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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Facundo Guerra Rivero Tecnologia e política: o voto e seu suporte DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Facundo Guerra Rivero

Tecnologia e política: o voto e seu suporte

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Facundo Guerra Rivero

Tecnologia e política: o voto e seu suporte

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de

São Paulo, como exigência parcial para

obtenção do título de DOUTOR em

Ciências Sociais, sob a orientação da

Professora Doutora Silvana Tótora.

SÃO PAULO

2012

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Banca Examinadora

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Vanessa e Pina. Minhas peles.

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AGRADECIMENTOS

Antes de tudo, a todos os autores que produziram os textos que me guiaram tese

afora. Esta tese não é um texto, mas vários deles, articulados segundo minha

vontade, e nunca poderia prescindir dos escritos produzidos antes de sua

concretização.

Ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Vera

Chaia e Miguel Chaia, professores que participaram de minha qualificação. Obrigado

por me fazer seguir em curso, Vera, e pelas palavras de incentivo, Miguel. Creio que

não teria terminado esta tese sem o apoio de vocês.

Vanessa, meu devir-mulher, por estar ao meu lado.

Edson Passetti, faísca deste escrito.

E acima de tudo e todos, Silvana Tótora, que, em meio a águas revoltas, interessou-

se pelo meu trabalho e seguiu ao meu lado até a conclusão do mesmo, ainda

quando eu julgava impossível de dar cabo dele. Sem você eu teria desistido,

Silvana. Saiba disso.

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RESUMO

Este trabalho tem por objetivo estudar o voto em diferentes períodos históricos da

sociedade brasileira, com maior ênfase na sua configuração atual, o voto eletrônico,

e entender como o voto eletrônico se relaciona com uma configuração de sociedade

que Gilles Deleuze chamou de sociedade de controle, segundo o corolário que

mantém esta configuração social em pé: a confiança, a participação e a segurança,

bem como estudar as relações entre o mecanismo do voto e suas consequentes

possibilidades de controle de uma população, sua relações com a democracia

representativa, o voto como um vetor de diagrama de controle ou dispositivo de

poder.

PALAVRAS-CHAVE: Voto eletrônico. Sociedade de controle. Democracia

representativa. Eleições. Voto obrigatório.

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ABSTRACT

This study aims to study the vote in different historical periods of Brazilian society,

with greater emphasis on its current configuration, the electronic voting, and

understand how it relates to a society that Gilles Deleuze called the control society,

according to the corollary that maintains this social configuration standing: trust,

participation and security, as well as study the relationship between the mechanism

of the vote and the possibilities of controlling a population, its relations with

representative democracy, the vote as a vector diagram of control or power device.

Keywords: Electronic voting system. Control society. Democracy. Elections.

Compulsory vote.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 8

CAPÍTULO 1 – GENEALOGIA DO VOTO NO BRASIL 19 1.1 A ORIGEM MESQUINHA 19 1.2 O VOTO COMO AGENCIAMENTO 20 1.3 BREVE HISTÓRIA DO VOTO NO BRASIL 21 1.3.1 CORONELISMO E O VOTO DE CABRESTO 27 1.3.2 OS NOVOS CORONÉIS 32 1.4 O VOTO DE CABRESTO 34 1.5 O VOTO NO PERÍODO PÓS-GETÚLIO VARGAS 41 1.6 O VOTO BRANCO E O VOTO NULO 47 1.7 O ABSENTEÍSMO 61 1.8 O VOTO OBRIGATÓRIO 66

CAPITULO 2 – TECNOLOGIAS DE VOTAR: GENEALOGIA 74 2.1 VOTOS POR MANIFESTAÇÃO DIRETA DO ELEITOR 77 2.2. A CÉDULA DE PAPEL 79 2.2.1 A CÉDULA AUSTRALIANA DE VOTO 82 2.3 MÁQUINAS DE VOTAR OPERADAS POR ALAVANCAS 87 2.4 CARTÕES PERFURADOS 93 2.5 CÉDULAS PREPARADAS PARA RECONHECIMENTO ÓPTICO 102

CAPITULO 3 – O VOTO ELETRÔNICO NO BRASIL 109 3.1 A MÃO FORTE DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL 113 3.2 A URNA ELETRÔNICA BRASILEIRA 123 3.2.1 O PROCESSO DE FUNCIONAMENTO DA URNA ELETRÔNICA 129 3.2.2 COMO FRAUDAR A URNA ELETRÔNICA BRASILEIRA 142 3.2.3 CASOS DE FRAUDES DE ELEIÇÕES QUE SE REALIZARAM ATRAVÉS DE URNAS ELETRÔNICAS 147 3.2.4 A URNA ELETRÔNICA NO EXTERIOR 156 3.3 A URNA ELETRÔNICA NO EXTERIOR – O CASO ESTADUNIDENSE 163

CAPITULO 4 – OS DESDOBRAMENTOS DA URNA ELETRÔNICA NO BRASIL E NO MUNDO 169 4.1 A URNA BIOMÉTRICA BRASILEIRA 173 4.2 O VOTO REMOTO TRANSMITIDO ATRAVÉS DA INTERNET 184 4.2.1 FUNCIONAMENTO DO I-VOTO 189 4.2.2 CLASSIFICAÇÃO DOS SISTEMAS DE VOTO PELA INTERNET 191 4.2.3 VANTAGENS E DESVANTAGENS DO I-VOTO 194 4.2.4 A FRAUDE NO I-VOTO 198

CONCLUSÃO 202

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 205

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INTRODUÇÃO

Uma vez que a tecnologia transformou e continuará por transformar todas

as esferas da vida social, é inegável que, se a mesma é social antes de ser técnica,

como disse Deleuze1, ela acabará por impactar profundamente na maneira como

multidão e Estado se relacionam. Essa membrana entre política e tecnologia, que

muitos chamam de “cyberpolítica” ou “tecnopolítica” (prefiro o último termo) é meu

campo de interesse.

Por tecnopolítica entenda-se este complexo terreno político do século XXI

criado pelo choque da política e da tecnologia e decorrente da prática estratégica de

desenhar ou usar dela para constituir, encarnar ou promulgar objetivos políticos.

Historicamente a tecnologia – e aqui tal definição não está restrita apenas ao campo

do “virtual”, do “digital” ou do “eletrônico”, mas pensada em um sentido muito mais

amplo, de ferramenta, não importa sua constituição – e a política têm sido

enredadas, com maior ou menor ênfase, em maior ou menor escala. Nos últimos

anos, no entanto, período que coincidiu com o que Deleuze conceituou por

sociedade de controle, tal produção parece ter acelerado a tal ponto de merecer um

campo de estudo e produção própria.

Desde o Iluminismo, a promoção da democracia e o desenvolvimento de

novas tecnologias têm sido intimamente associados a ideias humanistas sobre o

“progresso” e “modernidade”. Novas tecnologias de mídia, da invenção da imprensa

à internet, foram identificadas como campos de luta ideológica e acompanhadas

com grande esperança pelo seu potencial de proporcionar ferramentas não só no

nível de informação, mas efetivamente de combate a esse novo poder, que opera

pelo mesmo diagrama. Cabe a pergunta: neste encontro entre política e tecnologia,

que forma um novo campo de forças, como poder e controle se reconfiguram, uma

vez que o par indissociável operará no mesmo diagrama?

1 DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2004. 2 “E no entanto [...] um pouco de possível, senão eu sufoco [...]” - DELEUZE, 2000, p. 131. 3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da

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Em meu estudo anterior, “Política e resistências protocolares: torções e

reforços no diagrama da sociedade de controle”, preocupei-me em encontrar o

pouco de possível sem o qual Deleuze sufocaria2. O trabalho se ocupava então de

como a resistência da máquina de guerra contra o aparelho de Estado se

configuraria neste novo campo de embate e pensava o ato de resistir neste início de

milênio. Discutia também as configurações atuais da máquina de guerra e do

aparelho de Estado, as estratégias de controle atuais e seus efeitos, isso porque

pretendia entender um tipo de resistência contemporânea possível. Ora, como fazer

isso sem as relações de poder na sociedade de controle?

Poder e resistências são indissociáveis: onde existe um, encontram-se os

efeitos do outro. Não por uma relação de causa e efeito mecanicista e simples, mas

porque as relações de poder

não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam [...] o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a apreensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder.3

Não face e verso de uma mesma moeda, mas efeitos distintos das

relações de poder. O poder que atravessa os corpos precisa das resistências destes

para se fazer exercer. No entanto, em meu trabalho anterior a face “poder” desta

relação recebeu uma menor atenção, porque o objetivo daquele era encontrar a

expressão de resistência contemporânea.

Neste trabalho, que julgo, com seis anos de distanciamento, menos

ingênuo e mais técnico que o anterior, ater-me-ei à parte “poder” do binômio que

tanto me interessa.

Este trabalho tem por objetivo estudar o voto em diferentes períodos

históricos da sociedade brasileira, com maior ênfase na sua configuração atual, o

voto eletrônico, e entender como o voto eletrônico se relaciona com uma

configuração de sociedade que Deleuze chamou de sociedade de controle, segundo

o corolário que mantém esta configuração social em pé: a confiança, a participação

2 “E no entanto [...] um pouco de possível, senão eu sufoco [...]” - DELEUZE, 2000, p. 131. 3 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da

Costa Albuquerque. 15. ed. São Paulo: Graal, 2003a. p. 91.

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e a segurança. Mais, estudar a relações entre o mecanismo do voto e suas

consequentes possibilidades de controle de uma população, suas relações com a

democracia representativa, o voto como um vetor de diagrama de controle ou

dispositivo de poder, com base nos conceitos criados por Gilles Deleuze e Michel

Foucault.

Dentro do território demarcado por esta espécie de cartografia do voto

caberão questionamentos sobre a obrigatoriedade do voto no Brasil, um dos poucos

países democráticos no mundo a obrigar seus eleitores a votar e que sanciona

penas àqueles que se abstêm sem qualquer justificativa; a relação entre voto nulo e

o sistema anterior de votação, que pedia um voto material (no caso das cédulas) e o

sistema implantado há mais de uma década, o voto eletrônico (ou digital, no caso

das urnas eletrônicas), as razões de governamentalidade que levaram à

implementação do novo sistema de votação, praticamente sem grande resistência

por parte dos setores importantes da sociedade, impactos sobre a fraude nos dois

sistemas de votação, consequências para o voto nulo após a implementação do

sistema atual, transformado de expressão de vontade em erro de sistema, riscos de

segurança das urnas eletrônicas e análise comparada com outros países

democráticos e seus sistemas de votação.

A questão da governamentalidade neste trabalho não é de menor vulto:

por governamentalidade se entende aqui o “conjunto constituído pelas instituições,

os procedimentos, análise e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer

essa forma bem específica, embora complexa, de poder que tem por alvo principal a

população [...]”4.

Portanto, antes mesmo de pensarmos em Estado, segundo as múltiplas

interpretações que cabem dentro do conceito, será mais útil para este trabalho a

ideia de governamentalidade e a relação desta com a população de um Estado onde

o voto eletrônico será interpretado aqui como um dispositivo de agenciamento,

porque esta governamentalidade reproduz, no nível do Estado, as artes de governar

que vão aparecer no instante em que o problema do governo passa a não se

4 FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France. (1977-

1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 143.

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restringir ao sistema de soberania, cujo fim último é a conquista e o poder sobre o

território.

Trata-se, portanto, de um poder que ressoa a micropolítica, que não pode

ser mais comportado pela maquinaria relativamente simples do Estado

maquiaveliano por conta dos múltiplos níveis de governos que vão desde o governo

de si mesmo, atravessam o governo da família e de outras instituições disciplinares

e desembocam no governo do Estado. É uma ideia de um governo que é operado

mais aquém e mais além da esfera jurídica da soberania.

O problema criado para esta pesquisa surgiu de uma inquietação: quais

foram as razões políticas que fizeram com que o voto eletrônico fosse implementado

em alguns estados brasileiros em 1996 e que após menos de quatro anos passou a

ser uma plataforma imprescindível para a maneira de se fazer democracia no Brasil,

a ponto de as urnas eletrônicas terem se espraiado para todos os rincões do país,

apesar de o voto eletrônico ainda hoje ser raro em outras democracias

representativas ao redor do mundo?

Em 1996 tal sistema foi usado pela primeira vez em eleições municipais e,

em 2000, foi introduzido em todos os colégios eleitorais do país. Segundo a razão

midiática e o enunciado de Estado, justifica-se esta importante mudança na maneira

de votar através de um retângulo composto por confiança, agilidade, segurança e

inovação, palavras-chave quando se discute a sociedade de controle.

Confiabilidade no processo eleitoral, que agora conta com a “blindagem”

de um sistema que impede seus eleitores de saberem que seus votos realmente

representarão a vontade da maioria e não serão manipulados em nome de

interesses outros que não a vontade da população; agilidade, porque permite um

acompanhamento instantâneo e midiático da apuração e elimina o processo de

ansiedade resultado da contagem manual dos votos, que deixava a nação por dias

sob suspense, efeito quase insuportável da tecnologia anterior de votação;

segurança, porque o novo sistema, segundo o discurso do Estado, é inviolável, não

permitindo a ocorrência de fraudes que acompanharam por várias décadas a

democracia representativa brasileira e que por tantas vezes colocou em risco a

confiabilidade de todos no nosso sistema representativo.

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Este discurso está imbuído da eficácia máxima, que usa por prerrogativa

o fato de termos um dos sistemas de votação mais avançados do mundo. Pois,

exatamente neste avanço tecnológico do nosso sistema de votação é que se

encontra o incômodo. Por que outros países no mundo não adotaram o sistema

eletrônico de voto à moda brasileira? Quais os países que usam o sistema eletrônico

e com quais contrapartidas? Quais as vantagens e desvantagens, do ponto de vista

da economia do poder, em substituir um sistema de votação pelo outro?

Como lidarei com conceitos de sociedades periodizadas por Michel

Foucault e Gilles Deleuze, não poderei prescindir do engenho destes filósofos: boa

parte da armação conceitual e do arcabouço teórico desta pesquisa será erguida

sobre seus trabalhos. As transformações propostas por Foucault, este pensador do

contrapoder, com seus modelos de sociedade da soberania e, posteriormente, a

moderna sociedade disciplinar, bem como a passagem desta última para a

sociedade de controle, proposta por Deleuze no início dos anos 90, serão de suma

importância para este escrito.

Mais especificamente, fui alentado pelo texto de Deleuze, “Post-Scriptum

sobre as sociedades de controle”5, que tem por campo o período imediatamente

posterior à sociedade disciplinar, onde as relações não estão baseadas nem em um

diagrama centralizado e arbóreo, cujo cume poderia ser representado pelo poder

despótico do soberano, nem tampouco no diagrama descentralizado da sociedade

disciplinar, onde são os corpos objetos de interesse do poder, corpos estes que

ocupam múltiplos espaços, sempre submetidos a nós de uma rede descentralizada

e atravessados por uma tecnologia de poder que Foucault chamou de “disciplinas”: a

escola, o hospital, a fábrica, a prisão, em último caso; e assim sucessiva e

ininterruptamente.

O terceiro movimento criado por Deleuze configura, para este trabalho,

transformação social e histórica de urgente importância, e o atravessará por todos

os lados. Importante ressaltar que a sociedade disciplinar não foi “superada” pela

sociedade de controle: as tecnologias de poder típicas de cada um dos diagramas

são encontráveis, muitas vezes, em um mesmo espaço. Exatamente como o

5 DELEUZE, 2004.

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surgimento de uma determinada mídia não extingue a anterior, mas acomoda as

anteriores em seu relevo, o exercício da disciplina se exerce ainda mais

intensamente no bojo da sociedade de controle.

Trata-se, antes, mais de uma inflexão na curva de controle sobre os

corpos do que de uma ruptura com as tecnologias de poder anteriores, uma

ultrapassagem em altíssima velocidade pela última sem que a nova configuração

das linhas de força caracterize uma supressão das antecessoras: a sociedade

disciplinar convive, briga, afasta-se e resiste à sociedade de controle, como duas

séries antagônicas e complementares.

O trabalho de Deleuze encontra eco e faz ressoar o que Foucault chama

de “artes de governar”. Em seu curso no Collège de France, Foucault traça um

quadro histórico das artes de governar, que encontra um paralelo nos diferentes

tipos de sociedade conceituados pelo próprio e mais tarde por Deleuze. Existe um

movimento do poder, não necessariamente evolutivo e que acarretará nas formas

contemporâneas de gestão da população, a que ele chama mais tarde de

“biopolítica da população”: o “governo das coisas”, que aponta para os aspectos

referentes à materialidade da vida dos homens em termos de meios necessários à

sua sobrevivência, moradia, distribuição dos bens e dos recursos produzidos pelas

relações dentro de uma sociedade, construção de vias de circulação territorial etc. e

que encontra relação direta com o que o próprio Foucault chamou de sociedade do

soberano.

Do governo das coisas para o “governo dos homens”, que consiste em

um questionamento do indivíduo e das relações entres estes no domínio da casa, do

comércio, das fábricas (das disciplinas, de uma maneira mais geral) e, por fim, a

partir do surgimento do dispositivo de poder da população, as diferentes formas ou

artes de governar vão constituir a “biopolítica da população”, mais próxima da

sociedade de controle de Deleuze e cujo objetivo será estabelecer um controle da

espécie humana via intervenção sobre as esferas da saúde (natalidade, mortalidade,

controle de epidemias), economia (produção de alimentos, abastecimento e

distribuição de bens) e educação (domesticação do corpo).

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A política passa a ser cada vez mais biopolítica, dado que o governo da

população corresponde à inserção das séries e eventos biológicos que definem a

espécie humana numa estratégia geral de poder. O poder estende seus efeitos para

muito além do plano individual e, por se tratar de uma condição para uma política

dos vivos que seja plena, numa espécie de totalitarismo da espécie biológica,

permite o desenvolvimento de um modelo de sociedade que Deleuze conceituou

como sociedade de controle.

Nesse caminho que consiste em estudar as mais distintas formas de

governo, é importante ressaltar que não se trata de substituição das formas de

controle até então desenvolvidas, como o “poder disciplinar”, ou mesmo a negação

do poder de soberania que se materializa nos regimes jurídicos. Antes disso, trata-

se de uma sobreposição de diferentes formas ou artes de governar: a sociedade de

controle encontra-se, desta forma, em toda a superfície, mas não uniformemente

distribuída, formando uma série com a sociedade disciplinar, as duas em relação

constante. Como diz o próprio Foucault:

Por conseguinte, a ideia de um governo como governo da população torna ainda mais agudo o problema da fundação da soberania - e temos Rousseau - e ainda mais aguda a necessidade de desenvolver as disciplinas - e temos toda a história das disciplinas que procurei contar em outra ocasião. De forma que as coisas não devem de forma nenhuma ser compreendidas como a substituição de uma sociedade de soberania por uma sociedade de disciplina, e mais tarde de uma sociedade de disciplina por uma sociedade, digamos, de governo. Temos, de fato, um triângulo soberania, disciplina e gestão governamental - uma gestão governamental cujo alvo principal é a população e cujos mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança.6

A estrutura do trabalho contará, pois, com um capítulo introdutório que

abordará a história do voto no Brasil sob uma perspectiva foucaultiana e deleuziana

de poder e suas respectivas periodizações, a sociedade disciplinar e a sociedade de

controle. Nesta introdução lançar-me-ei em rasante sobre as primeiras experiências

de voto, logo no século XVI, quando os moradores da primeira vila fundada na

colônia portuguesa – São Vicente, no estado de São Paulo – foram às urnas para

eleger o primeiro conselho municipal desta cidade. A primeira votação foi indireta: a

população de São Vicente elegeu seis representantes que, em seguida, escolheram

6 FOUCAULT, 2008, p. 142-143.

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os oficiais do Conselho. A experiência de votar seguiu pelos anos, mas somente no

século XIX as votações conseguiram escapar do âmbito municipal quando, na falta

de uma lei eleitoral nacional, foram usados dispositivos da Constituição Espanhola

para eleger 72 representantes junto à corte portuguesa. Quem votava, sob quais

condições e regulamentos e como isso acontecia são perguntas que serão

respondidas nesta parte introdutória. Mais tarde, nos períodos que a história chama

de colonial e imperial, marcados pelo chamado voto censitário, investigarei as

primeiras formas de fraude no sistema eleitoral e a engenharia deste logro.

A partir daí, quais foram os dispositivos utilizados para minimizar as

fraudes eleitorais – como e se surtiram o efeito desejado serão questões

respondidas neste capítulo. O período da República Velha, que vai do final do

Império até a Revolução de 1930, foi marcado por eleições ilegítimas, resultantes de

manipulação das urnas. Daí para a década de 1930, quando surgem o voto secreto

e o voto feminino, os anos de 1960 e 1970, quando da ditadura, do bipartidarismo e

dos chamados “senadores biônicos”, até as décadas de 1980, com a reabertura do

sistema de democracia representativa e 1990, quando finalmente é implementado o

voto eletrônico, interesse maior deste trabalho.

Será que as urnas eletrônicas em uso no país – totalmente projetadas e

implementadas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) – garantem a verdade

eleitoral, a relação direta entre vontade de massa e representação desta vontade?

Se sim, quais são as provas de confiança, que passam além da retórica, que

garantem essa verdade?

O voto do brasileiro foi desmaterializado, como quase tudo na sociedade

de controle. Tudo ficou simples, todos os processos intuitivos, um apertar de teclas,

uma foto sorridente, o sim verde em botão enorme, a caixa que mais parece um

brinquedo infantil, de botões gordos e coloridos, permite que participemos e sejamos

todos representados por nossos candidatos. Existem, no entanto, sombras nessa

mecânica, fantasmas escondidos na concha: como garantir que a pressão no botão

parrudo realmente será representado na memória da máquina, uma vez que estas

não permitem qualquer auditoria, pela simples razão de que não há sufrágios a

contar ou recontar – o voto dos brasileiros foi digitalizado, tornando-se um traço

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digital eletrônico na memória volátil da máquina que se apaga quando o resultado é

totalizado, posteriormente gravado em disquete e transferido para uma rápida

apuração, acompanhada em tempo real pelos brasileiros através das grandes

cadeias de televisão e os portais de internet. Todo o ritual é muito higiênico, muito

rápido e rasteiro, como é conveniente na sociedade de controle, mas o que

contempla esta maneira de votar, contemporânea ao desenvolvimento da internet

comercial no Brasil?

Faz-se necessário, portanto, analisar o voto eletrônico também como um

dispositivo de governamentalidade neoliberal na sociedade de controle e todas as

implicações desta governamentalidade. A urna eletrônica, e essa pode ser a chave

que buscamos, deve fazer parte de uma nem tão nova assim racionalidade no

Brasil, um país que tem seu diagrama de controle muito bem resolvido, muito bem

implementado e que representa o ápice de uma democracia de massa que tem no

voto eletrônico não apenas uma singularidade, mas uma necessidade para o bom

funcionamento deste diagrama.

Investigarei alguns aspectos da introdução do voto eletrônico: como ela

se deu, quais foram as razões para que esse sistema fosse tão rapidamente

implementado, sob qual modelo os sistemas foram configurados, como funciona a

transmissão dos dados destas urnas para a central de apurações do TSE. Quais as

chances de manipulação e fraude dos votos nas urnas eletrônicas? As fraudes

realmente acabaram, uma vez que, ao contrário do que a história do voto no Brasil

mostra, fraude e eleições sempre caminharam par e passo?

Por que praticamente não se encontram mais evidências de denúncia de

fraudes nos veículos de mídia depois das eleições? Se a principal justificativa de

Estado é a segurança da nova tecnologia de votar, por que os juízes-ministros do

TSE exerceram forte lobby no Congresso Nacional e conseguiram, em apenas dois

dias de 2001, aprovar sete emendas no projeto de lei que criou a Lei nº 10.480/02, a

qual adiava a aplicação do voto impresso conferido pelo eleitor para 2004, mandava

sortear as urnas a serem auditadas antes das eleições, permitia a identificação do

eleitor na máquina de votar e permitia ao TSE utilizar programas de computador

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fechados nas urnas eletrônicas, cujos códigos-fonte não são apresentados aos

fiscais?

Por que a pressão do TSE no Congresso Nacional contra a auditoria da

apuração eletrônica continuou em 2003 e, em menos de 6 meses, conseguiu

aprovar a Lei nº 10.708/03, que revogava definitivamente o voto impresso conferido

pelo eleitor e a auditoria estatística da apuração eletrônica dos votos antes mesmo

que vigorassem em 2004? Nesta nova lei se manteve a identificação dos eleitores

nas máquinas de votar e se reforçou a autorização para uso de software fechado

pelo TSE. Se o sistema brasileiro é tão seguro como brava o TSE, por que nenhum

governo concordou em usá-lo, embora o mesmo já tenha sido oferecido a 47

países?

Mais, quais as ferramentas de segurança de que o TSE dispõe para que

estas urnas não sejam manipuladas? O que aconteceu com a figura do fiscal de

partido, que participava das apurações e contagem de votos quando das eleições

através de cédulas de papel? Os partidos passaram a confiar completamente no

novo sistema? Quais são as ferramentas de que dispõem atualmente para se

assegurarem de que os resultados apurados realmente seguem a vontade coletiva

expressada através do voto? Existem maneiras de aferir se as fraudes realmente

deixaram de ser cometidas?

Quais são os sistemas de votação usados por outros países do mundo

que adotam o voto eletrônico? Quais as contrapartidas que estes sistemas fornecem

para que o voto eletrônico ali seja realmente confiável? Um pouco mais além do voto

eletrônico, o que aconteceu com o voto nulo? Quando comparado o índice de votos

nulos antes e depois da implementação das urnas eletrônicas, qual a representação

deste dentro do total de votos?

O voto nulo, na urna eletrônica, foi despojado de seu caráter político e

transformado em erro. As últimas eleições presidenciais de 2006 foram as primeiras,

em muitos anos, em que realmente existiu uma campanha forte pelo voto nulo. Qual

foi o efeito desta campanha nas urnas eletrônicas, quando comparado às eleições

de 2002 à presidência? As urnas eletrônicas realmente solaparam o voto nulo ou

esta nova maneira de votar não surtiu grandes efeitos nesta escolha? Votar nulo é

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realmente uma maneira de resistir, como tantos querem, ou não deixa de ser uma

forma de participação em uma sociedade que pede a participação o tempo todo?

Enfim, trata-se mais de uma cartografia de questões do que de um mapa

de respostas a que este trabalho se propõe. Nada de juízos: apenas estudar como

funciona a interface mais visível da nossa democracia representativa e um dos

canais de comunicação entre multidão e controle. A ela, portanto.

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CAPÍTULO 1 – GENEALOGIA7 DO VOTO NO BRASIL

Procurar uma [...] origem é tentar reencontrar “o que era imediatamente”, o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidental todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. [Apesar disso e contra isso] o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate.8

1.1 A ORIGEM MESQUINHA

Foucault diz que a história não tem começo, mas proveniência e

emergência. São pequenas histórias, minúsculas arqueologias que não contam com

uma subjetividade monolítica, mas que constituem interpretações que nos ajudam a

compreender as sujeições9, os efeitos do poder. A invenção de um agenciamento de

poder, como o voto, sempre tem por procedência um começo hermético, uma vilania

que a origem vem celebrar. Existe sempre uma vilania nos inícios de algo que é de

característica completamente distinta daquilo que se chama de origem. Um “bom

método histórico” é ruptura, mas também “um pequeno começo, baixo, mesquinho,

inconfessável”10. O início desse agenciamento é baixo e adiante se fará uma

interpretação possível deste começo mesquinho. Antes, porém, por que chamar o

voto de agenciamento?

7 “Genealogia: a análise da proveniência, como a detecção de certo conjunto estável de

procedimentos; a análise da emergência, como a captura da cisão arbitrária que inaugura uma ideia, uma filosofia, um valor, enfim, uma interpretação que tende para sua própria estabilização.” RIBEIRO, Carlos Eduardo. Foucault-arqueólogo: um experimentalista do saber. Disponível em: <http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCMQFjAA&url=http%3A%2F%2Fwww.fae.unicamp.br%2Frevista%2Findex.php%2Fetd%2Farticle%2Fdownload%2F2289%2Fpdf_32&ei=yqw-T5mJJunr0gHby-jPBw&usg=AFQjCNG-sPko5S3cJRh8mN054EWPsQC0YQ>. Acesso em: 3 mar. 2009. p. 20.

8 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: ______. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998. p. 15-37.

9 “Distinguimos como dois conceitos a servidão maquínica e a sujeição social. Há servidão quando os próprios homens são peças constituintes de uma máquina, que eles compõem entre si e com outras coisas (animais, ferramentas), sob o controle e a direção de uma unidade superior. Mas há sujeição quando a unidade superior constitui o homem como um sujeito que se reporta a um objeto tornado exterior, seja esse objeto um animal, uma ferramenta ou mesmo uma máquina: o homem, então [...] é sujeitado à máquina, e não mais submetido pela máquina.” DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. v. 5, Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Costa. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 156.

10 FOUCAULT, Michel. La vérité et les formes juridiques. Tradução de R. C. M. Machado e E. J. Morais, A verdade e as formas jurídicas. 3. ed. Rio de Janeiro: Nau, 2005. p. 13.

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1.2 O VOTO COMO AGENCIAMENTO

Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos, um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem.11

O conceito de agenciamento, segundo Deleuze, pode parecer de difícil

aplicação em um primeiro momento, tal sua indeterminação aparente e a amplitude

de seu uso. Remete, segundo ele, a instituições fortemente territorializadas (no caso

deste escrito, o Estado como reação às potências e como maneira de organização

dos desejos) e a formações íntimas desterritorializadas (devires, mas no caso do

objeto de interesse deste estudo, o desejo da multidão). Pode-se dizer, portanto, que

temos agenciamento todas as vezes que se encontra uma conexão entre um

conjunto de relações materiais e um regime de signos correspondente. Na realidade,

a disparidade dos casos de agenciamento precisa ser ordenada do ponto de vista da imanência, [...] ela remete então a pólos do próprio conceito, o que interdita sobretudo qualquer dualismo do desejo e da instituição, do instável e do estável. Cada indivíduo deve lidar com esses grandes agenciamentos sociais definidos por códigos específicos, que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por um funcionamento reprodutor: tendem a reduzir o campo de experimentação de seu desejo a uma divisão preestabelecida. Esse é o pólo estrato dos agenciamentos (que são então considerados “molares”). Mas, por outro lado, a maneira como o indivíduo investe e participa da reprodução desses agenciamentos sociais depende de agenciamentos locais, “moleculares” [...] esse é o pólo máquina abstrata.12

Todo agenciamento gesta em si um desequilíbrio, por estar contido no

campo do desejo. Se o Estado é por seu lado parte de um agenciamento molar que

11 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.

p. 112. 12 ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro,

2008. Disponível em: <http://www.ufrgs.br/corpoarteclinica/obra/voca.prn.pdf.> Acesso em: 1 abr. 2009. p. 8.

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se apoia em agenciamentos moleculares, só faz sentido falar em “divíduo”13 se este

for recortado por agenciamentos.

Os dois polos do conceito de agenciamento são dois modos do coletivo.

Existe na história do voto no Brasil uma relação complexa entre o voto

(agenciamento maquínico) e o discurso sobre ele, sua necessidade e sua

confiabilidade (para efeito deste trabalho um agenciamento coletivo de enunciação).

São formas independentes, mas que pressupõem uma relação recíproca e se

relacionam entre si. A gênese recíproca das duas formas remete à instância do

“diagrama” ou da “máquina abstrata”, que, no caso da sociedade de controle, é a

internet e o computador, seja ele pessoal (no caso dos computadores de mesa onde

passamos boa parte de nossa vida intelectual), seja os computadores públicos,

como a urna eletrônica, que receberá mais atenção nos capítulos adiante14.

O voto não será pensado aqui como uma oscilação entre dois polos, mas

a correlação de duas faces inseparáveis, membrana que relaciona o molar (Estado)

e o molecular (divíduo), a reação às potências e seus respectivos desejos.

1.3 BREVE HISTÓRIA DO VOTO NO BRASIL15

A história do voto no Brasil tem origem mesquinha: são fissuras,

inconfessáveis pequenos começos. Foucault diz que há uma vilania nestes inícios.

Nossa história com o voto começou 32 anos após o desembarque de Cabral no

Brasil. No dia 23 de janeiro de 1532 os moradores de São Vicente, em São Paulo,

votaram para eleger o seu Conselho Municipal.

13 O antes indivíduo, na sociedade de controle, está agora partido em fragmentos, pedaços que

constam em inúmeros bancos de dados até na sua mínima fração, o DNA, que, como o sêmen e o sangue que eram objetos de cobiça do poder nas sociedades do soberano e disciplinares, passou na sociedade conceituada por Deleuze.

14 Para mais informações de por quais razões chamo a internet e computador de diagrama e máquina abstrata respectivamente, refira-se ao meu trabalho anterior: RIVERO, F. Política e resistências protocolares: torções e reforços no diagrama da sociedade de controle. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: <http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCsQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.cipedya.com%2Fweb%2FFileDownload.aspx%3FIDFile%3D157527&ei=7h1MT9DNAYHp0QGSr_muDg&usg=AFQjCNE5IYBS5S2ce5UdKBONBHWCHePkIQ>.

15 Para evitar o excesso de referências deixo claro que boa parte deste traçado sobre a história do voto brasileiro foi fundamentado nas pesquisas de Jairo Nicolau para o seu livro “História do Voto no Brasil”. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

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A votação foi indireta: a multidão elegeu seis representantes que, por sua

vez, escolheram os oficiais do conselho. Na época, para evitar que os eleitores

fossem intimidados, era proibida a presença de autoridades do Reino nos locais de

votação. Tais eleições eram orientadas por uma legislação de Portugal – o Livro das

Ordenações, elaborado em 1603.

Foi somente em 1821 que a população deixou de votar apenas em âmbito

municipal, nas eleições para a Corte de Lisboa: “A sociedade luso-brasileira

contraiu, a partir da Revolução Portuguesa de 1820, o achaque liberal. A eleição

manipulada, artificiosa nos instrumentos, falsa na essência, será a condescendência

sem a adesão”.16

Na falta de uma legislação eleitoral de âmbito nacional, foram observados

os dispositivos da Constituição Espanhola para eleger os 72 representantes junto à

corte portuguesa. Os eleitores eram os homens livres e, diferentemente de outras

épocas da história do Brasil, os analfabetos também puderam votar. Não existiam

partidos políticos e o voto tampouco era secreto. Com a independência do Brasil de

Portugal, foi elaborada a primeira legislação eleitoral brasileira, por ordem de Dom

Pedro I: “Na base da pirâmide, o povo, na forma de dogma liberal, transmite o

sangue e a vida, a energia e a legitimidade ao poder político. Dom Pedro I não

esperou pela deliberação da Assembléia Constituinte”.17

Essa mesma lei foi utilizada na eleição da Assembleia Geral Constituinte

de 1824. Os períodos colonial e imperial foram marcados pelo chamado voto

censitário e por episódios frequentes de fraudes eleitorais18. O sufrágio censitário

era concedido somente àqueles que conseguiam provar uma renda mínima ou

serem detentores de terras.19 O voto censitário foi estabelecido pela Constituição de

16 FAORO, Raymundo. Os donos do poder. v. 1. São Paulo: Globo, 1991. p. 412. 17 Ibid., p. 411. 18 Existia, por exemplo, o voto por procuração, no qual o eleitor transferia seu direito de voto para

outra pessoa. Como não existia título de eleitor e as pessoas eram identificadas pelos integrantes da mesa apuradora e por testemunhas, as votações contabilizavam nomes de pessoas falecidas, crianças e moradores de outros municípios. O voto por procuração foi proibido em 1842.

19 CERQUEIRA, Thales Tácito Pontes Luz de Pádua. Direito eleitoral brasileiro: o Ministério Público Eleitoral, as eleições em face da Lei nº 9.504/97. 3. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 177.

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182420 e abolido pela Constituição de 1891 e ficou em vigor durante todo o período

monárquico brasileiro. No entanto, seu grau de restrição não era total: a renda

exigida para votar era de 100 mil réis em um tempo em que um funcionário público

de baixo escalão amealhava em torno de 600 mil réis por ano:

As eleições do período colonial obedecem a esse contexto, projetado para os municípios. Predomina, sobre a competição e a escolha, a pré-qualificação social – o eleitor e o elegível devem, desde o berço, possuir uma posição que os qualifique para o mando e as deliberações.21

Estima-se que 13% da população brasileira votava, segundo o censo de

1872. Ainda assim, a população votante continuou submissa às autoridades locais e

as eleições eram violentas e permeadas por fraudes, sendo o voto um ato de

obediência.

O iceberg emerge das águas até que, mais pela ficção do que pela realidade, a vontade da maioria decida e governe [...] A eleição, tomada no sentido moderno, se desfigura e se dilui nos pressupostos minoritários, rigidamente circunscritos a camadas tradicionalmente limitadas.22

Em 1855, o Gabinete da Conciliação, que foi de 1853 a 1857 e era

presidido pelo Marquês de Paranaguá, pretendeu corrigir os males do sistema

reformando a circunscrição eleitoral, diminuindo-a da província para o círculo de um

deputado e desligando a junta de qualificação e as mesas das assembleias

paroquiais da obediência do governo. Em 1855 foi instituído o voto distrital, por meio

da chamada Lei dos Círculos.

A Lei do Terço, de 1875 (que tem seu nome derivado do fato de que o

eleitor votava em dois terços do número total dos que deveriam ser eleitos),

destacou-se do conjunto das leis imperiais por ter introduzido a participação da

justiça comum no processo eleitoral. A legislação vigente durante o Império

20 Roberto Catelli Jr., no artigo A República do Voto, aponta algumas peculiaridades do processo

eleitoral do período: “Como era preciso verificar quem estava qualificado a votar, essa verificação era feita nas paróquias, na presença do vigário e de uma autoridade pública. Mas o processo era corrupto: o governo central e as elites locais intervinham em benefício de seus interesses. Na qualificação dos eleitores, aceitavam-se meninos, escravos e até pessoas imaginárias. No dia da eleição, muitos eleitores eram impedidos de colocar suas cédulas nas urnas. Acontecia também a troca de cédulas por outras previamente preparadas. A apuração era fraudulenta: alterava-se a contagem dos votos, queimavam-se urnas e falsificavam-se atas”. CATELLI JR., Roberto. A república do voto. Oficinas Pedagógicas. São Paulo: Scipione, 1992.

21 FAORO, v. 1, 1991, p. 412. 22 Ibid., p. 412-413.

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possibilitou à opinião pública exigir eleições diretas e criticar os abusos e as fraudes

comuns nas votações de então. O novo quadro eleitoral levou o conselheiro Saraiva

a reformá-la, encarregando Ruy Barbosa de redigir o projeto da nova Lei, de nº

3.029/81, que ficou conhecida como Lei Saraiva. Ela aboliu as eleições indiretas e

confiou o alistamento à magistratura, extinguindo as juntas paroquiais de

qualificação. O voto distrital, como ficou conhecido, foi vetado, mas essa lei acabou

revogada diante da reação negativa da classe política de então. Outra lei

estabeleceu que as autoridades deveriam deixar seus cargos seis meses antes do

pleito e que seriam eleitos três deputados por distrito eleitoral. Tal lei

quis afastar as pressões com as leis da incompatibilidade, vedada a eleição das autoridades capazes de desviar o leitor de sua livre escolha. [...] o contato do candidato com o eleitor anularia a influência do governo, tornaria o cidadão fiscal do processo, moderaria a pressão provincial e impediria que as maiorias locais fossem esmagadas pelas provinciais.23

A tentativa falhou clamorosamente. Somente com as eleições diretas de

1881 deter-se-á a febre reformista em busca do voto representativo, depois de

tantas esperanças malogradas. A bem desse voto representativo no mesmo ano se

institui o título de eleitor, por meio da mesma Lei Saraiva.

O projeto se constituiu de dois propósitos: a eleição direta e a exclusão do analfabeto, com a tentativa de elevar o censo (dos 200 mil réis, valor ajustado em 1846, para os 400 mil réis) [...] o temor dos conservadores estava atendido: o povo se manifestaria diretamente, mas não todo o povo, senão o apto para representar o país, pelos rendimentos, cultura e propriedade.24

O novo documento, no entanto, não impediu que as fraudes

continuassem a fazer parte do sistema de votação e que a democracia

representativa fosse apenas uma formalidade: a ausência de foto no título de eleitor

(compreensível, uma vez que o registro fotográfico no século XIX não era tão

amplamente disponível e barato como nos tempos atuais) permitia a perpetuação

das velhas falcatruas eleitorais.

Até 1889 o sistema representativo era a imensa cadeia do cabresto e da

vontade do eleitor comandada. Até então, a Carta Magna instituiu o voto censitário,

ou seja, os eleitores eram selecionados de acordo com sua renda anual. O processo 23 FAORO, v. 1, 1991, p. 419. 24 Ibid., p. 422.

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eleitoral era realizado em dois turnos: eleições primárias, para a formação de um

colégio eleitoral que, nas eleições secundárias, elegeria os senadores, deputados e

membros do Conselho da Província. Nas primeiras, só podiam votar os cidadãos

brasileiros, católicos e com renda líquida anual superior a 100 mil réis (valor que foi

ajustado com o passar do tempo no período do Império). Podiam ser eleitos para o

Colégio Eleitoral aqueles cuja renda anual ultrapassasse 200 mil réis. Para a

Câmara dos Deputados, exigia-se do candidato a renda mínima de 400 mil réis; para

o Senado, a exigência era de 800 mil réis anuais. Com eventuais modificações, que

pouco significavam na prática, o voto censitário ficou em vigor durante todo o

período do Império. Em 1876, por exemplo, apenas 0,25% da população brasileira

teve direito ao voto.

A reforma eleitoral, de 9 de janeiro de 1881, implantou eleições diretas e a

elegibilidade para os não católicos e escravos libertos, mas manteve a renda mínima

de 200 mil réis anuais para a qualificação de eleitores. Ainda depois da Proclamação

da República o voto não era direito de todos. Menores de 21 anos, mulheres,

analfabetos, mendigos, soldados rasos, indígenas e integrantes do clero estavam

impedidos de votar. Assim, apenas 6% da população poderia participar do processo

eleitoral de um voto que não era secreto.

O voto direto para presidente e vice-presidente apareceu pela primeira

vez na Constituição Republicana de 1891. Quanto às regras eleitorais, esta

Constituição determinava que o voto no Brasil continuaria “a descoberto” (não

secreto) – a assinatura da cédula pelo eleitor tornou-se obrigatória – e universal. Por

“universal” entenda-se o fim do voto censitário, que definia o eleitor por sua renda,

pois ainda se mantiveram excluídos do direito ao voto os analfabetos, as mulheres,

os soldados rasos, os religiosos sujeitos à obediência eclesiástica e os mendigos.

Além disso, reservou-se ao Congresso Nacional a regulamentação do sistema para

as eleições de cargos políticos federais, e às assembleias estaduais a

regulamentação para as eleições estaduais e municipais, o que mudaria apenas a

partir da Constituição de 1934, com a criação da Justiça Eleitoral. Ficou mantido o

voto distrital, com a eleição de três deputados para cada distrito eleitoral do país25. O

25 Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Constitui%C3%A7%C3%A3o_brasileira_de_1891>.

Acesso em: 12 fev. 2011.

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novo sistema eleitoral extinguiu o voto por renda como pré-requisito para o alcance

de direitos políticos. Entretanto, a proibição do voto dos analfabetos retirou o direito

à escolha de uma grande maioria que não atendia as condições mínimas de acesso

às letras. Além disso, a ausência de leis e um poder exclusivo para legislar sobre as

questões eleitorais fizeram com que as primeiras décadas da República fossem

gravemente atingidas pela fraude eleitoral.

A Constituição de 1891 implantou o voto universal para os cidadãos

(mulheres, analfabetos e militares de baixa patente ainda ficavam de fora) e instituiu

o presidencialismo e o voto aberto em que o presidente e o vice deveriam ser eleitos

pelo sufrágio direto da nação, por maioria absoluta de votos. Também atribuiu ao

Congresso Nacional a regulamentação do processo eleitoral para os cargos federais

em todo o país e, aos estados a legislação sobre eleições estaduais e municipais.

Prudente de Morais foi o primeiro a ser eleito dessa forma.

Foi após esta Constituição que se instalou a chamada política do café

com leite, em que o governo era ocupado alternadamente por representantes de

São Paulo e Minas Gerais. O período que vai de 1894 a 1930 foi marcado pelo

governo de presidentes civis ligados ao setor agrário. Estes políticos saíam de dois

partidos: Partido Republicano Paulista (PRP) e Partido Republicano Mineiro (PRM).

Tais partidos controlavam as eleições, mantendo-se no poder de maneira alternada.

A maioria dos presidentes desta época eram políticos de Minas Gerais e São Paulo,

os estados mais ricos da nação. Saídos das elites mineiras e paulistas, os

presidentes favoreciam o setor agrícola, principalmente o café paulista e o leite

mineiro, em detrimento à industrialização do país, então em fase de florescimento.

Nas eleições da época, dois tipos de fraudes eleitorais eram comuns: o

bico de pena e a degola. Encerrada a votação, começava a fraude bico de pena,

perpetrada pela mesa eleitoral. Ao apurar os votos, inventavam-se eleitores ou

adulteravam-se as atas dos resultados ou, mesmo um dia antes da eleição, o

presidente da mesa preenchia a ata dizendo quantas pessoas a tinham assinado,

fraudando a assinatura dos eleitores que compareceriam no dia seguinte.

A degola garantia que candidatos eleitos indesejáveis não tomassem

posse, através da atuação da Comissão de Verificação de Poderes. Essa comissão

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do Poder Legislativo encarregava-se de criar os argumentos para não empossar o

candidato da oposição (a degola) e diplomar aquele que fosse o representante

desejável da oligarquia. Estas fraudes perpetradas nas eleições locais eram a

espinha dorsal do sistema vigente. Para que se faça uma ideia da extensão das

mesmas, em uma eleição desse período, ocorrida no Rio de Janeiro, tantos eleitores

votaram em duplicidade que foi necessário empossar dois governadores e duas

Assembleias Legislativas.

1.3.1 Coronelismo e o voto de cabresto

As inquietações urbanas, as angústias européias da elite, a sede de mando de civis e militares, a demagogia inquieta e paciente – tudo se amortece e paralisa diante de uma muralha apagada e inerte. O senhor da soberania, o povo que vota e decide, cala e obedece, permanece mudo ao apelo à sua palavra. O bacharel reformista, o militar devorado de ideais, o revolucionário intoxicado de retórica e de sonhos, todos modernizadores nos seus propósitos, têm o pé embaraçado pelo lodo secular. Os extraviados cedem o lugar, forçados pela mensagem da realidade, aos homens práticos, despidos de teoria e, não raro, de letras. No campo, no distrito, no município, o chefe político, o coronel tardo e solene, realista e autoritário, amortece na linguagem corrente o francês mal traduzido e o inglês indigerido. Ele municipalizava a expressão erudita, comunicando-lhe, de seu lado, sentido e conteúdo, converte o freio jurídico do governo no bucal caboclo.26

Uma das formações mais comuns da democracia representativa – ou se

preferir, seu desvio mais notável – é o que Leal chamou de “coronelismo”. Segundo

Leal, o coronelismo seria o resultado de uma

superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constitui fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos de nosso antigo e exorbitante poder privado tem conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.27

Coronelismo é definido por uma complexa estrutura de poder que tem

início no plano local, geralmente no município, exercido pela distorção hipertrófica da

figura de um mandante regional (normalmente denominado de coronel) que 26 FAORO, v. 2, 1991, p. 240. 27 LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.

4. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1978. p. 20.

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superpõe seus interesses sobre o poder público do Estado e tem por efeitos

secundários o mandonismo28, o apadrinhamento, a fraude eleitoral e a

desorganização dos serviços públicos. Abrangeu todo o sistema político do país

durante boa parte do séc. XIX e início do XX.

O coronelismo tinha por objetivo e efeito o controle da população que se

encontrava na área de influência do coronel, definindo assim as escolhas dos

eleitores em candidatos por ele indicados e, por sua vez, as ações destes

candidatos, uma vez estes no poder.

Se o coronelismo for analisado como um período histórico brasileiro, tal

relação de poder compreende o intervalo entre a Proclamação da República em

1889 e a prisão dos coronéis baianos pela Revolução de 1930, tendo seu fim

simbólico com a implantação do Estado Novo em 1937. Como forma de

mandonismo, tem origem no período colonial – quando era inicialmente

incondicional o poder do chefe local, evoluindo em seguida para formas mais

elaboradas de controle – do coronelismo até as atuais formas de clientelismo. A

origem do termo está no cargo de coronel da Guarda Nacional, no momento da

criação da própria Guarda Nacional no período regencial quando, em 1831, era

Ministro da Justiça Padre Feijó e não um “coronel”, já que ele não tinha patente

militar do Exército. Como fenômeno social e político, teve lugar após a declaração

da República.29

As raízes do coronelismo remontam à tradição patriarcal brasileira e ao

arcaísmo da estrutura agropecuária no interior do Brasil. Quando foi criada a Guarda

Nacional em 1831 pelo governo imperial, as milícias e ordenanças foram extintas e

substituídas pela nova corporação. A Guarda Nacional passou a defender a

integridade do Império e sua constituição. Como os quadros da corporação eram

nomeados pelo governo central ou pelos presidentes de província, iniciou-se um

longo processo de tráfico de influências e corrupção política. Em razão da 28 O mandão – um potentado, chefe, ou coronel – é o indivíduo que, no controle de recurso

estratégico – como a propriedade da terra – adquire tal domínio sobre a população do território sob seu domínio que a impede de exercer livremente a política. Historicamente o mandonismo está presente no Brasil desde a colonização e tende a desaparecer em decorrência da urbanização da população rural. CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Revista Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, p. 38, 1997.

29 SILVA, Francisco de Assis; BASTOS, Pedro Ivo de Assis. História do Brasil: Colônia, Império e República. 2. ed. [S.l.]: Moderna, 1988. p. 220-221.

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organização política de então estar fundamentada nas oligarquias, os grandes

latifundiários e oligarcas começaram a financiar campanhas políticas de seus

afilhados, ao mesmo tempo que reforçavam seu poder nos meandros da Guarda

Nacional. Por conta desta estrutura, a patente de coronel da Guarda Nacional

passou a ser equivalente a um título nobiliárquico, concedido aos grandes

proprietários de terras, de forma a estes adquirirem autoridade para impor a ordem

sobre suas áreas de influência.

Com a Proclamação da República do Brasil até o final da República

Velha, em 1930, o coronelismo se manteve em relativo equilíbrio. Promulgada a

primeira constituição republicana, adotou-se um sistema eleitoral em que o voto era

aberto. Cada chefe político tinha, portanto, pleno controle sobre seus eleitores e, a

rigor, a democracia representativa era uma mera ficção. Logo após o governo

Campos Sales houve uma coligação de poderes estaduais que favoreceu o pleno

florescimento do fenômeno: o aumento da riqueza agrícola e, portanto, do poder dos

grandes latifundiários e oligarcas propiciou sua chegada à esfera do poder central.

Os chefes dos estados passaram a ser os coronéis dos coronéis, os currais

eleitorais se multiplicaram pelo país e a compra e troca de votos dos eleitores por

favores e apadrinhamentos passou a ser prática comum nas grandes cidades,

agora, muito além da área rural.

Qualquer coronel chefe de município que se opusesse a um coronel do

estado sofreria retaliações em forma de cortes de verbas para o seu município, que

gerariam perda de votos e, portanto, perda de influência local. Opor-se ao governo

do estado implicava, portanto, sérias privações para o chefe municipal e seus

seguidores, principalmente no interior do país. Nos municípios menores, portanto,

era mais notável uma direção de situação na maneira de governar dos candidatos

controlados pelos coronéis.

Nos municípios mais ricos uma certa oposição ao coronelismo se

manifestou e a relação ganhou uma camada adicional de complexidade por conta da

existência de coronéis de situação e coronéis de oposição: embora uma vitória

eleitoral de um coronel de oposição fosse relativamente rara, em caso de vitória

deste, a máquina político-administrativa governamental trabalhava contra ele na

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política, no fisco, na justiça e na administração. O mecanismo era simples e

eficiente: uma vez eleito, o opositor precisava de recursos, que dificilmente

chegariam sem as devidas concessões ao poder central.

O coronelismo é efeito das relações de poder de um par indissociável: de

um lado o latifundiário, dono de grandes porções de terra, mas não necessariamente

abastado, com uma intrincada rede de relações locais de interdependência de

favores e influências sociais, de tal maneira que este exerce uma “ampla jurisdição

sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo [...]

verdadeiros arbitramentos”30. O coronel resume em sua figura as instituições sociais,

sem, no entanto, substituí-las, e seu aparecimento só foi possível graças à

sobrevivência de um poder hipertrofiado, que paulatinamente foi desmanchado pela

democracia representativa, suas bases e suas instituições – sem, no entanto,

desaparecer completamente. De uma determinada maneira, o coronel representa

uma instância de poder local residual frente ao poder do estado, e o coronelismo

uma forma parasitária e possível de continuidade deste poder local no interior de

uma nova configuração política, apesar da fraca resistência que este coronel pode

opor frente aos interesses estatais, como visto acima.

Do outro lado deste binômio estão os dependentes deste coronel,

normalmente miseráveis. Numa leitura clássica, a da relação de poder descendente,

tal conjunção tinha por principal elemento uma figura central – o coronel – num

comando por arrolamento de sua rede de influência composta de trabalhadores

rurais (vulgarmente conhecida por “curral eleitoral”).

Segundo tal lógica, a da relação arbórea e hierarquizante, existiria um

modo absoluto e total desta rede de influência se dar de forma descendente e

unidirecional, normalmente conquistada através de cooptação financeira ou de

pequenos favorecimentos materiais, chegando às raias, no seu limite, da violência

física, caso o eleitor traísse seu coronel votando em outro candidato, desta maneira

perdendo seu emprego ou mesmo terminando surrado pelos capangas do coronel.

30 LEAL, 1978, p. 23.

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A forma mais comum da relação entre o par era, no entanto, a troca: o

coronel oferecia a seus dependentes favores, tais como uma sacola de alimentos,

remédios, segurança, vagas no hospital da região, empréstimos, empregos etc.

