em sua citação no parágrafo anterior, ele deixa
claro que uma de suas motivações para a liderança é se destacar. Agora, falando de
características de liderança – quando a referência pode ser o outro –, ele já não “pensa na
liderança como um destaque”. Em outros termos, ele nega para o outro o que deseja para si...
A maioria dos exemplos envolvendo terceiros é retirada principalmente de falas que se
referem a dois líderes, os quais, pelas características das organizações que lideram, não foram
selecionados para as entrevistas:
a) O primeiro, aqui denominado “x”, afastado de posições de liderança de organizações
que fazem parte do grupo social em questão, após ter se mantido por muitos anos
nessas posições. O líder ativo (3) o caracteriza como “um cara vaidoso. Eu vejo assim,
o „x‟ já tinha liderança, mas tudo em função dele”; e o líder ativo (15) como “o tipo de
liderança que não acho boa [...], muito personalista, vaidoso [...]”. Já o líder inativo
(22) o caracteriza da seguinte forma: “o „x‟ é liderança... mas Hitler também era. Só
que „x‟ é mais vaidoso, né?”;
b) o outro indivíduo, aqui identificado como “y”, em posição de liderança em outro tipo
de organização, foi citado em exemplos que envolvem o aspecto “vaidade”: o líder
inativo (22) “o „y‟ tá no mesmo padrão: vaidoso, egolátrico, só enxerga os seus
próprios interesses”; o líder inativo (27): “o „y‟, eu tenho bastante aversão a ele, o jeito
dele, sabe, assim, meio vaidoso... num... não me representa”; e o líder ativo (31): “na
verdade „y‟ está basicamente cumprindo um objetivo pessoal [...], vaidoso”.
c) em uma outra ótica, que envolve apenas a posição de liderado, está a fala do líder
inativo (23) que observou, sobre a substituição de indivíduos em uma posição de
liderança, em seu local de trabalho que: “[...] foi terrível, porque entrou um indivíduo
altamente vaidoso, e aí você percebe como é que destrói o processo”.
O que se observa a partir desses exemplos é que:
a) Pode ser identificada uma quantidade equilibrada de líderes ativos e inativos, tanto
entre os exemplos de autorreferência como entre os exemplos que se referem a
terceiros;
b) entre os exemplos de autorreferência encontram-se visões mais positivas da “vaidade”,
enquanto entre os de referência a terceiro, encontram-se visões mais negativas.
381
Essas conclusões indicam que a vaidade, além de ser um aspecto da liderança, não é
algo a princípio condenável, dependendo, para isso, do contexto no qual será encontrada – em
geral, será vista como algo positivo quando justifica a sua própria, em uma autorreferência.
Como a caracterização do que foi chamado de “vaidade” ocorreu no âmbito coloquial
da entrevista, não é possível afirmar que houve confusão entre a concepção de vaidade
apresentada pelo entrevistado e o conceito de narcisismo, cujos critérios para caracterização
são mais bem definidos e foram apresentados nas seções 3.4.2.1 e 3.4.2.2.
Como entrevistador e responsável por aferir as definições, o autor da tese considera
apropriado afirmar que a conotação conferida à palavra “vaidade” pelos entrevistados de
modo geral esteve mais longe da conotação habitualmente utilizada – envolvendo valorização
e o desejo de reconhecimento por outros da própria aparência ou de outras qualidades físicas
ou intelectuais – e mais próxima do que a literatura aborda quando se refere ao narcisismo.
Também deve ser lembrado aqui que a teoria, apresentada na seção 3.4.3.2, relaciona
uma faceta A5 (modéstia) do NEO-PI-R classificada como “muito baixa” com o narcisismo –
e não com a vaidade. Como se trata de conotação de termo, uma consulta ao dicionário
Houaiss e Villar (2001) pode ajudar. Nesse dicionário, os antônimos de vaidade são a
despretensão, a desvaidade e a modéstia. Assim, considerando o sentido do termo, não se
pode descartar a possibilidade de uma relação entre o que foi referido como vaidade e o que a
teoria apresentou como narcisismo, já que a teoria sobre as facetas da personalidade relaciona
o narcisismo a um nível muito baixo de modéstia.
Não havendo relação direta, foi preciso buscar alguma outra forma que ajudasse a
aferir a existência ou não dessa relação. A forma encontrada foi apresentar, na reunião de
junho de 2012, o conceito de narcisismo e a relação que os autores como Freud (1987c) e
Kets de Vries (1990) estabeleceram entre narcisismo e a liderança, perguntando, na sequência,
pessoalmente para os entrevistados presentes que mencionaram a vaidade de terceiros durante
as entrevistas, se percebiam congruência entre o apresentado e aquilo a que ele se referia
quando da utilização do termo “vaidade”. A resposta foi afirmativa por parte dos três
entrevistados questionados (os dois outros citados não estavam presentes na reunião). É certo
que não se pode confiar acriticamente em uma conotação de termo fornecida fora do contexto
no qual o termo foi utilizado – entre a entrevista e a reunião já havia transcorrido cerca de um
ano. Mas não se pode desconsiderar que a aferição pessoal confirmou uma relação entre a
impressão registrada na entrevista e a conotação apresentada na reunião.
Considerando uma relação intencionada entre o que foi chamado de “vaidade” por
alguns entrevistados e o conceito de narcisismo, retoma-se a proposta de Kets de Vries
382
(1990), apresentada na da seção 3.4.2.2 e resumida no Quadro 1, do espectro envolvendo
diferentes formas de narcisismo, com resultados mais positivos ou mais negativos, quando
avaliados sob a ótica da efetividade da liderança (esta última, apresentada na seção 3.3.2).
Consultando as entrevistas, pode-se perceber que as características identificadas pelos
entrevistados para os indivíduos “x” e “y” citados os posicionam mais facilmente no que foi
descrito como narcisismo reativo. Quanto aos líderes reconhecidos como rejeitados na Tabela
27 (pág. 315), não há como especificar o tipo, uma vez que não existem, nas entrevistas, falas
que possam fornecer subsídios que fundamentem uma impressão.
Consultando os dados da pesquisa, duas outras informações envolvendo a vaidade
podem ser também consideradas relevantes nesse panorama:
a) Os dois únicos indivíduos que apresentaram a faceta A5 classificada como “muito
baixa” não foram os citados nos exemplos de líderes vaidosos, nem mesmo
identificados como líderes que desejariam uma projeção social pelo exercício desse
papel;
b) Como os indivíduos “x” e “y” tidos como vaidosos por entrevistados não cumpriram
os critérios de inclusão para a entrevista, não foi possível aferir a classificação da
faceta A5 para esses indivíduos – o que prejudica a avaliação de possíveis
contradições.
Em resumo, não se tem aqui elementos, a partir dos achados empíricos, para afirmar a
relação entre a percepção de um comportamento identificado como envolvendo a vaidade do
indivíduo e o que a teoria chamou de narcisismo. Dada a importância conferida por alguns
dos entrevistados a essa questão, fica aqui o registro para que esse questionamento possa
estimular a investigação dessa relação por pesquisas futuras.
Associando o que foi reunido até o momento, é possível perceber outra contradição:
nos dois casos em que houve muitas referências negativas (os indivíduos “x” e “y”), os
indivíduos foram escolhidos e mantidos em suas posições de liderança pelo voto ou por
escolha dos liderados. Para orientar a análise, recuperam-se duas das referências apresentadas
na seção 3.4.2.2: para Kets de Vries (1990), “o narcisismo é, muitas vezes, a força condutora
alimentando o desejo de obter um cargo de liderança” (KETS DE VRIES, 1990, p. 8). E para
Rouanet (1989), “o líder é a projeção narcisista dos atributos que o indivíduo massificado
ambiciona ter e que lhe são negados pela realidade” e “o chefe onipotente é a imagem da
impotência do indivíduo e o reflexo dos seus ideais de onipotência” (ROUANET, 1989, p.
131).
383
Novamente Rouanet (1989) reporta a identificação, discutida na seção 3.4.2.3, como
uma das chaves para abordar a referida contradição. Considerando as conclusões de Sogunro
(1998, p. 26) de que “a efetividade da liderança é influenciada bilateralmente pela dinâmica
das características de personalidade tanto do líder quanto dos membros do grupo” e
recuperando os argumentos de Sarsur (2010) sobre a identificação, deve-se lembrar que a
identidade do líder atrai o liderado e que existe uma influência mútua estabelecida entre líder
e liderado. Em outros termos, para a teoria, em um grupo cuja representação social pode
incluir características como as da vaidade e da onipotência, o líder pode ser escolhido e
mantido no papel a partir da identificação de características que o liderado pode desejar para
si ou que pode encontrá-las em si mesmo e que são projetadas no líder.
Entretanto, deve-se lembrar que, como esta pesquisa não foi desenhada para propiciar
conclusões sobre o grupo social, não há elementos para discutir esse aspecto. A dinâmica do
que em um grupo social ocorre é complexa, e sua abordagem vai depender de fatores não
acessados, pois são muitos, e diferentes, os indivíduos envolvidos. Exemplo disso é que os
mesmos líderes escolhidos podem ser posteriormente rejeitados, o que quer dizer que, se esse
aspecto for considerado relevante para análise, esta investigação deverá ser conduzida por
pesquisas futuras.
Em relação apenas à faceta A5 (modéstia), na seção 5.2 (F), foi identificado que:
a) Nenhum dos líderes rejeitados apresentou resultado “alto” ou “muito alto” para a
faceta A5;
b) dois dos três indivíduos apresentados na Tabela 27 (pág. 315) como os mais rejeitados
apresentavam a faceta A5 como baixa ou muito baixa;
c) o outro líder inativo com resultado da faceta A5 “muito baixo” foi inserido na rejeição,
a despeito de estar inativo – e, por isso, menos accessível para lembrança, como
apresentado na seção 6.1.1.
Esse conjunto revela a possibilidade de que a percepção de níveis mais baixos de
modéstia (A5) pode ser um fator de estímulo à rejeição do líder – pelo menos para o grupo
social estudado e para os liderados que também são líderes, que são objeto desta pesquisa.
Pelo reduzido número de pessoas envolvidas, esse é um achado que deverá ser aferido em
outras pesquisas.
Reunindo todos os achados em uma conclusão – a qual vai se referir apenas à ótica de
quem está ou esteve no papel de líder, o que deixa de fora os outros liderados desse grupo
social –, pode-se dizer que:
384
a) A projeção social pode ser considerada um substituto para o retorno financeiro;
b) não foram encontrados elementos, a partir dos achados empíricos, para afirmar a
relação entre a percepção de um comportamento identificado como envolvendo a
vaidade do indivíduo e o que a teoria chamou de narcisismo;
c) a “vaidade”, no sentido de busca de projeção social, não foi percebida como algo
negativo na liderança; já no sentido de “baixa modéstia” – o que, de acordo com a
teoria, pode se relacionar com o conceito de narcisismo –, ela foi percebida como
negativa na liderança.
B) Aumento de sua visibilidade no grupo social
Nesse caso, o interesse está na oportunidade de aumentar a sua visibilidade no grupo,
não por vaidade, mas visando atingir outros objetivos pessoais (e não objetivos de grupo).
Entre esses objetivos podem ser encontrados os de ordem financeira – envolvendo, por
exemplo, os seus negócios próprios, e não a remuneração direta referente às atividades de
liderança, como será tratado no próximo item – e os de ordem social, quando o indivíduo, por
exemplo, almeja posições de destaque para atingir outros objetivos – como aumentar o cacife
político. Esses dois aspectos vão fazer com que esse item se aproxime e ao mesmo tempo
afaste do que foi discutido no item (A), quanto à “vaidade” envolvida na posição de liderança,
e do que será discutido no item (C), referente a interesses de ordem financeira.
Aqui, novamente Barker (2001) pode ser utilizado como referência teórica.
Além do trecho já citado no início desta seção, no tocante à entrevista do líder inativo
(30), um exemplo desse tipo pode ser encontrado nas anotações de assembleia, apresentado na
seção 5.4.1 (c): a organização de tamanho intermediário, que oferece retorno financeiro
intermediário para posições de liderança, por ser uma federação proporciona mais visibilidade
social, ressaltando posições mais sustentáveis no futuro. Ali, as mais importantes
participações aconteciam em momentos políticos, como na proximidade das eleições de
organizações maiores, ou durante movimentos de impacto político para as organizações de
base, que são aquelas que fornecem o suporte político para posições de representação em
organizações maiores, as quais, por sua vez, vão proporcionar mais retorno financeiro e mais
prestígio social.
Entre os entrevistados, o exemplo pode ser encontrado na fala do entrevistado (5),
líder inativo, mas que tem um negócio próprio envolvendo prestação de serviços, no qual
organiza e fornece informações estratégicas para outras organizações: (5) “continuar
participando, contribuindo, usufruindo também, né, porque não é só uma, uma doação...
385
usufrui também, né, com oportunidades, contatos de desenvolvimento”. Neste caso, o passado
de liderança o mantém próximo da liderança em atividade. Estar fora – mas próximo – do
“poder” pode ser o melhor para a sua atividade atual, mantendo a sua autonomia de ação, mas
principalmente mantendo a influência exercida sobre os líderes em atividade, no exercício de
uma liderança que não é formal, mas que existe de fato e possibilita oportunidades futuras.
Em resumo, pode-se dizer que o “aumento da visibilidade em seu grupo social” foi
citado apenas por líderes inativos, mas foi observado no comportamento de líderes ativos em
atividades coletivas, como em assembleia em organização que, por suas características, está
em posição estratégica no grupo. É um tipo de interesse que pode estar relacionado com
motivações de caráter financeiro como social, mas sem relação com ganhos imediatos
referentes ao papel de líder.
C) Interesses de ordem financeira
É o tipo constatado nas situações nas quais a posição de liderança envolve melhor
remuneração do que aquela que o indivíduo poderia auferir em suas atividades habituais.
Entre os autores mais identificados com essa linha e abordados na teoria podem-se citar, além
de Barker (2001), Alvesson e Sveningson (2003a).
A discussão pode começar com outra fala do mesmo líder inativo (30), já citado no
início desta seção. A relação estabelecida é entre liderança e o poder, já mencionada na seção
6.1.2, mas aqui na interface com os ganhos financeiros: (30) “ele não tem outro vínculo e a
única forma dele crescer, de exercer seu poder mesmo, ou seja, seu poder financeiro, e estar
lá dentro liderando é seguir em frente...”. Num outro momento, a relação entre a posição de
liderança e os ganhos financeiros é estabelecida de forma ainda mais direta:
(30) Ele (o líder) associa muito o espaço com a remuneração. Na área (profissional)
o que acontece é que são poucos os cargos (de liderança) que têm uma remuneração,
e muito menos aqueles que garantem uma remuneração perene [...] então o cara, ele
faz as duas coisas [...] porque na hora que ele sai dessa situação, ele põe em risco a
remuneração, porque ele larga o que está ganhando aqui, vai lá ou não ganhando
nada, ou às vezes no sindicato ganhando um emprego, quer dizer... se ele optou por
isso aqui, ele tem que caminhar aqui sempre. Então o que leva o cara a motivar isso
é porque ele também não tem como sair.
Nessa ótica, alguns líderes buscariam se manter em posições de liderança apenas por
razões de sobrevivência, de ordem financeira – o que aproxima muito as atividades de
liderança com as atividades existentes na divisão social do trabalho, que serão objeto de
discussão da próxima seção, 6.1.4. – incluindo o aspecto relacionado à independência
386
financeira para o exercício da liderança, que será desenvolvido na mesma seção. É uma ótica
que pode ser vista também em outra fala, a do líder inativo (6), que não vê sacrifícios no
exercício da liderança – aspecto que também constará da seção 6.1.4 –, uma vez que ele
assume ter buscado essas posições e, em suas palavras, “me pagaram para eu fazer”.
Essas duas falas são congruentes com os achados de assembleias, como foi
apresentado na seção 5.4.1, item (c), na qual se apurou que: na menor organização, que
oferecia menos retorno financeiro para a liderança e menos visibilidade social no grupo
profissional, as participações estavam mais relacionadas às questões operacionais e menos aos
interesses pessoais ou de pequenos grupos; na organização maior, onde o ganho financeiro e a
visibilidade social são maiores, foram observadas participações mais calorosas, ligadas ou a
questões referentes a interesses de ordem financeira de pequenos grupos – como reservas de
mercado ou ganhos diferenciados; por fim, na organização de tamanho intermediário, já
citada no item (B) anterior, que por ser uma federação proporciona mais visibilidade social,
destacando posições de liderança mais sustentáveis no futuro, as participações foram mais
importantes em momentos políticos, buscando suporte político para posições de representação
em organizações maiores.
No contraponto está a independência financeira desejada para o líder, a qual será
abordada na próxima seção 6.1.4 (C), em conjunto com a questão da autonomia.
Sumarizando o que pode ser afirmado sobre interesses financeiros, pode-se dizer que:
a) Os achados indicam que os interesses de ordem financeira para a liderança são vistos
por indivíduos com experiência no exercício do papel de líder (estando ou não em
atividade) como algo que pode, de alguma forma, interferir no resultado da ação
executada pelo líder;
b) é possível mesmo que alguns líderes busquem se manter em posições de liderança por
razões de sobrevivência financeira;
c) esses dois aspectos acentuam a liderança como sendo uma atividade dentro da divisão
social do trabalho – tema que será retomado na próxima seção 6.1.4, na qual será
apresentado também o contraponto, que é a independência financeira para o exercício
da liderança.
D) Interesse no trabalho dos “executivos” em contraponto com o “operacional”.
Esse é o último exemplo identificado do exercício da liderança como interesse.
Ele não se refere nem diretamente aos interesses de ordem financeira (ainda que possa
existir algo nessa interface) e nem à vaidade, mas sim ao tipo de trabalho executado, em
387
contraponto com o trabalho que seria mais “operacional”, executado pelos demais membros
do grupo social, nos moldes do que ocorre em geral nas organizações. Esse aspecto do
interesse aproxima essa discussão da liderança vista como uma atividade dentro da divisão
social do trabalho – tema que será objeto da próxima seção, 6.1.4 – e ao poder.
Suporte teórico para essa linha pode ser encontrado nos autores citados na seção 2.5.3
G), na qual foi visto que o fastio e a falta de sentido, abordados nos âmbitos de trabalho
repetitivo e rotineiro – que podem ser motivo de insatisfação com a atividade profissional –
podem se relacionar aos gaps entre as expectativas e a vida vivenciada. Mas isso não é
suficiente para explicar o que foi encontrado na pesquisa, sendo um aspecto que surgiu
espontaneamente das entrevistas e que demanda melhor compreensão teórica.
Como exemplo, cita-se o entrevistado (14) que, após a mudança do grupo político que
o apoiava, deixou de exercer o que ele chamou de “cargos executivos” e passou a se dedicar
às suas atividades como professor. Liderar, para esse entrevistado, significava assumir os
cargos superiores em uma organização de estrutura hierárquica dentro da divisão social de
trabalho existente na organização. Na entrevista, ele se refere aos líderes no seu grupo social
da seguinte forma: (14) “então o indivíduo hoje entra pra exercer um cargo executivo
preocupado com ele mesmo, primeiro o dele, depois ele vai pensar nas outras pessoas”.
Outro exemplo é o do já mencionado entrevistado (30) que, além das relações já
sugeridas entre liderança e poder, também estabelece um paralelo entre a liderança e a
atividade de gestão – envolvendo um interesse também de ordem financeira. No seu modo de
ver, o interesse para uma posição de liderança pode ser comparado ao observado na ascensão
em uma carreira executiva, fazendo, inclusive, um paralelo com a ascensão de um executivo
em empresas:
Você pega um cara que é um... um executivo na empresa x, ele vai caminhando
nessa empresa, ele vai caminhando, ele tem uma liderança nessa empresa, ele vai
caminhando [...] e se ele aqui está vendo espaço em outras empresas, então ele
consegue fazer a sua liderança com remuneração justa e ele muda pra outra com
remuneração boa, às vezes pode ser até menor mas com uma projeção maior [...].
Aqui, além de não estabelecer uma diferenciação entre liderança e gestão, ele faz uma
ligação evidente da liderança com a remuneração – e, novamente, com a projeção social já
discutida.
Considerando os trechos apresentados, pode-se dizer que este foi um achado de
pesquisa pouco explorado pela teoria, mas que por ter surgido espontaneamente (mais uma
vez, a partir de líderes inativos) mereceria ser aprofundado em pesquisas futuras.
388
Para o que se tem no momento, os achados podem ser sumarizados dizendo-se que a
lógica que associa o exercício do papel de líder ao interesse pelo trabalho em funções
“executivas” mostra:
a) a possibilidade de que o líder esteja buscando nesse tipo de atividade algo que não
encontra nas atividades habituais que exerce em seu campo profissional;
b) uma interface com as relações de poder; e
c) o enquadramento da liderança na divisão social do trabalho, considerando que ele
envolve não só as posições superiores na hierarquia, mas também os ganhos esperados
para essas posições – reforçando o que foi analisado nos itens (A) e (C) desta seção;
Para aprofundar esse aspecto, ele será o objeto de discussão da próxima seção.
6.1.4 Liderança e divisão social do trabalho
Além do que foi adiantado na seção anterior, dois outros aspectos foram identificados
no material analisado e serão aqui comentados sob a ótica da liderança como parte da divisão
social do trabalho: o trabalho do líder como uma atividade banal, abordado na teoria
principalmente na seção 3.5.3 (F), e a autonomia do líder. No caso da autonomia, não foram
encontrados trabalhos na literatura consultada a respeito, apesar de ter sido um tema frequente
de abordagem durante as entrevistas.
