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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Rodrigo de Oliveira Andrade Os estudos sobre a etiologia do câncer na virada do século XX e o médico brasileiro Alfredo Leal Pimenta Bueno Mestrado em História da Ciência São Paulo 2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Rodrigo de Oliveira Andrade

Os estudos sobre a etiologia do câncer na virada do século XX e o médico

brasileiro Alfredo Leal Pimenta Bueno

Mestrado em História da Ciência

São Paulo

2016

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Rodrigo de Oliveira Andrade

Os estudos sobre a etiologia do câncer na virada do século XX e o médico

brasileiro Alfredo Leal Pimenta Bueno

Mestrado em História da Ciência

Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em História da Ciência, sob orientação da Profa. Dra. Ana Maria Alfonso-Goldfarb.

São Paulo

2016

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

Este trabalho não teria sido possível sem o apoio incondicional dos meus

pais, cujo carinho e afeto me ajudaram a chegar até aqui. Minha dívida de

gratidão também se estende à minha companheira Gisele Frederico, por sempre

acreditar em mim, me motivar e amenizar minhas inseguranças; a Carlos

Fioravanti, pelas palavras de conforto e incentivo nos momentos de angústia e

incerteza, por me apresentar parte do material de pesquisa e por me colocar na

rota das pesquisas sobre o câncer; à Ana Maria Alfonso-Goldfarb, orientadora de

notável grandeza intelectual; a todas os professores do Programa de Estudos

Pós-Graduados em História da Ciência da PUC-SP, pelos valiosos

ensinamentos ao longo do curso; aos amigos Angelo Stefanovits, Rodrigo Trevisan

Braga, Shirley Silva, Maria Alice Gonçalves, Lucas Pessoa e Joana Asseff, pelas

agradáveis conversas à mesa do bar; a Guilherme Diniz e André Julião, pela

amizade e também pela leitura cuidadosa do texto, com sugestões preciosas; a

Edjan Santos, pela antiga camaradagem; aos colegas e amigos da Pesquisa FAPESP;

e à CAPES, pela bolsa que custeou este trabalho.

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RESUMO

O século XIX constitui um período de forte incidência de pesquisas no campo

da biologia celular. Com o advento de novas técnicas de microscopia, o

estudo detalhado do comportamento das células possibilitou um melhor

entendimento das condições que favorecem ou determinam o surgimento dos

tumores. A partir de então, diversos cientistas propuseram caminhos conceituais,

médicos ou institucionais de pesquisa e tratamento para a enfermidade. O objetivo

deste trabalho é analisar o panorama de estudos e teorias sobre a etiologia do

câncer em fins do século XIX e início do século XX. Pretendemos

compreender como os conceitos relacionados aos mecanismos da doença

foram construídos e reinterpretados ao longo daquelas décadas e como esse

conhecimento chegou ao Brasil. Para isso, usaremos como estudo de caso os

trabalhos do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, que apresentou

suas ideias sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeariam o câncer em

uma série de artigos na revista O Brasil Médico entre 1926 e 1928. Nesta

dissertação, mostramos que o câncer se transformou durante o século XIX em

uma entidade cada vez mais discutida e estudada na Europa, e que sua

construção como problema médico no Brasil nas primeiras décadas do século

XX se deu em meio a um cenário em que a preocupação maior ainda se

centrava em doenças de maior impacto social, como a tuberculose. Ao mesmo

tempo, verificamos que Pimenta Bueno foi um dos poucos cientistas

brasileiros a investigar a etiologia do câncer, construindo seu discurso a

partir dos escritos de diversos cientistas, recorrendo a esses autores sempre

que preciso a fim de justificar seus pontos de vista. Pimenta Bueno conclui

que o câncer teria as mais variadas causas, todas idênticas pelo só fato de que

agiam produzindo uma irritação, de que resultaria uma super hidratação

celular, sua volta ao estágio embrionário, e, finalmente, o reestabelecimento

de sua capacidade de proliferação.

Palavras-chave: História da Ciência, História da Medicina, Brasil, Etiologia do

Câncer, Alfredo Leal Pimenta Bueno.

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ABSTRACT

The 19th century constitutes a period of strong incidence of researches on cell

biology. With the advent of new microscopy techniques, a more

comprehensive study of cells behaviour has allowed a better understanding

of the conditions that could favour or even determine the appearance of

tumours. From then on, several scientists have proposed conceptual, medical

and institutional pathways of research and treatment against the disease. The

aim of this work is to analyse the panorama of studies and theories on cancer

etiology proposed between the latest decades of 19th century and the first two

decades of 20th century. We intend to understand how the concepts related to

cancer mechanisms have been built and reinterpreted over those decades, and

how has this knowledge arrived in Brazil. In this regard, Brazilian doctor

Alfredo Leal Pimenta Bueno’s work is going to be used as a case study.

Pimenta Bueno presented his ideas on the biochemical phenomena that could

trigger cancer in a series of scientific articles published in the Brazilian

scientific journal O Brasil Médico between 1926 and 1928. In this dissertation, we

show that cancer has transformed into an entity that was more and more

discussed and studied in the Europe over the 19th century, and that its

construction as a medical problem in Brazil during the first two decades of

the 20th century occurred in a scenario in which the attention was still focused

on diseases with a greater social impact, such as tuberculosis. At the same

time, we have verified that Pimenta Bueno was one of the few Brazilian

scientists who investigated cancer etiology, constructing his theory based on

the writings of several scientists, appealing to them whenever necessary in

order to justify his points of view. In his articles, Pimenta Bueno concludes that

cancer could be caused by different agents — all of them would act in the way

of causing an irritation, resulting in an over hydration inside cells, which

would return to their embryonic stage and, finally, reacquire their proliferation

capacity.

Keywords: History of Science, History of Medicine, Brazil, Cancer Etiology,

Alfredo Leal Pimenta Bueno.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................... 1

Capítulo 1

Um flagelo dos tempos modernos ......................................................................... 3

A teoria cromossômica do câncer ......................................................................... 6 A cromatina de Flemming ....................................................................................... 8 Sobre a hereditariedade do câncer ..................................................................... 10 O vírus do sarcoma de Rous ................................................................................ 15 O bacilo do cancro ................................................................................................. 20

Capítulo 2

Um inimigo a ser combatido ................................................................................. 27

De pais para filhos ................................................................................................ 41 O rádio contra o câncer ........................................................................................ 42 A luta contra o câncer no Brasil .......................................................................... 45

Capítulo 3

O câncer sob uma nova abordagem ..................................................................... 50

A trajetória de Pimenta Bueno ............................................................................ 51 Princípios gerais da Trophodynamica funccional ................................................. 58 Da catarata aos tumores ....................................................................................... 69

Considerações Finais ............................................................................................... 79

Bibliografia ............................................................................................................... 83

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“Para produzir e trazer ao seio da Sciencia as migalhas de

nosso saber e as menores parcelas de nossa intellegencia é

necessário inicialmente uma grande independencia de espirito

e crer em que também os outros podem cair em erro...”

Alfredo Leal Pimenta Bueno

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INTRODUÇÃO

O câncer em meados século XIX era considerado uma doença de

reduzida dimensão no campo médico quando comparada a patologias de

maior impacto social, como sífilis e tuberculose, ao passo que suas possíveis

causas, como a fuligem das chaminés e microrganismos como vírus e bactérias,

então começavam a ser melhor discutidas. O conhecimento médico daquela

época frequentemente o aproximava da lepra no que diz respeito ao contágio,

uma vez que se julgava que ambas as enfermidades tinham formas de

transmissão semelhantes, tendo como consequência a necessidade de um

acompanhamento maior de sua incidência e a formulação de estratégias que

evitassem sua disseminação. Ao mesmo tempo, nesse mesmo período, os

avanços técnicos da microscopia, o desenvolvimento do campo da patologia e a

ampliação do conhecimento sobre o funcionamento das células e suas funções

possibilitaram uma compreensão mais ampla da doença, de modo que muitos

médicos e pesquisadores a partir de então propuseram novas ideias sobre os

mecanismos que conduziriam os tecidos ao câncer.

Dessa forma, pretendemos analisar o panorama de estudos e teorias

sobre a origem, ou a etiologia, do câncer em fins do século XIX e início do

século XX. Nosso objetivo é compreender como os conceitos relacionados aos

mecanismos do processo cancerígeno foram construídos e reinterpretados ao

longo daquelas décadas, inclusive no Brasil. Para isso, usaremos como estudo

de caso os trabalhos do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, que entre

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os anos de 1926 e 1928 apresentou suas ideias sobre os fenômenos bioquímicos

que desencadeariam os tumores em uma série de artigos publicados na revista

científica O Brasil Médico.1

Com o propósito de melhor especificar o encadeamento desse processo

histórico, esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro,

apresentaremos o cenário internacional de pesquisas sobre o câncer no século

XIX, discutindo-o à luz de um contexto mais amplo de estudos no campo da

biologia celular. No segundo, vamos discutir como o conhecimento científico

sobre a etiologia da doença chegou ao Brasil, e como o câncer no início do

século XX, aos poucos, transformou-se em uma enfermidade cada vez mais

estudada por médicos e pesquisadores brasileiros. Por fim, no terceiro capítulo,

analisaremos os artigos de Pimenta Bueno publicados na revista O Brasil Médico

para verificar como o médico construiu e defendeu seu discurso sobre a origem

das células cancerígenas à luz de uma abordagem ampla, a partir da qual

procurou integrar áreas como bioquímica, biofísica, fisiologia, patologia e

citologia, entre outras. Nessa parte do trabalho, explicitaremos as fontes de

informação usadas pelo médico para justificar seus argumentos e reforçar seu

ponto de vista sobre os mecanismos da doença.

1 Os artigos de Pimenta Bueno publicados na Brasil Médico foram gentilmente cedidos por Carlos Henrique Fioravanti para o autor deste trabalho.

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CAPÍTULO 1 UM FLAGELO DOS TEMPOS MODERNOS

O século XIX constitui um período de forte incidência de pesquisas no

campo da biologia celular. Com o advento de novas técnicas de microscopia, o

estudo detalhado do comportamento das células possibilitou um melhor

entendimento das condições que favorecem ou determinam o surgimento dos

tumores. A partir de então, diversos médicos e pesquisadores, cada um a seu

modo e com os instrumentos materiais e conceituais de sua época, propuseram

caminhos conceituais, médicos ou institucionais de pesquisa e tratamento para

a enfermidade. Nesse sentido, o objetivo deste capítulo será apresentar o

cenário internacional de pesquisa sobre o câncer no século XIX, discutindo-o à

luz de um contexto mais amplo de estudos no campo da biologia celular.

Um aspecto importante relacionado à etiologia do câncer diz respeito à

concepção de que os tumores se originariam, em última análise, das células.

Como as células normais, as células cancerosas dependeriam do crescimento no

sentido mais básico e elementar, a saber, a divisão celular. É possível dizer que

essa concepção sobre a doença começou a ganhar forma a partir dos trabalhos

do patologista alemão Johannes Müller (1801-1858) e a publicação de seu livro

Über den feineren Bau und die Formen der krankhaften Geschwülste, em 1838.2 O

advento de novas técnicas de microscopia foi determinante para que Müller

pudesse observar em detalhes amostras de tecidos cancerígenos, inferindo que

o câncer surgiria de células, e não da linfa coagulada, como se acreditava até

2 Wagener, The history of oncology, 25.

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então.3 Para Müller, contudo, os tumores não se originariam de células de

tecidos sadios, mas do que ele chamou de blastemas, amontoados de células

indiferenciadas esparsas por entre os tecidos normais.

As ideias de Müller foram fundamentais para que, mais tarde, seu ex-

aluno, o médico polonês Rudolf Virchow (1821-1902), fosse além e refutasse a

então chamada Teoria dos Blastemas, demonstrando que as células cancerígenas

poderiam se originar de células normais.4 As considerações de Virchow sobre a

etiologia do câncer se baseiam em dois princípios básicos, postulados por ele

próprio em 1855, a saber, os seres vivos são constituídos de células e as células

só poderiam surgir de outras células. Com isso em mente, Virchow propôs que

se as células só nasciam de outras células, então, o desenvolvimento dos tecidos

só se daria pelo aumento do número ou do tamanho das mesmas. A esses dois

mecanismos ele atribuiu os termos hiperplasia e hipertrofia.5 Essa explicação o

ajudou a dar forma a uma nova compreensão dos crescimentos normal e

patológico das células.

Virchow identificou a capacidade de proliferação das células em 1858, ao

analisar amostras de tecidos cancerígenos com o microscópio. Tratava-se de

uma hiperplasia celular, ou seja, de uma condição de crescimento anárquico das

células. Apesar de ter verificado e descrito essa anormalidade, o médico

identificou sua causa sustentando que a inflamação, isto é, a reação do corpo a

um dano perigoso por meio da ativação do sistema imunológico, acionaria a

proliferação das células, favorecendo o surgimento de células malignas que 3 Ibid., 26. 4 Lew, The Truth about Cancer, 18. 5 Mukherjee, O imperador de todos os males, 19.

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dariam origem a outras células com as mesmas características. Dessa forma, o

médico inferiu que o câncer resultaria de um ambiente fisiologicamente

perturbado ao redor das células sadias.6

As ideias propostas pelo patologista alemão ampliaram a compreensão

sobre os desenvolvimentos normal e patológico dos tecidos, possibilitando que

muitos cientistas avançassem na elaboração de uma teoria mais sofisticada

sobre a doença após sua morte, aos 80 anos, em 1902. O também patologista

alemão Julius Cohnheim (1839-1884), por exemplo, defendeu que os tumores

seriam determinados pelo crescimento de células embrionárias esparsas pelo

organismo.7 Portanto, não seria exagero dizer que o câncer em fins da segunda

metade do século XIX já era explicado com base em definições mais precisas:

uma doença de hiperplasia patológica, na qual as células adquiriam uma

vontade autônoma de dividir-se. Essa divisão celular descontrolada resultaria

em massas de tecidos, os tumores, que invadiam órgãos e destruíam tecidos

normais, podendo se espalhar de um lugar para outro, espalhando a doença por

outros tecidos. Em última análise, quase todos os tipos de câncer nasceriam de

células ancestrais que, tendo adquirido a capacidade ilimitada de divisão,

dariam origem a um número ilimitado de descendentes. Logo, de acordo com

Virchow, a omnis cellula e cellula e cellula...

6 Prudente, O cancer precisa ser combatido, 21. Como veremos mais adiante, a concepção de que inflamações crônicas, ardendo por décadas, conduziriam as células ao câncer será um ponto importante na teoria do médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno sobre a etiologia da doença. 7 Ibid., 23.

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A teoria cromossômica do câncer

Um dos muitos cientistas que se beneficiou das ideias propostas por

Müller e Virchow foi o zoólogo alemão Theodor Heinrich Boveri (1862-1915).

Como eles, Boveri explorou as possíveis causas do câncer ao estudar os

mecanismos de divisão celular de ovos de ouriço-do-mar em 1902.8 Como a

maioria dos ovos do reino animal, o do ouriço-do-mar, quando fecundado, cria

uma barreira praticamente instantânea que impede a entrada de outros

espermatozoides. Uma vez fertilizado, o ovo inicia o processo de divisão celular

— a mitose —, pelo qual uma célula “mãe” se divide para dar origem a uma

célula “filha”. A cada mitose, duplicam-se também os cromossomos, as

estruturas no interior das células que contêm os genes. Durante a mitose, os

cromossomos são duplicados e divididos igualmente entre as células-filhas.