Segundo essa interpretação de relação de poder, o processo instalar-se-

ia nos sujeitos desta força que operariam guiados pelos princípios de uma hierarquia

descendente, cujo poder está centralizado e é exercido de maneira a circuitar a

operação, criando um só corpo, guiado por um único cérebro. Nesse regime de

funcionamento, são insuportáveis conexões exógenas com outros nós centrais de

poder ou modos estranhos ao processo, que se alimenta e regula-se na

continuidade incessante de movimentos de lançar-se e relançar-se a si mesmo e na

medida em que as pequenas frações de favorecimento por parte do coronel

continuem a alimentar o seu curral.

A ideia de um poder centralizado nas mãos de um coronel, que assim

imporia sua vontade ao seu curral, enfim, esta noção clássica do poder de direção

descendente não se sustenta mais, como já foi mostrado por Foucault em trabalhos

como “Vigiar e punir”31 e “História da sexualidade I: a vontade de saber”32. Deleuze,

lendo o “Vigiar e punir” de Foucault, mostrar-nos-á como as relações de poder, antes

restritas a uma interpretação descendente de sentido, onde a vontade do soberano

era imposta aos seus súditos, na realidade possui caminhos mais complexos e de

dupla mão. Nas palavras do autor:

Foucault mostrará que “o arbítrio do rei” não se exerce de cima para baixo, como se fora atributo do seu poder transcendente, mas é solicitado pelos mais humildes, pelos parentes, vizinhos, colegas que querem mandar internar o menor fator de perturbação e se servem do monarca absoluto como se de um “serviço público” imanente, capaz de solucionar conflitos familiares, conjugais, vicinais ou profissionais.33

Isso aponta para uma relação complexa entre coronel e seu curral

eleitoral, composto por trabalhadores rurais – afora os casos de violência física,

existe um interesse econômico ou de relação de poder que é razão da obediência

desse eleitorado. Da mesma forma como existe uma imposição descendente, existe

31 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Tradução de Raquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,

2003b. 32 Id., 2003a. 33 DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de José Carlos Rodrigues. 1. ed. Lisboa: Veja, 1987. p. 50.

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uma vontade de troca de votos por benesses que é ascendente e que complexifica a

visão clássica desta relação de poder.

O coronelismo é relativamente comum nos dias de hoje nos rincões do

país, apesar de sua formação ter sido mais facilmente identificável nas primeiras

décadas do século XX. Com o passar dos anos e o forte êxodo rural que

transformou a paisagem social do Brasil, tal desvio da democracia representativa

acabou por se tornar mais raro, no entanto sem que tenha desaparecido por

completo – ainda é um efeito contemporâneo comum, facilmente encontrado em

grandes comunidades e favelas no Rio de Janeiro, consideradas por muitos os

novos currais eleitorais, como será visto mais adiante.

Se o cargo de coronel foi oficialmente abolido logo após a Proclamação

da República, este cargo deu origem ao vocábulo coronelismo que perpassou

momentos distintos em todo o século XX e passou a denominar pessoas com

influência local, tais como comerciantes abastados, grandes proprietários rurais,

chefes políticos locais, entre outras figuras que dispunham de influência sobre a

massa e representavam para esta autoridades incontestáveis, através dos

mecanismos anteriormente descritos.

1.3.2 Os novos coronéis

Com o surgimento de novos líderes e com o crescimento do uso dos

meios de comunicação, os “novos coronéis” começaram a se dirigir a uma

população cada vez mais concentrada nas grandes cidades, que inchavam por

conta do processo que ficou conhecido por favelização34.

Alguns autores apontam que o coronelismo, apesar de que em teoria este

tenha sido extinto com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, ainda manteve suas

características em várias partes do país e que se confunde com outros conceitos,

como o mandonismo, clientelismo e até com certas características do feudalismo35.

34 “A população brasileira passou dos 10 milhões de 1872 para 14 milhões em 1889, com 20 milhões

em 1905, 27 no ano de 1920 e 34 no começo de 1931. Nas cidades residem 31% em 1872 da população, 24% em 1890, 36% em 1900 e 51% em 1920”. FAORO, v. 2, 1991, p. 240.

35 SILVA; BASTOS, 1988, p. 220-221.

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Após os anos de Getúlio surgiram extensões das antigas relações de coronelismo,

chamadas de compadrio, em que os dependentes do senhor de terras submetiam-se

a este pela proteção por ele oferecida. Se por acaso ocorresse alguma resistência

de alguma parcela dos apadrinhados, estes eram expulsos da fazenda e

perseguidos até o ponto do assassínio. Já no século XX, essa truculência mais

desbragada é deixada de lado e a figura do coronel é ocupada pela do caudilho,

cujos métodos de obtenção de trocas de favores por votos passam por um processo

de edulcoramento: a truculência do coronel tradicional dá lugar ao carisma do

coronel-caudilho, que impõe suas vontades não apenas pelos favores mas também

pelo carisma, messianismo e populismo.

A partir da década de 1990, surge uma nova configuração de forças: o

caciquismo. Também oriundo da época do Império, o fenômeno é bastante

semelhante ao coronelismo e ao caudilhismo, porém o caciquismo difere no método

de obtenção de votos: o cacique político é o chefe político local de uma determinada

comunidade (por exemplo, um deputado estadual, federal ou um senador). O traço

principal do coronel-cacique é a política clientelista, que se dá através de concessão

de favores e cargos públicos, os cargos comissionados.

No caciquismo também se utiliza da chamada política de mão no ombro:

normalmente o cacique domina seu eleitorado da mesma forma que o caudilho,

detém o poder de controlar a quantidade de votos de determinada região da mesma

forma que o coronelismo, mas a área rural dá lugar à zona eleitoral. Desta forma o

cacique age cortando as verbas e trabalhos da máquina estatal para esta zona

eleitoral, propiciando um enriquecimento ou empobrecimento da região conforme

sua necessidade de angariar votos. Igual ao coronel, o cacique age também sobre o

processo eleitoral local, o que acaba por multiplicar seu poder.

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1.4 O VOTO DE CABRESTO

Figura 1 – Charge de Storni

Fonte: Revista Careta, 1927.

A membrana que intermediava a relação de poder entre o coronel e seu

curral eleitoral é o voto de cabresto, voto normalmente convertido da parte do eleitor

em algum tipo de benesse direta ou indiretamente agraciada pelo coronel, ou da

liderança local, de tal maneira que este encontra na quantidade de eleitores de seu

curral (ou lote de votos) a sua força política e sua capacidade de influir dentro de

uma esfera mais ampla no interior do jogo político, o que muitas vezes cria abalos

na extensão do poder estatal na região de influência do coronel ou mesmo reforça

este poder, como visto anteriormente, dependendo do tamanho do município onde o

mesmo atua.

Muito comum na República Velha, em que o sistema era aberto – a opção

do eleitor era então declarada no momento do seu voto, o que deixava o sistema

muito frágil e o voto passível de ser controlado e retaliado caso o eleitor não agisse

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de acordo com as orientações de seu coronel. Normalmente os locais de votação

eram infestados por capangas que ali estavam para intimidar os eleitores e angariar

votos para os candidatos do coronel a quem serviam. A maneira mais comum de se

fazer os eleitores votarem no candidato do coronel era a seguinte: um eleitor entrava

na seção eleitoral e não depositava ou preenchia a sua cédula de papel, deixando-a

em branco. Ao sair da sala, entregava a mesma para o responsável pela fraude. Na

sequência, o próximo eleitor portava a cédula do primeiro, devidamente preenchida

pelo impostor, depositava-a na urna e entregava ao impostor a cédula que havia

recebido do mesário e que ainda está em branco. Este processo era repetido até

que todos os eleitores de determinado curral tivessem votado.

Em casos extremos, a fraude eleitoral: os coronéis costumavam alterar os

votos dos eleitores, desaparecer com urnas e chegavam a patrocinar a prática do

voto fantasma, que consistia na falsificação de documentos para que os eleitores

pudessem votar várias vezes no mesmo candidato, usando para tanto identidades

de eleitores já falecidos – daí o nome.

Este voto dado pelo eleitor aos candidatos que lhe são inculcados por um

chefe político ou cabo eleitoral, sem que o votante, comumente chamado de “eleitor

de cabresto” tivesse consciência em quem votava ou porque votava, era o ápice de

um sistema composto de pequenos benefícios: o coronel conseguia o transporte

para que os eleitores que habitavam longe dos locais de votação se deslocassem

até as urnas. Antes do depósito deste voto na seção eleitoral estes eram

alimentados, festejados, vestidos, orientados e participavam de um processo de

cuidados, cujo resultado final era a fabricação de um mandante legitimado pelo

povo, mas que sabia exatamente a quem tinha de prestar obediência. Existe uma

produção enorme por trás desse voto final, como descreve o trecho da reportagem

abaixo:

Uma linha de montagem de voto de cabresto foi criada na reta final da campanha eleitoral em Murici, Alagoas, na casa da família do senador Renan Calheiros (PMDB), que disputa a reeleição. Pertencente à matriarca da família, Ivanilda, a residência é usada como central de clientelismo explícito, sob o comando do prefeito, Remi Calheiros, irmão de Renan. A reportagem do Estado flagrou na quinta-feira um batalhão de mais de 100 pessoas em plena atividade de cabala de votos, divididas em brigadas, conforme a tarefa. O objetivo do esquema era o treinamento de eleitores

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para votar nos candidatos da família, em troca de favores, ajuda material e promessas.

A maior das brigadas, com cerca de 30 pessoas, preenchia santinhos em profusão, sobre uma longa mesa de madeira na sala principal, com a cola a ser levada pelos eleitores à urna de votação. Em outra dependência, uma brigada menor, de umas dez pessoas mais instruídas, dava orientações aos eleitores sobre como votar na urna eletrônica.

Enquanto isso, na cozinha, uma equipe preparava comida em imensas panelas para o pessoal de apoio e dezenas de eleitores que se acotovelavam em todas as dependências da casa - salas, varandas, quartos, pátio e quintal - à espera do “acordo”. Outro pelotão encarregava-se de trazer eleitores para a casa, numa robusta frota integrada por kombis, caminhonetes e veículos menores. Eram todos pobres da periferia da cidade e da zona rural, entre eles mulheres com filhos de colo.

[...] Os santinhos, preenchidos com o número dos candidatos com canetas esferográfica, trazem na frente a foto do chefe do clã, Renan, ladeado pela candidata presidencial Dilma Rousseff (PT) e o padrinho dos dois, o presidente Lula. O verso traz uma imitação de cédula de votação com seis campos, cada um com espaço para preencher, pela ordem, o voto no candidato a presidente, seguido pelo do governador, dois senadores, deputado federal e deputado estadual.

[...] Neste domingo, 2 milhões de eleitores alagoanos vão às urnas. Com 3,3 milhões de habitantes, o Estado ostenta os piores indicadores econômicos, sociais e educacionais do País. Segundo dados do IBGE, um em cada quatro alagoanos é analfabeto (24,6% da população). Mais de 1 milhão de alagoanos, ou 36,5%, são analfabetos funcionais - escrevem o nome, mas não têm capacidade de interpretar textos.36

Novas configurações do voto de cabresto se desenham nos dias de hoje

e usam da tecnologia como estratégia de controle: em muitas comunidades pobres

do Rio de Janeiro as milícias locais de tráfico usam do poder de coerção e violência

para obrigar o eleitor a votar nos candidatos de seu interesse37. Para que o eleitor

prove que o candidato defendido pelas milícias recebeu seu voto, este precisa usar

de seu celular para tirar uma foto da urna eleitoral confirmando o voto em tal

candidato e apresentá-la a um agente miliciano na saída do colégio eleitoral.

Em uma tentativa frustrada de conter a influência destes milicianos junto

dos seus currais, o Tribunal Superior Eleitoral proibiu o uso de celulares no interior

das salas de votação, sem muito sucesso: as mais de 20.000 salas de votação em

36 RENAN ativa máquina de voto de cabresto. Estadão.com.br, São Paulo, 2 out. 2010. Disponível

em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20101002/not_imp618707,0.php>. Acesso em: 8 out. 2010.

37 Segundo reportagem Voto de cabresto no Rio de Janeiro de Jayme Ribeiro exibida pela TV Record no dia 13 de setembro de 2008. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=iKlMNKlr6Gg>. Acesso em: 5 jul. 2009.

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todo o estado e suas cabines não podiam ser controladas por falta de funcionários,

segundo a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro, que para tentar coibir a prática lançou

mão de uma comovente campanha educativa pedindo à população dessas

comunidades que não temesse o poder de coerção das milícias e fizesse valer o

direito da soberania de seu voto. Para conseguir o resultado pretendido, distribuíram

cartazetes em áreas controladas por grupos paramilitares em algumas das maiores

favelas do Rio de Janeiro. Os cartazes pediam: “Vote sem medo. Não aceite

ameaças”.

Ainda que os celulares e outros dispositivos de registro tivessem seu uso

restrito pelo TSE, não seria nada complicado registrar o voto dos eleitores: em sites

de leilão é possível encontrar toda a sorte de aparelhos de filmagem e câmeras

camufladas em outros aparelhos, como canetas e chaveiros, que custam poucas

dezenas de reais38. Em muitas seções eleitorais a urna de votação fica contra uma

janela, permitindo a filmagem do eleitor e seu voto com câmeras com recurso de

zoom.

Tropas militares federais foram convocadas pelo governador deste estado

para garantir a lisura das eleições, mas tudo não passou de uma grande encenação

de caráter espetacular encenado para as câmeras dos jornalistas televisivos. Para

se ter uma dimensão da extensão do voto de cabresto nos dias de hoje, em todos os

anos em que ocorrem eleições o TRE julga centenas de pedidos de municípios que

pedem pelo apoio de tropas federais para garantir a lisura de suas eleições: destes,

pouco mais de duas dezenas são atendidos, normalmente com grande alarde na

mídia televisiva39.

O voto de cabresto é um dispositivo de poder e, portanto, é operado

continuamente na democracia representativa. Algumas vezes da mesma maneira há

dezenas de anos, em outras usando por suporte uma invenção indissociável nos

dias de hoje do processo eleitoral: a urna eletrônica. Tal invenção não é dissociada

38 MICRO câmera espiã, leilões Mercado Livre por R$ 31,00. Mercado Livre. Disponível em:

<http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-183245900-microcmera-espi-_JM>. Acesso em: 13 jun. 2009.

39 Conforme reportagem transmitida pela TV Record em 2008. TRE julgou os pedidos de tropas federais. YouTube. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=LCRsCT-Oy5g&feature=related>. Acesso em: 12 set. 2011.

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do agenciamento político e social que se faz dela, porque toda invenção é social

antes de técnica ou tecnológica. Deleuze, a respeito de uma invenção, escreveu o

seguinte:

[...] o estribo substitui a energia do homem pela potência do animal. É uma nova simbiose homem-animal, um novo agenciamento de guerra que se define por seu grau de potência ou de "liberdade", seus afetos, sua circulação de afetos: o que pode um conjunto de corpos. O homem e o animal entram em uma nova relação, um não muda menos do que o outro, o campo de batalha se preenche de um novo tipo de afeto. Que não se pense que a invenção do estribo baste. Um agenciamento não é jamais tecnológico, é até mesmo o contrário. As ferramentas pressupõem sempre uma máquina, e a máquina é sempre social antes de ser técnica. Há sempre uma máquina social que seleciona ou assimila os elementos técnicos empregados. Uma ferramenta permanece marginal ou pouco empregada enquanto não existir máquina social ou o agenciamento coletivo capaz de tomá-la em seu phylum.40

Na sociedade de controle a urna eletrônica tem papel fundamental na

maneira como se dão as eleições: se o voto de cabresto é a membrana que

intermedeia as relações de poder entre coronéis e seu eleitor de cabresto, a urna é a

interface que relaciona a democracia representativa com este mesmo eleitor. Como

discutido anteriormente, o voto eletrônico é tratado neste estudo como o efeito de

um agenciamento homem-máquina, ou, se preferir, eleitor-urna eletrônica. E se o

voto de cabresto é um dispositivo, é consequência dessa operação que a urna

eletrônica, como invenção, seja também parte dessa possibilidade de fabricação de

resultados e eleitos. A urna eletrônica receberá atenção exclusiva nos capítulos a

seguir, mas no que tange ao voto de cabresto cabe uma consideração sobre seu

funcionamento e sobre como ela está relacionada com o modo de votar dos currais

eleitorais da contemporaneidade.

Nos dias de hoje a configuração do voto de cabresto se adapta a uma

conformação que Deleuze chamou de sociedade de controle, em que a relação

entre homem e máquina, especialmente entre as máquinas cibernéticas e

informáticas, deixa de ser uma relação em que os homens são simplesmente

sujeitados a estas pelo trabalho – como o lumpesinato em relação à sua ferramenta

de ofício – (reduzidos, portanto, a usuários, termo tão recorrente na gramática da

indústria tecnológica), para serem partes desta rede protocolar como uma das 40 DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro. 1. ed. São Paulo:

Escuta, 1998. p. 84.

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entradas ou saídas possíveis, sendo que estas “entradas” ou “saídas” podem, para

fins de equalização e cálculo de fim de operação, partir de um homem, de uma

máquina ou de um software (uma máquina abstrata). Nestes centros urbanos o

agenciamento do voto passa, necessariamente, pela urna eletrônica, como veremos

a seguir.

Com a aprovação da Lei do Voto Virtual41, em 2004, que criou o conceito

de RDV (Registro Digital do Voto)42, surgiu a possibilidade de se usar as urnas

eletrônicas como meio de se identificar o voto dado pelo eleitor, recorrendo-se a um

procedimento descrito nas versões 2004 e 2006 deste artigo. Exatamente como na

República Velha, em que o voto era declarado em voz alta e a opção do eleitor

ficava clara no momento do seu voto, a identificação do eleitor em uma máquina e o

subsequente voto em seu candidato na mesma interface promovem, através de

correlação, a identificação do eleitor e sua consequente escolha.

Esta relação entre identificação do eleitor e seu voto existiu nas eleições

de 2004 e de 2006. Na eleição de 2008 o problema foi corrigido com a edição da

Resolução TSE 22.770/08, em que o administrador eleitoral acatou a sugestão de

que a correlação interna do voto dentro do arquivo de Registro Digital de Votos

(RDV) fosse rompida, de maneira que os votos do eleitor para cada cargo fossem

registrados de forma independente da sua identificação.

41 A Lei do Voto Virtual às Cegas, proposta em maio de 2003 pelo senador Eduardo Azeredo

(PSDB/MG), foi aprovada pelo Congresso Nacional em 01 de outubro de 2003 e sancionada pelo Pres. Lula na mesma noite do dia 01 de outubro de 2003. Tem este nome por que substitui a impressão física do registro do voto, cujo conteúdo é conferido pelo eleitor, pelo conceito de registro digital do voto, que impossibilita a conferência por parte do eleitor, impondo desta maneira uma confiança absoluta e quase cega do eleitor que seu voto será contabilizado para o candidato de sua preferência. Na prática a Lei do Voto Virtual elimina a possibilidade dos partidos políticos fiscalizarem de maneira eficaz o processo eletrônico de votação. Após as eleições os advogados dos candidatos que requisitarem auditoria ou perícia da apuração não terão como fundamentar os seus pedidos, pois a nova lei não prevê tais recursos nem o sistema os proverá. LEI do Voto Virtual. Disponível em: <http://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/PLazeredo.htm>. Acesso em: 3 maio 2009.

42 O Registro Digital do Voto, ou arquivo de votos, foi criado em 2003, em substituição ao voto impresso. A substituição do voto impresso pelo registro digital do voto, em cada cargo disputado, com a identificação da urna eletrônica onde ocorreu o registro, possibilitou a recuperação dos votos para recontagem eletrônica a qualquer tempo. Consiste na inserção, hoje de forma aleatória, do voto de cada eleitor assinado digitalmente pela urna eletrônica, em uma tabela de tamanho igual à da quantidade de eleitores da seção eleitoral. TSE. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/votoeletronico/reg_dig_voto.htm>. Acesso em: 6 out. 2009.

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No entanto, essa quebra de relação entre voto e eleitor derrubou, a partir

da eleição de 2008, o principal argumento defendido pelos autores da lei que pedia a

implantação de impressoras para registrar os votos de eleitores e aumentar a

confiabilidade no sistema de votação eletrônico: afirmava-se então que a vantagem

do registro digital do voto sobre o voto impresso seria a possibilidade de se fazer

estudos de correlação do voto entre os cargos43. Esta aludida vantagem, além de

inviabilizar o voto secreto em um primeiro momento, deixou de existir com a

resolução TSE 22.770/0844.

Mesmo depois da quebra de correlação entre o eleitor e os votos, que,

apesar de não configurar voto de cabresto em si, dá amplas margens para a coação

acontecer e configura sua peça fundamental, o RDV, mesmo depois de rompida a

correlação, ainda dá margens ao voto de cabresto, pelo menos em teoria.

Funcionaria assim: o coator comporia cédulas ou as “colas” completas para seus

eleitores, mas com diferentes e improváveis composições de candidatos a outros

cargos. O candidato de sua preferência estaria contemplado nesta cola,

logicamente. Então bastaria o coator tirar uma cópia de cada uma das “colas”

entregues aos eleitores de seu campo de influência e anotar o nome e título de

eleitor no verso destas vias de controle. Após a eleição e com o RDV em mãos,

bastaria procurar pelas devidas combinações de votos em cargos, como mostra o

43 O autor da lei, senador Azeredo, apresentou o seguinte argumento para a implantação do Registro

Digital do Voto: “não passa despercebida a vantagem, inédita talvez no mundo, que é a possibilidade de análise, seja pelos estudiosos do processo eleitoral, seja pelos partidos políticos, seja pelos próprios candidatos e seus apoiadores, de cada registro de voto, avaliando por exemplo o resultado das coligações partidárias, a fidelidade do eleitor a um partido ou mesmo a concentração de votos em combinação de candidaturas ao pleito majoritário e ao proporcional. Naturalmente estes estudos levarão ao aperfeiçoamento do processo eleitoral brasileiro com subsídios importantes para a reforma política que ainda está por se discutir, por serem resultado de apurações reais, provavelmente melhores que as melhores pesquisas estatísticas de opinião.” O autor da lei elogiou a possibilidade dos candidatos e partidos poderem fazer estudos exatos sobre a votação de seus eleitores, deixando de lado a questão de segurança e confiabilidade do sistema. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4401/sancionada-a-lei-no-10-470-2003-que-suprime-a-impressao-do-voto-nas-urnas-eletronicas>. Acesso em: 11 out. 2009.

44 Somente em maio de 2004 a Justiça Eleitoral descobriu o problema da correlação de votos por voto em candidato improvável na seção eleitoral. Na resolução 21.744/04 do TSE, de 05 de maio de 2004, algumas medidas paliativas foram tomadas para se contornar o problema: os ministros do TSE decidiram não permitir acesso dos partidos e de entidades de estudo aos arquivos de votos digitais de cada urna eletrônica. O arquivo de votos digitais, que segundo os autores da lei, daria maior transparência ao processo eleitoral, ganhou a classificação de “arquivo confidencial” e passaram a ser guardados e protegidos pela Justiça Eleitoral.

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quadro 1. As combinações que constarem no RDV, mas não nas vias de controle

representariam eleitores que se desviaram da negociação.

Quadro 1 – Exemplo do registro digital do voto45

Fonte: TSE. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/votoeletronico/reg_dig_voto.htm>

Mesmo sem acesso aos RDVs, ainda que se coíba o uso de celulares no

interior das salas de votação para impedir o registro fotográfico do voto, o voto de

cabresto ainda é possível: os agentes de pressão dos eleitores simplesmente

exercem coação psicológica sobre estes afirmando que conseguem descobrir em

quem eles votaram. Essa forma de pressão psicológica por um coator não precisa

de fato conseguir quebrar o sigilo do voto para surtir o efeito desejado: dada a

natureza imaterial da máquina de votar, a opacidade de todo o processo e a total

falta de ideia por parte do eleitor de como a urna funciona, basta incutir a dúvida do

sigilo de voto para fazer com que o eleitor vote segundo a vontade desses agentes

de pressão. Ora, a disponibilização dos RDVs para os partidos políticos pela Justiça

Eleitoral é um argumento por parte dos coatores que se presta muito bem a essa

coação.

1.5 O VOTO NO PERÍODO PÓS-GETÚLIO VARGAS

O período da República Velha, que vai do final do Império até a

Revolução de 1930, foi marcado por eleições ilegítimas. As fraudes e o voto de

cabresto eram muito comuns, com os detentores do poder econômico e político

manipulando os resultados das urnas. Em uma eleição desse período, ocorrida no

45 Cada linha equivale à sequência de escolhas de cada eleitor.

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Rio de Janeiro, tantos eleitores votaram duas vezes que foi preciso empossar dois

governadores e duas Assembleias Legislativas46.

Em 1916, o Presidente Wenceslau Brás, preocupado com a seriedade do

processo eleitoral, sancionou a Lei nº 3.139, que entregou ao Poder Judiciário o

alistamento eleitoral. Por confiar ao Judiciário o papel de principal executor das leis

eleitorais, muitos perceberam nessa decisão o ponto de partida para a criação da

Justiça Eleitoral, que só viria a acontecer em 1932.

Tendo por um de seus princípios a moralização do sistema eleitoral, em

1930, aconteceu a Revolução. Um dos primeiros atos do governo provisório foi a

criação de uma comissão de reforma da legislação eleitoral, cujo trabalho resultou

no primeiro Código Eleitoral do Brasil, em 1932, que criou a Justiça Eleitoral, agora

responsável por todas as questões eleitorais – alistamento, organização das mesas

de votação, apuração dos votos, reconhecimento e proclamação dos eleitos. Além

disso, regulou em todo o país as eleições federais, estaduais e municipais.

Elaborado por uma comissão nomeada pelo então Ministro da Justiça

Maurício Cardoso, o Código Eleitoral de 1932 regulava o alistamento dos eleitores e

trazia como importantes inovações a instituição do voto feminino e do voto secreto.

Além disso, estabelecia a criação da Justiça Eleitoral, retirando do Legislativo o

controle sobre seu próprio processo de renovação. Com o surgimento da Justiça

Eleitoral, eliminava-se o mecanismo da degola, pelo qual os candidatos

oposicionistas eleitos para as casas legislativas do país muitas vezes tinham o

reconhecimento de sua eleição negado pelos membros da legislatura anterior. Outra

consequência do estabelecimento da Justiça Eleitoral foi a criação, em maio de

1932, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Além do voto secreto, o voto feminino e o sistema de representação

proporcional, em dois turnos simultâneos, a legislação eleitoral fez referência aos

partidos políticos, mas ainda era admitida a candidatura avulsa. Esse código já

46 TRE. Disponível em: <http://www.trern.gov.br/nova/inicial/links_especiais/centro_de_memoria/artigos/historia_votobrasil. htm>. Acesso em: 8 out. 2009.

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previa o uso de máquina de votar, o que só veio a se efetivar na década de 1990 na

figura das urnas eletrônicas e sobre as quais me deterei mais adiante.

A Revolução Constitucionalista de 1932 exige a convocação de uma

Assembleia Nacional Constituinte, feita pelo Decreto n. 22.621/33, que estabeleceu

que, além dos deputados eleitos na forma prescrita pelo Código Eleitoral, outros 40

seriam eleitos pelos sindicatos legalmente reconhecidos, pelas associações de

profissionais liberais e de funcionários públicos. Era a chamada representação

classista. Os avanços na legislação eleitoral foram contemplados na Constituição de

1934, inclusive o sufrágio profissional, que a própria Justiça Eleitoral recusaria. Na

mesma época, procedeu-se, indiretamente, conforme a Constituição regulava, à

eleição do presidente da República, Getúlio Vargas. As críticas ao Código Eleitoral

de 1932 levaram, em 1935, à promulgação de nosso segundo Código, a Lei nº 48,

que substituiu o primeiro sem alterar as conquistas de até então47.

Em 10 de novembro de 1937, sustentado por setores sociais

conservadores, Getúlio anuncia, pelo rádio, a “nova ordem” do país. Outorgada

nesse mesmo dia, a Constituição de 1937 extinguiu a Justiça Eleitoral, aboliu os

partidos políticos existentes, suspendeu as eleições livres e estabeleceu eleição

indireta para presidente da República, com mandato de seis anos. Em 1945, Getúlio

anuncia eleições gerais e lança Eurico Gaspar Dutra, seu Ministro da Guerra, como

seu candidato. Oposição e cúpula militar se articulam e dão o golpe de 29 de

outubro de 1945. Os ministros militares destituem Getúlio e passam o governo ao

presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, à época também presidente

do TSE, até a eleição e posse do novo presidente da República, o general Dutra, em

janeiro de 1946.

O processo de restabelecimento do sistema democrático no Brasil inicia-

se ainda no final do Estado Novo e é consolidado durante o Governo Dutra. Apesar

da repressão, intensifica-se a luta pela redemocratização no início de 1945,

notadamente após o lançamento, por um grupo de intelectuais, do “Manifesto

Mineiro”. Pressionado, Getúlio Vargas faz editar a Lei Constitucional nº 9/45, que

47 Segundo o próprio site do TSE. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/biblioteca/historia_das_eleicoes/capitulos/criacao_justica/criacao.htm> Acesso em: 12 nov. 2009.

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alterou vários artigos da Constituição, inclusive os que tratavam dos pleitos. Foram

então convocadas eleições e determinado o prazo de 90 dias para fixar as datas da

realização destas para presidente e governadores de estado, bem como para o

parlamento e assembleias.

O Decreto-Lei nº 7.586/45, conhecido por Lei Agamenon, em homenagem

ao Ministro da Justiça Agamenon Magalhães, responsável por sua elaboração,

restabelece a Justiça Eleitoral, regulando em todo o país o alistamento eleitoral e as

eleições. Na esteira da redemocratização, já com a Justiça Eleitoral reinstalada, foi

empossado o Presidente Eurico Gaspar Dutra e a Assembleia Nacional Constituinte

de 1945. Promulgada a Constituição, em 18 de setembro de 1946, a Câmara dos

Deputados e o Senado Federal passaram a funcionar como Poder Legislativo

ordinário.

A Constituição, a exemplo da de 1934, consagra a Justiça Eleitoral entre

os órgãos do Poder Judiciário e proíbe a inscrição de um mesmo candidato por mais

de um estado. O Código Eleitoral de 1945, que trouxe como grande novidade a

exclusividade dos partidos políticos na apresentação dos candidatos, vigorou, com

poucas alterações, até o advento do Código Eleitoral de 1950.

Em 1955, a Lei nº 2.250 cria a folha individual de votação, que fixou o

eleitor na mesma seção eleitoral e aboliu, entre outras fraudes, a do uso de título

falso ou de segunda via obtida de modo doloso. Outra alteração significativa do

Código Eleitoral de 1950 foi a adoção da “cédula única de votação”.

A cédula oficial guardou a liberdade e o sigilo do voto, facilitou a apuração

dos pleitos e contribuiu para combater o poder econômico, liberando os candidatos

de vultosos gastos com a impressão e a distribuição de cédulas.

A legislação eleitoral, no período compreendido entre a deposição de

João Goulart (1964) e a eleição de Tancredo Neves (1985), foi marcada por uma

sucessão de atos institucionais e emendas constitucionais, leis e decretos-leis com

os quais o Regime Militar conduziu o processo eleitoral de maneira a adequá-lo aos

seus interesses, visando ao estabelecimento da ordem preconizada pelo movimento

de 64 e à obtenção de uma maioria favorável ao governo. Com esse objetivo, o

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regime alterou a duração de mandatos, cassou direitos políticos, decretou eleições

indiretas para presidente da República, governadores dos estados e dos territórios e

para prefeitos dos municípios considerados de interesse da segurança nacional e

das estâncias hidrominerais, instituiu as candidaturas natas, o voto vinculado, as

sublegendas e alterou o cálculo para o número de deputados na Câmara, com base

ora na população, ora no eleitorado, privilegiando estados politicamente incipientes,

em detrimento daqueles tradicionalmente mais expressivos, reforçando assim o

poder discricionário do governo.

Em 15 de julho de 1965, é aprovada a Lei Orgânica dos Partidos Políticos

(Lei nº 4.740). Logo depois, a 27 de outubro, o AI-2 extingue os partidos políticos.

Ainda no mesmo ano, o Ato Complementar nº 4 determinou ao Congresso Nacional

a criação de organizações com atribuições de partidos políticos, o que deu origem à

Arena e ao MDB.

O AI-5, de 13 de dezembro de 1968, suspendeu as garantias da

Constituição de 67 e ampliou os poderes ditatoriais do presidente da República,

permitindo-lhe, em 1968, decretar o recesso do Congresso Nacional. Visando ao

controle sobre o eleitorado e sobre o Congresso Nacional, a Lei Falcão (Lei nº

6.339/76) restringiu a propaganda eleitoral, impedindo o debate político nos meios

de comunicação. Em 1977, a Emenda Constitucional nº 8 instituiu a figura do

senador biônico.

A Emenda Constitucional nº 11/78 revogou os atos institucionais e

complementares impostos pelos militares e modificou as exigências para a

organização dos partidos políticos. Em 19 de novembro de 1980, a EC nº 15

restabeleceu as eleições diretas para governador e senador e eliminou a figura do

senador biônico. A Lei nº 6.767, de 20 de dezembro de 1979, extinguiu a Arena e o

MDB e restabeleceu o pluripartidarismo, sinalizando para o início da abertura

política.

Foram eleitos indiretamente cinco presidentes militares. A sociedade,

principalmente nas grandes cidades, mobilizou-se por mudanças políticas que

levassem à redemocratização do país. A primeira eleição de um presidente da

República civil durante esse regime de exceção foi ainda indireta, por meio de um

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colégio eleitoral. E levou à presidência Tancredo Neves, que faleceu antes de tomar

posse, vindo a assumir o cargo seu vice, José Sarney, em 1985.

A Emenda Dante de Oliveira, que previa eleição direta para presidente e

vice-presidente da República, foi rejeitada em abril de 1984. Assim, a eleição do

primeiro civil após o período de exceção se deu, em 1985, ainda indiretamente, por

meio de um colégio eleitoral.

Em 15 de maio desse ano, a Emenda Constitucional nº 25 alterou

dispositivos da Constituição Federal e restabeleceu eleições diretas para presidente

e vice-presidente da República, em dois turnos; eleições para deputado federal e

para senador, para o Distrito Federal; eleições diretas para prefeito e vice-prefeito

das capitais dos estados, dos municípios considerados de interesse da segurança

nacional e das estâncias hidrominerais; aboliu a fidelidade partidária e revogou o

artigo que previa a adoção do sistema distrital misto.

Em 1982, ano em que foi eliminado da legislação eleitoral o voto

vinculado, a Lei nº 6.996/82 dispôs sobre a utilização do processamento eletrônico

de dados nos serviços eleitorais. Três anos depois, a Lei nº 7.444/85 disciplinou a

implantação do processamento eletrônico de dados no alistamento eleitoral e na

revisão do eleitorado, possibilitando, em 1986, o recadastramento, em todo o

território nacional, de 69,3 milhões de eleitores, sob a supervisão e orientação do

Tribunal Superior Eleitoral.

A Constituição de 1988 determinou a realização de plebiscito para definir

a forma (República ou Monarquia Constitucional) e o sistema de governo

(parlamentarismo ou presidencialismo) e prescreveu que o presidente e os

governadores, bem como os prefeitos dos municípios com mais de 200 mil eleitores,

fossem eleitos por maioria absoluta ou em dois turnos, se nenhum candidato

alcançasse a maioria absoluta na primeira votação.

Nos municípios com menos de 200 mil eleitores, os chefes do Executivo

seriam eleitos, em turno único, por maioria simples. Estabeleceu, ainda, que o

período de mandato do presidente seria de cinco anos, vedando-lhe a reeleição para

o período subsequente, e fixou a desincompatibilização até seis meses antes do

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pleito para os chefes do Executivo (Federal, Estadual ou Municipal) que quisessem

concorrer a outros cargos. Para evitar casuísmos, a Emenda Constitucional nº 4/93

estabeleceu que a lei que alterasse o processo eleitoral somente seria aplicada um

ano após sua vigência.

A Emenda Constitucional de Revisão nº 5/94 reduziu para quatro anos o

mandato presidencial e a Emenda Constitucional nº 16/97 permitiu a reeleição dos

chefes do Executivo para um único período subsequente. Com a aprovação da Lei

nº 9.504/97, pretendeu-se dar início a uma fase em que as normas das eleições

fossem duradouras.

1.6 O VOTO BRANCO E O VOTO NULO

O voto nulo nunca deixou de ser uma expressão política. Ao contrário do

voto em branco, que externava um certo comodismo por parte do eleitor, o voto nulo

expressava uma opinião política – ou apolítica, se preferir – pelo viés da negação e,

algumas vezes, do protesto. A cédula em papel, antes do advento da urna eletrônica

nos anos 1990, serviu de suporte para a expressão de descontentamento de setores

imensos da sociedade brasileira e em algumas eleições históricas o voto nulo – a

rasura em uma cédula de papel – serviu de plataforma de resistência.

Já o voto em branco representava antes de 1997 uma tomada de posição

apática: antes da urna eletrônica, quando o eleitor ainda depositava a cédula tal qual

a havia recebido do mesário na urna eleitoral, esse voto era contabilizado para o

candidato de maior votação naquela eleição. A mecânica funcionava da seguinte

maneira: se existiam dois candidatos “A” e “B”, “A” com 57% dos votos de uma

determinada eleição, “B” com 33%, 7% de votos em branco e 3% nulos, isso poderia

ser traduzido por 3% dos eleitores não estarem confortáveis com “A” ou “B” no

poder, ou mesmo com o sistema de governo, ou mesmo com a ideia de Estado –

enfim, se qualquer componente da democracia representativa que é oferecida a um

dado eleitor lhe era incômoda, a expressão desse incômodo era o voto nulo. Já os

7% dos eleitores que votavam em branco tinham seu voto traduzido por “estou

satisfeito tanto com ‘A’ como com ‘B’, tanto me importa”. Neste exemplo, “A” teve

uma aceitação nesta eleição imaginária de 64% do eleitorado (seus 57% somados

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aos 7% dos votos em branco). O voto em branco era, em suma, uma expressão de

conformismo, enquanto o voto nulo teria por uma das interpretações a antítese do

voto em branco e desse conformismo.

Antes do advento das urnas eletrônicas, o voto nulo podia representar

uma em duas interpretações: erro de marcação na cédula de um eleitor iletrado, não

acostumado à linguagem formal, ou um voto de protesto. No primeiro caso, se a

marcação feita pelo eleitor fugisse dos espaços delimitados pela cédula eleitoral ou

mesmo fosse diferente daquela prevista pelo TSE, seu voto poderia ser anulado.

Essa marcação normalmente era um “X” no espaço limitado por um polígono

colocado à esquerda do nome do candidato concorrendo a um determinado cargo,

feito à caneta esferográfica na cor azul ou preta, cabendo múltiplas interpretações

do que pode ser entendido como voto válido pela mesa responsável pela contagem

dos votos.

Em muitos casos, ao longo da história dos pleitos, essas marcações nas

cédulas eleitorais foram manipuladas e se tornaram objeto de intensas disputas

entre os partidos políticos que concorriam a uma dada eleição, especialmente no

decorrer de disputas acirradas, em que o vencedor de um pleito seria eleito por uma

pequena margem de votos, como no caso das eleições presidenciais da Flórida,

EUA, no ano 2000, eleição essa definida por uma margem de 537 votos e que

contou com enorme polêmica quanto à sua apuração, assunto que será discutido

mais adiante.

No segundo caso, a cédula de papel era usada para a expressão de um

voto de protesto. O voto de protesto era um termo usado para designar situações em

que, durante uma disputa eleitoral, o eleitor decidia anular seu voto ao marcar o

nome de candidatos fictícios, folclóricos, ou rasurando e escrevendo na cédula como

forma de manifestar sua indignação com o sistema eleitoral vigente, com as opções

de candidatos apresentadas pelos partidos políticos nesse determinado pleito ou

como forma de manifestar seu desagravo com relação ao Estado.

No entanto as motivações para o voto de protesto eram muito variadas e

definitivamente nem todo voto nulo poderia ser contabilizado como expressão de

desagravo. Nos últimos anos da década de 1980 a adesão normativa dos brasileiros

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à democracia representativa que se apresentava como dispositivo de mediação

entre os governantes e a multidão se tornava cada vez mais consistente, talvez por

esforço das campanhas “Diretas Já”48. Entretanto, também é possível apontar para

uma crescente frustração com o funcionamento concreto das instituições políticas do

país e a democracia representativa apresentada, considerada por muitos apenas

uma formalidade.

Se por um lado o interesse pela participação política formal crescia, em

paralelo também ganhava força um crescente descontentamento de setores

frequentemente mais intelectualizados da sociedade, que acabava por culminar no

voto de protesto49. Essa tensão em nossa cultura política, portanto, é a chave para a

compreensão de um comportamento peculiar do eleitor brasileiro: a crescente

politização formalizada de grandes parcelas da população que aderiam de braços

abertos à democracia representativa formal concorrendo com uma politização ainda

mais hipertrofiada, que ultrapassava essa primeira politização e questionava o

sistema sobre o qual a representação estava estruturada, considerando o voto nulo

como expressão contrária ao “prêmio de consolação” que o sufrágio representava,

expressão maior da democracia representativa formal. O descrédito e desconfiança

nas instituições políticas e nos seus operadores, portanto, era uma das causas

possíveis para explicar o voto nulo tomado como forma de protesto.

Como dito anteriormente, nem todo voto nulo era um voto de protesto. Era

possível identificar também um tipo de eleitor com traços personalistas e

pragmáticos. Não mais um voto politizado, mas um voto desleixado e personalista, 48 Diretas Já foi um movimento civil de reivindicação por eleições presidenciais diretas no Brasil

ocorrido em 1983-1984. A possibilidade de eleições diretas para a presidência da República no Brasil se concretizou com a votação da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira pelo Congresso. Entretanto, a Proposta de Emenda Constitucional foi rejeitada, frustrando a sociedade brasileira. Ainda assim, os adeptos do movimento conquistaram uma vitória parcial em janeiro do ano seguinte quando seu principal líder, Tancredo Neves, foi eleito presidente pelo Colégio Eleitoral. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1>. Acesso em: 7 out. 2009.

49 “O que dizer de níveis mais elevados de escolarização, por exemplo, que permitiriam um cálculo eleitoral mais complexo? Seu efeito, neste caso, se daria de forma diferente sobre a taxa de votos brancos e nulos, antes que diretamente sobre o comparecimento eleitoral, no seguinte sentido. Em se tratando de eleitores mais sofisticados, com maior informação política e que superaram o estigma do analfabetismo - lembrando que o ato de votar só é público no interior das cabines eleitorais - seu universo valorativo é mais amplo e lhe permite com mais facilidade recusar a oferta partidária que lhe é proposta, podendo optar por votar em branco ou anular seu voto.” LIMA JR., Olavo Brasil de. Alienação eleitoral e seus determinantes. Disponível em: <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_14/rbcs14_06.htm>. Acesso em: 25 out. 2009.

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extremamente arraigado na frustração que atingia o eleitor médio quando este

tentava formular avaliações coerentes sobre um fenômeno político recentemente

novidadeiro para a época, o sufrágio.

O sufrágio universal retomado nos anos 1990 formou eleitores, mas

muitos destes eram vazios de conteúdo ideológico, o que certamente facilitava sua

manipulação – talvez aí uma das razões da obrigatoriedade do voto, como será

discutido na sequência. Apesar de não serem tão suscetíveis às manobras do

marketing político da época a ponto de votarem neste ou naquele candidato por

razões superficiais ou puramente personalistas, no caso de estes eleitores não

terem formado uma concreta e fundamentada opinião sobre os programas políticos

de cada qual dos candidatos, este eleitor muitas vezes preferia a opção do voto

nulo, porque este eleitor já era politizado suficientemente para distingui-lo do voto

em branco.

Nos primeiros anos da retomada do sufrágio – e quiçá este

comportamento tenha reflexos até hoje – os eleitores decidiam seu voto a partir de

critérios como eficiência na administração pública (que representam no limite mais

empregos e melhor infraestrutura) e preocupação com questões pós-materialistas,

tais como a preservação ambiental e qualidade de vida, reflexos da sociedade de

controle que teve como gênese de periodização os anos 1990 e foi conceituada por

Deleuze, e razão motriz da ecopolítica, como aponta Passetti.50

Muitas vezes o voto nulo representava um eleitor que manifestava sua

falta de preferência política ao não se julgar capaz de decidir entre os candidatos

propostos, um eleitor que simplesmente não se importava com quem seria eleito,

50 “Estamos numa sociedade de controle voltada para a ecopolítica. O ambiente planetário passa a ser o alvo do investimento na vida. Não mais uma vida biológica, do indivíduo como bem e finalidade, a saúde de cada homem da Terra, segundo a moderna concepção ocidental de sociedade e Estado européia e estadunidense, investindo no fazer a vida. A vida dos minerais, da flora, da fauna, dos mares e rios, dos humanos passa a ser vista em interfaces. Um novo saber sobre a vida, ultrapassando os balizamentos biológicos e evolucionistas, procura relacionar matéria e espírito, natureza e cultura, manifestações de vida, defesas de espaços, como reservas e santuários, mas sobretudo a emergência de uma ética que redimensione as ocupações das superfícies, profundidades e ares e, simultaneamente, conserve as etnias espalhadas pelos diversos lugares como herança da própria humanidade. Conservar o planeta, suas etnias, recuperar zonas devastadas pelos investimentos do passado, apoiar populações carentes, enfim, dar qualidade de vida ao planeta”. PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedades de controle. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2003. p. 268.

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incapaz de distinguir entre as opções dadas. Em tempos em que as campanhas são

decididas através do tempo em mídia e pela ciência quase exata do marketing

político, como culpar esse eleitor pela sua indolência?

O voto de protesto existiu por muitas décadas e foi parte indissociável de

muitos pleitos, por vezes tingindo a eleição com tintas de folclore: foi o caso de

Cacareco, um rinoceronte do Zoológico de São Paulo, que no pleito de 1959 para

vereador da cidade amealhou cerca de 100 mil votos51.

Neste ano, Adhemar de Barros era o governador de São Paulo e o

eleitorado tinha se levantado contra a Câmara Municipal, objeto de interesse para a

mídia impressa da época por conta das inúmeras denúncias de corrupção nas quais

os vereadores da cidade estavam envolvidos.

Cacareco, um rinoceronte fêmea do zoológico do Rio de Janeiro, tinha

sido emprestado por este para a inauguração do zoológico de São Paulo e, por

conta do sucesso da atração, a instituição paulistana cogitava estender o prazo de

devolução do rinoceronte para além dos seis meses negociados, à revelia dos

cariocas. Em meio a múltiplas denúncias de corrupção que atingiam a Câmara

Municipal, o cabo de guerra entre os zoológicos de São Paulo e Rio de Janeiro por

conta de Cacareco era assunto recorrente nos jornais locais. Foi o que bastou para

o jornalista Itaboraí Martins “lançar” a candidatura de Cacareco ao cargo de

vereador, em protesto contra o baixo nível dos outros 540 concorrentes52, sob o

slogan “É melhor eleger um rinoceronte do que um asno”.

Houve uma adesão gigantesca à candidatura de Cacareco e várias

gráficas imprimiram cédulas de votação com o nome do rinoceronte, uma vez que o

TSE não imprimia cédulas oficiais, cabendo aos eleitores levarem as suas para os

51 CACARECO agora é Excelência. O Cruzeiro, 24 out. 1959. Disponível em:

<http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/24101959/241059_8.htm>. Acesso em: 25 out. 2009. 52 Conta a mídia da época que muitos dos 540 candidatos que disputavam as 45 vagas para vereador

em São Paulo usavam de técnicas pouco ortodoxas para tentar a eleição. Um dos candidatos, por exemplo, pesava 230 kg e ostentava o slogan: “o candidato que vale quanto pesa”. Outro candidato andava pela cidade com uma onça a tiracolo: “eleitor inteligente vota no amigo da onça”, dizia. O partido PRT instalou uma roleta no Viaduto do Chá com os nomes de seus 45 candidatos e o cartaz: “Basta girar a roda da sorte, todos merecem seu voto”. Recanto estórias do domínio público. Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/colunas/recontando-estorias-do-dominio-publico/rinoceronte-cacareco-cinquentenario-de-uma-eleicao-historica,236,2543.html>. Acesso em: 11 dez. 2009.

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locais de votação. Como as cédulas eram de papel e os eleitores escreviam o nome

de seu candidato de preferência na mesma, Cacareco acabou por se tornar o mais

famoso caso de voto de protesto ou voto nulo em massa da história da política

brasileira – amealhou 100.000 votos naquele pleito. Para se ter uma ideia da

dimensão deste número, quando comparado relativamente com o eleitorado da

época, o partido mais votado naquela eleição não chegou a 95.000 votos. O fato se

tornou notório e serviu como referência para várias análises de percentuais de voto

nulo no Brasil.

Alguns anos mais tarde, nas primeiras eleições logo após o golpe militar,

em 1966, setores oposicionistas tentaram novamente uma tímida campanha em prol

do voto nulo. Como as condições para difundir a ideia eram rarefeitas, a campanha

não vingou e a porcentagem de votos anulados foi, naquela eleição, tímida.

Por volta dos anos 1970, a questão do anulacionismo voltou. Parte da

sociedade avaliava ser possível e necessária uma atuação no interior do partido

oposicionista criado pelo regime, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Nas

eleições de 1974, a polêmica se instaurou: alguns setores acreditavam que as

discussões no interior do partido oposicionista estavam fadadas à capitulação ou à

adesão e tentaram, timidamente, disseminar o protesto através da anulação do voto.

Quatro anos depois, quando o movimento de massas já dava sinais claros de

reativação, com as lutas dos estudantes, a anistia e as greves do ABC paulista,

surgiu o slogan de ordem proposto pelo jornal O Trabalho: “Nem Arena nem MDB,

voto nulo por um partido operário”53. A campanha foi malfadada e os poucos comitês

formados antes destas eleições para a disseminação do voto nulo se dissolveram

logo em seguida.

Para as eleições municipais do Rio de Janeiro em 1988, um outro

exemplo do movimento pelo voto de protesto tomou forma, desta vez na figura de

um símio: Macaco Tião, batizado em homenagem a São Sebastião, padroeiro do Rio

de Janeiro, era o nome de um chimpanzé do zoológico carioca bastante querido

pelas crianças e pelos seus visitantes.

53 Revista Fórum. Disponível em:

<http://revistaforum.tempsite.ws/conteudo/detalhe_materia.php?codMateria=1147>. Acesso em: 4 jan. 2010.

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53

 

O Macaco Tião tornou-se uma celebridade no Brasil depois que os

humoristas de um programa de televisão, que era transmitido pela Rede Globo de

Televisão, chamado “Casseta e Planeta” lançaram a sua candidatura para a

prefeitura do Rio de Janeiro no pleito de 1988. Macaco Tião teve naquela eleição

mais de 400 mil dos votos dos eleitores, alcançando o terceiro lugar de um total de

doze candidatos54.

No final dos anos 1980 e na década seguinte, a difusão do anulacionismo

tornou-se quase impotente por conta do crescimento do Partido dos Trabalhadores

(PT) como uma incensada alternativa institucional na transformação social do país.

Em 1996, com a introdução da urna eletrônica, uma sutil, mas violenta, mudança

aconteceu na democracia representativa brasileira: o voto nulo, antes uma

plataforma política, foi higienizado e transformado em erro de sistema. E o voto nulo

pode servir de uma chave importantíssima para a compreensão do que Deleuze

chamava de sociedade de controle.

Se antes da introdução das urnas eletrônicas brasileiras em 1996 o voto

nulo poderia ser interpretado como uma opção politizada do eleitor, depois de 1996

essa possibilidade tornou-se incabível. Nas antigas eleições em cédulas de papel o

voto de protesto se dava pela descarga de votos num alvo peculiar, como visto

anteriormente. O protesto do eleitor podia também ser expresso por meio de

palavras ofensivas escritas nas cédulas eleitorais, o que pouco importava no quadro

geral: todos estes votos eram anulados pelos juízes eleitorais e o efeito do voto de

protesto no resultado eleitoral era apenas o de aumentar a quantidade porcentual de

votos nulos.

As urnas eletrônicas utilizadas no Brasil são muito rígidas quanto à

interface de comunicação com o eleitor (ou, palavra cara na gramática da sociedade

de controle, “usuário”): sua face é composta por uma pequena tela e um limitado

teclado de apenas 10 teclas numéricas e outras 3 teclas através das quais este pode

se manifestar. Por conta desta falha no desenho de interface da urna, existiu uma

enorme dificuldade por parte do eleitor em comunicar à máquina de votar seu

54 MACACO Tião, o salvador dessa nação. O Globo. Disponível em:

<http://oglobo.globo.com/blogs/javoto/posts/2010/08/21/macaco-tiao-salvador-dessa-nacao-317879.asp>. Acesso em: 23 nov. 2009.

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54

 

desejo. No referendo de 200555, por exemplo, que exibia a pergunta “O comércio de

armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” e deveria ser respondido por

um simples “sim” ou “não” criou uma enorme confusão no eleitor: simplesmente não

existiam teclas de sim e não presentes na interface da máquina e, para responder a

perguntar, o eleitor deveria pressionar números na urna, como se fossem números

de candidatos a pleitos, seguidos de um “entra”. Urnas eletrônicas projetadas com

interfaces mais bem planejadas, como as usadas em países como EUA, Canadá e

Venezuela possuem um sistema que permite ao eleitor tocar na tela e fazer a sua

escolha, como alguns terminais bancários. Tal sistema permite maior flexibilidade na

interface de comunicação com o eleitor e elimina as dúvidas deste no momento de

recolher a sua expressão.

Já que este eleitor descontente com a democracia representativa não

pode mais votar no Cacareco, uma vez que digitar o número de um candidato

inexistente e transformar seu voto em erro não mais o satisfaz enquanto

manifestação de seu protesto, estas novas limitações impostas pela máquina de

votar o levaram a depositar seu voto em candidatos-bufões, personalidades

improváveis completamente esvaziadas de propostas políticas completas, mas que

apelam para o senso de humor e para a tragicomicidade da nossa democracia

formal: candidatos de protesto, candidatos peculiares, improváveis, com

personalidades normalmente cômicas, quase bufões que imantaram uma massa de

eleitores descontentes com a democracia representativa proposta.

A principal diferença entre os dois casos é que o antigo voto de protesto

era apurado como voto nulo e não afetava a distribuição das vagas entre os eleitos.