Existem ainda três outros aspectos que devem ser discutidos: o que envolve as
questões relacionadas à “exploração” do trabalho do indivíduo que assume o papel social de
líder pelos demais membros de seu grupo social; os “sacrifícios” exigidos para o exercício da
liderança; e as questões relacionadas à independência financeira do líder.
Estes últimos três temas são resultados interessantes da pesquisa, pois não foram
derivados da teoria, mas sim nasceram espontaneamente das falas de alguns dos entrevistados
– a partir do que, para efeito de comparação, foram abordados também com outros, para os
quais essas questões não haviam se apresentado inicialmente como problema. A discussão
desses temas será conduzida na mesma seção na qual a autonomia será discutida, uma vez que
os entrevistados os abordaram no mesmo âmbito na entrevista.
Congruente com o que já foi observado nas discussões conduzidas na seção 6.1.3,
novamente as abordagens que mais se afastaram do senso comum foram realizadas por líderes
que não estão mais em atividade.
389
A discussão terá início pelos trechos nos quais é possível identificar a relação entre as
atividades exercidas pelo líder com atividades próprias de qualquer trabalho dentro do grupo
social escolhido. O contraponto escolhido para a discussão está nas abordagens que podem ser
comparadas com o que foi chamado, na teoria, de “romance” da liderança. Em seguida, passa-
se à discussão que envolve a relação do papel de líder com a sua percepção de “exploração”
pelos que estão no papel de liderado e os possíveis “sacrifícios” envolvidos no exercício desse
papel. É nesse cenário que também serão descritas as questões relacionadas à independência
financeira e à autonomia do líder, que fazem interface com o que foi discutido na seção
anterior, em que se tratou do interesse financeiro para a liderança.
Ao final, busca-se concluir com a produção de algumas sínteses dialéticas –
lembrando que nessas sínteses não se pretende “fechar” conclusões, mas apenas identificar, de
modo dialético, o núcleo de verdade que pode coexistir nas contradições.
A) A liderança como uma atividade banal e o “romance” da liderança
As referências teóricas mais importantes para essa abordagem foram apresentadas na
seção 3.5.3 (F), com autores que entendem as atividades envolvidas com a liderança como
uma das atividades que sejam valorizadas na divisão social do trabalho.
Entre os líderes inativos, cujas observações estavam relacionadas a esse aspecto,
encontra-se o entrevistado (26), para quem a liderança não é “um ônus; não é difícil e...
também não é nenhuma vantagem ser líder [...]”. Em sua visão, “não há diferença entre
liderado e líder. Pra mim, eu acho que o líder vai se tornar líder dependendo da necessidade”,
sendo que a sua atividade não pode ser “nenhuma obrigação, uma necessidade, é... é assim...
fazer o que gosta e... vejo a liderança muito assim, uma coisa natural e prazerosa [...]”.
Quando solicitado a caracterizar o líder, ele pontua, como das mais importantes, que “ele
cumpre uma função com prazer, é... não por motivo financeiro ou por julgar que aquilo é
bacana pra ter, pra aparecer em alguma revista, destacar na sociedade”.
Pelo que pode ser visto nessas falas, esse líder inativo faz, espontaneamente, o
contraponto justamente com os dois aspectos que foram, no item anterior, identificados com
os interesses: os de ordem financeira e a projeção social. A citação espontânea afirma o
reconhecimento da existência desses interesses entre líderes que ele deve conhecer.
No seu raciocínio há relação entre a liderança, considerada uma atividade banal, e o
seu exercício por prazer. O sentido aqui é o de que qualquer trabalho, quando executado com
prazer, é simples e não excepcional. Daí o contraponto, quando ele sugere que a visão da
liderança como atividade excepcional estaria na origem do interesse pelo papel de liderança
390
por motivos financeiros ou por vaidade – percepção que está em congruência com os autores
apresentados na seção 3.5.3.
A fala de outros indivíduos refletia a impressão de terem sido levados à posição de
liderança porque não havia mais alguém interessado pelo “encargo”, deixando subentendido
que qualquer outro – ou, pelo menos, muitos outros – poderiam exercer o mesmo papel
naquela organização e naquele momento. Deve-se registrar que os indivíduos que
apresentaram essa visão não tiveram breve passagem pela liderança – todos contam com mais
de 15 anos de história relacionada a atividades de liderança, em muitos papéis diferentes e em
diferentes organizações durante esse período. Ainda assim expressam uma visão que poderia
ser resumida em uma frase do tipo “fui eu porque estava disponível, mas poderiam ter sido
outros que na época tivessem disponibilidade”.
Essa é uma visão que aproxima o discurso desses indivíduos daquele que identifica a
liderança como algo banal, não excepcional, que pode ser exercido por qualquer indivíduo
médio do seu grupo social – como proposto por autores apresentados na seção 3.5.3 (F).
São exemplos, entre os líderes inativos, a entrevistada do sexo feminino (27):
foram aparecendo oportunidades pra estar também... e outra coisa foi o momento de
ter poucas pessoas envolvidas [...]”.
E os entrevistados do sexo masculino:
(13) na [organização x] e na [organização y] eu fui convidado. Na [organização z] eu
fui realmente, assim, meio levado, né... Ninguém queria pegar também;
(34) então, a liderança é determinada pela circunstância. O herói é o cara que não
conseguiu fugir.
Nessa última fala está uma das maiores expressões da banalidade liderança encontrada
entre os entrevistados – lembrando que esse indivíduo não foi líder de poucas organizações,
chegando mesmo a ser liderança de partido político.
Entre os líderes em atividade, a entrevistada do sexo feminino (10):
Eu fui para uma reunião da [...] que tinha umas quatro pessoas lá e eu achava que
tinha que ser convidada para ir e como eu ia, eu fui pra ver como é que funcionava...
eu cheguei lá não saí mais, fui três vezes presidente da [sociedade x], agora diretora
da [sociedade y] também e também da [sociedade z], porque faltam pessoas pra isso,
né?
E o entrevistado do sexo masculino (15):
391
“isso eu acho que é uma maneira de exercer a liderança, mesmo que eventualmente
depois você fique fora do sistema, fora de utilidade, você já prestou o melhor de
você. Então, eu acho que todo mundo tem seu tempo...”.
O que se percebe em comum nesses discursos é que o indivíduo falando de si, de
como as coisas realmente aconteceram na história “desse líder que sou eu”. Essas falas, que
estão bem equilibradas tanto por gênero como por líderes ativos e inativos, vêm no
contraponto com a visão mais “romanceada”, em sua grande maioria apresentada apenas por
líderes que estão em atividade. Como exemplos, os lideres ativos – apenas para citar alguns
exemplos, já que foram falas muito frequentes entre líderes em atividade:
(2): capacidade de se colocar em presença [...]ser identificado pelas pessoas como
alguém que tenha capacidade de, até, de fazer uma síntese;
(3): tem a preocupação com o todo, com todos, que quer cuidar de todos;
(9): liderar é ouvir... e... depois executar alguma coisa diante do que você ouviu;
(10): o líder é aquela pessoa que consegue ver acima;
(33): o líder é aquele que tem a capacidade de diminuir as incertezas.
Uma explicação possível para esse tipo de discurso – pelo menos para uma boa parte
deles – pode ser encontrada no processo de idealização, discutido na seção 3.4.2.1. Elas se
apresentam no contraponto com aqueles que não veem a liderança como uma atividade
excepcional e se diferenciam das falas apresentadas anteriormente, porque nelas pode-se
perceber uma referência a um “líder em geral”, alguém que está “lá” – e não de si mesmos,
como nas anteriores. Pelo menos, não diretamente, pois, se forem utilizados para a
compreensão desses discursos os mecanismos de projeção definidos na nota de rodapé 37 na
pág. 189, é possível identificar nesse momento que os entrevistados estão falando justamente
de si mesmos: de algo que, por rejeitarem ou desejarem para si, mas que não identificam em si
mesmos, projetam no outro.
Assim, sumarizando o que foi observado sob esse aspecto, pode-se concluir que:
a) Foi observada mais tendência de líderes que estão em atividade a replicarem um
discurso mais “romanceado” sobre a liderança;
b) no contraponto, alguns líderes, tanto entre os que estão em atividade como entre os
inativos, apresentaram espontaneamente uma percepção de liderança que a vê como
uma atividade não excepcional ou uma atividade como outra qualquer dentro da
392
divisão social do trabalho. Nesse grupo se encontram duas das apenas quatro mulheres
que foram entrevistadas;
c) uma abordagem negativamente dialética deve considerar a verdade existente nas duas
visões. Assim, pode-se considerar que a liderança será banal se mobilizar os recursos
que o indivíduo utiliza para o exercício de suas atividades habituais, ou seja,
habilidades que identifica em si. E será excepcional se as habilidades identificadas
para o exercício da liderança não forem facilmente encontradas em si mesmo, podendo
tanto ser desejadas como rejeitadas no outro.
B) Liderança na ótica de “exploração” e de sacrifícios
A relação entre os sacrifícios e a liderança foi investigada na teoria associada à
liderança carismática, na seção 3.2 (D). Já a “exploração” foi um aspecto que também nasceu
das entrevistas e para o qual não foram encontradas referências na literatura consultada.
Como a primeira citação – a que motivou a investigação em outros líderes – acontece
durante a entrevista do líder inativo (8), é interessante verificar a história de vida na qual este
líder estabelece relações de liderança. Esse entrevistado (8) não tinha passado rico em
posições de liderança. Seu primeiro papel efetivo aconteceu no exercício de sua atividade
profissional quando, no percurso de uma carreira pública, as condições de trabalho e o retorno
financeiro chegaram a um ponto tão desmotivador que ele considerou que ou as coisas
melhoravam ou era melhor sair. Ou seja, um ponto no qual ele percebeu que não havia muito
o que perder com o risco de uma exposição. Nesse momento ele organizou uma associação
nacional, processo no qual chegou a comprometer suas finanças pessoais e a pôr em risco sua
carreira. Para sua atuação em Brasília, o sindicato da categoria o apoiou financeiramente, mas
ele sentia que perdia autonomia: tinha que apresentar pauta para reuniões e outras
informações que, em sua visão, estavam engessando a sua atuação e diminuindo a sua
efetividade. Teve sucesso na organização da associação a qual, a partir de sua existência,
permitiu ao entrevistado uma atuação com mais autonomia, uma vez que havia contribuição
dos associados. Como líder dessa associação, ele conseguiu mudar as características de sua
atividade profissional – tanto em relação às condições de trabalho, como à remuneração. Após
cerca de oito anos de liderança desse grupo, ele perdeu uma disputa política para alguém que,
mesmo próximo, tinha perfil de “oportunista”. Ele abandonou as posições formais de
liderança, situação na qual se mantém até hoje.
Se, de um lado, o entrevistado (8) coloca a autonomia e a independência financeira
como valores para a atuação efetiva do líder, por outro lado a sua percepção é de que na
393
verdade ele estaria servindo de “boi de piranha”, representando, sob risco pessoal, interesses
de pessoas que não queriam se expor para não perder o emprego – mas que teriam condições
de fazê-lo, se o quisessem. Em suas palavras:
(8) Depois que alguém se sobressai e mostra que é capaz de se expor em nome dos
outros... porque o colega quer é que você se ferre em nome dele. Então, hoje eu sei
disso com muito mais clareza; inclusive nunca mais me iludi também, aparece um
que seja louco maluco a ponto de pôr em risco uma carreira... eu fui ameaçado por
ministro [...] a relação é muito perversa.
As questões referentes à autonomia e independência financeira levantadas por esse
entrevistado serão retomadas no próximo item.
Houve outro líder inativo, do sexo feminino, que relatou algo parecido sobre o se
sentir “usada”. Em suas palavras:
(28) “Como havia muitas pessoas mais velhas do que eu e eu era mais nova, um
colega meu... acho que hoje eu sinto que ele me usou... mas usou de uma forma que
beneficiou o pessoal e eu continuei trabalhando de certa forma em uma liderança
informal”.
Em outros termos, como se trata de serviço público, ela aceitou os encargos da
liderança, sem o cargo, ou sem os benefícios de ordem financeira, mas sendo reconhecida
pelo que fazia. Sua visão de liderança é de que:
(28) Primeiro, a pessoa tem que estar disposta a trabalhar [...] tem que estar disposta
a enxergar uma coisa a ser feita e trabalhar por aquilo. Depois que isso é feito,
aquela pessoa passa a ser respeitada pelo que ela faz. Então ela vai ter pessoas que
respeitam o trabalho dela... quando isso acontece é que então essa pessoa pode ser
uma formadora de opinião.
Ou seja, o interesse para assumir o encargo estava relacionado à visibilidade social e à
admiração dos pares – apresentadas na seção 6.1.3 – expressas no termo “respeito pelo que ela
faz” e que vai possibilitar que ela se torne uma “formadora de opinião” – portanto, que exerça
influência sobre o grupo, como discutido na seção 6.1.2, sobre as relações de liderança e
relações de poder.
O entrevistado (34) também explicita o sacrifício pessoal a que se submeteu para o
exercício da liderança envolvendo o motivo do seu afastamento:
394
A gente discutia tese, em assembleias, em plenária de categoria, discutia tese
marxista, então era muito ideologizada... Então aquilo me desgastava muito, porque
eu não via muito sentido no enfrentamento [...] Eu lembro uma época que eu
conseguia escovar dente era 10, 11 horas da manhã, porque se eu tentasse colocar a
escova de dente na boca antes eu tinha náusea, ânsia, de tanta ansiedade. Aí eu achei
que o sapo tava muito grande pra ser engolido e me afastei.
O que se depreende desta última fala é que o entrevistado não identificou um interesse
para o sacrifício.
O líder inativo (19) também faz uma abordagem que pode ser enquadrada nesse
assunto, mas em outra ótica. Por características que ele atribui à sua personalidade, ele
identifica que, desde a infância, pessoas mais próximas se aproveitaram do seu
comportamento impetuoso, deixando-o (ou estimulando-o) a tomar a iniciativa de resolver
problemas. Na sua percepção, as mesmas características que foram usadas para deixá-lo
“resolvendo as coisas” também foram usadas, num momento posterior, quando ele foi uma
ameaça ao poder de outros líderes, como justificativa para afastá-lo de posições de liderança:
“ele é muito impetuoso”, seria a justificativa. Em suas palavras:
(8) [...] as pessoas estavam, todo mundo, na zona de conforto, né? Então, assim,
„deixa ele, deixa ele tomar a liderança e resolver‟. E resolvia, né? Pegava pra
resolver e resolvia [...] Eu acho que as pessoas... quem têm o tipo de personalidade
que eu tenho, eu acho que é... existe um jogo de sutilezas, tanto em casa como na...
área profissional. As pessoas sabem como conseguem as coisas de você [...] tem
gente que é mestre nisso, né? Tem gente que se aproxima de você e ela sabe
exatamente qual... é o jogo de poder que ela tem que utilizar com você pra você sair
correndo fazendo as coisas.
Esse entrevistado estabelece uma relação entre liderança, vista como a capacidade que
um indivíduo mostra para resolver coisas que as pessoas não conseguem ou não querem
resolver – o que tem uma relação próxima com a divisão social do trabalho – com a
personalidade de quem se coloca nessa posição – o que será discutido na seção 6.2.2 – e com
a relação de poder estabelecida entre esse indivíduo e aqueles que têm interesse em colocá-lo
nessa posição – o que foi discutido na seção 6.1.2.
Um aspecto interessante é o fato de que somente líderes inativos apresentaram uma
percepção, relacionada a “ser usado” ou “ser explorado”. Líderes em atividade quando
perguntados sobre esse aspecto, ou não percebiam esse tipo de viés em suas atuações, ou se
posicionavam como apresentado no item anterior desta seção, “romanceando” sua atividade,
como no exemplo do líder ativo (18): “O líder é um indivíduo abnegado, disposto a muito
sacrifício, desprendido de egoísmo, sempre pronto a participar dos movimentos”. O sentido
395
desse discurso que projeta no outro características idealizadas já foi apresentado nas
conclusões da seção anterior.
O líder ativo (21), mesmo quando descreve um momento de “sacrifício”, o faz de
modo a descrever uma aventura prazerosa:
(21) Eu sei que na época o movimento não tinha dinheiro, né? Hoje a gente se vira
pra poder viajar de avião, coisa e tal, os tempos são outros, mas naquela época eu ia
de ônibus. Saía daqui, numa assembleia em [...] ia pra outra assembleia em [...],
pegava ônibus pra Vitória, dormia dentro [...] tentava marcar tudo no mesmo dia, já
pegava outro ônibus à noite pra ir pro Rio de Janeiro e assim... a gente dormia era
dentro de ônibus nessa... nessas campanhas aí [...].
Na continuidade dessa fala, ele diz que:
(21) muito por opção própria mesmo tive que investir em algumas coisas: casado,
filho, depois descasei, mais outro casamento, mais filho... então, eu tinha que
arrumar trabalho, né? Então, eu só passei a ter um papel destacado agora.
Ou seja, quando os papéis de liderança iam se transformar em um sacrifício que
poderia prejudicá-lo – ou quando não identificou interesse no exercício desses papéis – ele os
abandonou, só retornando quando pôde conduzi-los de modo menos “sacrificante”. E, ao
contrapor o “eu tinha que arrumar trabalho” com seu papel de líder, ele estava colocando a
liderança conduzida de modo mais lúdico – ou por “prazer”, como apresentado anteriormente
pelo entrevistado (26) – no contraponto da liderança na ótica de uma atividade dentro da
divisão social do trabalho – de outro modo, ele teria que procurar um “trabalho de liderança”.
A interface mais próxima entre esses achados e a literatura pode ser encontrada no que
foi chamado de “liderança carismática”. Como foi apresentado na seção 3.2 (D), esse é um
tipo de liderança que envolve a influência exercida pelo líder a partir de sacrifícios pessoais e
da busca de objetivos difíceis.
O que os dados parecem revelar é que não basta a ação de sacrifício por parte do líder
para ele obter o reconhecimento dos liderados naquilo que se poderia chamar de “carisma”.
Este poderia estar ligado a algum outro aspecto individual – talvez mesmo relacionado à
personalidade. Para investigar essa possibilidade, comparam-se os domínios de personalidade
dos líderes que foram citados anteriormente, nesta discussão:
396
Tabela 47 - Domínios de personalidade dos líderes e a percepção de sacrifício
LÍDER INATIVO LÍDER ATIVO
8 19 28 Mediana dos
inativos
18 21 Mediana dos
ativos
NEUROTICISMO 3 4 1 2 2 2 2
EXTROVERSÃO 3 3 3 3 3 4 3
ABERTURA 4 5 4 3 2 3 4
AMABILIDADE 3 3 4 3 3 4 3
CONSCIENCIOSIDADE 3 4 4 3 3 4 4
Fonte: dados da pesquisa.
O número de líderes envolvidos é muito reduzido para se fazer uma comparação
usando-se o teste de Mann-Whitney. Mas não é difícil perceber que, exceto pelo neuroticismo
(cujo resultado é contraditório, pois apesar de uma tendência a medianas maiores entre os
inativos, um deles possui neuroticismo muito baixo) e a abertura (que entre os inativos
apresenta resultados maiores que a média e entre os ativos menores que a média), os dois
conjuntos são semelhantes. Ou seja, ficaria a tendência ao fator “abertura” (O) mais alto entre
os inativos como algo a ser explicado, pois a pesquisa não traz elementos para que se possa
aprofundar nessa investigação.
Em todas as falas referentes aos sacrifícios há algum tipo de gratificação pessoal em
uma atuação que vai envolver um interesse que é coletivo. A diferença que pode ser percebida
nos discursos se refere ao fato de que há uma conotação de ressentimento nas falas dos líderes
inativos – talvez pelo não reconhecimento por parte dos liderados do seu “sacrifício pessoal”,
já que não estão mais no papel de líderes. Já na fala dos líderes ativos, percebe-se uma
conotação que mistura algo de heroísmo com o lúdico – talvez, expressando uma gratificação
pelo reconhecimento em relação aos “sacrifícios” realizados.
As conclusões a que se pode chegar a partir da análise desse material, considerando o
aspecto “sacrifício” relacionado ao exercício do papel de líder, são as seguintes:
a) Houve tendência entre os líderes inativos para avaliar os sacrifícios em uma ótica que
envolve uma “exploração” – ou a sensação de terem sido usados pelos liderados –,
podendo ser percebido em algumas falas certo tom de ressentimento;
b) houve tendência entre os líderes ativos a avaliar os sacrifícios em uma ótica que
envolve visões mais romanceadas do papel do líder, podendo também ser percebido
em algumas falas um tom mais lúdico;
c) no caso dos líderes inativos, é possível que o tom de ressentimento expresso nas falas
se relacione ao fato do “sacrifício” não ter sido reconhecido pelos liderados; no caso
397
dos líderes ativos, é possível que o caráter mais lúdico das falas se relacione a uma
percepção de reconhecimento do “sacrifício” por parte dos liderados;
d) considerando os domínios de personalidade, a única diferença significativa entre os
indivíduos cujas falas representam as diferentes visões do “sacrifício” se refere a uma
mediana maior para o domínio abertura (O) entre os líderes inativos avaliados. O
significado desse achado não pode ser identificado a partir dos dados desta pesquisa.
Essas conclusões ainda deverão ser tensionadas com outros elementos, a serem obtidos
no próximo item, para a síntese – que será conduzida na seção 6.1.5 deste capítulo.
C) Liderança, na ótica da autonomia e independência
Pode ser percebida, na análise das entrevistas, alguma confusão entre os termos
autonomia e independência. Na maior parte das vezes, os entrevistados usaram o termo
“independência” para se referir às duas coisas. Na verdade, o que se percebe é que quando
falavam em independência no sentido de ideias ou de posicionamento ideológico, a conotação
estava mais próxima do que é conhecido como autonomia; quando se referiam ao sentido
financeiro, a conotação era a do que se conhece por independência financeira. Serão
abordadas em conjunto, porque surgiram no mesmo contexto da entrevista.