Para melhor estudar o processo de divisão dos cromossomos, Boveri,

então professor de zoologia e anatomia comparada na Universidade de

Würzburgo, Alemanha, elaborou um experimento em que eliminou a

membrana que impedia que os espermatozoides invadissem o ovo de ouriço-

do-mar, induzindo uma dupla fertilização. Fazendo isso, Boveri provocou um

caos cromossômico. O ovo não conseguia mais dividir os cromossomos

adequadamente entre as células-filhas, que não obtinham a combinação correta

de 36 cromossomos.9 As células, então, em um movimento semelhante ao de

8 Boveri, “Concerning the origin of Malignant Tumours”, 4. As informações sobre o trabalho de Theodor Boveri foram obtidas de uma versão de seu artigo traduzida para o inglês por Henry Harris, editor da revista científica Journal of Cell Science. 9 Na espécie usada por Boveri, o número de cromossomos era 36. Em um zigoto monoespermático normal, os 36 cromossomos duplicam-se antes da primeira divisão para formar 72 cromossomos e estes são distribuídos equitativamente na primeira divisão mitótica, indo 36 para cada célula-filha.

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uma supernova, voltavam-se para dentro de si e morriam. A constatação

permitiu a Boveri inferir que os cromossomos desempenhavam um papel

importante, talvez fundamental, na divisão e no desenvolvimento adequado

das células e que mitoses aberrantes poderiam levar à sua distribuição desigual

entre as células, o que seria prejudicial na maioria dos casos. Boveri apresentou

suas ideias em três artigos, Zellenstudien I, II e III, publicados em 1887, 1888 e

1890.

O interesse de Boveri pelo processo de divisão cromossômica começou a

se desenhar em 1885, quando ele começou a trabalhar no laboratório do zoólogo

alemão Richard Hertwig (1850-1937), cujas pesquisas o haviam permitido

concluir que o núcleo celular seria o responsável por carregar as bases físicas da

hereditariedade e que o fenômeno da fecundação normal seria resultado da

união de um núcleo de esperma com um núcleo do óvulo.10 As contribuições de

Hertwig foram importantes para que Boveri, mais tarde, pudesse elaborar seus

experimentos; também foram igualmente importantes para o patologista

alemão David Paul von Hansemann (1858-1920), que foi além e investigou

como os cromossomos se comportavam durante o processo de divisão das

células cancerígenas. Em 1890, ao examinar células cancerosas manchadas com

corantes de anilina, Von Hansemann observou que seus cromossomos estavam

partidos, desgastados, quebrados e, em alguns casos, rejuntados; uma

constatação importante, uma vez que representava um primeiro indício de que

a divisão descontrolada dessas células poderia se dar a partir de um defeito

cromossômico. No entanto, é importante ressaltar que as pesquisas sobre os

10 Manchester, “The origin of malignant tumours”, 384.

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mecanismos de divisão celular vinham sendo feitas, pelo menos, desde a

década de 1850, sobretudo com os estudos de Virchow e do biólogo alemão

Walther Flemming (1843-1905), que analisou o processo de proliferação das

células usando ovos de salamandra. Tendo em conta a relevância de suas ideias

para os estudos de Boveri e Von Hansemann, faremos um breve desvio para

tratar de suas pesquisas.

A cromatina de Flemming

O período em que Flemming iniciou seus estudos sobre o processo de

divisão celular constitui uma época de forte incidência de pesquisas no campo

da biologia celular. Sendo assim, é importante destacar que o botânico Matthias

Schleiden (1804-1881) e o psicólogo Theodor Schwann (1810-1882), ambos

alemães, haviam há alguns anos proposto a teoria celular segundo a qual os

seres vivos seriam formados por minúsculas porções de matéria viva, chamadas

células. Por sua vez, o botânico belga Barthélemy Charles Joseph Dumortier

(1797-1878), em 1832, observou em plantas a divisão de uma célula em duas,

fenômeno por ele chamado de fissão binária. Um ano mais tarde, em 1833, o

também botânico, mas escocês, Robert Brown (1773-1858) descreveu uma

estrutura de aspecto semelhante ao de um ovo no interior das células, a qual

mais tarde atribuiu o termo núcleo11, ao passo que o fisiologista polonês Robert

Remak (1815-1865), em 1855, fez descrições importantes relacionadas aos

processos que se desencadeavam no núcleo das células durante a divisão. Com

11 Brown, “Mode of fecundation in Orchidae and Asclepiadeae”, 685.

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este breve resumo do contexto científico no campo das pesquisas em biologia

celular, pretendemos pôr em evidência o fato de as pesquisas sobre o processo

de divisão celular estarem em curso há quase meio século quando Flemming

passou a se interessar pelo comportamento individual das células. Dentre as

pesquisas em desenvolvimento à época, uma merece destaque.

Em 1873, o zoólogo alemão Anton Friedrich Schneider (1831-1890),

estudando o mecanismo de divisão celular, observou que durante o processo o

núcleo das células transformava-se em uma estrutura semelhante ao de uma

haste, que se condensava no centro das células. Esse fenômeno levou Schneider

a sugerir que o núcleo das células se deformava durante a divisão. Walther

Flemming decidiu investigar esse processo e nos anos seguintes se propôs

descrevê-lo em detalhes. Em seus estudos, ele verificou que a rede e as

armações no interior do núcleo das células se transformavam em minúsculos

filamentos que, em seguida, dividiam-se em dois grupos. Estes, por sua vez,

formavam meadas, a partir das quais as estruturas do núcleo reapareciam.12

Flemming, então, desenvolveu um experimento em que manchou células de

salamandra com o corante de anilina. As manchas realçavam uma substância

azul, fina como um fio, no interior do núcleo das células, que condensava e se

iluminava pouco antes do início da divisão. Em 1879, Flemming cunhou a essas

estruturas o termo cromatina.13 Anos depois, em 1888, o anatomista alemão

Heinrich Wilhelm Waldeyer (1836-1921) atribuiu o termo cromossomo aos

filamentos identificados por Flemming.

12 Paweletz, “Walther Flemming”, 74. 13 Ibid.

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Theodor Boveri certamente conhecia esses trabalhos, sobretudo os de

Von Hansemann, de modo que com base em seu experimento com ovos de

ouriço-do-mar, e com o conhecimento que havia adquirido no laboratório dos

irmãos Hertwig, concluiu que anormalidades cromossômicas desencadeadas

por mitoses aberrantes poderiam ser a causa do crescimento patológico

característico do câncer.14 Para ele, a combinação incorreta dos cromossomos

geraria uma célula maligna dotada de uma capacidade incomum de crescer e se

multiplicar de modo descontrolado.15 Essa característica, por sua vez, era

transmitida para as células descendentes.16 Em última análise, a propriedade

essencial das células tumorais, para Boveri, não era a doença em seu sentido

estrito e tradicional, mas no sentido de as células tomarem a direção errada.17

Ao propor sua teoria cromossômica para a origem do câncer, Boveri ajudou a

estabelecer as bases para a concepção da doença como uma enfermidade

genética.18

Sobre a hereditariedade do câncer

Em 1866, a relação entre câncer e hereditariedade começou a emergir na

Europa, sobretudo com os trabalhos do médico francês Pierre Paul Broca (1824-

1880) e a publicação de seu livro Traité dês Tumeurs.19 A obra, publicada em dois

volumes, apresentava uma revisão ampla e histórica das ideias sobre os 14 Boveri, 7. 15 Marte, “Cancer as a genetic disease”, 8. 16 Balmain, “From Boveri and Mendel to microarrays”, 79. 17 Manchester, “The origin of malignant tumours”, 385. 18 Boveri, 10. 19 O trabalho de Paul Broca foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 233-34.

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tumores, além de discussões sobre classificações mais recentes da doença e de

seus meios de propagação e formas de tratamento paliativas ou cirúrgicas. Em

seu livro, o médico francês estabelece, ainda, a diferença entre cancros

primários e secundários, e apresenta suas ideias sobre as possíveis origens dos

tumores.20

Pierre Paul Broca nasceu em Sainte Foy-la-Grande, França, em junho de

1824. Começou o curso de medicina na Universidade de Paris, em 1841, aos 17

anos. Formou-se três anos mais tarde, em 1844, tornando-se professor assistente

na Faculdade de Medicina em 1853 e de clínica cirúrgica, na mesma instituição,

em 1868.21

O médico francês é recorrentemente lembrado por suas contribuições no

campo da neurociência. No ano de 1861, ao identificar um paciente quase

incapaz de falar devido a uma lesão nos lobos frontais, questionou-se sobre a

possível existência de um centro dedicado à linguagem no cérebro. Como os

casos de pessoas cuja linguagem havia sido comprometida em decorrência de

lesões na região do lobo frontal do hemisfério esquerdo tornaram-se cada vez

mais frequentes, Broca inferiu que a expressão da linguagem seria controlada

por apenas um dos hemisférios, quase sempre o esquerdo. A área do lobo frontal

esquerdo identificada pelo médico francês como sendo determinante para a

articulação da fala ficou conhecida como a Área de Broca.22 No entanto, Broca

também estudou e escreveu bastante sobre o câncer, fazendo contribuições

importantes sobre a etiologia da doença, sendo talvez um dos primeiros a 20 Krush, “Contributions of Pierre Paul Broca”, 126. 21 Ibid. 22 Gusmão, Silveira & Cabral Filho, “O nascimento da moderna neurocirurgia”, 1150.

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descrever o caso de uma mesma família com alta prevalência de casos de câncer

de mama.

Para ele, os mecanismos que desencadeariam a formação dos tumores

poderiam variar; os tumores, argumentava, surgiam de uma ação local, como

inflamações ou contusões, ou geral. As ações gerais se desenhavam quando

novos canceres se desenvolviam, a partir do primeiro, em outros órgãos do

organismo. O médico não considerava os tumores uma consequência de um

problema de nutrição local, mas ao que ele chamou de diátese. Vejamos como o

médico francês a define em seu livro Traité dês Tumeurs:

A diátese não é uma doença, mas apenas a causa da

doença; não é nem mesmo uma suposta causa, porque não

se enquadra no âmbito dos sentidos; esta é uma visão

teórica do espírito, não um fenômeno observado ou

observável; emerge do raciocínio; como o raciocínio que

admitimos para explicar a hereditariedade.23

Segundo o médico francês, a diátese produziria o primeiro câncer, que

produziria uma infecção. Esta, por sua vez, produziria o que ele julgava serem os

tumores secundários, a caquexia e, por fim, a morte. Essa predisposição, para

Broca, era transmitida de modo hereditário, como ele mesmo ressalta:

Esta predisposição mortal, impossível de se escapar,

inacessível à cirurgia, e até mesmo ao tratamento médico

ou interno, é uma indicação de um estado geral que

precede cada manifestação local, a qual persiste depois da

cirurgia, e que determina a reincidência da mesma forma

23 Broca, 333.

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que produz o primeiro tumor. Quando olhamos além, em

certos casos, essa predisposição é transmitida de modo

hereditário por várias gerações.24

Sua mulher havia sido diagnosticada com câncer de mama há alguns

anos, de modo que o médico decidiu reconstituir o pedigree de sua família para

tentar demostrar que o câncer poderia ser transmitido em uma mesma família,

um fenômeno que muitos médicos consideravam apenas coincidência. Broca

listou as mortes causadas por câncer de mama em cinco gerações da família de

sua esposa entre os anos de 1788 e 1856 a partir da Sra. Z, que havia morrido em

decorrência de um câncer de mama em 1788, aos 60 anos.25 Muitos de seus

filhos também tinham morrido em decorrência de diferentes tipos de canceres,

incluindo quatro filhas, que se casaram, tiveram filhos e, assim como a Sra. Z,

morreram por causa da doença, duas de câncer de mama e duas de câncer no

fígado. Broca continuou a monitorar os filhos dos filhos das filhas da Sra. Z até

a quinta geração. Ao todo, o médico registrou 16 mortes causadas pelo câncer

nas gerações estudadas da família da Sra. Z.26

Àquela época, na França, a incidência de câncer em pessoas acima dos 30

anos era de 30 para cada 1.000 habitantes, ou 3 para cada 100 habitantes. Broca,

então, concluiu que a influência da hereditariedade havia aumentado o risco do

desenvolvimento de câncer na família da Sra. Z 15 vezes a média da população

geral da França, fazendo com que a relação para os homens fosse de 1 para 7, e

24 Ibid., 331. 25 Ibid., 151. 26 Ibid.

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14

de 14 em 19, para as mulheres.27 Dessa forma, Broca sugeriu que os tumores

poderiam se formar anos, mesmo décadas, antes da manifestação dos primeiros

sintomas, e que o câncer, ou o mecanismo primeiro que o desencadearia,

poderia permanecer “adormecido” por muitos anos até manifestar-se,

devastando os tecidos em meses, em alguns casos. Eis o que ele diz sobre isso:

Um indivíduo em que estão reunidas as condições

desconhecidas que o expõe e mais tarde se tornam

cancerígenas pode transmitir à sua posterioridade este

grupo de condições antes mesmo que elas tenham se

manifestado nele próprio. Além disso, tendo recebido a

diátese de um de seus antepassados, esse indivíduo pode

escapar, por toda sua vida, longa e saudável, das

consequências desse estado hereditário, podendo

transmitir para um de seus filhos a doença da qual foi

poupado.28

A hereditariedade normal e a hereditariedade do câncer constituíram o

que Broca definiu como atavismo, o reaparecimento de certa característica no

organismo após várias gerações de ausência. Diante disso, ele inferiu que a

hereditariedade do câncer poderia permitir que muitas pessoas vivessem uma

vida saudável, mesmo carregando a diátese da doença.29 Vejamos o que ele diz:

Um fato notável sobre minhas observações relacionadas à

hereditariedade do câncer diz respeito à saúde perfeita

27 Ibid., 152. 28 Ibid., 154. 29 Como veremos mais adiante, alguns anos após a publicação de Traité dês Tumeurs, o oftalmologista brasileiro Hilário Soares de Gouvêa ofereceu novas evidências de uma causa genética hereditária do câncer, tornando-se talvez um dos que melhor documentaram a capacidade de alterações genéticas gerarem células anormais e serem transmitidas de pais para filhos. Vide página 44.

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apreciada por longos anos pela maioria das pessoas que

trazem consigo ao nascer o germe desta doença.30

O vírus do sarcoma de Rous

Após vários médicos e pesquisadores terem demonstrado que doenças

infecciosas como a tuberculose, a sífilis e a lepra poderiam ser causadas por

microrganismos, a hipótese de que o câncer também poderia ser causado por

bactérias ou vírus ganhou força na Europa, atravessando o oceano Atlântico.

Nos laboratórios do Instituto Rockefeller de Pesquisa Médica, em Nova York,

Estados Unidos, um jovem virologista chamado Francis Peyton Rous (1879-

1970) afirmava ter identificado em uma galinha um sarcoma transmissível,

maligno e capaz de se espalhar por todo o organismo.31

No ano de 1909, Peyton Rous recebeu em seu laboratório no Instituto

Rockefeller uma galinha com um tumor grande na região do peito. O inchaço,

largo e irregular, havia se desenvolvido sem comprometer a saúde do animal.

Após observá-lo, Rous desenvolveu um experimento em que transplantou o

tumor para uma galinha saudável. Para isso, inoculou no peito e na cavidade

peritoneal do animal pedaços do sarcoma, verificando, mais tarde, que pedaços

do tumor voltavam a crescer quando inoculados em outras galinhas da mesma

raça, a Plymouth Rocks.32 Peyton Rous descreveu seus resultados em um artigo

publicado no ano de 1910 no Journal of Experimental Medicine.