Já o novo candidato de protesto é apurado como voto válido e serve para eleger

candidatos com baixa votação da mesma legenda, candidatos estes eleitos na

esteira da eleição do candidato de protesto e que não seriam eleitos em condições

normais de votação.

55 O referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições, ocorrido no Brasil

a 23 de outubro de 2005, não permitiu que o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826 de 23 de dezembro de 2003) entrasse em vigor. Tal artigo apresentava a seguinte redação: “art. 35 - É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6º desta Lei”. REFERENDO no Brasil em 2005. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Referendo_no_Brasil_em_2005>. Acesso em: 5 set. 2009.

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Um exemplo deste fenômeno cultural mancomunado com a nossa

maneira de exercer política: em 2002 o candidato Enéas Ferreira Carneiro, médico

cardiologista e político aspirante, fundador do Partido da Reedificação da Ordem

Nacional, o PRONA, foi eleito deputado federal pelo estado de São Paulo, após se

candidatar por três vezes à presidência da República (1989, 1994 e 1998) e uma vez

à prefeitura de São Paulo. Sua candidatura se tornou famosa por conta de seu

bordão "Meu nome é Enéas!", usado sempre ao término de seus pronunciamentos

no horário eleitoral gratuito brasileiro. Tal bordão se tornou uma espécie de grande

piada nacional, junto com sua figura marcante, seu tom agressivo ao falar e sua

propaganda pessoal peculiar. Tais características, entre as quais o discurso

ultranacionalista e a promessa da construção da bomba atômica nacional, entre

outras extravagâncias, atraíram o voto dos eleitores descontentes com as

alternativas apresentadas para aquele pleito, eleitores que em outras épocas

simplesmente anulariam seu voto.

Pois, o deputado Enéas obteve a maior votação de um deputado federal

de todos os tempos no Brasil, com quase 1,6 milhão de votos: o quádruplo do

segundo colocado, 8% dos votos do maior estado do Brasil. A legitimidade de sua

eleição, que certamente ecoou junto de parte do eleitorado conservador paulistano,

confunde-se com as centenas de milhares de votos de protesto que lhe foram dados

por parte de um eleitor que antes votaria nulo ou branco em razão de seu

conformismo ou inconformismo.

Como a quantidade de votos que o candidato precisaria para se eleger

naquela eleição era de aproximadamente 280 mil votos, os 1,3 milhão de votos

remanescentes recebidos pelo candidato Enéas foram transferidos para outros cinco

candidatos de seu partido, PRONA, todos estes candidatos com votação individual

sem qualquer expressão. A distorção ocorreu porque a eleição para deputados no

Brasil acontece pelo sistema proporcional, ou seja, mais do que a quantidade de

votos absoluta recebida por cada candidato o que determina sua eleição é o

quociente eleitoral, ou seja, a soma de todos os votos recebidos por um partido

dividida pelo número de candidatos desse mesmo partido.

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Assim sendo, o eleitor pode votar em um candidato e ajudar a eleger uma

dezena de outros em quem jamais votaria. Para se ter uma ideia da

inexpressividade dos votos dos candidatos federais eleitos na esteira de Enéas, três

destes deputados federais eleitos obtiveram menos de 500 votos diretos cada um.

Tamanha foi a quantidade de votos nulos atraídos por Enéas que, se o PRONA

tivesse inscrito mais um candidato a deputado para aquele pleito, tal se elegeria

ainda que não tivesse registrado para si sequer um voto.

Uma evidência de que a urna eletrônica transferiu o que era antes um

voto nulo ou branco na cédula impressa, em parte votos de protesto, em uma nova

configuração, insatisfação desta vez representada por um candidato de protesto, foi

o percentual dos votos dados a Enéas somados aos votos brancos e nulos nas

eleições de 2002: 17,1%, percentual relativamente próximo à totalidade dos votos

brancos e nulos dados pelos eleitores nas eleições de 1998, cerca de 20%. Nas

eleições deste ano nenhum candidato imantou o humor do eleitorado e

consequentemente acabou por representar um voto de protesto. Se a somatória dos

votos brancos e nulos de uma eleição é similar à somatória dos votos brancos, nulos

e de um candidato que representava o voto de protesto na eleição seguinte, o fato

aponta para a nova configuração deste tipo de voto depois da implantação da urna

eletrônica no Brasil, e representa, por fim, forte evidência de que o voto de protesto,

pelo menos a fração menos “politizada” dele, foi transferido para o voto no candidato

de protesto, com efeitos colaterais indesejáveis para a democracia representativa:

se antes das urnas eletrônicas esse voto nulo apenas era contabilizado como tal e

diminuía o número de votos válidos no interior do sistema, agora tal voto pode até

eleger uma bancada de deputados sem qualquer representatividade junto à

multidão. O estilista Clodovil Hernandez e mais recentemente o palhaço Tiririca, que

atraiu para si mais de um milhão e duzentos mil votos, são herdeiros políticos de

Enéas Carneiro e representantes legítimos do candidato de protesto.

Outra consequência negativa do voto no candidato de protesto é a

carnavalização dos candidatos a pleitos mais fragmentados, como deputados

estaduais e vereadores: com uma pequena fração de tempo ou quase nenhuma

chance junto do horário eleitoral, normalmente constrangidos com verbas

minúsculas para lançarem suas candidaturas, o último recurso de que esses

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candidatos dispõem é o tratamento de choque do eleitorado. Não por outra razão em

todas as eleições esses candidatos tratam de configurar para si a maior quantidade

de atributos estranhos possíveis e acabam por formar uma espécie de um

espetáculo bizarro dentro do horário eleitoral e fora dele: candidaturas vazias,

propaladas aos berros, alicerçadas sobre atributos físicos, calcadas em bordões,

com grande parcela de eleitos entre os que têm alguma penetração junto da mídia

de massa, como radialistas e artistas de apelo popular, uma espécie de perversão,

que é um dos efeitos da democracia representativa brasileira.

Os candidatos de protesto, apesar de representarem fatia considerável do

antigo voto nulo, não foram suficientes para exterminar por completo a

fantasmagoria anacrônica em que esse tipo de voto se transformou. Por conta da

decepção de vários setores da sociedade com o governo petista, a anulação do voto

representa, pelo menos em teoria, o voto nulo na urna eletrônica, constituindo-se em

um mal menor do que o voto no outro grande partido que disputa com o Partido dos

Trabalhadores os segundos turnos dos pleitos, o Partido da Social Democracia

Brasileira (PSDB).

Em teoria. Na prática, o voto nulo em tempos de urna eletrônica foi

achatado, completamente esvaziado de sentido político e transformado em um erro,

termo caro à precisão e modulação constante imposta pela sociedade de controle.

Para se votar nulo, o eleitor precisa digitar, propositadamente, um número

equivocado na urna eletrônica e confirmar a sua opção. Para votar em branco,

processo muito mais simples, o eleitor precisa pressionar o botão “branco” na

mesma máquina.

Com a Lei nº 9.504/97, Artigo 2o 56, os votos em branco passaram a

receber o mesmo tratamento dos votos nulos depois da implementação das urnas

eletrônicas, ou seja, não são mais levados em conta na totalização dos votos. A

nova lei achatou todo o processo e colocou ambos os votos no mesmo plano, pois

considera eleito o candidato que conseguir maioria absoluta dos votos, “não

computados os em branco e os nulos”.

56 “Será considerado eleito o candidato a Presidente ou a Governador que obtiver a maioria absoluta

de votos, não computados os em branco e os nulos.” TRE. Disponível em: <http://www.tre-sp.gov.br/legislacao/lei_9504.pdf>. Acesso em: 7 nov. 2009.

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Se os dois votos têm o mesmo efeito de poder, por que ainda há

diferença entre um e outro? Por que ainda se costuma dizer que existe um voto em

branco e um voto nulo, sendo que tanto um quanto outro são interpretados da

mesma forma pela máquina? Conceitualmente, existia sim diferença entre um e

outro enquanto chave de interpretação dos desejos da multidão: o voto nulo tem por

interpretação uma discordância por parte do eleitor do sistema político, enquanto o

voto em branco tem uma leitura de que o eleitor discorda apenas dos candidatos

que estão em disputa. Isso, no entanto, no sistema de votação em cédulas de papel.

No caso das urnas eletrônicas, essa distinção conceitual caiu por terra, porque

independentemente da escolha do eleitor, na prática esta opinião não pode ser

colhida.

A existência destes dois tipos de votos é apenas um anacronismo, um

erro de sistema que herdamos da tecnologia de votar anterior e, por receber

tratamento de erro pelo sistema e ter de passar por um erro do eleitor que queira

expressar assim seu descontentamento, qualquer que este seja com relação à

democracia representativa, o voto nulo envolve o teatro vulgar, uma representação

participativa em que o ator-espectador não sabe que está em cena e o voto nulo é

mantido apenas para dar a impressão de que o número de opções é suficiente para

inclusive se questionar a maquinaria toda. O que importa é a ilusão de que

participamos, outro conceito importante para a sociedade de controle.

O fato de o voto nulo ter se convertido de uma plataforma de expressão

em erro no ano 1997 fala muito sobre a sociedade de controle, em que modulação é

a chave: na contemporaneidade não existe mais o peso moral do certo e do errado,

do sim e do não, do preto e do branco. Tudo se transforma num fluido “talvez”, em

um grande cinza. Tal é a razão de existência do voto nulo: apesar de ele ter sido

transformado em uma alternativa vazia de sentido, não ser contabilizado e não

sequer representar o menor significado lógico dentro da estrutura do sufrágio (afinal,

por que manter uma escolha aberta para o eleitor se a mesma não será recolhida,

sequer para efeito de estudos?), ele está ali para representar uma escolha possível

e para que esta escolha nos console: participamos, somos ouvidos, ratificamos a

engrenagem, aceitamos o jogo:

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Não há necessidade de ficção científica para conceber um mecanismo de controle que forneça a cada instante a posição de um elemento em meio aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica). Félix Guattari imaginava uma cidade onde cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua, seu bairro, graças ao seu cartão eletrônico, que removeria qualquer barreira; mas, do mesmo modo, o cartão poderia ser rejeitado tal dia, ou entre tais horas; o que conta não é a barreira, mas o computador que localiza a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma modulação universal.

Não se trata de certo ou errado, mas sim de erro e acerto, e tais

parâmetros não são estanques, mas fluidos: podem mudar a qualquer momento,

sem a prévia informação dos participantes, uma modulação constante e universal

que regula as fibras do tecido social. Não estamos mais no campo das leis, mas da

jurisprudência.

No entanto, e vale a pena frisar, esta modulação contínua não é a única

maneira de regular o tecido social: é apenas mais uma, mais eficaz, mais produtiva e

menos dispendiosa, de melhor relação “custo-benefício” (outra chave conceitual da

sociedade de controle). Existe uma ultrapassagem das tecnologias da sociedade de

controle quando as comparamos com as tecnologias de regulação da sociedade

disciplinar: ela não aniquila as demais, apenas se soma a elas, e nisso reside sua

beleza.

O voto de cabresto, efeito de poder de uma sociedade disciplinar e seu

dispositivo, ainda existe na contemporaneidade, mas hoje em dia tal é modulado

pela urna eletrônica, pelo celular, outro dispositivo importantíssimo para que essa

modulação constante se efetive: a nova configuração ultrapassa, mas sem banir por

completo a sociedade disciplinar que opera segundo o molde da família, da fábrica,

da escola, do hospital, do quartel, do chão de fábrica. Estamos diante de uma

sociedade de características rizomáticas, exercida por protocolos e interfaces, de

erros e acertos, em que o voto nulo representa apenas um desses erros, um

controle que exige, portanto, “não um poder transcendente, mas um mecanismo que

reside no plano da imanência [...] um mecanismo liso definido por fluxos não

codificados, flexibilidade, modulação contínua e equalização tendencial.”57

57 HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Tradução de Berilo Vargas. 2. ed. Rio de Janeiro:

Record, 2001. p. 348- 349.

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A única alternativa que existe fora da estrutura que nos é apresentada é o

absenteísmo: a recusa em participar do pleito, obrigatório no Brasil. Questionar o

próprio processo eleitoral é possível apenas ao não se participar dele. Mas não

votar, numa situação de lei em que o ato é obrigatório, acarreta transtornos legais. A

possibilidade de sair do país pode chegar a ser retirada daquele que se abstém,

uma vez que a renovação ou mesmo a feição de um novo passaporte depende da

inexistência de débitos de um cidadão junto da Justiça Eleitoral. E será que o

absenteísmo é mesmo uma maneira de resistir, ainda que inócua, ainda que no

plano da representação? Mesmo que esta possibilidade não esteja prevista no

campo formal, qual a sua efetividade enquanto resistência, se é que podemos

chamar de recusa de participação uma resistência?

Se a fantasmagoria do voto nulo está ali para isso, para passar a ilusão

de que mesmo quem não concorda com o sistema vigente, mesmo que meu

desagravo seja mais profundo, mais estrutural, ainda assim minha opinião será

contemplada pela existência do voto nulo formal, por que um cidadão deixaria de

votar? Por que deixar de participar, sendo que essa participação é fundamental para

que o sistema permaneça tal como ele foi montado? Para responder esta pergunta

tratarei de primeiro entender três pontos: o que propõe o absenteísmo, quais as

consequências do mesmo para o processo, por que a participação é chave na

sociedade de controle e, finalmente, por que o voto é obrigatório no Brasil e não em

outras democracias representativas no mundo.

1.7 O ABSENTEÍSMO

O termo absenteísmo, por alguns chamado de “alienação eleitoral” (em

conjunto com o voto em branco ou nulo), é a recusa em se participar do ápice da

democracia representativa: o voto. Tal recusa passa também pela não justificativa

da ausência, pois tal justificativa está prevista no código eleitoral e, portanto, nada

mais é do que participar do mesmo de outra maneira, esta também regulamentada.

O absenteísmo diz respeito, portanto, à situação em que eleitores que

gozam do direito de voto não participam do pleito. Este fenômeno é

socioeconomicamente seletivo, isto é, ele não é típico de todos os extratos sociais.

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Segundo Lima Jr., existem algumas razões para o absenteísmo do voto

no Brasil:

1. O acesso às urnas, que não está distribuído de forma homogênea pelas diversas unidades da Federação, é estímulo positivo para o absenteísmo eleitoral. 2. O absenteísmo eleitoral é determinado por fatores de natureza ecológica como a extensão do território das unidades da Federação e pelo grau de urbanização. 2.1 Quanto maior a extensão do estado, maior a taxa de abstenção eleitoral. 2.2 Quanto maior a população urbana residente, menor o absenteísmo eleitoral. 3. A porcentagem de votos brancos e nulos depende da extensão do território, porém, diversamente do que ocorre com o absenteísmo, a relação neste caso é negativa: quanto maior a extensão territorial, menor a proporção de votos brancos e nulos. 4. O comportamento eleitoral é também afetado pelo grau de escolarização da população. 4.1 Quanto maior o analfabetismo, maior a taxa de abstenção eleitoral. 4.2 Quanto maior o analfabetismo, maior a taxa de votos brancos e nulos.58

Os primeiros estudos sobre este comportamento teriam decorrido

fundamentalmente da suposta despolitização de que o absenteísmo seria uma das

expressões, sendo interpretado como uma disfunção do sistema. Todavia trata-se

de um fenômeno complexo que não admite simplificações muito redutoras e que

pode assumir diversas formas e dimensões outras.

Logo, não são apenas as questões socioeconômicas que influem nas

taxas de abstenção do voto: existem muitos outros fatores que explicam o fato,

dentre eles o desinteresse pela atividade política, frequentemente associado a

formas de insatisfação difusas ou a dificuldades de escolha, bem como as atitudes

de absenteísmo ativo ou ideológico, em que a não participação no ato eleitoral pode

traduzir tanto um ato político pela recusa da escolha entre uma oferta considerada

não satisfatória, como uma recusa da própria legitimidade do sistema político

instituído.

58 Notas de pesquisa de Olavo Brasil de Lima Jr. para Alienação eleitoral e seus determinantes. LIMA

JR., 2009.

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Interessam-me as razões de abstenção que não são consequência da

dificuldade de acesso à urna ou por razão de analfabetismo. O absenteísmo será

pensado aqui como tomada de posição política, não como uma consequência

geográfica ou socioeconômica. Em suma, as razões ativas, não as reativas ou

circunstanciais. Neste campo de razões, Santos, após examinar as taxas de

abstenção e de votos brancos e nulos, concluiu sobre o absenteísmo em trabalho

anterior à implementação das urnas eletrônicas que:

1. a mobilização ou, contrariamente, elevação na taxa de alienação eleitoral independem da orientação do governo e dos ciclos de progresso/retração econômica; 2. a ondulação na taxa de alienação parece ser determinada pelo retorno esperado da participação eleitoral, que é entretanto um cálculo subordinado à maior ou menor incerteza quanto ao significado político efetivo do processo eleitoral; 3. infere-se que, no Brasil; quanto maior a incerteza do significado político efetivo do processo eleitoral, menor o retorno esperado e maior a taxa de alienação59

Segundo o autor, o índice que pauta a abstenção dos eleitores é

inversamente proporcional à confiança que este tem com relação ao resultado

político efetivo do processo eleitoral. Questões de circunstância, tais como pujança

ou crise econômica do país, não têm grande influência no índice de abstenção do

eleitor. Em miúdos, quanto maior a incerteza de que o desdobramento do processo

político far-se-á de acordo com os resultados eleitorais, tanto maior o peso da

dimensão “retorno esperado de voto”, e tanto maior o incentivo à alienação60.

Se o eleitor perde a fé no processo eleitoral e sua incerteza é projetada

sobre a democracia representativa como um todo, se ele perde sua confiança no

sistema, ele deixa de participar do mesmo. Como a urna eletrônica tem seu 59 SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Crise e castigo: partidos e generais na política brasileira. São

Paulo, Rio de Janeiro: Vértice/IUPERJ, 1987. p. 55. 60 Segundo Lima Jr., “pode-se objetar, no entanto, que a interpretação do comportamento eleitoral

alienado, na medida em que agrega manifestações eleitorais diferentes, esteja equivocada do ponto de vista dos fatores determinantes da alienação. Ou, simplesmente: o que leva o eleitor a se abster não é exatamente o que leva o eleitor a votar em branco ou a anular o voto. A taxa de alienação é, evidentemente, importante atributo do sistema eleitoral, considerada tal como foi definida, além de ter consequências próprias para o funcionamento do sistema democrático. Deve, no entanto, ser decomposta: abstenção, por um lado, e brancos e nulos, por outro.” No entanto, apenas para meio de se fazer esta análise sobre a importância da confiança na urna eletrônica e como esta é um componente fundamental da sociedade de controle, não entrarei em tal nível de detalhamento. LIMA JR., 2009.

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funcionamento insondável e seu processo opaco para a quase totalidade dos

eleitores, como ela pede nossa confiança irrestrita, uma vez que esta é questão

prioritária quando todos usam uma urna cuja maquinaria é inescrutável, o

funcionamento da democracia representativa ganha uma dimensão de fé por parte

do eleitor.

Ora, sabemos que somos falhos e propensos à corrupção e as fraudes ao

longo da nossa história de pleito estão aí para comprovar o fato. Mas não a

máquina. Não a máquina higiênica, rápida, precisa, instantânea, brasileira, à prova

de erros. Essa está ali para higienizar as eleições, fazer com que nossas vontades

sejam imediatamente atendidas, de maneira plena, limpa, incorpórea, instantânea.

No plano discursivo, essa justificativa tecno-ufanista para termos aceitado

a máquina de votar quase que de maneira inquestionável está na razão de que a

confiança que a máquina traz é infinitamente superior à confiança que precisa ser

depositada quando o processo ainda dependia em grande parte da mão humana.

Em nome a um incremento na confiança, aderimos.

Mas a confiança é chave para a sociedade de controle. Para a ótima

eficiência do regime de controle nada deve ser acabado, ao contrário, o ponto de

máxima eficácia será atingindo através da noção do inacabado e do chamamento

para que todos participem ativamente da busca por maior produtividade e

confiança na integração. Passetti explicita esta convocação constante à participação

atual, que também é uma das razões do voto obrigatório, como veremos mais

adiante:

[...] É preciso reformar constantemente. No regime de controle não se deve ter nada acabado, ao contrário, ele se fortalece por meio da noção de inacabado, convocando a todos a participarem ativamente da busca por maior produtividade e confiança na integração. Não se pretende mais docilizar, apenas criar dispositivos diplomáticos de construção de bens materiais e imateriais que contemplem a adesão de todos. Comunicar intensa e instantaneamente é a maneira pela qual os agenciamentos coletivos dinamizam as máquinas. Estamos, pois, segundo Deleuze, na era das máquinas cibernéticas, dos computadores. Estamos em um mundo de direitos que não mais disciplina as forças, mas que consagra a vida de cada um como agente participante do próprio controle. Não há mais trabalho manual subordinado ao intelectual, apenas uma reviravolta na qual a vida somente existe para quem é trabalhador intelectual. Aos demais, os efeitos

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de vestígios a serem superados ou filantropias circunstanciais e circunstanciadas.61

Qualquer eleitor, ao usar um computador fantasiado de urna eletrônica

para exprimir seu desejo, ratifica através do ato de votar as decisões tomadas pelos

engenheiros que criaram a urna eletrônica. Aqui está em jogo, portanto, a confiança

do usuário em um sistema de protocolos previamente estabelecido por outrem. Esta

confiança deve ser ampla e irrestrita, regida sob o peso da punição caso tal estrutura

seja questionada por meio do absenteísmo. Trata-se de um imperativo, portanto,

não ser, mas parecer confiável, e a urna eletrônica é, antes de mais nada no

esplendor da sua opacidade, a deificação dessa confiança na democracia

participativa. Passetti amplia os limites dessa confiança que é um dos axiomas da

sociedade de controle:

Para uma sociedade produtiva, equilibrada, segura e com redução de assimetrias é preciso confiança nos superiores (dos pais ao Estado e do Estado aos pais). A virtude do moderno cidadão está em demonstrar obediência aos superiores sob a forma de prevenção geral, preferencialmente democrática. Está em confiar em seu Estado por meio de governos que garantam a paz interna e com relação aos outros Estados; na substituição do governo que fere a constitucionalidade e o direito do cidadão, pela via pacífica, legal ou da revolta. [...] O Estado moderno resulta da confiança dos cidadãos em uma autoridade superior tolerante capaz de lhes dar segurança diante dos perigos imediatos internos ou externos.62

Daí as penalidades impostas àqueles que se abstêm de votar, pois não

votar é não confiar no Estado. Aqui se trata de encontrar um modo exemplar de

punir qualquer um que quebre a confiança que todos depositam na democracia

representativa personificada pela urna eletrônica.

Os eleitores que não votarem e não justificarem a ausência do seu voto

em um prazo estipulado acabam por sofrer uma série de penalidades, descritas

abaixo pelo Código Eleitoral. Abaixo se encontram as consequências do

absenteísmo:

§ 1º Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor:

61 PASSETTI, 2003, p. 30. 62 PASSETTI, Edson. Segurança, confiança e tolerância: comandos da sociedade de controle.

Revista São Paulo em Perspectiva, São Paulo, n. 18, p. 151, jan./mar. 2004.

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65

 

I - inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles;

II - receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou para estatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição;

III - participar de concorrência pública ou administrativa da União, dos Estados, dos Territórios, do Distrito Federal ou dos Municípios, ou das respectivas autarquias;

IV - obter empréstimos nas autarquias, sociedades de economia mista, caixas econômicas federais ou estaduais, nos institutos e caixas de previdência social, bem como em qualquer estabelecimento de crédito mantido pelo governo, ou de cuja administração este participe, e com essas entidades celebrar contratos;

V - obter passaporte ou carteira de identidade;

VI - renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo;

VII - praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda. 63

Ou seja, se um eleitor não vota, não justificá-lo ou não pagar uma multa

definida por um juiz eleitoral pela ausência, em miúdos ele deixa de ser reconhecido

pelo Estado como seu cidadão (ao proibi-lo de retirar sua carteira de identificação) e

de abandonar o país (ao negar a emissão de seu passaporte). Uma espécie de

desterro sem terras, em que lhe é negada a identidade nacional e a fuga para uma

outra terra.

No entanto, o Senado aprovou em 9 de junho de 2010 um projeto que

acaba com as punições para eleitores que não votarem ou não justificarem a

ausência à urna para votar64. A proposta, que até o presente momento não foi

aprovada pela Câmara dos Deputados, ainda não está em vigor, mas abre um

caminho para o voto facultativo no Brasil e coloca em cheque uma das nossas

maiores instituições políticas: o voto obrigatório. 63 LEI Nº 4.737, DE 15 DE JULHO DE 1965, que instituiu o Código Eleitoral. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4737.htm>. Acesso em: 29 jun. 2009. 64 As mudanças no Código Eleitoral propostas por meio do projeto são as seguintes: a multa é

mantida para quem deixar de votar, só que no valor de 5% a 20% do salário mínimo da região em que o eleitor é cadastrado; a penalidade será aplicada somente quando o eleitor não justificar a ausência do seu voto em um prazo de até 30 dias depois da realização do processo eleitoral. SENADO aprova fim de punição para eleitor que deixar de votar. Diário do Grande ABC. Disponível em: <http://www.dgabc.com.br/News/5815142/senado-aprova-fim-de-punicao-para-eleitor-que-deixar-de-votar.aspx>. Acesso em: 1 set. 2009.

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1.8 O VOTO OBRIGATÓRIO

O voto obrigatório, aqui entendido como efeito de uma participação

eleitoral que não é deixada ao arbítrio do eleitor, mas compulsória e cuja abstenção

gera sanções contra o mesmo, é uma anomalia típica da democracia representativa

latino-americana. Entre os aproximadamente 232 países do mundo, apenas 24

destes adotam o voto obrigatório, dos quais 13 na América Latina: Argentina,

Bolívia, Brasil, Chile, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. Em Honduras e México, no

entanto, o voto é obrigatório apenas segundo uma perspectiva formal: como não

existe punição a quem se abstém, na prática não se configura obrigatoriedade.

Este tipo de voto remonta à Grécia Antiga, quando uma lei que obrigou os

cidadãos a escolher um dos partidos que disputava cargos na pólis foi posta em

prática, tendo por punição ao que deixasse de fazê-lo a perda de seu direito de

cidadania. No Brasil, a atual Constituição brasileira manteve a tradição do voto

obrigatório iniciada com o colégio eleitoral de 1932. Se analisarmos pela perspectiva

estatal o voto obrigatório, prevalece a visão de que

o Estado é o tutor da consciência das pessoas, impondo sua vontade à vontade do cidadão até mesmo para obrigá-lo a exercer sua cidadania, inobstante nossa própria Carta Política consagrar, como as demais do mundo civilizado, a soberania e a supremacia do Povo sobre o Estado, pois é do Povo que emana o poder, e só o Povo é soberano65.

O voto obrigatório ou facultativo não é um tema menor dentro da

discussão da política brasileira dos dias de hoje, uma vez que se trata de peça

fundamental para entender do ponto de vista cultural a nossa política. Tal discussão

é candente e em todas as eleições encontram-se emergências do assunto66:

65 Texto da Consultoria Legislativa do Senado Federal. SOARES, Henrique Paulo. Vantagens e

desvantagens do voto obrigatório e do voto facultativo. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 41, n. 161, p. 2, jan./mar. 2004. Disponível em: <http:// www.senado.gov.br/web/cegraf/ril/principal.htm>. Acesso em: 3 maio 2009.

66 Uma sondagem da empresa Datafolha, pertencente ao grupo que controla o jornal Folha de S. Paulo, publicada em 29 de maio de 2010, mostrava que o voto obrigatório divide o eleitorado brasileiro: 48% dos entrevistados são favoráveis e 48% são contrários. O apoio ao voto facultativo cresceu. A pesquisa anterior, feita em dezembro de 2008, registrou o recorde de 53% a favor da obrigatoriedade, sendo que 43% eram contra. DATAFOLHA: voto obrigatório divide os brasileiros. Época. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI144089-18176,00-

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enquanto há quem pense que votar faz parte de um conjunto de “virtudes cívicas”,

que toda pessoa deveria cultivar para poder desfrutar da sua condição de cidadania,

outros acreditam que a cidadania não pode ser definida fundamentalmente pela

participação política. Independentemente da sua origem ou razão, o que importa

frisar é que o voto obrigatório é componente fundamental do que se chama

democracia representativa brasileira. Os argumentos dos que são contra ou a favor

da obrigatoriedade serão apresentados a seguir, mas antes cabe não discutir as

razões do mesmo, os porquês, mas entender seu funcionamento sob o aspecto da

participação na sociedade de controle, como ela se dá, quais são seus efeitos, qual

a razão da sua estratégia, seus procedimentos e efeitos. Enfim, deixar de lado o “por

que?” e se debruçar sobre o “como?”.

As razões que contam a favor ou contra o voto obrigatório podem ser

divididas em dois grupos. De um lado as razões de princípio, que levam em conta o

significado e o estatuto mesmo do ato de votar. De outro, as razões de efeito, que

levam em conta as vantagens e desvantagens da imposição do voto a uma

população. Os principais argumentos sustentados pelos defensores do voto

compulsório podem ser resumidos nos seguintes pontos, a saber67:

a) o voto é um poder-dever: o ato de votar constitui um dever, e não um mero

direito. A essência desse dever está na ideia da responsabilidade que cada

cidadão tem para com os outros cidadãos ao escolher os mandatários de seu

governo. Somente quando se torna obrigatório, o voto assumiria seu

verdadeiro caráter, o de dever cívico e jurídico. Se não vota, o indivíduo deixa

de ser cidadão e, portanto, deve ser punido com a perda de seus direitos

como um;

b) a legitimidade da democracia representativa: quanto maior a quantidade

de eleitores, tanto maior será a legitimidade do eleito e tanto maior a

confiança geral no processo eleitoral. Deixar o eleitor a cargo da decisão de

comparecer ou não às urnas colocaria a democracia representativa em

DATAFOLHA+VOTO+OBRIGATORIO+DIVIDE+OS+BRASILEIROS.html>. Acesso em: 3 jan. 2010.

67 Essa argumentação do voto compulsório ou facultativo está fortemente calcada nos estudo que Paulo Henrique Soares fez para o Senado Federal. SOARES, 2004.

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cheque: o pleito em que a maioria dos eleitores vota é de legitimidade

inconteste e importantíssimo no caso de democracias ainda não inteiramente

“consolidadas” como as democracias sul-americanas. Daí que o baixo

comparecimento eleitoral poderia comprometer ainda mais a credibilidade das

instituições políticas nacionais perante a população;

c) o exercício do voto é fator de educação política do eleitor: outro efeito

positivo da obrigatoriedade seria a formação de novos eleitores conscientes,

pois ao participar do processo eleitoral este cidadão levaria a discussão

política para seu âmbito privado, formando assim crianças e jovens para

serem os “eleitores de amanhã”;

d) o atual estágio da democracia brasileira ainda não permite a adoção do voto facultativo: em decorrência da disparidade socioeconômica existente

entre os estratos da sociedade brasileira o voto constitui, nessas

circunstâncias, um forte instrumento para que as camadas da população mais

pobres manifestem sua vontade política. Por conta da grande distância entre

os domicílios dos eleitores mais pobres e os lugares de votação nos rincões

do país não obrigar o eleitor a votar permitiria que este não o fizesse,

favorecendo o voto das grandes cidades e da elite, que se encontra mais

próxima dos lugares de votação;

e) a tradição brasileira e latino-americana é pelo voto obrigatório: em

prática desde 1932 no país, a obrigatoriedade do voto formou o Brasil tal

como o conhecemos e é uma tradição de nosso processo eleitoral. Portanto,

deveríamos cuidar desta tradição como característica de nosso modo de fazer

democracia;

f) a obrigatoriedade do voto não constitui ônus para o País, e o constrangimento ao eleitor é mínimo, comparado aos benefícios que oferece ao processo político-eleitoral: o voto facultativo significaria um

ganho irrisório de liberdade individual, constituindo, porém, uma perda

substancial do nível de participação dos cidadãos no processo eleitoral que

colocaria a democracia representativa brasileira em cheque.

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Já os defensores do voto facultativo refutam essa argumentação através

dos seguintes pontos:

a) o voto é um direito e não um dever: o voto facultativo significa a plena

aplicação do direito ou da liberdade de expressão. Caracteriza-se mais como

um direito subjetivo do cidadão do que um dever cívico e, para ser pleno,

esse direito deve compreender tanto a possibilidade de se votar quanto a

liberdade de um se abster de votar sem sofrer sanções por parte do Estado;

b) o voto facultativo é adotado por todos os países desenvolvidos e de tradição democrática: os países que adotam o voto facultativo não são mais

frágeis do que o Brasil no que tange a solidez de suas instituições

democráticas. Não existe entre os países desenvolvidos um que imponha a

seus cidadãos a obrigatoriedade do voto: esta obrigação representa uma

tradição apenas entre os países em desenvolvimento; no atual estágio

socioeconômico em que o Brasil se encontra deveríamos adotar o modelo

dos países desenvolvidos, não dos em desenvolvimento;

c) o voto facultativo melhora a qualidade do pleito eleitoral pela participação de eleitores conscientes e motivados: os defensores do voto

facultativo acreditam que o voto dado espontaneamente é mais vantajoso

para a definição de uma “verdade” eleitoral. Com a queda da obrigatoriedade

reduzir-se-ia a níveis ínfimos a quantidade de votos nulos ou brancos, o que

denotaria um corpo eleitoral motivado pela proposta apresentada pelos

partidos ou candidatos. Ademais, se deduzida a soma das abstenções mais

os votos nulos e brancos em uma dada eleição ter-se-ia praticamente o

número de eleitores que votaria se o voto não fosse obrigatório: algo como

metade do eleitorado, exatamente a metade do eleitorado que é contrária ao

voto obrigatório e que muito provavelmente não compareceria às urnas caso

não fosse obrigada a tanto. O eleitor que comparece às urnas contra a

vontade, apenas para fugir às sanções previstas pela lei, votará sem qualquer

preocupação, provavelmente em algum candidato que lhe apresente a mais

frívola das razões para receber este voto, ou acabará por votar em branco ou

nulo;

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d) a participação eleitoral da maioria em virtude do voto obrigatório é um mito: o fato de o eleitor ir a uma seção eleitoral não significa que ele está

interessado no processo eleitoral. Um número elevado de eleitores vota em

branco ou anula seu voto deliberadamente, como protesto, ou por dificuldade

de exercer o ato de votar pela dificuldade apresentada pela interface da urna

eletrônica. Assim, o sistema político pode tornar-se desacreditado pela

constatação da existência de um número elevado de votos brancos e nulos,

para não se mencionar o absenteísmo, que cresce a cada eleição e tem se

transformado em uma alternativa ao voto nulo, higienizado pela urna

eletrônica;

e) a ilusão de se acreditar que o voto obrigatório gerará cidadãos politicamente conscientes: um eleitorado amorfo, conduzido mediante

constrangimento legal às urnas, tem a mesma vontade política de uma

manada. Destituído de vontade própria, tal eleitorado está à mercê de

estratégias de cooptação e amealhamento de votos, como o voto de cabresto,

caso já estudado nas páginas anteriores. O voto obrigatório seria neste caso

a razão de sobrevivência dos dispositivos de clientelismo e patronagem, a

espetacularização do pleito e o marketing político e sua consequente

manipulação, a inconsistência das estruturas partidárias e a caricatura de

representação em que se transformou o período eleitoral;

f) argumento contra a afirmação de que “o atual estágio político brasileiro não é propício ao voto facultativo”: os que se opõem à argumentação de

que o brasileiro ainda não se encontra em um estágio de maturidade tal que

possibilite a escolha entre votar e não votar simplesmente acusam os que

usam desse tipo de argumentação de elitismo autoritário. A crença dos que

adotam essa ideia é a de que o povo não sabe o que é democracia ou

participação política, necessitando, assim, da tutela do Estado para que seus

cidadãos possam compreender o processo político. A compulsoriedade da

educação eleitoral se aproxima de uma tutela, portanto, o que não faz sentido

quando se fala de uma população maior de idade, senhora de si e com plena

autonomia e responsabilidade por seus atos. Aqui uma contradição: se o voto

em si é um ato de autonomia, por que o Estado o transforma em instrumento

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de tutela? Não é verdade que não se concede o voto a quem precisa de tutor,

como os menores de idade? Essa tensão entre instrumento de tutela – ato de

autonomia não se resolve no plano discursivo pela concepção brasileira de

voto como uma obrigação legal.

Enquanto os dois lados da peleja bradam suas argumentações contra ou

a favor do voto facultativo, não restam dúvidas de que o voto no Brasil permanecerá

obrigatório por muito tempo. Quando o deixar de ser, pouco importará: os efeitos de

uma “educação política” propiciada pelo Estado, que já tem algo como 80 anos,

salvo a interrupção de duas décadas, far-se-á sentir por muitos anos, especialmente

em tempos de urna eletrônica.

Neste ponto de interface entre as duas funções do agenciamento (Estado

– eleitor) o voto obrigatório é um incentivo à adesão de massa ao Estado em nome

do princípio da incerteza, muito além de uma sequela atávica da ditadura militar68.

Como o Estado é uma abstração formada a partir de um contrato, o voto

obrigatório é uma das peças de estratégia usada por este para se materializar, para

mostrar a sua necessidade e justificar sua existência, tais como a moeda, a

bandeira, o território e a língua. Essa participação compulsória é um dos corolários

do Estado contemporâneo, que opera dentro do diagrama de poder da sociedade de

controle descrita por Deleuze e detalhada por Passetti:

A razão comunicativa, sabemos, pacífica e exige uma produção em que predomina a diplomacia. Esta produção é feita aos pedaços (bits) e exige participação de todos. De maneira direta por meio dos programas de produção; de maneira indireta por meio de uma democracia midiática acionada pelo principal meio de comunicação, a televisão. A participação estimulada, reforçada e imperativa faz crer e faz produzir um indivíduo que precisa mostrar que está vivo. Se não estiver segundo a produção – e nisto a sociedade de controle se diferencia da disciplinar –, está enquanto agente político de participação democrática. A democracia midiática se funda e fortalece pela participação de todos (vivos e mortos produtivos) direcionando a moral e a política por meio de sondagens, o que em pouco tempo transforma as eleições em rituais esvaziados.69

68 Segundo essa perspectiva o voto obrigatório é uma herança da ditadura brasileira, pela razão da

democracia ter sido instalada paulatinamente no país como uma nova ordem imposta pelos militares e por estar longe da ideia clássica da democracia como um governo que é do povo e por meio da representação por ele será exercido.

69 PASSETTI, 2003, p. 44.

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O voto obrigatório é, portanto, o efeito de um diagrama que pretende

hipertrofiar a participação política impotente: enquanto existir a impressão por parte

de um divíduo70 de que este é chamado a participar das decisões que afetam o

Estado ou a sua formação, ao eleger os representantes que dele fazem parte, este

mesmo divíduo estará inserido dentro de uma atmosfera de sensação de liberdade

que lhe é concedida e tem a impressão de estar dentro do jogo político, apesar da

inocuidade do mesmo.

Colher opiniões é mandatório. Polarizar as escolhas, necessário: o que

importa é polarizar as escolhas entre continuidade e reforma, certo ou errado, este

ou aquele, branco ou negro, um ou zero. É necessária a escolha de uma banda: não

importa o lado que eleitor eleja, o importante é que ele tome um partido, participe.

Importa o reforço do diagrama, o exercício da cidadania, do ato político. Votar por si

só é interessante ao Estado: em quem, branco ou nulo, apenas um detalhe tático.

Votar é afirmar a existência do divíduo como cidadão.

Ao atender o chamado da participação, este cidadão reafirma a existência

do Estado. Ao afirmar tal existência, suas inocentes decisões permitem a

perpetuação do mesmo, com a vantagem de se suprimir o questionamento quanto à

sua configuração ou modelo. O Estado estimula a participação, contanto que esta de

forma alguma coloque em risco a maneira como as relações de poder estão

configuradas: afinal de contas, se eu voto, esse Estado é meu também. Participo da

sua articulação, ratifico a sua existência, logo qualquer resistência à maneira como

tal está configurado é ilegítima. Nas palavras de Passetti:

[...] o voto obrigatório é mais do que parte do ritual eleitoral. Ele é uma forma de aprisionar a liberdade do sujeito dirigido cada vez mais pelo espetáculo midiático que a televisão proporciona diariamente em nossas casas através de uma lei que obriga a transmissão de programas eleitorais. É outra medida obrigatória do nosso regime democrático em nome da educação política mas que funciona apenas para as TVs abertas poupando os assinantes de TV a cabo. Ela é destinada ao cidadão mediano, com escassos recursos materiais e prisioneiro preferencial das telerrealidades criadas diariamente para entretê-lo. [...] Com a midiatização da política, daqui para frente, seja com a continuidade do voto obrigatório ou com o regresso do voto facultativo, os governantes esperam irrisórias alterações

70 Os indivíduos passam na sociedade de controle à condição de “divíduos”, como destacou Deleuze,

divisíveis aninhados em bancos de dados, perdendo a sua identidade em favor do acesso por meio da senha e recortados em inúmeros bancos de dados. Existem parcelas interessantes dos antes indivíduos, estes antes indivisíveis, espalhados pelo diagrama da sociedade de controle, a internet.

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significativas, mantendo sua eficiente educação que faz jovens e adultos acreditarem que votam livremente, mesmo quando coagidos.71

Obrigar a participação interessante para arrebanhar consenso e perpetuar

existência: eis uma das razões para a existência do voto obrigatório na democracia

representativa brasileira.

71 PASSETTI, Edson. Voto obrigatório e a ditadura da maioria. Danton Medrado. Disponível em:

<http://www.dantonmedrado.com.br/materia_.php?&n=4>. Acesso em: 5 fev. 2010.

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CAPÍTULO 2 – TECNOLOGIAS DE VOTAR: GENEALOGIA

Toda tecnologia72 desenvolvida embute em seu bojo falhas e fortalezas e

não deve ser analisada de maneira isolada, mas sim como parte de um sistema

jurídico e social maior. Algumas tecnologias dispõem de muitos anos de aplicação

em campo, quando então passam por sucessivos refinamentos e acabam por se

tornar refratárias a erros – embora estes não sejam eliminados definitivamente do

campo de consequências de seu uso – enquanto outras são tão suscetíveis a estes,

por razões que variam desde pressões mercadológicas a políticas e/ou sociais, que

a brevidade de seu lançamento é acompanhada de um enorme fardo.

No que tange às tecnologias utilizadas no momento de um cidadão fazer

a escolha daquele que o representará no Estado, tal axioma não poderia ser mais

verdadeiro. Toda e qualquer tecnologia usada até hoje para coligir as vontades das

massas possui brechas que foram exploradas de inúmeras maneiras, inclusive

através de fraudes no resultado de uma votação.

Historicamente, tais fraudes não foram eliminadas pelas tecnologias

usadas para votar, mas simplesmente tiveram que se adaptar a estas. Trata-se de

um moto perpétuo que envolve desenvolvimento de uma ferramenta, refinamento da

mesma, implantação, exploração de potenciais falhas, até a próxima invenção, que

tratará de fechar estas falhas novamente, apenas para criar outras e assim

sucessivamente. Por invenção entenda-se aqui agenciamentos. Nesse sentido, tal

invenção não pode ser dissociada de seu agenciamento social, logo toda e qualquer

invenção tecnológica é social antes de técnica:

o estribo substitui a energia do homem pela potência do animal. E uma nova simbiose homem-animal, um novo agenciamento de guerra que se define

72 O termo tecnologia, para efeitos deste texto, precisa ser visto à luz dos conceitos de Deleuze: a

tecnologia é social antes de técnica e encontra-se enfeixada por dois laços: as máquinas abstratas, capazes de executar o trabalho e emular tarefas de qualquer outra máquina – desde que tais tarefas possam ser esmiuçadas na forma de um código que opere através de uma lógica de linguagem – e o estilo de gerenciamento, o princípio de liga que opera através de modulação e serve como membrana comunicacional entre as máquinas abstratas e um diagrama. Para mais informações sobre este assunto, consulte a parte introdutória do meu trabalho anterior, “Política e resistências protocolares: torções e reforços no diagrama da sociedade de controle”, precisamente a página 18 deste texto.

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por seu grau de potência ou de “liberdade”, seus afetos, sua circulação de afetos: o que pode um conjunto de corpos. O homem e o animal entram em uma nova relação, um não muda menos do que o outro, o campo de batalha se preenche de um novo tipo de afeto. Que não se pense que a invenção do estribo baste. Um agenciamento não é jamais tecnológico, e até mesmo o contrário. As ferramentas pressupõem sempre uma máquina, e a máquina é sempre social antes de ser técnica. Há sempre uma máquina social que seleciona ou assimila os elementos técnicos empregados. Uma ferramenta marginal ou pouco empregada enquanto não existir máquina social ou agenciamento coletivo capaz de torná-la em seu phylum.73

As tecnologias usadas para o voto são refinadas desde a gênese da

democracia. Nos dias de hoje existem, de modo bastante genérico, cinco grandes

classes de tecnologias aplicadas ao voto no mundo inteiro: cédulas, que

posteriormente são contadas manualmente e cuja origem remonta ao voto

explicitado através de uma manifestação direta do eleitor, que obviamente só pode

ser aplicada quando o seu número é muito pequeno e que explicita de maneira

incômoda – em alguns casos, oportuna – suas intenções, mas que ainda praticada

atualmente em alguns pequenos condados dos Estados Unidos, mesmo que isso

possa parecer improvável; máquinas de votar operadas por alavancas (ou lever

voting machines); cartões perfurados (punched card ballots); cédulas preparadas

para reconhecimento óptico (optical mark-sense ballots) e máquinas eletrônicas de

voto direto (direct-recording eletronic voting machines), tecnologia atualmente em

uso no Brasil.

Cada uma destas tecnologias conta com forças e fraquezas, pontos

positivos e negativos em seus usos e nenhuma delas pode ser chamada

propriamente de ancestral, visto que não contam com mais de 150 anos de uso.

Ademais, importante sublinhar, nenhuma delas é à prova de erros.

Foi só por volta de 1888, nos Estados Unidos, que as tecnologias de

votação começaram a ser refinadas, e essa necessidade surgiu de dois fatores

principais: o primeiro deles foi o combate à fraude, amplamente reconhecida e que

colocava em perigo os preceitos da incipiente democracia estabelecida. O segundo

fato foi a necessidade de fazer um padrão para o sistema de votação, uma vez que

a falta de estrutura e homogeneidade inerente a sistemas de votação desiguais

73 DELEUZE; PARNET, 1998, p. 84.

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onerava, dificultava a totalização dos votos e por consequência criava distúrbios e

levava à falta de confiança no sistema.

Um fator complicador, pelo menos em um país como os Estados Unidos,

é que as tecnologias de votação não são supervisionadas por nenhuma entidade

estatal de maneira centralizada, diferentemente do que ocorre no Brasil. Não existe

qualquer agência nacional naquele país que supervisione as eleições no âmbito da

República, administradas independentemente por cada um dos seus condados

eleitorais, que inclusive podem decidir que tipo de tecnologia os eleitores registrados

em seus domínios usarão na hora de votar.

Nos dias atuais, duas pequeninas agências federais estadunidenses têm

a eleição como seu foco principal: a Federal Election Comission’s Office of Election

Administration (algo como Comissão Federal para a Administração das Eleições),

um escritório com cinco pessoas que está mais preocupado com a questão do

financiamento de campanhas e o Defense Departament’s Federal Voting Assistence

Program (Programa Federal de Assistência ao Voto), que auxilia os militares fora do

país a votarem. Juntas, contam com um orçamento em torno de U$ 5 milhões

anuais, 20% do que o governo federal dos EUA gastou para ajudar países

estrangeiros com as suas eleições, em dados do ano de 200174. Não existe,

portanto, grande vontade política para criar um sistema de tecnologia de votação

menos afeito a falhas. Nas eleições presidenciais de 2001, de acordo com o estudo

feito pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e pelo California Institute of

Technology, entre quatro e seis milhões de votos deixaram de ser contados nos

EUA, com pelo menos um milhão e meio de votos perdidos por razões relativas a

falhas nos suportes tecnológicos dos mesmos, desde erros no design das cédulas a

equipamentos com funcionamento inadequado. Em uma eleição que foi decidida por

um punhado de votos, não mais que uma centena, tal número é espantoso. Nas

páginas a seguir deter-me-ei sobre cada uma destas tecnologias usadas para votar,

explicitando pontos a favor e contra o seu uso.

74 HOLES in punch-card sistem noted long ago. USA Today, 7 mar. 2001. Disponível em:

<http://www.usatoday.com/news/politics/2001-03-07-voting.htm>. Acesso em: 8 mar. 2010.

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2.1 VOTOS POR MANIFESTAÇÃO DIRETA DO ELEITOR

Figura 2 – “The County Election” (detalhe) por George Caleb Bingham

Fonte: Museum Syndicate.

A primeira tecnologia de voto foi inventada pelos gregos antigos, que

lançavam uma pedra dentro de um pote de cerâmica do candidato de sua escolha.

Alguns séculos depois, os romanos introduziram as primeiras cédulas de papel. A

maneira de conduzir uma eleição sofreu enormes alterações no curso dos últimos

milênios: a figura 2 acima, que detalha um quadro de George Caleb Bingham, dá

uma ideia de como eram as primeiras experimentações da democracia participativa

no século XIX ao ilustrar uma eleição do condado de Saline, em Missouri, Estados

Unidos, no ano de 1846.

Nesta ilustração percebe-se um juiz, no ponto central da obra, que exige

que o eleitor repouse sua mão sob uma bíblia e faça um juramento de que está

habilitado a votar e de que não o fez até aquele momento. Obviamente que naquele

tempo não existia qualquer sistema de registro de eleitores, portanto tal juramento

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era uma – fraca – garantia de prevenção de votos múltiplos, uma vez que o potencial

eleitor se colocava numa posição tal que facilitaria o reconhecimento de alguma

testemunha de que o mesmo já tivesse votado em um momento anterior. Não existia

qualquer direito a segredo nas intenções do eleitor: após o juramento, este

simplesmente apontava o dedo para o seu candidato, postado atrás do juiz, que por

sua vez anotava o voto numa caderneta de contabilização eleitoral, nela escrevendo

o nome do eleitor e seu voto.

Figura 3 – Scan de uma caderneta de contabilização eleitoral do condado de Bond County, Illinois, Estados Unidos, em algum ano do séc. XIX; esta contém os registros de uma eleição semelhante à descrita na página anterior. O nome dos candidatos é registrado no topo da página, enquanto o nome dos eleitores localiza-se na lateral da mesma, do lado esquerdo75

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

75 Coleção particular Kurt Hyde.

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79

 

Fazer campanha política no local de votação, o que hoje chamamos de

“campanha de boca de urna”, era legal e prática corrente. É claro que as eleições

conduzidas por manifestações diretas dos eleitores ofereciam modestas proteções

contra fraudes, uma vez que não existia um registro físico do histórico de votos,

além de propiciar coerções em decorrência da falta de privacidade intrínseca ao

pleito.

2.2 A CÉDULA DE PAPEL

O primeiro uso de cédulas para conduzir eleições parece remontar ao ano

de 139 a.C. em Roma. Nos Estados Unidos, foram usadas inicialmente para a

eleição de um pastor para a igreja de Salem, no ano de 1629, de acordo com

Jones76. Na época em que a 12ª Emenda da Constituição norte-americana77 foi

aprovada, uma cédula de votação se definia por um pedaço de papel no qual

estavam impressos ou escritos os nomes dos candidatos a um determinado cargo

público, a serem eleitos por um colégio eleitoral e não por eleitores em geral.

As primeiras cédulas eleitorais não eram nada mais do que pedaços de

papel providenciados pelos próprios eleitores. Estas passaram a ser produzidas

pelos partidos políticos que tinham lançado candidatos para uma determinada

eleição não muito tempo depois de que se verificaram as vantagens de tal

impressão, como será detalhado a seguir. A inovação, no entanto, não foi muito bem

recebida pelos partidos, acostumados às vantagens das manifestações diretas dos

eleitores, e foi necessária uma decisão da Suprema Corte em Massachusetts78, em

1829, para que esta nova tecnologia fosse posta em prática, decisão reforçada por

uma emenda constitucional em Connecticut, EUA, no ano de 1844.

As cédulas eleitorais produzidas pelos partidos eram impressas em papel

colorido, normalmente uma cor distinta para cada partido, e feriam gravemente a 76 JONES, Douglas W. A brief illustrated history of voting. 2001. Disponível em:

<http://www.cs.uiowa.edu/~jones/voting/pictures>. Acesso em: 12 set. 2009. 77 A 12ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos versava sobre os procedimentos para a eleição

do presidente e vice-presidente deste país e foi aprovada no dia 15 de junho de 1804. 78 The Tenesse Acts of 1796, cap. IX, seção 3, deu a seguinte definição: uma cédula é um tíquete ou

um pedaço de papel cujo intento é que um eleitor nele manifeste suas escolhas e, uma vez preenchido, é dado por este para o agente ou pessoa responsável por uma eleição para posteriormente ser depositado no interior de uma urna.

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80

 

privacidade e segredo da votação, uma vez que em certos distritos era mandatório o

uso de urnas transparentes, com o intuito de se evitar que se inserissem múltiplos

votos no interior das mesmas, mas com o benéfico efeito colateral de se saber a

escolha do eleitor. Ademais, com o controle da impressão do suporte de voto, os

partidos imprimiam nele apenas os candidatos de seu próprio partido. Assim, se um

eleitor quisesse votar em um candidato de um partido concorrente àquela cédula de

que dispunha, teria que rasurar o nome do candidato impresso nessa cédula e

escrever sobre ele o nome do candidato de sua escolha – isso porque os partidos

mal deixavam espaço no suporte para a inclusão de outro nome que não o de seus

candidatos. Uma outra maneira de impedir a escolha de outro candidato concorrente

na cédula de um determinado partido era o uso de uma tipografia quase ilegível. A

ideia era simples: se o eleitor tivesse dificuldades para entender o nome do

candidato impresso na cédula, as chances de ele rasurar o nome do candidato e

colocar outro em seu lugar seriam reduzidas. Logo, a clareza dos nomes nas

cédulas de cada partido era comprometida em nome dessa tática de confundir o

eleitor.