Entre os líderes inativos, há uma fala que se refere à perda de autonomia no exercício
de atividades de liderança. No caso da liderança que se confunde com atividades de gestão.
Ela é encontrada na entrevista com o líder inativo (29), o qual, para preservar sua autonomia e
capacidade de se autodeterminar, abre mão de posições de liderança indicadas por partido
político:
(29) Eu não queria participar de jeito nenhum porque eu achava que meu papel era
ficar contra o governo, ficar independente na instituição para exatamente poder fazer
as intervenções que achava adequadas. Mas não teve jeito, foram ali pedindo, você
tem que ser o diretor [...], porque o pessoal gosta aqui de você e você passa a
credibilidade pra fazer essa nova direção que está começando, que está enfrentando
uma série de oposições.
E mais à frente:
Eu falei: não, eu não quero, são mais de oito anos, eu tenho meus filhos pra educar,
tá, tá, e eu estou dedicando todas as minhas energias aqui, já chegou a hora de parar.
Aí eles falaram: não, mas você vai continuar... Mas as diretrizes do partido vão ter
que ser cumpridas, inclusive o comparecimento nas reuniões para as quais o partido
convocá-lo... Eu falei: então eu peço demissão é agora... Não dá, incompatível, eu
iria virar refém de um partido político.
398
Aqui, a autonomia é referida pelo termo “independente”. A fala desse indivíduo faz
contraponto com as apresentadas no item anterior, quando se discutiram liderança e
“exploração”: ao identificar um sacrifício que não estava disposto a assumir ou para o qual
não identificou algum interesse, preferiu manter sua autonomia e se afastar. Percebe-se, nesse
caso, que não havia qualquer tom de ressentimento em sua fala.
Outro líder inativo também abordou a autonomia utilizando o termo independência.
Sua fala foi no sentido de que: (22) “o cara tem que ter independência. As pessoas têm que
perceber que ele tem posições de independência”. Mas há um líder ativo, o entrevistado (15),
em cuja fala se podem observar as duas conotações de independência – a financeira e a
autonomia: (15) “Ele não pode depender financeiramente do cargo não... senão perde a
independência”. Nesse caso, a conotação também é a de que o líder perde a autonomia, que
aqui foi vinculada à independência financeira.
No sentido mais diretamente relacionado à independência financeira, a independência
foi abordada mais por líderes ativos do que pelos inativos. Nesse sentido, ela faz um
contraponto com o que foi discutido na seção 6.1.3 (C), em que foi abordada a relação entre
liderança e interesses (no caso, o financeiro).
Como exemplo, citam-se os três líderes ativos que identificaram na independência
financeira uma característica desejada para o líder – como apresentado na Tabela 18 (pág.
298): o entrevistado (15), cujo trecho foi reproduzido aqui; o entrevistado (24): “é... o líder
não pode depender do cargo que está ocupando. Se ele estiver ocupando um cargo para
sobrevivência dele, o líder... ele não pode”; e o (25) “eu particularmente acho, você não pode
ter uma dependência financeira, principalmente quando você assume um cargo de liderança,
porque aí sim [...] deixa de ser ideal e passa a ser dependência financeira”. Nessa última fala
fica claro o contraponto entre a liderança que é assumida por interesses e aquela que é
assumida por um ideal. Considerando a teoria sobre liderança carismática apresentada na
seção 2.2 (D), lembra-se que o ideal está mais relacionado aos sacrifícios do que ao prazer – e
lembrando também que os dois podem estar no contraponto em relação aos interesses
financeiros.
Outro exemplo nessa linha é a da líder em atividade, do sexo feminino, que na reunião
do grupo de lideranças apresentou uma ideia semelhante: “quem não abandona a sua posição,
seu trabalho de base, é muito mais independente do que o que é só remunerado pela função de
liderança”.
Entre os líderes inativos, o tema não foi espontaneamente abordado nas entrevistas. Na
reunião de grupo, como houve estímulo ao posicionamento sobre esse aspecto, observa-se
399
entre líderes inativos tendência inversa em relação aos ativos. Como exemplo, citam-se dois
líderes inativos, o (h): “sobre remuneração, acho importante que ele seja bem remunerado
para sustentar as ideias com independência”; e o (u): “(h) falou da questão financeira, fica
exposto à corrupção e todos são corruptíveis – depende do preço”.
Esse é um aspecto aparentemente contraditório: líderes ativos defendendo que o líder
deve ter independência financeira em relação ao cargo que exerce, enquanto líderes inativos
defendendo remuneração adequada para o exercício da liderança. Como não há elementos
para uma conclusão que inclua os dois momentos da contradição, pode-se deixar aqui um
questionamento, que poderia orientar pesquisas futuras: seria adequado considerar que líderes
ativos não defendem remuneração porque já a têm, enquanto os inativos a defendem porque a
desejam, caso mudem de situação (de inativo para ativo)?
Assim, as conclusões que podem ser tiradas sobre esse aspecto abordado são:
a) A autonomia foi colocada como valor tanto por líderes ativos como pelos inativos,
enquanto que a independência financeira foi citada apenas por líderes em atividade;
b) a independência financeira e a autonomia estão no contraponto com os interesses
financeiros, na forma que, quem se conduz pelo interesse financeiro, pode perder a
autonomia;
c) a tensão dialética entre estes dois aspectos que se contrapõem será tratada na próxima
seção, em associação com outras conclusões sobre o tema.
6.1.5 A integração dialética dos diversos aspectos relacionados ao conceito
Ao final da seção 6.1.1 foram reunidos os achados empíricos referentes ao conceito,
buscando-se evidenciar algumas das contradições identificadas nesses achados. Nesta seção, o
que se pretende é reunir os achados empíricos das seções subsequentes, uma vez que outras
contradições foram observadas a partir da análise que ocorreu em seções diferentes.
A intenção aqui é buscar suprassumir estas contradições, considerando o núcleo de
verdade que elas contêm, de modo a conhecer como o objeto de pesquisa é compreendido
nesse grupo social estudado. Para isso, será preciso sumarizar alguns dos itens apresentados à
guisa de conclusão nas seções anteriores, identificados como sendo os mais importantes para
o estabelecimento desses contrapontos, como segue:
400
a) As conclusões da discussão sobre liderança e interesses financeiros foram:
(i) os interesses de ordem financeira são vistos por indivíduos com experiência no
papel de líder como algo que pode interferir no resultado da ação executada pelo
líder;
(ii) é possível que alguns líderes busquem se manter nessa condição por razões de
sobrevivência financeira.
b) As conclusões da discussão sobre liderança e independência foram:
(i) a independência financeira e a autonomia estão no contraponto dos interesses
financeiros, de modo que, quem se conduz pelo interesse financeiro pode perder
a autonomia;
(ii) a autonomia aparece como valor tanto por líderes ativos como pelos inativos,
enquanto que a independência financeira foi citada apenas por líderes em
atividade.
c) As conclusões da discussão sobre liderança e a “projeção social” foram:
(i) a projeção social pode ser considerada um substituto para o retorno financeiro;
(ii) a “vaidade”, no sentido de busca de projeção social, não foi percebida como
algo negativo na liderança; e no sentido de “baixa modéstia” – o que pode estar
ligado ao conceito de narcisismo – foi percebida como algo que pode ser
negativo para a liderança.
d) A conclusão da discussão sobre liderança e aumento da visibilidade no grupo foi:
(i) O “aumento da visibilidade em seu grupo social” pode se relacionar com
interesses de caráter tanto financeiro como social, sem relação com os ganhos
diretos do papel de líder.
e) A conclusão da discussão sobre liderança e o trabalho como “executivo” foi:
(i) a lógica que associa o exercício do papel de líder ao interesse pelo trabalho em
funções “executivas” está de acordo com o seu enquadramento na divisão social
do trabalho, a qual envolve não somente as posições superiores na hierarquia,
como também os ganhos financeiros esperados para essas posições.
f) São as conclusões sobre liderança como atividade banal e o romance da liderança:
(i) Constatou-se mais tendência de líderes que estão em atividade a replicar um
discurso mais “romanceado” sobre a liderança, apresentando-a como uma
atividade excepcional;
(ii) Em contrapartida, alguns líderes, tanto entre os que estão em atividade como
entre os inativos, manifestaram espontaneamente percepção de que a liderança é
401
uma atividade não excepcional ou uma atividade como outra qualquer na divisão
social do trabalho;
(iii) uma abordagem negativamente dialética deve considerar a verdade existente
nas duas visões. Assim, pode-se considerar que a liderança será banal se mobiliza
os recursos que o indivíduo utiliza para o exercício de suas atividades habituais,
ou seja, habilidades que identifica em si; e será excepcional se as habilidades
identificadas para o exercício da liderança não são facilmente encontradas em si
mesmo, podendo tanto ser desejadas como rejeitadas no outro.
g) As conclusões obtidas na discussão sobre liderança e sacrifícios foram:
(i) houve tendência entre os líderes inativos a avaliar os sacrifícios em uma ótica
que envolve uma “exploração” – ou a sensação de terem sido usados pelos
liderados –, podendo ser percebido em algumas falas certo tom de ressentimento
em relação ao grupo;
(ii) houve tendência entre os líderes ativos a avaliar os sacrifícios em uma ótica que
envolve visões mais romanceadas do papel do líder, podendo ser percebido em
algumas falas um tom mais lúdico envolvendo os “sacrifícios”;
(iii) não foram identificadas diferenças significativas nos domínios de personalidade
entre os indivíduos avaliados, cujas falas representam as diferentes visões do
“sacrifício”;
(iv) no caso dos líderes inativos, é possível que o tom de ressentimento expresso nas
falas se relacione ao fato de o “sacrifício” não ter sido reconhecido pelos
liderados; no caso dos líderes ativos, é possível que o caráter mais lúdico das
falas se relacione a uma percepção de reconhecimento do “sacrifício” por parte
dos liderados.
Considerando o núcleo de verdade que pode coexistir nessas conclusões, o que se
buscou foi organizar todos os itens apresentados, na forma de um discurso sobre os aspectos
identificados no grupo social investigado que podem interferir na compreensão do grupo
sobre o conceito de liderança. Isso pode ser feito da seguinte forma: para buscar o papel de
líder, o indivíduo deve identificar nesse papel ou algo de excepcional em relação aos demais
papéis que exerce em seu campo profissional – o que poderia ligar esse exercício a algum
interesse (financeiro, de projeção social, visibilidade social ou o exercício do poder na cúpula
de uma organização) que justifique trocar algum papel social que já desempenhe pelo papel
de líder – ou perceber nesse papel a continuidade de algo que já exerce (e que, por isso, nada
402
teria de excepcional), cujo interesse estaria no “prazer” de fazer algo que faz naturalmente e
de que gosta.
Entre os interesses, o de ordem financeira é visto como um motivador para muitos dos
líderes entrevistados. A partir dessa ótica, a liderança é facilmente situada entre as atividades
valorizadas na divisão social do trabalho.
Um dos problemas identificados para a liderança, quando vista sob essa ótica, está na
necessidade do líder de se manter nessas posições por razões de sobrevivência ou pelo menos
a de passar a depender financeiramente das atividades relacionadas às posições de liderança.
Entre as consequências identificadas para essas situações está a perda de autonomia, sendo
que ter independência financeira em relação ao cargo foi identificado por alguns líderes como
um fator facilitador para adquirir e manter essa autonomia.
A projeção social, que também foi identificada como um motivador para se buscar as
posições de liderança, foi vista por alguns dos entrevistados como um substituto dos ganhos
financeiros para o exercício do papel. Ela só foi apresentada como algo negativo quando
representa um ato de vaidade, que visaria atender apenas aos interesses do indivíduo que está
no papel de líder, e não aos interesses do grupo que deveria representar. O aumento da
visibilidade no grupo social, que também surgiu como um tipo de interesse, estaria menos
associada aos ganhos diretos em relação à posição de liderança, mas com o acúmulo de
“capital social” para ser utilizado em outros objetivos – como ganhos financeiros em negócios
próprios ou visibilidade política para ganhos futuros, financeiros ou sociais.
O resultado na divergência entre os dois tipos de interesse apresentados é que o
indivíduo, no papel de líder, ou vai se satisfazer com a compensação de ordem financeira
pelos sacrifícios a que, no seu entendimento, o exercício do papel de líder impõe ou ele vai
buscar o reconhecimento social do grupo. Esse reconhecimento pode se expressar tanto na sua
manutenção nesses papéis ou com ganho em projeção social. Existindo o reconhecimento, o
líder pode ver a liderança como algo lúdico, que ele exerce por prazer; se não, ele pode se
considerar usado ou “explorado” pelos liderados.
Até aqui, foram reunidos elementos suficientes para se apresentar uma integração
dialética que considere o núcleo de verdade de cada um desses elementos. O modo de
visualizar essa integração, como não poderia deixar de ser, é apresentá-los de forma
constelatória. No caso da integração dialética, na forma constelatória, do que foi identificado
na pesquisa, pode-se dizer que o conceito de liderança, para o grupo social estudado, envolve
diversos aspectos, que podem ser integrados como representado na figura 3:
403
Figura 3 – Integrando diversos os diversos aspectos identificados no conceito
LIDERANÇA INTEGRAÇÃO DIALÉTICA DO CONCEITO
Interesses financeiros Aumento da
“visibilidade social”Trabalho como
“executivo”
Projeção socialExploração
Atividade banal
“Romance” Sacrifícios
IndependênciaAutonomia
Fonte: concepção do autor
O exercício de poder, por fazer ser um tema a parte – e que, por isso, vai exigir uma
abordagem conceitual um tanto diversa da realizada para a compreensão da liderança (ainda
que próxima, como foi apresentado no capítulo 3) – fica representado na figura como algo que
ainda que seja muito próximo, é diferenciado do restante.
Essa constelação de conceitos, representada pela figura 3, representa o primeiro
esboço da compreensão do conceito de liderança para o grupo estudado. Entretanto, para
completar a compreensão do tema na partir dos dados empíricos levantados, ainda há uma
questão a ser respondida, a partir do que se poderá apresentar o que seria uma resposta final
para a pergunta que motivou a tese. Essa questão é a que se refere à existência ou não de
características esperadas para os indivíduos que, no grupo estudado, assumem o papel de
líder.
Para apresentar uma resposta a esse questionamento, será preciso reunir o que foi
levantado sobre as características pessoais dos indivíduos escolhidos como lideres nesse
grupo – aí incluídas a sua história relacionada com a liderança e as características de sua
personalidade.
Essa será a tarefa da próxima seção.
Exercício do Poder
404
6.2 O líder no grupo social estudado
Só se pode falar em liderança em situações nas quais se possam identificar líderes e
liderados. O que se pretende, nesta seção, é, considerando as características pessoais dos
líderes, e comparando-as com as características pessoais dos indivíduos que, apesar
identificados no exercício do papel de liderados no grupo social em questão, em algum
momento já estiveram no papel de líder, reunir os elementos abstraídos na pesquisa que
ajudem a responder à pergunta, relacionada com o que é ser líder.
Como foi apresentado no capítulo 4, foram duas as linhas de abordagem empírica
utilizadas para produzir esses dados: o que esses indivíduos identificaram como sendo
relevante em sua história relacionada com o tema, e a investigação das características de suas
personalidades. Esses são os temas das duas próximas seções.
6.2.1 História dos indivíduos relacionada com a liderança
Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005) identificam uma série de funções para a história
do líder: facilitar, para o liderado, a percepção da personalidade do líder; criar expectativas
sobre o líder para influenciar a sua relação com liderados; gerenciamento de sentidos
realizado a partir da manipulação dos símbolos – que pode ser conseguido por meio de suas
narrativas. A esses quatro itens pode ser acrescentada a proposição de Gardner e Avolio
(1998), de que a narrativa é um meio eficaz para se conseguir que o próprio líder se reconheça
nesse papel. Como a pesquisa empírica não inclui indivíduos que estavam apenas no papel de
liderados no grupo investigado, essas proposições podem não apresentar condições de serem
aferidas.
Na pesquisa, os aspectos relacionados com a liderança identificados como
significativos para a vida do entrevistado, foram obtidos basicamente pela narrativa livre –
como apresentado na metodologia. Nos dados organizados no capítulo 5, foram identificadas
as seguintes categorias: referências masculinas e paternas; referências entre os irmãos;
vivências com a liderança e com a atividade política; e os aspectos que podem ser reunidos
sob a noção geral do líder na posição de liderado em seu grupo familiar.
Essas categorias serão descritas separadamente, com a intenção de serem integradas no
final da discussão.
405
A) A referência masculina e paterna (TAB. 33, pág. 332)
O primeiro conjunto de informações obtidas a partir dos dados relaciona-se à
influência masculina e paterna, em que foram identificados:
a) Para mais da metade dos indivíduos dos dois grupos, o pai – isoladamente ou em
conjunto com a mãe – foi citado como o modelo de líder;
b) que a referência familiar masculina também foi muito relevante – se somarmos todas
as referências, são 58,8% entre os líderes em atividade e 73,68% entre os inativos.
Como já foi observado no capítulo 5, esses dois achados estão de acordo com a visão
de Barker (2001), para quem o modelo de liderança em nossa cultura vem do modelo bélico,
envolvendo um líder viril e poderoso no topo de uma estrutura hierárquica, que controla toda
a estrutura e que tem o seu poder fundado no conhecimento, no controle e na habilidade de
vencer a “guerra” – aqui usada como metáfora para qualquer outro objetivo estabelecido para
o grupo social que ele lidera.
No caso dos dois líderes – um ativo e o outro inativo – que apresentaram a mãe como
referência, não foram identificadas, na análise, características que os diferenciassem dos
demais. Seria necessária uma investigação mais aprofundada envolvendo as respectivas mães,
para saber se haveria algum mecanismo inconsciente que as relacionasse com as imagens do
masculino, ou e se efetivamente haveria uma diferença entre elas e outras mães.
No entanto, relembrando as falas, percebe-se algo de diferente em relação às
referências habituais de liderança.
(7) na história dela sempre teve uma participação maior. Acho que eu puxei isso
dela: uma participação, assim, de estar ali, dentro da turma, né?
A referência aqui é de liderança por participação “dentro da turma”. Não por indicar
caminhos, fornecer visão, comandar, mas por participar da atividade social. Já o segundo:
(18): [...] minha mãe era uma ativista na política municipal. O pai dela, meu avô [...]
era um líder.
Nesse último caso, houve uma ligação direta entre a mãe e o avô materno, que foi
aquele que o entrevistado definiu como líder. Ou seja, é interessante observar que o
entrevistado apresenta a mãe como “ativista na política municipal”, mas vai identificar a
liderança no avô! Se apenas nesse caso é possível encontrar uma contradição – quando cita a
406
mãe como ativista, mas identifica no pai dela o líder – em ambos os achados é possível
identificar uma possibilidade para modelos alternativos ao modelo de liderança masculino,
viril e bélico.
Entre os dois entrevistados que citam irmãos mais velhos como referência, um – o
entrevistado (34) – vai citar a irmã. Nos dois casos (citação da mãe e da irmã), se a raridade
reforça a expressão da ideologia (com frequência semelhante nos dois grupos), a sua presença
aponta para a identificação de outras possibilidades de modelo para a ação do líder.
B) Vivências familiares relacionadas à liderança
Um primeiro aspecto a discutir, fruto do relato espontâneo de muitos dos
entrevistados, foi a relação estabelecida entre a história de liderança do entrevistado e a de
seus outros irmãos – cujos resultados estão apresentados nas Tabelas 36, 37 e 38 (págs. 336,
337 e 338).
É interessante observar que a literatura do mainstream sobre a liderança – mesmo a
que considera que aspectos da história do indivíduo podem ser relevantes para a atividade de
liderança – não aborda esta relação identificada nas entrevistas. É possível considerar, como
explicação para essa ausência, as diferenças culturais entre a cultura anglo-saxã – em que a
maior parte da literatura sobre a liderança foi produzida – e a latina, na qual estão inseridos os
entrevistados. Entretanto, se a sua presença espontânea nos relatos aponta para algo que pode
ser, de alguma forma, relevante para quem exerce ou exerceu a liderança, a sua ausência no
mainstream pode ser um indicador de que, o que quer que seja esse algo, ele pode não
corroborar uma ideologia sobre a liderança. Mas não há elementos na pesquisa que possam
corroborar qualquer conclusão nesse sentido, merecendo esse aspecto ser objeto de
investigações futuras.
Nas análises conduzidas a partir dos dados reunidos nas Tabelas 36, 37 e 38 (págs.
336, 337 e 338), o que chama a atenção é a distribuição razoavelmente equilibrada dos itens
entre os dois grupos, sendo que para as distorções observadas – como a de que a maioria dos
líderes inativos é o irmão do meio – não foi encontrado algo no material que pudesse explicar
a ocorrência. Fica o achado registrado como outro possível item para investigação futura.
Em relação à vivência da família do entrevistado com atividades político-partidárias
(TAB. 35, pág. 335), não só os dois grupos são muito semelhantes, como também a maior
ocorrência se refere à ausência desse tipo de influência (nove de 17 ou 52,94% para os líderes
ativos e 10 de 18 ou 55,55% entre os inativos).