30 Broca, 153. 31 O trabalho de Peyton Rous foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238. 32 Rous, “A transmissible avian neoplasm”, 697.

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16

Neste momento, portanto, a descoberta e o estudo de

tumores transmissíveis em novas espécies ou tipos de

animais têm um valor excepcional. E é por essa razão que

um sarcoma de uma galinha — o primeiro tumor aviário

que se provou poder ser transplantado para outro

individuo — será tratado com algum detalhe.33

No entanto, ainda que importantes, suas conclusões não foram recebidas

com bons olhos por outros estudiosos da mesma época. O câncer àquela época

já era considerado uma doença de origem celular, de modo que, segundo eles,

era de se esperar que ao transferir as células de um organismo para o outro se

transferisse também as células cancerígenas. Rous, então, foi além e, no ano de

1911, publicou na mesma revista científica outro artigo descrevendo resultados

ainda mais instigantes. Ao transferir tumores de uma ave para outra, ele filtrou

as células em crivos celulares cada vez mais finos, até que as células e bactérias

fossem eliminadas da mistura e só restasse o líquido filtrado derivado delas.34

Rous esperava que a transmissão tumoral parasse, mas os tumores continuaram

a se propagar com eficácia, às vezes até aumentando sua transmissibilidade à

medida que as células desapareciam da mistura. Vejamos o que ele escreveu:

Para os primeiros experimentos neste ponto, filtros de

papel comuns foram usados e o tumor foi suspenso em

solução de Ringer. Era esperado que a fina barreira de

papel, que permite a passagem de algumas células

vermelhas do sangue e os linfócitos, fosse suficiente para

conter o tumor e tornar inócuo o que foi filtrado. Essa tem

sido a experiência de outros pesquisadores em

33 Ibid., 696. 34 Marte, 8.

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experimentos com tumores em camundongos e cães. Mas

no presente exemplo, crescimentos característicos

seguiram a inoculação de pequenas quantidades do

aguado filtrado, ou do fluido sobrenadante obtido após

centrifugação de uma emulsão do tumor.35

Rous concluiu que tumores malignos seriam causados, portanto, por um

minúsculo parasita não observável pelo mais potente microscópio e que, por

isso, era capaz de passar sem grandes dificuldades pelos filtros.

A primeira tendência aqui será a de se considerar o agente

autoperpetuador nesse sarcoma de galinha como um

organismo parasitário. A analogia com várias doenças

infecciosas do homem e dos animais inferiores, causadas

por organismos ultramicroscópicos, dá suporte a este

ponto de vista acerca dos resultados, os quais estão sendo

direcionados à sua verificação experimental no presente

trabalho.36

Este agente foi mais tarde demonstrado ser um vírus, sendo nomeado

como Vírus do Sarcoma de Rous (RSV, na sigla em inglês). A importância do

achado foi prontamente reconhecida. Em sua edição de 14 de fevereiro de 1912,

o jornal The New York Times publicou uma pequena reportagem sobre os

resultados obtidos pelo virologista norte-americano, destacando logo no início

do texto que Rous havia encontrado evidência de que doença não era orgânica,

como se acreditava até aquele momento. Aos poucos, as descobertas

apresentadas por Rous ganharam mais visibilidade, ajudando a ampliar o então

35 Rous, “A sarcoma of the fowl”, 397. 36 Ibid.

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emergente campo da virologia tumoral.37 Em 1966, então com 87 anos de idade,

o virologista norte-americano foi laureado com o Prêmio Nobel de Medicina ou

Fisiologia pelas suas contribuições.

Antes de continuarmos, convém lembrar que Peyton Rous não foi o

primeiro a afirmar ter identificado um agente capaz de desencadear a formação

de tumores, como a reportagem publicada no jornal New York Times faz questão

de destacar. O próprio virologista, ao receber o Prêmio Nobel, lembrou que

outros pesquisadores haviam igualmente encontrado evidencias de vírus

capazes de induzir a formação de tumores38, entre eles Oluf Bang (1881–1937) e

Vilhelm Ellerman (1871–1924), ambos pesquisadores da Universidade de

Copenhague, Dinamarca.39

Ademais, quase uma década antes, em 1901, o médico francês Eugène-

Louis Doyen (1859-1916) anunciava à Academia de Medicina de Paris que havia

isolado o microrganismo responsável por pelo câncer, então chamado ele de

Micrococcus neoformans40.41 Doyen escreveu bastante sobre o câncer, fazendo

uma série de experimentos que lhe permitiram inferir algumas ideias sobre a

origem, o desenvolvimento e as possíveis formas de regressão de tumores, os

quais, segundo ele, se originavam todos do mesmo micróbio da neoplasia.42

37 Weiss & Vogt. “100 years of Rous sarcoma virus”, 2354. 38 O episódio foi citado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238.39 Van Epps. “Father of the tumor virus”, 320. 40 O trabalho de Eugène Doyen sobre possíveis origens e tratamento de câncer foi apresentado e previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 236-40.41 Doyen, Étiologie et traitement du cancer, 20. 42 O termo neoplasia, como vimos, foi cunhado por Rudolf Virchow em referência ao crescimento novo e inexplicável das células, as quais pareciam possuídas por um ímpeto de crescer e se multiplicar.

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Para Doyen, o Micrococcus neoformans provocaria uma inflamação nas

células com as quais entrava em contato, fazendo com que começassem a se

proliferar descontroladamente.43 O médico francês também escreveu sobre

imunologia, examinando as formas pelas quais o organismo se defendia das

bactérias que poderiam causar câncer. Em seu livro, Le Cancer, publicado em

1909, ele escreve:

O problema do câncer, há muito tão complexo, tornou-se

muito mais simples desde as descobertas recentes no

campo da imunidade, uma vez que o processo canceroso

aproxima-se sensivelmente da maior parte dos processos

infecciosos crônicos, especialmente da tuberculose.44

Em sua obra, Doyen apresenta o câncer como uma doença infecciosa

crônica, que poderia ser induzida por meio da injeção de microrganismos, e que

se desenvolvia mais facilmente em células que já haviam sido irritadas por

infecções anteriores. Em 1910, Doyen descreveu vários casos de cura de

diversos tipos de câncer, apresentando duas conclusões importantes. Uma delas

era que o câncer poderia a partir daquele momento ser considerado uma

doença curável.45 A outra é que os resultados obtidos por ele com uma vacina

que havia concebido apenas para os casos de câncer confirmados sugeriam a

possibilidade de obter imunidade preventiva, sob o argumento de que “a

43 Doyen, Étiologie et traitement du cancer, 20. 44 Doyen, Le Cancer, 1. 45 Ibid., 358.

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vacinação antineoplásica seria o único tratamento geral capaz de lutar contra a

extensão profunda do câncer”.46

Os primeiros resultados obtidos do uso de injeções de

microrganismos em várias doenças infecciosas me

empenharam a combinar a injeção desses líquidos e de

duas vacinas, compostas uma de toxinas e a outra de

toxinas e micróbios mortos, que emprego no câncer desde

1901.47

No entanto, os casos de sucesso começaram a se tornar cada vez mais

raros, uma vez que os médicos a quem ele havia doado algumas ampolas de

seu medicamento verificaram que o microrganismo isolado pelo médico era, na

verdade, um organismo saprófito comum em qualquer pessoa, sadia ou

doente.48

O bacilo do cancro

De fato, desde o advento da bacteriologia, muitos cientistas passaram a

buscar um possível agente microbiano ou parasitário como responsável por

desencadear o câncer. Desse modo, vários agentes vivos foram apresentados.

Também no Brasil a ideia de uma teoria parasitária do câncer ganhou força nos

meios científicos. Em fins do século XIX, o médico brasileiro Domingo Freire

(1843-1899), professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tentou

46 Ibid., 371. 47 Doyen, Traitement des maladies, 31. 48 Androutsos, Diamantis & Vladimiros. “Eugène Doyen”, 445-53.

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demonstrar que os tumores poderiam ser desencadeados por microrganismos.49

Em sua obra Premières études expérimentales sur la nature du cancer, publicada em

1887, o médico afirma ter encontrado bacilos de extremidades arredondadas

parecidos com os da febre tifoide no sangue de um indivíduo com câncer.50

Microrganismos iguais haviam sido detectados também no suco canceroso do

tumor, segundo ele.

Alguns anos mais tarde, em 1892, Domingos Freire publicou outra obra

importante, intitulada Novas investigações sobre o micróbio do câncer. Nela, ele

argumentava ser possível curar o câncer por meio da inoculação do soro de

animais previamente imunizados com culturas do bacilo que ele julgava ser o

responsável pela doença.51 O principal ingrediente para a cura da doença,

segundo Domingos Freire, era a toxina alcaloide, produzida pelo

microrganismo isolado por ele em 1887.

No mesmo ano, contudo, o médico alemão Ernst Scheurlen apresentou

resultados bem semelhantes ao do médico carioca à Sociedade de Medicina

Interna de Berlim. Para além do impacto desse trabalho em revistas médicas

internacionais, instalou-se na comunidade científica a dissensão entre Freire e

Scheurlen, fruto da primazia da descoberta do cobiçado agente patogênico.

Pouco tempo depois, surgiram vários outros pretendentes à descoberta do

suposto micróbio do câncer, entre eles o italiano radicado uruguaio Giuseppe

49 O trabalho de Freire sobre a possível origem do câncer foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 234-36. 50 Costa, “Entre a teoria parasitária e a oncologia experimental”, 413.51 Benchimol, Dos Micróbios aos Mosquitos, 245.

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Sanarelli (1864-1940)52, que alguns anos mais tarde também disputaria com

Domingos Freire a prioridade pela identificação do agente responsável pela

febre amarela.53

Freire, à época professor de química orgânica e biológica na Faculdade

de Medicina do Rio de Janeiro, reivindicou a prioridade da descoberta do bacilo

do câncer em um artigo publicado em janeiro de 1888 na revista Gazeta Médica

da Bahia. Vejamos o que o médico brasileiro escreveu após ter lido na Semana

Medica de Pariz do dia 30 de novembro de 1887 o comentário de Scheurlen,

intitulado O bacillo da carcinoma:

N’ella o autor declara que ninguem antes d’elle tinha

conseguido demonstrar a natureza do agente etiologico

do cancro. Peço, pois permissão para observar perante

essa associação que, no principio d’este mesmo anno,

publiquei uma Memoria denominada – Prémiéres études

expérimentales sur la nature du cancer – na qual chego ás

mesmas conclusões que o Sr. Scheurlen.54

Mais adiante, no mesmo artigo, Domingos Freire aproveita para

apresentar outras publicações que ele havia publicado na França e no Rio de

Janeiro e que, de acordo com ele, atestavam seu pioneirismo:

52 A disputa de Freire com Sanarelli e com os europeus a respeito da descoberta do agente causador do câncer foi previamente descrita em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 235. 53 Lódola & Góis Junior, “Teorias sobre a propagação da febre amarela”, 690. Na década de 1880, Domingos Freire defendeu a propagação da febre amarela por meio de uma alga capaz de contaminar a água, o ar, os alimentos frios, os hospitais e os cemitérios. À procura de mérito em relação à sua descoberta, tal como fez em relação à descoberta do agente microbiano causador do câncer, enviou sua teoria ao Congresso Internacional de Budapeste, em 1884. Em 1896, porém, a Academia Nacional de Medicina do Rio de Janeiro, por meio de documentos oficiais do congresso, constatou que seu trabalho havia sido lido, não tendo passado por nenhuma votação, de modo que, por isso, não poderia ter sido aprovado, como o médico havia sugerido em diversos artigos publicados em jornais de grande circulação. 54 Freire. “Prioridade da descoberta do bacilo do cancro”, 331.

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Aproveito a occasião para recordar que varios jornaes, não

só da America mas ainda da França, se occuparam de meu

trabalho de maneira mais ou menos minuciosa. Citarei

entre elles O Paiz, do Rio de Janeiro, e a Revue Scientifique

de Pariz, de 5 de Março de 1887, onde achareis artigos

bastante longos noticiando a descoberta do microbio do

cancro.55

Um artigo de maio de 1888 na Gazeta Médica da Bahia reconheceu a

importância dos trabalhos de Domingos Freire, mas também ressaltou o fato de

os micróbios obtidos por ele e Scheurlen serem muito parecidos. Desse modo,

concluiu que ainda eram necessárias “novas investigações para contraprovar os

resultados obtidos pelos três observadores”.56 De fato, Domingos Freire e Ernst

Scheurlen chegaram praticamente às mesmas conclusões: “no organismo

affectado do cancro, acha-se um bacillo que se desenvolve por sperulação”. A

única diferença entre os dois trabalhos era que o de Freire considerava que o

bacilo se originavam de uma substância gelatinosa chamada zoogléa produzida

por bactérias.

[Em minha Memória] dou a descripção de tumores

cancerosos obtidos por meio de injecção de uma cultura

em porquinhos da India. Em um d’estes tumores, no

intervallo das cellulas cancerosas, encontrei grande

numero de spóros e alguns bacilos.57

Àquela época, Freire era também muito conhecido por causa de seu

trabalho com a febre amarela, então um grave problema de saúde pública no

55 Ibid. 56 Ibid., 333. 57 Ibid.

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Brasil.58 Vale destacar que no ano de 1883 ele tinha recebido autorização para

ampliar os testes da vacina contra a doença, produzida com culturas do

micróbio xanthogenico, que já tinha sido aplicada em 48 pessoas, sem que

nenhum dos vacinados tivesse sofrido o menor acidente sério.

A influência de Domingos Freire, Scheurlen e de outros pesquisadores

que à época acreditavam na existência de um agente microbiano responsável

pelo câncer foi um dos motes para a tese de doutorado do médico português

Luiz da Câmara Pestana (1863-1899), apresentada em 1889 na Escola Médico-

Cirúrgica de Lisboa, Portugal, sob o título “O micróbio do carcinoma”.59 Em seu

trabalho, Câmara Pestana procurou examinar o dilema da época: se o câncer

resultaria de uma causa interna, a chamada diátese proposta por Paul Broca, ou

se existiria algum agente microbiológico externo, e ainda desconhecido, capaz

de promover o surgimento da doença. Vejamos o que ele escreve:

Acceitando portanto a natureza infectuosa do carcinoma, e

como desde o momento em que ha infecção, ha alguma

cousa que cresce e se reproduz que

a vai determinar; pergunto, se esse quid será um microbio

autochtono, a propria cellula do organismo, que por uma

aberração evolutiva, transformarse-hia n'um elemento

extranho e ruim, enchertando-se e reproduzindo-se por

toda a parte, dando logar ás neoplasias primarias e

secundarias, como quer o Sr. D. António de Lencastre, ou

se pelo contrario, o microbio e ́ hetero chtono, extranho ao

organismo e que pela irritação constante que produz, dará

58 O trabalho de Freire sobre a vacina de febre amarela e as estratégias de divulgação de seu trabalho foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 235. 59 O trabalho de Pestana foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 236.