Somado a este problema, as cédulas de votação caseiras, aquelas

produzidas pelos próprios eleitores e levadas para o local de votação, reproduziam a

possibilidade de fraude: era comum que o papel dobrado depositado no interior de

uma urna contivesse outras cédulas, multiplicando, assim, os votos em um

determinado candidato. Em alguns casos, os próprios fiscais abriam a cédula do

eleitor, alegando a verificação de votos múltiplos, e no processo descobriam o voto

do eleitor ou, pior, eles próprios inseririam mais votos dobrados no bojo da cédula de

votação e depositavam o conjunto na urna. Por outro lado, eleitores que quisessem

deixar claro seu voto em troca de alguma contrapartida de um candidato escreviam

seus nomes nas próprias cédulas ou ainda usavam diferentes tipos de papéis para

estas, ou diferentes tipos de caligrafia que poderiam servir de senha entre ele e os

responsáveis pela apuração e o candidato.

No momento da contagem, outra possibilidade de risco ao sistema:

apuradores e fiscais raramente abriam uma cédula para checar a intenção do eleitor,

uma vez que a cor do papel apontava para um determinado partido político (mas,

como visto acima, nem sempre a real intenção do eleitor), e, portanto, presumia a

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intenção de voto. Grosso modo, a apuração era feita da seguinte forma: o primeiro

“corte” das urnas era feito por tipo de cédula, ou seja, separavam-se todas as

cédulas de um determinado partido pela cor. Na sequência, os votos de um grupo de

cédulas eram abertos e contabilizados (quando e se contados). Uma vez totalizados,

subtraíam-se as rasuras: se o candidato de uma determinada cédula tivesse seu

nome rasurado, retirava-se esse voto da contagem totalizadora das cédulas por

partido. Finalmente, todas as cédulas caseiras eram contabilizadas, junto com as

adições de nomes de um candidato oposto em uma cédula de um partido rival.

Como se pode perceber por esta breve descrição, o processo era um tanto

complexo e bastante frágil.

Apesar de todos estes problemas, a tecnologia de cédulas de papel

impressas de maneira heterogênea foi largamente utilizada em quase todas as

votações no território estadunidense do séc. XIX. Em meados desse século, era

padrão que todos os partidos políticos imprimissem as cédulas eleitorais em papéis

com a cor do mesmo, na forma de tíquete de trens, com apenas os nomes de seus

candidatos, e uma eleição se disputava longe das urnas: tratava-se mais de uma

batalha campal, em que os partidos disputavam eleitor a eleitor a distribuição destas

cédulas, transformando o ato de votar em algo muito da esfera íntima. Por tais

razões, não é difícil de imaginar que o resultado de uma eleição nessa época

raramente manifestava o desejo da maioria dos eleitores.

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Figura 4 – Exemplo de uma cédula de papel partidária usada em uma eleição municipal de 1880 em Iowa, Estados Unidos

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

2.2.1 A cédula australiana de voto

As preocupações com relação a fraudes eleitorais e a privacidade dos

eleitores não eram apenas restritas aos EUA, e uma das principais inovações em

termos de tecnologia de voto aconteceu em Vitória, Austrália, no ano de 1858. Este

novo tipo de tecnologia recebeu o nome de “cédula australiana de voto secreto” e a

figura 5 abaixo ilustra uma das primeiras cédulas padronizadas usadas em uma

eleição:

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Figura 5 – Exemplo de uma cédula do tipo australiana de voto usada em uma eleição municipal usada de Iowa, Estados Unidos, 1893

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

Algumas propriedades diferenciavam estas cédulas das artesanais ou

impressas pelos partidos políticos do período anterior. A primeira e mais importante

foi o fato de as mesmas serem produzidas pelo governo central do país e fabricadas

às suas expensas, numeradas e com certas marcas que garantiam a sua legalidade,

o que acarretava em vantagens para o processo: a legitimidade dos candidatos e

dos partidos que concorriam aos pleitos estava garantida por sua impressão na

cédula, em uma determinada ordem e de maneira organizada, desta forma

homogeneizando as mesmas e simplificando muitíssimo a contagem posterior dos

votos, além de reduzir – mas não erradicar completamente – a possibilidade de

fraude por inserção na urna de votos ilegítimos.

Nos dias atuais, esse tipo de tecnologia parece óbvio e disseminado entre

tantos países do mundo (não por menos é a tecnologia mais usada nos dias de hoje

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para a escolha de candidatos a um cargo público79) que de fato, historicamente e

culturalmente, é muito difícil a sua substituição por qualquer outra tecnologia de voto

em um dado país, conforme será explanado mais a seguir. Apesar disso, os

benefícios da cédula australiana não foram tão óbvios no momento de sua

introdução. Seu uso requer que o Estado despenda energia e, principalmente,

recursos públicos para a impressão das cédulas e o armazenamento e transporte

seguro das mesmas para os locais de contagem. Não foram poucos os que se

opuseram à sua implantação no final do séc. XIX. Essa resistência é patente pelo

cronograma de implantação do voto de cédula do tipo australiana ao longo dos

Estados Unidos: os estados de Texas e Connecticut mudaram para a cédula

australiana gradualmente e finalmente implantaram a nova tecnologia apenas nos

anos de 1905 e 1909, respectivamente. Missouri fez experiências com a cédula

australiana, mas regrediu para o uso das cédulas partidárias em 1927. A Carolina do

Norte só implementou esse tipo de tecnologia em 1929. Em 1940, o presidente de

Delaware ainda comandava um país com tecnologias mistas de voto: cédulas

partidárias e australianas eram encontradas em diversos estados dos EUA.

O catalisador que serviu de primeiro impulso para a adoção da cédula

australiana nos EUA foi a grande fraude que ocorreu na eleição geral de 1884. A

eleição seguinte, em 1888, primeiro em Nova Iorque e depois em Massachusetts, foi

a primeira em que os votos foram produzidos e controlados pelo estado daquele

país80. No mesmo ano, uma nova tecnologia era colocada em prática junto com as

cédulas australianas, as máquinas de votar operadas por alavancas, às quais me

deterei mais a seguir.

No entanto, a grande fraude de 1884 provavelmente teria passado

despercebida não fosse o grande distúrbio causado pelas eleições anteriores, em

1876. Naquele ano, Rutheford B. Hayes ganhou uma eleição contando com o

mínimo de apoio dos eleitores, e desta maneira despertou a sensibilidade geral para

79 Não existem fontes muito confiáveis para estabelecer a contagem das democracias mundiais que

ainda usam as cédulas de papel em uma votação, mas, de acordo com diversos sites pesquisados, essa porcentagem está entre 90% e 95% de todos os países que usam de pleitos para a escolha de seus cargos executivos.

80 JONES, 2001.

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a necessidade de se reformar um sistema de eleição que se sabia cheio de falhas e

passível de fraudes desabridas.

Uma eleição conduzida pelo sistema australiano de cédulas é apenas

confiável na medida em que todas as cédulas usadas durante o pleito são

controladas e justificadas e que nenhuma cédula em branco escape do controle dos

responsáveis pela eleição. Como toda pessoa em contato com os votos em branco

no momento anterior da eleição pode ter interesse partidário, a manipulação destes

suportes precisa ser feita com acompanhamento de fiscais de todos os partidos

envolvidos na disputa. É claro que o sistema funciona melhor quando no regime de

bipartidarismo: eleições envolvendo múltiplos partidos políticos, como a nossa, são

complexas do ponto de vista do controle das matrizes usadas pelos eleitores no

momento da eleição em razão da multiplicação dos interesses partidários

envolvidos.

Os tipos de fraude que foram dificultados pelo uso da cédula do tipo

australiana, ou seja, multiplicação de votos no interior de uma urna ou uso de

cédulas falsas, foram deslocados para contagem. Embora o uso de cédulas

padronizadas dificultasse que os partidos as falsificassem, não impedia que, no

momento da contagem, uma eleição pudesse ser decidida através do controle da

contagem dos votos. Costumava-se dizer que quem controlasse a contagem

controlaria a eleição. Portanto, as possibilidades de fraude se deslocaram de uma

situação anterior à urna para outra posterior à urna.

A grande fragilidade deste sistema reside na maneira como os votos são

contabilizados e totalizados. Como qualquer manipulação dos votos antes da eleição

deve contar com a supervisão de todos os partidos envolvidos no pleito, da mesma

forma esta supervisão precisa ser feita com o mesmo cuidado, uma vez que os

votos foram preenchidos com as escolhas dos eleitores. Ademais, quanto maior

número de partidos envolvidos no pleito, tanto maior será a dificuldade para que

essa contagem aconteça de maneira rápida e fidedigna com as intenções de voto.

A isso se deve acrescentar um elemento que traz uma enorme

complexidade à equação: o entendimento, muitas vezes subjetivo, da marca na

cédula feita pelo eleitor e sua consequente intenção de voto. Enquanto grande

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quantidade das cédulas do tipo australianas exigiu a marca de um “X” ao lado do

candidato da preferência do eleitor, a forma original dessa cédula, quando adaptada

para o uso do governo dos EUA, instruía o eleitor a rasurar todos os nomes dos

candidatos na mesma, exceto o de sua escolha. Paulatinamente, as cédulas em uso

nos EUA passaram a indicar que o eleitor marcasse seu candidato com um “X” ou

“√” mas em muitos estados a convenção de rasura persistiu até as primeiras

décadas do séc. XX.

A marca que o eleitor faz em uma cédula foi por muitos anos um elemento

de disputa entre os envolvidos em uma votação: esta subjetividade da intenção do

eleitor em uma marca que fuja dos padrões estabelecidos está presente em todas as

tecnologias de votar, com exceção da urna eletrônica. Se o eleitor não faz uma

marca no voto conforme a exigência do pleito, muitas vezes esta marca, apesar de

apontar uma vontade do eleitor, não é determinante desta e, portanto, é

transformada em objeto de disputa do partido rival.

Se um partido estabelecer que seus fiscais são mais efetivos na disputa

por esses votos em princípios duvidosos, pode criar uma situação tal que o resultado

de uma eleição acirrada seja revertida em seu favor, como veremos nos capítulos a

seguir (caso da eleição presidencial dos EUA do ano de 2000). A maneira para

definir esta disputa por votos duvidosos seria a criação de padrões de marcas

múltiplas e objetivas, permitindo que um amplo espectro de registro de eleitores em

uma cédula seja indicativo da intenção dos mesmos, desta forma reduzindo

drasticamente a disputa das intenções de votos em uma eleição. Por volta do ano de

1910, quando as cédulas oficiais já eram correntes em qualquer pleito nos EUA, esta

brecha era bem explorada pelos partidos políticos: entre 5% e 40%81 dos votos eram

descartados da contabilidade dos votos totais por consequência das disputas

partidárias pelas marcas “subjetivas” nos mesmos. Algumas razões que

potencializam estas marcas duvidosas nas cédulas eleitorais residem no próprio

desenho destas: um layout equivocado das mesmas, disposição confusa dos

candidatos, tipografia inadequada, instruções inadequadas para os eleitores e, em

81 VOTING Machines. Encyclopaedia Brittanica, 11th ed., 1910. Disponível em:

<http://www.divms.uiowa.edu/~jones/voting/brit11.html>. Acesso em: 12 jul. 2009.

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países onde o analfabetismo é comum, ilustrações (ou mesmo a falta das mesmas)

inadequadas de como o eleitor deve registrar o voto para seu candidato.

Existe uma relação direta entre os erros dos eleitores no momento da

votação e a quantidade de pleitos em uma eleição quando do uso de cédulas de

papel com contagem manual. Quanto maior o número de candidatos e cargos do

executivo em uma dada eleição, tanto menor será a quantidade de votos válidos.

Uma maneira de reduzir o problema das marcas subjetivas seria a separação física

de todas as cédulas com marcas duvidosas: no caso do número destas ser maior do

que a margem de votos do candidato vencedor, um escrutínio cuidadoso nas

cédulas duvidosas deveria determinar o resultado justo de uma dada eleição.

Por essa ótica, as cédulas de papel seriam mais eficientes se usadas

apenas em votação para cargos de presidentes. Ainda que simplificadas estas

cédulas pelo número de cargos a serem preenchidos, os problemas do ponto de

vista do eleitor continuariam sendo os mesmos: votar em dois candidatos para o

mesmo cargo, marcação inadequada nas cédulas ou enganos no momento de

marcar o candidato de sua preferência. Do ponto de vista das fraudes possíveis,

deve-se mencionar desde a manipulação das urnas no momento de seu transporte

para os centros de apuração até a compra direta de votos e mesmo o

preenchimento das urnas com votos ilegítimos. No entanto:

quando bem administrados, as cédulas eleitorais do tipo australianas trazem um alto grau de confiabilidade ao sistema, assegurando a privacidade do eleitor, prevenindo os mesmos de revelar em quem votaram e garantindo uma precisa e imparcial contagem. A cédula de papel traz tamanha confiabilidade que a discussão da implantação de qualquer outra tecnologia de votar é impensável [...]82

2.3 MÁQUINAS DE VOTAR OPERADAS POR ALAVANCAS

Máquinas de votar mecânicas, operadas por alavancas, foram pela

primeira vez usadas nas eleições de Nova Iorque, EUA, no ano de 1892, e eram

82 CORRIGAN, Ray. Digital decision making. 1.ed. Oxford, UK: Springer-Verlag, 2007. p. 147.

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fabricadas pela empresa Mayers – daí seu nome Mayers Automatic Booth83 (cabina

automática Mayers, em tradução aproximada). Naquela época, representavam tal

serviço tecnológico que eram consideradas tecnologia em estado de arte e nada

produzido naquele período era tão complexo como uma máquina de votar. Neste

sentido, elas representaram um impacto tecnológico da mesma magnitude que a

implantação das máquinas de votar por tecnologia de perfuração dos anos 1960 ou

mesmo as urnas eletrônicas, em meados dos anos 1990.

Por volta dos anos 1930, neste mesmo país, boa parte dos centros

urbanos tinha adotado esta tecnologia em seus pleitos e, nos anos 1960, máquinas

operadas por alavancas foram usadas para a escolha dos candidatos por pelo

menos metade dos eleitores dos EUA. No entanto, alguns condados eleitorais

estadunidenses jamais abandonaram as cédulas australianas de votos, e as

máquinas acionadas por alavancas foram implantadas mais rapidamente nos

condados onde existia uma fraude endêmica e recorrente nas eleições.

Como toda “evolução” tecnológica adotada para o ato de votar tem por

primeira vocação fechar eventuais brechas que possibilitavam fraudes no uso da

tecnologia processadora, duas foram as razões que pavimentaram a adoção maciça

dessas máquinas: a primeira delas diz respeito ao fim da manipulação das cédulas

eleitorais no momento da contagem, grande deficiência das cédulas impressas. A

outra possibilitava um menor dispêndio de energia e recursos estatais no momento

da contagem, além de maior flexibilidade no momento de decidir quantos partidos e

candidatos poderiam concorrer a um determinado cargo, uma vez que o espaço

físico de cédula já não era mais um limitante.

Apesar de o modus operandi da nova tecnologia ser completamente

diferente da maneira como se elegia um candidato através de cédulas, o princípio

83 Essas empresas dividiram o mercado de máquinas de votar por acionamento de alavancas: Shoup

e Automatic Voting Machines (AVM); a última empresa era uma prolongação direta da empresa que patenteou a invenção de Jacob H. Mayers. Ransom F. Shoup, proprietário da empresa com o mesmo nome, criou uma série de melhorias para essas máquinas entre o ano de 1929 e 1975. A figura 5 nas páginas a seguir representa uma das primeiras máquinas Shoup. A maior diferença visível entre as máquinas dos dois fabricantes era o layout da “cédula”: ambas usavam cédulas tabuladas com a alavanca disposta na intersecção entre uma linha e coluna e cuja posição era indicativa de um candidato. Na máquina Shoup, uma coluna é usada para cada partido e a linha para seus candidatos enquanto na AVM esta disposição era exatamente contrária.

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tecnológico por trás da máquina, o seu núcleo, não era muito diferente das cédulas

australianas:

Figura 5 – Ilustração de uma máquina de voto estadunidense operada por alavancas84

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

Desde sua invenção estas máquinas eram vistas como versões

automatizadas da cédula australiana, com seus componentes mecânicos

endereçados para as principais deficiências do sistema de contagem manual. Com

efeito, os votos são contabilizados nas próprias máquinas, no exato momento em

que o eleitor deixa a cabine de votação. Portanto, a totalização do voto acaba por

ser extremamente ágil e não mais passível a interpretações subjetivas.

84 Como grande parte de suas sucessoras, tal máquina consistia de uma volumosa cabine de votação

que podia ser colapsada por efeito sanfona para facilitar a sua armazenagem e transporte. JONES, 2001.

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De maneira simplista, a máquina funcionava da seguinte forma: o eleitor

se colocava diante da mesma e se fechava em uma espécie de cabine, formada por

uma cortina, o que lhe garantia privacidade, encontrava diante de si os nomes dos

candidatos a um determinado pleito expostos em uma espécie de painel, muito

parecido com um painel automotivo, e acionava uma alavanca disposta sobre o

nome do candidato de sua preferência. Uma vez registrado o voto, este era

contabilizado em espécies de “odômetros” que totalizavam o número de

acionamentos de alavancas para cada um dos candidatos que concorriam a um

pleito. Tais odômetros ficavam localizados na parte traseira das máquinas, longe da

vista do eleitor e acessíveis apenas pelos burocratas responsáveis por cada eleição.

As máquinas de alavancas produzidas em meados do século passado contavam

ainda com um mecanismo de travamento das alavancas depois de seu

acionamento, impedindo que um eleitor registrasse múltiplos votos para um ou

mesmo mais candidatos.

Figura 6 – Painel central de uma máquina de votar operada por alavancas usada em eleições recentes realizadas no estado de Nova Iorque, EUA

Fonte: Voting Machine. Wikipédia.

As aberturas destas máquinas a fraudes, no entanto, não eram pequenas:

como primeira deficiência e talvez a principal delas, as engenhocas não mantinham

um histórico dos votos registrados, impossibilitando uma recontagem em caso de

suspeita de fraude. Como os odômetros de totalização eram facilmente adulterados

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ou mesmo, por contarem com uma série de componentes mecânicos frágeis,

passíveis de mau funcionamento, não existia um registro dos votos dos eleitores,

uma contraprova física, que seja. Desta forma, a única coisa a fazer em caso de

suspeita de irregularidade era checar se os odômetros estavam funcionando

corretamente, acionando as alavancas através de um mecanismo de rodas dentadas

e verificando no visor de aferição da máquina se tal voto tinha sido contabilizado.

Somado a estes pontos, alguns registros de época apontam para erros nas etiquetas

dos candidatos posicionadas abaixo de cada uma das alavancas da máquina, seja

este erro fraudulento ou acidental. Caso uma etiqueta marcasse o voto de um

candidato que não fosse diretamente ligado ao seu par em um odômetro de

contabilização, os votos registrados por aquela alavanca perder-se-iam ou mesmo

seriam registrados em nome de outro candidato.

Em segundo lugar, tais máquinas eram extremamente complexas e

limitadas fisicamente pelo seu tamanho, seu acondicionamento entre uma eleição e

outra era dispendioso e abria caminhos para fraudes em período anterior ao da

eleição. Apesar de em teoria as mesmas poderem acumular uma quantidade infinita

de candidatos e pleitos, quanto maior a complexidade de uma eleição, tanto maior

era o seu tamanho – logo a dificuldade de sua produção e transporte para os locais

de votação – e sua possibilidade de erro e adulteração. Bastava apenas um

odômetro não registrar os votos dos eleitores para todo o sistema ruir:

[...] uma máquina desenvolvida para acomodar vinte pleitos com dez partidos distintos e capaz de acumular 999 votos para qualquer um dos candidatos a este pleito teria 600 odômetros no seu mecanismo e pelo menos 400 rodas dentadas de programação mecânica [...]85

Na prática, as máquinas de acionamento por alavancas eram

praticamente inviáveis: as milhares de partes móveis que compunham tal engenho

eram caríssimas (vale lembrar que se trata de uma invenção das primeiras décadas

do séc. XX) e eram muito suscetíveis a um erro mecânico. Se apenas uma roda

dentada de tal engenharia falhasse, o pleito inteiro estaria comprometido. Relatórios

de época apontam um número recorrente de candidatos com 99 votos, com uma

frequência espantosamente maior do que candidatos com 98 ou 100 votos. Tratava- 85 JONES, Douglas W. The evolution of voting tecnology, in secure eletronic voting. GRITIZALIS,

Dimitris A. (Ed.). 1. ed. Massachusetts: Kluwer Academic Publishers, 2003. p. 6.

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se, pois, de uma evidência empírica de que as máquinas, pelo incremento de força

necessária para saltar mais uma roda dentada no odômetro de contabilização (entre

o primeiro e o voto 99 usava-se sucessivamente uma de duas rodas dentadas no

odômetro de aferição. Já o centésimo voto exigiria que mais uma roda dentada

girasse para mostrar este incremento de voto), normalmente enguiçavam no voto de

número 99 ou 999, não registrando nenhum outro voto extra além deste número.

Ademais, cada uma destas máquinas deveria passar por uma bateria de

testes que a levaria aos seus limites antes de cada eleição, o que raramente era

executado. Tal bateria deveria ser composta pelo acionamento de cada uma das

alavancas pelo menos algumas centenas de vezes, para verificação de discrepância

entre tais acionamentos e seu registro no odômetro. Quando executados, os testes

eram feitos por funcionários inexperientes, um número de vezes menor do que o

necessário para a detecção de um problema e que pouco ou nada sabiam do

funcionamento da máquina. Diante de um problema mecânico, estes simplesmente

o apontavam em um relatório e a enviavam mesmo avariada para os locais de

votação. Auditorias reportam que uma em cada três máquinas usadas em votações

continham pelo menos um erro de funcionamento em seus odômetros. Ainda que

diante de tamanhas deficiências, 15% de todos os candidatos eleitorais

estadunidenses usaram tais máquinas para a eleição presidencial do ano 200086,

apesar de as mesmas não serem mais fabricadas e de estarem completamente

sucateadas pela dificuldade de se encontrar peças de reposição no caso de

quebra87. Apenas em setembro de 2007 estas máquinas foram descontinuadas de

uso, em razão de todas as suas deficiências, pelo menos no estado de Nova Iorque.

Outros estados continuam usando tal tecnologia, no entanto. As urnas eletrônicas

atualmente usadas no Brasil são versões computadorizadas dessas máquinas

mecânicas e compartilham de seu mesmo campo de possibilidade de erro. Mais à

frente me aterei a essas deficiências.

86 CRANOR, Lorrie Faith. In search of the perfect voting tecnology: no easy answers, in secure

eletronic voting. GRITIZALIS, Dimitris A. 1. ed. Massachusetts: Kluwer Academic Publishers, 2003. p. 20.

87 Durante as mesmas eleições em Nova Iorque, EUA, centenas de eleitores reportaram que as alavancas de suas máquinas de votação estavam quebradas, impedindo-os de votar nos candidatos de sua preferência.

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2.4 CARTÕES PERFURADOS

Os cartões perfurados, originalmente inventados por Herman Hollerith,

foram usados pela primeira vez na tabulação de estatísticas do “Baltimore Board of

Health”, ainda no séc. XIX. Depois do período de testes em Baltimore, tais cartões

foram adotados no censo de 1890 nos EUA. Herman tinha pensado nos cartões

perfurados como uma maneira de controlar e inserir dados em máquinas de

tecelagem que fabricavam tecidos com padrões de estamparia complexos.

De maneira simplista, cartões perfurados são análogos aos teclados de

um computador pessoal. Os furos, executados mecanicamente por um usuário,

representam um código de entrada de dados em um dado sistema ou máquina

abstrata. Tais furos serão posteriormente interpretados também mecanicamente

pela máquina abstrata ou computador e essa relação mecânica será revertida em

um sinal elétrico e digital, sucessivamente. Como dito, não muito diferente dos

teclados ou mouses contemporâneos. O sistema é composto de três componentes,

portanto: o cartão perfurado em si, ou cédula, que contém toda a gama de

possibilidades de escolhas que podem ser eleitas pelo usuário, a máquina utilizada

para fazer a perfuração na cédula (ou uma matriz que servirá de máscara e guia

para que a perfuração seja feita de acordo com a eleição do usuário) e, por fim, a

máquina abstrata que receberá o cartão com a informação como “entrada” e usará

este dado em alguma forma de “saída” de dados.

A empresa Internacional Business Machines (IBM) desenvolveu as

primeiras cédulas pré-perfuradas e os primeiros perfuradores de cédulas (chamados

de “Port-A-Punch”) no início dos anos 1960. Alguns anos depois, dois professores

da Universidade de Berkley adaptaram essa tecnologia para usá-la em uma eleição

interna da mesma universidade. Joseph P. Harris, professor do departamento de

ciências políticas teve a ideia primeiro e buscou a ajuda de William Rouverol, então

do departamento de engenharia. Juntos desenvolveram diversas melhorias técnicas

na máquina de perfuração da IBM, patentearam-nas e formaram a empresa Harris

Votomatic, Inc. para vender o resultado de suas pesquisas. O sistema foi logo usado

em larga escala no estado de Oregon, EUA, no ano de 1964, e logo depois nas

eleições primárias dos condados de Fulton DeKalb, Geórgia. No momento da

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eleição que sucederia estes testes, quase a totalidade dos condados eleitorais de

Oregon e Califórnia tinham deixado para trás as máquinas por alavancas e

transferido suas votações para a tecnologia de cartões perfurados. Por volta de

1969, quando sérios problemas com a tecnologia de votar por cartões perfurados

foram detectados, a IBM abriu mão da licença da Votomatic e a transferiu para uma

de suas licenciadas, a Cumputer Eletric Services, Inc. (CESI), que mais tarde foi

absorvida por uma empresa chamada “Election Systems and Software”. Alguns

mecanismos similares à Votomatic foram fabricados sob a marca “Data-Punch”, de

controle da Election Data Coorporation the St. Charles, Illinois, EUA. Apesar das

suas deficiências, que serão detalhadas a seguir, a sua adoção foi nada menos que

espantosa: no ano de 1972, quase 10% dos eleitores nos EUA usavam as cédulas

perfuradas88. Em 1998 um em cada três eleitores no mesmo país usava essa

tecnologia no momento de registrar seu voto89.

Figura 7 – Uma máquina de votar do tipo Votomatic

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

88 SALTMAN, Roy G.. Accuracy, Integrity and Security in Computerized Voted – Telling. Seção 3.4,

NBS Special Publication 500-158. Institute for Computer Sciences and Technology. National Bureau of Standards, New York, 1988.

89 FISCHER, E. A. Tabela 1 de Voting Tecnologies. In: UNITED STATES: OVERVIEW AND ISSUES FOR CONGRESS. Congressional Reasearch Service RL30773, mar. 2001. Disponível em: <http://www.cnie.org/NLE/CRSreports/Risks/rsk-55.cfm>. Acesso em: 21 mar. 2009.

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A cédula de votação de uma máquina do tipo Votomatic nada mais é do

que um agregado retângulo pré-picotado em posições numeradas, que representam

a totalidade de opções que um eleitor tem em um dado pleito. Normalmente estas

cédulas podem ter até 235 posições. Os nomes dos candidatos que concorrem em

uma eleição aparecem em uma máscara que muda de eleição para eleição, no

formato de um livreto, como visto na figura 7. Esse livreto contém as variáveis com

os nomes dos candidatos, seus partidos e cargos a que estão concorrendo. De

posse desta “máscara”, o eleitor usa um objeto de ponta afilada, semelhante a uma

caneta, para fisicamente perfurar a sua cédula. Como tal cédula é pré-serrilhada

anteriormente, a ação mecânica do eleitor de forçar a ponta da caneta ao lado do

candidato de sua preferência remove um retângulo de papel ao lado do nome de seu

candidato, um fragmento que em inglês é dado o nome de chad. O buraco deixado

ali será posteriormente interpretado pela máquina totalizadora como um voto.

O alinhamento da cédula na máquina de votar Votomatic é feito através

de furos na cédula que são encaixados em pinos que se encontram no alto da

máquina, de uma maneira que em engenharia se denomina encaixe do tipo “macho-

fêmea”. Se este encaixe é malfeito ou de alguma maneira fica fora do eixo correto, o

voto do usuário fatalmente será anulado: uma vez desalinhada a cédula da máquina,

a perfuração que o usuário provocará na cédula não será interpretada

posteriormente pela máquina de totalização e será considerada simplesmente como

um erro e, por consequência, o voto será invalidado.

Quando o conjunto se encontra bem alinhado, a face da máquina cobre

completamente a cédula de votação, com exceção de pequenos buracos ao lado

das posições votantes relevantes naquela eleição. O eleitor deve então perfurar o

retângulo ao lado do nome do candidato de sua escolha, tomando cuidado para se

certificar de que deixou um buraco ali. Se o pedaço de papel que constituía o buraco

pender sobre a cédula por um fiapo que seja, tal perfuração incompleta certamente

causará erros de leitura na máquina e criará aberturas para a contestação da

“intenção de voto” do eleitor, como no caso da contagem de votos manual das

cédulas do tipo australianas. Deter-me-ei sobre assunto com mais cuidado a seguir.

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Ao final da cédula de votação existe uma espécie de barra de papel

picotada, com um número de série. Antes de a cédula chegar às mãos do eleitor que

irá perfurá-la, esse número de série é anotado e posteriormente checado contra a

cédula devolvida pelo eleitor. Isso para evitar uma fraude bastante comum surgida

com esse tipo de tecnologia: o voto do tipo “corrente”. Funciona da seguinte

maneira: de posse de uma cédula sem utilização, o golpista aborda um eleitor

disposto a vender seu voto e lhe oferece uma vantagem financeira em troca de sua

cédula em branco. Para tanto, o eleitor deverá entregar ao fiscal da mesa a cédula

que lhe foi entregue pelo fraudador (obviamente que pré-perfurada com as opções

deste).

Depois de fingir que fez suas escolhas na cabine de perfuração, que lhe

garante certa privacidade, o eleitor entrega a cédula perfurada para o fiscal e já fora

do local de votação devolve ao falsário a sua cédula em branco que será perfurada

novamente com os candidatos apoiados pelo golpista. Após pagar o valor

previamente acordado pela cédula em branco, o falsário encontra um novo eleitor

disposto a vender seu voto, criando assim uma espécie de corrente. Se bem

articulado, milhares de votos podem ser fraudados através deste esquema. Uma vez

descoberto o problema, passou-se a imprimir cédulas com números de séries e a

posterior conferência entre cédula entregue ao eleitor e a cédula recebida deste.

Após esta checagem da legitimidade da cédula, essa barra de papel é

picotada e depositada em uma urna. Uma vez que o voto seja retirado da máquina

de perfuração, é muito difícil que o eleitor identifique se os furos feitos na cédula

realmente se destinaram aos candidatos de sua escolha, já que a guia de votação

ficou para trás. A cédula de voto perfurada, após deixar a guia de votação da

Votomatic, é completamente anônima, acompanhada apenas de uma sequência de

três números ao lado de um espaço recortado pelo eleitor. O nome do candidato, no

entanto, está no livreto de referência e, apesar de esta conciliação ser possível –

basta encaixar o voto novamente na guia de perfuração – ela não é intuitiva e deixa

dúvidas no eleitor quanto à efetividade de sua ação e, consequentemente, de seu

voto.

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Os problemas decorrentes do uso de tecnologia de cartões perfurados

são conhecidos desde o final dos anos 1960. Para começar, o sistema de votação

por cartões perfurados não é intuitivo ou simples de ser compreendido pelo eleitor:

mesmo depois de décadas de uso em alguns estados dos EUA, é fato que em

certas áreas onde existe predomínio de população negra – e, portanto, menos

educada pelo estado – o número de votos descartados por manipulação imprópria

desse tipo de tecnologia por parte dos eleitores é em média três vezes maior do que

em condados onde a maioria é branca. Desta maneira, infere-se que esta não é uma

tecnologia que garante acesso irrestrito e uniforme ao jogo democrático a todos os

indivíduos de uma população.

A dificuldade com os cartões perfurados começa com sua produção. Por

se tratar de um material produzido em massa usando como matéria-prima papel,

qualquer imperfeição no seu peso, gramatura, dimensão ou qualidade de tinta é

capaz de gerar problemas no momento destes cartões serem processados pelas

máquinas totalizadoras. Diversos relatórios apontam que cartões perfurados

impressos com excesso de tinta foram capazes de enguiçar computadores de

totalização, ou mesmo que no momento de sua produção as “facas” de pré-

perfuração dos retângulos, que ficam ao lado do nome dos candidatos e devem ser

perfurados pelos eleitores, foram pressionadas com tanta força contra o papel que a

cédula ia para as mãos dos eleitores já pré-perfuradas, impedindo-os de efetuar

suas escolhas.

Por outro lado, se no momento do pré-corte as facas não são

pressionadas contra o papel com a força correta, as mesmas tendem a ficar presas

na cédula mesmo depois de uma ação mecânica por parte do eleitor, causando esse

fiapo problemas no momento da contabilização e obrigando funcionários do governo

a manipular os votos com chads perfurados um a um, ensejando assim a

possibilidade de fraude: é muito comum notar que perto das áreas onde as cédulas

estão sendo processadas pelas máquinas totalizadoras de votos o chão fica

recoberto de pequenos retângulos desprendidos das cédulas. Cada um desses

retângulos pode representar um voto extra adicionado pela máquina – ou mesmo

pelos fiscais – a um dado candidato, sem reflexo com a escolha dos eleitores. Como

os retângulos são pré-serrilhados, qualquer ação mecânica mais intensa pode fazer

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com que o mesmo se desprenda das cédulas e acabe por representar um voto extra.

Mesmo a simples manipulação dos mesmos no momento de encaixá-los na máquina

totalizadora pode gerar resultados duvidosos.

Um outro problema comum reportado era o fato de as cédulas

armazenadas para impressão entre uma eleição e outra absorverem muita umidade,

e esta fazia com que as cédulas grudassem entre si, deformando-as e fazendo com

que, mesmo após os votos, os computadores de totalização simplesmente

engasgassem com as cédulas úmidas, prejudicando não apenas a velocidade da

contagem, mas também descartando os votos que eram responsáveis por este

“engasgue” (problema facilmente verificável entre as impressoras usadas

atualmente, que muitas vezes enguiçam por conta de folhas umidificadas pela ação

do tempo). Outro problema semelhante acontecia também no momento da

estocagem, quando cédulas estocadas por muito tempo eram empilhadas de tal

forma que a ação do seu peso faz com que uma grude na outra. No momento do

voto, a situação de “dupla-cédula” é capaz de causar os mais variados problemas.

E o problema com a tecnologia não se resume apenas à produção de

suas estruturas: muitos eleitores, como dito, não sabem como lidar com o suporte.

Após a escolha do eleitor e quando são obrigados a ficar em fila para verificação da

legitimidade da cédula ou mesmo para inseri-la em uma urna, muitos manipulam os

cartões, dobram-nos, os levam à boca, suam sobre os mesmos, enfim deformando-

os: uma série de pequenos gestos capazes de fazer retângulos de papel saltarem e

a consequente anulação do voto.

Existem diversos relatórios que desde meados dos anos 1980 alertam

para a baixa confiabilidade dos sistemas do tipo Votomatic e pedem para que a

tecnologia seja abandonada por conta desses chads soltos de suas cédulas. No

entanto, essas recomendações foram, no geral, ignoradas pela grande maioria, até

que em novembro de 2000, mês da talvez mais polêmica eleição da história, quando

da disputa entre George W. Bush e Al Gore para presidente dos EUA, os chads

finalmente ganharam a devida notoriedade e foram objeto de calorosas discussões

públicas e batalhas judiciais.

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O foco de tais discussões girou em torno do que foi batizado de dimpled

chad90. A figura a seguir mostra um caso típico de ação mecânica executada por

uma cédula, mas de perfuração incompleta e de consequentes resultados

desastrosos: se uma cédula não é perfurada, a intenção do eleitor fica marcada na

mesma, mas a máquina totalizadora não consegue computar tais votos. Veja a

figura 8 abaixo:

Figura 8 – Típico exemplo de um dimpled chad, na segunda linha, de cima para baixo, retângulo central91

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

90 Por dimpled entenda-se, em tradução aproximada, ondulação. Dimpled chad seria, então, uma

perfuração por um eleitor em uma das cédulas de votação, que, em vez de perfurar a cédula, deixaria o espaço ao lado do nome do seu candidato com uma espécie de “barriga”, uma ondulação característica de uma perfuração incompleta.

91 Como se pode perceber pela figura, existe uma intenção de voto, mas a ação mecânica de perfuração não foi suficientemente forte para atravessar o material que compõe a cédula.

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É de se notar que pelo menos 12 posições das 220 possíveis em uma

cédula de cartão perfurado estão posicionadas diretamente sobre os braços internos

dos mecanismos de tração da Votomatic, e que estas posições são as mais

suscetíveis a um enguiçamento do mecanismo de corte da máquina, que

consequentemente impossibilitaria a criação de um furo através de um golpe limpo

do mecanismo de perfuração.

No caso de uma recontagem (caso da eleição de 2000 na Flórida, onde a

disputa presidencial foi decidida – de maneira um tanto suspeita – por menos de

uma centena de votos), diferentemente dos votos cujo suporte são as cédulas

australianas de votação, que permitem uma recontagem mais clara ou pelo menos

fica mais clara nesse suporte a intenção do eleitor, as cédulas de cartão perfurado

dificultam a compreensão desta, primeiro por conta de sua discrição de marca,

depois porque as centenas de retângulos, uns ao lado dos outros e relativamente

homogêneos, precisam ser escrutinados com o máximo de cuidado para que esse

dimpled chad seja reconhecido. Praticamente qualquer pessoa pode analisar marcas

de caneta em papel, mas são poucos os treinados em ler marcas de pressão em

cartão de perfuração. Além do mais, tal complexidade deixa uma recontagem muito

mais morosa, o que atrapalha todo o processo eleitoral. No condado de Palm Beach,

na Flórida, EUA, palco da disputa eleitoral entre os candidatos a presidente daquele

ano de 2000, 6.358 votos de um total de 433.043 (ou 1,5% do total) estavam mal

perfurados e foram objetos de disputa dos partidos democrata e republicano em uma

recontagem e batalha judicial que se estendeu por mais de um mês após o pleito.

Todo tipo de ação por parte do eleitor pode causar esse tipo de marca:

sua hesitação, na hora de deixar criar um buraco na cédula de papel ao lado do

nome do seu candidato, seguida de falta de atenção com as instruções de votação.

Se o eleitor não faz o furo com todo o cuidado, certamente o caso se sucederá. É

também possível que o eleitor faça a pressão correta no retângulo, mas o mesmo

esteja obstruído do outro lado, impedindo a criação do buraco necessário para

posterior leitura. Em qualquer dos casos é possível diferenciar entre um e outro com

o auxílio de minucioso exame microscópico, mas é claro que tal procedimento é

completamente inviável no momento de uma recontagem.

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Uma vez que os votos sejam enviados para a central de apuração, a

totalização é feita por um entre dois equipamentos: um computador com um leitor de

cartões perfurados ou uma máquina com dispositivo eletromecânico de tabulação de

cédulas perfuradas. Na década de 1960, quando o uso de computadores não era

comum, usavam-se estes dispositivos eletromecânicos de tabulação, não muito

eficientes e que demandavam muitas vezes mais de uma passagem de cédulas

pelos seus sistemas para que o registro da mesma fosse feito de maneira correta.

Porém, a cada passagem de uma cédula, incrementava-se a possibilidade de um

retângulo de papel se soltar da mesma e criar um desvio nos resultados da eleição,

fato mais comum do que se pode imaginar, segundo relatórios da época.

Já nos anos 1970, passou-se a usar computadores que contavam os

votos de maneira mais eficiente, sem a necessidade de tantas passagens do mesmo

pelo sistema, e com a totalização feita por software, que criava mais um problema:

quem garantia que o software refletia um número exato de votos que haviam

passado por um computador? Quem poderia garantir que o mesmo era confiável e à

prova de adulterações? Se alguém quisesse mudar o resultado de uma eleição,

muito mais fácil do que fraudar milhares de máquinas de perfuração ou milhões de

cédulas, bastaria ter acesso ao código que compunha o programa de totalização dos

votos nos computadores responsáveis por este cálculo. Com apenas algumas linhas

de programa, o resultado inteiro de uma eleição poderia variar segundo as vontades

de quem tivesse acesso a esses códigos.

Existe ainda um outro tipo de tecnologia para cartões perfurados que se

mostrou muito menos problemático que a Votomatic, chamado de sistema Data

Vote, mas que foi pouquíssimo usado em campo. Ao contrário das cédulas que

alimentam as máquinas Votomatic, que são genéricas e se diferenciam, de eleição

para eleição, apenas pelas guias usadas para orientar o eleitor, as cédulas do

sistema Data Vote precisam ser especificamente impressas em cada eleição, com

as cédulas australianas de voto. Os nomes dos candidatos nesta cédula são

dispostos em apenas duas colunas, permitindo não mais do que 70 nomes de

candidatos por cédula – suficiente em eleições com poucos candidatos, mas aquém

do necessário em caso de eleições mais complexas. Pela experiência recente no

EUA, as cédulas do tipo Data Vote foram muitos mais efetivas e menos suscetíveis a

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gerarem os dimpled chads nos poucos condados eleitorais onde foram usadas estas

máquinas naquele país. No entanto, este sistema também apresenta algumas

restrições: em eleições que têm um maior número de candidatos concorrendo a um

determinado pleito, muitas vezes são entregues duas ou mais cédulas a um eleitor

no momento do mesmo registrar seus votos. Com isso, os candidatos que são

impressos nas segundas ou terceiras cédulas ao eleitor comumente registram um

menor número de votos, porque alguns eleitores se confundem com as múltiplas

cédulas ou se “esquecem” das opções que constam nas mesmas.

2.5 CÉDULAS PREPARADAS PARA RECONHECIMENTO ÓPTICO

Uma das alternativas mais populares às cédulas perfuradas são aquelas

marcadas por lápis pelos eleitores e depois processadas por scanners de

reconhecimento óptico, atualmente a tecnologia mais usada nos EUA para votação,

em uso por aproximadamente 40% dos seus condados eleitorais. Este tipo de

tecnologia tem suas raízes no mundo dos testes padronizados, muito utilizados em

exames de admissão faculdade nos EUA, mais notadamente nos testes do tipo

Scholastic Aptitude Test (SAT) ou Teste de Aptidão de Escolaridade.

Em 1937, a IBM introduziu uma máquina denominada “Type 805 Test

Scoring Machine”, sensível a marcas de grafite sobre papel. Do ponto de vista do

eleitor, estas máquinas são bastante semelhantes às cédulas australianas de voto,

com algumas vantagens sobre as mesmas: as marcas na cédula são padronizadas

pelo sistema (ou pelo menos deveriam ser se o eleitor seguir as instruções de uso

da tecnologia, que pede para o mesmo preencher completamente um espaço oval

ao lado dos candidatos de sua preferência usando um lápis de grafite do tipo A2 ou

uma caneta de tinta preta) e o processo de contabilização dos votos é agilizado pela

automatização feita por computadores.

Quando o usuário da cédula marca a mesma com grafite de lápis sobre o

papel em um retângulo ou forma oval, ao lado da escolha da resposta da múltipla

escolha que julga correta, ou mesmo o nome do candidato de sua preferência, o

grafite contido nessa marca altera as propriedades do papel, notadamente sua

condutibilidade elétrica. Uma vez depositada em uma urna, estas cédulas são

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processadas por grandes computadores com capacidade de reconhecer no papel a

área onde esta propriedade do papel foi alterada. Através de um “mapeamento” da

cédula, tem-se a resposta e, portanto, as mesmas são passíveis de tabulação e

totalização pelos computadores. Tal tecnologia que interpretava as marcas do papel

através da alteração de suas propriedades eletro-mecânicas foi utilizada para os

testes SAT até meados dos anos 1950.

Como alternativa a estas máquinas da IBM, surgiram os sistemas com

capacidade de reconhecimento óptico através do processo de scanning92, processo

através do qual o computador interpreta uma marca escura sobre o papel dentro de

um determinado campo de uma cédula como a escolha de um usuário, através de

um algoritmo lógico que usa o contraste entre áreas como parâmetro. A mesma IBM

vinha explorando as possibilidades de reconhecimento óptico muitos anos antes,

mas foi o professor E. F. Lindquist da Universidade Iowa quem desenvolveu o tipo

American College Test (ACT) ou Teste para Colégios Americanos e aperfeiçoou as

primeiras máquinas de reconhecimento óptico, ainda em meados dos anos 1950.

Na figura 9 encontra-se uma máquina de escandir fotos por

reconhecimento óptico, fabricada pela empresa Election Systems and Software e

típica de sistemas de reconhecimento óptico. Este modelo, de número 150, é mais

lento que os modelos de número 650 e aplicável em condados eleitorais menores.

Os votos são alimentados pelo lado direito da máquina (em que se encontram

algumas cédulas na bandeja da máquina figurada a seguir), passam pelo sistema e

são ejetados do lado esquerdo da máquina. O scanner inclui, além do chassi, um

sistema de computação completo e fica disposto sobre um carrinho com rodas, onde

também se encontram suprimentos para a máquina e uma pequena impressora de

relatórios93.

92 O termo, muito comum na gramática de informática, é de difícil tradução para o português. Talvez o

verbo que mais se aproxime de scan seja escandir, ou seja, examinar minuciosamente. 93 JONES, 2001.

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Figura 9 – Máquina de escandir fotos por reconhecimento óptico

Fonte: A Brief Illustrated History of Voting.

O primeiro uso desse tipo de tecnologia em eleições foi feito no ano de

1962, na cidade de Kern, Califórnia, utilizando-se um sistema sensível à marcação

desenvolvido pela Norden Division of United Aircraft e pela prefeitura da cidade de

Los Angeles que pesava cerca de oito toneladas. O desenvolvimento da engenhoca

começou em 1958 e foi comercializada sob o nome de “Gyrex Vote Tally System”,

que ficou em uso no condado de Orange por mais de uma década, além de ter sido

empregada em estados como Oregon, Ohio e Carolina do Norte.

Um outro desenvolvimento deste tipo de sistema foi um tabulador

Votronic, usado em San Diego no ano de 1964 e em diversos outros condados

californianos em 1968, além de Ohio. Quando comparado com os primeiros

desenvolvimentos deste tipo de tecnologia, os Votronic eram relativamente

pequenos e de fácil operação. Apesar de originalmente terem sido incorporados pela

corporação de um nome análogo, Votronic Inc., esta foi absorvida pela Cubic

Corporation em 1964, que foi a primeira revendedora a atingir escala para este tipo

de tecnologia de votação. O sistema Westinghouse, baseado no scanner óptico de

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páginas Westinghouse Learning Corporation M-600 foi desenvolvido em conjunto

pela Data Mark Systems e usado pela primeira vez numa eleição no condado

eleitoral da cidade de Douglas, em Nebraska, no ano de 1976. Em 1979, a empresa

American Information Systems, nos anos predecessores tida por falida, emergiu

novamente e lançou no ano de 1982 o AIS modelo 315, um scanner tabulador de

votos que viu seu primeiro uso em diversos condados de Nebraska.

Desde o seu desenvolvimento tais máquinas evoluíram muito

tecnologicamente: os primeiros scanners não aceitavam nada menos que os

espaços reservados para a marcação do eleitor completamente preenchidos por

tinta ou grafite. Já os modelos em uso atualmente aceitam o preenchimento parcial

dos espaços reservados na cédula e mesmo um amplo espectro de marcas por

parte do eleitor que passam por “X” ou “√”, linhas simples e rabiscos diversos.

O sistema tem algumas vantagens sobre as demais tecnologias: os

eleitores usam artefatos para marcar os votos com os quais possuem ampla

familiaridade. Como resultado, estes podem facilmente interpretar o resultado da

marca em suas cédulas, identificando os candidatos em quem depositaram seu voto,

e, no caso de ser necessária uma recontagem, existe uma contraprova física – no

caso, a própria cédula que dispensa conhecimentos anteriores para a comprovação

do voto, como no caso dos dimpled chads, efeito do uso de cédulas com perfuração.

Seria um sistema perfeito se não fosse o fato de os tabuladores julgarem as cédulas

marcadas pelos eleitores por critérios mecânicos que diferem significativamente dos

critérios intuitivos usados pela maioria das pessoas no momento de votar.

Alguns votos marcados exatamente da mesma forma são interpretados

de maneiras distintas por modelos diferentes de máquinas, uma vez que estas,

apesar de usarem tecnologias de hardware na leitura de cédulas, diferem no uso

dos softwares de leitura das marcas e sua consequente interpretação. Tipicamente,

se um voto é marcado em uma cédula de acordo com as instruções dispostas na

cabine de votação, o mesmo será interpretado de maneira correta por todos os

modelos de máquinas de reconhecimento óptico. O problema está quando esta

marca do eleitor foge do padrão estabelecido: provavelmente será interpretada de

maneiras diferentes por modelos de máquinas diferentes.

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Uma vez marcada a cédula pelo eleitor, o voto pode ser imediatamente

tabulado caso as máquinas totalizadoras, hoje em dia bastante portáteis, apesar de

caras, estejam disponíveis nos locais de votação. Desta maneira, os eleitores podem

alimentar eles próprios os seus votos nas máquinas totalizadoras, certificando-se

que votaram em todos os cargos disponíveis na cédula e que sua vontade foi

registrada de acordo com suas intenções. Máquinas totalizadoras nos locais de

votação diminuem drasticamente os erros cometidos pelos eleitores no momento da

votação, e tal método de contabilização parcial de votos é conhecido pela “contagem

no precinto”, em oposição à contagem centralizada, em que os votos são enviados

para uma central para posterior contagem, método mais comum nos EUA.

A avaliação da precisão das máquinas tabuladoras de voto por

reconhecimento óptico é quase sem sentido quando comparada com padrões

humanos: em avaliações normais, tanto o hardware quanto o software cometeriam

erro para marcas feitas de acordo com os padrões estabelecidos em um bilhão de

registros. Infelizmente estes padrões de precisão só são atingidos quando os

eleitores fazem as marcas em suas cédulas de acordo com os exatos padrões

pedidos pelo fabricante das máquinas. Segundo dados empíricos em audições feitas

nas eleições do ano de 2000 na Flórida, EUA, um em cada 2.000 eleitores marcou

suas cédulas usando marcas distintas daquelas requeridas pelos fabricantes das

máquinas (como, por exemplo, o uso de um “X” sobre o quadrado ao lado do nome

do candidato ou mesmo um círculo ao redor do mesmo espaço) ou usou um tipo de

tinta de caneta que não era a adequada.

Face a estas marcas fora de padrão, a taxa de erro de leitura de marcas

pelas máquinas tabuladoras é dramaticamente incrementada: um em cada 2.000

votos, aproximadamente, pode apresentar erro de leitura por parte da máquina

totalizadora. Em uma eleição com um universo de um milhão de votos, 500 destes

poderiam apresentar problemas de contagem. Se elevarmos este número a 100

milhões, número possível de eleitores para uma eleição presidencial em um país

com os EUA, seriam 50.000 votos duvidosos, mais do que suficientes para colocar

em dúvida o resultado de uma eleição. A eleição presidencial de 2000 nos EUA foi

vencida pelo número de votos infinitamente menor do que esse, como já visto.

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Estas máquinas possuem diversos tamanhos, capazes de processar

cédulas de papel de formatos relativamente grandes: em certos casos, alguns

condados eleitorais dos EUA imprimiram todos os candidatos a um determinado

cargo em apenas uma face da cédula – apesar de a mesma ser de tamanho maior,

a máquina conseguia processá-las sem problemas. Outros condados preferem a

impressão dos candidatos em dois lados distintos de uma mesma cédula, o que

pode levar o leitor a se esquecer de votar nos candidatos ou cargos que estão

dispostos no verso da cédula que tem em mãos. Quando isso acontece,

frequentemente o número de múltiplos votos (votos em mais de um candidato para o

mesmo cargo público) ou número de votos insuficientes (quando a cédula vai para a

urna sem ter todos os cargos contemplados preenchidos por parte do eleitor) pode

chegar a espantosos 5% dos votos de uma eleição94.

Uma forma possível de fraude do sistema levaria em conta não somente a

cédula em si (e neste caso as cédulas podem ser fraudadas através dos mesmos

métodos usados nas tecnologias de voto australiano e cédulas perfuradas), mas o

momento quando estas cédulas irão ser totalizadas pelas máquinas scanners.

Douglas W. Jones, da Universidade de Iowa comprovou que se um potencial

fraudador tiver acesso aos arquivos da configuração do sistema das máquinas

totalizadoras, potencialmente poderia creditar votos a um candidato em detrimento

de outro. Tais arquivos de configuração são transferidos para o sistema de votação

através de mídias removíveis (disquete ou, mais recentemente os chamados pen

drives, pequenos dispositivos, no formato de canetas, com capacidade limitada de

memória do tipo flash, capaz de armazenar arquivos em cartões de memória e não

em discos rígidos) e qualquer um com acesso a esta mídia poderia, em tese,

hackear o sistema95. Outra forma de ataque ao sistema poderia ser efetuado no

momento da tabulação dos votos, e tais ataques foram demonstrados por estudiosos

do assunto, como Harri Hursti da Universidade de Connecticut96. No entanto, estas

possibilidades de fraude podem ser mitigadas através do uso de um mecanismo de 94 JONES, 2003, p. 9. 95 JONES, Douglas, W. Exemple attack documentation: optical scan configuration. Disponível em:

<http://en.wikipedia.org/wiki/Optical_scan_voting_system#cite_note-6>. Acesso em: 27 mar. 2009. 96 KIAYIAS, A.; MICHEL, L.; RUSSELL, A.; SHVARTSMAN, A. A. Security Assessiment of the Diebold

Optical Voting Terminal (UConn VoTeR Center and Departament of Computer e Cience and Engineering, University of Connecticut, october 30. 2006). Disponível em: <http://voter.engr.uconn.edu/voter/reports/>. Acesso em: 20 nov. 2009.

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verificação criptográfica, inclusive através de chaves de criptografia de uso corrente

do governo dos EUA.

Se alguém disposto a cometer uma fraude tem acesso a um voto em

branco (seja este roubado ou mesmo falsificado), o golpe do tipo “corrente”, caso da

cédula australiana, poderia ser também aplicado.