407
A observação de Lasswell (1963) de que há mais políticos em famílias com tradição
política pode estar mais relacionada com o fato da atividade política ser exercida dentro da
divisão social do trabalho do que com o exercício da liderança – pelo menos na forma como a
liderança é conceituada para o mainstream. Talvez também se possam encontrar mais
médicos em família com tradição médica, ou mais advogados em famílias com tradição no
direito. A ausência identificada na tabela 35 (pág. 335) pode estar apontando em direção a
uma separação entre os dois campos – o da política exercida como profissão e o exercício de
papéis de liderança – campos esses que o mainstream tende a aproximar (se não a mesclar).
Ainda dentro da história de liderança do entrevistado, não foram encontradas
diferenças significativas entre líderes ativos e inativos quando comparados sob os seguintes
aspectos: participação em grupos sociais (como grupos religiosos e políticos) antes de entrar
para a universidade, exercendo ou não papéis de liderança (TAB. 43, pág. 344); participação,
na vida universitária, em movimento estudantil – considerando aqui tanto as atividades de
cunho basicamente social (festas, comissão de formatura) como atividades políticas (tanto
aquelas referentes à política estudantil como em relação à política partidária) (TAB. 44, pág.
346); participação no início da vida profissional de atividades associativas, exercendo ou não
papéis de liderança, tanto naquelas voltadas para a sua profissão como as não relacionadas à
sua atividade profissional (TAB. 45 e 46, pág. 347).
Uma última comparação vai envolver dois aspectos da história de liderança dos
indivíduos: entrevistados que iniciaram o relato pela infância, comparados aos que
inicialmente relataram a vida adulta, já na atividade profissional (TAB. 40, pág. 341);
entrevistados que reconhecem as suas ações (ser bom aluno ou ser bom em esportes) como
sendo um fator para a sua definição como líder pelos colegas, comparados àqueles que não
conseguem qualquer característica específica nessa identificação (TAB. 41 e 42, págs. 342 e
343). Quando essa comparação é conduzida na interface com o tema da próxima seção – os
domínios de personalidade dos indivíduos nos dois grupos – o que se observa é que os grupos
comparados são absolutamente semelhantes.
O conjunto de informações apresentadas até aqui reúne elementos que permitem
afirmar que, se algo na história de liderança dos indivíduos pertencentes aos dois grupos
(líderes em atividade e líderes que não estavam no exercício deste papel) foi facilitador para
que assumissem os papéis de liderança (ou para que pudessem ser identificados como líderes
pelos demais indivíduos do grupo social do qual faziam parte), esse aspecto não foi diferente
para os dois grupos – mesmo que não tenha sido citado pela literatura do mainstream como
algo relevante para as relações de liderança.
408
A distribuição relativamente equilibrada entre os diversos itens que compõem as
categorias identificadas permite afirmar que, pelo menos no grupo social pesquisado, não foi
evidenciada tendência a que determinado tipo de situação ocorrida no passado do indivíduo se
constitua em facilitador para esse indivíduo se manter no papel de líder no futuro. Mas não há
como se concluir algo a respeito da emergência da liderança, como os dados levantados –
para isso, seria necessário incluir indivíduos que exercem apenas o que se pode chamar de
papel de liderado no grupo investigado.
Esta conclusão ao mesmo tempo afirma e nega o que foi apresentado na literatura
sobre história de vida e liderança, apresentada na seção 3.5.2, e do discurso sobre a liderança,
apresentada na seção 3.5.3 (E). Afirma, porque o que foi apurado nas entrevistas sobre o
histórico dos líderes entrevistados é compatível com o que foi encontrado na literatura. Isso
não é uma surpresa: como algo que existe no mundo da prática, e que pode ser aprendido nos
MBAs, pode-se esperar que, ao ser solicitado para contar a sua história relacionada com o
tema, o indivíduo faça as escolhas mais apropriadas para afirmar a sua relação com o tema.
Como Shamir, Dayan-Horesh e Adler (2005) haviam antecipado, compreender sua
história relacionada com um tema significa iluminar as partes que podem ser utilizadas para
afirmar o que se quer relatar, e esconder outras, que poderiam prejudicar essa mesma
compreensão. Nesse contexto, faz sentido a semelhança entre os dois grupos: se o solicitado é
o relato de sua história relacionada com a liderança, é nesse sentido que o entrevistado vai
buscar conduzir sua resposta.
Por outro lado, o achado nega o que é apresentado na literatura, no sentido de que
indivíduos que hoje estão apenas no papel de liderados no grupo social estudado possuem,
como grupo, aspectos congruentes com os líderes em atividade, nas categorias de análise
identificadas. Em outros termos, aspectos na história do indivíduo que podem ser
identificados como facilitadores para a liderança podem estar presentes em indivíduos que
assumem apenas o papel de liderados – ou porque o grupo não renova a escolha para o
exercício deste papel, ou porque fatores pessoais não o motivam mais para esse exercício.
Esse aspecto pede o aprofundamento da análise dos indivíduos que estavam, no
momento da entrevista, na posição de liderados.
C) O líder como liderado
Um aspecto que não foi objeto de investigação, pelo tipo de desenho realizado para a
pesquisa, foi se a história desses indivíduos poderia ter sido responsável por algo que tivesse
algum impacto na sua identificação como líderes pelos demais liderados do grupo social –
409
uma vez que indivíduos que exerceram apenas o papel de liderados, nesse grupo social e
nessas diferentes fases da história, não foram entrevistados.
No entanto, dois aspectos nesse contexto que podem ser utilizados para obter
informações sobre a ótica do liderado, devem ser observados: (i) não se pode desconsiderar
que os lideres inativos estão hoje, formalmente, no papel de liderados; e (ii) se for considerada
a situação social de todos os indivíduos entrevistados, em uma rede de organizações todos
esses indivíduos ora estão no papel de líder, ora no de liderado. O que se pode observar nas
entrevistas foi que a ótica de todos (mesmo dos inativos) esteve sempre voltada para o seu
papel como líder, e não para o de liderados – que também eram.
Esse foi um aspecto não explorado na literatura do mainstream, mas que pode ser
relevante para a compreensão da psicologia do líder: a forma dicotômica líder-liderado que
subjaz ao conceito de liderança, como aprendido em nossos meios sociais, deve exercer um
papel importante na ideologia da liderança. Por isso, foi necessário encontrar alguma forma
para explorar essa questão na pesquisa.
Esse aspecto pode ser explorado nesta pesquisa no momento na entrevista no qual o
entrevistado era estimulado a se colocar no papel de liderado: ele era estimulado a citar, entre
as lideranças dos grupos sociais dos quais participavam, aqueles que efetivamente
consideravam como líderes e aqueles que, apesar de estarem no exercício deste papel, não
eram vistos como tal. O resultado dessa pergunta foi organizado nas Tabelas 29 e 30 (pág.
320) e a análise das distorções percebidas foi realizada a partir das informações reunidas nos
Quadros 4 e 5 (págs. 321 e 326).
Até onde se pôde chegar na análise de dados produzidos com o entrevistado na
posição de liderado, conduzida na seção 5.2.(G), pode-se dizer que:
a) A citação de líderes em atividade como exemplo de liderança efetiva pode estar
relacionada muito mais à exposição pública do indivíduo – líder de organizações que
são importantes na determinação do resultado de sua atividade profissional – do que
por características de personalidade ou da história de vida percebida pelos liderados. É
a situação tautológica de que o indivíduo é identificado como líder porque está no
exercício da liderança – ainda que tenha acendido a essa posição por falta de quem o
quisesse, o porque alguém que exerce sobre ele alguma influência tivesse solicitado
para que ele assumisse esse papel;
b) por outro lado, a não identificação como líder de alguém que está no exercício do
papel pode estar associada apenas ao fato de estarem os indivíduos em posições
410
políticas antagônicas, e não a algum aspecto relacionado à personalidade do indivíduo
ou à sua história.
Ou seja, pelo menos conscientemente, e na ótica de que tem a experiência da
liderança, não haveria algum aspecto relacionado à personalidade do indivíduo, ou a fatos
identificados em sua trajetória de vida, que pudesse facilitar a identificação (ou rejeição) de
outro indivíduo como líder. Mas também não se pode desconsiderar que a avaliação
apresentada está mais dentro da ótica de avaliação “pares” do que de “superiores” – como
poderia ocorrer em uma avaliação feita por alguém que se vê como liderado apenas.
Outro aspecto considerado relevante: foi identificada uma persistente homogeneidade
entre os dois grupos quando se consideraram todas as categorias de investigação produzidas
pelas entrevistas, apresentadas nas Tabelas 43, 44, 45 e 46 (págs. 344, 346 e 347) referentes a
aspectos como participação em movimentos estudantis, em atividades associativas voltadas
para a categoria profissional na qual exercem ou exerceram a liderança e com as
características da liderança que assumiram no passado.
Em todas essas categorias os dois grupos foram muito semelhantes, e revelaram que:
os itens que surgiram dos relatos são relevantes – uma vez que se repetem em relatos
espontâneos nos dois grupos – apesar de não estarem identificados na literatura do
mainstream; e que não foi possível distinguir uma tendência específica entre eles.
Sintetizando o que foi apresentado:
a) Se por um lado as referências familiares masculinas foram importantes para os dois
grupos estudados, reafirmando uma tendência já identificada pela literatura mais
crítica – de modo especial, autores como Ford (2010) e Barker (2001), o que pode ser
considerado de acordo com o conceito de liderança em nossa cultura – a presença de
modelos femininos (em número igual para os dois grupos) não pode ser
desconsiderada como possibilidade de referência, apontando para outras possibilidades
de modelos de comportamento os líderes;
b) não foi possível identificar algum aspecto na história do entrevistado que pudesse ser
considerado diferenciador entre os grupos de líderes ativos e inativos;
c) a presença espontânea dos relatos relacionados com a influência exercida pelos irmãos
aponta para algo que pode ser, de alguma forma, relevante para quem exerce ou
exerceu a liderança, e a sua ausência na literatura do mainstream pode ser um
411
indicador de que, o que quer que seja esse algo, pode não corroborar uma ideologia
dominante sobre a liderança; e
d) na ótica de que tem a experiência da liderança (o objeto desta pesquisa), e em
desacordo com a literatura do mainstream, não foi identificado algum aspecto
relacionado à personalidade do indivíduo, ou a fatos identificados em sua trajetória de
vida, que pudessem facilitar a identificação (ou rejeição) de outro indivíduo como
líder.
Uma última observação sobre esse conjunto de dados referentes à historia de vida dos
líderes diz respeito à ausência de diferenças ou distorções identificadas nas características de
personalidade, quando os dois grupos foram comparados para a avaliar os aspectos de sua
história de vida que poderiam ter influenciado na percepção dessas pessoas como líderes pelos
liderados – como apresentado nas Tabelas 40 e 42 (págs. 341 e 343).
Essa semelhança aponta para o último aspecto a ser abordado na busca da
caracterização dos líderes dos dois grupos, antes que as conclusões possam ser organizadas de
modo a fornecer a resposta à pergunta de pesquisa
6.2.2 Personalidade e liderança
Dois aspectos não passam despercebidos nas análises dos dados do capítulo 5:
a) A tendência dos dois grupos a uma distribuição razoavelmente equilibrada dos itens
em todas as categorias – como pode ser facilmente percebido nas comparações
apresentadas;
b) a tendência dos dois grupos a uma distribuição ainda mais equilibrada, quando se
fazem as comparações entre os cinco domínios (ou fatores) que expressam a
personalidade.
Esses dois aspectos em conjunto sinalizam para a possibilidade de a personalidade do
indivíduo se relacionar, de alguma forma, com o fato desses indivíduos terem assumido, em
algum momento de suas histórias de vida, o papel social de líder. Esse é um achado da
pesquisa que deve ser cuidadosamente explorado, pois confronta com boa parcela do que vem
sendo desenvolvido pela teoria sobre liderança após a década de 1930, como apresentado no
capítulo 3.
412
Ao iniciar a redação dos capítulos 4 e 5 desta tese, os dois grupos eram identificados
pelos nomes de “líderes” e “ex-líderes”. No entanto, com o desenvolvimento das análises, foi
ficando cada vez mais claro que o nome “ex-líder” era inapropriado, dadas as semelhanças
que iam sendo identificadas entre os dois grupos. A partir de um determinado ponto do texto
foi preciso voltar ao início desses dois capítulos, modificando a nomenclatura para “líderes
ativos” e “líderes inativos” para caracterizar melhor o que realmente representavam.
O que ficou implícito nessa mudança foi o reconhecimento do equilíbrio entre os dois
grupos descritos, percebido nas análises de cada categoria identificada a partir das entrevistas,
e nas comparações entre os cinco domínios da personalidade, o que revelou serem os dois
grupos muito semelhantes.
Foram revisadas as premissas estabelecidas na metodologia em relação à contradição
no objeto, pois se imaginava que, tendo escolhido dois grupos com comportamento social
contraditório – um que se mantinha em posições de liderança e outro que as havia abandonado
– era possível que fossem encontrados resultados contraditórios entre os dois grupos. Ao
contrário, os achados revelavam que os dois grupos eram, na verdade, bastante semelhantes.
Revendo os achados à luz da teoria crítica, concluiu-se que eles se encontravam de
acordo com a teoria que relaciona a personalidade com a liderança, apresentada nas seções
3.4.4, 3.4.5, 3.4.6 e 2.4.7, se observados dialeticamente: as contradições encontradas
estavam exatamente no objeto. Na verdade, esse era o risco sobre o qual falava T. Adorno,
quanto a se ter uma hipótese prévia sobre o objeto que pudesse de alguma forma orientar a
condução da pesquisa.
Em termos gerais, haja vista a premissa frankfurteana apresentada no início do
capítulo 3, de que o objeto social possui um “núcleo temporal de verdade”, foi levantada a
possibilidade de que pessoas com determinadas características de personalidade poderiam ser
identificadas, dentro de um grupo social e em determinado momento de sua história, como
portadoras do perfil desejado para assumir papéis que o grupo social atribui ao líder – o que
poderia ter a finalidade de ajudar o grupo a atingir determinados objetivos próprios daquele
grupo social, naquele momento.
Da mesma forma, é possível que esse mesmo indivíduo deixe de assumir esses papéis
quando algo em sua história de vida entra em conflito (ou confronto, desacordo ou qualquer
outro termo que mostre incongruência de interesses) com as expectativas ou interesses do
grupo social – o que pode se relacionar tanto aos objetivos desejados pelo grupo como aos
objetivos desejados pelo indivíduo. Esse aspecto – o conflito de interesses – pode ser
observado, na Tabela 5 (pág. 282), entre as razões que foram chamadas de “volitivas” para os
413
líderes inativos se manterem afastados. Mas a sua ocorrência não muda o fato de que, em
algum momento – e, em geral, por muito tempo – esses indivíduos foram identificados como
líderes dentro do seu grupo social.
A análise deveria focar, então, as razões para terem assumido esse papel em algum
momento de sua trajetória de vida, que é o aspecto que vai diferenciar os indivíduos
pertencentes aos dois grupos dos demais membros do grupo (aqueles que nunca assumiram
papéis de liderança em seu grupo social). Acontece que, como foi apresentado na Tabela 28
(pág. 318), praticamente a metade dos dois grupos não pôde citar uma motivação clara para
assumir o papel de líder (o somatório dos itens II e V, ou oito de 18 entre líderes ativos e 10
de 21 entre os inativos).
Clara distorção pode ser notada se se considerar apenas o item V: entre os líderes
inativos, metade dos indivíduos incluídos entre os que não puderam inferir uma motivação
(cinco entre os 10) citou uma relação do exercício desse papel com algo que poderia se ligar à
personalidade do indivíduo; entre líderes em atividade, somente um estabeleceu essa relação.
Na mesma linha, a mesma distorção pode ser conferida na Tabela 23 (pág. 303), na qual
nenhum líder em atividade considerou a liderança algo inato, contra três líderes inativos que o
consideraram – partindo-se aqui do princípio de que a conotação percebida na entrevista para
o termo “inato” era uma referência às características da personalidade.
Essa contradição entre os dois grupos, percebida nessas duas Tabelas (TAB. 23 e 28,
págs. 303 e 318), motiva uma pergunta: por que mais indivíduos que já não estão no papel de
líderes, às vezes por muito tempo, consideram que possuem características inatas de
personalidade para o exercício da liderança? Seria possível que motivações citadas por líderes
que estão em atividade, como vontade de mudar as coisas, ímpeto para inovar e gostar do que
está fazendo, não traduziram em outras palavras o que líderes que não estão em atividade não
souberam caracterizar, mas que, no fundo, estariam se referindo à mesma coisa – ou, algo
relacionado à personalidade? Se esse for o caso, apenas os que citaram o item IV (mais por
falta de gente para participar do que por mérito) não teriam feito referência a alguma
característica inerente ao indivíduo. Nesse caso, os dois grupos estão, novamente, bem
equilibrados (dois líderes ativos e três líderes inativos).
Ainda neste contexto, também chamam a atenção, na análise das entrevistas, os
indivíduos que disseram que foram “levados” a assumir as posições de liderança – como se
eles mesmos não tivessem buscado essa posição – tanto entre inativos quanto entre ativos.
Um aspecto interessante é que essas foram falas de pessoas que, nos dois grupos, assumiram
muitas posições de liderança durante a vida. Ou seja, em conformidade com o discutido no
414
parágrafo anterior, o que esses entrevistados podem estar fazendo com esse tipo de discurso é
buscando mostrar que, por ser algo próprio da sua personalidade, não há por que realizar um
“esforço” no sentido de “buscar” esses papéis.
Entre os líderes em atividade, muitas falas vinham no sentido de demonstrar que a
liderança era para o entrevistado algo muito natural, que acontecia sem esforço, ligada a
“alguma coisa” sob o qual ele não tinha controle em si mesmo – como acontece com os
comportamentos que são a expressão da personalidade. Os exemplos são:
(3) “eu nunca precisei... cheguei onde cheguei com toda história... sempre é o
pessoal que me coloca nos lugares... eu nunca procurei, por exemplo, fazer um
trabalho „eu quero ir para (organização x)‟ [...]”;
(15) “muitas das chefias e lideranças que exerci eu te diria que caíram no meu colo.
Eu não vinha deliberadamente procurando fazer isso”;
(20) “eu fui identificado, é... alguém precisava de... de alguma função naquele
momento e... eu era uma pessoa que estava ali [...]”.
Já entre os inativos, as referências à personalidade são mais diretas:
(26) “[...] acho que a gente... na personalidade de quem participa, de quem exerce
alguma função de liderança, já tem alguma coisa na personalidade que de alguma
forma”;
(19) “das características de minha personalidade que fizeram com que eu
conseguisse muitas dessas coisas”;
(13) “isso aí eu sempre tive em mim, uma coisa meio inata”;
(29) “a personalidade, deve ter algum distúrbio”.
Alguns posicionamentos de reunião também são elucidativos. Entre os líderes ativos:
(2) “as falas vão no sentido de „eu não queria... me colocaram lá‟. Não acredito
nisso. As coisas são consequenciais, portanto, quem participa necessariamente
assume posições. Dizer „eu não queria‟ é uma forma de colocar a liderança como
sacrifício, quando ninguém é líder por acaso”;
(15) “é através do que fazem (ou fizeram) e não através do que dizem de si”; em
outro momento: (15) “todas as características são desenvolvidas [...] As situações da
vida dirão o quanto cada um vai se empenhar em crescer”;
(17): “se existe alguma capacidade individual, ela pode ser polida”.
Entre os inativos:
(5) “na maioria das vezes reconhece-se um líder por ele já ser considerado líder. Não
é predição, é constatação”;
415
(i) “em momentos de crise o líder surge naturalmente” e, em outro momento, o
mesmo (i) “o líder tem que aprender habilidades, como falar bem, expor ideias com
clareza e saber ouvir os liderados. Não adianta „gritar‟ e se considerar líder” (grifo
do participante).
(l) “fica uma sensação que liderança é muito mais treino, prática e estudo, embora
talvez haja também um fator pessoal „endógeno‟” (grifo do participante).
Ou seja, quando a fala é espontânea, como nas entrevistas, surgem muitas posições do
tipo “algo próprio do indivíduo, sob o qual ele não teria muito controle”. Entretanto, quando
estimulados – principalmente quando a sua opinião é pública –, as falas vão no sentido de que
há algo que é próprio do indivíduo, mas esse algo também deve ser desenvolvido.
Bem, se é possível identificar uma percepção, comum tanto a indivíduos que exercem
como aos que já exerceram o papel de líder, de que a liderança é algo próprio do indivíduo,
por que então alguns permanecem por muito tempo nesse papel, enquanto outros o assumem
em uma época da vida, deixando-o muitas vezes de forma definitiva?
Na seção 3.4.7 foram apresentadas pesquisas que tinham como foco a personalidade
do liderado. Entre elas, a de Ehrhart e Klein (2001), na qual os autores, se não falam
diretamente sobre características de personalidade do liderado, abordam questões que estão na
interface entre a cultura do grupo e a personalidade do líder. Entre as conclusões desses
autores estão as de que as preferências e reações do liderado a diferentes tipos de líderes
baseiam-se na atração de similaridades relacionadas aos atributos e valores do líder, e que as
necessidades de satisfação e as preferências do liderado para determinado estilo de liderança
podem indicar qual seria a resposta provável desse liderado ao trabalhar com aquele tipo de
líder.
Isso requer a investigação das características de personalidade nos dois grupos.