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origem ao tumor? São estas as duas theorias que se

debatem e que procurarei descutir.60

Pestana identificou o tipo de bacilo descrito por Freire, mostrando que as

múltiplas formas que ele parecia assumir nos trabalhos de outros autores eram

senão fases diferentes da evolução do mesmo agente. Eis o que ele diz:

Formas tão variadas descriptas por diversos auctores,

poderiam levar a pensar que differentes bacillos teriam

sido encontrados e que o microbio do carcinoma mudava

de paiz para paiz e de observador para observador. Mas tanto

nas preparações que tinha feito dos tumores, e que acima

referi, como no exame mi- croscopico das culturas, a

mesma diversidade de for- mas encontrei e ora observava

bacterias analogas á descripção de Scheurlen, ora

parecidas com as observadas por Schill, ora identicas ás

que Domingos Freire tinha visto.61

O médico português estudou várias amostras de tumores extirpados por

outros médicos, observando microrganismos por vezes dispostos em cadeias

nos exames corados, bem como seu desenvolvimento em diferentes meios de

cultura. No entanto, não conseguiu isolar um agente microbiano que pudesse

ser associado à enfermidade. “Parece-me que ainda resta um largo e escabroso

caminho a percorrer, para chegar a affirmar com segurança a causa

determinante das neoplasias malignas”, ele concluiu.62

Conforme era o ponto central deste capítulo, julgamos ter indicado que

as pesquisas sobre a etiologia do câncer estavam em voga há algum tempo,

60 Pestana. “O micróbio do carcinoma”, 10. 61 Ibid., 37. 62 Ibid.

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sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Por caminhos silenciosos e menos

trilhados, evidentemente, muitos outros médicos tentaram entender a etiologia

do câncer na segunda metade do século XIX e início do século XX. Não

pretendemos, assim, abarcar todas as teorias ou mesmo todos os pontos de vista

sobre a origem das células tumorais propostas ao longo daquele período, mas

ressaltar o fato de essa ser uma moléstia há muito discutida e estudada em todo

o mundo. No Brasil, como veremos no capítulo a seguir, os médicos e cientistas

priorizavam a definição das melhores — ou mais adequadas — técnicas

cirúrgicas para a extirpação de tumores, a realização de estudos

epidemiológicos que melhor delimitassem o alcance da doença na população e

servissem como base para políticas públicas de combate aos tumores. Poucos

foram os médicos brasileiros que se dedicaram à pesquisa sobre a etiologia do

câncer seguindo protocolos de pesquisa testados e validados

internacionalmente. Dentre eles, podemos citar dois, a saber, o oftalmologista

Hilário Soares de Gouvêa e o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno,

cujas ideias serão apresentadas, analisadas e discutidas mais adiante.

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27

CAPÍTULO 2 UM INIMIGO A SER COMBATIDO

Em 17 de abril de 1859, o médico português, naturalizado brasileiro, José

Francisco da Silva Lima (1826-1910), foi chamado às pressas para examinar

Joanna, uma escrava de 18 anos da vila de Camamu, um dos principais centros

produtores de farinha de mandioca da capitania de Ilhéus no período

colonial.63 Havia cerca de um ano Joanna, com fortes dores no ventre, notara

um caroço do tamanho de uma laranja sensível à pressão dos dedos próximo ao

quadril do lado direito. Após ter convivido com aquele incomodo por muito

tempo, e sem saber a quem recorrer, apelou às sanguessugas, que aplicadas

sobre o caroço pareciam aliviar as dores. Não funcionou. Recorreu, então, aos

purgantes, mas tampouco adiantaram. Pelo contrário, produziram um

sangramento vaginal intenso que quase a matou. E o caroço, indiferente às suas

investidas, crescia progressivamente, estendendo-se em pouco tempo à região

próxima ao umbigo, onde continuou a se desenvolver até chegar à

circunferência de 86 centímetros.64

Ao examiná-la, Silva Lima, diretor dos serviços de clínica médica no

Hospital da Caridade da Santa Casa da Misericórdia da Bahia, verificou um

tumor globoso, duro, desigual em superfície e consistência, e móvel,

deslocando-se como se flutuasse imerso em um líquido, ao passo que a parede

abdominal percorria certo espaço antes de chegar ao contato com o caroço,

63 Silva Lima, “Prenhez extra-uterina de 18 mezes”, 255. 64 Ibid.

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como se se espalhasse furtivamente pelo corpo.65 Ao realizar um exame

ginecológico, o médico constatou que Joanna estava grávida, concluindo mais

tarde que o caroço havia se desenvolvido em consequência de uma concepção

extrauterina, que, por sua vez, desencadeou uma gravidez ectópica, quando o

óvulo é fecundado fora do colo do útero.66 Frente à gravidade da situação, e

por se tratar de um caso que pela primeira vez se oferecia à sua observação, o

médico optou pela retirada do feto, morto, ainda que os riscos de uma cirurgia

naquelas circunstâncias fossem altos. Após ser operada, a jovem escrava

oscilou períodos de melhora e piora, com dores ora mais, ora menos fortes.

Mas, então, o caroço que outrora diminuíra, voltou a crescer, e com ele

voltaram as dores. Joanna não resistiu às complicações e morreu às cinco da

manhã do dia 12 de agosto de 1859, dezenove dias após a cirurgia.67

O relato do médico José Francisco da Silva Lima, publicado no dia 10 de

maio de 1867 na Gazeta Médica da Bahia, constitui uma das muitas referências

que se passou a fazer à questão do câncer na segunda metade do século XIX

por parte da classe médica brasileira, que, motivada pelo que via e ouvia em

congressos europeus e pelo que lia em artigos científicos, aos poucos começava

a discutir a doença de causas incertas.68 Um dos debates da sessão da

Academia Imperial de Medicina do dia 5 de setembro de 1851 tratou da

cirurgia para o câncer de útero, por exemplo. Na ocasião, um dos médicos

lembrou:

65 Ibid., 256. 66 Ibid. 67 Ibid., 255. 68 Teixeira, “O câncer na mira da medicina”, 105.

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29

A maior parte dos cancros que se dizem operados com o

maior successo sem nenhum resultado sinistro posterior

não eram talvez cancros verdadeiros, mas tumores, que

simelhando-os muito com tudo muito differiam delle na

sua intima natureza.69

O trecho acima sugere que àquela época era bastante difícil diferenciar os

tumores malignos, então chamados de cancros verdadeiros, dos benignos. Na

mesma reunião, outro médico defendeu a cirurgia para a maioria dos casos de

câncer, ressaltando o seguinte:

O cancro é muitas vezes e na sua origem quasi sempre

moléstia local, e só se torna moléstia geral pela demora

que ha em fazer a ablação delle, dando-se então occasião a

que haja absorpção da matéria cancrosa, e que a moléstia

assim se torne geral pelo infeccionamento de toda a

economia.70

O câncer no Brasil em fins do século XIX era tratado como um tumor,

um caroço visível e palpável, apenas. A noção de que ele seria não uma, mas

várias doenças, igualmente caracterizadas pela divisão descontrolada das

células, em consequência do “rompimento” de seus circuitos reguladores, aos

poucos começava a ser discutida. Ao mesmo tempo, vale dizer, o câncer no

Brasil era visto como uma doença de reduzida dimensão no campo médico

quando comparada a enfermidades de maior impacto social, como sífilis e

tuberculose. Justamente por isso, como se verá adiante, ainda não parecia ser

uma razão para grandes preocupações por parte do Estado, que tinha papel

69 Annaes Brasilienses de Medicina, 3. 70 Ibid.

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30

crescente na vida social, facilitando e fomentando a atuação dos cientistas na

resolução de problemas tidos como concretos, e que, assim, no campo da

medicina, tinham como prioridade questões sanitárias.71 A percepção sobre o

câncer como um problema de saúde pública começou a mudar no início da

primeira década do século XX, como veremos a seguir.

Em 1902, o advogado Francisco de Paula Rodrigues Alves (1848-1919)

assume a presidência da República tendo o campo da saúde pública como

destaque em seu plano de governo.72 Assim, para executar a reforma sanitária,

escolheu o sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), que assume a Diretoria Geral

de Saúde Pública em março de 1903, tendo como objetivo erradicar doenças

como febre amarela e tifoide, impaludismo, varíola e peste bubônica, entre

outras moléstias que comprometiam a política de estímulo à imigração

estrangeira e, acima de tudo, acarretavam prejuízos ao comércio exterior

devido à imposição de quarentenas às embarcações que atracavam no porto do

Rio de Janeiro.73 As condições de vida na então capital federal vinham se

degradado inexoravelmente na virada do século XX. Paralelamente, a cidade

passava por um intenso processo de metropolização, com a população

crescendo de 522.651 habitantes em 1890 para 1.157.873 em 1920.74

O porto do Rio de Janeiro era, à época, o mais importante do Brasil e o

terceiro em movimento na América Latina. No entanto, tinha uma estrutura

antiquada, incompatível com sua condição de polo catalizador da atividade

71 Moraes & Amorim, “II Congresso Médico Latino-Americano”, 57. 72 Ibid. 73 Ibid. 74 Sevcenko, A revolta da vacina, 75.

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31

econômica nacional. Ao mesmo tempo, a cidade era foco endêmico de uma

infinidade de moléstias, as quais manifestavam toda a sua violência contra os

estrangeiros e migrantes de outros estados, fato que contribuiu para que a

cidade do Rio de Janeiro se tornasse conhecida internacionalmente como

“túmulo dos estrangeiros”, que não desciam dos navios quando estes

chegavam ao porto para evitar qualquer contágio.75 Os países que tinham

relações comerciais com o Brasil começaram, então, a exercer pressões para que

os portos do país fossem saneados.76 Pressionado, o Estado brasileiro assume,

assim, uma atitude mais centralizadora como forma de combate às doenças

epidêmicas, sobretudo durante o período em que Oswaldo Cruz esteve à frente

da Diretoria Geral de Saúde Pública. Foi sob o argumento de que a era de

imprescindível interesse para a saúde pública, que o senador alagoano Manuel

José Duarte (1859-1914) elaborou o plano de regulamentação da aplicação da

vacina obrigatório contra a varíola, cuja publicação oficial no dia 9 de

novembro de 1904 desencadeou aquilo que ficou conhecido como a Revolta da

Vacina, violenta insurreição popular, mais tarde catalisada pela Liga contra a

Vacina Obrigatória.77

Além dessas moléstias, outras duas doenças consideradas vilãs da saúde

pública no Brasil nas primeiras duas décadas do século XX eram a sífilis e a

tuberculose, esta de especial importância para a compreensão das diretrizes

sanitárias daquela época. Isso porque desde o século XIX a tuberculose havia

sido responsável pelo maior número de mortes no Rio de Janeiro, sobretudo

75 Ibid., 63. 76 Bodstein, coord., História e Saúde Pública, 17. Não há no texto consultado indicação da autoria do capítulo no qual nos baseamos para fazer esta citação. 77 Sevcenko, 17.

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entre as populações mais pobres. A doença estava relacionada

majoritariamente às condições de vida e trabalho da população, o que não

acontecia com a febre amarela, que atingia indiferentemente pessoas de

qualquer classe social.78

Contudo, frente à maneira como o número de casos de câncer crescia, e à

ferocidade com que se abatia sobre os homens, indiferente a todo intuito de

cura, artigos médicos sobre a doença tornaram-se mais frequentes,

levantamentos epidemiológicos se intensificaram e o debate se ampliou na

tentativa de se sistematizar a incidência das então chamadas neoplasias

malignas. Em outras palavras, o câncer no início do século XX transformou-se

em uma doença cada vez mais observada pelos médicos brasileiros.79 É neste

contexto que se deram os primeiros esforços de sistematização da incidência da

doença no país, os quais podem ser observados em dois artigos, escritos pelos

médicos Antônio Augusto de Azevedo Sodré (1864-1929) e Olympio Viriato

Portugal (1862-1934).

No dia 15 de junho de 1904, Azevedo Sodré, então professor e diretor da

cátedra de patologia interna da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,

apresentou no II Congresso Médico Latino-Americano, em Buenos Aires, seu

estudo sobre a frequência do câncer no Brasil. O mesmo estudo, em seguida,

seria reproduzido na revista carioca O Brasil Medico80, então um dos principais

periódicos médicos do país. Em seu artigo, Azevedo Sodré alerta os colegas

78 Lódola & Góis Junior, 691. 79 Cuperschmid & Martins, “Instituto de Radium de Minas Gerais”, 1236. 80 Sodré, “A frequencia do cancer no Brazil”, 229. Azevedo Sodré teve papel de destaque na vida médica brasileira, sendo, inclusive, diretor-fundador da revista semanal brasileira de medicina e cirurgia O Brazil Medico.

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brasileiros sobre a crescente incidência da doença, ressaltando as incertezas

para o tratamento de muitas de suas formas e o alto custo das tecnologias

usadas para esta finalidade, além de ressaltar a importância de levantamentos

estatísticos e da criação e implementação de políticas públicas voltadas ao

melhor atendimento das pessoas acometidas pela moléstia, tão sinistra como

caprichosa em sua natureza.

O câncer era uma doença relativamente frequente na Europa, segundo

Sodré. “Por toda parte onde é observado o numero de casos augmenta de anno

para anno”81, escreveu o médico. Analisando a doença pelas mesmas lentes que

a medicina usava para analisar a tuberculose, ele sugere que a alta incidência do

câncer nessas regiões se devia basicamente ao fato de a doença ser própria das

grandes cidades, sendo, portanto, mais frequente em países ricos e mais

desenvolvidos. Vejamos o que ele diz sobre isso:

Esta tendencia progressiva subordina-se de alguma sorte

aos progressos da civilização; pelo menos ella se accentua

sem embargo dos melhoramentos hygienicos, do

augmento do conforto e bem estar, mórmente nos grandes

centros populosos.82

Sodré chegou a essa conclusão examinando o índice de mortalidade por

câncer na França e na Inglaterra. De fato, em 1865, a mortalidade por câncer em

Paris era de 8,4 para cada 10 mil habitantes. Em 1898, esse número havia

subido para 12 por 10 mil habitantes. Por sua vez, em Londres, a média de

mortes por câncer era de 4,8 para cada 10 mil habitantes entre 1861 e 1870, ao

81 Ibid. 82 Ibid.

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passo que de 1881 a 1890 esse número havia subido para 6,8 para cada 10 mil

habitantes.83

Até onde é possível saber, o câncer no Brasil era pouco frequente, ou

mesmo inidentificável, entre os anos de 1894 e 1898, tendo regiões em que

praticamente nunca havia sido registrado um único caso sequer, segundo o

médico.84 Manaus, no Amazonas, não havia registrado nenhum caso de morte

decorrente do câncer em 1897, por exemplo. Tampouco Natal, no Rio Grande

do Norte, em 1896. Ao todo, das 148 mil mortes registradas entre os anos de

1894 e 1898 no Brasil, apenas 690 eram decorrentes de tumores, de acordo com

o levantamento feito por Sodré. Os dados referentes ao número de mortes por

câncer no Brasil reunidos e analisados pelo médico provinham de dados

enviados à Diretoria Geral de Estatística do Rio de Janeiro pelo serviço de

registro civil. Contudo, é importante ressaltar que os registros aos quais ele se

refere encontravam-se em plena fase embrionária, sendo deficientes e um tanto

imprecisos, de modo que os mapas estatísticos, inclusive aqueles sobre os

números de casos de câncer, eram feitos de forma irregular, com interrupções,

como o próprio médico faz questão de ressaltar:

Infelizmente o serviço do registro civil não funcciona

ainda no Brasil com a precisão e regularidade que eram

para desejar, de sorte que os trabalhos feitos com os dados

por elle fornecidos são sempre incompletos e deficientes.85

83 Ibid. 84 Ibid. 85 Ibid., 229.

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35

Em seu artigo, Azevedo Sodré não entra no mérito das possíveis causas

capazes de determinar a frequência do câncer, mas sugere que a doença seria

um problema próprio dos países frios, que oscilavam em relação às latitudes,

tendo, portanto, baixa incidência nas regiões tropicais, mais quentes. Isso fazia

do câncer uma doença de baixa importância do ponto de vista epidemiológico

no Brasil. Eis o que ele diz sobre isso:

E’ fóra da duvida que a raça preta goza de uma relativa

imunidade e que mesmo entre os brancos, ha differenças

sensiveis na predisposição para o cancer que apresentam

os fracenzes, suissos, allemães, inglezes, italianos,

hespanhóes e portugueses.86

Mais adiante, o médico discorre sobre a maior incidência do câncer em

pessoas de pele clara, citando levantamentos internacionais:

Nos Estados Unidos, os indivíduos da raça branca pagam

muito maior tributo ao cancer do que os pretos. (...) o

cofficiente de mortalidade em 10.000 brancos é de 2,7, ao

passo que em igual numero de pretos é 1,2.87

Ainda com base em dados apresentados por pesquisadores norte-

americanos, Azevedo Sodré volta a sugerir que o câncer seria um problema

próprio dos países frios, uma vez que os de clima quente, dizia o médico, eram

pouco propícios ao desenvolvimento da moléstia, de tal modo que os países da

África gozavam de tradicional reputação pela raridade com que se observava a

frequência da doença, assim como na Jamaica e no México, nas regiões do

86 Ibid., 231. 87 Ibid.

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Caribe e da América Central, onde “ele [o câncer] é quasi desconhecido”.88 A

seguir, a conclusão de Sodré:

Não admira, pois, que o cancer seja raro no Brazil, que

tem ¾ partes do seu vastissimo territorio encravadas entre

o equador e o tropico de Capricornio, e que se o observe

mais vezes ao Sul que ao Norte deste paiz. [...] No Brazil o

cancer é molestia relativamente muito rara, posto que em

certas localidades o numero de casos tenha augmentado

nos últimos annos; a fraquencia do cancer no Brazil

obedece francamente á influencia climaterica, variando

conforme as latitudes; No Brazil o cancer se assesta com

assignalada predilecção no utero [...] muitissimo mais

frequente do que a gástrica e a hepática.89

As considerações de Azevedo Sodré sobre a baixa incidência do câncer

no Brasil, aliada à sua despreocupação quanto à possibilidade de a doença se

espalhar pelo país, sugere que os médicos brasileiros atribuíam pouca

importância ao câncer nas primeiras duas décadas do século XX. As atenções

voltavam-se para a tuberculose, então responsável pela maioria das mortes.

Pode-se dizer que a percepção médica sobre o câncer começou de fato a mudar

em 1906, com a I Conferência Internacional sobre o Câncer, em Paris.

Durante a conferência, evidenciou-se a expansão da organização e do

controle do câncer em outros países, de modo que a classe médica brasileira

pôde se aproximar das mesmas preocupações a respeito da doença há algum

tempo observadas em países da Europa — sobretudo Alemanha, França e

88 Ibid., 231. 89 Ibid., 232.

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Inglaterra — e nos Estados Unidos. Esse intercâmbio de conhecimento sobre o

câncer parece ter contribuído significativamente para mudar a forma como os

médicos encaravam a doença no Brasil.90 Essa mudança pode ser observada de

forma mais nítida em um artigo escrito pelo médico Olympio Portugal,

publicado em 11 de novembro de 1909 na primeira página do jornal O Estado de

São Paulo e mais tarde reproduzido na íntegra n’O Brasil Médico. Vejamos o que

ele diz:

A frequencia da moléstia que vimos crescer nos diversos

paizes de sete a 17, 24, 27 e até 80 por cento da

mortalidade, também entre nós sofreu egual evolução. [...]

O que apuram as estatísticas, sem face á dúvida, é a curva

ascensional da cancerose. A clinica, por mãos de

cirurgiões e de médicos, tactea cada dia a ríspida verdade;

a demografia toma-lhe o peso e avisa; sabios e

humanistas, movidos a egual fervor, dão alarme aos

poderes, como na Allemanha e na Inglaterra, onde a

medicina alcança efficaz collaboração.91

Segundo Olympio Portugal, “nunca foi maior o esforço de sabios e

philanthropos em decifrar o enigma da estranha enfermidade, que tanto se

alastra como se esquiva ao conhecimento de sua causa”.92 Em outro trecho, o

médico vai além e compara a tuberculose, “mais ou menos silenciosa em seus

ataques, solapando no intimo, lenta e recatada, sem grande aviso de dores”,

com o câncer:

90 Teixeira, 106. 91 Portugal, “O problema do cancer”, 43. 92 Ibid., 34.

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38

Esse doe, amargando os curtos silencios do paciente com

o lance inesperado de punhaladas vivas; corróe; ulcéra;

deixa escorrer de si tão repulsiva sânie que exhala, como

nenhuma, um fetido que humilha. E quando, baixo a

baixo, anemiado e exhausto, côr de palha, o paciente não

conta mais com a hormonia dos humores, - arrebenta a

sua chaga em sangue, rutilando sobre as miserias da carne

morta e putrefacta a ironia vermelha da vida que se

esvae.93

Nascido na cidade fluminense de Rio Claro, no Rio, Olympio Viriato

Portugal formou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro

em 1887, trabalhando como médico no Hospital de São João Batista de Niterói

por sete anos, quando, então, mudou-se para São Paulo, onde atuou como

jornalista, colaborando com textos descritivos e estatísticos em várias

publicações. Muito amigo de Júlio César Ferreira Mesquita, jornalista,

advogado e diretor do jornal O Estado de S. Paulo, o médico colaborou por anos

com a publicação. Em seu artigo n’O Estado, Portugal refuta os dados

apresentados cinco anos antes por Azevedo Sodré, os quais sugeriam uma

baixa incidência da doença no Brasil. Em seu estudo, Portugal ressalta o fato de

os números apresentados por Sodré serem muito otimistas e apresenta novos

dados em contrarresposta. Estes, por sua vez, sugerem que a incidência do

câncer no Brasil na verdade era alta, principalmente nas cidades do Rio de

Janeiro e de São Paulo.

Nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, tal qual o

proprio Azevedo registrou, o coefficiente differiu para

93 Ibid., 43.

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39

mais, na mesma época, ascendendo a 2,8 e 2,5. [...] A cifra

optimista decorre da imprecisão de um dos seus factores,

pois que a especificação da <<causa mortis>> nos

registros civis do interior dos Estados raramente se

esclarece com attestado medico e não póde aspirar o

minimo alcance nosologico.94

É interessante ressaltar que àquela época, em São Paulo, a maioria dos

artigos publicados na imprensa eram escritos por médicos. Eram eles que

informavam e criavam as polêmicas que rodeavam os debates a respeito de

muitas doenças. Esses artigos, ora científicos, ora mais sociais, apresentavam as

mais adequadas estratégias de prevenção de algumas moléstias. À época,

também era bastante comum que os médicos divulgassem suas teorias primeiro

nos jornais e, mais tarde, em revistas especializadas, de modo que os iniciados

costumavam ler os jornais para conhecer as mais novas teorias, defendidas por

outros médicos. Os debates sobre essas teorias costumavam ser intensos, e os

jornais eram o palco das constantes discussões, como a estabelecida entre Sodré

e Portugal.95

Ainda que apresentem números divergentes, podemos concluir que os

artigos de Azevedo Sodré e Olympio Portugal evidenciam uma mudança na

percepção social sobre o câncer no Brasil na primeira década do século XX.

Devido ao aumento de sua incidência no país, em grande parte por causa do

aumento da expectativa de vida da população, começam a surgir instituições

estatais e filantrópicas voltadas ao cuidado dos doentes, além de sociedades

94 Ibid., 43. 95 Lódola & Góis Junior, 691.

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40

médicas, hospitais especializados e centros de pesquisa sobre o câncer. Muitas

das iniciativas partiram de esforços não-institucionais, como reflexo de um

movimento filantrópico em relação a outras enfermidades.96

Até então considerado raro e excepcional, o câncer passa a ser visto

como um problema cada vez mais recorrente97, mas que, ao mesmo tempo, é

analisado pela forma como era compreendido nos países desenvolvidos.98 Essa,

digamos, interferência internacional de pesquisas, debates e iniciativas

relacionadas ao câncer nas primeiras décadas do século XX se deve ao fato de

os médicos brasileiros com frequência irem aos Estados Unidos e à Europa em

temporadas de estudo e pesquisa. Dessa forma, a concepção em relação à

doença no Brasil tornou-se relativamente a mesma apresentada nesses países.99

As estratégias de controle do câncer, sobretudo na Alemanha, Itália,

França, Inglaterra e nos Estados Unidos, estimulou a adoção de medidas

semelhantes no Brasil, que via nos países desenvolvidos um modelo a ser

seguido. Com isso, o foco das pesquisas desenvolvidas no país passou a ser a

definição das melhores, ou mais adequadas, técnicas cirúrgicas destinadas à

extirpação dos tumores ou à realização de levantamentos epidemiológicos que

delimitassem o alcance da doença na população, servindo de base para a

formulação de políticas públicas de combate à doença.

96 Bodstein, coord., 21. 97 Teixeira, 14. 98 Teixeira & Fonseca, “De doença desconhecida a problema de saúde pública,” 27. 99 Bodstein, coord., 20.

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De pais para filhos

Ainda que a maioria dos médicos brasileiros priorizasse a realização de

estudos epidemiológicos com o propósito de ajudar a determinar a incidência

da doença no país, bem como subsidiar a formulação de políticas públicas de

combate à moléstia, havia também alguns poucos médicos que se dedicavam à

pesquisa sobre a etiologia do câncer, seguindo protocolos de pesquisa

internacionais. É o caso do oftalmologista brasileiro Hilário Soares de Gouvêa

(1843-1923).100

Alguns anos após a publicação de Traité dês Tumeurs, do médico Paul

Broca, no ano de 1866, Hilário Soares de Gouvêa ofereceu novas evidências do

possível caráter hereditário do câncer, tornando-se talvez um dos que melhor

documentaram a capacidade de alterações genéticas gerarem células anormais

e serem transmitidas de pais para filhos, a partir do diagnóstico de um

retinoblastoma, isto é, de um tumor maligno relativamente raro que se

desenvolveu na retina do olho direito de um menino de dois anos.101

Após fazer a retirada cirúrgica do olho e a análise patológica, o médico

brasileiro confirmou o diagnóstico de retinoblastoma. Em 1891, aos 21 anos de

idade, o menino operado por Gouvêa se casou e teve ao todo sete filhos, dos

quais duas meninas, que nasceram e pouco tempo depois também

desenvolveram retinoblastoma. A primeira, nascida em 1892, foi operada do

olho direito, mas houve remissão e, pouco tempo depois, um novo tumor foi

100 O trabalho de Gouvêa foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 233-34. 101 Monteiro & Waizbort, em “The accidental cancer geneticist”, 811.

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diagnosticado no olho esquerdo. A segunda, por sua vez, foi diagnosticada

com retinoblastoma bilateral (nos dois olhos) aos cinco meses de idade.102

Os pais, no entanto, recusaram-se a operar a segunda criança. As duas

meninas morreram de câncer, conforme o próprio médico relatou em artigo

publicado em 1886 no Boletins da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de

Janeiro. Ele não sabia, mas Hilário da Gouvêa havia identificado uma forma

familiar de retinoblastoma.103

O rádio contra o câncer

Pode-se dizer que o médico Álvaro Alvim (1863-1928) pagou caro por

sua obstinação.104 Álvaro Freire de Villalba Alvim nasceu no interior do Rio de

Janeiro, mas cursou a Faculdade de Medicina da Bahia. Após concluir o curso,

instalou-se na cidade do Rio. Em 1896, no entanto, como muitos pesquisadores

de sua época, embarcou para uma viagem de estudos em Paris, França, onde

conheceu a química Marie Curie (1867-1934) e seu marido, Pierre (1859-1906),

que àquela época faziam diversas pesquisas com radioatividade.105 No final da

primeira década do século XX, o uso do rádio começou a atrair cada vez mais

atenção de alguns médicos brasileiros.106 Sua aplicação no tratamento do câncer

refletia o que há algum tempo vinha sendo feito em países da Europa e nos

Estados Unidos. Dessa forma, muitos dos médicos brasileiros que tiveram

102 Ibid., 812. 103 Ibid. 104 Os anúncios nos jornais brasileiro e francês e o trabalho de Alvim foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 247-8.105 Kroeff, “Primeiras organizações anticancerosas do país”, 19. 106 Teixeira & Fonseca, O controle do câncer no Brasil, 15.

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43

contato com essas técnicas no exterior se engajaram na viabilização de

iniciativas voltadas ao uso do rádio contra tumores ao voltarem ao Brasil.107

No ano de 1907, de volta ao Brasil, Álvaro Alvim trouxe consigo uma

moderna aparelhagem de raio X, que instalou em uma clínica radiológica

especializada no Rio de Janeiro. Dada as extensões de suas instalações, sua

clínica recebeu o nome de Instituto Álvaro Alvim. Os equipamentos de

eletroterapia e de radiologia incorporavam técnicas de uso do rádio, elemento

químico mais poderoso que o urânio, e eram aplicados no tratamento de

muitas doenças. Álvaro Alvim fez este anúncio, publicado no dia 4 de janeiro

de 1920 no Correio da Manhã, do Rio:

Electricidade Medica do Dr. Alvaro Alvim. Tratamento de

todas as molestias, internas e externas, sem excepção, do

homem e da mulher; pela electricidade sob todas as suas

fórmas, as mais modernas. Tratamento das anemais,

esgotamento nervoso, neurasthenia, nevralgias, nevrites,

pulmões e estomago. Tratamento sem dor, dos cancros

venéreos, ulceras malignas, syphiliticas, e tumores brancos

pela luz do “Finsen”. Diariamente das 11 ás 6. Largo da

Carioca, 11, 1º. andar.

Álvaro Alvim trabalhou durante anos com elementos radioativos.108 O

problema é que àquela época os efeitos nocivos da radiação eram pouco

conhecidos. O médico, então, começou a sentir as primeiras manifestações de

radiodermite, lesões causadas pela radiação, nos dedos da mão esquerda em

107 Ibid., 18. 108 Cuperschmid & Campos. “Uso da radiação na medicina mineira”, 379.

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1916.109 Mesmo assim, não parou, e os danos se agravaram. No dia 3 de maio de

1924, a Revista da Semana publicou um texto em que expôs o martírio do médico

com os efeitos da radiação.

Não é de hoje que o dr. Álvaro Alvim vem sendo victima

da pratica da radioterapia. De tempos em tempos, o

sacerdócio do martyr era demarcado com a perda de um ou

mais dedos das mãos. Elle, porém, prosseguia sempre. De

nada valeram rogos da familia e prescripções prohibitivas e

severas dos colegas. Agora soffreu o dr. Álvaro Alvim a

amputação do terço inferior do antebraço, cujos tecidos se

achavam arruinados pela acção continua dos raios X, e o

grande scientista, que já havia perdido os dedos da mão

esquerda em duas operações, tem apenas o pollegar e a

palma dessa mão!

Cinco meses depois, no dia 11 de outubro de 1924, a revista publicou

uma reportagem descrevendo o trabalho, os equipamentos e o tratamento de

Álvaro Alvim por meio do rádio e, em seguida, as cirurgias de amputação em

Paris, com fotos de seus dedos ulcerados e de pacientes com câncer de que ele

tratou.110 Álvaro Alvim perdeu mãos e antebraços, e morreu em 1928 de

leucemia.111 “Anunciamos a morte de Dr. Álvaro Alvim, radiologista brasileiro

bastante conhecido. O eminente estudioso, que teve que passar por amputação

de ambas as mãos, continuou seu trabalho, apesar de seus antebraços terem

sido igualmente atingidos”, relatou em 28 de maio de 1928 o jornal Le Gaulois.