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CAPITULO 3 – O VOTO ELETRÔNICO NO BRASIL

O projeto do voto eletrônico no Brasil começou muito antes do início do

uso da urna eletrônica, em 1986: todos os eleitores do país tiveram de ser antes

cadastrados no banco de dados do TSE para que as bases do voto eletrônico

estivessem postas. Tal esforço teve proporções enormes por parte do Estado

brasileiro: de fato, se fosse possível determinar um evento para inauguração para o

que Deleuze chamou de sociedade de controle no Brasil, esse cadastramento em

massa poderia servir de marco zero.

Tal diligência tratou de estriar a população interessante da sociedade

brasileira, sua força produtiva, aninhando-a em frações alocadas em bancos de

dados do TSE. Estas parcelas interessantes dos antes indivíduos, ainda

“indivisíveis”, naquele momento foram espalhadas pelo diagrama da sociedade de

controle do Estado para colocar em funcionamento a máxima produtividade no

gerenciamento da população e foram um fator chave para a nova biopolítica e o voto

eletrônico, por consequência.

O voto vinculado foi eliminado da legislação eleitoral em 198297. Isso abriu

espaço para o processamento eletrônico de dados nos serviços eleitorais. Já em

1986, foi realizado o recadastramento de 69,3 milhões de eleitores em todo o

território nacional, sob a supervisão do Tribunal Superior Eleitoral, um passo

essencial em direção ao então novo processo de votação98, uma vez que até então

existiam milhões de títulos de origem duvidosa – até mesmo duplicados – e cuja

numeração era limitada ao âmbito estadual. Após o recadastramento, os títulos

foram reclassificados com um padrão numérico nacional, criando desta forma a

terraplanagem necessária para que o voto eletrônico existisse alguns anos mais

tarde, cujo processo de informatização total foi concluído em 2000, quando a urna

eletrônica foi utilizada em todo o território nacional.

97 Voto vinculado era o processo de voto adotado nas eleições de 1982: na época, quem votasse

para governador em um partido era obrigado a votar no mesmo partido para os outros cargos, sob a pena de ter o voto anulado. Tal voto vinculado era tido por muitos como uma herança do regime militar que precede a abertura democrática brasileira.

98 Segundo o site do governo brasileiro. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/sobre/cidadania/eleicoes-2010/historia/historia-do-voto-eletronico-no-brasil>. Acesso em: 12 nov. 2011.

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A maneira como o voto eletrônico foi implantado em todo o território

nacional foi de uma eficiência absoluta frente à dimensão do problema que se

apresentava diante do Estado brasileiro, o que causa uma certa estranheza quando

tal eficiência é comparada com a implantação de novas tecnologias do mesmo

governo em tantas outras áreas: em menos de seis anos toda a população brasileira

já tinha sido forçada a deixar as cédulas de papel para trás.

Foi em 1994 que, pela primeira vez na história do sufrágio no Brasil, a

totalização das eleições gerais em todo o território nacional foi auferida de maneira

centralizada pelo computador central do Tribunal Superior Eleitoral. O processo foi

rápido: o primeiro projeto de urna eletrônica nasceu em 1995 e, durante as eleições

municipais de 1996, o mesmo se encontrava concluído. Naquele ano, um terço do

eleitorado votou nas novas urnas eletrônicas. Dois anos depois, esse número

aumentou para dois terços dos eleitores e, em 2000, todo o eleitorado brasileiro

votou por meio eletrônico.

Ora, essa eficiência é um dos pilares do que Deleuze chamou de

sociedade de controle e foi muito bem representada na implantação de urna

eletrônica, eficiência essa que era interessante apenas na medida em que era útil

para a nova fase da política brasileira. No entanto, temos de manter em mente que

para a ótima eficiência do regime de controle nada deve ser acabado, ao contrário, o

ponto de máxima eficácia será atingindo através da noção do inacabado e do

chamamento para que todos participem ativamente da busca por maior

produtividade e confiança na integração.

O investimento desta biopolítica não é mais no corpo enquanto força

produtiva; interessa agora capturar as energias capazes de produção intelectual,

fazer participar, criar condições para cada um se sentir atuante e decisor no interior

das políticas de governos. Daí que, obviamente, o sistema de voto eletrônico

brasileiro é um sistema sempre passivo de reformas, de melhoramentos, de novas

versões: nunca acabado e posto, mas sempre no limite do ótimo, sem nunca, no

entanto, atingi-lo. Eis a noção importante da nossa sociedade de controle: nada está

acabado, tudo é passível de melhora. Tudo é, em suma, reformável.

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E assim é, e assim será sempre. Para garantir “que as eleições brasileiras

sejam mais seguras”99, a partir de 2008 iniciou-se a implantação de um novo método

de identificação dos eleitores: em vez de apenas apresentar documentos, que

poderiam vir a ser falsificados, os cidadãos serão identificados pelas impressões

digitais. O registro digital já começou e, quando concluído, será um dos bancos de

dados mais avançados e precisos do mundo, segundo afirma o próprio site do

governo brasileiro. Duas noções-chave aqui: segurança (e a busca constante por

mais e mais segurança, porque a ideia do inseguro é caríssima para o novo

controle) e controle do corpo e pelo corpo. A elas.

Na sociedade de controle a denúncia é um dispositivo de educação e

conscientização dos cidadãos, uma sujeição social, no intuito de garantir sua

“segurança” e defender esta sociedade. Esta segurança, que tem por fiel

instrumento a polícia e que pretende normalizar o corpo até o seu menor desvio, é

uma chave para esta nova forma de exercício do poder: a biopolítica.

No entanto, a segurança tratada aqui precisa ser redimensionada, e cabe

uma ingênua parábola: da mesma forma que acontece quando ligamos para

qualquer telemarketing de algumas das dezenas dos serviços desnecessários que

nos rodeiam e somos confrontados por perguntas que, se respondidas de maneira

errada, podem causar a descontinuidade do atendimento, ao sermos confrontados

com essas perguntas sempre recebemos a razão por parte do operador: “É para a

sua segurança”.

“Não, não é para a minha segurança, e sim para a sua segurança, ou

melhor, para a segurança da empresa a qual é representada por você” poderia ser

uma resposta lúcida. Da mesma forma, o discurso da segurança por parte do Estado

em seus dispositivos tecnológicos é correto, mas não se pergunta quem acaba por

se beneficiar de toda a segurança oferecida. No caso, o que está em jogo é a

manutenção e a segurança deste mesmo Estado que nos oferece ferramentas mais

e mais refinadas de controle e que adotamos acreditando piamente que é para o

99 Como ainda afirma o site do governo brasileiro. Disponível em:

<http://www.brasil.gov.br/sobre/cidadania/eleicoes-2010/historia/historia-do-voto-eletronico-no-brasil>. Acesso em: 12 nov. 2011.

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nosso bem, para a nossa garantia de continuidade. Mas não seria a perpetuação a

razão de existência de todo o Estado?

Nos diagramas anteriormente encontrados na sociedade disciplinar ou

mesmo do soberano, como já abordamos anteriormente, o corpo era o elemento

fundamental de interesse do Estado: na biopolítica, não se trata mais de disciplinar o

corpo, força mecânica individualizada, trata-se da “vida dos homens, [...], ela se

dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, ao

homem-espécie”100. As frações de corpos, seu cérebro, suas impressões digitais,

sua retina usada como identificação e como chave de acesso, como muitas vezes foi

visto em filmes de ficção científica e que nos dia de hoje se trata de uma prática

relativamente comum, esses sim são objetos de interesse do Estado.

Quando o discurso do Estado implica, como vimos logo acima, que o

sistema de identificação do cidadão no momento do voto precisa ser alterado do

documento oficial, seja ele o Registro Geral ou a Carteira Nacional de Habilitação,

para a impressão digital do eleitor, por esse mesmo Estado julgar que tais

documentos são inseguros por serem passíveis de falsificação, duas questões

saltam aos olhos. A primeira é: por que a votação é um sistema tão mais importante

para o Estado do que qualquer outro, uma vez que lhe cabe o ainda exclusivo direito

de uma identificação biométrica, enquanto todas as outras interfaces do cidadão

para com o Estado ainda acontecem segundo a membrana da documentação oficial

emitida por este e não um pedaço do corpo do cidadão? A segunda questão é: o

que representa a identidade segundo esse novo modelo de controle?

Segundo Guattari e Rolnik,

[...] a identidade é um conceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros de referência, quadros esses que podem ser imaginários [e, por conseguinte, idealizados]. Essa referenciação vai desembocar tanto no que os freudianos chamam de processo de identificação quanto nos procedimentos policiais, no sentido da identificação do indivíduo – sua carteira de identidade, sua impressão digital, etc. [...] Em outras palavras, a identidade é aquilo que faz passar a singularidade de

100 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 2000. p. 289.

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diferentes maneiras de existir por um só e mesmo quadro de referência identificável.101

Na nova biopolítica, portanto, a chave de identificação de um indivíduo – o

que antes era operado através de um documento de identificação, e que tinha um

lastro objetivo e fora do indivíduo que servia de contato com o Estado – e, que em

um certo sentido, era a parte objetiva do mesmo – agora será por uma parte mesma

de si, sua impressão digital, sua íris, quiçá no futuro próximo parte de seu código

genético. O controle do Estado deixa de operar num elemento terceiro, em uma

membrana separada do indivíduo, para se efetivar nele próprio. O Estado está em

nós, e nós participamos do Estado. Faz todo o sentido que a chave do sistema de

votação eletrônica, quando vista por esta perspectiva do Estado, saia da

identificação do indivíduo através de um documento e passe a ser uma parcela

desse mesmo sujeito.

3.1 A MÃO FORTE DO TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL

De volta ao voto eletrônico brasileiro, nosso sistema eleitoral possui

algumas particularidades, a começar pela sua obrigatoriedade, já discutida nos

capítulos anteriores. Ademais da obrigatoriedade por parte da população em

participar do pleito, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concentra os poderes de

regulamentar, administrar e julgar dentro do processo eleitoral brasileiro102. A Justiça

Eleitoral, de feito, tem missão das mais amplas no que concerne ao sistema eleitoral

brasileiro. Ela funciona como ramo especializado do Poder Judiciário, exercendo a

função jurisdicional nos tratos eleitorais, além da administração das fases do

processo eleitoral, desde o alistamento até a apuração dos votos e a consequente

proclamação dos eleitos. É o único órgão da Justiça brasileira com função

101 GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

p. 68-69. 102 Montesquieu, em “O Espírito das Leis”, diz o seguinte sobre o acúmulo de poderes por parte do

Estado ou de um de seus órgãos: “Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”. MONTESQUIEU. O espírito das Leis. Tradução de Luiz Fernando Rodrigues de Abreu. São Paulo: Juruá, 2000.

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administrativa que extrapola o seu próprio âmbito. Não há, no Brasil, interferência,

seja do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo, na administração das eleições

ou na decisão final sobre o resultado dessas.

Este acúmulo inusitado de poderes resulta na centralização das decisões

e propicia uma grande rapidez na aprovação das leis eleitorais, que são escritas e

aprovadas sem interferência dos eleitores, mas por outro lado provoca uma óbvia

falta de transparência em todo o processo: se votar passa antes pelo suporte do

voto, logo a maneira como votamos é tão importante quanto em quem votamos.

Como eleitores, decidimos em quem votar, mas não como votamos, e por falta de

transparência me refiro a este descompasso em nossa maneira de eleger os

governantes.

De início a solução à moda brasileira de ordenação dos poderes eleitorais

funcionou bem por muitas eleições, pois de certa maneira cumpria a função de dar

maior credibilidade aos pleitos nacionais, pondo fim à desmoralizadora fama de

eleições fraudadas que maculava a Velha República. No entanto, esta maneira de

regular uma eleição rapidamente ficou obsoleta e se transformou em uma

particularidade brasileira, como veremos a seguir.

O problema na distribuição dos poderes no processo eleitoral e a quem

se deve atribuir as funções de administração, de regulamentação, de fiscalização e

de julgamento do contencioso é abordado de distintas maneiras pelas democracias

do mundo. A título de exemplo, passemos rapidamente pela maneira como

Argentina, Estados Unidos e Alemanha tratam do assunto, apenas como um rápido

exemplo comparativo103.

Na Argentina, existe uma separação parcial entre a atividade jurisdicional

e a administrativa. A Câmara Nacional Eleitoral, composta por três juízes, nomeados

pelo Presidente da República, atua como segunda instância dos feitos eleitorais

após aprovação do Senado, que são decididos, em primeira instância, pelos juízes

103 GUERZONI FILHO, Gilberto; SOARES, Paulo Henrique. Estudo de número 143, DE 2000, sobre o

funcionamento da justiça eleitoral em alguns países. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/Relatorios_SGM/RelPresi/2002/038.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2011.

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eleitorais. Esses juízes, um em cada província e na Capital Federal, são magistrados

federais e de carreira designados para atuar no campo eleitoral. A Câmara Nacional

Eleitoral é, também, responsável pelo Registro Nacional de Eleitores, por intermédio

dos juízes eleitorais, pela coordenação das Juntas Nacionais Eleitorais,

encarregadas da recepção e contagem dos votos em cada província e na Capital

Federal. Cabe, entretanto, à Direção Nacional Eleitoral, órgão do Ministério do

Interior, prover a infraestrutura para as eleições. As eleições provinciais, por sua vez,

são regulamentadas em cada província.

Nos Estados Unidos a administração das eleições, mesmo as federais, é

considerada matéria de responsabilidade dos estados. Há uma grande diversidade

em seu desenho, refletindo a forte característica federativa daquele país. Como

regra, cada estado possui administrador-chefe das eleições, normalmente o

Secretário de Estado. A coleta e contagem dos votos cabem aos condados que, via

de regra, usam a estrutura dos estados para fazer isso. O contencioso eleitoral cabe

aos tribunais ordinários federais e não há nenhuma especialização na área

jurisdicional. O Congresso, entretanto, permanece como juiz último da verificação

dos poderes. Existe, ainda, a Comissão Federal de Eleições (FEC), encarregada de

gerir o financiamento público federal das eleições, composta de seis membros

nomeados pelo Presidente e aprovados pelo Senado, com mandato de seis anos,

renovado um terço a cada dois anos. Essa Comissão, muitas vezes, presta

assessoria aos estados em matéria de financiamento eleitoral.

Já na Alemanha a administração do processo eleitoral cabe ao Diretor

Eleitoral Federal e à Comissão Eleitoral Federal. O Diretor Eleitoral Federal é

nomeado pelo Ministro do Interior e escolhe os outros seis membros da Comissão

Eleitoral Federal. Há, em cada estado, um Diretor Eleitoral Estadual e uma

Comissão Eleitoral Estadual, e, em cada Distrito, um Diretor Eleitoral e uma

Comissão Eleitoral Distrital, escolhidos pelos Governos Estaduais. A recepção dos

votos é feita pela Mesa Eleitoral, normalmente escolhida pelos Municípios. O

contencioso eleitoral é decidido pela Corte Constitucional Federal, sendo que o

parlamento é, em última instância, o juiz da qualificação dos eleitos, no caso das

eleições federais.

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Como visto acima, é, portanto, comum deixar a operação das eleições

com o próprio Executivo nacional (caso argentino) ou municipal (caso

estadunidense), apesar de que em alguns países latino-americanos, caso do Chile e

do Uruguai, a administração das eleições fica a cargo de órgãos autônomos não

integrantes de nenhum dos Poderes tradicionais. Já o Poder Judiciário nas eleições

tanto pode ficar a cargo da Justiça Comum (como EUA e Itália) como ser

responsabilidade de cortes especializadas.

Também a regulamentação e a fiscalização do processo eleitoral são

exercidas de formas bastante variadas. Por vezes pelo Legislativo, outras vezes por

instâncias diferentes do Executivo. Por exemplo, em muitos estados americanos a

administração das eleições é municipal e a regulamentação e a sua fiscalização são

de responsabilidade de órgão estadual, normalmente a Secretaria de Estado.

O TSE brasileiro foi configurado de forma muito particular, quando

comparamos este órgão com suas instâncias semelhantes em outras democracias.

No processo eleitoral, este órgão, como dito mais acima, acumula atribuições dos

três poderes – judiciário, legislativo e executivo e retém responsabilidades

conflitantes como administrar e operar todo o processo eleitoral, regulamentar os

procedimentos de todos os procedimentos deste, inclusive os de fiscalização e

decidir, como última instância, todo o contencioso de natureza eleitoral, mesmo

quando este envolva membros e comandantes da própria Justiça Eleitoral como

parte no processo.

De todo o processo eleitoral, o único procedimento que escapa do

controle do TSE é a fiscalização eleitoral, que fica a cargo dos partidos políticos,

com um ardil: a estes não é prevista nenhuma verba oficial para exercer tal

fiscalização e tampouco lhes é dado poder de regulamentá-la. Como fiscais os

partidos não têm recursos e nem podem escolher a maneira de fiscalizar, o que na

prática dificulta esta fiscalização. Toda a verba governamental para as eleições,

inclusive a verba para fiscalização deste processo, é controlada pelo TSE, o que se

trata de um equívoco inegável. Não é infrequente acontecer de um juiz eleitoral

julgar uma causa em que ele próprio é, por extensão de comando, o réu, ou que um

ministro do TSE decida os limites de uma fiscalização sobre atos efetuados sob sua

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própria responsabilidade, o que é uma particularidade brasileira, pois em nenhum

outro país democrático do mundo existe tal concentração de poderes em apenas um

órgão.

Apesar das vantagens iniciais desta concentração de poderes quando da

fundação do TSE, a inconveniência desta acumulação de poderes ficou evidente

com a chegada da computação ao processo eleitoral, em 1982, na primeira eleição

geral para governador, já no fim do regime militar de exceção. Na totalização dos

votos realizada com auxílio de computadores na eleição desse ano, surgiu forte

indício de fraude em eleições majoritárias e o caso ficou conhecido como “Caso

Proconsult”104.

A experiência foi desastrosa, com a ocorrência clara de uma tentativa de

fraude por agentes do governo militar. Ao fim e ao cabo de um mês de apuração e

por conta de forte pressão popular, a Justiça Eleitoral acabou dando a vitória ao

candidato que a esta correspondia, e as investigações pela Justiça Eleitoral só foram

colocadas em marcha por decorrência de pressão midiática, cuja conclusão apontou

um erro limpo e sem responsáveis no código do sistema, chamado pela mesma de

“Diferencial Delta”. Logo o caso foi banido da história oficial: uma busca no site do

TSE sobre a história da informatização eleitoral diz que as primeiras experiências

com computação teriam começado apenas anos depois do Caso Proconsult.

Este acúmulo de poderes por parte do TSE agilizou a implantação das

urnas eletrônicas no país: em 1985 a forte pressão do TSE junto do Congresso

permitiu a aprovação da Lei nº 7.444/85, que ordenava a unificação do cadastro de

104 Nas eleições de 1982, no Rio de Janeiro, quando se elegiam governadores pelo voto direto, o

Tribunal Regional Eleitoral decidiu informatizar a somatória final dos mapas produzidos manualmente pelas juntas de apuração em cada zona eleitoral. A empresa contratada para este serviço foi a Proconsult, que tinha entre seus especialistas pessoas ligadas ao Serviço Nacional de Informações (SNI).

Sem que os partidos pudessem exercer seu direito de fiscalização, esse decisivo ponto da apuração representava uma alienação do voto, uma vez que o TRE estava desaparelhado para garantir a lisura do somatório final e alienava o seu dever de garantir a honestidade eleitoral, ao entregar a responsabilidade do veredito final do pleito a uma empresa particular. A Rádio JB então resolveu fazer uma apuração paralela com os números somados dos mapas do próprio TRE e dava vitória a Brizola; do outro lado, a Proconsult afirmava a vitória de Moreira, candidato do regime militar. Um mês depois das eleições, imerso em crise por conta da forte pressão popular, o TRE ratificou seus números e deu a vitória a Brizola. PROCONSULT - Um caso exemplar. Jornal do voto.@. Disponível em: <http://www.brunazo.eng.br/voto-e/noticias/cad3mundo1.htm>. Acesso em: 3 maio 2009.

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eleitores com o uso da computação e dava ao TSE poderes de regulamentar o

processo de recadastramento. O TSE também decidiu, autonomamente, eliminar a

foto do eleitor no título eleitoral, o que criou grande possibilidade de fraude do tipo

de falsidade ideológica, em que um eleitor poderia se passar por outro, como já foi

discutido nos capítulos anteriores.

Em 1995, em novo lobby do TSE no Congresso Nacional, foi aprovado

um projeto redigido seis meses antes por um grupo de trabalho interno do TSE,

resultando na Lei nº 9.100/95, que permitia o uso de máquinas de votar eletrônicas e

dava a este órgão o poder de regulamentar o seu uso. O TSE optou por usar

máquinas de votar de gravação eletrônica direta (DRE), sem comprovante do voto

conferido pelo eleitor. Optou ainda pela identificação do eleitor na própria máquina

de votar, criando nova falha de segurança contra a inviolabilidade do voto. Esta

máquina passou a ser chamada, anos mais tarde, de urna eletrônica, e tais urnas

foram usadas pelo TSE tanto para a identificação quanto para a votação e

consequente apuração dos votos dos eleitores brasileiros. Esta decisão é autorizada

pelo Art. 152 do Código Eleitoral que, de forma clara e concisa, diz: “Lei 4.737/65

Art. 152. Poderão ser utilizadas máquinas de votar, a critério e mediante

regulamentação do Tribunal Superior Eleitoral.”105

Nesta norma é evidente a delegação de poderes executivo e legislativo ao

órgão judiciário. Por meio de atos normativos chamados Resoluções, o TSE define

autonomamente todas as condições em que as fiscalizações são permitidas.

Já em 1996, aproximadamente um terço do eleitorado, ou algo como 35

milhões de eleitores, votou nas novas urnas eletrônicas, sem que fosse emitido

comprovante impresso do voto conferido pelo eleitor, o que fere claramente as boas

práticas do uso de urnas eletrônicas para a votação, como veremos a seguir. Em

1998, as urnas eletrônicas foram utilizadas por dois terços dos eleitores e em 2000,

por toda a base do eleitorado.

105 Urna eletrônica e seu sistema jurídico. Paraná Eleitoral. Disponível em:

<http://www.paranaeleitoral.gov.br/imprimir_texto.php?tipo_texto=impresso&cod_texto=170>. Acesso em: 12 jul. 2011.

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Em 1999 surgiu no Senado o primeiro projeto de lei que forçava as

máquinas de votar a imprimir um comprovante de voto para a conferência do eleitor.

O projeto pedia também uma auditoria estatística de 3% das urnas a serem

sorteadas depois da eleição, exigia que a identificação do eleitor antes da votação

fosse feita em outra máquina que não aquela que colheria seu voto e obrigava o uso

de software aberto nas urnas eletrônicas para que as mesmas pudessem ser

auditadas pelos partidos políticos.

Mas, estranhamente, os juízes-ministros do TSE voltaram a exercer forte

lobby no Congresso Nacional e conseguiram, em apenas dois dias de 2001, aprovar

sete emendas no projeto de lei que criou a Lei nº 10.480/02. Tal lei adiava a

aplicação do voto impresso conferido pelo eleitor para 2004 (sabemos hoje que ela

nunca foi colocada em prática), pedia que as urnas fossem auditadas antes das

eleições e permitia ao TSE utilizar programas de computador fechados nas urnas

eletrônicas, cujo código-fonte não era apresentado aos fiscais dos partidos. Além do

mais, não desfazia o vínculo entre máquina de votar e máquina de identificação do

eleitor, permitindo desta forma a violação do sigilo de voto.

Já em 2003, a pressão do TSE no Congresso Nacional contra a auditoria

da apuração eletrônica continuou e, em menos de 6 meses, conseguiu aprovar a Lei

nº 10.708/03 que revogava o voto impresso conferido pelo eleitor e a auditoria

estatística da apuração eletrônica dos votos antes mesmo que vigorassem em 2004.

Nesta nova lei se manteve a identificação dos eleitores nas máquinas de votar e se

reforçou a autorização para uso de software fechado pelo TSE.

O Art. 66 da Lei nº 9.504/97 dizia que os partidos, como fiscais, tinham

direito ao conhecimento antecipado de todos os programas de computador

utilizados, mas a Secretaria de Informática do TSE decidiu comprar parte dos

programas sem exigir que os fornecedores abrissem os códigos-fonte ou o software

que roda dentro da urna eletrônica, para a sua fiscalização por parte dos partidos,

com isso alegando que o sistema tornar-se-ia mais seguro pela obscuridade. Ora,

quanto menor o conhecimento sobre o funcionamento da urna, tanto menores são

as chances de fraude ou manipulação dos votos contidos nas mesmas. Essa

argumentação pode ser válida para fraudes de origens externas.

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Mas o que dizer sobre as fraudes de origens internas? Para que o

sistema seja válido, a confiança por parte do eleitorado no funcionamento da

máquina de votar precisa ser íntegro, e essa confiança é mantida por

dispendiosíssimas campanhas de marketing que falam sobre a máquina de votar,

assegurando que a mesma é 100% segura e pela supressão de qualquer

informação sobre possíveis fraudes nas eleições. Desde a utilização da urna como

nosso método de votar, as denúncias de fraudes desapareceram do noticiário,

conforme era de se esperar. Mas a razão deste desaparecimento pode ser dúbia:

seria a urna eletrônica muito mais segura mesmo, como afirma o discurso de

Estado, ou simplesmente a fraude se transformou em uma operação completamente

submersa e dificilmente detectável?

Para que o ato de votar seja desvinculado de um ato de fé no Estado por

parte do eleitor, seria preciso que a urna imprimisse uma cópia de todos os votos e

que os mesmos fossem contabilizados depois da eleição. O voto eletrônico, ou seja,

o suporte do voto, não é o objeto de questão aqui. Não se trata de uma abordagem

ludita, que prega o retorno do passado. A tecnologia é válida na votação, mas a

maneira como a mesma é usada no processo eleitoral fere o bom senso e,

consequentemente, coloca em risco a validade do sistema de governo brasileiro.

Não só os votos deveriam ser impressos, mas o software que controla a

operação do hardware deveria ser público e estudado por todos, inclusive por

eventuais hackers, porque isso aumenta a probabilidade dos erros serem

encontrados a priori – exatamente como acontece em qualquer desenvolvimento de

software em qualquer dispositivo tecnológico colocado à disposição do público dos

dias de hoje.

Apenas como fonte de exemplo de como esta concentração de poderes

do TSE é prejudicial para o processo eleitoral como um todo, no ano de 2000, o

Partido Democrático Trabalhista (PDT), partido liderado justamente por Leonel

Brizola, impugnou os programas através da alegação de que parte dos mesmos era

mantida secreta, contrariando a lei em voga então. O presidente do TSE, na época o

ministro José Nery da Silveira, era responsável, como chefe do executivo eleitoral,

por cumprir a lei e apresentar os programas aos partidos e, portanto, o réu da

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impugnação, mas também relator e juiz deste processo. Obviamente que foi

inocentado de seu próprio caso, usando por alegação a lei dos direitos autorais em

detrimento da lei eleitoral, declarando que o órgão não precisaria mostrar aos fiscais

os programas cujos direitos autorais não detinha, uma vez que os mesmos eram

terceirizados. Logo depois do caso, o TSE emitiu uma notícia que dizia todos os

programas foram apresentados e aprovados pelos Partidos. No entanto, foi omitido

do caso que este “todos” referia-se somente aos programas de propriedade

intelectual do TSE, e que eram uma pequena minoria frente aos programas

contratados de empresas terceirizadas106.

O recurso contra esta absurda decisão, de que a lei eleitoral não

precisaria ser cumprida pelo TSE, foi apresentado para julgamento do próprio TSE,

que é sempre a última instância nestes casos. Nunca teve seu mérito julgado. Ficou

engavetado até depois do fim das eleições e foi arquivado “por perda de objeto”.

Resultado, o TSE ainda utiliza programas nas urnas eletrônicas cujos códigos-fonte

são mantidos longe dos olhos da fiscalização e dos interessados em geral, o que

deixa o processo eleitoral brasileiro opaco para os interessados na fiscalização dos

votos da população.

Um outro exemplo do tipo de dificuldade que o TSE impõe à fiscalização é

a sua sistemática recusa de dar acesso aos partidos políticos, pela internet, aos

boletins de urnas já digitalizados, o que dificulta a sua totalização paralela dos,

mesmo processo utilizado pela imprensa para descobrir a fraude no Caso

Proconsult. Com o recurso das urnas eletrônicas, a totalização dos votos se dá em

algumas horas e já na noite do dia da votação é declarado o vencedor do pleito. Não

existe mais tempo hábil para descobrir, através de fiscalizações ou totalizações

paralelas, se os resultados declarados refletem a realidade dos votos dos eleitores.

Mesmo que existisse esse tempo hábil, os partidos políticos, especialmente os

menores e mais suscetíveis a uma eventual fraude, não dispõem de recursos

técnicos ou econômicos para proceder com uma fiscalização das urnas eletrônicas.

Algumas horas depois o resultado é declarado, “a festa da eleição” toma conta, e

não cabem mais questionamentos.

106 BRUNAZO FILHO, Amilcar; CORTIZ, Maria Aparecida. Fraudes e defesas no voto eletrônico. São

Paulo: All Print, 2006. p. 68.

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Algo semelhante a esse apuro no decreto do eleito aconteceu no ano de

2000, nos Estados Unidos, quando houve um impasse entre as várias tecnologias

de apuração e um erro do tipo dimple chads nas máquinas de votar por perfuração

(veja capítulo anterior) criou um imbróglio que colocou por semanas a votação para

presidente naquele ano em dúvida.

Uma das emissoras de televisão mais poderosas no mundo, a FOX, saiu

na frente e declarou George Bush como o presidente dos EUA em decorrência de

uma vitória no Estado da Flórida. As concorrentes deste canal seguiram a esteira da

notícia e também decretaram Bush como vitorioso, criando-se assim um fato

consumado. Após uma aguerrida batalha judicial que paralisou a democracia

daquele país por semanas contínuas e instâncias e instâncias de decisões judiciais,

uma seguida da outra, a Suprema Corte decidiu, com juízes da maioria republicana,

dar a vitória ao candidato George Bush. Recontagens posteriores demonstraram que

Bush não ganhou na Florida, mas já era tarde demais para emendar a eleição.

Uma solução para viabilizar a fiscalização rápida da totalização seria o

TSE dispor aos fiscais dos partidos em cada cidade os resultados de cada urna,

chamados de Boletins de Urna (BU), preferencialmente pela internet. Os fiscais de

posse das vias impressas dos BUs, recolhidas nos locais de votação, poderiam

então conferir se os dados aceitos e computados pelo sistema de totalização oficial

estariam corretos. Esse tipo de recurso, no entanto, preveniria fraudes na

contabilização geral dos votos, mas não conseguiria acautelar contra fraudes

perpetradas em cada uma das mesmas urnas. No entanto, seria um paliativo muito

bem-vindo e de implementação relativamente simples, uma vez que preveniria pelo

menos uma instância em que a fraude poderia ocorrer, exatamente a instância mais

frágil de todo o sistema, na qual esta pode ocorrer com um menor dispêndio de

energia por parte do fraudador, em massa, já que é mais fácil cometer fraudes em

sistemas de totalização do que em urnas individuais.

A concentração dos poderes eleitorais no TSE tem comprometido e

permitido questionamentos quanto ao sistema eleitoral brasileiro e, consequente,

sobre seu suporte, a urna eletrônica.

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Tais soluções, impossíveis de serem implementadas enquanto o TSE

detiver tanto poder, restaurariam a confiança real no sistema de votação brasileiro,

confiança tão cara à sociedade de controle, e que nos dias de hoje é criada apenas

por uma ilusão alimentada por uma máquina de propaganda de enormes dimensões

que insistentemente prega as palavras de ordem o “sistema é 100% seguro” e as

“fraudes eleitorais acabaram”.

3.2 A URNA ELETRÔNICA BRASILEIRA

Como dissemos anteriormente, a gênese da urna eletrônica brasileira é

objeto de alguma polêmica, já que, desde os anos 1980, existem diversos estudos

no Brasil sobre a realização de eleições informatizadas. Entretanto, a ideia de

votações cujo suporte seriam as máquinas de voto eletrônico direto, aqui no Brasil

cunhadas de urnas eletrônicas, firmou-se a partir de pesquisas realizadas pela

Justiça Eleitoral e teve por justificativa a necessidade de agilizar o processo de

votação e apuração nas eleições brasileiras. Foi em 1989, na cidade de Brusque,

Santa Catarina, onde o juiz Carlos Prudêncio realizou a primeira experiência de

votação utilizando um computador no Brasil. Na ocasião somente municípios com

um determinado número de eleitores teria votação eletrônica, mas esta exceção foi

aberta para Brusque, que já havia tido eleições digitais anteriormente.

Grupos de engenheiros e pesquisadores ligados ao Comando Geral de

Tecnologia Aeroespacial (CTA) e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais

(INPE) foram os responsáveis pelo projeto da eleição informatizada em grande

escala no Brasil. Destacam-se aí os trabalhos dos engenheiros Mauro Hashioka

(INPE), Paulo Nakaya (INPE) e Oswaldo Catsumi (CTA), dentre outros profissionais,

pela concepção do equipamento. Em 1995, o TSE formou uma comissão técnica

liderada por pesquisadores do INPE e do CTA, de São José dos Campos, que

definiu uma especificação de requisitos funcionais para a primeira urna eletrônica,

chamada então de coletor eletrônico de votos (CEV).

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Figura 10 – Urna eletrônica brasileira

Fonte: Urna eletrônica Brasileira. Wikipédia.

A urna eletrônica foi desenvolvida entre 1995 e 1996 por uma empresa

brasileira, a OMNITECH Serviços em Tecnologia e Marketing, e aperfeiçoada em

1997 para o modelo que se tornou o padrão brasileiro até hoje. O TSE comprou

centenas de milhares de urnas eletrônicas através de seis licitações públicas, de

1996 a 2010, de duas empresas americanas de integração de sistemas, a Unisys

Brasil, em 1996 e 2002, e a Diebold Procomp, em 1998, 2000, 2004 e 2006. Toda a

fabricação da urna eletrônica foi realizada por empresas de fabricação sob

encomenda, entre elas a TDA Indústria, a Samurai Indústria, a Flextronics Brasil e a

FIC Brasil, subcontratadas pelas integradoras. A urna da figura 10 é a que foi usada

no referendo sobre desarmamento.

Para projetar, desenvolver e fabricar a urna eletrônica para as eleições de

1996, foi aberta uma licitação com o Edital TSE 002/1995, em que concorreram a

IBM, que propôs um projeto baseado em um notebook, a Procomp, que apresentou

uma espécie de quiosque de autoatendimento bancário e a Unisys, a vencedora da

licitação com um design original que se tornou o padrão utilizado até hoje. A Unisys

contratou a licença para comercializar ao TSE a urna eletrônica desenvolvida pela

OMNITECH, que em 1996 depositou o Pedido de Patente de Invenção da Urna

Eletrônica no INPI. Este modelo foi refinado em 1997 para o modelo atual da Urna

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Eletrônica, modelo UE 2000, que o Ministério da Ciência e Tecnologia reconheceu

que atende à condição de bem com tecnologia desenvolvida no País, através da

Portaria nº 413, de 27 de outubro 1997.

A urna eletrônica, inicialmente chamada de “coletor eletrônico de voto”

(CEV), que teve como objetivo identificar as alternativas para a automação do

processo de votação e definir as medidas necessárias à sua implementação, a partir

das eleições de 1996, em mais de cinquenta municípios brasileiros, é na verdade um

microcomputador para coleta e apuração de votos da primeira geração, do tipo

Direct Recording Electronic (DRE) voting machine, caracterizada pela gravação

eletrônica direta sem impressão do voto para conferência do eleitor. É importante

ressaltar que a urna eletrônica não atende ao Princípio da Independência do

Software em Sistemas Eleitorais e, por este motivo, foi descredenciada pela norma

técnica para equipamentos eleitorais Voluntary Voting System Guidelines, que são

diretrizes técnicas elaboradas pelos órgãos federais norte-americanos Election

Assistance Commission (EAC) e National Institute of Standards and Technology

(NIST)107.

As urnas brasileiras foram desenvolvidas em vários modelos a cada

eleição desde 1996, nas seguintes quantidades:

− UE1996 - produzidas 70 mil pela Unisys. Doadas 20 mil ao Paraguai em 2006

e o restante foi descartado em 2008;

− UE1998 - produzidas 84 mil pela Procomp e descartadas em 2009;

− UE2000 - 191 mil produzidas pela Procomp e descartadas em 2010;

− UE2002 - produzidas 50 mil pela Unisys e descartadas após a eleição de

2010;

− UE2004 - produzidas 75 mil pela Diebold-Procomp;

− UE2006 - biométricas. Produzidas 25 mil pela Diebold-Procomp;

− UE2008 - biométricas. Produzidas 58 mil pela Diebold-Procomp;

107 Como visto na seção 2.4 do documento postado no site da Election Assistance Comission.

Disponível em: <http://www.eac.gov/vvsg/part_2_documentation_requirements/chapter_2_quality_assurance.aspx>. Acesso em: 15 out. 2011.

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− UE2009 - biométricas. Produzidas 194 mil pela Diebold-Procomp e

contratadas mais 117 mil.

Os modelos 1996 a 2000 rodavam o sistema operacional VirtuOS. Já os

modelos dos anos 2002, 2004 e 2006 rodavam o sistema operacional Windows CE.

A partir do ano de 2008 todos os modelos passaram a utilizar o sistema operacional

Linux, um software livre, e foram utilizadas em torno de 450 mil urnas eletrônicas.

Os componentes principais da urna eletrônica brasileira são:

1. Memória: dois cartões de memória do tipo flash108, um interno e outro externo,

com os dados idênticos, onde está gravado o sistema operacional, os

programas aplicativos, os dados sobre os candidatos e onde os votos vão

sendo gravados através de mecanismos de segurança e redundância de

forma a dificultar o desvio de votos e a quebra do seu sigilo;

2. Pen-drive: utilizado para gravar o resultado da urna ao final da votação;

3. Módulo impressor: utilizado antes do início da votação para a impressão da

“zerésima” e ao final da votação para a impressão do “boletim de urna”;

4. Terminal do mesário: um pequeno teclado numérico com leitor biométrico de

impressão digital do eleitor, através do qual o mesário autoriza o eleitor a

votar pela digitação do número do título do eleitor;

5. Terminal do eleitor: composto de uma tela LCD e um teclado numérico

através do qual o eleitor faz sua escolha. Possui as teclas branco, corrige e

confirma (figura 11).

108 Memória flash é uma memória de computador do tipo Electrically-Erasable Programmable Read-

Only Memory (EEPROM), desenvolvida na década de 1980 pela Toshiba, cujos chips são semelhantes ao da Memória RAM, permitindo que múltiplos endereços sejam apagados ou escritos numa só operação. Em termos leigos, trata-se de um chip reprogramável que, ao contrário de uma memória RAM convencional, preserva o seu conteúdo sem a necessidade de fonte de alimentação. Memória flash. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mem%C3%B3ria_flash>. Acesso em: 12 out. 2011.

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Figura 11 – Botões da urna brasileira para confirmar o voto, corrigir o voto ou votar em branco

Fonte: Urna eletrônica Brasileira. Wikipédia.

Em 2002 foi introduzida uma versão que tinha acoplada a si um módulo

com uma impressora que produzia um voto físico, mas esse voto impresso foi

abandonado por força da Lei nº 10.740/2003109 e só deverá ser reintroduzido a partir

109 O texto da lei, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio da Silva, era o seguinte: “§ 4º - A urna eletrônica disporá de recursos que, mediante assinatura digital, permitam o registro

digital de cada voto e a identificação da urna em que foi registrado, resguardado o anonimato do eleitor.

§ 5º - Caberá à Justiça Eleitoral definir a chave de segurança e a identificação da urna eletrônica de que trata o § 4º.

§ 6º - Ao final da eleição, a urna eletrônica procederá à assinatura digital do arquivo de votos, com aplicação do registro de horário e do arquivo do boletim de urna, de maneira a impedir a substituição de votos e a alteração dos registros dos termos de início e término da votação.

§ 7º - O Tribunal Superior Eleitoral colocará à disposição dos eleitores urnas eletrônicas destinadas a treinamento. (NR) Art. 66.............................................................................................

§ 1º - Todos os programas de computador de propriedade do Tribunal Superior Eleitoral, desenvolvidos por ele ou sob sua encomenda, utilizados nas urnas eletrônicas para os processos de votação, apuração e totalização, poderão ter suas fases de especificação e de desenvolvimento acompanhadas por técnicos indicados pelos partidos políticos, Ordem dos Advogados do Brasil e Ministério Público, até 6 (seis) meses antes das eleições.

§ 2º - Uma vez concluídos os programas a que se refere o § 1º, serão eles apresentados, para análise, aos representantes credenciados dos partidos políticos e coligações, até 20 (vinte) dias antes das eleições, nas dependências do Tribunal Superior Eleitoral, na forma de programas-fonte e de programas executáveis, inclusive os sistemas aplicativo e de segurança e as bibliotecas especiais, sendo que as chaves eletrônicas privadas e senhas eletrônicas de acesso manter-se-ão no sigilo da Justiça Eleitoral. Após a apresentação e conferência, serão lacradas cópias dos programas-fonte e dos programas compilados.

§ 3º - No prazo de 5 (cinco) dias a contar da data da apresentação referida no § 2º, o partido político e a coligação poderão apresentar impugnação fundamentada à Justiça Eleitoral.

§ 4º - Havendo a necessidade de qualquer alteração nos programas, após a apresentação de que trata o § 3º, dar-se-á conhecimento do fato aos representantes dos partidos políticos e das coligações, para que sejam novamente analisados e lacrados.

Art. 2º São revogados os arts. 61-A, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, e 4º da Lei nº 10.408, de 10 de janeiro de 2002.

Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, observado o disposto no art. 16 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 4, de 1993.” VOTO seguro. Disponível em: <http://www.votoseguro.org/textos/PLazeredo.htm>. Acesso em: 15 jul. 2010.

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de 2014 segundo o Art. 5º da Lei nº 12.034/2009110. Por este motivo, os modelos

2009 e 2010 também já possuem um encaixe lateral para o Módulo Impressor

Externo, onde futuramente se encaixará a impressora que imprimirá os votos dos

eleitores.

A urna atual, usada nas eleições gerais de 2010, tem mecanismos

acoplados para a identificação da impressão digital do eleitor. A primeira fase do

projeto-piloto de implementação da identificação biométrica foi realizada durante as

Eleições Municipais de 2008 e esse novo sistema foi testado nas cidades de São

João Batista (Santa Catarina), Fátima do Sul (Mato Grosso do Sul) e Colorado

D´Oeste (Rondônia). Cerca de 100 urnas biométricas foram produzidas e testadas,

mas devido ao alto custo de aquisição dos equipamentos a nova sistemática será

adotada de forma gradativa. A segunda fase do projeto, que foi implantada em 2010,

abrangeu pouco mais de um milhão de eleitores, que tiveram seus dados

biométricos cadastrados no início daquele ano, e utilizou cerca de 3.000 urnas

biométricas.

A tecnologia, no entanto, precisa de refinamento, uma vez que ela permite

um erro chamado de “falso negativo”, quando o sistema biométrico falha em

reconhecer um eleitor legítimo. Por conta deste erro, as urnas biométricas usadas

nas eleições de 2008 e 2010 continuaram permitindo, opcionalmente, a autorização

110 Lei nº 12.034, de 29.09.2009; publicada no D.O.U. de 30.09.2009: “Art. 5º - Fica criado, a partir das eleições de 2014, inclusive, o voto impresso conferido pelo

eleitor, garantido o total sigilo do voto e observadas as seguintes regras: § 1º - A máquina de votar exibirá para o eleitor, primeiramente, as telas referentes às eleições

proporcionais; em seguida, as referentes às eleições majoritárias; finalmente, o voto completo para conferência visual do eleitor e confirmação final do voto.

§ 2º - Após a confirmação final do voto pelo eleitor, a urna eletrônica imprimirá um número único de identificação do voto associado à sua própria assinatura digital.

§ 3º - O voto deverá ser depositado de forma automática, sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado.

§ 4º - Após o fim da votação, a Justiça Eleitoral realizará, em audiência pública, auditoria independente do software mediante o sorteio de 2% (dois por cento) das urnas eletrônicas de cada Zona Eleitoral, respeitado o limite mínimo de 3 (três) máquinas por município, que deverão ter seus votos em papel contados e comparados com os resultados apresentados pelo respectivo boletim de urna.

§ 5º - É permitido o uso de identificação do eleitor por sua biometria ou pela digitação do seu nome ou número de eleitor, desde que a máquina de identificar não tenha nenhuma conexão com a urna eletrônica.” Disponível em: <http://www.tse.gov.br/hotSites/codigo_eleitoral/lei12034.html>. Acesso em: 8 abr. 2011.

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para o eleitor votar por meio de uma senha digitada pelo mesário. Abordarei com

mais rigor a urna biométrica no capítulo 4 desta tese.

3.2.1 O processo de funcionamento da urna eletrônica

O sistema de eleição brasileiro se baseia em três características

fundamentais: votação, através da qual os membros da população reconhecidos

como eleitores pela lei eleitoral podem expressar, anonimamente, seu candidato a

um determinado cargo político; a apuração, que permite a contabilização dos votos

emitidos por esses membros da população; e a fiscalização, que visa garantir a

idoneidade do processo, de modo a assegurar que o resultado da apuração dos

votos seja realmente a expressão da vontade da maioria da população.

Um sistema eletrônico de eleição deveria ser tal que assegurasse essas

três características fundamentais, de preferência melhorando cada um de seus

aspectos e sem nunca ser menos seguro e confiável do que um sistema que usa

cédulas de papel: os investimentos para substituir a tecnologia de votar usada pelos

brasileiros consumiram enormes recursos por parte do Estado e, portanto, a

vantagem competitiva que este sistema tem de ter para com o seu predecessor

precisa ser justificada por uma significativa agilidade – vantagem imbatível do novo

sistema, e este é um fato incontestável – e segurança frente às cédulas de papel.

Para tanto, é preciso que se definam métricas que permitam realizar a

avaliação do sistema como um todo, incluindo seus componentes físicos e lógicos,

ou seja, tanto seu hardware quanto seu software e os protocolos envolvidos na

comunicação entre as partes do sistema. Há que se ressaltar também que deve ser

possível avaliar o sistema, tanto sob a perspectiva de segurança contra acidentes

não intencionais quanto contra as fraudes eleitorais.

Para a análise de um sistema de votação, alguns critérios precisam ser

definidos para que seja criado um parâmetro de avaliação. Alguns já foram criados,

mas me aterei aos critérios sugeridos por Santana como os seis requisitos mínimos

para um protocolo de eleição, a saber:

− somente pessoas autorizadas a votar podem efetivamente votar;

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− ninguém deve poder votar mais de uma vez;

− ninguém deve ser capaz de determinar em quem uma outra pessoa votou;

− ninguém deve poder duplicar votos;

− ninguém deve ser capaz de modificar um voto sem ser descoberto;

− todo eleitor deve poder ter certeza de que seu voto foi levado em

consideração.111

Esses requisitos são expandidos e especificados com um pouco mais de

rigor, passando de seis para onze critérios de avaliação: integridade do sistema,

integridade e confiabilidade dos dados, anonimato do eleitor, autenticação do

operador, a possibilidade de auditoria do sistema, transparência do sistema,

disponibilidade do sistema, confiabilidade do sistema, facilidade de uso,

documentação e segurança.

Em miúdos, seja qual for o critério de avaliação de um sistema de voto

eletrônico, os requisitos que mais importarão para esta avaliação são os que avaliam

a segurança e a confiabilidade do sistema. O uso de computadores pode trazer

ganhos na velocidade e na eficiência do processo de eleição, e isso é inegável

(trata-se, inclusive, do argumento-protagonista e que está na linha de frente das

razões de Estado para justificar o uso das urnas eletrônicas), mas a grande

preocupação deveria ser a tentativa de se garantir o anonimato do voto, a

integridade da apuração e a existência e eficiência da fiscalização. É fundamental

que o sistema seja confiável, robusto e seguro contra ataques, tanto externos quanto

internos.

Conceber um sistema eletrônico de eleição com um protocolo que atenda

satisfatoriamente a todos os requisitos de segurança é uma tarefa complexa.

Portanto, é importante que o desenvolvimento de um sistema destes demonstre

preocupações com aspectos ligados à segurança computacional desde sua

concepção, obedecendo rigorosamente a um processo de implantação de

segurança, por exemplo, onde há uma definição da política de segurança de dados,

a implementação dos serviços de segurança computacional e o controle e a 111 SANTANA, Marcelo Nardelli Pinto. Sobre a urna eletrônica. 2002. Monografia do curso de

Segurança de Dados 1/02. Departamento de Ciência da Computação – Universidade de Brasília, Brasília, 2002. p. 18.

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auditoria desses serviços. A segurança não é uma característica que deve ser

pensada como um adendo a um projeto deste tipo: ela precisa estar na base do

desenvolvimento do projeto, deve estar imbuída na filosofia de desenvolvimento de

cada uma das linhas de código do software que controla a urna eletrônica.

Antes de analisar como este processo deve se desenvolver, cabe voltar

para o fluxograma de dados de uma votação que tem por uso as cédulas de papel.

Isso porque qualquer tecnologia pode ser reduzida a uma máquina, que varia em

complexidade e que tem por princípios a entrada de dados e saída de resultados,

que muitas vezes se retroalimentam e nas quais qualquer desenvolvimento de

sistemas se baseia: não importa se com o uso de microcomputadores ou cédulas de

papel, as tecnologias podem ser mais ou menos complexas, mas podem ser

enquadradas e estudadas da mesma maneira e segundo os mesmos critérios e

princípios.

De volta à análise da votação através do uso de cédulas de papel, a partir

do momento que o eleitor se apresenta para votar junto do mesário, o processo de

uma eleição pode ser dividido nas seguintes etapas: identificação do eleitor;

votação, secreta por lei; apuração de cada uma das urnas e a totalização dos votos.

Cada uma destas etapas tem seus próprios protocolos de segurança e cada qual

dos processos permite um espaço para a perpetração de uma fraude: a figura 12

apresenta tais etapas e o fluxograma dos dados numa eleição tradicional,

evidenciando os pontos de controle do processo, isto é, os pontos onde agentes

independentes e externos ao TSE têm acesso a dados para auditarem cada uma

delas.

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Figura 12 – Diagrama de processo do funcionamento de uma votação por cédulas

Fonte: BRUNAZO FILHO, 2006, p. 21.

Na etapa de identificação do eleitor existem fraudes como a falsificação

de documentos e de registros eleitorais, fraudes estas que já foram abordadas nos

capítulos anteriores e que são comuns ao processo de votação por cédula, com um

agravante: no processo de eleição por cédulas físicas, como o eleitor recebe a

cédula vazia, pode verificar que o conteúdo do seu voto não poderá ser violado. Isso

quer dizer que candidatos existentes não podem ser adicionados ou subtraídos à

cédula e ela representa fielmente os candidatos habilitados para participar do pleito.

Desta maneira, tal eleitor sabe que não existem candidatos “escondidos” na cédula,

o que não é verdade no caso da votação por urna eletrônica. Em teoria, um

candidato que esteja habilitado a uma dada eleição pode desaparecer do rol de

escolhas disponíveis na urna. A possibilidade não é absurda ou conspiratória: tal

erro já foi reportado, como será abordado nas páginas a seguir.

Nesta etapa de votação alguns métodos de fraudes eram possíveis, tais

como o voto de cabresto, que, como já abordado, apenas se atualizou

tecnologicamente ao voto eletrônico, a indução do voto por parte dos mesários ou a

votação destes por eleitores que faltaram ao pleito. O controle externo deste

processo era exercido pelos fiscais sobre os mesários e pelo próprio eleitor ao

preencher a cédula, já que constatava que o documento público que passava a

informação desta para a próxima etapa (a cédula preenchida) assinalava o seu

candidato e não continha a sua identificação. Era, portanto, facilmente identificável e

este processo ganhou uma camada de complexidade com o advento da urna

eletrônica.

Já na etapa chamada de apuração deve-se proceder a soma dos votos de

cada urna para preencher os Boletins de Urnas (BU), que são os documentos

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públicos de passagem de informação para a etapa seguinte. Também aqui vários

tipos de fraude eram possíveis quando era utilizada a tecnologia da cédula física,

tais como a troca de votos dentro da urna, o preenchimento ou adulteração de votos

pelos escrutinadores ou a adulteração dos BUs antes da sua publicação.

A área hachurada da figura 12 evidencia a região mais sujeita a fraudes

no voto tradicional. As defesas do eleitor contra estas possíveis fraudes eram

sempre aquelas regulamentadas pela lei eleitoral: o direito de fiscalizar a votação e a

apuração e o direito de se pedir a recontagem de votos quando ocorressem dúvidas

fundamentadas sobre o resultado de uma determinada eleição.

Na etapa da totalização dos votos o TSE deve somar os votos indicados

nos Boletins de Urna e publicar o resultado da eleição. Foi exatamente esta a

primeira etapa a ser informatizada no Brasil, ainda no sistema do voto tradicional.

Esta etapa conta ainda com um método de controle bastante eficaz contra a fraude

na totalização: por força de lei, os partidos políticos recebem uma cópia impressa

dos BUs e podem, se quiserem, fazer a conferência da totalização por conta própria,

somando o conteúdos de todas as BUs e comparando com o resultado publicado

pelo TSE.

A urna eletrônica brasileira possui sistema de software cujas camadas

são as seguintes: software básico de funcionamento da urna (BIOS, sistema

operacional e gerenciadores de dispositivos) e as camadas de aplicativos, incluindo

o aplicativo de votação (códigos-fonte, bibliotecas-padrão, bibliotecas especiais,

bases de dados). Esses softwares ficariam armazenados em flashcards112 e, por

meio destes, seriam introduzidos nas urnas uns poucos dias antes da eleição,

alguns deles ficando armazenados em um flashcard fixo cujo acesso físico só seria

possível com o desmonte da urna.

Algumas das responsabilidades dos softwares usados nas urnas

eletrônicas podem ser listadas: o sistema operacional deve, entre outras coisas, 112 Um cartão de memória ou cartão de memória flash é um dispositivo eletrônico de memória flash

de armazenamento usados para armazenar informações digitais. Eles são comumente usados em muitos dispositivos eletrônicos, incluindo câmeras digitais, telefones celulares, laptops, MP3 players e consoles de videogame. Eles são pequenos, regraváveis e capazes de reter dados sem a perda dos mesmos por falta de alimentação de energia elétrica. Memory card. Wipipédia. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Memory_card>. Acesso em: 7 jan.. 2011.