Analisando os achados referentes à personalidade dos dois grupos de líderes da
pesquisa, os quais pertencem ao mesmo grupo social – portanto, sujeitos à mesma “cultura” –,
a reunião de todas as comparações realizadas dos cinco domínios de personalidade entre os
dois grupos, nas mais diversas situações, apresenta o seguinte resultado:
a) Na Tabela 3 (pág. 277), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais para os dois grupos, considerados como um todo;
b) na Tabela 6 (pág. 282), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais quando se consideram os dois grupos de líderes inativos quanto à motivação
geral para se manterem afastados;
416
c) na Tabela 10 (pág. 287), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais quando se comparam os indivíduos que mais assumiram presidências com os
que nunca as assumiram;
d) na Tabela 15 (pág. 296), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais quando se comparam os indivíduos divididos pela forma como veem a liderança
(atenção com o liderado ou motivações de ordem interna, pessoal);
e) na Tabela 40 (pág. 341), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais quando se comparam os indivíduos pela forma como iniciaram os seus relatos
(infância ou na vida profissional);
f) na Tabela 42 (pág. 343), o p-valor da comparação mostra que os cinco domínios são
iguais quando os indivíduos são comparados, formando dois grupos: um que cita
ações que poderiam facilitar sua identificação como líderes e outro que não identifica
qualquer ação desse tipo.
Ou seja, rigorosamente, sob qualquer dos aspectos nos quais os líderes avaliados
foram agrupados, a comparação dos domínios de personalidade entre os dois grupos formados
sempre revelou que a mediana dos domínios não apresentava diferença significativa quando
comparados pela estatística U, de Mann-Whitney.
Comparando esses resultados com o apresentado pela revisão de literatura realizada
por Judge et al. (2002), pode-se constatar que em apenas um domínio – o “neuroticismo” – os
grupos da pesquisa exibiram resultado congruente com a literatura.
Reunindo os achados empíricos – que incluem as indagações apresentadas – com os
achados de literatura apresentados na seção 3.4.7, já se tem condições de organizar esse
conjunto de informações orientados pela lógica dialética.
As conclusões que podem ser obtidas desses resultados são as seguintes:
a) Indivíduos que assumem o papel de líderes em determinado grupo social possuem
características de personalidade semelhantes, como grupo. Essa constatação foi obtida
pelos dados retirados das Tabelas 3, 6, 10, 15, 40, e 42. Além disso, como foi
apresentado na seção 6.2.1, não foram identificados aspectos, nas histórias relatadas
por esses indivíduos, que pudessem diferenciá-los como grupos. Numa abordagem
dialética, essas constatações correspondem ao momento da identidade ou do
entendimento;
417
b) não foi observada uma congruência entre o apresentado pela revisão de Judge et al.
(2002) e os resultados obtidos na pesquisa desta tese. Esse é o momento dialético da
não identidade ou da contradição.
Essas duas conclusões, analisadas em conjunto, convergem para uma terceira:
c) essas evidências mostram que em grupos sociais nos quais o líder é escolhido por
aqueles que serão os liderados, a cultura do grupo – entendida como seus valores,
crenças e sua realidade simbólica – pode orientar as características de personalidade
que devem ser identificadas nos indivíduos com mais possibilidade de serem
escolhidos como líderes desses grupos.
O que se pode inferir a partir dessa terceira conclusão é que os grupos sociais possuem
características médias relacionadas às características médias dos indivíduos que formam o
grupo – o que pode incluir as características médias de personalidade desses indivíduos. As
pessoas desse grupo tendem a escolher como líderes indivíduos cujas características de
personalidade pudessem ser identificadas como sendo as mais adequadas para a condução dos
objetivos médios do grupo. E que essas características podem ser bem diferentes das
características médias de outros grupos, os quais, por isso mesmo, podem escolher como
líderes pessoas com características de personalidade diversas do primeiro, ainda que mais
adaptadas às características médias de personalidade dos indivíduos daqueles grupos.
A essa terceira conclusão se chega por um movimento de especulação, que não deve
ser confundido com a síntese da dialética hegeliana. Na dialética negativa, a interpretação tem
sustentação na observação empírica, mas não está fechada, permitindo outras interpretações
caso sejam incorporados outros elementos empíricos à discussão ou no caso dos elementos
existentes serem submetidos a uma ótica diversa de interpretação.
Essa conclusão acima apresentada vem em sentido contrário à teoria de boa parcela do
mainstream dos estudos sobre liderança, os quais, como foi apresentado nas seções 3.3 e
3.4.1, têm conduzido as pesquisas de modo a não considerar os aspectos referentes à
personalidade dos indivíduos envolvidos.
De modo especial, também não está de acordo com o que foi apresentado pelos
teóricos de cultura e liderança, como discutido na seção 3.4.1.1, os quais identificam no líder
de uma organização o responsável pelo gerenciamento da cultura organizacional, que
interpreta e dá sentido ao que nela ocorre.
418
Mas elas não são excludentes: nada impede que em organizações nas quais o líder
assume o seu papel por escolha de outros, que não os liderados – como, por exemplo, o
conselho de administração, ou algum órgão externo à organização em pauta, para o qual
deseja delegada a função de escolher o executivo principal –, o líder não só possua uma
personalidade cujas características possam não estar em conformidade com a cultura do grupo
de liderados – no caso, os trabalhadores – como também possa ser efetivamente responsável
pela criação ou modulação dos valores da organização (ainda que sua percepção como líder
possa ser influenciada por sua adesão a valores coletivos).
No contraponto, mesmo que nos grupos sociais que escolhem os líderes sejam
justamente esses valores existentes entre os liderados os orientadores da escolha, também é
possível que o líder, após ter sido reconhecido como tal pelos liderados, se encontre em uma
posição na qual possa modificar, de alguma forma, valores relacionados à cultura do grupo.
Essas conclusões não são propriamente uma novidade – as bases teóricas para a sua
sustentação podem ser encontradas associando o foi apresentado na seção 3.4.2.3, na qual foi
abordada a relação entre liderança e identificação, ao apresentado na seção 3.4.7, em que se
discutiu a personalidade do liderado. Ou seja, não é surpresa que grupos sociais diferentes,
compostos por pessoas que possuem objetivos comuns, mas diferentes dos objetivos de outros
grupos sociais, possam operacionalizar o conceito de liderança de modo diverso.
Entretanto, note-se que essas conclusões não são congruentes com a perspectiva
apresentada na seção 3.4.1.4 sobre liderança e influência social. Os autores desta última linha
– que incluem principalmente a teoria da troca entre líder e liderado e a perspectiva de
network, consideradas isoladamente ou em conjunto, como fizeram Sparrowe e Linden (2005)
– priorizam o papel do líder na configuração da relação, enquanto que o que se desenhou a
partir dos achados da pesquisa foi que as características definidoras da cultura do grupo serão
as orientadoras das escolhas a serem realizadas pelos liderados, definindo com isso também
um perfil de personalidade que seria o mais desejado para o líder daquele grupo.
Em resumo, as evidências aqui reunidas permitem a aplicação das conclusões para
grupos sociais nos quais o líder é escolhido pelos liderados. Pelos motivos apresentados, não é
possível propor a mesma conclusão para grupos cujos líderes foram escolhidos por pessoas ou
grupos alheios à relação líder-liderado. Mas há um núcleo, um universal, a ser identificado.
Para isso, o próximo passo será o de abrir o conceito que foi até aqui apresentado.
419
6.3 Abrindo o conceito
A existência de características próprias para os indivíduos que assumem papéis de
liderança, buscadas desde o início das pesquisas sobre o tema – e nunca completamente
abandonadas – foram confirmadas na pesquisa desta tese. No entanto, revisando a teoria do
mainstream sobre a liderança, não se pode deixar de constatar que essa linha de abordagem
foi perdendo o interesse para os pesquisadores desde o início das pesquisas relacionadas com
o estilo de liderança (ou, com o comportamento do líder) – algo sobre o qual é possível uma
ação de treinamento. Muito do que foi produzido a partir de então – incluindo as abordagens
reunidas sob o título de “nova liderança” – não tirou de foco a busca de habilidades que
pudessem ser desenvolvidas e treinadas, como pode ser observado na revisão da teoria
desenvolvida pelo mainstream apresentada no capítulo 3.
Entretanto, considerando que a liderança é uma construção social, qual seria o
interesse orientador para a sua construção nesse sentido? A proposta de Barker (2001),
relacionada com a intenção de venda de cursos e treinamento por parte de quem produz o
conhecimento, criando uma agenda a priori para as pesquisas e para as conclusões, é uma
possibilidade de resposta. E as evidências que permitem conduzir a discussão nessa linha
podem ser encontradas em alguns dos resultados apresentados na análise do material.
Primeiramente, no contexto da história dos indivíduos relacionada com a liderança,
não foi evidenciada qualquer tendência a que determinado tipo de situação ocorrida no
passado do indivíduo se constitua em um facilitador para que esse indivíduo se mantenha no
papel de líder no futuro – conclusão que ao mesmo tempo afirma e nega o que foi apresentado
na literatura sobre história de vida e liderança, e do discurso sobre a liderança. A pergunta é: o
que poderia haver de ideológico na literatura envolvendo o histórico e o discurso sobre a
liderança, cuja pista poderia ser perseguida a partir desses achados?
É possível que o conteúdo ensinado nos cursos e treinamentos para formação de
líderes seja uma pista para a resposta a essa pergunta. Ou seja, é possível que os resultados
produzidos pelas pesquisas sobre a liderança, apresentados em MBAs, em revistas, seminários
e em consultorias sobre o tema, tenham como finalidade (talvez até inconsciente) conformar
os discursos, de modo a propiciar que o indivíduo identifique em sua história situações que, se
enquadradas como apropriadas para o desenvolvimento de um líder, possam ser utilizadas
como justificativa para o exercício desse papel. Não é irrelevante observar que, nos dois
grupos investigados na pesquisa desta tese, a confusão entre liderar e fazer gestão induziu
420
muitos dos entrevistados a procurarem cursos de MBA para se “prepararem para o exercício
da liderança” – após já terem sido identificados como líderes dentro do seu grupo social.
Dentro dessa discussão, o sentimento de ter sido explorado e a percepção de sacrifícios
exigidos para o exercício do papel de líder – aspectos espontaneamente citados por alguns dos
entrevistados – não foram objeto de abordagem na teoria do mainstream sobre liderança.
Como essa ausência poderia ser compreendida dentro da construção ideológica da liderança?
Algum grau de sacrifício e de exploração é comumente encontrado no exercício de
papéis enquadrados dentro da divisão social do trabalho. Mas se a liderança deve ser
apresentada como algo extraordinário, e as habilidades exigidas para o seu exercício algo fora
do comum – e que, por isso, devem ser desenvolvidas, ou “adquiridas” a um custo alto, com
cursos, coaching e consultorias – os sacrifícios identificados como próprios do seu exercício
podem até ser supervalorizados, justificando uma expectativa para ganhos diferenciados.
Essa conotação para os sacrifícios pode ser observada nas entrevistas, não passando
despercebido o fato de terem sido citados apenas por indivíduos que estavam no papel de
líderes. No entanto, o sentimento de ser explorado não parece compatível com o exercício de
uma função extraordinária, incomum – o líder deveria ser aquele que explora, não o
explorado. Não é irrelevante que esse aspecto tenha sido citado apenas por líderes que não
estavam mais no exercício do papel.
Equiparar a liderança ao que ocorre no exercício de papéis mais comuns poderia
diminuir a sua “aura”, diminuindo o valor percebido do papel de líder, diminuindo tanto a
expectativa de valor para aqueles que devem pagar pelo exercício da liderança (por exemplo,
na contratação de executivos), como o status e reconhecimento social associados ao papel – o
que poderia resultar em diminuição do estímulo para os indivíduos desejarem comprar o
desenvolvimento das características pessoais que os habilitem para o seu exercício.
O que foi obtido da análise dos dados, é que o indivíduo no papel de líder, ou vai
utilizar a compensação financeira para justificar os sacrifícios que, no seu entendimento, o
exercício do papel de líder impõe – e, nesse caso, o que é apresentado como sacrifício pode
ser uma justificativa para haver uma diferenciação de ganho e de status –, ou vai se satisfazer
com o reconhecimento social do grupo, expresso ou na sua manutenção nesses papéis, no
ganho em projeção social, ou em ambos, os quais podem fornecer um tipo de capital social
para sua estratégia de ganhos futuros – novamente, financeiros e/ou de status.
Existindo os ganhos percebidos e o reconhecimento, o líder apresentará a liderança
como algo lúdico, que ele exerce com prazer – ainda que com a exigência de “sacrifícios”;
não havendo, os sacrifícios se transformam na percepção de ter sido usado, ou “explorado”,
421
pelos liderados. Nesse caso, ele se retira do exercício desses papéis, e vai utilizar as
habilidades que considera possuir na obtenção de compensações (financeira, reconhecimento
social, ou mesmo de status) em outros papéis valorizados, ainda que sem o glamour da
posição social de líder – glamour esse que, em seu discurso a partir de então, passa a ser
criticado, ou objeto de uma racionalização que o desvaloriza, como pode ser percebido em
algumas entrevistas de líderes inativos.
Os modelos de liderança apresentados pelos indivíduos pesquisados foram
predominantemente masculinos, em conformidade com o modelo apresentado na literatura do
mainstream. Mesmo o entrevistado que cita a mãe como modelo, uma “ativista na política
municipal”, acaba apontando o pai dela como o líder político local, comprometendo o seu
próprio reconhecimento da liderança exercida pela mãe como “ativista na política municipal”.
Também foram interessantes as referências à influência dos irmãos – algo que também não é
encontrado na literatura – sendo que um dos dois casos identificados (o líder inativo, com
extenso histórico de posições de liderança) se referiu à irmã mais velha como influência.
Considerados em conjunto, são contrapontos que, ainda que raros, não só identificam
um aspecto da ideologia do modelo hegemônico, como apontam para outras possibilidades de
influência. Não há como, a partir dos dados, identificar aspectos para a diferenciação entre os
modelos, mas é possível dizer a naturalidade do modelo hegemônico é colocada em
suspeição, abrindo o caminho para novas possibilidades de relações entre indivíduos – ainda
que admitindo a realidade do construto, ou que as relações de liderança, como compreendidas
no momento, devem existir – como é o caso de modelos de liderança compartilhada e
distribuída, que não foram identificados no grupo social investigado.
Outra linha teórica dentro do mainstream considera que cabe ao líder conformar a
cultura organizacional (ver seção 3.4.1.1). No entanto, a partir dos achados empíricos é
possível identificar um “bloqueio” nessa teoria: as características de personalidade, apesar de
semelhantes nos dois grupos, não são congruentes com o que foi apresentado por Judge et al.
(2002).
A conclusão derivada do tensionamento entre o achado de pesquisa e o apontado pela
teoria foi a de que, em grupos sociais nos quais o líder é escolhido por aqueles que serão os
liderados, a cultura do grupo – entendida como seus valores, crenças e conteúdo simbólico –
pode ser o orientador das características de personalidade a serem buscadas nos indivíduos
com mais possibilidade de serem escolhidos como líderes. Ou seja, antes de poder conformar
a cultura do grupo, é essa cultura que vai conformar as características de personalidade
desejadas para o líder. Depois de escolhido, ele pode até exercer a sua ação sobre a cultura,
422
mas a possibilidade de grandes mudanças já estaria minimizada pela existência de
características pessoais que estavam identificadas com a cultura do grupo.
Essa conclusão está de acordo com a já citada opinião de Sogunro (1998) de que a
ênfase está rapidamente mudando da ideia de que a efetividade da liderança é influenciada
unilateralmente por características da personalidade do líder para a noção de que a efetividade
da liderança é influenciada bilateralmente pela dinâmica das características de personalidade
tanto do líder quanto dos membros do grupo (SOGUNRO, 1998, p. 26). Nesse caso, que tipo
de interesse seria tendido com a escolha desses indivíduos para atuarem no papel de líderes
em seus grupos sociais? A manutenção conservadora do que é entendido como sendo os
valores do grupo pode ser uma resposta.
Para Khaleelee e Wolf (1996), o líder deve ser capaz de suportar suas próprias
incertezas e as incertezas dos outros. Mas, até que ponto o líder pode chegar nesse “suportar
incertezas”? Mais especificamente, como os líderes deveriam reagir ao identificar
contradições entre os valores referidos como sendo próprios do grupo e novos valores
latentes, identificados como significativos pelo menos para uma parte importante do grupo?
A autonomia e a independência do líder, na expressão dos seus valores, podem ser
importantes para fornecer ao grupo as condições para a avaliação da aderência do líder aos
valores coletivos, na escolha do indivíduo como líder – aquilo que a literatura aborda como a
emergência da liderança. Entretanto, como foi observado na discussão dos dados, se posições
de autonomia e independência levarem o indivíduo a se chocar contra os valores abraçados
pelo grupo, os mesmos indivíduos podem ser afastados das posições de liderança, uma vez
que não são mais identificados como os porta-estandartes desses valores coletivos – podem
não atingir o que a literatura tem abordado como a efetividade da liderança.
Nesse sentido, é de se esperar que a percepção de uma aderência sem questionamentos
a valores identificados como valores coletivos justifique a escolha e a manutenção do
indivíduo em papéis de liderança. Da mesma forma, a percepção pelo grupo de uma visão que
se contraponha aos mesmos valores poderia se relacionar com a rejeição desses mesmos
indivíduos para o exercício dos mesmos papéis. Ou seja, é discutível se o indivíduo que
deseja ser efetivo como líder, e se manter na posição de liderança de um grupo social, possa
sustentar posições de independência e autonomia.
Para Hollander (1958), a história do líder pode ser usada para acumular o que o autor
chamou de “créditos idiossincráticos”, o que foi definido como um tipo de capital social que
permitiria ao líder propor mudanças, desafiando normas e crenças do grupo. Apesar dessa
visão estar de acordo com o que foi discutido acima, não há como aferir esse aspecto da teoria
423
com os dados produzidos por esta pesquisa – isso dependeria de uma investigação que
envolvesse os liderados, já que os valores são do grupo, o que não foi possível com o desenho
da atual pesquisa, sendo um dos aspectos que poderiam motivar investigações futuras.
Entretanto, se a autonomia e a independência são importantes para a escolha, mas não
para a manutenção do líder nesse papel, como ficaria a situação do líder revolucionário –
entendido como aquele que aglutina as pessoas em torno de mudanças, ou de rupturas com os
valores vigentes? Na linha do que está sendo discutido, talvez se possa dizer que esse líder
seria um indivíduo que identificou no grupo valores que, apesar de já existentes, ou não são
reconhecidos como tal, ou são negados pela liderança estabelecida. E que os líderes que não
se identificam com os “novos valores” são aqueles que ou serão substituídos por novas
lideranças, ou se afastarão espontaneamente dos papéis de lideres nesses grupos
Relacionado com essa diferença, pode-se dizer que, pelo menos no material da
pesquisa desta tese, os líderes com perfil mais “revolucionário” foram encontrados entre os
inativos – que o são, talvez, por terem sido líderes de grupos cujos valores já mudaram, ou
que não eram, no momento em que se deu a pesquisa, os mais significativos para o grupo. O
que não impede que algum líder em atividade com perfil “revolucionário” pudesse ter sido
encontrado em algum grupo cuja mudança fosse recente – o que não foi o caso nesta pesquisa.
Talvez isso também explique o porquê dos líderes inativos abordarem a liderança mais na
ótica da “exploração” – pelo fato de não terem os seus valores reconhecidos.
Líderes em atividade, que no material produzido nesta pesquisa lideravam grupos com
valores que se poderia chamar de estáveis – e, portanto, resistentes às mudanças – foram os
que apresentaram as visões mais romanceadas e mais de acordo com a teoria do mainstream,
com citações que poderiam ser facilmente enquadradas em construtos como liderança
autêntica, transformacional ou efetiva, mas cujas práticas poderiam ser facilmente
enquadradas naquilo que foi identificado como a “banalidade” das ações de liderança: os atos
rotineiros da gestão – o que remete ao trabalho como o “executivo” de uma organização.
Em relação ao interesse pelo trabalho como “executivo”, foi visto que Carroll, Parker
e Inkson (2010) identificaram, como motivação para a busca de atividades referidas como
sendo liderança, uma forma de fugir do “aborrecimento” – achado inesperado na pesquisa
daqueles autores, no contraponto com a “busca de desafios” e com a criatividade que
habitualmente são motivações encontradas nos discursos de líderes. No caso da pesquisa desta
tese, o que foi encontrado mais próximo desse tipo de motivação foi a busca pelo exercício de
atividades apresentadas pelos entrevistados como sendo as funções executivas.
424
Considerando os indivíduos investigados faziam parte de um grupo profissional, cujo
trabalho (como em qualquer grupo profissional) deve envolver certo grau de rotina, é mesmo
possível que alguns dos entrevistados possam ter buscado, como motivação para assumir o
papel de líder, uma solução para o fastio ou insatisfação com a sua atividade profissional, na
forma como esta estava sendo vivenciada, como foi apresentado na seção 6.1.3 D). Mas não é
tarefa simples separar essa possibilidade do interesse pela posição privilegiada em uma
relação de poder, ou pelos ganhos financeiros esperados para essa posição – ganhos esses que,
em algumas situações, podem ser superiores aos que o indivíduo seria capaz de auferir na
execução de suas atividades profissionais habituais.
Assim, fazendo um rearranjo na figura 3, apresenta-se o conceito de liderança como
um construto organizado a partir de uma associação de interesses, cuja importância relativa
vai variar nos casos particulares – dependendo de características de personalidade, de
expectativas relacionadas com vivências prévias, do papel social ocupado no grupo, entre
outros fatores pessoais – em uma associação esquematicamente representada na figura 6.
O resultado final da figura 4 também pode ser compreendido como uma constelação,
cujos componentes se relacionam não de modo sistêmico, interdependente, mas de modo mais
“frouxo”, que poderia ser chamado de “interindependente”, representando um universal cujos
componentes guardam uma importância relativa para casos particulares diferentes.