Não seria demais lembrar que a química polonesa Marie Curie, também por

109 Kroeff, 19. 110 Navarro et al., “Controle de riscos à saúde em raiodiagnóstico”, 1039. 111 Lima & Afonso. “Fascinação, medo e ciência”, 268.

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45

causa dos efeitos da radiação, morreu em 1934, em Paris, depois de receber

duas vezes o Prêmio Nobel.

A luta contra o câncer no Brasil

Outras iniciativas que merecem ser destacadas e que nos ajudam a ter

uma noção da dimensão do problema do câncer no Brasil àquela época dizem

respeito à criação do Instituto de Radiologia da Faculdade de Medicina do Rio

de Janeiro em 1919 e à inauguração do Instituto de Radium de Belo Horizonte,

em Minas Gerais.112 Daremos especial atenção a este último por ele estar

relacionado especificamente ao ambiente médico e acadêmico no qual está

inserido o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, cujos trabalhos sobre

os mecanismos do câncer serão apresentados, discutidos e analisados no

capítulo a seguir.

Na década de 1920, os debates e trabalhos acadêmicos sobre aspectos

médicos e sociais relacionados ao câncer no Brasil enfatizavam a necessidade

de uma ação conjunta contra a doença, envolvendo governo e entidades

privadas. Dentre as iniciativas de combate ao câncer, destaca-se a reforma

promovida pelo médico sanitarista Carlos Chagas (1879-1934) em 1921, que

incluía em sua proposta para organização dos serviços sanitários algumas

providências importantes relacionadas ao combate à doença, a saber, o

estabelecimento de estatísticas mais adequadas de óbito por câncer; execução

das providências sanitárias necessárias nos domicílios onde houve caso ou

112 Bodstein, coord., 18.

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46

óbito decorrente do câncer; gratuidade dos exames de laboratório que fossem

precisos para a fixação do diagnóstico; organização da campanha de

propaganda contra o câncer; e a fundação de institutos de câncer com fins

terapêuticos e experimentais.113

Alguns anos depois, em dezembro de 1924, durante o II Congresso

Brasileiro de Higiene, em Belo Horizonte, o médico Eduardo Rabelo (1876-

1940) chamou a atenção para o fato de que a mortalidade por câncer nos países

desenvolvidos vinha crescendo em relação a outras doenças. Ressaltou que o

câncer ocupava lugar importante entre os problemas sanitários a serem

resolvidos e que desde meados do ano de 1700 discutia-se na França e na

Inglaterra a necessidade de se organizar estratégias de combate à doença.114

Ainda durante a conferência, surgiram talvez os primeiros dados

dimensionando o declínio, ainda que ligeiro, do número de casos de

tuberculose e o aumento dos de câncer no Brasil.

Àquela época, câncer e tuberculose passaram a mostrar movimentos

opostos do ponto de vista epidemiológico. Com sua etiologia melhor

compreendida, o número de casos de tuberculose começou a mostrar sinais de

queda no Brasil, enquanto a mortalidade por câncer parecia tender a crescer,

ainda que em ritmo lento, é importante ressaltar. Em 1910, o número de mortes

por tuberculose na cidade do Rio de Janeiro era de 404 para cada 100 mil

habitantes. Em 1924, esse número era de 350. Em contrapartida, o número de

mortes em decorrência do câncer em 1910 era de 36 para cada 100 mil

113 Ibid., 19. 114 Ibid., 20.

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habitantes. Em 1924, havia subido para 40.115 De fato, à primeira vista, tais

números podem parecer irrelevantes do ponto de vista epidemiológico.

Contudo, nosso objetivo aqui é procurar mostrar que o câncer no Brasil nas

primeiras décadas do século XX começou a se tornar uma ameaça crescente,

embora ainda incompatível com a oferecida pela tuberculose, chamando cada

vez mais a atenção de gestores públicos e médicos, entre eles Eduardo Borges

Ribeiro da Costa (1880-1950).116

Em 1920, após voltar de uma temporada de estudos na Europa, onde

conheceu a química polonesa Marie Curie e sua obra, o médico viu-se diante do

aumento dos casos de câncer no estado de Minas Gerais.117 Àquela época, o

câncer era anunciado como um mal terrível contra o qual a medicina moderna

ainda iria aprender a enfrentar. Frente àquela situação, Borges da Costa, um

especialista na extirpação de tumores com bisturi, conseguiu apoio do então

presidente do estado, Arthur da Silva Bernardes (1875-1955), para a construção

do Instituto de Radium de Belo Horizonte. O prédio foi erguido em um terreno

nos fundos da Faculdade de Medicina da Universidade de Belo Horizonte e

tinha como objetivo principal o estudo e as aplicações terapêuticas dos raios X e

do rádio, tecnologias difíceis de serem manejadas. Na dose certa, a radiação era

eficiente para destruir o tumor, mas qualquer erro na dosagem poderia

danificar os tecidos sadios próximos.118

115 Rodrigues & Bichat. “Mortalidade de tuberculose”, 104. 116 O trabalho de Costa e a criação do Instituto Radium foram previamente examinados em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 249.117 Cuperschmid & Martins, "Instituto de Radium de Minas Gerais", 1249. 118 Ibid., 1248.

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As circunstâncias que levaram à criação do Instituto de Radium se

desenharam em meio a uma atmosfera de cruzada contra o câncer a partir da

segunda década do século XX, o que motivou muitos médicos brasileiros a

expandirem suas pesquisas relacionadas ao uso do rádio como forma de

tratamento de tumores. Mantido com recursos públicos, o instituto comprava

rádio da França, com certificados de dosagem assinados por Marie Curie.119

Os habitantes de Minas Gerais frequentemente destacavam-se na vida

científica nacional, assim como a Faculdade de Medicina, que, integrada aos

acontecimentos da ciência, a todo momento recebia professores estrangeiros

para fazer apresentações em conferências sobre temas de interesse dos

estudantes.120 Em setembro de 1922, para citar um exemplo, o professor

Fernand Lamaitre (1880–1958), da Faculdade de Medicina de Paris, proferiu

uma aula sobre as infecciosas cancerosas da laringe.121 Por vezes, também as

autoridades médicas ou políticas que visitavam a cidade eram levadas para

conhecer o Instituto de Radium. É o caso de Marie Curie. Em agosto de 1926,

após longa viagem vinda de Paris, a química desembarcou em Belo Horizonte

para uma conferência sobre o rádio e suas possíveis aplicações, aproveitando a

visita para conhecer o instituto.122

O médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno à época já figurava entre

os escóis da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, participando de várias

reuniões sobre diversos assuntos acadêmicos e administrativos relacionados à

119 Ibid., 1240. 120 Cuperschmid & Campos. “Uso da radiação na medicina mineira”, 378. 121 Ibid. 122 Cuperschmid & Martins, "Instituto de Radium de Minas Gerais", 1244.

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faculdade, conforme pudemos verificar ao ler as atas das Sessões Ordinárias da

Congregação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte.123 Como veremos

mais adiante, Pimenta Bueno se formou em medicina naquela faculdade em

1913, tornando-se professor da disciplina de física médica na mesma instituição

dois anos depois, em 1915. Em 1921, o médico foi relator da comissão

examinadora do concurso de histologia e anatomia patológica legal da

Faculdade de Medicina. Em reunião da sessão ordinária da congregação da

faculdade, presidida pelo médico Borges da Costa no dia 25 de janeiro de 1921,

Pimenta Bueno apresentou um relatório destacando o valor da tese do médico

Carlos Pinheiro Chagas (1887-1932) — primo do também médico e sanitarista

Carlos Chagas, já referido anteriormente e que mais tarde ficou conhecido por

ter identificado o agente causador da tripanossomíase —, então candidato à

cadeira de histologia e anatomia comparada.

Dessa forma, como era o objetivo central deste capítulo, julgamos ter

indicado que o câncer começou a atrair cada vez mais a atenção da classe

médica brasileira nas duas primeiras décadas do século XX. Ao mesmo tempo,

a partir dos fatos aqui apresentados e discutidos, julgamos da mesma forma ter

oferecido o contexto médico, político, histórico e social em que está inserido o

médico mineiro Alfredo Leal Pimenta Bueno, cujas pesquisas sobre a origem do

câncer serão abordadas no capítulo a seguir.

123 “Acta da 1ª sessão ordinaria da Congregação”, 25/1/1921.

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CAPÍTULO 3 O CÂNCER SOB UMA NOVA ABORDAGEM

Entre os anos de 1926 e 1928, o médico mineiro Alfredo Leal Pimenta

Bueno publicou uma série de artigos na revista científica O Brasil Médico, todos

sob o título Contribuição para o estudo da pathogenia, da physio-pathologia e da

therapeutica do cancer, do ponto de vista da doutrina da Trophodynamica Funccional,

em que apresenta suas ideias sobre a origem das células tumorais, analisando

também as mudanças fisiológicas e metabólicas decorrentes no organismo.124

Seu objetivo era entender como agentes biológicos, químicos, físicos e

ambientais agiam no organismo e acionavam os mecanismos que conduziriam

os tecidos ao câncer.125 O ponto central deste capítulo será, portanto, analisar

como Pimenta Bueno, um pesquisador pouco conhecido e estudado, construiu e

defendeu seu discurso sobre a etiologia do câncer à luz de uma abordagem

ampla, que procurava integrar áreas como bioquímica, biofísica e fisiologia,

entre outras, e como isso lhe permitiu aproximar os diversos planos que

favorecem ou determinam o surgimento da doença. Também pretendemos

apresentar as fontes de informação explicitamente, ou implicitamente, citadas

pelo médico para justificar seus argumentos sobre os mecanismos do câncer.

Antes de avançarmos na discussão e análise de seus artigos, contudo,

discorreremos rapidamente sobre sua trajetória acadêmica.

124 O trabalho de Pimenta Bueno sobre a origem do câncer foi previamente examinado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238-9. 125 A análise levada a cabo nesta dissertação acerca das ideias da Pimenta Bueno sobre a origem do câncer tem como base os artigos publicados pelo médico entre os anos de 1926 e 1928 na revista O Brasil Médico, todos sob o mesmo título, Contribuições para o estudo da pathogenia, da physio-pathologia e da therapeutica do cancer, do ponto de vista da doutrina da Trophodynamica funccional, e subtítulo, Princípios geraes da Trophodynamica funccional á etio-pathogenia do Cancer. Os artigos foram publicados em diferentes volumes da revista, por vezes com alguns intervalos entre eles, e reunidos previamente em Fioravanti, op. cit..

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A trajetória de Pimenta Bueno

Alfredo Leal Pimenta Bueno se formou em medicina na Faculdade de

Medicina de Belo Horizonte, em Minas Gerais, em 1913. Dois anos depois,

ingressou na mesma instituição como professor de física médica126, fato este que

nos diz muito sobre o tipo de estudo que ele mais tarde irá desenvolver em

relação à etiologia do câncer, procurando identificar princípios básicos

associados à origem da doença — e também como ele enxerga os fenômenos

biológicos. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, quando Pimenta Bueno

afirma que compreende os fenômenos celulares de acordo com o princípio

fundamental da termodinâmica, a conservação de energia.127 Algo digno de

nota, e que reforça nosso ponto de vista, diz respeito à sua tese apresentada ao

concurso para a cadeira de física médica da Faculdade de Medicina da

Universidade de Belo Horizonte em 1915, na qual analisa a evolução da física

na medicina, como o próprio título sugere: “Thermodynamica animal — Evolução

da Physica na Medicina”.

126 A física médica constitui um campo multidisciplinar da medicina, a partir do qual se procura aplicar conceitos e técnicas da física, juntamente com os avanços tecnológicos, na prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças. Pode-se dizer que a física médica se firmou como campo específico da medicina a partir dos trabalhos do físico e fisiologista alemão Hermann von Helmholtz (1821-1894), autor de estudos em diversas áreas da ciência, incluindo fisiologia, óptica fisiológica, acústica fisiológica, química, matemática, eletricidade e magnetismo, meteorologia e mecânica teórica. Suas pesquisas em termodinâmica e eletromagnetismo, campos à época ainda em desenvolvimento na física, lhe teriam permitido formular a lei matemática da conservação de energia. Seus trabalhos em física e medicina começam a interagir em 1847, quando Helmholtz estende sua lei geral sobre conservação de energia a fenômenos biológicos. O faz ao publicar Über die Erhaltung der Kraft, obra que ajudou a ampliar as perspectivas de aplicação de técnicas físico-químicas ao estudo de fenômenos orgânicos, conforme atesta o historiador da ciência Fabio Bevilacqua. Vide Bevilacqua, “Helmholtz’s Ueber die Erhaltung der Kraft: The Emergence of a Theoretical Physicist”, 333. 127 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 16: 361.

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Em 1926, Pimenta Bueno publicou seu livro Correlações Hemaulicas — Do

ponto de vista da doutrina da Tropho-dynamica funccional128, apresentando-o como

“fructo de um decennio de estudos orientados no sentido do methabolismo

normal e pathologico dos tecidos”.129 Em sua obra, o médico mineiro diz ter

chegado a várias conclusões originais, tendo como base princípios gerais de

fisiologia normal e patológica.

O livro Correlações Hemaulicas trata pouco sobre o câncer. Desse modo,

não o exploraremos aqui. No entanto, um aspecto que vale a pena destacar é

que, antes disso, Pimenta Bueno não havia tido predileção pela questão dos

mecanismos do câncer, um assunto um tanto complexo, e que à época, como

vimos, desafiava a sagacidade e a sabedoria do escol da mentalidade médica

brasileira e mundial. Seu interesse pelos tumores começa a mudar a partir de

1926, quando o médico mineiro apresenta os fundamentos do que chamou de

doutrina da Trophodynamica funcional, a partir da qual passa a investigar o

metabolismo normal e patológico dos tecidos, estudando com mais atenção os

mecanismos que desencadeariam o surgimento, a evolução e a expressão de

tumores.

128 O livro de 1926 de Pimenta Bueno foi examinado previamente em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 238-9. 129 Pimenta Bueno, Correlações Hemaulicas, 4.

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Figura 1 - Abertura padrão da série de artigos de Pimenta Bueno publicada na revista O Brasil Médico.

Pimenta Bueno era bastante crítico em relação às abordagens de outros

médicos, os quais, segundo ele, não haviam apresentado nenhuma contribuição

direta ou conclusão alguma sobre os mecanismos relacionados à doença. Um

deles, citado explicitamente pelo autor em seu primeiro artigo, é Pierre Eugène

Menetrier (1859–1935).130 De fato, Pimenta Bueno reconhece que o patologista

francês havia sido quem talvez tivesse apresentado a visão mais precisa sobre

os mecanismos do câncer, tendo posto em destaque as chamadas lesões pré-

cancerosas. Em seus estudos clínicos acerca de tumores em diferentes áreas do

corpo, Menetrier havia observado que a doença por vezes se desenvolvia a

partir de lesões inflamatórias pré-existentes, podendo resultar da transformação

de papilomas — tipos de verrugas. Mais adiante, contudo, Pimenta Bueno

pondera e lembra que o patologista francês não havia explicado como nem

130 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. Exemplo previamente citado em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 239.