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intermediar a comunicação entre o teclado e o aplicativo, e entre este e a tela da

urna e os dispositivos de gravação e leitura; o aplicativo de votação deve coletar e

tabular os votos vindos do teclado, apresentá-los na tela da urna e gerar um boletim

de urna ao final do dia de votação, para impressão e gravação em dispositivos que

serão depois transportados para os locais de apuração; e a biblioteca criptográfica

deve ser capaz de verificar a origem legítima do software a ser carregado na urna e

encriptar113 os arquivos a serem gravados em dispositivo ao final da execução do

software aplicativo.

Para garantir a confiabilidade e a segurança do software da urna, o TSE

optou por adotar uma prática conhecida como Política de Desenvolvimento

Estanque (PDE). A principal premissa desta prática é a de que, fazendo com que

cada parte do sistema tenha conhecimento apenas de seu próprio funcionamento e

desconheça o funcionamento das outras partes, a segurança interna do sistema

estaria garantia. Segundo essa política, uma vez que um determinado componente

do sistema não possui detalhes do funcionamento de outros componentes, não

haveria como este componente corromper o sistema como um todo e isso faria com

que os riscos fossem controlados.

Outra prática adotada pelo TSE na tentativa de conferir à urna eletrônica

a confiabilidade e a segurança necessárias é a adoção da prática da segurança por

obscurantismo. Sob a ótica desta prática, a segurança do sistema eletrônico de

eleição seria inversamente proporcional à quantidade de pessoas que tivessem

acesso a informações sobre o funcionamento do sistema, ou seja, para que o

sistema seja seguro, deve-se torná-lo secreto para o maior número de pessoas

possível.

Com base na premissa do desenvolvimento estanque e no princípio da

segurança por obscurantismo, o TSE determina que apenas o código-fonte do

aplicativo de votação fique disponível para auditoria, pois o conhecimento de

113 Em criptografia, encriptar é o processo de transformar informação em algo ilegível para todos,

exceto aos que possuem conhecimentos específicos, dispositivo geralmente conhecido por chave. O resultado do processo é a informação criptografada (em criptografia, conhecido como texto cifrado). Em suma, criptografar é transformar uma informação em legível apenas a pessoas autorizadas em ter acesso a ela. ENCRYPTON. Wipipédia. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Encryption>. Acesso em: 8 jan. 2011.

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informações sobre as outras camadas poderia comprometer a segurança da urna.

Ou seja, apenas o resultado final do desenvolvimento, e não ele em si, é objeto de

auditoria e verificação de segurança do sistema.

Além disso, a adoção da PDE inviabilizaria a ocorrência de fraudes

nessas outras camadas. A não divulgação dos códigos-fonte do sistema também se

justificaria, na visão do TSE, pelo fato de que sistema operacional e bibliotecas de

criptografia estariam protegidos por leis de direito autoral, uma vez que não são de

propriedade intelectual do Tribunal.

A apresentação do software que controla a urna para auditoria por parte

dos partidos 60 dias antes da eleição e o sorteio de urnas a sofrerem auditoria –

normalmente 3% das urnas, com o resultado do sorteio divulgado na véspera das

eleições, além de uma votação paralela, o que permitiria a recontagem dos votos,

são algumas das outras medidas anunciadas pelo TSE na tentativa de garantir

segurança à votação eletrônica.

Uma vez apresentadas as medidas que o TSE diz tomar para garantir a

segurança e a confiabilidade da urna, deve-se verificar se as críticas feitas contra o

sistema são realmente válidas ou não.

Uma questão chave para a averiguação da segurança do

desenvolvimento das urnas eletrônicas é a sua política de desenvolvimento

estanque, ou PDE, como vimos anteriormente. Essa política assume que, se os

componentes de um sistema não conhecerem o funcionamento uns dos outros,

então não será possível a ocorrência de fraudes originárias no sistema. Parte-se do

pressuposto, portanto, que se a parte do sistema de votação for fraudada, o todo

não será comprometido. Trata-se, como será visto a seguir, de um pressuposto

falso.

Isso porque, para início de análise, não existe uma garantia completa de

que o TSE desenvolve mesmo os programas que rodam nas urnas através da PDE.

Como o órgão apenas permite uma auditoria externa no código-fonte final do

programa, o que se pode ver ali é tão e somente o resultado da política, não a

política em si. E, vale a pena acrescentar, a intenção de se programar com

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segurança um software através do desenvolvimento estanque não necessariamente

torna-o seguro. No máximo, bem-intencionado, mas nem essa boa intenção pode

ser verificada ao se auditar tão e somente o resultado final de todo o processo.

O sistema de desenvolvimento do software que roda dentro de uma urna

eletrônica, como se pode imaginar, é de um nível de complexidade assombroso.

Estima-se que mais de 1.500 pessoas são necessárias na programação de

softwares de complexidade inferior ao estudado neste caso. Como garantir a

integridade moral de uma equipe tão grande? Mais, como coordenar a construção

de tamanha complexidade sem que as partes saibam o que a outra está a

desenvolver, ou mesmo como funciona a interação das partes que formam o todo

em questão?

As pessoas que são responsáveis pelo desenvolvimento do software de

nossa urna eletrônica grande parte das vezes trabalham na iniciativa privada, uma

vez que boa parte dos softwares são comprados através de licitação pelo TSE.

Como se pode garantir, portanto, que não haverá vazamento de informações através

de membros das equipes, que são colegas próximos de trabalho destes

desenvolvedores?

Partindo-se do pressuposto que as pessoas envolvidas no

desenvolvimento destas urnas não possuem seguros especiais, estabilidade plena

de emprego ou qualquer outra forma de proteção contra pressões econômicas,

conclui-se que a efetividade da PDE acaba por reduzir-se a uma questão de

confiança. Se as pessoas envolvidas fossem incorruptíveis, a PDE funcionaria, caso

contrário a PDE deixa de ser a garantia de confiabilidade que o TSE alega.

A moral da história é simples. Não existe tal coisa como um código de

computador confiável, como não existe uma pintura ou um filme ou uma chave de

fenda confiáveis: esses, assim como os códigos, são a extensão de uma expressão

humana, e suas intenções são tão comprometidas quanto às daqueles que a

produziram. Códigos de computador são tão confiáveis e seguros quanto quem os

escreveu. E dada a complexidade da tarefa que é escrever um programa de

computador, principalmente quando existe tanto em jogo quanto a eleição de um

país tão interessante quanto o nosso, é de se pressupor que uma parte da imensa

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cadeia de eventos necessários para se atingir a meta final estará comprometida. E,

como veremos a seguir, comprometer a parte é comprometer o todo.

Ainda que o TSE submeta à apreciação o resultado final de tal

desenvolvimento dois meses antes de uma eleição, uma quantidade de tempo risível

para se analisar um programa cujo código é composto por milhões de linhas de

comandos que são inter-relacionadas entre si, nenhum montante de verificação e

escrutínio no nível do código-fonte iria protegê-lo do uso de código não confiável: as

possibilidades de se comprometer um software são muitas, múltiplas também as

maneiras de atacá-lo por dentro, e bastaria a carga de um software tipo um

assembler114, um carregador ou mesmo um microcódigo em hardware em alguma

parte do processo para comprometer o programa como um todo. Conforme o nível

do programa desce, estes vícios de programação se tornam mais difíceis de se

detectar. Um microcódigo com más intenções e instalado nas raízes profundas de

um código de software será virtualmente impossível de ser detectado. Propor a

auditoria do sistema sessenta dias antes da eleição não valerá de nada se não for

possível se certificar de que a versão inserida na urna é de fato a mesma que

passou pela auditoria. Pior ainda se essa “auditoria” tiver sido apenas parcial, como

é atualmente.

O fato é que apenas a presunção de que o desenvolvimento do software

que comanda as urnas eletrônicas através da PDE possa servir de garantia para a

segurança de uma eleição que usa urnas eletrônicas é, em si, um grande engano.

Mais adiante exporei algumas das maneiras, afora as tradicionais, que podem ser

usadas de expediente para a fraude de uma determinada eleição que usa urnas

eletrônicas.

A adoção de uma PDE no desenvolvimento do software da urna

eletrônica poderia eventualmente servir para reduzir os riscos de fraude, mas

apenas e somente apenas se cada uma das partes fosse da mais absoluta

confiabilidade, uma vez que cada parte do sistema só sabe realizar a sua própria 114 Um assembler é um programa que tira as instruções básicas do computador e converte-as em um

padrão de bits que o processador do computador pode usar para realizar suas operações básicas. Algumas pessoas caracterizam os assemblers como instruções e outras como uma linguagem de montagem, ou assembly. SearchDataAssembler. Disponível em: <http://searchdatacenter.techtarget.com/definition/assembler>. Acesso em: 17 out. 2011.

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função. Ora, sem uma instância de controle única para todo o desenvolvimento

também é mais difícil garantir que uma das partes que compõe o todo não esteja

comprometida, e como foi discutido mais atrás, comprometer a parte é comprometer

o todo. Sem uma auditoria muito eficiente a PDE não pode servir como garantia de

segurança. Além disso, existem críticas até mesmo à adequação da PDE, uma vez

que ela pode servir para defender interesses de grandes corporações, cujo único

compromisso é com o lucro.

Outro ponto importante a ser criticado é a prática do obscurantismo por

parte do TSE. Apesar de fazer sentido esconder os detalhes de confecção do

código-fonte dos que não possuem conhecimento sobre segurança computacional,

já que aos que não fazem ideia de como manipular um código de software a fraude

no tempo das urnas eletrônicas é impossível e, em teoria, deixaria a mesma mais

segura, aplicar essa ideia à urna é um contrassenso para qualquer um que tenha um

mínimo de conhecimento sobre segurança computacional. Em uma situação em que

só existam dois agentes e ambos confiem um no outro, pode-se até argumentar a

favor de um certo obscurantismo, mas esse não é o caso de uma eleição. Há vários

agentes participando ativamente do processo: o TSE, os eleitores, os fabricantes do

software da urna, além de cada um dos partidos envolvidos. Cada um desses

participantes olha o sistema sob o seu ponto de vista, além de que não existe a

confiança presumida entre os participantes, fazendo com que uma proteção contra

um determinado risco para um dos participantes possa ser um risco para outro.

No caso do obscurantismo, privilegia-se o referencial do TSE em

detrimento do seu usuário, que passa a ser considerado como uma espécie de

inimigo do Estado. Portanto, deveria ser adotado o modelo de transparência

absoluta, em que nenhuma das partes envolvidas no processo poderia fraudar uma

das etapas do mesmo sem que as outras partes se dessem conta disso. Dessa

maneira, e do ponto de vista da confecção do software sob o princípio da

inviolabilidade e da segurança, a urna eletrônica deveria ser guiada pelos mesmos

motivos que guiaram a busca por algoritmos criptográficos assimétricos e protocolos

de assinatura e certificação digital: todos os interessados participam ativamente do

processo de confecção dos códigos e não existe uma instância superior controladora

do código.

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Além da auditoria dois meses antes da eleição, o TSE, mais uma vez

numa tentativa de criar uma falsa aura de segurança em torno da urna, diz realizar

um sorteio na véspera das eleições de 3% das urnas que seriam auditadas após o

processo de votação. Tal sorteio possibilitaria fazer com que 3% de urnas se

comportassem da maneira correta enquanto que os outros 97% de urnas poderiam

realizar fraudes livremente durante todo o processo eleitoral. E, quanto à votação

paralela, uma vez que o software está acima de uma auditoria completa, alguém que

deseja detectar uma fraude interna deveria, dentro de 72 horas, recolher uma cópia

de todos os boletins de urna, somá-los e convencer a todos de que o erro está em

uma máquina considerada infalível e não em uma contagem manual apressada.

Em uma tentativa de eliminar todos os focos de fraude identificados o

TSE decidiu juntar as três primeiras etapas de uma eleição – a identificação, a

votação e a apuração – num único local e equipamento, contrariando o que os

estudos sobre as práticas seguras deste sistema preconizam, como veremos

adiante. A figura 13 abaixo apresenta o fluxograma de dados e controles da sua

implementação.

Figura 13 – Diagrama do fluxograma da eleição implementada em 1988

Fonte: BRUNAZO FILHO, 2006, p. 23.

A urna eletrônica brasileira agrupa as três primeiras etapas de uma

eleição num só processo, eliminando os processos intermediários entre elas, uma

vez que estes processos eram entendidos como potenciais oportunidades de

fraudes e violação do sistema. Como resultado da eliminação destes documentos,

foram eliminados também os controles que se faziam através dos mesmos.

Com isso, existe um teórico ganho de agilidade em todo o processo de

votação, mas com o custo de algumas perdas. A primeira delas vem do eleitor, que

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perdeu a garantia de que seu voto será identificado e contabilizado para candidato

escolhido por ele. O eleitor passou a operar, com essa imaterialização do voto, em

um regime de confiança absoluta e plena no sistema proposto pelo TSE.

Outra perda significativa vem da parte dos partidos, que não têm como

conferir a apuração e não podem mais pedir a recontagem dos votos. Com isso,

mais uma parcela de confiança no sistema é dada por parte dos partidos e

candidatos que concorrem a uma dada eleição.

Ainda que de alguma maneira, e segundo o discurso oficial, a eleição

através de uma urna eletrônica tenha se transformado em mais segura – esta

impressão de segurança é apenas artificial, uma vez não que tal fraude seja

necessariamente mais rara, mas a mesma, para ser perpetrada, transformou-se em

algo tecnicamente mais refinado e, portanto, mais incomum por conta dessa

especialização necessária para a sua perpetração – na etapa de identificação do

eleitor, as mesmas fraudes que existiam no voto tradicional, como a falsificação de

documentos e de registros eleitorais, continuaram existindo com o voto eletrônico,

mas a elas foi acrescida a possibilidade de violação sistemática do voto por um

programa adulterado, variável esta que não era contabilizada no sistema anterior de

votação.

Portanto, e o assunto será abordado com mais profundidade mais

adiante, a fraude não deixou de existir, mas sofreu uma mudança de escala com o

voto eletrônico, e tecnicamente ficou mais refinada, o que pode passar a impressão

de que esta desapareceu.

O processo de votação pela urna eletrônica impediu, em um primeiro

momento, o voto de cabresto, mas este tipo de fraude ressurgiu recentemente, como

abordado anteriormente, quando os eleitores são obrigados a tirar fotos de seu voto

na urna e apresentar esta foto como prova de voto no candidato daqueles que estão

exercendo a pressão. Ainda assim, esse é um fato relativamente recente e restrito a

comunidades com grande densidade demográfica e sob influência do crime

organizado.

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Além da urna eletrônica não ter acabado com a incidência do voto de

cabresto, ela ainda manteve a possibilidade de indução do voto e de mesários

votarem por eleitores ausentes. Já na etapa de apuração, foram eliminadas as

fraudes de troca e adulteração de votos e se acelerou consideravelmente o

processo, mas a um custo altíssimo: foi nesta etapa que se introduziram as três

maiores falhas de segurança do voto com a urna eletrônica.

A primeira delas: pela ausência de uma contraprova impressa, o eleitor

não tem como conferir se seu voto foi apurado corretamente ou se foi fraudado. Não

existe maneira, uma vez que o voto para um dado candidato foi introduzido, de

saber que este candidato realmente recebeu o voto que expressava a vontade do

eleitor. Mais além, não existe maneira de se auditar uma apuração, pela inexistência

de um vínculo material entre intenção de eleitor e o resultado da apuração. É

justamente esta imaterialização do voto que transformou o processo de votar no

Brasil em um ato de fé do lado do eleitor e dos partidos – a tal da confiança, que já

abordei em outros momentos neste escrito e que é de suma importância para a

sociedade de controle – e a enorme máquina de propaganda que precisa ser posta

em marcha por parte do Estado para que este eleitorado confie na segurança do

sistema apresentado.

Um outro problema identificado, que vai mais além da fraude dos votos e

que tem a ver com o sigilo dos mesmos é a inexistência de uma instância de

identificação do eleitor independente do equipamento onde ele imputará seu voto.

No sistema atual, em que voto e identificação acontecem na mesma máquina, torna-

se praticamente impossível garantir que a violação do voto nunca irá ocorrer, seja

por meio de invasores externos ou por agentes internos desonestos que programem

a violação.

O problema da ausência de um comprovante impresso do voto também é

grave. Esta ausência elimina a possibilidade de auditoria da apuração, como já visto.

Algumas soluções já foram propostas, tais como validar e certificar o programa

utilizado pela urna, gravar o voto “virtual” com a assinatura eletrônica do eleitor,

publicar o voto junto com uma senha de conhecimento apenas do eleitor etc. No

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entanto, estas sugestões acabam por falhar em garantir a honestidade da apuração

ou falham em garantir a inviolabilidade do voto.

3.2.2 Como fraudar a urna eletrônica brasileira

Irei analisar aqui as possibilidades de se introduzir códigos executáveis

(softwares capazes de alterar o comportamento desejado de uma determinada

máquina) dentro de um sistema, de forma que tal introdução consiga escapar da

auditoria superficial permitida pelo TSE aos partidos políticos115.

Como algumas das características importantes que estes programas

maliciosos e estas metodologias teriam de compartilhar entre si estariam a

capacidade de se escamotearem antes de entrar em ação – ou seja, não serem

detectáveis em uma prévia auditoria – e serem autodestrutíveis, não deixando desta

maneira rastros após a sua atuação.

A instalação destes programas maliciosos através de códigos-fonte não

auditados é o caso mais simples de fraude na urna eletrônica: consiste em introduzir

o software malicioso no código-fonte de um programa que não será apresentado

para auditoria, como o sistema operacional e as bibliotecas especiais. Como o TSE

apresenta para auditoria apenas o programa final que opera o sistema de votação

dentro da urna eletrônica, este seria o lugar menos óbvio e arriscado onde poderia

se esconder um programa malicioso.

Aqui a política de desenvolvimento estanque implementada pelo TSE no

desenvolvimento do software da urna eletrônica seria pouco eficaz: este é um

procedimento fácil de ser implementado por um membro da equipe de

desenvolvedores dentro de sua própria instância de desenvolvimento.

A possibilidade de uma fiscalização externa detectar o código fraudulento

é praticamente impossível a não ser que seus efeitos sejam bastante visíveis (e não

se confundam com um erro de programação). Quanto mais baixo for o nível da 115 Boa parte desta seção foi escrita tendo por suporte o trabalho do engenheiro Almicar Brunazo

Filho. BRUNAZO FILHO, Amilcar. Critérios para avaliação da segurança do voto eletrônico. Workshop em Segurança de Sistemas Computacionais. 6 mar. 2001. Disponível em: <http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/e-urna.htm>. Acesso em: 21 ago. 2011.

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camada de programação, mais difícil será a análise dos programas, principalmente

se for implementada na camada do sistema operacional. O sistema operacional, por

exemplo, é um programa de baixo nível muito difícil de ser auditado apenas pela

bateria de testes proposta pelo TSE.

Uma outra maneira de se fraudar uma eleição que tenha por uso as urnas

eletrônicas consistiria em introduzir rotinas espúrias no código-fonte de um programa

que foi anteriormente analisado pelos auditores externos. Como dito, a validação e a

certificação são etapas da avaliação de sistemas informatizados. Se a certificação,

que consiste em verificar se os programas carregados nas urnas são realmente

provenientes das fontes analisadas, não for efetuada, fica muito fácil para os

membros da equipe que faz o fechamento dos aplicativos adulterá-los antes da

compilação final.

Sem se proceder a uma certificação rigorosa é praticamente impossível

aos auditores detectarem a adulteração e garantirem a integridade do programa

original. Aqui cabe uma ressalva: deve-se lembrar que o TSE não permite que os

fiscais dos partidos façam qualquer verificação, por meio de assinaturas digitais, por

exemplo, para determinar se os programas carregados nas urnas são os mesmos

que lhes foram mostrados para análise. Ressalte-se, também, que técnicos do TSE

reconheceram publicamente que os programas usados nas eleições de 2000 foram

efetivamente modificados depois de apresentados aos fiscais dos partidos.

Uma outra maneira de se fraudar a urna eletrônica seria através das

bibliotecas-padrão do compilador da urna, que consistiria em rotinas fraudulentas

através de alteração em uma biblioteca padrão do compilador. Pode-se utilizar

várias técnicas para se alterar uma biblioteca. Uma bastante simples seria utilizar a

biblioteca original para gerar uma nova biblioteca com o código novo “embutindo” o

antigo, por exemplo. Trata-se de procedimento fácil de ser implementado por

pessoas que tiverem acesso físico ou remoto, mesmo que temporário, aos

ambientes onde se geram as versões finais das várias camadas de programas que

compõem o sistema.

A fiscalização externa só conseguiria detectar este tipo de ataque se

fizesse uma auditoria minuciosa nos ambientes que geram as versões finais dos

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programas e esta auditoria teria de acompanhar as compilações das várias camadas

de programas. Ambientes de compilação de linguagens que utilizam bibliotecas pré-

compiladas, como o Delphy, são particularmente difíceis de serem auditadas, pois o

atacante poderia inserir o código espúrio, compilar a biblioteca e depois apagar

todos os vestígios do seu ataque.

Mais uma técnica da qual se poderia lançar mão para fraudar uma eleição

seria a introdução do software externo através do código já compilado da urna: a

introdução de rotinas espúrias em programas já compilados recorreriam às técnicas

de se “envelopar” parte do sistema operacional, do BIOS ou dos aplicativos. São

técnicas utilizadas por vírus de computador e, de forma genérica, dependem de se

ter acesso físico a um ou alguns programas ou meios que contenham os arquivos

executáveis do sistema.

O momento de introdução do código fraudulento afetaria diretamente o

número de urnas comprometidas. Como exemplo, se esta introdução ocorresse logo

após a compilação dos dados, todas as urnas do país seriam afetadas; se a mesma

introdução se desse em um TRE, todas as urnas de um estado estariam

comprometidas, se no flash de carga de uma zona, as urnas desta zona ou em um

único equipamento armazenado para as eleições.

Para que este tipo de ataque ocorra, é necessário conhecimento de

assembler do processador utilizado. Deve-se introduzir um desvio na inicialização do

sistema e fazer acertos em rotinas de conferências internas (como assinaturas

digitais). Durante a inicialização do sistema, este desvio carrega a rotina espúria que

por sua vez introduz outros desvios no sistema operacional, como no acesso a

disco, no acesso ao teclado e no acesso ao monitor.

Estes desvios podem ser nos vetores de interrupções do Sistema

Operacional, da BIOS ou no próprio processador (utilizando seus recursos de debug

para gerar interrupção quando o programa principal acessar uma determinada área

de memória).

Por ser uma rotina acrescentada ao código compilado depois de ele ter

sido “assinado” para a verificação de integridade, a primeira prioridade da rotina

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espúria seria se esconder. Todos os desvios introduzidos filtrarão os acessos de

modo a simular a não existência de si própria, num comportamento similar a alguns

vírus de computador do tipo stealth. Por exemplo, se um programa de conferência

de assinatura digital ler do disco áreas alteradas pela rotina espúria, ele filtrará estas

leituras para enganar a conferência de assinatura.

A segunda prioridade seria se autoeliminar após as eleições. Basta, para

isto, retirar o desvio na inicialização e recompor as áreas alteradas na memória fixa.

Este tipo de ataque é o mais sofisticado e apresenta as maiores dificuldades de

implementação, mas quanto mais informações privilegiadas o atacante tiver, mais

fácil será seu trabalho. Por exemplo, membros da equipe responsável pelo

desenvolvimento das rotinas de conferência de assinatura digital possuem

informações privilegiadas que facilitam a tarefa de fazer o código espúrio se

“esconder”. Mas esta forma de introdução de rotinas fraudulentas pode, também,

ser feita por pessoas completamente de fora das equipes de desenvolvimento,

desde que tenham acesso a uma cópia dos executáveis para proceder a engenharia

reversa (desassembler e debug) de algumas rotinas chaves.

A maior ou menor facilidade para o desenvolvimento de rotinas

fraudulentas depende diretamente da quantidade de informação sobre o sistema-

alvo de que o atacante tem conhecimento. É justamente para limitar a quantidade de

informação disponível para cada pessoa que se adota a PDE. Mas ainda assim se

pode desenvolver códigos capazes de interferir no resultado da apuração mesmo

contando-se apenas com informações parciais e incompletas do sistema.

Inicialmente considere-se que, apesar da PDE, existem várias

informações a que qualquer potencial atacante do sistema tem acesso, como, por

exemplo, a interface do programa de votação com o eleitor, que é bastante

veiculada pela imprensa e em treinamento patrocinado pelos diversos tribunais

eleitorais; as interfaces do programa de votação com o mesário, que estão

disponíveis nos manuais de treinamento dos mesários que trabalharão nas eleições;

o número e nome dos candidatos, que são divulgados com bastante antecedência;

as informações técnicas que constam nos editais de concorrências e as explicações

dadas pelos técnicos do TSE em audiências públicas.

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Ademais de ataques vindos de dentro do desenvolvimento do software da

urna eletrônica, é possível programar fraudes que alterem o resultado da apuração

dos votos. Como a certificação dos programas das urnas não é permitida pelo TSE

aos auditores externos, basta se criar algoritmos de desviem sistematicamente os

votos, já que todos os votos passarão por esta camada.

Alegar desconhecimento da base de dados para dificultar a geração de

um algoritmo malicioso não procede, pois os números e nomes dos candidatos são

divulgados meses antes de uma eleição e os números dos partidos para cargos

majoritários se mantêm de uma eleição para outra. O código fraudulento poderia

atuar antes dos dados acumulados serem remetidos para o banco de dados, por

exemplo, ao final da votação de cada eleitor, a rotina fraudulenta trocaria alguns

votos de certos candidatos por votos nulos ou vice-versa.

Uma outra camada frágil do sistema é a camada das bibliotecas, onde

com algum conhecimento da estrutura de dados seria possível alterar o resultado de

uma eleição. Embora o aplicativo de votação não contenha nenhuma chamada

explícita para uma rotina maliciosa que tenha sido implantada numa biblioteca

externa, esta seria chamada quando se usam algumas das funções-padrão da

linguagem ou funções específicas da biblioteca adulterada e passa a ficar residente

na memória volátil, passando a controlar eventos determinados como o horário, a

digitação de teclas e acessos ao disco.

A principal diferença com o caso anterior é que naquele a própria

chamada explícita da rotina determinava que era o momento de se executar o

algoritmo fraudulento. Neste caso será necessário um outro algoritmo para se

determinar o momento certo de se chamar a rotina de adulteração de votos, pois a

função padrão poderá ser chamada em várias situações que não seja o momento

certo de alterar o resultado. Por exemplo, uma rotina maliciosa feita com

conhecimento da estrutura dos dados pode monitorar o horário para, às 16:59 h,

trocar os totais acumulados dos candidatos e dos votos nulos e brancos antes da

emissão do Boletim de Urna.

Uma outra camada suscetível a ataques é o software básico da urna

(BIOS, Sistema Operacional e Device Drivers) que, como não é apresentada para

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análise do seu código-fonte, nela se pode introduzir códigos que desviem votos

mesmo sem se ter conhecimentos adicionais do sistema além dos disponíveis ao

público. No primeiro passo, a rotina fraudulenta implantaria desvios e passaria a

controlar todo acesso ao teclado e todo acesso à memória de vídeo sempre que

estes dados circulassem entre o software aplicativo e o software básico, para em

seguida passar a montar um banco de dados com os números dos candidatos e

respectivas telas. Quando o eleitor confirmar seu voto, salvar-se-iam os números

digitados no teclado (equivalente ao número do candidato) e o respectivo conteúdo

da tela com a foto do candidato escolhido. Este procedimento repetir-se-ia para

vários candidatos, criando-se desta maneira um banco de dados. Daí, para a fase de

desvio dos votos.

Quando o eleitor digitar o seu voto, interfere-se no processo enviando ao

Aplicativo de Votação o número de outro candidato e enviando ao monitor a tela

respectiva ao candidato escolhido pelo eleitor. Quando o eleitor digitar o “confirma”,

deixa-se de interferir no processo e assim o Aplicativo de Votação contaria o voto

para o candidato errado. Antes das 17h, horário de fechamento da eleição, a rotina

fraudulenta apagaria todos os seus vestígios na memória permanente, inclusive seu

banco de dados, e desfaria os desvios implantados. A apuração teria sido fraudada.

3.2.3 Casos de fraudes de eleições que se realizaram através de urnas eletrônicas

A partir de 1996, ano em que a primeira urna eletrônica ou coletor

eletrônico de voto foi usado em uma eleição no Brasil, sem a aprovação prévia dos

eleitores quanto à escolha deste método, e durante os anos seguintes, com o

consecutivo desenvolvimento da tecnologia e mudanças das empresas fabricantes

das urnas, alguns estudos foram feitos para questionar a confiabilidade das

mesmas.

O primeiro relatório de que se tem conhecimento encomendado pelo TSE à

UNICAMP em 2002 já apontava lacunas no sistema e sugeria a independência aos

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fiscais na conferência do software instalado116 além de afirmar que “não há

mecanismos simples e eficazes que permitam que representantes de algum partido,

em qualquer lugar do país, possam confirmar que os programas usados na UE

correspondem fielmente aos mesmos que foram lacrados e guardados no TSE”.

Outro relatório do mesmo ano, encomendado pelo PT a quatro professores

da COPPETEC da UFRJ, com a devida permissão do TSE, também apontou falhas

na questão da segurança das urnas eletrônicas. Entre as conclusões do estudo, ele

aponta que “foi utilizado um processo de desenvolvimento de software bastante ad-

hoc e imaturo, o que em geral conduz a produtos de qualidade imprevisível” e “não

há registros sobre os testes realizados nem sobre os índices de confiabilidade do

produto”; o mesmo trabalho afirma que não se refere a fraudes, e sim a falhas no

sistema, o que poderia levar a fraudes por consequência.117

Após consecutivos relatórios e estudos entre 2006 e 2008, todos

apontando para a falta de credibilidade e falhas de segurança da urna eletrônica, em

2009 o TSE promoveu um teste controlado de invasão, impondo uma série de

restrições do que os hackers poderiam fazer, limitando os softwares que eles

poderiam usar na tentativa de violar urnas. No entanto, as regras para a realização

destes testes impunham condições bastante limitadoras.

O teste oficial regulado e controlado pela Comissão Eleitoral da Índia

ocorreu entre 3 e 8 de agosto de 2009, conforme notas à imprensa de convocação e

de comunicação do resultado. A maioria dos críticos não concordou com as

limitações impostas e não se apresentou para os testes. Assim, só se apresentaram

uns poucos convidados não especialistas e o resultado foi que ninguém teve

sucesso em demonstrar vulnerabilidades nas urnas eletrônicas indianas.

No Brasil os testes ocorreram de maneira muito semelhante: regulado e

controlado pelo Tribunal Superior Eleitoral, ocorreu entre 10 e 13 de novembro de

116 TOZZI, C. L. et al. Avaliação do sistema informatizado de eleições (Urna Eletrônica).

[S.l.]: TSE/Funcamp, 2002. 51 p. sessão 5.5, p. 41. Disponível em: <http://www.tse.gov.br/internet/eleicoes/relatorio_unicamp/rel_final.pdf>. Acesso em: 12 out..2011.

117 ROCHA, A. R. C. et al. Relatório de avaliação do software do TSE realizada pela Fundação COPPETEC. [S.l.]: PT/COPPE-UFRJ, 2002. 13 p., p. 9. Disponível em: <http://www.angelfire.com/journal2/tatawilson/coppe-tse.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2010.

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2009. Os partidos políticos que haviam pedido permissão para efetuar os testes

desde 2006 (PT, PDT e PR) e muitos especialistas capacitados para aferir a

segurança de nossas urnas eletrônicas tampouco concordaram com as limitações

impostas, julgando-as como um teste de fachada, e muitos não se apresentarem

para os testes.

Como a convocação pública por parte do TSE não gerou nenhuma

inscrição até a véspera do final do prazo de 30 dias para que as mesmas

ocorressem, o TSE enviou convites formais a diversas entidades governamentais e

fornecedores118.

Foi desta maneira, um tanto desvirtuada de sua proposta inicial, que fez

com que o TSE anunciasse a inscrição de 37 pessoas, a maioria delas funcionários

públicos designados para uma tarefa (hackerismo e violação de sistemas

eletrônicos) para a qual não possuíam habilitação específica. Aos testes

compareceram 20 pessoas, sendo 7 civis e 13 funcionários públicos, assim

distribuídos: uma pessoa física, um representante da ONG ISSA, cinco funcionários

da empresa Cáritas, quatro funcionários do Ministério Público, dois do STJ, um do

TST, cinco da Marinha e um da Polícia Federal.

Cabe ressaltar que nenhuma das 20 pessoas que participaram do teste

tinha histórico ou experiência anterior bem-sucedida em invasão de sistemas e

adulteração de programas compilados.

Assim, os especialistas convocados não conseguiram quebrar a

segurança da urna eletrônica que foi usada pelo Tribunal Superior Eleitoral nas

Eleições 2010. Os testes realizados com os hackers (um comentário pertinente aqui:

um hacker é, normalmente, um indivíduo que atua à margem da lei. Nenhum técnico

que se autodenomine hacker teria credibilidade junto à comunidade dos mesmos

como tal. O conjunto de pessoas agrupado pelo TSE de última hora para dar alguma

legitimidade ao teste de maneira alguma poderiam ser designados como tal, apesar

de o esforço do órgão de assim defini-los) ou, para ser mais preciso, com os 32 118 Segundo os seguintes ofícios de 09/10/2009 - Ofício 4.687/GP do TSE à Marinha - enviado na

véspera do encerramento das inscrições e o de 18/10/2009 - Ofício 30-644/MB da Marinha ao TSE - inscrevendo seu pessoal 5 dias depois de encerrado o prazo.

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especialistas convocados pelo órgão para testar a segurança do sistema não

conseguiram comprometê-lo durante os testes, que aconteceram entre os dias 10 e

13 de novembro de 2010, o que não foi nenhum tipo de surpresa.

No último dia de testes, o TSE afirmou que especialistas da Procuradoria

Geral da República (PGR), do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e da Polícia

Federal (PF) tentaram invadir a urna eletrônica para alterar a contagem de votos e

fraudar eleições por diferentes métodos, mas não tiveram sucesso. Um dos

representantes da Polícia Federal tentou, sem sucesso, alterar as informações em

cartões de memória que alimentam a urna eletrônica, mudando os votos antes

mesmo do eleitor se apresentar à sua seção eleitoral. Já os especialistas do TST

tiveram como estratégia alterar o boletim da urna, que imprime a comprovação do

voto. Aqui o plano teve relativo sucesso, mas a impressão fraudulenta não saiu do

mesmo tamanho da impressão original, o que comprometeria o sigilo da invasão. Já

os especialistas da PGR tentaram, também sem sucesso, substituir o sistema

operacional original da urna eletrônica, baseado em Linux, para que pudessem

controlar todos os processos do equipamento.119

A conclusão final? Segundo o secretário de Tecnologia da Informação do

Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Giuseppe Janino, a falta de sucesso nos testes

prova que eleitores não devem se preocupar com a segurança do sistema.

Obviamente que a convocação por parte do TSE para que os seus próprios

especialistas tentassem invadir as urnas eletrônicas dentro de um ambiente

absolutamente controlado e segundo regras próprias, que engessavam essa

tentativa de fraude, gerou enorme controvérsia. Muitos, e não sem uma enorme

dose de razão, citaram o esforço do órgão como mais uma peça de propaganda

midiática para reforçar a ideia de que as urnas eletrônicas são seguras.

Em resposta aos testes acima, 20 especialistas realizaram novos testes,

tendo ocorrido um caso de sucesso parcial de quebra de mecanismo de segurança.

119 Segundo o site do TSE. Disponível em:

<http://agencia.tse.gov.br/sadAdmAgencia/noticiaSearch.do?acao=get&id=1252475>. Acesso em: 3 mar. 2009.

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No entanto, nenhum relatório foi publicado sobre tal sucesso120. O resultado de

todos esses testes, livres e restritos, mostra uma total correlação entre o sucesso do

teste de invasão e a forma como ele é executado (se livre ou sob restrições e

controle do organizador). Em 100% dos testes livres (EUA, Holanda, Paraguai e

Índia), obteve-se sucesso na invasão. Em 100% dos testes restritos (Índia e Brasil),

não se teve sucesso, indicando que as regras restritivas impostas pelas autoridades

eleitorais da Índia e do Brasil afetaram o resultado do teste, provocando o

insucesso121.

Como o objetivo óbvio de se submeter urnas eletrônicas a testes de

penetração seria tentar se descobrir falhas de segurança para aperfeiçoar os

sistemas, não existe sentido em se controlar o ambiente onde tais tentativas dar-se-

ão. O caso da Índia demonstra de forma definitiva: sob a tutela do administrador

eleitoral o teste não foi conclusivo. Quando livre, o teste fez aflorar as fragilidades do

sistema.

Em dezembro de 2010, após estes testes oficiais muito semelhantes (no

timing, nas restrições e no insucesso), a Comissão Eleitoral de Índia e o TSE

assinaram um acordo de colaboração mostrando que continuam tentando defender

as suas urnas eletrônicas de modelo DRE, mesmo que isso signifique ir de encontro

à lógica.

Em 2007, após eleições alagoenses, ficou comprovado através de um

laudo realizado pelo professor Clovis Torres Fernandes, então diretor da Divisão de

Ciência da Computação do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), que um terço

das urnas eletrônicas do estado registrou indícios de manipulação criminosa122. A

análise da memória dos computadores que processaram os resultados das eleições

120 São elas: Organização dos Estados Brasileiros, Câmara Federal, Exército Brasileiro, Serviço

Federal de Processamento de Dados, Tribunal de Contas da União, Federação Nacional de Empresas de Informática e Polícia Civil do Distrito Federal - Testes públicos de segurança da urna eletrônica. Disponível em: <http://agencia.tse.gov.br/sadAdmAgencia/noticiaSearch.do?acao=get&id=1301493&toAction=VIDEO_HOT_VIEW>. Acesso em: 4 abr. 2009.

121 Segundo o site Voto Seguro. Disponível em: <http://www.votoseguro.org/textos/penetracao1.htm#8a>. Acesso em: 15 dez. 2011.

122 Parecer de deputado defende mais transparência e fiscalização na urna eletrônica. Jus Navigandi, nov. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/16818/parecer-de-deputado-defende-mais-transparencia-e-fiscalizacao-na-urna-eletronica>. Acesso em: 17 dez. 2011.

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revelou que o número de votos registrados em algumas urnas foi menor do que o

número de eleitores que efetivamente votaram, foram totalizados votos oriundos de

urnas que não existiam e que algumas urnas misteriosamente não registraram voto

algum.

Descartando a hipótese de falha de funcionamento e erro de

processamento por meio da análise de logs – atividades que ficam gravadas em

uma espécie de caixa-preta da urna – o laudo apontou fraude em 35% das urnas

utilizadas nas eleições de Alagoas, já que os arquivos apresentaram erros

disparatados e comportamentos irregulares. Além do mais, pelos dados oficiais

votaram 1.514.113 eleitores alagoanos. O sistema eletrônico de voto, porém,

registra 22.562 eleitores a menos. Não se sabe se esses votos foram subtraídos de

algum candidato, se nunca existiram ou como e por quais razões foram

manipulados. Apesar de a diferença ser significativa, o que ela evidenciava, no

entanto, foi o trabalho de totalização para todo o estado de Alagoas. A perícia

apontou a existência de 29 urnas cujos votos foram computados normalmente pelo

Tribunal Regional Eleitoral. Essas urnas, no entanto, não apareciam nos registros do

tribunal, e foram batizadas de “urnas-fantasma”.

Nas cidades de Branquinha e Taquarana, no interior do estado, os votos

foram registrados com códigos de lugares inexistentes. Ou seja: oficialmente, não

existiu eleição nos municípios ou, se existiu, não se sabe para onde foram os votos.

A perícia mostra também que em outras 121 urnas não foi instalado o programa que

totaliza os votos, 157 tiveram o número de identificação alterado durante o período

de votação e 162 registraram na memória códigos desconhecidos e sem sentido123.

Em 36 cidades de Alagoas, as urnas não informaram se foi emitida a lista

comprovando que todos os candidatos estavam com os votos zerados no início do

pleito. O laudo aponta ainda casos de urnas perdidas no tempo (com a data de

votação como 17 de junho de 2002), urnas ocas (sem nenhuma informação dentro –

embora os votos computados nelas tenham sido validados pela Justiça Eleitoral) e

até uma urna que registrava voto para cargo inexistente.

123 Segundo reportagem da Revista Veja de 24 de janeiro de 2007. O encanto da urna se quebrou?.

Veja, São Paulo, Abril, ed. 1992, 24 jan. 2007. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/240107/p_048.html>. Acesso em: 23 maio 2011.

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Em Rondônia, a Polícia Federal investigou no mesmo ano uma denúncia

de fraude eleitoral de natureza totalmente distinta, com a fraude tendo a participação

de técnicos do Tribunal Regional Eleitoral. Segundo a mesma matéria da Revista

Veja124, Josué Donadon, irmão e assessor do candidato ao Senado Melkisedek

Donadon, contou à polícia que foi procurado por uma pessoa, quinze dias antes do

pleito, que lhe propôs alterar os votos das urnas. Essa pessoa não identificada

relatou que tinha contatos com técnicos do tribunal que poderiam introduzir um

software pirata nas urnas e, assim, dirigir votos para quem ela quisesse pelo valor

de 300.000 reais. O TRE considerou infundada a denúncia, que classificou de “crime

de estelionato”, não de fraude eleitoral.

Nas Eleições do Maranhão em 2010 foram levantadas suspeitas de

fraude pela área judicial da coligação Muda Maranhão após estudo125 que apontou

as seguintes falhas:

1) cartões flashes de carga de memória das urnas eletrônicas com numeração

duplicada;

2) cartões flashes em número superior ao registrado em ata de geração de

mídia (237 a mais que as já existentes 694 cargas suficientes para cobrir

100% das 14.243 seções eleitorais em todo o estado) e sem destino

especificado;

3) registro nos logs de algumas urnas estudadas apontam que 18.716 votos

foram computados após as 17h20min, com tempo entre os votos abaixo de

um minuto e a candidata Roseana Sarney obtendo índice superior a 55% dos

votos;

4) também as seguras urnas biométricas, nos municípios de Raposa e Paço do

Lumiar, estavam sob suspeita de fraude.

124 O encanto da urna se quebrou?, 2007. 125 Disponível em: <http://www.robertokenard.com/politica/2010/10/20/confirmada-suspeita-de-fraude-

na-leicao-no-maranhao/>. Acesso em: 7 jun. 2011. e Disponível em: <http://www.robertokenard.com/politica/2010/10/11/eleicao-no-maranhao-sob-suspeita/>. Acesso em: 7 jun. 2011.

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O estudo indicou que as urnas de Raposa e Paço do Lumiar, mesmo

controladas pelo sistema biométrico, foram provavelmente “emprenhadas”, como se

diz no jargão popular, ou seja, receberam softwares do sistema de controle

adulterados, que permitiam fraudar a eleição. O índice de abstenções baixíssimo

(6,56% e 7,48%) destoa não só da taxa maranhense (23,9%) como da abstenção

de outros municípios onde o sistema foi testado (entre 10 e 12%). Nos dois

municípios autorizaram que 2.991 “votantes” (6,3% dos eleitores) depositassem seu

voto sem conferir a digital dos “eleitores”. Isso quando o TSE estimou uma taxa

máxima necessária para esse procedimento em 1% dos eleitores nas urnas

bimétricas.

Outra suspeita de fraude eleitoral envolvendo urnas eletrônicas aconteceu

na cidade de Praia Grande. O jornal A Tribuna, da cidade de Santos (SP), publicou,

dia 20 de maio de 2009, ampla matéria a respeito do esquema de compra de votos

ocorrido durante as Eleições 2008 naquela cidade, no estado de São Paulo.126

A fraude foi denunciada pelo ex-presidente do diretório municipal do PDT,

José Ronaldo Alves de Sales. Réu confesso, ele depôs perante o Ministério Público

(MP) e disse que chefiou uma equipe de 40 “coordenadores” encarregados da

compra de votos em favorecimento do candidato a prefeito (eleito) Roberto

Francisco Santos (PSDB) e do candidato a vereador André Takeshi Yamauti (PPS).

Os tais coordenadores tinham a função de convencer os eleitores a venderem o voto

por cinquenta reais.

O esquema também foi confirmado por André Yamauti. Em depoimento

ao MP, com claros objetivos de obter o benefício da delação premiada, ele citou a

participação direta de Roberto Santos, e do ex-prefeito Alberto Mourão (PSDB). Na

oportunidade, divulgou carta aberta esclarecendo detalhes do caso.

A compra de votos é uma fraude eleitoral que vem crescendo muito a

cada eleição. Em regiões isoladas dos grandes centros urbanos, identifica-se, em

sua grande maioria, a forma clássica de comercial eleitoral. O candidato compra o 126 Denúncia colhida no site Fraudes Urnas Eletrônicas. Caso Praia Grande (SP). Fraudes Urnas

Eletrônicas. 25 maio 2009. Disponível em: <http://www.fraudeurnaseletronicas.com.br/2009/05/caso-praia-grande-sp.html>. Acesso em: 12 ago. 2011.

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voto e se apoia na boa-fé e ingenuidade do eleitorado, geralmente com a utilização

de meios de coerção psicológica. Por outro lado, em municípios mais desenvolvidos,

onde o candidato não consegue ter pleno controle sobre o resultado da fraude,

utiliza-se a “compra” do título de eleitor. O candidato retém o documento em troca de

retribuição financeira. No dia da eleição, envia alguém de sua confiança para votar

no lugar do eleitor, aproveitando que o documento não dispõe de fotografia.

O esquema utilizado em Praia Grande é uma forma aperfeiçoada de

compra de votos, em modo de operação muito semelhante ao caso já reportado

sobre o Rio de Janeiro. Segundo as denúncias, os candidatos envolvidos

compravam a filmagem do voto. Nada de coerção psicológica ou retenção do título

de eleitor: o eleitor filmava a tela da urna durante o voto, geralmente com telefone

celular com câmera ou uma caneta filmadora emprestada pelos próprios candidatos,

e trocava a gravação pelo dinheiro. Apesar de a legislação eleitoral proibir o uso de

aparelhos eletrônicos nas cabines de votação e dado que as seções eleitorais ainda

não estão equipadas com detectores de metais, qualquer eleitor consegue entrar

com um celular na cabine, o que facilita a venda do voto.

Conforme discutido anteriormente, uma maneira de se criar uma camada

extra de segurança para que as suspeitas de fraude pudessem ao menos passar por

uma verificação que ultrapassasse os herméticos códigos de software da urna

eletrônica seria a impressão física dos votos, como já acontece em alguns países

que adotam a urna eletrônica ao redor de mundo. Uma pequena reforma eleitoral,

aprovada em 2009 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, havia sancionado

a Lei da Reforma Eleitoral nº 12.034/2009, que previa auditoria no voto impresso de

2% das urnas a partir das eleições de 2014.

No entanto, o Senado brasileiro, em 9 de novembro de 2011, revogou a

obrigatoriedade de a urna imprimir voto na eleição de 2014, obrigatoriedade esta

prevista na reforma de 2009. O projeto foi aprovado em comissão de forma

terminativa e vai à Câmara.

O artigo aprovado da lei sobre a impressão do voto previa que:

após a confirmação final do voto pelo eleitor, a urna eletrônica imprimirá um número único de identificação do voto associado à sua própria assinatura

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digital. O voto deverá ser depositado de forma automática, sem contato manual do eleitor, em local previamente lacrado. Após o fim da votação, a Justiça Eleitoral realizará, em audiência pública, auditoria independente do software mediante o sorteio de 2% (dois por cento) das urnas eletrônicas de cada Zona Eleitoral.127

As razões para a derrubada do projeto de lei aprovado ainda não estão

claras.

3.2.4 A urna eletrônica no exterior

A confiabilidade do sistema da urna eletrônica brasileira foi discutida em

Corte Constitucional Federal na Alemanha em março de 2009128. No processo

2BvC3/07, que comparava urnas eletrônicas de modelo ESD1 e ESD2 da Nedap

com as urnas brasileiras, concluiu-se que as urnas de modelo DRE (similar às

brasileiras), que não registram o voto em papel para conferência do eleitor, foram

consideradas inconstitucionais por contrariarem o Princípio da Publicidade no

processo eleitoral, posto que impedem “que o cidadão, que não possui experiência

especial sobre o assunto, possa controlar de forma confiável os passos essenciais

da ação de votar e da aferição dos resultados”129.

O longo acórdão da corte alemã criou jurisprudência, demarcando

princípios e fundamentos sobre o uso de máquinas de votar e considerando

contrário ao Princípio da Publicidade o uso de máquinas DRE sem Voto Impresso

Conferível pelo Eleitor.

Segundo os princípios estipulados pela corte alemã, na utilização de

máquinas eletrônicas de votar, é necessário que o cidadão possa controlar o seu

voto de maneira independente do governo, para isso tendo como uma contraprova

do mesmo a impressão da sua escolha, prova material de seu voto na urna

eletrônica.

127 Disponível em: <http://m.g1.globo.com/politica/noticia/2011/11/senado-revoga-obrigatoriedade-de-

urna-imprimir-voto-na-eleicao-de-2014.html>. Acesso em: 23 nov. 2011. 128 Tradução do site. Disponível em:

<http://www.bverfg.de/entscheidungen/cs20090303_2bvc000307.html>. Acesso em: 15 abr. 2010. 129 Disponível em: <http://www.bverfg.de/entscheidungen/cs20090303_2bvc000307.html>. Acesso

em: 15 out. 2011.

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Por conta desse princípio, a corte alemã rejeitou a utilização de máquinas

de votar do tipo Nedap ESD1 e ESD2 (máquinas DRE sem Voto Impresso Conferido

pelo Eleitor) por estas ferirem o princípio da publicidade, que exige que todos os

passos essenciais da eleição estejam sujeitos à comprovação pública. A contagem

dos votos é de particular importância segundo tal princípio.

Segundo a mesma corte, um outro problema encontrado em nossas

máquinas de votar é o fato dos votos nela registrados acabam por ser contabilizados

somente em memória eletrônica na máquina. Nem os eleitores, nem a junta eleitoral

ou os representantes dos partidos poderiam verificar se os votos foram registrados

corretamente pelas máquinas de votar. Com base no indicador no painel de controle,

o mesário só pode detectar se a máquina de votar registrou um voto, mas não se os

votos foram registrados sem alteração. As máquinas de votar não previam a

possibilidade de um registro do voto independente da memória eletrônica que

permitisse aos eleitores uma conferência dos seus votos.

Um outro problema: como a apuração é processada apenas dentro das

máquinas, nem os oficiais eleitorais, nem os cidadãos interessados no resultado

podiam conferir se os votos dados foram contados para o candidato correto ou se os

totais atribuídos a cada candidato eram válidos. Com base num resumo impresso ou

num painel eletrônico, não era suficiente conferir o resultado da apuração dos votos

na central eleitoral. Assim, foi excluída qualquer conferência pública da apuração

que os próprios cidadãos pudessem compreender e confiar sem precisar de

conhecimento técnico especializado.

Conforme a decisão e o fundamento descrito no parágrafo 155, fica claro

que a corte alemã considerou inconstitucional urnas eletrônicas que não registram o

voto independente da memória eletrônica pelo voto impresso.

Por outro lado, a corte alemã não considerou inconstitucional que a

identificação do eleitor seja feita fora das urnas eletrônicas, uma vez que é fato

constatado e incontroverso que, mesmo assim, é perfeitamente possível evitar que

um eleitor vote duas vezes ou mais vezes.

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Na Argentina, alguns anos antes, a urna eletrônica brasileira foi testada,

mas a escolha ficou por um sistema eletrônico inovador com dupla gravação do voto

dado: uma impressa e uma em chip de dados. Quase dois meses após o Supremo

Tribunal Federal (STF) ter vetado a lei do voto impresso, sob o argumento de que as

urnas eletrônicas do País são seguras e invioláveis, analistas voltam a criticar a

tecnologia brasileira em relatório que compara as urnas brasileiras com as

argentinas. O documento conclui que, em matéria de transparência eleitoral, as

máquinas brasileiras são muito mais inseguras do que as argentinas.

O Relatório da Observação de Eleição na Argentina com Sistema de Voto

Eletrônico de 2ª Geração, feito pelo Comitê Multidisciplinar Independente (CoMind) ,

mostra que a urna argentina é mais rápida e “mais transparente” que a brasileira, por

permitir que tanto o eleitor como o mesário possam conferir a “integridade do

registro do voto”130.

As diferenças entre os dois sistemas de votar, apesar de ambos serem

eletrônicos, são substanciais: na Argentina, após votar, o eleitor recebe seu voto na

chamada cédula eletrônica e em papel impresso. Se quiser conferir se a escolha foi

computada de forma correta, o eleitor encosta o cartão num leitor existente na urna,

que mostrará o voto computado, dando a chance de o cidadão conferir o voto

eletrônico com o impresso.

Para garantir o sigilo do voto, o eleitor dobra o papel com o voto e o

coloca na urna, juntamente com o cartão. Ao final da votação, em cada seção

eleitoral, o mesário confere o cartão com o impresso e faz a contagem. Desta

maneira, o sistema argentino permite a colaboração das autoridades eleitorais com a

fiscalização partidária, agregando segurança e confiabilidade ao processo eleitoral.

Este sistema eleitoral é de segunda geração e foi recentemente

implantado na Argentina nas suas eleições municipais. Diferentemente do Brasil,

onde um único órgão (Tribunal Superior Eleitoral) é responsável por todas as

eleições, na Argentina eleições municipais e estaduais são controladas por órgãos 130 “Urna eletrônica argentina dá goleada na brasileira”. Reportagem publicada pelo Diário do

Comércio. Disponível em: <http://www.dcomercio.com.br/index.php/politica/sub-menu-politica/79397-urna-eletronica-argentina-da-goleada-na-similar-brasileira>. Acesso em: 12 nov. 2011.

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regionais; já as presidenciais são controladas por órgãos federais. Um dos maiores

argumentos do TSE contra a impressão do voto físico não se verificou no caso

argentino: nas eleições de outubro do ano passado no Brasil, o TSE demorou quase

dois dias para divulgar os resultados da eleição. Já na Argentina, a divulgação

ocorreu 2 horas e 15 minutos após o encerramento da votação.