Cada uma das “caixas” apresenta um conceito obtido a partir de uma interpretação dos
dados – e que, por isso, pode ser aprimorado, refinado, ou mesmo modificado, dependendo de
se agregar um novo dado no conjunto que possa modificar a interpretação. À figura 3 também
foi agregado outro construto – o da influência, o qual, como a relação de poder, é formado
por uma outra constelação de conceitos.
O resultado final, aqui apresentado na figura 4, pretende responder à pergunta que
motivou a tese: o que é, afinal, a liderança?
Para o grupo social escolhido, a análise dos dados permite identificar esse universal,
formado pela constelação de conceitos que (por ser um universal) pode ser aplicada a outros
grupos sociais, nos quais será modulada por particularidades encontradas nesses grupos,
acrescentando ou retirando aspectos do conceito, e reformulando-o para esse novo contexto.
Isto é, em resumo, o que a pesquisa permite dizer a respeito do conceito de liderança.
425
Figura 4: Abrindo o conceito a partir dos interesses relacionados com os diversos
conceitos que compuseram a constelação
LIDERANÇA ABRINDO O CONCEITO
Aumento da “visibilidade social”
Exploração
Atividade banal
“Romance”
Sacrifícios
IndependênciaAutonomia
Fonte: concepção do autor
Interesses orientam as pesquisas sobre o fenômeno.
Elas produzem o conceito, que modula o fenômeno
Facilita emergência
mas pode dificultar
manutenção do líder
Não reconhecimento
dos “sacrifícios” Justifica os ganhos e
valoriza a atividade
Expectativa de ganhos
financeiros diferenciados
Opção contra o
“aborrecimento” da rotina
profissional “operacional”
OUTROS CONSTRUTOS
Exercício do poder – Influência
O exercício do papel
induz a identificação
do indivíduo como
líder Percepção de que os
recursos mobiliza-
dos não são diferen-
tes dos mobilizados
para outros papéis
Cursos e seminários estimulam o
interesse pelo desenvolvimento de
habilidades para o exercício da
liderança
Coaching, consultorias e outras
abordagens pessoais são oferecidas
para ajudar a conformar o
comportamento do líder
Líderes não ativos Líderes em atividade
Projeção social
Os dois lados podem se inter relacionar
426
7. CONCLUSÃO
“se quiséssemos agir radicalmente, de acordo com isso, extirparíamos também com
o falso tudo o que é verdadeiro” (ADORNO, 1993a, pp. 36-37).
A pesquisa da tese reuniu elementos, teóricos e empíricos, que permitem enquadrar a
liderança como uma ideologia. Isso não quer dizer que a liderança não exista: ela é algo que
pode ser identificado no mundo da prática, algo de que se pode falar, que pode ser objeto de
investigação, de treinamento, de cursos – enfim, algo verdadeiro. Desconsiderar esse fato é,
de acordo com a epígrafe acima de T. Adorno, “extirpar com o falso tudo o que é verdadeiro”.
E o que há nela de falso? A sua naturalização, a ideia de que ela é algo necessário, e não
contingente.
Como foi apresentado no capítulo 2 dessa tese, a forma proposta por Adorno e
Horkheimer (1971) para lidar com ideologia é a crítica imanente, cuja tarefa é investigar a
relação da ideologia com a verdade – e não a sua relação com os interesses de classe, como
muitas vezes tem sido conduzida por pesquisadores de orientação mais crítica.
Para a condução dessa crítica, foram perseguidos no capítulo 6 os interesses que
motivaram os indivíduos para a assunção do papel de líder em seu grupo. E, para concluir o
que foi encontrado na pesquisa, serão reunidos alguns dos elementos apresentados na teoria,
considerados significativos como pistas para o enquadramento da liderança como ideologia,
para em seguida agregar os achados empíricos que confirmaram essa impressão:
a) na seção 3.6, ao se buscar um caminho que indicasse como o termo liderança surge
como uma palavra, um conceito que se refere a algo no mundo da prática, não se
consegue avançar muito mais do que o final do século XIX e início do século XX;
b) não é irrelevante o fato de que o termo vai tomando a conotação que possui hoje,
evoluindo de sua inexistência em um contexto no qual as relações de poder são
mais claras (como no absolutismo, ou no poder feudal) para a sua identificação
quando surge o interesse pelo que representa o indivíduo no topo de uma
hierarquia, no contexto do estudo das relações de poder em organizações –
inicialmente as militares e religiosas, posteriormente em organizações capitalistas,
nas quais a autoridade está menos localizada no indivíduo do que em sua posição;
c) o que se percebe é o conceito surgindo como justificativa para algo identificado
como sendo natural, legítimo e funcional, e que explica uma forma de relação
entre os indivíduos que pode ajudar a atingir objetivos de organizações;
427
d) entretanto, quando autores como Alvesson e Sveningsson (2003a) conduzem as
suas investigações empíricas sem partir do pressuposto da sua realidade, o material
empírico aponta para o desaparecimento da liderança;
e) não é irrelevante que, em suas pesquisas sobre o que faz efetivamente o líder em
seu dia a dia, autores mais críticos como Kelly et al (2006) e Alvesson e
Sveningsson (2003a) não tenham identificado o extraordinário e o fora do comum
que a literatura do mainstream comumente apresenta quando aborda a liderança, e
que autores mais identificados com o funcionalismo como Bennis e Nanus (1988)
não tenham identificado em suas pesquisas a maioria dos mitos envolvendo o líder;
f) também deve ser considerada a resistência imposta a todas as tentativas de
definição, o que vem sendo observado desde a primeira revisão de Stogdill (1948);
g) como apresentado na seção 3.4.1, questionamentos sobre a realidade do construto
não são novos: na década de 1970, Calder (1977) já via na “liderança” apenas um
outro rótulo para o que já era conhecido como influência interpessoal, à qual teria
sido agregado o construto privilégio, numa associação que, para Pfeffer (1977), era
reforçada pelo efeito simbólico das cerimônias e dos processos de seleção e de
iniciação envolvendo as posições de liderança nas organizações;
h) também não é irrelevante que a liderança comece a ser investigada como uma
característica a ser encontrada no indivíduo, evoluindo rapidamente para se buscar
identificar o que poderia ser feito para desenvolvê-la nos indivíduos, criando não
só uma agenda específica para pesquisas, cursos e treinamentos, como modulando
a própria compreensão do conceito.
A ideologia costuma ser comparada com um véu, algo que esconde a realidade. Para
Adorno e Horkheimer (1971, p. 204), entretanto, ela é, de fato, “a imagem mesma,
ameaçadora, do mundo”, donde a dificuldade para a sua identificação: a ideologia acaba se
confundindo com o óbvio – sendo esse, aliás, um bom lugar onde ela deve ser procurada.
Mas como investigar o óbvio? T. Adorno não deixou nenhum “tratado” sobre pesquisa
social empírica – uma vez que, para ele, não existe uma metodologia geral que possa orientar
a pesquisa, devendo ser o método derivado do objeto. Foi a partir deste fundamento que, para
a pesquisa desta tese, lançou-se mão de vários procedimentos, considerados instrumentos
auxiliares adequados para se “romper o invólucro” ideológico, por dentro e por fora – pois
esse é um invólucro que também se confunde com o objeto que “recobre”.
428
Os procedimentos utilizados funcionaram como os instrumentos de trabalho de um
artesão: foram escolhidos, em momentos diferentes, aqueles que mais se adequavam à ação
que se pretendia executar sobre o objeto. Daí a associação, para a pesquisa da tese, do uso de
entrevista com o uso de escala, abordagem de relações sociais e de personalidade, ou da
associação de procedimentos quantitativos aos qualitativos. Além de estar respaldada pela
teoria – como apresentado na seção 2.2 –, a pesquisa que deu origem ao Authoritarian
personality também serviu como exemplo, uma vez que é citada por T. Adorno tanto em suas
aulas (ADORNO, 2008a) como em seus textos, mesmo os mais tardios (ADORNO, 1995;
2009), como modelo de procedimento em pesquisa social – fato reafirmado por Wiggerhaus
(2006), quando da descrição da pesquisa realizada na empresa Mannesmann – não com a
finalidade de produzir algum outro tipo de escala, mas de realizar pesquisa social empírica.
É muito provável que outro pesquisador escolhesse algum outro procedimento, ou
deixasse de escolher algum dos que foram utilizados, para romper o mesmo “invólucro”. Os
dados produzidos, desta forma, poderiam ter sido outros. Mas o esperado, a partir da teoria, é
que o resultado final, ainda que um pouco diferente porque lidando com particulares
diferentes, acessasse um mesmo universal presente nos diferentes particulares.
O resultado encontrado no material empírico reunido para análise também esteve de
acordo com enquadramento da liderança como uma ideologia. Recuperando-se algumas das
discussões do capítulo 6, de modo sumário pode-se dizer a respeito da liderança que:
a) O seu exercício é motivado por interesses. Não interesses de classe (os de uma
classe contra os de outra), mas interesses identificados no objeto de pesquisa,
envolvendo indivíduos que pertencem à mesma classe social;
b) esses interesses se apresentam sob diferentes óticas, dependendo se o indivíduo
está ou não no exercício do papel de líder. Não mudou a classe social, mas a
posição do indivíduo dentro de sua classe – no caso do objeto investigado;
c) foi observado, a partir do material empírico, uma tendência para ocultar a relação
entre a liderança e o poder. Aqui é utilizado o termo “ocultar”, pois a relação foi
reconhecida quando o tema abordado pelos mesmos indivíduos foi o poder, e não a
liderança. Mesmo que essa tendência não tenha sido consciente, ou intencional,
nem por isso ela será menos significativa;
d) também foi observado no material de pesquisa, que líderes em atividade, além de
tenderem a ocultar alguns dos interesses relacionados com o exercício desse papel
(como os financeiros), também procuraram caracterizar a liderança como algo
extraordinário, fora do comum – caracterização essa que não foi reconhecida por
429
muitos dos indivíduos que tiveram a experiência da liderança, mas que não
estavam mais no papel de líderes no momento da entrevista;
e) se podem ser identificadas características próximas de personalidade para os
indivíduos que foram em algum momento escolhidos pelos liderados para o
exercício da liderança, essas não foram as mesmas para grupos diferentes (como
visto na revisão de Judge et al (2002). Ou seja, mais do que características de
liderança, seria mais apropriado falar em características facilitadoras para a
liderança em determinado grupo;
f) a existência de características diferentes para grupos diferentes pode frustrar a
realização de programas genéricos de treinamento e desenvolvimento de lideranças
– em outras palavras, têm potencial para contrariar interesses; mas também pode
ser aproveitada na ampliação da agenda de pesquisas para o mainstream;
g) nesse sentido, os interesses não seriam apenas dos indivíduos que, a partir de
características comportamentais (próprias ou aprendidas) irão justificar uma
diferenciação para os ganhos financeiros, de status ou de modalidade de trabalho
em relação ao seu grupo social, mas também serão justificativa para os que
identificam a oportunidade de se beneficiar com oferecimento de programas de
treinamento para o desenvolvimento dessas características – justificadas que estão
pelos “resultados das pesquisas”.
A partir da construção do conceito e de sua abertura, apresentadas nas figuras 5 e 7,
pode-se concluir que a liderança, no grupo investigado, é uma interpretação do resultado da
associação constelatória de outros conceitos, com importância relativa diferente para pessoas
diferentes, mas que em conjunto serão responsáveis tanto por justificar quanto por modular
comportamentos – o que, em casos particulares, poderá se relacionar com a compreensão que
o sujeito tenha do próprio conceito.
Comportamentos são respostas particulares às necessidades apresentadas pelas
situações, sendo que tanto o papel de líder como o de liderado podem ser identificados sendo
exercidos pelo mesmo indivíduo em diferentes momentos (no tempo e no espaço) das relações
sociais. Para se falar em uma relação de liderança, será necessário isolar um momento das
relações sociais e observar como se enquadra, naquele momento, o comportamento relativo de
cada um dos atores. Os interesses presentes em determinado momento das relações podem ser
os motivadores desses comportamentos.
430
O construto liderança resiste a uma definição única pois os múltiplos conceitos que o
compõe podem adquirir importância relativa em momentos diferentes, para justificar usos
diferentes – como falar de liderança quando o que se pretende é uma posição privilegiada em
termos de ganhos e de status, no mercado de trabalho. Sua proximidade com outros
construtos, como o poder e a influência, também pode ter um uso dentro do que poderia
chamar de “politicamente correto”, evitando o emprego de um termo em situações sociais nas
quais a sua utilização poderia gerar algum tipo de rejeição – como falar de liderança para
justificar uma relação que efetivamente é relação de poder.
Em uma discussão que tem como base a investigação da ideologia, e que para alcançar
esse objetivo utiliza, entre outros métodos, o tensionamento dos achados da pesquisa empírica
com a teoria proposta pelo mainstream, não se pode deixar de considerar os aspectos que
estão na teoria, mas não foram encontrados nos dados. A questão é: porque não foram
encontrados? Em outros termos, em uma visão negativamente dialética, deve haver algo
eloquente, significativo, por trás da ausência, que seja parte do objeto.
Se o apresentado na teoria fosse um objeto da natureza, e não uma construção social,
haveriam respostas possíveis como a de o desenho da pesquisa não permitiu o acesso a esses
dados, ou a de que eles existiriam apenas de forma latente, necessitando de algum estímulo
para se apresentar, etc. Entretanto, se é uma construção, se a construção sofre influência da
ideologia, e ideologia é justificação, talvez a construção teórica que os apresentam tenham
sido motivadas pelo interesse de justificar algo que não pode ser identificado na pesquisa –
talvez, por não ser um interesse identificado para o grupo social investigado.
Para não passarem despercebidas, de modo a poderem ser incorporadas à conclusão da
pesquisa, serão citadas aqui algumas das ausências consideradas mais significativas, pelo
potencial de acrescentar algo à compreensão do objeto – e que poderão ser objeto de
investigações futuras:
a) As diferenças entre as lideranças dos tipos transacional e transformacional
Os aspectos envolvidos nos conceitos de lideranças transformacional e transacional,
como apresentados por Burns (1978) e Bass (1990), não puderam ser identificados, em
momento algum, nem nas entrevistas nem nas reuniões de grupo – talvez pelo fato de
que não foram investigados indivíduos que estavam apenas no papel de liderados, que
são parte integrante da construção do conceito. O interesse poderia estar em justificar a
existência do líder, a partir de algum aspecto da relação na ótica do liderado – o que
não pode ser evidenciado na pesquisa devido à falta desse ator social na investigação;
431
b) Lideranças compartilhada e distribuída
Pelo tipo de objeto escolhido para a pesquisa – líderes de uma rede de organizações de
caráter associativo com diversos objetivos envolvendo o mesmo grupo social – havia a
expectativa de que experiências relatadas na literatura envolvendo lideranças
compartilhadas e distribuídas pudessem fazer parte da experiência desses líderes. É
possível que o modelo de liderança proposto nesta linha teórica não atenda aos
interesses de líderes que, para assumirem esse papel, entram em disputas políticas,
num processo que envolve mais a noção de competição do que cooperação, ou de
compartilhamento. Sua construção para outros grupos sociais, poderia atender a
interesses próprios desses grupos, mas ausentes para o objeto dessa pesquisa;
c) Liderança e complexidade
Não houve, por parte dos entrevistados, qualquer percepção referente aos aspectos
discutidos na seção 3.4.1.5 relacionados à reduzida eficiência da coordenação tipo top-
down, de questões relativas ao contexto ou quaisquer outros aspectos apresentados na
teoria sobre esse aspecto. Mais uma vez, é possível que essa seja uma visão que não
atenda a interesses dos que assumiram posições de liderança no grupo social estudado;
d) Múltiplos níveis de abordagem (díade, grupo imediato, grupo social mais expandido)
É possível que esta seja uma abordagem muito mais apropriada para orientar a
pesquisa, dentro do mainstream – partindo do princípio de naturalidade do construto –
do que para a percepção da liderança por aqueles que estão envolvidos nessas relações.
De qualquer modo, registra-se a ausência de qualquer percepção nesse sentido no
material produzido;
e) Liderança e sedução hipnótica
Como foi visto na seção 3.4.2.4, para Freud (1987d) há uma relação direta entre
sedução e hipnose, sendo que autores posteriores como Collinson (2005), Calas e
Smircich (1991) e Kets de Vries (1990), também discutiram o tema, ou sob a ótica da
capacidade de sedução do líder, ou de sua capacidade de despertar emoções primitivas
em seus seguidores por meio de manipulação de símbolos significativos para estes.
Nenhum desses aspectos pôde ser identificado na pesquisa – talvez pelo tipo de objeto:
indivíduos identificados com o papel de líder, sejam ativos ou inativos. É possível que
uma pesquisa cujo desenho inclua indivíduos identificados com o papel de liderado,
propicie melhor condição de exploração deste aspecto da relação de liderança.
432
7.1 Considerações sobre o método e limitações da pesquisa
A pesquisa conduzida nessa tese foi apresentou vários aspectos novos, que não têm
sido encontrados habitualmente no campo da administração. Por isso, não é desejável que se
chegue ao final do trabalho sem registrar algumas percepções que possam ser úteis para a
correção de erros, além de poderem facilitar tanto a crítica como o reforço de alguns dos
procedimentos realizados. Para que não se perca algum aspecto importante, subdivide-se essa
seção nos aspectos que constituíram um aprendizado pela aplicação das escolhas dos
procedimentos metodológicos, e as limitações percebidas como consequência dessas escolhas.
A) Algumas considerações sobre o método
Como foi apontado várias vezes durante o desenvolvimento da pesquisa desta tese, T.
Adorno não deixou um método de pesquisa empírica a ser utilizado – ao contrário, como foi
apresentado na seção 2.2 B), em sua visão não deve haver um método em pesquisa social
empírica, uma vez que o método deve ser desenvolvido a partir do objeto. A consequência
disso é que as escolhas do sujeito pesquisador vão desempenhar um papel importante no
desenvolvimento desse método – como foi visto, a primazia do objeto vai implicar em mais
sujeito (e não em mais objeto, como o termo poderia induzir). Em função disso, a teoria
apresentada no capítulo 2 precisou ser um pouco mais extensa – ainda que sintética, no
entendimento do autor dessa tese – com a finalidade de justificar cada uma das escolhas
realizadas para os procedimentos utilizados na pesquisa.
Como muitas das confusões observadas em outras pesquisas pretensamente orientadas
pela teoria crítica e por T. Adorno estavam relacionadas com discutíveis fundamentos
teóricos, retirados basicamente da leituras de terceiros sobre a obra de T. Adorno, a opção
nesta tese foi buscar, sempre que possível, os fundamentos na leitura direta da obra de T.
Adorno – iluminada por suas aulas da década de 1960 –, ainda que esclarecendo alguns dos
pontos mais complexos com a leitura de autores que são referência no tema.
Como a investigação envolveu a comparação de grupos de indivíduos tanto a partir de
suas histórias relacionadas com o tema como de características de suas personalidades, o
método deveria envolver pelo menos a entrevista (para o histórico das relações sociais dos
indivíduos envolvidos no tema) e a aplicação de uma escala de personalidade (para as
características de personalidade do entrevistado). As demais fontes de informação
(participação em reuniões e assembleias, além de material impresso de comunicação e
participação em rede sociais) foram agregadas a partir da necessidade percebida durante o
433
processo de investigação – a de que, para a liderança é preciso investigá-la no processo no
qual ocorre.
Mas o primeiro aspecto relevante com relação ao método foi, na verdade, anterior a
ele: o conhecimento das teorias – sobre o tema e sobre o método. Assim, um primeiro
aprendizado foi o de que antes de se fazer uma pergunta sobre o objeto, é preciso primeiro
conhecer a teoria sobre o tema no qual o objeto está incluído, na forma como tem sido
conduzida pelo mainstream mesmo: é sabendo como o objeto tem sido identificado (ou, o
conceito construído sobre o objeto) que é possível lançar as primeiras luzes sobre a ideologia
que o identifica, abrindo o caminho para encontrar contradições envolvidas no conceito.
O próximo passo é problematizar o objeto. Para isso, uma primeira contradição foi
identificada no objeto, e se relacionava com os indivíduos que já estiveram no papel de líder,
mas que haviam abandonado esse papel, encontrando-se no papel de liderados: de acordo com
o conceito, eram líderes, ou liderados?
Em toda a revisão bibliográfica realizada sobre o tema
53 não foram encontrados
trabalhos que tivessem se interessado por esses indivíduos. E, como pode ser percebido em
vários momentos da análise dos dados, a decisão de incluí-los como objeto de pesquisa foi
importante, pois sem eles muitos dos aspectos relevantes identificados na pesquisa não teriam
sido obtidos.
O passo seguinte envolveu a escolha dos procedimentos metodológicos para abordar
esse objeto. Uma entrevista mais aberta, com um mínimo possível de interferência do
entrevistador na abordagem e na forma de colher as informações durante as reuniões, foi
inspirada na experiência da coorientadora com o grupo de pesquisa social empírica baseada na
teoria crítica de T. Adorno coordenado pelo Prof. Oevermann (2004), em Frankfurt. O
restante dos procedimentos foram inspirados tanto no que foi realizado nas pesquisas
empíricas conduzidas pelo próprio T. Adorno (como na Authoritarian personality) como pelo
que o autor discutiu a esse respeito em suas aulas – o que foi apresentado no capítulo 2.
Para a análise, também houve aprendizado metodológico. Os aspectos mais
importantes desse aprendizado foram:
53
Desconsiderando os inúmeros artigos nos quais foram lidos somente o resumo ou a introdução e o resultado –
quando a leitura inicial revelava que o artigo não era de interesse para a pesquisa –, somente o arquivo de
artigos, físicos ou em meio eletrônico, cuja leitura contribuiu de alguma forma para a tese, conta com 273
artigos. Além dos livros consultados especificamente sobre os temas “líder” e “liderança” que ou foram
completamente lidos ou tiveram um ou mais de seus capítulos consultados para a formação da compreensão
sobre o tema – e que nesse momento é difícil de contabilizar, visto que alguns não entraram para a bibliografia –
que podem ser calculados como reunindo algo entre 15 e 20 volumes.