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porque se faz o papiloma ou o adenoma, e nem qual a razão pela qual estes se

transformavam em câncer vezes sim, vezes não.131

Ainda que de modo implícito, é possível verificar que Pimenta Bueno

também aborda a ideia de diátese.132 À última página de seu primeiro artigo,

publicado no dia 8 de dezembro de 1926, o médico reconhece que alguns

tumores poderiam surgir sem nenhuma causa conhecida ou aparente, e reforça

esta hipótese ressaltando o fato de a produção científica mundial ter registrado

casos de cânceres surgidos sem que nenhum agente pudesse ser tomado como

causa, respeitando, portanto, uma predisposição própria do organismo para a

doença. Ao mesmo tempo, porém, deixa claro logo em seguida estar à procura

de princípios mais essenciais, que englobem as múltiplas variantes da moléstia.

“Mas então?”, questiona. “Seria o caso de denominar, como certos autores o

fazem, de canceres espontaneos? Mas que é que ha que assim o seja?”.133 O

médico mineiro estava convencido de que essas neoplasias malignas, sem causa

aparente, que se manifestavam como uma consequência natural ou espontânea

dos tecidos, como de resto todas as outras, estariam presas ao mecanismo único

e universal pelo qual se processa o câncer.

Pimenta Bueno também era um crítico dos métodos de pesquisa sobre o

câncer. Vejamos o que ele diz sobre isso:

Não basta poder accumular factos; não basta saber

produzir experimentalmente o Cancer; não bastava, nem

131 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. 132 Termo atribuído pelo médico francês Paul Broca à predisposição própria do organismo para certas doenças. Vide página 10. 133 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 335.

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mesmo, produzir enxertos de volume igual ao de’um

elephante, asiatiatico ou africano; também não basta

distinguir morphologicamente uma especie tumoral de

outra especie. É necessário poder animar os fatos

recolhidos pela observação com o divino sôpro da

sabedoria, construindo sobre elles as leis e os princípios

que, afinal, são a crystallização de nosso proprio saber

sobre as cousas naturaes... Só aceito as conclusões de

outrem depois que as integrei em meu patrimonio

scientifico, isto é quando após havel-as examinado, eu as

fiz minhas. Porque a critica, em sendo honesta e sincera, é,

muitas vezes, o caminho mais curto para chegarmos á

Verdade, nos utilizando para a operação do raciocínio do

mesmo archivo de factos recolhidos e fixados no curso das

experiencias e um observador que concluía por modo

diverso.134

O médico, contudo, não despreza as contribuições de pesquisadores que

vieram antes dele, ou mesmo de seus contemporâneos, e, sempre que possível,

cita outros autores a fim de justificar suas ideias. Em verdade, vale destacar, o

médico recorre com frequência a citações em francês, italiano e espanhol para

reforçar e legitimar seus pontos de vista. Ainda sobre Pierre Menetrier, Pimenta

Bueno reconhece que o patologista francês havia alinhado as fases morfológicas

sucessivas do processo canceroso, desde a lesão primitiva. Em outro trecho de

seu primeiro artigo, o médico ressalta ainda que a conquista maior que havia

sido feita em matéria de câncer referia-se à compreensão de que agentes

134 Ibid., 332.

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diversos, como a luz, o sol, os raios X, o rádio, o alcatrão, o arsênico, o indol, e

mesmo o vírus Rous135, poderiam desencadear o processo cancerígeno.136

Contudo, a manifestação de todos esses princípios biológicos parecia ser

ignorado por boa parte dos que blasonavam sabedoria, segundo o médico. A

razão pela qual os clínicos ignoravam tais princípios — e também tantos outros

da biologia — e morfologistas e fisiologistas ignoravam princípios clínicos, na

concepção de Pimenta Bueno, se dava ao fato de cada um deles desprestigiar as

contribuições estranhas ao âmbito de suas próprias cogitações. Ao fazerem isso,

dizia o médico, negavam o valor das ideias alheias, como se a clínica e a

patologia pudessem estar em desacordo com a fisiologia ou como se cada uma

das duas carregasse em si uma verdade que fosse oposta ou diferente à verdade

de cada uma delas.

Novamente, em seu artigo de 8 de dezembro de 1926, Pimenta Bueno

deixa claro que pretende ir além. O fato de outros cientistas terem obtido lesões

cancerosas por meio de parasitas, como havia feito o médico dinamarquês

Johannes Fibiger (1867-1928), bactérias e vírus, como fizera Rous, parece não

inutilizar sua crítica, uma vez que ainda restava a questão central, a saber, como

procediam esses agentes biológicos no sentido de despertarem nos tecidos os

mecanismos que os conduziam ao câncer.137 Frente a esta questão, Pimenta

Bueno afirma ter um espírito habituado a não se acomodar às coisas feitas e a

135 Referência ao virologista norte-americano Francis Peyton Rous, que identificou, por meio de experimentos com uma galinha, um sarcoma transmissível, extremamente maligno, e com tendência a multiplicar-se pelo organismo. Vide página 15. 136 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 15: 334. 137 Ibid.

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criticar e analisar com independência todos os objetos que se oferecessem à sua

observação.138

Como veremos mais adiante, é por julgar que o estudo consciencioso do

câncer só seria possível por meio da soma de conhecimentos diversos que o

médico procura encadear em seus artigos uma série de fenômenos biológicos,

os examinando ora do ponto de vista da embriologia, ora da bioquímica e do

funcionamento celular, privilegiando a integração em vez da separação, a visão

de conjunto em vez da visão sobre as partes. Ao fazer isso, chega à conclusão

geral de que o câncer seria uma doença dotada de um processo evolutivo, tendo

em sua causa uma força em evolução; uma ação de transformação progressiva,

contínua e aceleradora e, portanto, gradualmente crescente em seus efeitos.139

A Chimica, a Physica, a Physico-Chimica, a Bio-Chimica, a

Biologia, a Pathologia, a Physiologia normal e pathologica,

bem como a Histologia normal e pathologica, são todas

essas disciplinas absolutamente indispensaveis ao estudo

do Cancer e sem o que arriscariamos a ter apenas uma

visão unilateral do problema e, portanto, insuficiente.140

O trabalho de Pimenta Bueno constitui, assim, um capítulo relevante da

história das pesquisas sobre o câncer no Brasil, sobre como os conceitos acerca

dos mecanismos cancerígenos foram construídos e reinterpretados ao longo dos

anos e também sobre a luta por novos tratamentos contra a doença no país.

138 Ibid., 16: 362. 139 Ibid., 15: 335. 140 Ibid.

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Princípios gerais da Trophodynamica funccional

A ideia de Pimenta Bueno sobre a origem das células tumorais baseia-se,

essencialmente, na interpretação dos mecanismos de ação do câncer a partir dos

fundamentos da chamada Trophodynamica funccional, doutrina elaborada por ele

próprio e cujo critério fundamental se baseia no fato de a atividade funcional

das células estar associada à energia nutritiva que as rodeia. Vale ressaltar que

isso estaria em concordância com os princípios fundamentais da

termodinâmica: a conservação de energia, ou a expressão da conservação de

energia de um sistema. Pimenta Bueno via qualquer atividade do organismo

como “um phenomeno de energetica”, que implicava um desequilíbrio de

energia ou a “transformação de um certo potencial em energia actual ou

dynamica, portanto em uma degradação energética”; o material energético

seriam as substâncias nutritivas que abastecem o organismo para necessidades

imediatas ou futuras. 141 De modo mais amplo, o equilíbrio do organismo

dependeria da circulação sanguínea, que transportaria os nutrientes. Ao

assumir a lei da conservação de energia segundo o físico e fisiologista alemão

Hermann von Helmholtz (1821-1894) como princípio básico para o

funcionamento normal das células, Pimenta Bueno, então, entende que

fenômenos orgânicos seguiam o princípio de que a quantidade de energia que

circula em um sistema de corpos em equilíbrio é constantemente a mesma; a

141 Pimenta Bueno assume, no âmbito dos fenômenos celulares, o princípio básico da termodinâmica, que é a conservação de energia, de modo que a quantidade de energia que circula em um sistema de corpos em equilíbrio (a célula, no caso) seria constantemente a mesma, quaisquer que fossem as operações intermediárias. Em outras palavras, as células não seriam capazes de criar ou destruir energia. Ao assumir isso, Pimenta Bueno compreende as células dos tecidos como incapazes de procurar pela energia que as penetra e nelas se transforma. Seria necessário que essa energia circulasse e fosse oferecida às células, as quais, fixas na constituição dos tecidos, ficariam à mercê da circulação nutritiva. Dessa forma, ao usar a expressão “degradação energética”, o médico se refere a um decaimento da energia oferecida às células.

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célula, portanto, não poderia criar ou destruir energia, ela seria apenas um

agente transformador de energia.142 Postas essas ideias, o médico começa a

desenvolver o conteúdo de sua obra, a qual vamos expor a seguir.

Em seus primeiros três artigos, Alfredo Leal Pimenta Bueno discorre

majoritariamente sobre os mecanismos responsáveis por garantir às células as

partículas energéticas nutritivas necessárias para que elas as convertam em

energia funcional. As células, do ponto de vista Tropho-dinamico, seriam

inteiramente passivas porque seriam apenas uma forma, uma maneira de ser da

matéria comum, e nada mais haveria nelas que não fosse essa mesma matéria,

submetida à ação das forças físico-químicas.143 Tendo como base as ideias de

Hermann von Helmholtz, Pimenta Bueno considera que as células seriam um

sistema transformador de energia, apenas.

As cellulas dos tecidos são mesmo incapazes de procurar

essa energia que as penetra e nellas se transforma; é

necessário que essa energia circule e seja offerecida ás

cellulas que, fixas na constituição dos tecidos, ficam á

mercê da circulação nutritiva, isto é, da circulação

sanguinea. Ellas são, pois, passivas.144

A energia que circula em uma determinada célula experimenta, segundo

ele, uma transformação relativa à sua estrutura físico-química. Nesse sentido, a

atividade funcional das células oscilaria entre dois estados: o de repouso e o de

atividade. Estes seriam determinados de acordo com a intensidade energética

circulando ao redor das células. No estado de repouso, as células reparariam o 142 Pimenta Bueno, Correlações Hemaullicas, 8-9 e 28. 143 Pimenta Bueno “O estudo da pathogenia”, 21: 496. 144 Ibid., 16: 361.

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desequilíbrio estrutural sofrido durante o estado de atividade funcional. A

estrutura funcional das células seria alterada permanentemente na condição de

uma dessas fases predominar sobre a outra. Em última análise, a atividade

funcional das células dependeria da intensidade da circulação de energia.

O médico segue explicando que a distribuição de energia seria

assegurada pela circulação sanguínea e linfática — esta última responsável pela

absorção de detritos e macromoléculas que as células produzem durante o

metabolismo.145 A rede sanguínea asseguraria o transporte mecânico de energia

e a velocidade desse transporte, isto é, a intensidade das trocas nutritivas

próprias das células: a chegada em abundância de produtos nutritivos e a

drenagem do material de refugo por meio do sistema linfático, responsável pela

drenagem do plasma que circula nos tecidos. No câncer, sugere Pimenta Bueno,

a circulação sanguínea se intensificaria, assim como a circulação capilar.146

Neste cenário, a circulação linfática se tornaria, portanto, exagerada, uma vez

que haveria um maior recolhimento de substâncias nocivas, produtos finais do

metabolismo celular. Como veremos mais adiante, para Pimenta Bueno, a

origem do câncer estaria de alguma forma associada ao transporte dessas

substâncias; isto é, o aumento do volume sanguíneo nos vasos e gânglios

linfáticos seria a expressão própria da intensidade das trocas nutritivas que

desencadeariam os tumores.

Em última análise, para desempenhar suas funções corretamente, os

órgãos dependem do metabolismo normal das células; este, por sua vez,

145 Ibid., 362. 146 Nível circulatório no qual se dá a troca de nutrientes entre o sangue e as células.

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dependeria da circulação sanguínea, regulada pelo sistema vasomotor. A

atividade normal de um órgão estaria, portanto, intimamente relacionada ao

processo de regulação neural, sendo o sistema nervoso o responsável pelas

funções mais gerais, como a redistribuição do fluxo sanguíneo para áreas

diversas do corpo, o aumento do bombeamento do coração e o controle da

pressão arterial. Isto posto, Pimenta Bueno sugere que todos os órgãos servidos

por um mesmo tronco arterial seriam, do ponto de vista fisiopatológico,

solidários entre si. Isso, segundo ele, explicaria as infiltrações do braço —

edemas — que costumam acompanhar a evolução de certos tumores de mama.

Eis o que ele diz sobre isso:

Do ponto de vista da doutrina da “Trophodynamica

funccional”, o edema do braço correspondente ao seio em

cancer é devido ao facto de que o seio e o braço

correspondente constituem um systema solidario entre si,

pelo facto de que são servidos por vasos sanguineos que

se originam de um mesmo tronco arterial. Com efeito, a

humeral e as mammarias interna e externa são todos

ramos da sub-clavia147; ora o processo canceroso exige a

majoração da circulação da sub-clavia e, como o braço é

servido por esse mesmo manancial nutritivo augmentado

de ímpeto, resulta a infiltração de seus tecidos.148

Mais adiante, Pimenta Bueno novamente volta sua atenção ao estudo das

células, elemento, segundo ele, essencial para a atividade funcional dos tecidos.

Logo de início, o médico se propõe explicar as diferenças básicas entre dois

tipos de células: as autônomas e as histicas. A primeira é independente, comanda-

147 Artérias localizadas sob a clavícula responsáveis por levar o sangue aos membros superiores. 148 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 16: 362.

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se a si própria; as variações relacionadas à sua funcionalidade dependeriam de

seu momento fisiológico, enquanto sua nutrição, exclusivamente de sua

capacidade de deslocamento e de assimilação. Iniciada sua vida, ele explica, sua

atividade vai de uma ponta à outra da ontogenia, desde sua concepção até a

maturidade, do nascimento à morte.149 No caso das células autônomas, a maior

expressão de sua individualidade, no entanto, seria a proliferação.

A atividade da célula histica, ao contrário, dependeria da circulação do

material nutritivo por entre as células que não se movem umas em relação às

outras e que, por isso, tendem a ficar mais ou menos isoladas do ambiente geral.

Aqui, Pimenta Bueno apoia-se nas ideias do embriologista belga Albert

Auguste Toussaint Brachet (1869-1930), publicadas em 1921 no livro Traité

d'Embryologie, para explicar que dessa dupla condição de ser das células

resultaria que a célula autônoma teria a capacidade de assimilar o material

nutritivo em sua própria substância, transformando-o em protoplasma e, assim,

crescer, aumentar sua massa e, por fim, dividir-se. De acordo com Albert

Brachet, as células histicas só apresentariam essa propriedade durante a fase em

que se desenvolvem e crescem no organismo a que pertencem. Seria o que

acontece com as células do tecido epitelial, por exemplo, que se reproduzem

com maior ou menor atividade enquanto são simples, ou seja, indiferentes.