No Paraguai, a urna eletrônica brasileira foi utilizada em 2001, 2003, 2004

e proibida pela Justiça Eleitoral do país devido à desconfiança no equipamento pelos

partidos de oposição131.

Em junho de 2001, o TSE firmou convênio com a Secretaria Geral da

Organização dos Estados Americanos (OEA) visando garantir a infraestrutura

necessária para as eleições municipais no Paraguai, ocasião em que seriam eleitos

prefeitos e vereadores para 232 municípios. Foi a primeira ocasião em que um país

utilizou as urnas eletrônicas do Brasil em uma eleição geral interna.

Naquele ano, o TSE brasileiro emprestou à Justiça Eleitoral do Paraguai

170 urnas, que foram utilizadas por 34.098 eleitores, cerca de 1,52% do eleitorado

paraguaio. O plano-piloto de uso da votação eletrônica ocorreu dia 18 de novembro

e atingiu sete cidades paraguaias. O software de votação foi o mesmo utilizado na

eleição brasileira de 2000, devidamente adaptado ao idioma espanhol. A única

adaptação necessária nas urnas eletrônicas foi a alteração do teclado: os números

foram substituídos por cores, forma oficial de identificação dos partidos paraguaios.

O segundo teste foi bem mais ambicioso. Em 27 de abril de 2003, 53%

dos eleitores paraguaios elegeram o novo presidente, senadores, governadores e

deputados por meio da urna eletrônica brasileira. Em 11 distritos eleitorais a eleição

ocorreu totalmente informatizada, enquanto que em 22 áreas a informatização foi

parcial. Na época, representantes do Partido Colorado, o maior e mais tradicional do

Paraguai, já levantavam suspeitas sobre as urnas eletrônicas brasileiras. A principal

131 Matéria no site ABC. Brasil oferece sus urnas electrónicas. Disponível em:

<http://www.abc.com.py/nota/134051-brasil-ofrece-sus-urnas-electronicas/>. Acesso em: 15 abr. 2010.

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reclamação pairava sobre o fato da Justiça Eleitoral paraguaia não apresentar os

programas utilizados pela urna.132

Em 2006, o governo paraguaio recebeu um lote de 20 mil urnas

eletrônicas (modelo 1996) doadas pelo governo brasileiro. Este modelo de urna, que

possui o antigo microprocessador 386, não era mais utilizado no Brasil devido à

lentidão de operação.

Os equipamentos foram utilizados durante as eleições internas partidárias

– Partido Colorado (fevereiro e julho), Partido Pátria Querida (julho), Partido País

Solidário (julho), Partido Encontro Nacional (julho), Partido Liberal Radical Autêntico

(agosto) e Partido União Nacional de Cidadãos Éticos (agosto) – e em 19 de

novembro, ocasião em que foram realizadas as eleições municipais. Para eleger

prefeitos e vereadores, a Justiça Eleitoral paraguaia resolveu implementar um

sistema misto de votação. Em 21 municípios foram utilizadas somente urnas

eletrônicas, em 7 cidades somente o método tradicional, enquanto que nos distritos

restantes ambos os métodos foram utilizados. Dos eleitores paraguaios, 65%

votaram através do voto eletrônico, enquanto que 35% permaneceram no voto

manual133.

Em 2005 a Justiça Eleitoral paraguaia perdeu o controle sobre 18 urnas

eletrônicas brasileiras que desapareceram durante as eleições internas do Partido

Liberal Radical Autêntico. Acredita-se que mais urnas possam ter sido desviadas

durante as eleições internas que ocorreram no início de 2006, mas nada foi

confirmado. O certo é que o TSJE paraguaio somente abriu inquérito para apurar

estes desaparecimentos no final de maio de 2006, depois da exibição de um vídeo

na TV paraguaia que apresentava um tipo de Teste de Penetração em uma urna

brasileira, modelo 96, carregada com programas oficiais, entretanto adulterados,

utilizados na eleição interna do Partido Colorado em fevereiro de 2006.

132 Segundo reportagem do jornal Globo. Urnas Suspeitas. Globo, 14 abr. 2003. Disponível em:

<http://g1.globo.com/bomdiabrasil/0,,MUL824540-16020,00-URNAS+SUSPEITAS.html>. Acesso em: 23 jan. 2010.

133 Testes de Penetração em Urnas Eletrônicas no Paraguai. Maio 2008. Disponível em: <http://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/penetracao2.htm#1a>. Acesso em: 7 fev. 2010.

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Em 12 e 13 de junho de 2006, um vídeo apresentado nos jornais da TV

Telefuturo (Canal 4) do Paraguai mostrava uma urna eletrônica brasileira, com

software previamente modificado, capaz de desviar votos de uma lista de candidatos

para outra. Nele metade dos votos da chapa 8 são desviados para a chapa 2,

ficando claro que o resultado impresso nos Boletins de Urna poderiam ser fraudados

antes de serem emitidos pela urna. Foi essa reportagem que alterou os rumos do

voto eletrônico naquele país. Como consequência direta, o retorno do voto manual e

o abandono, em galpões da Justiça paraguaia, de todas as urnas eletrônicas

brasileiras.134

Já na Holanda, o governo proibiu o uso de urnas eletrônicas do tipo DRE

sem um comprovante de impressão de voto em decorrência do alto risco de

incidência de fraudes. Apesar de o uso de urnas eletrônicas nos pleitos daquele país

ter ocorrido pela primeira vez em 1991, antes mesmo do caso brasileiro, em 2008 o

país voltou a utilizar cédulas de papel como suporte para os votos de seus cidadãos.

Segundo o Ministro do Interior holandês,

pesquisas indicam que não há garantias da existência de uma urna segura, que não permita espionagem dos votos. Desenvolver novos equipamentos requer grande investimento - financeiramente e em termos de organização. A administração julga que a urna eletrônica oferece menos valor do que a votação em papel.135

Ainda que o governo tenha sugerido o uso de impressoras comuns como

alternativa às máquinas que armazenam a contagem de votos em sua memória,

especialistas dispensaram a opção da impressora, pois concluíram que, mesmo com

testes regulares em cada equipamento, não existia garantia de que todos os

dispositivos estejam de acordo com os limites de emissão exigidos, o que mantém a

possibilidade de espionagem a distância.

Um grupo local que se intitula “Não confiamos em computadores de

votação” publicou uma nota em seu site declarando vitória e citando sentenças

134 Segundo reportagem do Jornal Globo. Eleições no Paraguai não terão urnas eletrônicas.

Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL418621-5602,00-ELEICOES +NO+ PARAGUAI+NAO+TERAO+URNAS+ELETRONICAS.html>. Acesso em: 15 out. 2011.

135 Falta de segurança leva Holanda a proibir o uso de urnas eletrônicas. PC World. Disponível em: <http://pcworld.uol.com.br/noticias/2008/05/19/falta-de-seguranca-leva-holanda-a-proibir-o-uso-de-urnas-eletronicas/?0.820055808629>. Acesso em: 15 out. 2011.

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anteriores contra urnas eletrônicas – nos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido,

Irlanda e Itália.136

Na Finlândia, o Supremo Tribunal Administrativo declarou inválidos os

resultados de uma votação eletrônica piloto em três municípios, e ordenou a

repetição das eleições municipais. O sistema tinha um problema de usabilidade em

que as mensagens eram ambíguas sobre se o voto tivesse sido lançado no cômputo

geral da urna eletrônica, o Boletim de Urna. Em um total de 232 casos (2% dos

votos), os eleitores tiveram selecionados seus votos, mas não confirmados, e

deixaram assim a cabine, sem registrar sua preferência. Tais votos, obviamente, não

foram registrados137. Na sequência do fracasso da eleição piloto, o governo

finlandês abandonou os planos para introduzir o voto eletrônico no país.138

A Revista Newsweek para a América Latina publicou no dia 23 de maio

de 2009 artigo em que citava o exemplo do caso do Supremo Tribunal da Alemanha

que decidiu desmantelar a iniciativa do governo alemão que efetuou grande

investimento durante três anos na tentativa do uso de urnas eletrônicas e concluiu

que “a verdadeira razão está na falta de confiança; os eleitores simplesmente não

gostam que as máquinas efetuem os seus votos como simples registro eletrônico,

sem quaisquer registros tangíveis”.139

O texto ainda cita as eleições na Venezuela em 2004, quando Hugo

Chaves ganhou as eleições e foi revelado que o governo era dono de 28% da Bizta,

a empresa que fabricava as máquinas de votação. Do mesmo modo, as eleições de

2004 na Índia ficaram notórias pelas gangues que fraudaram as urnas eletrônicas

nas aldeias.

Nas eleições legislativas de 4 de dezembro de 2011 na Rússia, foram

usadas pela primeira vez urnas eletrônicas além de um complexo eletrônico para 136 Falta de segurança leva Holanda a proibir o uso de urnas eletrônicas. PC World. Disponível em:

<ttp://pcworld.uol.com.br/noticias/2008/05/19/falta-de-seguranca-leva-holanda-a-proibir-o-uso-de-urnas-eletronicas/?0.820055808629>. Acesso em: 15 out. 2011.

137 Disponível em: <http://www.yle.fi/uutiset/talous_ja_politiikka/2009/04/kho_kuntavaalit_uusiksi_vihdissa_karkkilassa_ja_kauniaisissa_673059.html>. Acesso em: 17 out. 2011.

138 Idem 139 We do not trust machines, Revista Newsweek, 22 maio 2009. Disponível em:

<http://www.thedailybeast.com/newsweek/2009/05/23/we-do-not-trust-machines.html>. Acesso em: 14 ago. 2010.

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processar a realização do pleito. A votação eletrônica funcionou da seguinte forma:

após se identificar junto aos mesários, os eleitores receberam cartões magnéticos

nos quais estavam registrados os nomes e os partidos dos candidatos. Os cartões

foram introduzidos nas urnas e a escolha do eleitor digitada assim que a tela

indicava as candidaturas escolhidas. A urna também foi programada para emitir

comprovantes através dos quais os eleitores poderiam verificar se as suas escolhas

estão de acordo com as que foram processadas pelos computadores.

Após as eleições, no dia 10 de dezembro de 2011, mais de 20 mil

pessoas se reuniram em Moscou para protestar contra a fraude nestas eleições, que

foram vencidas pelo partido do primeiro ministro Vladimir Putin.

O Diário Oficial russo publicou os resultados oficiais das eleições

legislativas, que confirmaram a vitória do partido governista, Rússia Unida, com

49,32% dos votos.

A missão de observadores da Organização para a Segurança e a

Cooperação na Europa (OSCE) anunciou ter constatado inúmeras irregularidades na

votação.

O site da ONG “Observador cidadão” afirma que os resultados reais das

legislativas dariam ao Rússia Unida quase 20 pontos a menos, com uma

participação real de pouco mais de 50%.

3.3 A URNA ELETRÔNICA NO EXTERIOR – O CASO ESTADUNIDENSE

No caso estadunidense, quando me refiro à tecnologia de votação

eletrônica, esse tipo de tecnologia não abrange unicamente as urnas eletrônicas ou

DRE, mas pode incluir os cartões perfurados, sistemas de votação óptica de

digitalização e quiosques de votação especializados como a urna eletrônica, similar

ao caso brasileiro. Ele também pode envolver a transmissão de boletins de voto e os

votos através dos telefones, redes de computadores privadas, ou a internet. Os

Estados Unidos precisam ser estudados como um caso à parte, não tão somente

pela sua importância política no mundo, mas porque se trata do país com mais

tempo de uso desse tipo de recurso em suas eleições, que remonta desde os anos

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1960, e que mais experimentou diversas tecnologias de votar, abordadas no capítulo

2.

Sistemas eletrônicos de votação para os eleitores têm sido utilizados

desde a década de 1960, quando o sistema de cartão perfurado foi usado pela

primeira vez. Os novos sistemas de votação do tipo máquinas de scan óptico, que

permitem um computador contar as marcas de um eleitor em uma cédula e as urnas

eletrônicas, como as brasileiras, são usadas em grande escala nos Estados Unidos,

onde cada condado eleitoral tem o poder de escolher a tecnologia de votação que

usarão seus eleitores – daí o uso em uma dada eleição de múltiplas tecnologias.

Existem também sistemas híbridos em uso naquelas eleições, que

incluem um dispositivo de marcação de votação eletrônica (geralmente um sistema

de tela sensível ao toque similar a uma DRE) e que imprimem o voto do eleitor que

posteriormente será contado por uma outra máquina, criando deste modo uma

maneira de permitir uma auditoria sobre os votos recebidos por um determinado

candidato em uma dada eleição.

Em geral, dois tipos principais de suportes para o voto eletrônico podem

ser identificados no caso estadunidense: o voto eletrônico propriamente dito, que é

fisicamente supervisionado por representantes de organizações governamentais ou

independentes autoridades eleitorais (por exemplo, urnas eletrônicas localizadas nos

locais de votação, similares ao caso brasileiro), e voto eletrônico do tipo remoto,

sobre o qual me deterei mais adiante quando abordar os desdobramentos do voto

eletrônico no caso brasileiro, e que se configura quando o voto é realizado sem a

supervisão por representantes das autoridades governamentais através de

computadores pessoais, telefone celular, televisão e que podem ser chamados de

votos através de internet, ou i-voto.

Apesar de as vantagens da votação eletrônica serem claras, nos Estados

Unidos as restrições ao uso desse tipo de tecnologia têm sido enormes,

especialmente com relação às máquinas de votar do tipo DRE sem impressão de

voto, que poderiam facilitar a fraude eleitoral – receio que é um certo denominador

comum em todos os países que utilizam da tecnologia, excluindo o caso brasileiro.

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Em maio de 2004 um amplo estudo foi realizado pelo “Government

Accountability Office” e que respondeu diretamente à Casa Branca suas conclusões.

O estudo, chamado de “O voto eletrônico apresenta oportunidades e seus desafios”

analisava tanto os benefícios quanto as preocupações no que concernia à

complexidade criada pelo uso do voto eletrônico. Um segundo relatório

complementar foi requisitado em setembro de 2005.

Segundo o relatório, sistemas eletrônicos de votação desempenham um

papel vital nas eleições, mas eles são apenas um componente em um processo

multidimensional. O povo, processos e tecnologia que compõem essas várias

dimensões devem contribuir e criar contraprovas para que o sucesso do processo

eleitoral seja inquestionável.

Ainda segundo o relatório, um sistema de votação eletrônica, como

qualquer tipo de informação automatizado de sistema, pode ser julgado em bases

diversas, incluindo a forma como o seu projeto prevê precisão, segurança, facilidade

de utilização e eficiência e o custo. Entre as vantagens do uso de sistemas de

gravação eletrônica direta (ou DRE, como nossas urnas) está a sua facilidade de

uso, porque tais sistemas têm características que acomodam pessoas com várias

deficiências, e que proporcionam características que protegem contra erros dos

eleitores menos preparados, além da sua incensada agilidade. Já as desvantagens

são maiores e representam um risco à democracia em si: a falta de contraprova

impressa presente em grande parte dos sistemas de votação direta, além da

hermeticidade do funcionamento da máquina em si, aliadas ao seu custo,

representam pontos que sobrepujam suas fortalezas.140

Tem sido demonstrado com certa periodicidade que, por conta de sua

maior complexidade e de incluírem diversas camadas de software, diferentes novos

métodos de fraude eleitoral são possíveis quando do uso da urna eletrônica – pior, a

tecnologia não impede os usos possíveis de serem perpetrados através das cédulas

de papel. Um outro ponto negativo se levanta contra a hermeticidade do sistema,

140 Electronic Voting Offers Opportunities and Presents Challenges. Preparado para o Subcomitê

de Tecnologia, Política da Informação, Relações Intergovernamentais e do Censo Comitê, sobre o Governo Reforma, Câmara dos Deputados dos EUA e publicado em 12 de maio de 2004. GAO. Disponível em: <http://www.gao.gov/new.items/d04766t.pdf>. Acesso em: 14 ago. 2010.

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uma vez que os eleitores não podem verificar as operações que ocorrem no interior

da urna, tais operações não são confiáveis.

Mais: os estudos publicados sobre o voto eletrônico são unânimes em

afirmar que as máquinas do tipo DRE devem ter seus votos registrados através de

votos de papel e que o software usado em máquinas DRE deve estar aberto ao

escrutínio público para garantir a precisão do sistema de votação141.

Durante os anos de funcionamento das urnas eletrônicas nos Estados

Unidos, uma série de problemas foram encontrados ao longo dos anos em suas

eleições. Como alguns casos documentados a serem reportados, posso citar os

seguintes:

1. Fairfax County, Virginia, 4 de novembro de 2003. Alguns eleitores reclamaram

que iriam votar em um determinado candidato e o indicador de que o voto

teria sido computado desaparecia da tela de votação logo depois;

2. Condado de Napa, Califórnia, 2 de março de 2004, um scanner

indevidamente calibrado teria negligenciado 6.692 votos;

3. Problemas nas eleições gerais dos Estados Unidos, de 2006: durante a

votação em Miami, Hollywood e Fort Lauderdale, Florida, em outubro de

2006, três votos destinados a serem registrados para os candidatos

democratas acabavam por exibir os candidatos republicanos. Autoridades

eleitorais atribuíram o fato a erros de calibração na tela de toque do sistema

de votação;

4. Na Pensilvânia, um erro de programação nas urnas eletrônicas forçou o uso

de cédulas de papel. Em Indiana, 175 locais de votação também recorreram

ao papel por conta de erros no código-fonte das urnas eletrônicas;

5. Cuyahoga County, Ohio: O servidor de computador eleitoral congelou e parou

a contagem de votos, logo em seguida as impressoras ficaram estranguladas

141 SCHNEIER, Bruce. What's wrong with electronic voting machines? Publicado em 9 novembro de

2004. Disponível em: <http://www.opendemocracy.net/media-voting/article_2213.jsp>. Acesso em: 23 ago. 2010.

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pelas cópias em papel impressas em fila e muitos votos não puderam ser

recuperados;

6. Waldenburg, Arkansas: um determinado candidato a prefeito recebeu zero

votos em uma dada eleição. O mesmo candidato confirmou que ele

certamente teria votado em si mesmo. O erro nunca foi esclarecido;

7. Sarasota, Florida: em uma eleição para os congressos dos EUA naquela

cidade nada menos que 18.000 votos deixaram de ser computados. A

investigação subsequente revelou que o desaparecimento não se deu por

conta de erro de software, mas sim pelo desenho malfeito do modelo da

cédula de votação;

8. Nas eleições gerais de 2008, Eleições 2008 United States na Virginia,

Tennessee e Texas: máquinas de votação touch screen falharam ao registrar

os votos em ensaios de votação antecipada142. Já em Humboldt County,

Califórnia, uma falha de segurança apagou 197 votos da base de dados do

computador.143

Os exemplos citados acima se reproduzem com uma frequência um tanto

incômoda para os defensores das urnas eletrônicas. Problemas em diversos níveis

de segurança em torno destas máquinas foram documentados em 1º de agosto de

2001 pelo Brennan Center at New York University Law School. A escola de direito do

estado de Nova Iorque divulgou um relatório com mais de 60 exemplos de falhas em

urnas eletrônicas entre 2004 e 2006.144

Em um esforço para manter o sistema de votação eletrônica ainda como

uma opção ativa nos pleitos estadunidenses, no verão de 2004, o Comitê de

Assuntos Legislativos da Associação dos Profissionais de Tecnologia da Informação

apresentou uma proposta de nove pontos para os padrões nacionais de votação

eletrônica nos EUA. 142 E-Voting's Biggest Test. Technology Review, MIT, 3 nov. 2008. Disponível em:

<http://www.technologyreview.com/computing/21626/>. Acesso em: 14 jan. 2011. 143 Why machines are bad at counting votes. The Guardian, 30 abr. 2009. Disponível em:

<http://www.guardian.co.uk/technology/2009/apr/30/e-voting-electronic-polling-systems>. Acesso em: 23 fev. 2011.

144 AITP. Disponível em: <http://www.aitp.org/newsletter/2004julaug/index.jsp?article=evote.htm>. Acesso em: 27 jul. 2011.

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Esta proposta de legislação foi introduzida no Congresso dos Estados

Unidos com o nome de projeto de lei Nelson-Whitehouse. Um dos principais

requerimentos do projeto é o financiamento da substituição de sistemas de tela de

toque pelos sistemas ópticos de votação do tipo scan nas urnas eletrônicas. A

legislação também pedia auditorias em 3% das zonas eleitorais em todas as

eleições federais. A última parte do projeto de lei pedia que fossem criadas

contraprovas em forma de impressões de votos em todas as máquinas de votação

eletrônica até o ano de 2012, não só em máquinas do tipo DRE, mas em todo e

qualquer tipo de máquina de votar eletrônica, incluídas aquelas de cartão perfurado

ou scan de cédula.145

Outro projeto de lei, HR.811 (A confiança do eleitor e da Lei de

Acessibilidade Maior de 2003), atuaria como uma emenda à Lei Vote na América de

2002 e requeria máquinas de votação eletrônica que imprimissem um voto de papel

após a votação eletrônica.

Em 2008, com os indícios de erros e fraudes aflorando na mídia por conta

do uso de tecnologias eletrônicas de votação, foram apresentadas contas adicionais

para o Congresso sobre o futuro da votação eletrônica. Um deles, chamado de

“Assistência de Emergência para a Lei Eleitoral segura de 2008” (HR5036), afirma

que a Administração de Serviços Gerais reembolsará aos estados os custos

adicionais de fornecer cédulas de papel para os cidadãos, e os custos necessários

para contratar pessoas para contá-los. Este projeto de lei foi apresentado à Câmara

em 17 de janeiro de 2008146. Ou seja, existe uma tendência muito forte a um retorno

à votação por cédulas de papel nos EUA como um todo, em decorrência da

insegurança potencial apresentada pelas urnas eletrônicas.

145 Voting Out E-Voting Machines. Time, 3 nov. 2007. Disponível em:

<http://www.time.com/time/nation/article/0,8599,1680451,00.html>. Acesso em: 24 dez. 2010. 146 Projeto de lei H.R.5036 - Emergency Assistance for Secure Elections Act of 2008. Open Congress.

Disponível em: <http://www.opencongress.org/bill/110-h5036/show>. Acesso em: 23 ago. 2011.

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CAPÍTULO 4 – OS DESDOBRAMENTOS DA URNA ELETRÔNICA NO BRASIL E NO MUNDO

Votar é uma tarefa aparentemente simples. Foram discutidas no capítulo

2 as tecnologias e as ferramentas usadas em diversas democracias, em diversos

períodos históricos, para os cidadãos elegerem seus representantes. Mas a

ferramenta, segundo Deleuze, é social antes de técnica, e socialmente as

ferramentas que usamos impactam diretamente na maneira como nos relacionamos

com nosso sistema político, o que acaba por criar uma camada extra de

complexidade ao ato.

Os gregos usavam cacos de pedras para expressarem seu desejo.

Quando o papel se tornou mais barato do que os cacos, as cédulas de papel

tomaram seu lugar. Na sequência dispositivos diversos refinaram a tecnologia e

criaram uma miríade de suportes para que a escolha do representante se faça. Nos

dias atuais a tecnologia da informação é a última palavra em sistemas de votação e

já se fala que a internet, o diagrama da sociedade de controle, seja o suporte por

onde essa escolha dar-se-á. Neste capítulo discutirei quais os novos

desdobramentos possíveis da tecnologia de informação que temos hoje por suporte

para as democracias no mundo.

Apesar da aparente simplicidade do ato de votar, é enorme a

complexidade das discussões sobre a confiança e segurança dos sistemas hoje

vigentes para que essa escolha se faça. Existem críticos e defensores dos sistemas

de gravação direta de voto em urnas eletrônicas, como visto no capítulo anterior.

Grande parte das democracias no mundo estudou em algum momento o uso dessas

máquinas, no entanto olhou para elas com certa desconfiança, sem abrir mão da

materialidade do voto através da impressão do mesmo, o que acarreta uma outra

camada de complexidade.

Se a votação usando urnas eletrônicas gera tamanha discussão e

desconfiança, o que dizer de sistemas de votação on-line? Participamos o tempo

todo, corolário da sociedade de controle proposto por Deleuze. Estamos

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intrinsecamente conectados através de redes sociais, compartilhamos informações

sobre as fibras mais profundas de nossas vidas íntimas em sistemas corporativos.

Comunicamos informações sensíveis sobre nossa vida financeira através

de computadores e a internet: praticamente abdicamos do papel ao fazer nossa

declaração de imposto de renda. Usamos o sistema bancário todos os dias pelo

internet banking. Enfim, confiamos cegamente nos sistemas que regem a vida social

e no diagrama da sociedade de controle, a internet. E a internet não está

simplesmente “aberta” a todas as possibilidades de futuro ou “fechada” a elas, mas

em algum lugar entre uma e outra opção, modulada por relações de poder,

máquinas abstratas, diagramas e estilos de gerenciamento, com resistências

intrínsecas a cada um deles. Ela possui uma origem mesquinha, todos sabemos:

inventada para servir aos propósitos militares de um aparelho de Estado, não tem

como princípio fundador a “liberdade” e a “democracia”, como sugere parte da crítica

contemporânea e de seus usuários. Portanto, quais os riscos de usarmos a internet

no exercício da democracia?

O que nos impede de votar on-line? Seria a escolha do representante

político que nos comandará tão mais sensível do que a vida financeira de cada um?

Que tipos de questões nos impedem de votar on-line, se a internet faz parte da fibra

social das relações entre os homens?

Existem indicativos políticos interessantes de que sim, a tecnologia de

voto pela internet tem de acontecer. No entanto, mais além da tecnologia, existem

razões sociológicas para não fazê-lo. No entanto, não se trata de fantasia: o voto

eletrônico on-line já está em andamento. Não se trata de exercício de futurologia: o

futuro é uma pequena dobra deste presente – parido e operado continuamente neste

exato momento em algum canto do planeta, mas não uniformemente distribuído.

O voto através da internet (doravante o chamarei de i-voto) não está tão

além no futuro quanto se pode imaginar. O condado de Okaloosa, na Flórida, sede

de várias bases militares e que tem um contingente grande de eleitores que vivem

no exterior, já colocou um programa piloto em prática que permitirá cidadãos

estadunidenses – geralmente soldados – que vivem no estrangeiro e que estão

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registrados para lá votar através de cédulas on-line e transmissão de votos por

internet.

Leis do estado do Texas, nos EUA, permitem que desde 1977

astronautas americanos que são incapazes de votar via cédula de ausente, como

aqueles a bordo da Estação Espacial Internacional e da estação espacial Mir,

depositem seus votos eletronicamente, via e-mail, quando estão em órbita.147

Apesar de algumas experiências já estarem em prática, volto à pergunta:

o i-voto é uma boa ideia? Algumas das vantagens intuitivas sobre o sistema de voto

remoto seriam a redução de custos com as votações, uma vez que são eliminados

os locais físicos onde o voto aconteceria, e o incremento da participação na votação

– pelo menos nos países onde o voto ainda é facultativo. Contraintuitivo que pareça,

vários estudos apontam que a votação on-line diminui a participação dos eleitores

nas votações. A razão para isso é social, antes do que técnica: engajar-se em

responsabilidades cívicas é mais provável quando o processo é visível e vigiado

pelos seus pares. Votar é, antes de tudo, uma comunhão social.

Transferir o ato para o foro íntimo retira muito de sua potência, esvazia-o.

Nossos sentimentos de comunidade são reforçados quando saímos das nossas

casas e fazemos o esforço para juntar os nossos amigos, vizinhos e estranhos em

um local de votação, e ver que eles também fizeram o esforço. Votar faz parte de um

espetáculo. Sem espetáculo, o ato se esvazia de sentido.

Mais além, o Estado na sociedade de controle luta pela adesão de tudo e

todos, criando um vácuo nos territórios e um vórtice temporal do qual não se pode

escapar. Como diz Debray:

O Estado (assim como o teatro contemporâneo que tem vergonha de continuar a ser teatro) pretende suprimir essa barra simbólica para incorporar o público ao espetáculo. Levar o espectador a subir para o palco. Todo o mundo no banho, todo o mundo voyeur, todo o mundo em interação. Conseguem nossa adesão pela presença e não pela representação. Pela foto e não pela pintura. Pelo tempo real e não pelo diferido [...]. Conseguem nossa adesão porque o aceitamos. Para nosso prazer. O Estado antecipa nossos desejos; vamos aplaudi-lo porque ele nos aplaude. Somos nós

147 Astronauts beam votes home. CNN Politics, 2 nov. 2010. Disponível em:

<http://politicalticker.blogs.cnn.com/2010/11/02/astronauts-beam-votes-home/>. Acesso em: 23 nov. 2011.

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quem preferimos este novo Estado por ele ser tão “verdadeiro”, tão “ardoroso”, tão “chocante” quanto uma fotorreportagem.148

Suprimir o espetáculo deixando o voto reservado ao foro íntimo de cada

um talvez seja, segundo a perspectiva do Estado, uma ideia reprovável, apesar de

conter nuances interessantes. Se essa participação social migrar para as redes

sociais, onde cada cidadão está de alguma maneira conectado, este espetáculo não

poderia acontecer dentro de uma outra ordem? As redes sociais podem fazer parte

de uma chave que responda o esvaziamento do espetáculo público do i-voto? Esse

público já não é mais de uma nova ordem e precisa ser redimensionado?

Quando estamos no plano do diagrama da sociedade de controle, público

e privado são questões obsoletas. Como diz Guattari, a oposição entre dentro e fora,

público e privado, é alienante e deve ser derrubada:

[...] é preciso antes de mais nada, acabar com o respeito pela vida privada: é o começo e o fim da alienação social. Um grupo analítico. Uma unidade de subversão desejante não tem mais vida privada: ele está ao mesmo tempo voltado para dentro e para fora, para sua contingência, sua finitude e para seus objetivos de luta.149

Se não pode existir um fora ou um dentro espacial na

contemporaneidade, como decretou Lygia Clark em seu trabalho “Morte do Plano”,

de 1960, então não existe a condição de excluído ou incluído, público ou privado: na

sociedade de controle, todos participamos, ainda que seja na forma de fração de

alguma estatística na mesa dos tecnocratas. Tudo é público quando usamos a

internet.

Mas é ainda muito cedo para discutirmos vencedores e perdedores na

loteria da tecnologia de votação. Talvez o i-voto não seja a nova dimensão de

suporte do voto, tampouco sua “evolução”. Antes de me debruçar sobre os novos

suportes, deter-me-ei sobre como a urna eletrônica brasileira está em

transformação. Aí talvez esteja a chave para se assuntar sobre os desdobramentos

das tecnologias de votação.

148 DEBRAY, R. O Estado sedutor: as revoluções midiológicas do poder. São Paulo: Vozes, 1994. p.

34-35. 149 GUATTARI, 1985, p. 17.

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4.1 A URNA BIOMÉTRICA BRASILEIRA

Biometria é o estudo estatístico das características físicas ou

comportamentais únicas de seres vivos, normalmente dos seres humanos. Mais

recentemente o termo passou a ser associado a características físicas de pessoas

como forma de identificá-las unicamente. Hoje a biometria é usada na identificação

criminal, controle de acesso a sistemas seguros, entre outras aplicações. Os

sistemas chamados biométricos podem basear o seu funcionamento em

características de diversas partes do corpo humano, por exemplo: os olhos, a palma

da mão, as digitais do dedo, a retina ou íris dos olhos. A premissa em que se

fundamentam é a de que cada indivíduo é único e possui características físicas – aí

incluída a voz – completamente distintas entre si, o que faz com que um sistema

biométrico seja um parâmetro de identificação ou acesso a um sistema fechado

muito mais seguro do que uma senha, ainda que a mesma seja criptografada.

Em geral, a identificação por DNA de um ser vivo ainda não é

considerada uma tecnologia biométrica de reconhecimento, principalmente por não

ser ainda um processo automatizado: o tempo de identificação de uma determinada

sequência genética em um ser humano ultrapassa algumas horas, podendo tardar

dias, o que dificultaria o imediato acesso a um tipo de informação. No entanto,

decorrente de avanços tecnológicos cada vez mais acelerados, o DNA poderá ser

usado como uma chave de reconhecimento biométrico em alguns anos.

Uma rápida digressão sobre o DNA humano, que um dia poderá ser

usado como parâmetro biométrico: dentro da sociedade de controle, isso faz

completo sentido. Se o modelo de operação da sociedade de controle é o do

vírus150, o objeto de cobiça do biopoder nesta sociedade não será mais o sangue ou

o sêmen, macrofluidos interessantes no modelo de controle das sociedades

anteriores, mas a mais infinitesimal parcela constitutiva da vida, o DNA, mesmo alvo

de subsunção do vírus biológico, que lança mão de uma estratégia de vampirismo

gênico para reproduzir-se:

150 Para entender melhor essa comparação, recorra ao meu trabalho anterior, “Política e resistências

protocolares: torções e reforços no diagrama da sociedade de controle”, p. 37. RIVERO, 2006.

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o código genético parece estar ocupando o lugar de preeminência antes atribuído ao sexo [...] hoje a cadeia de genes do DNA é um alvo privilegiado tanto das biopolíticas que apontam para a população humana quanto das tecnologias específicas de modelagem subjetiva [...]. Agora, entretanto, toda uma mística ligada aos genes está emergindo, e parece disposta a converter esses componentes moleculares dos organismos humanos nos novos protagonistas do biopoder. Assim como o sangue nas sociedades feudais e o sexo no mundo industrial, hoje são os genes que determinam “o que você é”; o código genético é a chave da revelação que “traz tudo a plena luz” – [...] é tentador deduzir que os genes e o DNA estão conformando um forte dispositivo político, em torno do qual se reorganiza o biopoder.151

O diagrama da sociedade de controle, a internet, de cunho rizomático,

opera, portanto, através do modelo virótico e tem como alvo principal o DNA dos

seres vivos, que por sua vez são convocados a uma participação constante e

ininterrupta. O DNA de cada um servirá como chave de acesso a esse diagrama, até

então um pressuposto teórico, que fará sentido em alguns anos.

Voltarei ao assunto das urnas biométricas brasileiras: em 2008 o TSE

testou a identificação dos eleitores por impressão digital acoplada às novas urnas

eletrônicas, que estão sendo chamadas de urnas biométricas ou, simplificadamente,

urnas-B. Tais testes ocorreram durante as eleições de 2008, em três municípios

brasileiros: Colorado do Oeste - RO, São João Batista - SC e Fátima do Su - MS.152

Em março e abril de 2008 aconteceu o recadastramento de eleitores

nestas cidades, com a coleta das impressões digitais dos dez dedos e da foto

digitalizada em alta resolução de cada eleitor. Em junho e julho ocorreram testes

simulados com os próprios eleitores. Finalmente em outubro ocorreu a primeira

eleição com biometria nestas cidades.

A propaganda oficial do administrador e Justiça Eleitoral sobre as urnas-B

tem seguido o mote de que seriam “as urnas eletrônicas mais modernas do mundo”,

desenvolvidas para acabar com o “último reduto da fraude eleitoral”, ou seja, a

falsidade ideológica perpetrada quando um eleitor vota no lugar de outro eleitor.

Segundo o discurso oficial do TSE,

151 SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais.1. ed. Rio de

Janeiro: Relume Dumará, 2002. p. 180-181. 152 BRUNAZO FILHO, 2006, p. 62.

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[...] merece destaque o desenvolvimento das Urnas Biométricas, que processarão o voto a partir da identificação biométrica do eleitor. A missão da Justiça Eleitoral brasileira é a de colocar nas mãos dos brasileiros o futuro cada vez mais seguro para a democracia e levar o Brasil à vanguarda tecnológica dos processos eleitorais em todo o mundo. [...] o objetivo desse cadastramento biométrico é excluir a possibilidade de uma pessoa votar por outra, tornando praticamente impossível a fraude ao procedimento de votação.153

Antes de se aceitar sem pestanejar a propaganda oficial da Justiça

Eleitoral deve-se analisar a questão do uso de biometria nas urnas eletrônicas

levantando antes quatro perguntas fundamentais.

A primeira delas: trata-se de uma função imanente do poder judiciário

coletar, armazenar e controlar o cadastro biométrico dos seus cidadãos? Seria esta

a concretização mais bem acabada e perfeita do que Deleuze chamou de divíduos,

este controlado, antes indivíduo, partido agora em fragmentos e distribuído em

inúmeros bancos de dados, até a sua mínima fração, o DNA, que, como o sêmen e

o sangue eram objetos de cobiça do poder nas sociedades do soberano e

disciplinares, e que passou a ser alvo na sociedade de controle?

Segunda: é recomendável a identificação digital do eleitor na mesma

máquina eletrônica onde o eleitor irá depositar o seu voto? O que acontece com o

sigilo do voto quando a mesma máquina que recolhe a vontade de um determinado

eleitor armazena também uma parte de si mesmo? De que maneira esta informação

poderia ser usada contra este mesmo divíduo? Se existe alguma relação de uso

deste tipo de informação, seriam as votações apenas uma capa mercadológica para

a propaganda de Estado?

Terceira: se adotada, a biometria de identificação do eleitor resolve as

fraudes existentes de identificação do eleitor? É a biometria realmente efetiva para

acabar com as fraudes do tipo de natureza ideológica, como acontece hoje com os

registros de eleitores que não contêm fotos? E, se qualquer outra membrana de

contato de um cidadão com seu Estado, seja ela a carteira de motorista, seu registro

geral ou o passaporte contêm fotos, por que o registro do eleitor dispensa uma

identificação visual do eleitor?

153 Texto recolhido do site oficial do TSE. Disponível em:

<http://www.tse.jus.br/downloads/biometria/index.htm>. Acesso em: 10 ago. 2010.

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Por último: a relação custo/benefício recomenda a adoção da biometria?

Se sim, por que o TSE até hoje rejeita a implementação de impressoras que criem

uma evidência física dos votos dos eleitores em suas urnas eletrônicas usando o

argumento da inviabilidade financeira para tanto, se o custo de impressoras é muitas

vezes menor do que o custo de dispositivos de identificação biométricos?

A primeira questão envolve aspectos mais políticos e ideológicos do que

tecnológicos. Do ponto de vista do Estado e no contexto da sociedade de controle,

faz todo o sentido essa coleta de dados biométricos dos cidadãos que dele fazem

parte. A Índia, país que compartilha do Estado brasileiro a tecnologia de votar

através de urnas eletrônicas e tem estreita relação com o TSE, recentemente deu

início a um grandioso projeto biométrico que dará a sua população, composta de

bilhões de habitantes, uma identificação geral baseada nas íris de seus olhos e suas

impressões digitais. Muitos destes indianos jamais tocaram ou sequer viram um

computador, muito menos um scanner da íris. Boa parte deles sequer tem

exatamente ideia do ano de nascimento – não tem certidão de nascimento ou

identificação de qualquer tipo, seja ela uma carteira de motorista, um título de eleitor,

nenhum documento que comprove sua existência.

Agora, pela primeira vez na história, o governo indiano fracionará sua

população, que terá suas informações mais íntimas registradas em uma das maiores

bases de dados já postas em operação no mundo. Milhões de indianos já foram

inscritos no projeto conhecido como Aadhaar, “fundação” em diversas línguas

indianas. O objetivo do projeto é a emissão de números de identificação ligados às

impressões digitais e íris dos olhos de cada um dos mais de 1,2 bilhão de indianos.

A biometria e o número de identificação Aadhaar servirão como um ID verificável,

portátil e à prova de forja. É de longe o maior e tecnologicamente mais refinado

programa de biometria já posto em prática.154

Quanto à garantia de sigilo do voto, a identificação biométrica na mesma

urna onde o voto é computado não muda em nada a frágil situação atual das urnas

brasileiras. O Brasil é ainda o único país no mundo onde existe, pelo menos do

154 Massive Biometric Project Gives Millions of Indians an ID. Wired, 19 ago. 2011. Disponível em:

<http://www.wired.com/magazine/2011/08/ff_indiaid/all/1>. Acesso em: 11 dez. 2011.

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ponto de vista conceitual, um vínculo direto entre voto e eleitor, por conta do vínculo

sistêmico entre máquina de votar – máquina de identificação do título e que, por

conta disso, faz do direito ao sigilo do voto, que é resguardado pela lei eleitoral, um

fato longe de se verificar na prática.

Na Venezuela, por exemplo, onde se adota a identificação biométrica do

eleitor desde 2004, tal identificação acontece em máquinas próprias, sistemicamente

separadas das urnas eletrônicas e delas desconectadas. Nas eleições deste país

uma máquina de identificação de eleitor pode atender a demanda de até 20

máquinas de votar. E tal não acontece por uma questão de domínio da tecnologia:

todo o hardware e o software utilizados na fabricação de nossas urnas biométricas

são estrangeiros, e nem nos países que nos fornecem tal tecnologia se identifica o

eleitor nas próprias urnas eletrônicas. A razão desta desconexão sistêmica é óbvia:

não há como garantir a inviolabilidade do voto contra um software malicioso que vier

a ser inserido indevidamente nas urnas eletrônicas. Toda a argumentação do TSE

para não separar os dois processos no momento da votação segue o mesmo

raciocínio: como, segundo o órgão é impossível carregar softwares maliciosos em

uma urna eletrônica, separar os dois processos seria custoso e traria pequena

vantagem ao sistema.

Mas o que dizer se o próprio TSE se interessar em saber como a

população de seu país votou, e quem votou em quais candidatos? Tal argumentação

talvez seja válida contra uma invasão externa, com enormes condições, como já

discutido anteriormente, mas o que protegeria a incensada democracia de um

inimigo interno? Se o voto de cabresto apenas se adaptou ao novo modus operandi

de votar, como a prática de coerção das milícias cariocas provou nas eleições de

2008, o que impediria que a fraude fosse executada em massa, em comunidades

inteiras, em cidades inteiras, uma vez que existe, pelo menos teoricamente, uma

correlação entre voto e eleitor?

A adoção das urnas biométricas conta ainda com um outro agravante: tal

elimina uma das garantias de segurança do processo eleitor brasileiro, os testes de

votação paralela. Teste de Votação Paralela consiste numa simulação de uma

votação real que é feita, por força de lei, num ambiente controlado com algumas

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urnas eletrônicas sorteadas na véspera de uma dada eleição155. Tal auditoria é a

única barreira contra uma fraude de carga de software em urna eletrônica e foi

prevista pela Lei do Voto Impresso156, e que não foi posteriormente revogada pela

Lei do Voto Virtual157.

Os procedimentos do teste têm de ser o mais próximos possíveis do

ambiente onde se dará a eleição em uma determinada zona eleitoral. No entanto,

com o uso das urnas biométricas não será possível transferir para este ambiente

controlado todos os eleitores necessários para a liberação de um determinado voto.

Isso porque antes os testes eram feitos utilizando-se números de títulos de eleitores

reais, em modo de simulação, sem a necessidade presencial dos mesmos. Com a

implantação da biometria nas urnas, será impossível criar um modelo controlado de

auditoria com eleitores reais e o teste afastar-se-á de um ambiente aproximado de

um local de votação. Assim, para a experiência com as urnas biométricas em 2008,

o TSE emitiu uma resolução excluindo as urnas biométricas dos testes de votação

paralela:

Res. TSE 22.714/08 - Art. 41. O Tribunal Regional Eleitoral poderá, de comum acordo com os partidos políticos e coligações, restringir a abrangência dos sorteios a determinados municípios ou zonas eleitorais, na hipótese da existência de localidades de difícil acesso, cujo recolhimento da urna em tempo hábil seja inviável ou daquelas onde for utilizado sistema de identificação biométrica do eleitor.158

Quanto ao fato de a urna biométrica aumentar a segurança das urnas

eletrônicas, segundo o discurso do TSE, cabe uma lembrança: fraude e segurança

formam um par indissociável, como poder e resistência formam um duplo na

sociedade de controle. As relações de poder – e seus dispositivos – existem

segundo uma dinâmica de captura e resistência contínua. Assim, se poder e

resistência compartilham da mesma matriz, por serem efeitos distintos das relações 155 Segundo o trabalho Almicar Brunazo Filho, “Urnas Eletrônicas com Biometria”. Disponível em:

<http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/eurna.htmhttp://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/urnas-b1.htm#1o>. Acesso em: 12 jul. 2010.

156 O Projeto de Lei nº 5.498/09, que alterava as leis das Eleições (9.504/97) e dos Partidos Políticos (9.096/95), era extenso e abordava pontos distintos. Além dos itens destacados no artigo anterior (restrição do poder legislativo da Justiça Eleitoral e a impressão do voto), o projeto de lei também regulamentava o uso da internet nas campanhas eleitorais, a arrecadação de recursos e gastos de campanha, bem como alterações no trâmite dos processos eleitorais.

157 A Lei nº 10.470/2003 suprimiu a necessidade de impressão do voto pelas urnas eletrônicas. 158 Segundo a página do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul. Disponível em:

<http://www.tre-rs.gov.br/index.php?nodo=423>. Acesso em: 7 abr. 2010.

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de poder, necessariamente compartilharão do mesmo diagrama e combaterão no

âmbito dos mesmos protocolos. Ora, se poder e resistência compartilham da mesma

matriz, o par segurança - fraude, por analogia, evoluirá concomitantemente no

âmbito da urna eletrônica. O aprimoramento em um dispositivo gera,

necessariamente, uma resposta no par a ele associado. As técnicas de fraude

evoluem, portanto, com as camadas de segurança associadas à urna eletrônica (não

raras vezes se antecipando a elas) e os novos dispositivos propalados pelo TSE não

passam de mais uma peça na engrenagem da ideia de segurança total, tão cara à

sociedade de controle.

Isso ainda porque a fraude de identificação do eleitor, vulgarmente

conhecido como “eleitor fantasma”, é um tipo das fraudes eleitorais possíveis. Entre

os ardis mais frequentes em uma eleição que se utiliza de urnas biométricas, outros

tantos deixariam de ser contemplados pela evolução tecnológica da urna, a saber:

fraude perpetrada pelos mesários responsáveis por uma determinada zona eleitoral,

o cadastro de eleitores-fantasmas, a compra do voto, extensamente discutida neste

trabalho e conhecido por voto de cabresto e a compra da abstenção de um

determinado eleitor, quando se compra a abstenção nos redutos eleitorais de um

determinado adversário para fragilizá-lo. Isso reduz a votação do oponente e tem

uma vantagem adicional: é possível ter certeza de que houve a abstenção, ao passo

que é impossível saber em quem o eleitor realmente votou.

Discutirei a seguir os efeitos da biometria sobre estas modalidades de

fraude eleitoral no âmbito da urna eletrônica, e como e se elas são eficazes para

eliminar os riscos destes potenciais dolos.

A fraude executada pelos mesários consistiria em se aproveitar da

ausência de fiscais para inserir votos nas urnas eletrônicas no lugar de eleitores que

ainda não compareceram para votar. Como em média entre 15% e 20%159 dos

eleitores deixam de comparecer às urnas, tal abstenção viabilizaria aos mesários

inserirem votos nas urnas eletrônicas no lugar dos eleitores ausentes, o que 159 De acordo com reportagem publicada no jornal Globo em 31 de dezembro de 2010, as eleições

para segundo turno naquele ano atingiram um índice percentual de abstenções da ordem de 21%. “Segundo turno registra maior percentual de abstenções desde 1989”. Disponível em: <http://g1.globo.com/especiais/eleicoes-2010/noticia/2010/10/segundo-turno-registra-maior-percentual-de-abstencoes-desde-1989.html>. Acesso em: 12 ago. 2010.

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vulgarmente é conhecido como “emprenhar urnas”. Bastaria para tanto que nas

horas finais do dia de eleição estes mesários liberassem o voto na urna eletrônica

através da digitação do número do eleitor ausente, que se obtém na lista de votação

impressa disponível em todas as seções eleitorais, e votassem no candidato que

estivesse por trás da fraude. Na eventualidade de um eleitor em nome do qual já foi

depositado um voto comparecer ao local de votação, o mesário contornaria o

problema ao digitar o número do eleitor seguinte na folha de votação, o que

permitiria o eleitor anteriormente fraudado de fazer a escolha sem levantar qualquer

tipo de suspeita.

Segundo o discurso do TSE, as novíssimas urnas eletrônicas equipadas

com dispositivos capazes de fazer leitura biométrica contornariam esta fraude. Na

prática, no entanto, este ardil não seria resolvido por conta de um problema grave

comum às unidades de identificação biométrica conhecido por falso negativo: a

tecnologia destes dispositivos, como se verificou em um primeiro teste na cidade de

Vitória em 2010, foi incapaz de ler as digitais de pelo menos 10% da população que

votou naquelas urnas.

No segundo turno, através de recadastramento das digitais dos eleitores

que apresentaram erros na leitura de suas digitais, esta taxa caiu para 4%160, mas

ainda assim tais erros criaram enormes transtornos nos locais de votação onde

estas urnas foram implementadas. As razões que levam à falha de leitura de digitais

neste tipo de dispositivo são muitas. Entre elas destacam-se dedos demasiado frios

(o que poderia acarretar em um erro de sistema por este interpretá-lo como o dedo

de um eleitor falecido), demasiado secos ou gordurosos, mãos muito secas ou muito

suadas (erro por umidade em demasia), o ângulo de colocação do dedo na unidade

biométrica, a pressão exercida no leitor ser demasiado pequena ou grande na

unidade leitora, corte nas impressões digitais (remoção ou degradação da pele) e

160 Segundo reportagem publicada na Gazeta de Vitória em 1 de novembro de 2010, “Tranquilidade

marca votação na Grande Vitória”. Disponível em: <http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2010/11/687433-tranquilidade+marca+votacao+na+ grande+vitoria.html>. Acesso em: 12 out. 2011.

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degradação das impressões digitais (atividades manuais ofensivas à pele dos

dedos).161

Como a leitura de impressão digital do eleitor na urna biométrica é

passível de equívoco por dezenas de razões e como não se pode impedir eleitores

legítimos de votar, é inevitável ter-se de prover o mesário de uma forma de liberar a

urna para o voto de um eleitor legítimo que tenha sido recusado pela biometria na

urna. Na experiência com biometria na eleição brasileira de 2008, o problema do

falso negativo foi contornado pela Resolução TSE 22.713/08, que concede ao

mesário liberar a votação por meio de uma senha:

Res. TSE 22.713/08 - Art. 4º [...]

VIII - por fim, não havendo o reconhecimento biométrico do eleitor, o presidente da mesa receptora de votos autorizará o eleitor a votar por meio de um código numérico e consignará o fato em ata;162

De posse desta senha, que é idêntica para todas as urnas biométricas,

mesários mal-intencionados poderiam continuar a votar em nome de eleitores

ausentes, exatamente como na mecânica de fraude antes abordada, bastando para

isso apontarem as falhas de leitura biométrica na ata de ocorrências da zona

eleitoral para acobertarem a fraude.

Na simulação com urnas biométricas em junho de 2008 na cidade de São

João Batista, estado de Santa Catarina, verificou-se que, para liberar a urna

biométrica sem que o eleitor estivesse necessariamente à sua frente, bastaria ao

mesário digitar 10 vezes o par de teclas CANCELA/CONFIRMA do seu

microterminal para suspender o procedimento de reconhecimento biométrico do

eleitor e, em seguida, digitar a sua senha padronizada para a liberação do voto sem

confirmação da unidade de biometria163.

Em suma: fraudes por meio da liberação indevida da urna por um mesário

desonesto são possíveis com ou sem biometria. A única diferença é que o mesário

161 Vantagens e problemas da biometria. SINFIC. Disponível em:

<http://www.sinfic.pt/SinficWeb/displayconteudo.do2?numero=24095>. Acesso em: 3 ago. 2010. 162 Disponível no site do TRE. Disponível em: <http://www.tre-rs.gov.br/index.php?nodo=190>.

Acesso em: 4 ago. 2010. 163 Segundo o trabalho Almicar Brunazo Filho, “Urnas Eletrônicas com Biometria”. BRUNAZO FILHO,

2001.

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terá que cancelar a identificação, como se estas fossem falsos negativos do eleitor

ausente, e o tempo que levaria para um mesário produzir um voto falso: se nas

urnas eletrônicas convencionais o golpe toma por volta de 20 segundos, nas urnas

biométricas este tempo é estendido em 10 segundos. A única defesa eficaz contra

este tipo de fraude é a fiscalização cerrada nas seções eleitorais no período final da

votação.

Uma outra maneira comum de fraudes nas urnas eletrônicas é o cadastro

de eleitores inexistentes, vulgarmente conhecidos por eleitores- fantasmas. Adulterar

o cadastro nacional de eleitores, inserindo o nome de “fantasmas” é uma

modalidade de fraude eleitoral que não é de todo incomum nos cartórios eleitorais

brasileiros, como exemplifica o caso da cidade de Camaçari, no estado da Bahia, em

2001164.

A adoção da biometria do eleitor para sua identificação na urna eletrônica

cria dificuldades para a inserção maliciosa de eleitores-fantasmas, mas não protege

as eleições completamente deste tipo fraude. Os fraudadores locais terão com o

novo sistema de contar com a participação de controladores do sistema central para

liberarem a fraude em locais combinados ou burlar as defesas lógicas do cadastro

biométrico. A identificação biométrica do eleitor cria a possibilidade de elementos do

controle central do cadastro passarem a participar dos esquemas de fraude que

antes estavam contidos nos cartórios em cada cidade.

Como último argumento que se coloca contra a evolução da urna

eletrônica com sistema de captura biométrica: o custo financeiro deste sistema é tão

164 “No mais grave caso de fraude eleitoral dos últimos anos já registrado e comprovado no Brasil, o

município baiano de Camaçari, na Grande Salvador, sede do pólo petroquímico e da recém instalada fábrica Ford da Bahia - serve de exemplo e de alerta para todo o país. Após se submeter a duas revisões eleitorais devido a irregularidades em seu cadastro, nos anos de 1998 e 2001, Camaçari ainda abriga milhares de eleitores ‘fantasmas’ aptos a votar nas eleições presidenciais deste ano. Nem as urnas eletrônicas - que o Superior Tribunal Eleitoral (TSE) garante serem 100% seguras - conseguiram acabar com os milhares de títulos falsos do município. Pelo contrário, embora tenham sido usadas para dar mais credibilidade à última revisão - interrompida dia 17 de novembro passado por ação fulminante da Polícia Federal em conjunto com a Corregedoria Geral do TSE; com as urnas eletrônicas ficou mais fácil fraudar o cadastro de eleitores - prática antiga em Camaçari. Empregadas como simples computadores, rodando programa especial, as urnas foram o principal instrumento dos fraudadores que atuaram sob as vistas do TRE da Bahia.” Camaçari (BA), fraude eleitoral de papel passado. Jornal do voto.@, 4 abr. 2002. Disponível em: <http://www.brunazo.eng.br/voto-e/noticias/camacari2.htm>. Acesso em: 12 set. 2011.