434
a) A aproximação dos objetos identificados na análise, em forma de constelação.
Durante a preparação dos dados, a caracterização das categorias utilizando exemplos
que abordavam o tema sob óticas muito diferentes, muitas vezes contraditórias,
revelou a constelação: um conjunto de objetos – no caso, as falas – que se referem a
um conceito ou uma ideia geral e que admitem, nessa referência, as contradições que
podem fazer parte desse conceito ou ideia. Nesse processo, foi interessante observar
que uma mesma fala ou trecho da entrevista poderia ser utilizado na composição de
diferentes constelações de conceitos ou ideias, dependendo da ótica na qual a fala ou
trecho era considerado;
b) durante a apresentação e análise dos dados, a identificação do que seriam as sobras –
ou, melhor especificando, de acordo com o proposto por Silva (2006), do excedente.
Essa etapa foi nuclear para o processo de análise, visto que foi nela que as
contradições puderam ser identificadas. A busca e valorização pelo que foge ao
comum, ou pelo menos o mais frequente, habitual ou “óbvio”, a respeito do tema que
está sendo abordado, exigiu um tipo de olhar sobre os dados que não pode ser
identificado em outras obras consultadas. Nessa parte, ficou clara a utilidade da
Estatística como procedimento complementar, assessório, no caso dessa pesquisa em
duas modalidades principais: a forma descritiva, na organização do que era produzido
pela análise das entrevistas, com a distribuição de frequências propiciando a realização
de comparações – e, com elas, apontando distorções em relação ao mais comum,
habitual ou frequente; e, para o conjunto de dados organizados em grupos de
indivíduos a partir de características escolhidas, testes como a estatística U, com a
finalidade de comparar os grupos produzidos. Deve ficar claro que, dependendo do
objeto de investigação, o seu uso poderia ter sido dispensado, ou poderia ter sido
demandada a utilização de outros instrumentos assessórios;
c) a utilização da teoria, não com a finalidade de ser provada ou refutada, mas para
orientar questionamentos a serem dela derivados – como apresentado na seção 3.4 (D).
Durante a análise e a interpretação dos dados, a teoria foi sendo foi utilizada – tanto no
capítulo 5, enquanto os dados estavam sendo preparados, organizados e apresentados,
quanto no capítulo 6, quando o que foi anteriormente apresentado passou a ser
discutido à luz da teoria. Apesar da teoria orientar o olhar, o que se pretendeu foi não
só identificar as incongruências entre achados e teoria, mas – e principalmente – os
“bloqueios” : não apenas o que, nos dados, não estava de acordo com a teoria, mas o
435
que não estava na teoria. Esse papel da teoria se constituiu em algo novo, não
encontrado na literatura relacionada com o mainstream;
d) o uso da teoria crítica de T. Adorno – que o autor diz ser sinônimo de Dialética
negativa (ADORNO, 2008b) para se chegar a conclusões. O exercício aqui implica:
um primeiro passo, que é o da identificação de algo a partir de evidências empíricas,
afirmando uma tendência ou uma generalização; o segundo passo, da identificação a
partir de evidências empíricas, de um bloqueio dessa tendência; e um terceiro passo
que, considerando os dois anteriores, possibilite a compreensão de um aspecto do
mundo empírico que inclua os anteriores, com os diversos aspectos encontrados, ao
final, apresentados em uma relação do tipo constelatória.
Principalmente por estar lidando com algo novo, sobre o qual existe uma certa
dificuldade para se obter informações sobre experiências anteriores, é que se pode esperar a
identificação de limitações no resultado, que poderão ser superadas pela continuidade da
experiência.
B) Algumas limitações percebidas
A principal limitação foi a não inclusão de indivíduos identificados apenas com o
papel de liderados para a investigação. A decisão inicial de inclusão de liderados que já
estiveram no papel de líderes, se por um lado revelou aspectos muito interessantes com
relação aos conceitos de líder e de liderança, por outro lado não permitiu a investigação de
vários outros: partindo-se do princípio que a liderança é uma construção social envolvendo
uma relação de pessoas nos papéis que essa construção designa como sendo de líder e
liderado, é bem possível que outras contradições envolvendo essa construção pudessem ser
identificadas caso esses indivíduos fossem incluídos.
Entre os aspectos que, na pesquisa da tese, revelaram limitações por falta de inclusão
de indivíduos que no grupo estavam apenas no papel de liderados pode-se citar:
a) Não foi possível identificar algum aspecto na história do entrevistado que pudesse
ser considerado um diferenciador entre os grupos de líderes ativos e inativos. Mas,
como a narrativa da sua história é um instrumento utilizado por alguns líderes para
influenciar na sua percepção como tal pelos liderados, é possível que uma pesquisa
voltada para a investigação de indivíduos que estão apenas no papel de liderados
neste grupo social possa evidenciar algo relevante, que o desenho atual desta
pesquisa não permitiu identificar;
436
b) não foi possível, a partir dos achados empíricos, afirmar a relação entre a
percepção de um comportamento identificado como envolvendo a vaidade do
indivíduo, com o que a teoria chamou de narcisismo, com a identificação de um
nível muito baixo de modéstia (A5) e com a rejeição do líder. Uma investigação
envolvendo indivíduos identificados apenas com o papel de liderados poderia
lançar mais luzes nessa relação – e, como consequência, evidenciar outras
contradições;
c) aspectos envolvendo a “sedução hipnótica”, como sugerido por Freud (1987d) e
outros autores citados na seção 3.4.2.4, ou as lideranças transformacional e
transacional, como apresentados pela linha desenvolvida a partir de Burns (1978) e
Bass (1990) poderiam ser melhor evidenciados em uma pesquisa que envolvesse
também indivíduos identificados com o papel de liderados – na forma como esse
papel foi referido dentro da construção social da liderança.
A investigação partiu do princípio de que o universal presente no conceito pode ser
acessado a partir dos particulares. Nesse sentido, muito do que foi levantado sobre o líder e a
liderança o foram a partir do objeto particular escolhido. No entanto, como foi apresentado na
discussão, é parte da ideologia que constrói os conceitos de líder e de liderança aproximá-los
de outros construtos e deixá-los mais resistentes a uma conceituação única.
Sendo assim, uma comparação entre as categorias identificadas no histórico de
liderança dos indivíduos estudados nesta pesquisa com as identificadas no histórico de outros
indivíduos no papel de líderes (em outros grupos sociais na mesma região, ou de diferentes
culturas dentro do mesmo país, ou ainda de culturas nacionais diversas) poderia revelar outros
aspectos que poderiam ser incluídos na constelação de conceitos relacionados com a
liderança, e com eles evidenciar outras contradições no conceito – ficando essa abordagem
como sugestão para pesquisas futuras.
Uma última limitação importante, que não pode deixar de ser apontada, diz respeito ao
fato da pesquisa ter sido conduzida por apenas um investigador. Ainda que as escolhas e as
interpretações tivessem passado pelo crivo do orientador e da coorientadora, de acordo com
Wiggerhaus (2006) T. Adorno mesmo reconheceu as limitações relacionadas com as
pesquisas conduzidas por pesquisador único. Não é por outra razão que em muitos dos
pesquisadores que coordenam pesquisas orientadas pela teoria crítica de T. Adorno – como o
do Prof. Dr. Andreas Gruschka, de Frankfurt – o fazem através de um trabalho que é
437
executado por grupos de pesquisadores. Esse é, por exemplo, o modelo preconizado para a
aplicação da hermenêutica objetiva.
A tese, entretanto, é necessariamente o trabalho de um único pesquisador – o que torna
essa limitação, para essa pesquisa específica, algo mais difícil de ser superado.
7.2 Considerações finais
Ainda que resultado de uma construção ideológica – ou, talvez, por isso mesmo – a
liderança existe efetivamente no mundo como ele é hoje conhecido. Aprender com ela é
aprender sobre nós mesmos e sobre as nossas relações sociais. O que se pretendeu com a
investigação desta tese foi colaborar para a compreensão de um dos aspectos deste tema e,
consequentemente, de nós mesmos enquanto com o tema relacionados.
O que a aplicação do método também mostra é que, mesmo após todo o esforço
investigativo, o objeto permanece em suspeição, uma vez que fruto de uma construção
ideológica. Se algo foi iluminado pela investigação empírica, não se pode dizer que ao final
da pesquisa existem condições de afirmar o que ele é, em definitivo: outros aspectos foram
levantados como questionamentos a serem investigados, e é provável que muitos outros
questionamentos nem sequer foram levantados, em função das limitações apresentadas.
Por outro lado, não se pode deixar de registrar que, apesar disso, quando algumas das
conclusões da pesquisa foram apresentadas a alguns dos indivíduos dela participaram –
indivíduos, portanto, que têm experiência com as relações de liderança – identificaram nesses
resultados mais sobre a sua experiência pessoal com a liderança, do que haviam identificado
na literatura à qual até o momento tiveram acesso54
. O que revela a existência de um núcleo
de verdade no que foi identificado na pesquisa – ainda que temporal, ainda que relacionado ao
objeto de pesquisa, ainda que fruto de uma construção social que, como tal, poderia ser
submetida a uma outra reconstrução a qualquer momento.
Nesse sentido, vale lembrar que o conceito nem existia como algo identificado por um
nome até o início do século XX em nossa língua. E que, desde que foi identificado como algo
existente no mundo da prática, tem servido aos mais diversos interesses – talvez, por isso, a
resistência a uma conceituação, que o acompanha desde o início.
54
Comunicação pessoal, não registrada como parte da pesquisa
438
A experiência, inédita, com a utilização de um método orientado pela dialética
negativa de T. Adorno, para abordagem empírica de um objeto no campo da administração,
mostrou pelo menos que:
a) Se métodos positivistas podem ajudar a produzir informações a partir de uma profusão
de dados (pois, para organizá-los, a estatística descritiva é uma boa ajuda), é a partir
do que revelam que se pode encontrar as contradições – o que é excedente, o que
escapa entre os dedos quando se busca apreender o objeto. As formas utilizadas para
acessar esse excedente são diversas, e vão depender do objeto;
b) com os dados organizados é possível identificar o que é mais frequente, o mais
comum, mais habitual entre os dados produzidos. Em outros termos, isso nos permite
o acesso à coisa como ela se apresenta no mundo empírico;
c) por de ser o mais frequente, o mais comum ou habitual não quer dizer que o fato
observado seja o mais desejável, ou o melhor. Essa é uma questão de valor a respeito
do fato;
d) a lógica dialética pode revelar que o objeto social, sujeito a juízos de valor, é
contraditório. Se não for considerada a contradição, própria deste objeto, não se tem
acesso a uma parte do que se pode conhecer a seu respeito. Para isso, é necessário
encontrar formas de dar expressão às suas contradições. De outro modo, o que se
conhece é apenas parte do objeto;
e) se o objeto é uma construção social, e se está sujeito a um juízo de valor, o objeto
como se apresenta pode ser uma construção ideológica.
Conhecer o objeto significa conhecê-lo não apesar da ideologia, mas por causa dela.
Essa é a contribuição que a pesquisa pretendeu oferecer.
Ela está sujeita a revisões críticas, não por ser nova, mas pelo próprio fundamento que
a motivou. Pode ser apenas um passo em um longo caminho a ser percorrido.
Mas pretende ser um passo que ajude a percorrer o caminho.
439
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459
APÊNDICE A
Registros obtidos na reunião de junho de 2010, referentes às definições de liderança e
poder:
Os destaques em itálico são do autor desta tese:
(31) Poder: “Sou, como qualquer pessoa, parte do poder coletivo. Posso, em
determinado momento, estar à frente de um grupo como líder...”.
Liderança: “influenciar qual direção tomar, qual rumo tomar”.
(26) Poder: “capacidade de influenciar pessoas. Acredito que (eu) possua capacidade
de influenciar pessoas...”.
Liderança: “líder pra mim, então, seria aquela pessoa que conseguir, com prazer,
cumprir os objetivos do grupo”.
(16) Poder: “ordenamento e condução. Liderança e convencimento”.
Liderança: “quem está à frente da realidade ali, daquele momento, pra mim esse é o
líder”.
(6) Poder: “capacidade de decidir com autonomia sobre minha própria vida e
influenciar as decisões coletivas”.
Liderança: “uma das características principais é esse desejo de mudar, de querer
inovar, de querer mudar uma realidade [...] também essa habilidade de dialogar, de ouvir,
conversar, de comunicar essas ideias”.
(2) Poder: “capacidade conferida a uma pessoa, ou grupo de pessoas, de alterar uma
realidade”;
Liderança: “Capacidade... pra criar mecanismos de realização e tomada de decisões
que possam fazer a mudança, ou fazer com que os objetivos daquele grupo sejam
contemplados...”.
Para os que não foram entrevistados, registram-se apenas as definições de poder:
a) “Poder: capacidade recebida/adquirida em relação ao grupo social de influir nas
decisões. Eu exerço poder em vários ambientes em que tenho liderança”;
b) “poder: capacidade de obter o que se deseja, ou grau de influência nas diferentes
circunstâncias”;
c) “poder: é a capacidade de liderar pessoas...”;
460
d) “poder: fazer parte do grupo que define, que toma as decisões que afetarão uma
comunidade maior. Ter poder significa fazer suas ideias prevalecerem e influenciarem
o cotidiano de um povo, de um grupo numeroso”;
e) “poder: influenciar pessoas ou decisões”;
f) “poder: capacidade... para a realização dos seus desejos, impor sua opinião ou
executar suas vontades”;
g) “poder: está ligado ao exercício da liderança sobre grupos ou a massa”;
h) “poder: no plano individual, capacidade de realização. No plano social, posição
hierárquica”.
461
APÊNDICE B
Falas retiradas das entrevistas individuais, apresentadas para exemplificação dos
tópicos abordados na reunião de líderes de junho de 2012
Primeiro tópico:“O que é a liderança?”
As falas escolhidas para apresentação foram:
(2) “ser identificado pelas pessoas como alguém que tenha a capacidade de até... de fazer uma
síntese, né, de fazer um apanhado geral do sentimento que está permeando aquele grupo
social”;
(12) “aquele sujeito que com meia hora de conversa você acredita no cara: „esse cara tá com
boas intenções!‟ Necessariamente ele não tem que ser bem informado não, né? Mas então tem
nego que transmite isso – eu não sei explicar como é que é não”;
(15) “ele deve aglutinar e fazer com que todos trabalhando juntos façam, possam conseguir,
uma coisa maior que cada um sozinho não poderia construir...”;
(21) “liderança, em qualquer atividade que você esteja, ela tem que estar envolvendo outras
pessoas. E para você ter a confiança – eu acho que é isso o que é principal da liderança - é
confiança”;
(33) “é a capacidade de induzir nas pessoas a expectativa em relação a um caminho... [...] eu
entendo que a função fundamental no líder é o rumo, é o direcionamento”;
(34) “então, a liderança é determinada pela circunstância. O herói é o cara que não conseguiu
fugir”;
(8) “nossa situação era de não valer nada pro... pro serviço público. E aí surgiu... Surgiu esse
movimento nacional, eu puxei isso num certo momento [...] eu diria que foi uma questão
pontual, que eu me identifico com [causa x] [...] então nesse momento eu me tornei um líder...
Talvez pela falta de outro... Diria, não... não tem ninguém que se dispunha a uma exposição, a
um sacrifício que a situação exigiria [...] agora, nas outras situações de vida eu nunca vivi
nada parecido com isso, que me motivasse a... A juntar as pessoas e fazer qualquer coisa...”.
Segundo tópico:“Líder ou gestor?”
As falas retiradas das entrevistas, escolhidas para apresentação, foram:
462
(5) “cargo... cargos que... que tem liderança... não é a mesma coisa. Não é de se esperar que
todo mundo que está nos cargos tenha capacidade de liderança, né?”
(13) “[...] mas se colocar uma pessoa na chefia... e na verdade aí existe uma diferença que eu
aprendi com um grande tio meu, irmão de meu pai, o líder é diferente de chefe, [fulano] sabia
chefiar, mas nunca foi líder.
(12) “[...] é... é eu não sei falar como é que certas pessoas chegaram a ocupar determinados
cargos, porque o sujeito não representa nada e... e principalmente tem muito nego que... que
pra ser líder, ou pra aparecer como tal, ele tem que demonstrar força, né? [...] mas líder, líder,
no nosso meio não é muito não... na minha cabeça não é muito não [...] O que aconteceu é o
tal do vácuo, entra no vácuo e vai embora”;
(22) “[...] tem que saber bem o que que você está perguntando: se é sobre o sujeito que
organiza uma atividade de grupo... ou, sei lá... coletiva, né, ou aquele indivíduo que está num
cargo de chefia, de mando, coisa assim...”;
(10) “e essa dificuldade de coordenar, a gente colocava muito na situação... sem preparo isso
aí me levou... me obrigou a procurar formas de atuar de forma mais adequada nisso, então,
né... com isso eu fui procurar uma habilidade, procurar cursos no mercado de liderança [...]
tive a necessidade de buscar essas habilidades”.
Terceiro tópico: “Como se identificar um líder?”
As falas retiradas das entrevistas, escolhidas para apresentação no grupo, foram:
(10) na [organização x] que também entrei... não lembro quando começou a [...] que eu fui na
primeira reunião... acho que era 90, 88... que tinha umas quatro pessoas lá – e eu achava que
tinha que ser convidado para ir – e como eu ia... eu fui pra ver como que funcionava... que eu
cheguei lá não saí mais, fui três vezes presidente da [instituição x], agora diretor da
[instituição y] também e também da [instituição z]. Porque faltam pessoas pra isso, né? O que
a gente observa é isso, você está, você aparece um pouquinho (risos), vem alguém e te pega
pra participar de atividades, que é realmente uma falta terrível, né?”;
(27)” [...] as coisas não estavam dando certo, alguém precisava tocar aquilo e... de repente nós
começamos a frequentar e tentar entender aquilo. Por eu estar talvez mais presente e...
interesse pelas coisas e participar e estar nas reuniões e perguntar e me interessar por aquilo,
pelo... pelas coisas que estavam acontecendo no dia-a-dia é que foram aparecendo
oportunidades pra estar também... E outra coisa foi o momento de ter poucas pessoas
463
envolvidas [...] E eles começaram a... como pode fazer, eleger uma nova diretoria. E como eu
estava na frente disso, quem vai, vamos comigo? E começamos lá”;
(3) “[...] na minha vida inteira nunca participei de... sempre o pessoal quer me colocar nos
lugares. Eu nunca procurei... por exemplo, nunca fiz um trabalho „eu quero ir pra [...]‟ [...] eu
vim a ser diretor sem querer aquilo, quando me pediram pra ser presidente eu até queria
continuar diretor... eu tinha feito um trabalho que eu achei interessante [...] eu acho que queria
continuar como diretor... o pessoal queria me colocar como presidente. Então entrei para
presidente relutando pra ser presidente. Se tivesse... ninguém aceitou o osso, só tinha que ser
eu [...] Não sou de oratória, não sou político desse tipo, não faço... minha política era a gente
fazer esse trabalho [...]”;
(15) “as pessoas esperam que você tenha, é... atitudes por elas, assim, condutas, definições
que muito mais ligadas ao cargo que você ocupa... pelo menos no meu caso... do que mesmo
por uma... uma vontade de exercer talvez a... a liderança. Isto é, acho que tem pessoas que são
talhadas para isso, querem isso, procuram isso, né? E... e se alimentam disso. Outras, como no
meu caso, acho que a liderança veio de maneira indireta, parece que você está disponível para
exercer esses papéis e, quando exercidos, procura exercê-los da melhor maneira com aqueles
valores [...] assim eu... é acho que muitas das chefias e lideranças que eu exerci eu te diria que
caíram no meu colo, eu não vinha deliberadamente procurando isso”;
Quarto tópico: “Liderança e a sua relação com os interesses, com a independência do líder e
com uma possível „exploração‟ do líder pelos liderados”.
Foram escolhidas as seguintes falas para apresentação:
(29) a cota da direção é do [partido x] [...] (fulano) ganhou a eleição e me convidou para
voltar a ser diretor [...] me assediou falando que tem gente que não gosta de mim, mas a
maioria me adora... Aí eles falaram: não, mas você vai continuar... Mas as diretrizes do
partido vão ter que ser cumpridas, inclusive o comparecimento nas reuniões para as quais o
partido convocá-lo... Eu falei: então eu peço demissão é agora... Não dá, incompatível, eu iria
virar refém de um partido político. E eu admiro o [partido x], tem uma história gloriosa [...]
mas não tenho saco para ficar em reuniões, fazer boca de urna que eu acho um absurdo,
ultrajante, no dia da eleição eu ficar tentando ganhar um voto do meu vizinho com toda aquela
sedução, com papel na mão... boca de urna... eu teria que me prestar a esse tipo de coisa...”;
(24) “o líder é... é... é a pessoa que... que... tem o falso líder e o verdadeiro líder, né? É... o
líder não pode depender do cargo que está ocupando. Ser ele estiver ocupando um cargo para
464
sobrevivência dele, o líder... ele não pode... é... ter interesse diferente da pessoa que ele
representa”;
(8) “eu também já estava no cheque especial, ou seja, eu acreditava tanto no projeto que eu fui
consumindo as reservas. [...] depois que alguém se sobressai e mostra que é capaz de se expor
em nome dos outros... porque o colega quer é que você se ferre em nome dele. Então hoje eu
sei disso com muito mais clareza; inclusive, nunca mais me iludi também, aparece um que
seja louco maluco a ponto de pôr em risco uma carreira... eu fui ameaçado por ministro [...] a
relação é muito perversa, não é... você não tem... Pra você ser líder, você tem que ser maluco,
tem que estar disposto a tudo – eu me dispus até a morrer, Zé... Torcia pra ser preso pra
ganhar capital político... não tinha... não estava nem aí... É um período meio de loucura pra
conseguir o que eu liderava”;
(19) “[...] as pessoas estavam, todo mundo, na zona de conforto, né? Então, assim, deixa ele,
deixa ele tomar a liderança e resolver. E resolvia, né? Pegava pra resolver e resolvia [...] eu
acho que as pessoas... quem têm o tipo de personalidade que eu tenho, eu acho que é... existe
um jogo de sutilezas, tanto em casa como na... na... na área profissional. As pessoas sabem
como conseguem as coisas de você, né? [...] tem gente que é mestre nisso, né? Tem gente que
se aproxima de você e ela sabe exatamente qual... qual é o jogo de poder que ela tem que
utilizar com você pra você sair correndo fazendo as coisas”;
(6) “não, até assim... é estranho quando as pessoas falam assim... você sacrifica muito... Não,
pra mim eu sempre é... por mais que eu tenha deixado, às vezes, minha família, é claro que
me incomodava, às vezes, num ir, tal, mas aquilo, se eu colocasse que a... a soma das
vantagens era muito maior que as desvantagens, né? É assim, num... num faria... não me
arrependo de nada que eu fiz por ter feito isso, não acho assim. Eu recebi, foi... foi... me
pagaram pra eu fazer”;
(30) “[...] as pessoas mais articuladas, eu vejo hoje, as mais articuladas, elas procuram
associar a questão da liderança com remuneração. Então essas duas coisas são importantes,
você procura... e é natural isso... você procura aquele cargo que ele te dá mais projeções, mas
junto com uma questão de remuneração. A não ser que essa questão de remuneração já está
resolvida, então o cara já está aposentado, largou tudo então ele quer só o glamour, entendeu?
Mas normalmente você procura a associação da remuneração com o... o poder [...] ele entra
nessa fogueira, mas almejando que dali ele dê um salto para uma coisa que seja destaque e
remuneração [...] Você pega um cara que é um... um executivo na empresa x, ele vai
caminhando nessa empresa, ele vai caminhando, ele tem uma liderança nessa empresa, ele vai
caminhando [...] e se ele aqui está vendo espaço em outras empresas, então ele consegue fazer
465
a sua liderança com remuneração justa e ele muda pra outra com remuneração boa, às vezes
pode ser até menor, mas com uma projeção maior [...]”;
Quinto tópico: “O líder pode ser nato ou ele é desenvolvido?”
As falas escolhidas para apresentação foram:
(13) “eu sempre tive isso em mim – uma coisa meio inata...”;
(30) “a liderança é uma coisa que ela... Ela pode ser trabalhada, né, mas a verdadeira
liderança, ela é nata... Que a pessoa que é carismática, ela não consegue.... Um líder, ele pode
assumir uma condição de liderança e tudo, mas ele... Ele tem que ter... Eu acho que um fator
aí, até de personalidade, um fator aí realmente nato em relação a isso”;
(34) “não tem nada que você pode virar e falar: „Não, fulano tem o dom‟. [...] se o cara não
treinar, não tem jeito [...] Então você vai adquirindo um traquejo com a oratória, né, que na
política é a arma principal, e você se torna extremamente perigoso. E eu tinha uma facilidade
de oratória muito grande”;
(34) “no congresso de [profissionais x] no Rio de Janeiro, na plenária final, a gente não
conseguiu deixar o (fulano) intervir em nenhuma defesa, porque ele não tinha desempenho de
oratória pra fazer uma defesa de três minutos no plenário. Ele ficava gaguejando, não
conseguia... Hoje é governador do [estado x]. Então, tudo você aprende. Não tem esse
negócio: „Ah, eu tenho o dom!‟ Dom o cacete...”
A esse conjunto foi acrescentado mais um slide:
“Nato? Desenvolvido? Distúrbio??”
Cujas falas utilizadas para exemplificação foram:
(29) “a personalidade... deve ter algum distúrbio. É, ele deve ser enquadrado em algum
daqueles quadros de psicopatologia, você pode ler no Jaspers , aquele alemão, que ele está lá
[...] todos os grandes líderes militares, eles tinham um motivo de distúrbio comportamental,
tinha algum tipo de carência que ele remete à primeira infância...”;
(8) “pra você ser líder, você tem que ser maluco, tem que estar disposto a tudo – eu me
dispus até a morrer, Zé... Torcia pra ser preso pra ganhar capital político... não tinha... não
estava nem aí... É um período meio de loucura pra conseguir o que eu liderava”.
466
Tópicos formados por uma “constelação” de falas
(que estão apresentadas no APÊNDICE B) seguidos dos textos escritos escolhidos,
referentes à percepção do participante sobre o que foi apresentado.
Primeiro tópico:“o que é a liderança?”
Os comentários escritos escolhidos, referentes a este tópico foram:
(2) as falas vão no sentido de “eu não queria... me colocaram lá”. Não acredito
nisso. As coisas são consequenciais, portanto, quem participa necessariamente
assume posições. Dizer “eu não queria” é uma forma de colocar a liderança como
sacrifício, quando ninguém é líder por acaso;
(4) vejo que o conceito de liderança não é algo consensual, às vezes particularizado
e incompleto;
(5) a ideia de liderança inclui a oportunidade (momento) e o contexto
(circunstância). Os atributos individuais e a capacitação do indivíduo agem
secundariamente, influenciando o modo, a forma de exercício.
(17) há um “contraponto entre alguém que se acha líder e vai mobilizar um grupo
para se tornar chefe e o grupo que escolhe um líder para centralizar as ideias desse
grupo;
(31) há alguns atributos da liderança que são comuns à grande maioria [...]:
confiança conquistada no grupo, capacidade de visão de futuro e privilégio do
coletivo;
(a) qualquer um pode ser líder, independentemente da pessoa que é. O importante
para o grupo seria saber identificar quais são esses líderes, em que contexto está a
liderança e como saber aproveitar essa capacidade de cada um em cada situação;
(c) o líder é determinado, “gerado” pela situação da qual ele não fugiu: “Why are
you a hero? Cause there was no one else to do the job, Duro de matar 4”;
(i) depende do momento que o “líder” se apresenta como tal [...] A liderança não
seria absoluta, mas compartilhada com outros líderes;
(j) lembrou-me aquela fábula dos cegos, conhecendo e examinado um elefante, cada
um tateando uma determinada parte e tendo impressões bem distintas do que seria
liderança;
(l) está dando a sensação de que a liderança é mais do que o indivíduo “líder” em si,
de sua capacidade e mérito e de seu caráter.
Segundo tópico:“líder ou gestor?”
As anotações escolhidas como sendo as mais relevantes neste tópico foram:
(4) dentro de uma organização, uma situação muito boa é quando o gestor também é
um bom líder;
(5) a função gerencial pode ser exercida também por quem lidera;
(31) ao comparar líder e gestor, as pessoas veem apenas o chefe, o comandante, o
poderoso. Será que, no íntimo, é esse líder que as pessoas querem? (grifos do
participante);
467
(a) o líder pode não ser um gestor. O gestor tem que liderar e fazer, pode não ser um
grande líder mas precisa liderar;
(c) líder e gestor não foram vistos como sinônimos (e não são mesmo). Mas pode-se
aperfeiçoar nos cargos – de gestor principalmente (fazer cursos, etc);
(f) um líder consegue ser um grande gestor, mas o contrário, às vezes, além de
conflitante, torna-se o “dificultador”;
(g) líder ou gestor? Difícil desvincular.
Terceiro tópico: “como se identificar um líder?”.
As observações mais relevantes foram:
(2) As falas vão no sentido de “eu não queria... me colocaram lá”. Não acredito
nisso. As coisas são consequenciais, portanto, quem participa necessariamente
assume posições. Dizer “eu não queria” é uma forma de colocar a liderança como
sacrifício, quando ninguém é líder por acaso;
(5) na maioria das vezes reconhece-se um líder por ele já ser considerado líder. Não
é predição, é constatação;
(15) é através do que fazem (ou fizeram) e não através do que dizem de si;
(31) o líder, ao falar de si mesmo, exprime uma modéstia falsa, relutando em admitir
o desejo de ser líder. Ora, ninguém é ungido a líder, e aquele que nega a pretensão,
principalmente após sê-lo, faz uma representação caricata;
(a) existem poucas pessoas que se dispõe a tomar a frente de alguns trabalhos. E
quando alguém se dispõe a falar e aparece em determinadas situações, acaba se
tornando uma “liderança”, mesmo que falte a ela algumas características para
exercer uma verdadeira liderança. Ou existem lideranças “temporárias”;
(f) torna-se um líder, mas em alguns momentos inclusive houve um
“questionamento íntimo” dessa situação em termos de “veracidade”;
(i) em momentos de crise o líder surge naturalmente.
Quarto tópico: “liderança e a sua relação com os interesses, com a independência do
líder e com uma possível „exploração‟ do líder pelos liderados”.
As anotações escolhidas, consideradas as mais relevantes sobre este tópico, foram:
(2) Há uma ou várias compensações na questão da liderança. Ainda que não haja
remuneração ou ela seja baixa, ninguém está em posição de liderança contra a
vontade;
(4) A dependência, principalmente financeira, pode gerar dificuldades na condução
dos processos. O mesmo pode acontecer quando há dependência de instituições
como citado;
(17) Liderança tem que ter independência. Caso contrário você fica refém da
remuneração e também refém do grupo;
(31) Existe um conflito grande do líder entre o sacrifício a que se submete
(financeiro, profissional, pessoal) e os ganhos advindos da atividade de liderança
(remuneração, projeção, status), mostrando que na maioria das vezes a causa é só
pessoal;
(a) [...] no fundo, todo líder quer ter uma recompensa. Às vezes a visibilidade e o
reconhecimento são mais importantes que a recompensa financeira. Hoje, nas
468
pessoas que estão no dia-a-dia das lideranças do grupo eu percebo uma maior
preocupação pela boa remuneração como fator importante para o bom trabalho;
(b) a impressão é de que o líder não deveria depender da remuneração para exercer o
seu papel, mas a maioria tem que buscar alguma forma de conciliar suas
necessidades pessoais, familiares, com as necessidades, demandas, coletivas;
(c) a projeção social da liderança e a remuneração são vistas de formas diferentes;
(d) o líder não deixa de liderar se ele tem esse ou aquele interesse. Por trás da sua
liderança pode sim estar camuflado outros interesses pessoais. Isso não anula a sua
capacidade de liderar para o bem ou para o mal.
Quinto tópico: “o líder pode ser nato ou ele é desenvolvido?”. A esse conjunto foi
acrescentado mais um slide com falas no sentido: “líder: nato? Desenvolvido? Distúrbio??”
As observações registradas escolhidas sobre esse tópico foram as seguintes:
(5) A liderança é um exercício, não um atributo;
(15) Todas as características são desenvolvidas [...] As situações da vida dirão o
quanto cada um vai se empenhar em crescer;
(a) existem pessoas que têm características natas [...] existem pessoas que se
formam [...] e também existem aqueles que tentam aprender a ser líder, mas como
não têm características natas não conseguem ser verdadeiros líderes e sustentar a
liderança;
(b) acho que é uma combinação dos dois. Mas muitos acham que é psicopatologia!;
(e) a capacidade de liderança é inata, porém, de acordo com as situações
vivenciadas, ela necessita de lapidação55
;
(i) o líder tem que aprender habilidades como falar bem, expor ideias com clareza e
saber ouvir os liderados. Não adianta “gritar” e se considerar líder (grifo do
participante);
(l) fica uma sensação que liderança é muito mais treino, prática e estudo, embora
talvez haja também um fator pessoal “endógeno” (grifo do participante).
Anotações das falas individuais dos participantes, sobre o que cada um achou mais
relevante dentro do conjunto apresentado dos tópicos envolvendo o tema da liderança
(2) Me chama atenção estas falas “eu tava aqui”, “eu não pedi nada e caiu no meu
colo”... isso não existe. Na prática nada acontece por acaso, você está presente numa
reunião e isso traz consequência acho que isso não existe. É um jeito de se esquivar;
(x) Sobre estas falas de não querer, não é bem assim, às vezes sem querer nós nos
insinuamos, as pessoas se expõem, mesmo sendo difícil, não é muito gratuito. Pode
não ser plenamente intencionado, mas há uma busca. Agora algumas coisas podem
ser desenvolvidas, as pessoas que conseguem desenvolver essas características, isso
faz delas uma liderança;
(26) O que me chamou atenção é que não tem um padrão do que é ser líder. Cada
fala entende de uma maneira e cada fala está tentando se justificar. Como não existe
um padrão do líder, existem vários tipos, de grupo que escolhe. Acho que tem muito
mais a ver com o que o líder permite e o que o grupo escolhe. Acho que há sempre
55
O termo “lapidação” foi usado por outras três pessoas cujos relatos não foram incluídos aqui por serem muito
genéricos e/ou estarem bem dentro do senso comum. De qualquer forma, chamou a atenção a força imagética do
termo para boa parcela dos participantes.
469
um ganho pessoal, mesmo que não seja dinheiro. Sobre o fato de ser explorado, não
existe os explorados, os independentes, os bons ou ruins, existem pessoas com
capacidade de liderar e grupos que escolhem se coincidir será líder, gestor e líder.
Liderança algo não fácil, tem que ter dedicação e disponibilidade. Se não tiver
disponibilidade do líder de liderar e do grupo de escolher, o líder não acontece;
(b) as coisas são multifatoriais – ouvi um olheiro de futebol que contou como
avaliava os jogadores: via a maneira como o jogador reagia quando a bola batia no
seu pé, se ele olhasse em torno era bom, se olhasse para a bola era perneta. O que
tem de nato e de desenvolvido nunca é uma coisa só. Existem histórias diferentes.
Algumas composições dão certo e outras não. Tem um pouco de cada coisa: a
pessoa certa, no lugar certo e na hora certa;
(17) O grupo tem que ter um líder e este só existe se tiver um grupo. Não existe esse
líder vitimizado, concordo com (b). “Sobrou pra mim” é um jeito de justificar, mas
isso não existe... Tem que ter cuidado pra não olhar pro umbigo, mas trabalhar com
as ideias do grupo. Tem que ter cuidado com ética, senão fica só corporativista. Se
existe alguma capacidade individual, ela pode ser polida;
(y) Dá exemplo de cena de filmes: tem uma fila e alguém pergunta quem se dispõe a
ser um voluntário? Todos dão um passo atrás e o bobo fica na frente. Liderança não
é isso. Gestão e liderança são diferentes – o que está envolvido nisso é respeito.
Achei estranho que ninguém falou disso. Acho que isso é condição o liderado ver
respeito no líder. Acho que liderança deve ser construída, mas do zero é muito
difícil. Pode ter mais características inatas, mas se não desenvolver... (dá o exemplo
de Lula);
(z) Essas ideias refletem o que o mundo conhece como liderança, o que todos veem
como liderança. Há a fábula do cego e do elefante na qual cada um olha apenas uma
parte sem ver o todo. Nem se você juntar todos os heróis da Marwin você não
consegue ver tudo que se espera de um líder. Um projeto, quando começa, exige
uma característica, cada etapa exige um tipo diferente, no meio alguém que organiza
e no fim um sargentão para terminar;
(31) Achei interessante porque parecia uma terapia: o primeiro slide era o que se
entende como liderança, confiança, percepção do grupo, líder ideal. Nos demais foi
completamente oposto. Começou a mostrar que a teoria na prática é outra. Depois
da comparação com a independência apareceu uma falsa modéstia, como se fosse
herói mesmo, sacrifício... sacrifício remunerado em dinheiro e em posição social,
uma coisa muito católica cristã: Jesus Cristo se sacrificou, se doou, etc. E aí tem a
hipocrisia tanto dos líderes como dos liderados . É líder, mas não afirma que quis,
que se preparou, que ele ganhou. É obvio que ele trabalha para ser líder, trabalha
essas características dentro do cenário para ser o líder que sempre quis ser. O
cenário é importante, mas ele também altera esse cenário, ele tem responsabilidade
pela construção desse cenário;
(h) Líder e gestor têm características diferentes. Liderança tem que ter ouvidos
abertos para o que está sendo a demanda, mas muitas vezes tem que discernir
porque às vezes vem ódio. Você tem que saber ... o líder, ele tem algo que o inquieta
senão não estaria ali. Ele antecipa o que está vendo, vai para ação e aí os outros
acompanham porque ele se coloca na função que não é dele, mas do grupo. Sobre
remuneração, acho importante que ele seja bem remunerado para sustentar as ideias
com independência;
(w) É uma capacidade que alguns têm mesmo: são pessoas mais argutas, rápidas e
percebem mais e vão melhorando essas características, se expõem e conseguem
detectar as necessidades de um grupo. Se ela consegue sintetizar e dominar o que o
grupo precisa, mesmo que diga que foi colocada, é ela que se coloca e o grupo
identifica, ela tem um uma característica particular;
(i) O líder em momentos de crise vê luz no fim do túnel e em calmaria não deixa
parar. Não nasce, mas se desenvolve. [Sobre] A independência: quem não abandona
a sua posição, seu trabalho de base, é muito mais independente que o que é só
remunerado pela função de liderança;
470
(15) Líder vem do inglês leader – significa guia chefe – guiar, chefiar é liderar. A
gente imagina que não, mas não tem jeito de ser líder sem guiar. Em latim autoritas
existem várias maneiras autocráticos, autoritários e ate laissez faire. Às vezes as
pessoas têm modéstia e se põem como líder para se livrar de um abacaxi. Há um
terreno fértil e um desenvolvimento, é um encontro da oportunidade com a
preparação;
(t) Líder capacidade de aglutinar várias pessoas e o determinante é a confiança. O
líder une, o gestor comanda. O gestor planeja e cumpre a missão dos objetivos
comum. É preciso desinibição e magnetismo pessoal;
(16) Tenho tido oportunidade seguindo meus filhos na escola de ver como se dá essa
questão de liderança. E vejo como algumas pessoas têm isso de forma mais nítida,
alguns que por comodidade vão se deixando levar e outros que vão levando se
firmam como líderes. Não tem como assumir liderança sem se pôr em riscos;
(g) Todos buscam ser felizes, a busca da felicidade é muito importante. Líder é
aquele que conquista capacidade de escutar e estimula os liderados a buscar a
soluções e ajudar na busca de resultados. Se não, não consegue caminhar. Tem que
formar um time, tem que ser desenvolvida atitude, vontade e coragem. São três
palavrinhas, mas isso pode ser desenvolvido. O poder é o colocado e a autoridade
conquistada. São coisas diferentes, e esta última é conquistada. Falar que foi “posto”
(como líder), não é assim... Tem pessoas diferenciadas que já nascem líder, mas tem
que ter qualificação;
(f) Às vezes o sacrifício é inerente, faz parte. Não acho pejorativo essa fala que o
herói não conseguiu fugir da luta;
(u) Quando cai no colo pode ter sido ou não por acaso. Às vezes começa como
pitaqueiro, aí começa a se destacar. O que tem que ver é que ele tem alguma
capacidade e aí tem que ser lapidado e aí ele vai conduzir aqueles que o escolheram.
Às vezes se torna um gestor;
(h) falou da questão financeira, fica exposto à corrupção e todos são corruptíveis
depende do preço. Ele tem que fazer alguma coisa diferente dos que lidera;
(27) Existem pessoas com características mais marcantes que têm mais facilidade de
se destacar e outras que vão sendo desenvolvidas desde a infância. Achei muito
interessante porque reflete o que a gente vê nos grupos. A gente vê que tem que
buscar essas lideranças, essas capacidades que podem ser desenvolvidas. É por isso
que reunimos. A questão da gestão, é importante, tem que saber fazer isso. Tem
pessoas que são muito mais gestores que líderes mesmo.
(4) A questão da liderança, a discussão é mais ampla, a gente vê a variação (e
mostra a apresentação que foi feita das diversas falas) – para mim é aglutinar e levar
numa direção. A gente é liderança e já vivemos sob a liderança... as circunstâncias
são muito importantes... Me lembrei de Hitler, que teve a capacidade de aglutinar
pessoas, mas com as ideias dele. Mas foi um líder. Vejo diferença entre gestor e
líder: acho que o líder nasce com capacidades e têm que ser trabalhadas desde a
infância na escola, na vida. E claro que temos que ser desenvolvidos, por isso nos
reunimos aqui há muitos anos. E tem que ter independência;
(s) parece que colei do (4). Acho que liderança tem um pouco de natural e muito de
preparação (dá o exemplo do ex-deputado Demóstenes Torres). Líder pode ser para
o bem ou para o mal, mas é líder;
(r) já fui dominada pelas falas: psicopatas são carismáticos e conseguem liderança;
(q) a autoridade é concedida: um concede a outro. De forma coletiva, mas
individualmente. Nem todos pelo mesmo motivo. Os motivos que levam alguns a
ceder autoridade, o líder consegue captar. Cada turma tem seus líderes – são
forjadas – no sentido que aqui tem que estar lidando com a possibilidade da
liderança do outro e estimular, correr o risco. Ele tem que ter independência mais
que autonomia;
(5) Do ponto de vista do conceito de liderança, ela não é quase nunca preditiva, ela é
quase sempre uma autópsia. Vemos as pessoas que exercem ou exerceram liderança
e aí descrevemos as características. Tem muito a ver com as circunstâncias.