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alto que no teste de 2008 o TSE simplesmente não efetuou o cadastro biométrico de

todos os eleitores que participariam do mesmo. O volume de dados auferidos do

escaneamento das superfícies de todos os dedos dos eleitores é tão grande, e a

necessidade de servidores para armazenar estes dados é tamanha, que apenas um

projeto de larga escala como o indiano poderia dar conta da centralização destas

informações.

Para fazer a coleta dos dados biométricos dos eleitores, o TSE precisou

desenvolver computadores especiais, chamados de Kitbio, que substituirão a função

dos computadores comuns usados atualmente nos cartórios eleitorais. Tais

sistemas, ao custo em 2008 de R$ 13.500 a unidade, são sistemas formados por

laptop, sensores de digitais, miniestúdio fotográfico e caixa de transporte165. O custo

estimado da implantação destes sistemas em todos os cartórios eleitorais do país

ultrapassaria as centenas de milhões de reais, fora o custo de adaptar as urnas

eletrônicas existentes ao novo sistema e os servidores necessários para tal

operação.

Se a maior vantagem que as urnas biométricas apresentam é criar uma

camada de dificuldade para evitar que eleitores ilegítimos votem em lugar de

ausentes, não seria necessário recorrer ao “maior cadastro biométrico do mundo”

que o TSE pretende implementar ao longo dos próximos dez anos166.

Recentemente, tanto no Paraguai quanto na Venezuela foi utilizada nas

eleições destes países uma tinta indelével para a identificação dos eleitores que

votaram. Na Venezuela, um país de quadro político fortemente polarizado, que tal

como o Brasil usa urnas eletrônicas em suas eleições, governo e oposição

concordam que seu sistema de votação é confiável.

Depois de a oposição ter abandonado o referendo de 2004 tendo por

justificativa a quebra do sigilo do voto dos eleitores e de denúncias de perseguições

165 Segundo dados colhidos no site. BRUNAZO FILHO, Amilcar. Urnas eletrônicas com biometria.

voto.@, abr. 2009. Disponível em: <http://www.brunazo.eng.br/voto-e/textos/urnas-b1.htm>. Acesso em: 13 set. 2011.

166 TSE dá a largada para criação do maior cadastro biométrico do mundo. TRE Santa Catarina. 27 fev. 2008. Disponível em: <http://www.tre-sc.gov.br/site/noticias/noticias-anteriores/lista-de-noticias-anteriores/noticia-anterior/arquivo/2008/fevereiro/artigos/tse-da-a-largada-para-criacao-do-maior-cadastro-biometrico-do-mundo/index.html>. Acesso em: 5 out. 2009.

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por parte do governo que circularam pelo país, o sistema foi submetido a uma

bateria de testes e auditorias exaustivas no pleito de 2007, tanto de hardware quanto

de software, com um grande diferencial com relação às urnas eletrônicas brasileiras:

as máquinas imprimiram atas de votação, existiu conferência em mais de 50% das

urnas e amostras de todos os lotes da tinta indelével usadas para a identificação dos

eleitores, fabricada pela Universidade Central da Venezuela, foram rigorosamente

analisadas no despacho do fabricante e na chegada às zonas eleitorais167. A tinta

indelével usada pelo governo venezuelano ataca o problema de eleitores-fantasmas

de maneira mais eficaz que a solução brasileira.

Neste país o eleitor vota com um documento com foto e a tinta indelével

serve apenas para marcar os eleitores que já se apresentaram para votar, assim

evitando múltiplos votos por um mesmo eleitor. Trata-se de uma solução incômoda,

mas muitas vezes mais simples, barata e eficaz do que o maior banco de dados

biométricos do mundo projetado pelo TSE.

Em suma, a implantação do sistema de controle biométrico dos eleitores

brasileiros representa algumas desvantagens ao sistema eleitoral do país. Entre

elas, destaco o acesso orwelliano aos dados biométricos de todos os cidadãos

brasileiros pelo TSE, que seria capaz de fazer Deleuze em “Post-Scriptum sobre as

Sociedades de Controle”168 soar como uma cantiga de ninar, o risco da

inviolabilidade do voto, não impedir as fraudes ou acrescentar camadas de

segurança que se propõe com a devida eficácia, seu custo faraônico, falibilidade e a

rejeição por outros países no mundo.

4.2 O VOTO REMOTO TRANSMITIDO ATRAVÉS DA INTERNET

No meu trabalho anterior, “Política e resistências protocolares: torções e

reforços no diagrama da sociedade de controle”, discuti como a internet está para a

sociedade de controle conceituada por Deleuze como o panóptico estava para a 167 Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo publicada em 3 de dezembro de 2007,

“Sistema de votação é aprovado em testes”. Disponível em: <http://www.lourivalsantanna.com/vene0042.html>. Acesso em: 3 ago.2010.

168 DELEUZE,  2004.  

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sociedade disciplinar foucaultiana. Antes de discutir o voto transmitido pela internet

terei de abordar rapidamente a internet no contexto da sociedade de controle,

apenas para criar um alicerce conceitual para aqueles que não estão familiarizados

com meu trabalho anterior.

Em suma e de maneira superficial, a internet não é apenas uma rede de

computadores politicamente amorfa e com aspectos que não ultrapassam os

técnicos. Para este trabalho, a internet é o diagrama da sociedade de controle

conceituada por Deleuze, e por sua vez é constituída por protocolos (que são linhas

que recortam e formam uma rede tão distribuída que se transmuta em fluxo), por

uma tecnologia, social antes de técnica, formada por máquinas abstratas, capazes

de executar o trabalho e emular tarefas de qualquer outra máquina – desde que tais

tarefas possam ser esmiuçadas na forma de um código que opere através de uma

lógica de linguagem (computadores) – e por um estilo de gerenciamento, o princípio

de liga que opera através de modulação e serve como membrana comunicacional

entre as máquinas abstratas e este diagrama, formado pelos diversos tipos de

redes. Diagrama, seu estilo de gerenciamento e suas máquinas abstratas, todos

colapsados neste fluxo informacional, a internet.

Mas não quero desgastar o leitor com conceitos que me tomaram uma

dissertação inteira para formar e defender. Antes de perguntar o que é a internet do

ponto de vista político, interessa-me o “para que serve”. A internet faz muitos anos

deixou de ser um lugar redentor, que nos aproximará uns aos outros, criando uma

extensa rede de fraternidades entre amigos, onde está a informação “livre para

todos”, abordagens que se encontram no campo das utopias e que contaminavam

seus usuários há menos de uma década.

Tampouco é o espaço de controle interminável e domesticação contínua,

onde todos seríamos fracionados em bancos de dados pertencentes a corporações

e governos, abordagem que está no campo das distopias. Entre estes dois polos, o

cinza: prefiro pensar que as relações de poder possibilitadas pela internet serão

marcadas por flexibilidade, adaptabilidade e modulação. Tais características são

atributos de um diagrama que não tem a conformação de uma estrutura em trama,

imagem usualmente atribuída à internet, mas sim de uma estrutura rizomórfica.

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Se a internet é o diagrama da sociedade de controle e é operada

continuamente tanto por governos quanto pelos seus cidadãos, em algum momento

esta membrana de comunicação será usada de via para o voto, outra linha

comunicacional entre estes dois agentes. Não se trata, portanto, de discutir se o voto

passará ou não pela internet e se votaremos ou não remotamente. Não trato aqui de

fazer futurologia. Não me interesso pelo futuro, que é apenas uma pequena dobra

do nosso presente – parido e operado continuamente neste exato momento em

algum canto do planeta, mas não uniformemente distribuído. Guattari diz que

[...] é de pouca utilidade traçar planos sobre o que deveria ser a sociedade de amanhã, a produção, o Estado ou não, o Partido ou não, a família ou não. Quando na verdade não há ninguém para servir de suporte à enunciação de alguma coisa a respeito. Os enunciados continuarão a flutuar no vazio, indecisos, enquanto agentes coletivos de enunciação não forem capazes de explorar as coisas na realidade, enquanto não dispusermos de nenhum meio de recuo em relação à ideologia dominante que nos gruda na pele, que fala de si mesma em nós mesmos, que, apesar da gente, nos leva para as piores besteiras, as piores repetições e tende a fazer com que sejamos sempre derrotados nos mesmos caminhos já trilhados.169

O diagrama é imperativo: sim, votaremos remotamente e a internet será

usada como membrana. Trata-se de uma questão de tempo, e a julgar pelas

experiências já em prática em alguns países no mundo, será mais cedo do que

tarde.

Se grande parte do relacionamento do Estado com seus controlados, ou

pelo menos com a fração economicamente interessante do biopoder, acontece

através da internet (como exemplo temos a declaração de imposto de renda que

praticamente foi extinta em papel), por que a ideia de votar tendo a mesma por

veículo soa tão distante, ponto tão fora da curva? Seria porque o voto determina

quem dirige o governo e implica em dois pressupostos, o sigilo e a segurança? Mas

como discutido ao longo dos capítulos anteriores nem um nem outro estão

assegurados com a urna eletrônica. E seria a decisão de quem dirige um país, o

bem público, mais importante do que a vida financeira deste extrato da população,

seu bem mais íntimo?

Talvez pela perspectiva estatal, mas nunca pela perspectiva do cidadão.

De qualquer maneira, é convencionado crer que a escolha de um governante requer 169 GUATTARI, 1985, p. 18.

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índices de confiança e segurança (mais uma vez, parâmetros absolutos dentro da

sociedade de controle) maiores do que as operações de rotina realizadas através da

internet. A percepção de que a internet é uma vereda segura para transações

sigilosas só faz aumentar, a duras penas, decorrência das suas primeiras décadas

turbulentas, e este incremento de confiança no meio tem permitido a realização de

alguns testes-piloto ao redor do mundo. A eles mais adiante.

Antes, cabe delimitar o campo de definição de i-voto: as definições não

são muitas e têm por consenso que o voto eletrônico do tipo remoto tem por veículo

de sua transmissão para as centrais apuradoras a internet. Portanto, o i-voto se

refere a qualquer método de votação em uma eleição na qual a cédula de votação,

que deixa de ser física como no caso das urnas eletrônicas, é disponibilizada

através da internet a partir de um servidor remoto, apresentado ao eleitor

eletronicamente na tela de um computador, marcado eletronicamente pelo eleitor, e,

em seguida, transmitido “preenchido” com a sua escolha novamente para o servidor

através da internet para posterior apuração.

Existem algumas diferenças entre este voto e o voto coletado por urna

eletrônica, porque ambos têm propriedades de segurança marcadamente diferentes:

apesar de os eleitores no momento de fazerem suas escolhas em uma urna

eletrônica também usarem um computador, como discutido no capítulo 3, este voto é

disponibilizado apenas no dia da eleição, é armazenado na urna eletrônica e

posteriormente transmitido em lotes (ou boletins de urnas) para a central apuradora.

Ainda que o veículo desta transmissão seja a internet, a principal

diferença está na maneira parcialmente centralizada de colher os votos versus a

maneira descentralizada ou rizomática de transmissão no caso do i-voto, que são

lançados um a um para a central ou centrais apuradoras. Sistemas como as urnas

eletrônicas são emulações eletrônicas para as conhecidas cédulas de papel ou

máquinas de votar mecânicas, ainda em uso em alguns colégios eleitorais dos EUA,

e seus problemas de segurança já foram amplamente discutidos nos capítulos

anteriores.

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A maneira como os votos são colhidos e distribuídos no modelo atual é

herança, do ponto de vista das redes, da sociedade disciplinar170 discutida por

Foucault171. Já o i-voto tem maior aderência com a sociedade de controle

conceituada por Deleuze. Isso porque, quando tratamos de fluxos de informação,

como o do voto, o modelo de distribuição rizomática deste, por não ter instâncias

centrais de controle e por ser heterogêneo, transforma-o em um modelo muito

particular.

Outros modelos de redes (como o modelo de distribuição dos votos em

urnas eletrônicas) possuem instâncias centrais que se constituem como pontos de

debilidade: na queda de um destes pontos de autoridade a transmissão estanca. Já

a configuração de um fluxo tal como o i-voto, em dois momentos distintos, é sempre

diferente. No caso de uma vasta área deste ser destruída, novos pontos de

passagem serão encontrados pela informação, ou votos no caso estudado aqui.

Como um formigueiro, “[...] é impossível exterminar as formigas, porque

elas formam um rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele

deixe de se reconstruir”172, o fluxo informacional pode sofrer rupturas sem que sua

funcionalidade seja desestruturada. Linhas que podem ser rotas em qualquer lugar,

sem prejuízos de passagem por interrupção momentânea de parte da rede. Como

formigueiros, o rizoma informacional, a internet é teoricamente indestrutível. E isso

170 Foucault define assim o dispositivo de uma sociedade disciplinar: “Esse espaço fechado,

recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos [...]” FOUCAULT, 2003b, p. 163.

171 Este tipo de sobreposição entre duas tecnologias de controle, ou distribuição de informação como no caso desta tese, é perfeitamente comum. É importante ressaltar que a sociedade disciplinar não foi “superada” pela sociedade de controle: as tecnologias de poder típicas de cada um dos diagramas são encontráveis, muitas vezes, em um mesmo espaço. Exatamente como o surgimento de uma determinada mídia não extingue a anterior, mas acomoda as anteriores em seu relevo, o exercício da disciplina se exerce ainda mais intensamente no bojo da sociedade de controle. Trata-se, antes, de uma inflexão na curva de controle sobre os corpos do que de uma ruptura com as tecnologias de poder anteriores, uma ultrapassagem em altíssima velocidade pela última sem que a nova configuração das linhas de força caracterize uma supressão das antecessoras.

172 DELEUZE, G. Mil Platôs. v. 1. Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. 1. ed. São Paulo: Editora 34, 1995. p. 18.

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torna o sistema de votação através da mesma concomitantemente mais seguro e

inseguro do que as tradicionais urnas eletrônicas.

4.2.1 Funcionamento do i-voto

Uma vez discutido do que se trata o i-voto, à pergunta: como funciona? A

figura 14 abaixo representa uma possível arquitetura geral para a infraestrutura de

um sistema de votação pela internet.

Figura 14 – Diagrama de processo do funcionamento de uma votação eletrônica

transmitida através da internet:

173Fonte: CALIFORNIA Internet Voting Task Force.

173 Na figura ISP é Internet Service Provider, ou provedor de acesso à internet, vote clients são

eleitores, Vote Server Datacenter é a central de banco de dados responsável por liberar cédulas válidas de votação aos eleitores, validation server é o servidor de validação dos votos e county

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À esquerda estão as máquinas que pertencem ao sistema de voto através

da internet, englobado pela figura 14. Estas máquinas podem ser quaisquer

dispositivos que tenham acesso ao fluxo (telefones celulares, tablets, televisores

conectados ou microcomputadores de todos os tipos) e estão localizadas em lugares

públicos, como escolas ou bibliotecas, ou, eventualmente, na casa dos eleitores ou

mesmo lanhouses ou seus locais de trabalho. A rede é tão heterogênea que esta

lista de possibilidades é enorme. Em suma, qualquer dispositivo com acesso à

internet localizado em qualquer ponto físico do planeta.

Cada eleitor será conectado a um provedor de acesso à internet (PAI

primário como central de banco de dados. O conjunto formado pelo PAI primário e

secundário, junto com os provedores de rede regional e nacional de serviços às

quais estão ligados é a internet, de maneira simplista. Cédulas e informações

relacionadas trafegarão entre os eleitores e os servidores de voto através da

internet.

Idealmente a infraestrutura para recebimento e contagem dos votos é

dividida em duas partes, pelo menos logicamente, preferencialmente de maneira

física. O Servidor de Validação de Votos (SVV) pode ser executado pelo município

tribunal regional eleitoral em si, ou talvez por conta da habilidade técnica necessária

para gerenciá-lo, por um fornecedor sob contrato com o município. O trabalho do

SVV é recolher os votos dos eleitores eletrônicos criptografados, submetê-los

através da internet, armazenar os votos eletrônicos de forma segura “preenchidos”

pelos eleitores, fornecer um rápido feedback aos eleitores para que estes saibam

que seus votos são válidos e foram computados pelo sistema e transmitir os boletins

de voto para a posterior computação do resultado da eleição.

O SVV idealmente só lidaria com cédulas criptografadas (protegidas por

um algoritmo e muito mais seguras que documentos não criptografados, tecnologia

comum em transações bancárias), e deve estar isolado de todas as chaves de

election agency premises é o local de votação ou de apuração dos votos. Disponível em: <http://www.sos.ca.gov/elections/ivote/appendix_a5.htm>. Acesso: 3 ago. 2010.

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criptografia que poderiam ser usadas para verificar, ler, criar ou modificar as cédulas

de votação. Por isso, a privacidade e integridade dos eleitores em seus dispositivos

não podem ser comprometidas nos SVVs sem serem reparadas pelo sistema. O

requisito vital restante é que os SVVs não podem, sob nenhuma hipótese, perder ou

duplicar as cédulas de votação.174

Dos SVVs as cédulas, ainda criptografadas, serão enviadas para o lugar

de apuração dos votos. Esta transferência não precisa ser instantânea e pode

ocorrer em um segundo plano, por bateladas, ou apenas após o encerramento da

votação, uma vez que a instantaneidade neste processo não é de suma importância.

4.2.2 Classificação dos sistemas de voto pela internet

Existem muitos tipos diferentes de sistemas de i-voto que podem

funcionar em um sistema eleitoral. Estes podem ser colocados em um crescendo de

complexidade que leva de sistemas relativamente simples e que fornecem pouca

vantagem de implementação a sistemas muito mais sofisticados que proporcionam

algumas vantagens com relação ao sistema de votação de urnas eletrônicas. No

entanto, uma ressalva: não existe sistema de votação perfeito, como dito

anteriormente. Como a tecnologia é social antes de técnica, e segurança e fraude

formam um duplo indissociável, qualquer sistema de votação sempre apresentará

vantagens e desvantagens com relação ao anterior.

Entre os potenciais sistemas, destaco:

1) Uso da internet como meio de transmissão dos votos, mas que estes sejam

colhidos em locais centralizados de votação: o mais simples entre todos os

sistemas é basicamente uma variação da urna eletrônica usada pelos

brasileiros. A mecânica de votação funcionaria exatamente da mesma

maneira, com algum ganho de agilidade, uma vez que os votos seriam

transmitidos diretamente para o local de apuração em vez de serem auferidos

pelos BUs e transportados fisicamente em mídia para os locais de votação.

174 Segundo o documento “California Internet Voting Task Force”, Technical Committee

Recommendations”, apêndice A. Disponível em: <http://www.sos.ca.gov/elections/ivote/appendix_a5.htm>. Acesso em: 3 set. 2010.

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Como a vantagem é apenas no plano da agilidade e o sistema de apuração

de uma eleição brasileira já é satisfatoriamente rápido, não me dedicarei a

este modelo de sistema, uma vez que ele cria inseguranças na transmissão

destes votos para a central apuradora que não me julgo tecnicamente capaz

de analisar;

2) Votação parcialmente descentralizada: mesmo caso anterior. Atualmente os

locais de votação já são distribuídos de acordo com o tamanho do município,

mas no caso do voto pela internet tais locais poderiam ser mais numerosos,

não sendo necessários colégios eleitorais tradicionais como nas eleições

atuais. Os mesários, neste caso, teriam computadores conectados ao banco

de dados de eleitores registrados para que pudessem verificar a legitimidade

e registrar o voto do eleitor. Este sistema traz alguma vantagem em termos de

acesso dos eleitores, o que poderia eventualmente reduzir os altos índices de

abstenção eleitoral, mas não é muito mais vantajoso do que as urnas

eletrônicas ou o sistema anteriormente descrito;

3) Voto remoto por computadores registrados pelo TSE: este tipo de sistema é

bastante semelhante ao descrito acima, exceto que os locais de votação não

precisariam necessariamente de mesários. Em vez disso, as máquinas de i-

voto nos locais de votação seriam controladas por pessoas que exerceriam

apenas o trabalho de supervisão, sem grandes qualificações, cuja

responsabilidade seria apenas para evitar a adulteração das máquinas,

impedir campanha eleitoral, evitar a coerção de eleitores e ajudar em caso de

dúvida, mais ou menos como já acontece em quiosques de autoatendimento

em qualquer grande agência bancária que disponha de caixas do tipo

automático;

4) Voto de internet remoto completamente a partir de qualquer computador

conectado à internet: este tipo de sistema é o mais representativo de uma

votação dentro do diagrama da sociedade de controle. Sistemas deste tipo

permitem que os eleitores votem a partir essencialmente de qualquer

computador conectado à internet (com software apropriado) em qualquer

lugar. Este sistema oferece, de longe, a maior comodidade para os eleitores,

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que poderiam votar a qualquer momento, em qualquer lugar, dentro de um

parâmetro temporal pré-estabelecido. No entanto, de todos os sistemas, é o

que apresenta maiores desafios no que concerne à sua integridade, uma vez

que não existirá por parte do governo controle de ponta a ponta do sistema ou

da infraestrutura para a votação. A eles.

O maior problema em se permitir a votação em ambientes privados é o

dispositivo de o eleitor poder ser “infectado” com códigos maliciosos projetados

especificamente para interferir no voto. Uma vez que a maioria dos usuários não tem

consciência dos riscos de segurança que podem afetar seu dispositivo, ou não sabe

como usar as ferramentas de segurança disponíveis, seus computadores são

frequentemente vulneráveis a todo tipo de ataque de código malicioso.

A única maneira de a votação poder ser feita em ambiente sem

supervisão de maneira relativamente segura é o eleitor se asseverar de que seu

dispositivo está livre de códigos maliciosos antes de emitir seu voto. Há uma série

de maneiras de se garantir isso com a tecnologia que temos disponível hoje, mas

todas elas representam inconvenientes para o eleitor, algum tipo de articulação

técnica por parte deste e uma variável extra de complexidade para todo o sistema.

Ademais, é bastante óbvio que o i-voto pode fazer muito sentido numa

sociedade de controle onde quem interessa para o biopoder é a fatia

economicamente produtiva dos controlados, aqueles que têm condições financeiras

para ter acesso, tanto do ponto de vista material quanto protocolar, a este tipo de

dispositivo. Quanto ao restante da população, normalmente às margens mesmo de

protocolos como a leitura e a escrita, estes sistemas criam inconvenientes de grande

vulto – apesar destes, mais uma vez sob o ponto de vista protocolar, não serem

muito diferentes daqueles que esta população encontra com as urnas eletrônicas.

No ambiente doméstico há também algum risco de perda de privacidade

de voto, uma vez que uma pessoa pode ser capaz de influenciar diretamente sobre

o voto de outra do mesmo núcleo familiar. No entanto, por esta ser uma questão que

concerne à esfera privada do eleitor, ele mesmo deve assumir alguma

responsabilidade em guardar a privacidade do seu próprio voto, mesmo porque não

são raras as vezes que os mesmos eleitores declaram desbragadamente em quem

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votaram ou tentaram influenciar a opinião dos seus. Aqui, a meu ver, trata-se de

uma questão menor quanto a este tipo de voto.

Uma última preocupação quando o voto pode ser executado a partir de

qualquer dispositivo ligado à internet é a heterogeneidade entre os mesmos, desde

seus sistemas operacionais até o tamanho de suas telas e conformações de

hardware. É um problema que a indústria bancária demorou alguns anos para

resolver, e só recentemente conseguiu implementar em celulares camadas de

software, que normalmente rodam na Web, através da qual os correntistas de um

determinado banco podem fazer uma transação.

Mas, por questões de segurança, nem todo tipo de operação disponível

em aparelhos computadores pessoais é permitida no momento em que se acessa o

mesmo site por dispositivos móveis. Consultas de saldo, extratos, talvez um DOC

em alguma conta previamente registrada. No entanto, a flexibilidade que o serviço

oferece ao seu correntista quando este faz o acesso através de um computador

“tradicional” é muitas vezes mais flexível do que quando ele usa um dispositivo

móvel, ainda que em ambos sejam necessários os mesmos dispositivos de

segurança que são restrições no uso do internet banking em computador pessoal,

como tokens e senhas.

Seria pouco provável, portanto, que um sistema de votação pela internet

que funcionaria de uma dada maneira dentro de uma plataforma como um

computador pessoal operasse da mesma maneira em todas essas outras

heterogêneas plataformas sem alteração substancial nos códigos de software nelas

instalados. Tal fato limitaria o pressuposto do voto “em qualquer lugar, de qualquer

dispositivo”.

4.2.3 Vantagens e desvantagens do i-voto

Em suma, o i-voto possui, como as tecnologias predecessoras, vantagens

e desvantagens. Entre as vantagens, o suposto aumento da participação, vantagem

propalada que é um tanto discutível, como vimos anteriormente. Votar envolve um

dever cívico e, portanto, envolve uma certa pressão social. A partir do momento que

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os potenciais eleitores estão livres da supervisão de seus pares e não participam do

que no Brasil se costuma chamar da “festa da democracia” (o que deve ser lido com

uma certa dose de humor), um componente do espetáculo proporcionado pelo

Estado cai por terra. A comodidade de se votar em qualquer lugar pode realmente

criar tal conveniente que o índice de abstenção sofra uma queda, mas suspeito que

a ausência do espetáculo e da pressão civil poderia compensar este incremento de

participação. Como no caso anterior, esta vantagem só poderia ser verificada de

maneira empírica, este argumento, embora lógico, permanece especulativo.

Ninguém pode dizer com certeza que a conveniência traduzir-se-á em maior

afluência de eleitores.

Uma outra vantagem, esta incontestável e pelo menos do ponto de vista

teórico, é que as eleições ficariam muito mais baratas para o governo.

Desenvolvimento constante de aprimoramento das urnas, cadastramento biométrico

da população, convocação de mesários, todas as tarefas que concernem a uma

eleição em plano nacional colocam em marcha uma máquina de funcionamento

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caríssimo. Estima-se que o custo de uma eleição como a de 2010 para o governo

brasileiro seja da ordem de R$ 500 milhões de reais175.

No entanto, mesmo que alguns eleitores optem por votar on-line, o TSE

terá de criar alternativas para aqueles que não dispõem de recursos financeiros ou

técnicos necessário para fazê-lo. Mais uma vantagem que o sistema apresenta que

só poderia ser verificada de maneira prática, porque possui direta relação com o

número de eleitores que estão tanto tecnicamente quanto culturalmente aparelhados

para tanto. Ainda que estes eleitores estejam prontos para o i-voto, resta saber se

eles confiaram em usar a internet, dada a impressão geral de sua insegurança e a

importância que votar tem para muitos.

Semelhante é o caso de muitos que dispõem de computadores em suas

residências, mas mesmo assim usam agências bancárias para pagar suas contas ou

para fazerem suas compras fora da internet. Logo, esta vantagem é relativa, uma

vez que não é possível saber o real impacto que o i-voto traria para a economia de 175 “A preparação das eleições que ocorrem nos 5.567 municípios brasileiros deve custar à Justiça

Eleitoral cerca de R$ 480 milhões. A dotação orçamentária para as eleições 2010 é de R$ 549 milhões, mas o gasto será inferior ao previsto. Nas últimas eleições gerais, foram gastos R$ 450 milhões. Em 2002, R$ 495 milhões. Logística - O transporte das urnas até os locais de votação, em um país com as dimensões do Brasil, é uma operação complexa. Para concluir essa logística, levada a cabo pelos Tribunais Regionais Eleitorais, a Justiça Eleitoral gastará R$ 35 milhões. Transmissão via satélite - Outro importante investimento realizado pela Justiça Eleitoral é a aquisição de sistemas de transmissão de dados via satélite. Este aparato tecnológico possibilita que eleitores de locais remotos, como aldeias indígenas, cidades cujo acesso é difícil ou locais muito distantes das capitais, possam ter seus votos computados poucas horas após o encerramento das eleições. Urnas - Neste ano, serão utilizadas 477 mil urnas, das quais 420 mil irão para as seções eleitorais e o restante servirá de reserva em caso de necessidade de troca por defeito ou falhas. Em 2010, mais de um milhão de eleitores de 60 municípios espalhados por 23 estados brasileiros votarão em urnas com leitor biométrico. A expectativa da Justiça Eleitoral é de que, até 2017, todo eleitorado do país esteja cadastrado biometricamente. Mesários - Nestas eleições, a Justiça Eleitoral contará com o apoio de mais de 2,1 milhões de mesários. Está estimado o gasto de R$ 82 milhões com o pagamento de lanche para eles, considerando a realização de primeiro e segundo turno em todo o país. Cada mesário receberá R$ 20,00 por turno de votação. Entretanto, se não ocorrer o segundo turno somente em alguns estados, a despesa com alimentação dos mesários pode ter uma redução de R$ 30 milhões. Campanha de Esclarecimento - Como em todos os anos de eleições, o TSE promoveu em 2010 ampla campanha de esclarecimento ao eleitor, por meio de vídeos de TV, spots para rádio e ainda um hotsite na internet. A campanha enfocou diversos temas considerados importantes para que o eleitor possa exercer plenamente seu direito ao voto.Como evitar e denunciar tentativa de compra de votos, a importância de pesquisar o passado dos candidatos, as funções de cada cargo em disputa nesse pleito, a segurança do sistema eletrônico de votação, o passo a passo de como votar, a importância de levar uma ‘cola’ no dia da votação e a necessidade de portar dois documentos para poder votar foram alguns dos temas abordados na campanha, que custou ao TSE cerca de R$ 4 milhões.” Saiba quanto custa uma eleição para o bolso de todos os brasileiros. 2 out. 2010. Disponível em: <http://afraniosoares.blogspot.com/2010/10/saiba-quanto-custa-uma-eleicao-para-o.html>. Acesso em: 23 mar. 2011.

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uma eleição, mesmo porque em sua implementação esta teria de ser feita de

maneira muito gradativa e em coexistência com a tecnologia que ainda temos em

prática. Portanto, pelo menos nos primeiros anos de seu uso, o i-voto representaria

um incremento geral de custos para as eleições, não uma economia. Talvez fossem

necessárias décadas até que tal investimento fosse recompensado por uma

diminuição no custo geral do processo.

As desvantagens já não são tão dependentes de verificações empíricas:

eleitores desprovidos de interesse pelo biopoder, aqueles que são economicamente

inativos ou têm pequena representatividade na economia, mas que ainda assim são

obrigados a votar pelas leis brasileiras, têm menos acesso a computadores e à

internet e se beneficiariam menos de uma mudança de sistema de votação. Em um

país com tamanho abismo entre classes sociais como o Brasil, com enorme

defasagem tecnológica em relação a outros países no mundo e de leis

protecionistas, que impedem uma maior velocidade na adoção dos dispositivos

necessários para uma votação on-line, talvez seriam necessários muitos anos, ou

pelo menos uma década, para que tais dispositivos estivessem ao alcance de sua

população. Tal “brecha digital” tem diminuído consideravelmente desde a década de

1990 e o chamado “analfabetismo digital” vem caindo, naturalmente, com o passar

dos anos, mas ainda assim existem gerações que não conseguem lidar com os

dispositivos da sociedade de controle.

Uma última desvantagem notável, muitas vezes comum às outras

tecnologias de votar, poderia colocar em risco a integridade e a credibilidade do

sistema eleitoral. Uma vez que a segurança tão cara à sociedade de controle é

dependente de autoridade sobre o processo, a heterogenia dos dispositivos que

seriam usados numa eleição on-line deixaria boa parte do processo longe do

domínio absoluto do TSE. Existiria um potencial incremento na participação, outro

destes corolários, mas a segurança poderia ser fragilizada.

Não que o sistema de i-voto seja mais ou menos seguro do que as urnas

atuais, mas a percepção de segurança que as urnas eletrônicas passam para o

eleitor – e sua consequente confiança no sistema, baseia-se no controle quase

tirânico do TSE sobre todo o processo e é propalada por uma máquina de

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propaganda gigantesca posta em marcha por este. Como o TSE não teria controle

sobre todo o processo, por conta de parte dele neste sistema ser no novo sistema

de foro íntimo, e a internet, por conta da experiência de uma boa parte da população

que a utiliza ter sido negativa em algum momento (ou os veículos de mídia

anunciarem de maneira desbragada como esse território é perigoso para quem o

usa), um decréscimo de segurança efetiva não seria tão daninho quanto um

decréscimo de impressão de confiança. E sem esta confiança o sistema eleitoral não

se sustenta. Logo esta perda, ainda que seja no campo da percepção apenas, é

muitas vezes mais prejudicial do que uma perda real de segurança. Mas existe

mesmo um decréscimo de segurança no i-voto quando este é comparado com

outras tecnologias de votar?

4.2.4 A fraude no i-voto

Os casos de fraude por cabresto eleitoral (grupos de pressão que

poderiam cooptar o eleitor), no caso da votação através da internet, ganhariam uma

dimensão extra de complexidade: se por um lado fica impossível para o grupo de

pressão cooptar eleitores em seus locais de concentração, uma vez que estes

deixam de existir porque não existe mais instância central de votação, por outro os

eleitores poderiam trocar seus comprovantes de voto e fotos de sua confirmação,

exatamente da maneira como acontece com as urnas eletrônicas, por benesses.

O que se centralizaria seria a origem da fraude, enquanto os locais de

votação seriam atomizados. Neste caso, a descentralização da votação, e este é

apenas um exercício, favorecia a lisura do processo eleitoral porque a centralização

da fraude facilitaria seu controle. Seria muito mais fácil para os agentes de polícia do

governo desmanchar um escritório de troca de comprovantes de votos por

benefícios do que controlar os agentes de pressão espalhados pelos locais de

votação. Via de regra, descentralizar um sistema o deixa mais seguro.

No caso de cédulas de internet, um problema maior do que a votação por

urnas eletrônicas seria a verificação de que o eleitor registrado é o mesmo que

recebeu a liberação da cédula eletrônica em seu dispositivo. Como se certificar de

que o voto registrado em uma cédula seja do eleitor a quem a mesma se destinava?

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Se o eleitor está presente em local “oficial” de votação, a questão se

resume a uma verificação detalhada da identidade deste eleitor, apesar de que,

como já discutido anteriormente, nem sempre esta verificação impede que a mesma

não seja falsificada e que o mesmo corresponda ao eleitor a quem a “cédula”, seja

ela física ou eletrônica, se destinava.

No caso de sistemas de votação em que o eleitor está ausente existem

maneiras de se comparar uma assinatura física contra uma assinatura do eleitor que

se registrou para ter acesso à cédula – ou mesmo uma senha, como acontece no

caso do acesso a acessos remotos bancários ou à declaração do imposto de renda,

que tem por chave o Cadastro de Pessoa Física, mas dado o nível extra de

segurança que a metodologia pede para garantir a integridade da confiança no

sistema democrático seria necessário que todos os eleitores registrassem uma

senha pessoal e intransferível para garantir a lisura de uma eleição.

Ainda assim, dado que o que está em jogo não é uma perda por parte do

eleitor, mas um ganho em potencial, no caso da corrupção do mesmo para o

favorecimento de um dado candidato, como garantir que o mesmo não trocaria tal

senha por uma vantagem qualquer? Seria o sistema de identificação biométrico

indissociável da votação remota, para que o sistema tenha realmente o nível de

segurança preciso para garantir a confiança de todos frente a um dado resultado?

Mais, como garantir que uma vez assegurada a identidade do eleitor ele

ainda consiga votar caso experiencie uma dificuldade técnica qualquer? Uma vez

que as instâncias de votação foram distribuídas e atomizadas, em caso de

dificuldade técnica, que pode passar desde a ausência de acesso à internet –

sabemos por experiências como consumidores que a rede em países como o Brasil

é um tanto instável nos dias de hoje – até por problemas nos computadores

pessoais dos eleitores, como garantir suporte técnico para que a eleição aconteça?

Outra questão: como evitar que uma vez os votos transmitidos pelos

computadores pessoais dos eleitores eles efetivamente vão chegar íntegros na

central ou centrais de apuração? Em uma recente experiência de i-voto nos Estados

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Unidos, cidade de Washington, um grupo de hacktivistas176 sequestrou o resultado

do teste, como atesta a reportagem abaixo:

Um sistema de votação na Internet destinado a permitir que residentes do Distrito de Columbia (Washington, EUA) votassem remotamente foi colocado em espera após serem constatadas vulnerabilidades que teriam permitido a fraude e a quebra da privacidade naquela eleição.

O sistema [...] foi sequestrado apenas 36 horas após os funcionários terem dado início aos seus testes.

"É provável que um dia será possível construir um método seguro para a submissão de votos através da internet, mas, nos dias de hoje, esta metodologia deve ser presumida como vulnerável, julgamento baseado nas limitações da tecnologia de segurança de hoje."

A equipe que sequestrou o sistema assumiu controle total do mesmo após 36 horas [...] desde que foi restabelecido, os moradores de Columbia puderam usá-lo apenas para ter acesso às cédulas para posteriormente imprimir e enviá-las por correio. A votação pela Internet foi suspensa.177

A implementação do i-voto pode estar a muitos anos de ser uma

realidade, mas é um caminho natural para a maneira como os eleitores brasileiros

votam na sociedade de controle. Extensas modificações em nossa legislação

eleitoral e criminal terão de ser implementadas para atender a nova tecnologia: qual

penalidade recairá sobre os responsáveis por adulteração eletrônica, pela invasão

de privacidade dos eleitores, e para propaganda eleitoral eletrônica? Qual o tipo de

176 Os hacktivistas foram objeto de estudo de meu trabalho anterior, “Política e resistências

moleculares” e foram descritos da seguinte maneira: “Hacktivismo é o que resulta da operação de fusão entre hacking e ativismo político, entendido aqui como práticas que levam a ações de militância direta com fins de atingir determinados objetivos sociais ou políticos. Mais especificamente, poder-se-ia dizer que hacktivismo é hackear com objetivos políticos. No cerne das ações de hacking, e não poderia ser diferente em ações de hacktivismo, está uma em jogo a exploração da ingenuidade ou deficiência técnica de pessoas ou instituições com o intuito de circundar limitações técnicas, normalmente através do uso de soluções criativas aplicadas a problemas complexos. Ferramentas tais como máquinas abstratas e o fluxo rizomático são imprescindíveis nesta operação. Tais soluções nunca são estanques: todos os problemas são únicos porque envolvem diferentes variáveis, portanto as soluções dos mesmos tampouco podem ser idênticas. As técnicas usadas para a prática de hacking são sempre multiformes, evolutivas (no sentido de uma solução técnica ser compartilhada pela comunidade e desta forma as mesmas sempre ganharem complexidade, mesmo porque a segurança das máquinas tidas por alvo também se torna dia-a-dia cada vez mais cerrada) e dinâmicas. Trata-se de um fenômeno rizomático e aberto, da mesma ordem do diagrama da sociedade de controle.” RIVERO, F. Políticas e resistências moleculares. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. p. 220. Disponível em: <http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCsQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.cipedya.com%2Fweb%2FFileDownload.aspx%3FIDFile%3D157527&ei=7h1MT9DNAYHp0QGSr_muDg&usg=AFQjCNE5IYBS5S2ce5UdKBONBHWCHePkIQ>.

177 “Hackers hijack internet voting system in Washington DC”. Notícia publicada no jornal The Register em 6 de outubro de 2010. Disponível em: <http://www.theregister.co.uk/2010/10/06/net_voting_hacked/>. Acesso em: 17 abr. 2010.

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reconfiguração necessária para que o i-voto aconteça, e será que ele ainda

apresenta algum tipo de vantagem sobre a urna eletrônica? Depois de tantos

suportes usados para colher o desejo da multidão, complexificar a tecnologia destes

suportes representa uma vantagem para o processo democrático ou apenas uma

oportunidade para que este controle difuso opere?

Nas eleições holandesas de novembro de 2006 foi constatado por uma

auditoria técnica encomendada pelo parlamento daquele país que a máquina de

votar de uma dada marca poderia ser controlada a distância por tecnologia

especializada. O fato foi noticiado com alarde pela imprensa daquele país e a

resposta do mesmo parlamento foi rápida: as cédulas de papel voltaram a ser

utilizadas como suporte para a escolha dos holandeses. Talvez um dia nos daremos

conta de que o suporte do voto é tão importante quanto o sistema político que o

encerra. E que, para o bem do último, o futuro do voto poderia ser um retorno ao

condutor mais simples do desejo da multidão: o papel.

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CONCLUSÃO

O suporte para o voto passou gradualmente por um processo de

imaterialização no decorrer de pouco mais de uma década. Apesar de o voto

eletrônico já ser parte da realidade das eleições brasileiras faz mais de 15 anos,

apenas há pouco alguns países, como discutido no corpo deste trabalho, passaram

a usar urnas eletrônicas em seus procedimentos eleitorais, não sem levantar um

enorme questionamento no processo: o agenciamento entre homem e seu desejo,

não importa se passa por riscar um pedaço de papel, apertar um botão, tocar uma

tela ou apontar um mouse, não é uma questão meramente tecnológica, mas antes

tem impactos profundos no âmbito político e social: uma vez que a tecnologia

continuará por transformar todas as esferas da vida social, é inegável que, por ela

ser social antes de ser técnica, impactará também profundamente a maneira como

multidão e Estado se relacionam.

Este trabalho não se trata de uma discussão se este suporte de voto é

mais seguro que aquele, se o papel é mais confiável do que a urna eletrônica: as

questões de segurança são apenas um dos efeitos colaterais do suporte do voto. O

que importa é se a tecnologia, uma vez que se trata de uma ferramenta social, afeta

o sistema no qual ela está inserida. Todos os suportes, como demonstrado nos

capítulos anteriores, possuem falhas e são confiáveis até um determinado ponto.

Mas, se vivemos na sociedade de controle, até em que lugar desta configuração

existe um imperativo para a digitalização da membrana que comunica controlados a

controle, e em qual ponto este poder se encontra com uma resistência, se é que ela

ainda é possível, e se possível, que tipo de resistência se forma? Seja qual for o tipo

de resistência que é possível na sociedade de controle, uma coisa parece ser clara:

seus dispositivos de poder, sobretudo o estímulo à participação contínua, ampliam a

capacidade de minar estas resistências.

A evolução do suporte do voto no Brasil atende a um chamado que é

inerente às relações poder – saber tanto da sociedade disciplinar quanto da

sociedade de controle: a reforma. A ideia de reforma é característica e intimamente

ligada à sociedade disciplinar, processo interminável de docilização dos sujeitos, e

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seu verdadeiro objetivo não é tanto fundar uma novo dispositivo de poder, mas sim

uma nova economia nas relações já estabelecidas de controle.

Não existe Estado moderno sem a ideia de reforma e este dispositivo é

levado à útlima potência na sociedade de controle, onde a ideia de um estado geral

de inconclusão e da permanência da crise nas instituições é importante para que

todos atendam ao imperativo da participação. Enquanto um processo ou uma

instituição estiver no plano do inacabado seremos convocados a participar

ativamente do refinamento deste processo e, portanto, das relações de saber –

poder, sem de fato questionar as instituições ou os processos que serão

perpetuamente reformados. Em outras palavras, os protocolos de controle são

permanentes, inquestionáveis. Seus processos e suas configurações,

permanentemente inacabadas. É nesse balanço entre o permanente e o inacabado

que se encaixa o suporte do voto no Brasil, especialmente o voto eletrônico.

O pioneirismo brasileiro na imaterialização do suporte de seu voto só foi

possível graças a determinadas condições que a democracia brasileira incorpora,

em especial por conta de algumas características particulares de seus órgãos

reguladores. Ademais da obrigatoriedade por parte da população em participar do

pleito, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) concentra os poderes de regulamentar,

administrar e julgar dentro do processo eleitoral brasileiro. A Justiça Eleitoral, de

feito, tem missão das mais amplas no que concerne ao sistema eleitoral brasileiro.

Ela funciona como ramo especializado do Poder Judiciário, exercendo a função

jurisdicional nos tratos eleitorais, além da administração das fases do processo

eleitoral, desde o alistamento até a apuração dos votos e a consequente

proclamação dos eleitos. É o único órgão da Justiça brasileira com função

administrativa que extrapola o seu próprio âmbito. Não há, no Brasil, interferência,

seja do Poder Executivo, seja do Poder Legislativo, na administração das eleições

ou na decisão final sobre o resultado dessas.

Este acúmulo inusitado de poderes resulta na centralização das decisões

e propicia uma grande rapidez na aprovação das leis eleitorais, que são escritas e

aprovadas sem interferência dos eleitores, mas por outro lado provoca uma óbvia

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falta de nitidez em todo o processo: se votar passa antes pelo suporte do voto, logo

a maneira como votamos é tão importante quanto em quem votamos.

Este acúmulo de influências por parte do TSE, sem paralelo no mundo,

permitiu que o voto eletrônico fosse colocado como a melhor alternativa de suporte

de voto para os eleitores brasileiros. O TSE e sua independência enquanto órgão

regulador das eleições é uma das razões pelas quais a urna eletrônica brasileira foi

lançada, por conta de uma máquina espetacular de publicidade, como a ponta-de-

lança de nossa democracia.

A obrigatoriedade do voto é uma outra destas particularidades (apesar do

Brasil não ser o único país do mundo que mantém o voto compulsório, mas é um

dos poucos exemplos), e neste sentido a obrigatoriedade que têm os eleitores em

votar é mais um exemplo de como o voto atende perfeitamente a um dos

imperativos da sociedade de controle, a participação. A voto obrigatório explicita

esta convocação constante à participação atual e se encaixa perfeitamente no

diagrama da sociedade de controle.

Neste ponto de interface entre as duas funções do agenciamento Estado

– eleitor o voto obrigatório é um incentivo à adesão de massa ao Estado. Como o

Estado é uma abstração formada a partir de um contrato, o voto obrigatório é uma

das peças de estratégia usada por este para se materializar, para mostrar a sua

necessidade e justificar sua existência. Este é, portanto, o efeito de um diagrama

que pretende hipertrofiar a participação política impotente: enquanto existir a

impressão por parte de um divíduo de que este é chamado a participar das decisões

que afetam o Estado ou a sua formação, ao eleger os representantes que dele

fazem parte, este mesmo divíduo estará inserido dentro de uma atmosfera de

sensação de liberdade que lhe é concedida e tem a impressão de estar dentro do

jogo político, apesar da inocuidade do mesmo. Ele não tem a impressão de estar

dentro do jogo, mas efetivamente está, pois faz valer um princípio básico da

democracia representativa que é a escolha de seus representantes pelo sufrágio

universal.

Colher opiniões é mandatório. Polarizar as escolhas, necessário: o que

importa é fraturar as escolhas entre continuidade e reforma. É necessária a escolha

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de uma banda: não importa o lado que eleitor eleja, o importante é que ele participe.

Votar por si só é o interesse maior do Estado: em quem, branco ou nulo, apenas um

detalhe tático. Votar é afirmar a existência do divíduo como cidadão.

Ao atender o chamado da participação, este cidadão reafirma a existência

do Estado. Ao afirmar tal existência, suas decisões permitem a perpetuação do

mesmo, com a vantagem de se suprimir o questionamento quanto à sua

configuração ou modelo. O Estado estimula a participação através do voto, contanto

que esta de forma alguma coloque em risco a maneira como as relações de poder

estão configuradas: afinal de contas, se eu voto, esse Estado é meu também.

Obrigar a participação é interessante para arrebanhar consenso e perpetuar esta

configuração de poder: eis uma das razões para a existência do voto obrigatório na

democracia representativa brasileira: cidadão-eleitor é fundamental para a

legitimidade de todo sistema.

Portanto, este conjunto de particularidades que compõe a democracia

brasileira, quais sejam, a concentração de poderes sob responsabilidade de um

órgão cuja função é regular e regulamentar nossas eleições e a obrigatoriedade do

voto atendem muito bem uma configuração típica de sociedade de controle. Por

conta disto este voto imaterial possibilitou um incremento na produtividade e uma

elevação de rendimento no exercício de governar quando, segundo o corolário que

sustenta esta sociedade (confiança, participação e segurança), a cédula tende à sua

desmaterialização, e essa transformação atende perfeitamente as demandas do

Estado.

Um efeito colateral e talvez um exemplo mais claro de como o voto

eletrônico preenche o imperativo da participação, que por sua vez atende a um

chamado de Estado que parece dizer que votar é mais importante de que em quem

votamos é a desaparição do voto nulo, voto que historicamente teve sempre um

caráter político e que com a urna eletrônica foi transformado em erro.

O voto nulo nunca deixou de ser uma expressão política - ao contrário do

voto em branco, que externava um certo comodismo por parte do eleitor, o voto nulo

expressava uma opinião política pelo viés da negativa e, algumas vezes, do

protesto. A cédula em papel, antes do advento da urna eletrônica nos anos 1990,

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serviu de suporte para a expressão de descontentamento de setores imensos da

sociedade brasileira e em algumas eleições históricas o voto nulo – a rasura em uma

cédula de papel – serviu de plataforma de resistência, que em tempos de urna

eletrônica foi achatado, completamente esvaziado de sentido político e transformado

em um erro, termo caro à precisão e modulação constante imposta pela sociedade

de controle.

O voto deixou de ser um juízo no campo moral do certo ou do errado e

passou ao campo técnico do erro e acerto com a urna eletrônica, parâmetros que

não são estanques, mas fluidos: podem mudar a qualquer momento, sem a prévia

informação dos participantes, uma modulação constante e universal que regula as

fibras do tecido social. Não estamos mais no campo das leis, mas da jurisprudência.

No entanto, e vale a pena frisar, esta modulação contínua entre erro e

acerto não é a única maneira de regular o tecido social: é apenas mais uma, mais

eficaz, mais produtiva e menos dispendiosa, de melhor relação “custo-benefício”

(outra chave conceitual da sociedade de controle). Existe uma ultrapassagem das

tecnologias da sociedade de controle quando as comparamos com as tecnologias de

regulação da sociedade disciplinar: ela não aniquila as demais, apenas se soma a

elas, e nisso reside seu poder de sedução.

No entanto, esta economia nas forças do controle justifica o esforço

necessário para a digitalização da rede complexamente inter-relacionada entre

eleitores e Estado? A partir do momento que a questão da segurança das urnas

eletrônicas sai do âmbito das teorias conspiratórias ou mesmo de sérios estudos

acadêmicos e ganha corpo, pode ela fazer minar a confiança no processo

democrático e criar uma redução na participação do eleitorado, ainda que este seja

obrigatório? Que tipo de voto será oriundo de uma queda de confiança no sistema

como um todo? Até que ponto a escolha da tecnologia adotada para votar não se

coloca contra o poder e quais articulações são necessárias para que este volte a

operar com um rendimento ótimo?

Apesar das críticas internas e de estudos em outros países que se

propuseram a usar o nosso suporte levarem à conclusão de que o Brasil não está na

linha de frente da tecnologia de informatização do voto, e sim que ultrapassou esta

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linha de forma imprudente e precipitada, até que ponto esta ultrapassagem não

representa uma maneira ótima, do ponto de vista da economia de controle e da

perspectiva estatal, de se colocar em prática a nossa democracia representativa?

Uma das razões pelas quais a escolha da tecnologia de votação constitui-

se em um assunto tão controverso é que não existe estudo sistemático ou evidência

empírica sobre questão tão candente quanto a relação entre tecnologia de votar e os

resultados de uma eleição. Ainda que este impacto seja pequeno, qual seria a sua

influência em eleições acirradas e em qual tipo de eleição esse impacto se faz

notar? Mais: eleições presidenciais, por conta da enormidade de votos, da atenção

dispensada e do esforço necessário para que a manipulação surta algum tipo de

efeito, são mais seguras do que eleições para cargos políticos de menor vulto em

que a fraude, por conta do menor esforço necessário para influenciar um dado

resultado, pode ser executada sem levantar suspeitas? Tecnologia e fraude formam

um par que opera melhor em escalas menores? Todas estão questões ainda

precisam ser respondidas.

Existe um enorme esforço em despertar um ufanismo ingênuo quando se

emprega a tecnologia como uma maneira de nos levar à “vanguarda” da democracia

mundial. O suporte não é o sistema, mas um meio para ele, e o discurso oficial

parece confundir um e outro. Ademais, já foi abordado que discutir a tecnologia

como panaceia contra todas as fraudes é, para dizer no mínimo, ingênuo, no limite,

perigoso.

Fraude e segurança representam um binômio indistinguível, como poder e

resistência formam um duplo na sociedade de controle. Se poder e resistência

compartilham da mesma matriz, o par segurança – fraude, por analogia, evoluirá

concomitantemente no âmbito da urna eletrônica ou do dispositivo que a suceda.

Logo, não existe sistema seguro, mas uma possibilidade de mais segurança, que

reforça a ideia do inacabado, da perpétua reforma. Em prol da possibilidade de mais

segurança é que o dispositivo se fortalece e circula nos enunciados discursivos.

Ceder ao imperativo da digitalização da sociedade de controle nos

sistemas eleitorais brasileiros potencializou a possibilidade de fraude, uma vez que

elas agora não deixam um registro físico de ocorrência, e podem ser executadas em

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uma escala maior do que a falsificação cédula a cédula ou dos boletins de urna que

a tecnologia anterior permitia. Não que necessariamente a cédula de papel seja

mais segura: não é. Mas as oportunidades de fraude criadas pela desmaterialização

do voto, se exigem por um lado refinamento técnico para que uma fraude seja

executada, por outro potencializam esta fraude, uma vez que ela pode ser

perpetrada em maior escala e é de difícil identificação.

Com a eliminação das cédulas físicas, das urnas e dos boletins de urna

após a implementação do voto eletrônico, acreditava-se que as fraudes relacionadas

à cédula de papel seriam eliminadas. Engano: existe uma atualização das maneiras

de votar segundo as novas tecnologias apresentadas, com um agravante: não

sobraram suportes para a constatação de uma evidência física no caso de fraude

em uma votação através de urnas eletrônicas, ainda que seja para se fazer uma

apuração – e menos ainda para se auditá-la.

Aqui aponto um limite deste estudo: mais além das teorias conspiratórias

sobre os porquês de uma implementação tão efetiva e rápida do voto eletrônico no

Brasil, existem inúmeras questões que estão e ficam em aberto sobre nossa

maneira de votar. Este trabalho serve mais como uma cartografia de perguntas do

que um mapa de respostas, e talvez só nisso já exista algum mérito no mesmo.

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