Então, ao se diferenciarem, tornando-se adultas, ou especializadas, já não

desfrutam mais da capacidade de se reproduzir, tornando-se, assim, estéreis.150

149 Ibid., 17: 386. 150 Ibid., 387.

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63

A razão de ser disso seria o grau de hidratação do meio em que a célula

se encontra, isto é, do grau de dispersão coloidal, de ionização das substâncias

nutritivas e da constituição do citoplasma celular. Pimenta Bueno chega a essa

conclusão ao confrontar as ideias de Brachet com as do bioquímico e fisiologista

suíço Emil Abderhalden (1877-1950) e do médico belga Pierre Nolf (1873-1953),

segundo os quais o grau de hidratação do ambiente onde a célula encontra-se

interferiria na complexidade das proteínas, ao passo que o grau de dispersão

coloidal, caracterizado por aspectos físico-químicos, influenciaria o processo de

incorporação dessas proteínas ao citoplasma das células. Para os dois

pesquisadores, a incorporação dessas proteínas exigiria que elas sofressem a

maior desintegração possível dos compostos moleculares que as constituem,

sendo necessário, portanto, que sofressem previamente um processo de

clivagem molecular (desintegração), para, então, chegarem ao estado de

aminoácidos.151

Ainda com base nas ideias de Brechet, expostas em Traité d'Embryologie,

Pimenta Bueno infere que as células jovens, ou embrionárias, seriam mais

hidratadas e também muito mais ricas em fermentos hidrolisantes152, que as

células adultas, idosas, de modo que nas células velhas, especializadas, essas

substâncias deixariam de ser incorporadas ao citoplasma celular, onde seriam

convertidas em reservas energéticas. É nesse sentido que o médico brasileiro

infere que as células adultas não se nutrem e, portanto, perdem a capacidade de

151 Ibid. 152 Pimenta Bueno refere-se às enzimas responsáveis pela desintegração das proteínas em aminoácidos, os quais, em seguida, serão incorporados à estrutura coloidal das células.

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se reproduzir. Como veremos mais adiante, esta relação constituirá um ponto

fundamental de seu argumento sobre a etiologia do câncer.

Para Pimenta Bueno, as células que continuam a se reproduzir o fazem

enquanto apresentam-se indiferenciadas, ou em estado embrionário, quando as

trocas nutritivas são muito mais intensas e, igualmente, muito mais intensa é a

assimilação desses nutrientes pelas células. Para o médico, as células tornam-se

maduras à medida que se afastam da fonte nutritiva e hidratante, ou seja,

tornam-se adultas quando se desidratam. Neste momento, seu metabolismo

seria extremamente diminuído e as células não mais conseguiriam se

reproduzir.153 É interessante ressaltar que, para explicar melhor este duplo

aspecto que pode apresentar a atividade celular, Pimenta Bueno faz uso da

fórmula concebida pelo químico alemão Herbert Freundlich (1880-1941), a

partir da qual o médico afirma que, quando a célula é nova e sua estrutura é de

uma dispersão coloidal fortemente hidratada, a adsorção154 é mais intensa;

sendo, então, rápido o crescimento material da célula.

153 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 388. 154 A adesão de moléculas de um fluído (o adsorvido) a uma superfície sólida. Neste caso, vale ressaltar, Pimenta Bueno se refere à adsorção química, empregada na separação de misturas. Nela as moléculas, ou átomos, unem-se à superfície do adsorvente por meio da formação de ligações químicas.

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65

Neste caso, X seria a quantidade do material adsorvido por uma

superfície (m) e, portanto, subtraído à solução, cuja concentração final será C,

enquanto a e n seriam constantes referentes — ou observadas a partir dos — aos

materiais adsorvidos e adsorventes em uma dada temperatura. Isto posto,

Pimenta Bueno observa: “Estas cellulas têm como caracteristicos biologicos:

metabolismo intenso e intensa proliferação; são cellulas indiferenciadas.”155

Aqui, vale ressaltar, o médico faz uma clara distinção entre o comportamento

das células embrionárias (indiferentes) e das células adultas (diferenciadas).

Tudo indica que Pimenta Bueno está discutindo o amadurecimento das células

— diferenciação ou especialização —, processo um tanto complexo, em que

diversas vias moleculares interagem e muitas vezes se influenciam

mutuamente. É por meio desse processo de especialização que as células

adquirem características específicas. As células de gordura tornam-se

especializadas em estocar energia, por exemplo. De acordo com Pimenta Bueno,

o grau de hidratação das células diminuiria à medida que elas envelhecessem,

de modo que a absorção de nutrientes seria pouco intensa e seu metabolismo,

mínimo. Sendo células de baixa atividade metabólica, as células adultas, ou

diferenciadas, portanto, se proliferariam menos.

O médico também associa o mecanismo de cancerização das células de

alguma sorte às mitocôndrias, compartimentos celulares responsáveis pela

produção de energia, sugerindo que essas organelas desempenhariam papel

determinante no processo de especialização celular, quando deixam de ser

155 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 388.

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embrionárias e tornam-se adultas, especializadas.156 Aqui, o médico demonstra ter

um conhecimento bastante específico sobre a morfologia dessas organelas,

sugerindo que elas apresentariam formas distintas no interior das células. Em

um trecho de seu artigo, ele cita o médico francês Joseph Roy para reforçar essa

ideia:

(...) as formas das mitocôndrias, seja de grãos isolados ou

em correntes, seja de palitos mais ou menos longos, seja de

filamentos, dependem da atividade nutritiva; são

pequenos grãos que correspondem à atividade máxima.

Entre as células envelhecidas, as mitocôndrias tomam o

aspecto filamentoso.157

A diferença na forma e no tamanho dessas organelas seria determinada,

segundo ele, de acordo com o grau de hidratação das células, que, como vimos,

diminui à medida que elas envelhecem. Em verdade, vale dizer, a noção de que

o surgimento das células cancerígenas poderia estar ligado ao funcionamento

das mitocôndrias há algum tempo vinha sendo discutida, em geral, graças às

ideias do fisiologista alemão Otto Heinrich Warburg (1883-1970), publicadas em

1924, segundo as quais as células tumorais produziriam a energia que lhes

permite sobreviver a partir do consumo da glicose livre no citoplasma, a região

da célula entre a membrana e o núcleo celular. Ao mesmo tempo, Warburg

postulou que o fator que conduziria os tecidos ao câncer estaria relacionado à

respiração celular insuficiente, causada por danos nas mitocôndrias.158

156 Ibid., 389. 157 Ibid. 158 Beishon, “Metabolic approaches to killing cancer cells”, 14.

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67

Figura 2 - Trecho de um dos artigos de Pimenta Bueno: na obra, é possível verificar que o médico recorre com frequência ao trabalho de outros autores, os citando na língua

original.159

Assim, para Pimenta Bueno, “a complexidade das mitochondrias, e, pois,

da differenciação cellular, cresce com a deshydratação chimica dos compostos

moleculares”.160 Por sua vez, o processo de desidratação das células se daria por

meio de reações químicas específicas, as quais desencadeariam a combinação de

um grande número de moléculas de ácidos graxos, havendo a eliminação de

uma molécula de água para cada par de molécula de ácido graxo. Isso se daria

159 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 17: 392. 160 Ibid., 390.

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por meio de um processo chamado hidrolise, ou hidrólise, qualquer reação

química que envolva a quebra de uma molécula por ação da água.161

Pimenta Bueno se volta mais adiante à ação da água sobre o metabolismo

e a bioquímica das proteínas. Como havia concluído em seus primeiros artigos,

uma hidratação intensa e, sobretudo, prolongada induziria o núcleo das células

a dividir-se e, ao mesmo tempo, desintegraria a estrutura celular como um

todo.162 Ele explica que no início da cariocinese — processo de divisão do

núcleo — a água penetraria a célula em abundancia, fazendo com que seu

núcleo aumentasse sua turgescência.163 A conclusão não se dá ao acaso. Baseia-

se no livro Sémiologie oculaire: le cristallin: anatomie, physiologie, pathologie,

publicado em 1926 pelo oftalmologista francês Felix Terrien (1872-1940). Nele,

Terrien debruça-se sobre o estudo das lesões anatômicas das fibras cristalinas

características da catarata. Ao analisar suas ideias, Pimenta Bueno infere que a

hidratação levaria as fibras cristalinas à perda de seus caracteres diferenciais,

desintegrando as proteínas que as constituem, levando as células a se

proliferarem, condição que já não mais gozavam.164

Voltaremos à questão da catarata, analisada por Pimenta Bueno em seus

artigos, mais adiante.165 Por hora, é interessante ressaltar que neste trecho de

seus artigos, mais que em qualquer outro, o médico apoia-se nos escritos de

diversos cientistas, sobretudo franceses e italianos, para reforçar a hipótese de

161 Ibid. 162 Ibid., 18: 437. 163 Ibid., 440. 164 Ibid. 165 Uma análise preliminar sobre a possível relação entre catarata e tumores, na visão de Pimenta Bueno, encontra-se em: Fioravanti, “Pioneiros da Pesquisa em Câncer no Brasil”, 239.

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que o câncer procederia por meio de um processo de desintegração hidrolítica

das células normais, o que sugere que a célula se desintegraria por causa do

excesso de água.166 Ao citar suas fontes, no entanto, Pimenta Bueno faz questão

de dizer que as citações por ele usadas em seus artigos gozavam de valor e

força de argumentos absolutamente insuspeitos e imparciais, já que eram

fornecidos como resultado de pesquisas orientadas para outros rumos e de

índole inteiramente diversa da que presidia seu trabalho.167

De fato, Pimenta Bueno cita muitos cientistas ao longo de seus artigos,

como Arnoldi, Rondoni, Ruffini e Laborde, Mayer, Schaeffer, Terroine, para

citar alguns nomes. Contudo, nos concentraremos nas ideias de alguns deles,

mais especificamente. Primeiro porque esses autores são citados com muito

mais frequência por Pimenta Bueno. Segundo porque suas ideias, como

veremos, foram determinantes para que o médico formulasse sua teoria sobre a

etiologia do câncer.

Da catarata aos tumores

Pimenta Bueno se apoia essencialmente nas ideais do médico francês

Jules Verne para melhor estudar a constituição das melaninas, elemento

característico dos melanomas, um tipo bastante agressivo de câncer de pele. O

faz tendo como base o livro Les pigments dans l’organisme animal, então mais

recente trabalho de Verne, publicado em Paris em 1926. Em seu livro, o médico

166 Pimenta Bueno, “O estudo da pathogenia”, 18: 439. 167 Ibid., 438.

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explica que o processo bioquímico de produção de melanina, também chamado

de melanogenese, se daria pela desintegração de moléculas proteicas no núcleo

das células por um fermento oxidante.

Demonstrei que a melanina em geral é produzida por

meio da ação de um fermento oxidante especializado em

um receptor, substância oxidável cuja transformação dá a

melanina.168

Esta afirmação, aliás, repete-se várias vezes no mesmo livro. Vejamos o

que ele escreve em outro trecho de sua obra:

O conjunto dos resultados obtidos permite considerar as

melaninas como pigmentos que se formam durante a

desintegração das moléculas proteicas, quando algumas

condições que estudarei se encontram reunidas.169

A partir das ideias expostas no livro de Verne, Pimenta Bueno infere que

o surgimento da melanina se daria ao cabo de uma desintegração das proteínas

localizadas no plasma celular por meio da hidrolise.170 Veremos mais adiante

que o conhecimento sobre o papel da desintegração proteica para o surgimento

das melaninas lhe dará subsídios conceituais para estudar o processo

cancerígeno.

Isto posto de base, Pimenta Bueno procura se aproximar de uma

explicação mais precisa sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeiam o

câncer ao analisar os trabalhos dos oftalmologistas franceses Felix Lavagna

168 Verne, Les pigments, 302. 169 Ibid., 149. 170 Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 18: 439.

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(1896-1968) e, sobretudo, de Felix Terrien, citado há pouco. Ambos escreveram

intensamente sobre os aspectos físico-químicos associados ao cristalino normal

e patológico, concluindo que a catarata resultaria de uma hidrolise das proteínas

que compõem as fibras cristalinas. A bem da verdade, Pimenta Bueno não sabia

até que ponto a catarata poderia ser confundida com um tipo de câncer ocular,

mas estava convencido de que os processos bioquímicos que a desencadeavam

eram os mesmos que conduziam os tecidos ao câncer. Vejamos o que escreveu

sobre isso:

[...] o Cancer é um processo verdadeiramente lytico, por

hyperhydratação primitiva dos tecidos em que elle se

assesta. É por isso mesmo que acho muito estranhavel que

a catarata não seja o cancer do cristallino, tanto mais

quanto não sei de nenhum caso de cancer do cristallino

referido em literatura.171

Para o médico, a hidratação dependeria da intensidade de sua circulação

local — irrigação sanguínea — e agiria, pois, como um agente de simplificação

morfológica e, ao mesmo tempo, da atividade reprodutora das células, duas das

principais características dos tecidos cancerosos.172 Como vimos, o médico

infere no início de um de seus artigos que a hidratação intensa e, sobretudo,

prolongada induziria o núcleo das células a dividir-se, fenômeno ao qual refere-

se como caryocinése. Pimenta Bueno volta a pôr essa relação em destaque, agora

apoiando-se nos escritos de Lavagna e Terrien. Ao estudar a etiologia e

patogenia da catarata, Terrien afirma que “pesquisas recentes demonstraram

171 Ibid., 20: 468. 172 Ibid., 21: 493.

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que ocorreu certamente na catarata uma hidrólise de proteínas do cristalino e o

excesso de raios ultravioletas é capaz de favorecer esta hidrólise”.173 E conclui

mais adiante: “a catarata seria o resultado de uma hidratação atuando a favor

da alteração do epitélio sub-capsular”.174

Além de verificar que a catarata resultaria de um processo contínuo e

prolongado de hidratação das células das fibras do cristalino, Terrien também

observou que elas passavam a se multiplicar.

“Quando o cristalino ainda está transparente, mas já

aumentou de volume e peso, a membrana apresenta em

alguns lugares uma leve elevação. Nos pontos em que ela

não é mais aderente à capsula surgem as primeiras

modificações”.175

Em última análise, é possível concluir que os escritos de Lavagna e,

sobretudo, de Terrien permitiram a Pimenta Bueno encadear a sucessão de

ações que levavam as fibras do cristalino, adultas e diferenciadas, ao estado

embrionário, quando perdem suas características funcionais e recuperam a

capacidade de proliferarem-se, a saber, hiperemia176, hidratação e desintegração

hidrolítica dos compostos celulares, dos quais resultaria a simplificação do tipo

celular primitivo. Em outras palavras, as células de um tecido partiriam do

estado embrionário, onde o grau de hidratação passava por um máximo,

chegavam ao estado adulto, diferenciadas, quando o grau de hidratação

173 Terrien, Le Christallin, 151. 174 Ibid., 152. 175 Ibid., 177. 176 Pimenta Bueno refere-se ao aumento da quantidade de sangue circulante em determinado local, ocasionado pelo aumento do número de vasos sanguíneos funcionais, podendo ser desencadeada por processos patológicos como inflamações agudas, agressões térmicas e traumatismos.

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passava por um mínimo e, finalmente, eram submetidas a uma hiperemia, que

levava à hidratação das células, que voltavam ao estado embrionário e

readquiriam a capacidade de se proliferar (ver Figura 3). Da mesma forma, para

Pimenta Bueno, a processo cancerígeno seria semelhante ao da opacificação do

cristalino, já que sua patogenia também seria condicionada por uma hidratação

dos tecidos, determinada por um processo prévio, mais ou menos longo, de

hiperemia local, de irritação congestiva, seja qual fosse o agente dessa congestão,

microbiana, parasitária, tóxica, química, mecânica, traumática, física etc.177

Figura 3 — Gráfico elaborado por Pimenta Bueno para ilustrar o mecanismo que conduziria as células ao câncer, a saber, as células de um tecido partiriam do estado

embrionário, onde o grau de hidratação passava por um máximo, chegando ao estado adulto, diferenciadas, quando o grau de hidratação passa por um mínimo; quando,

então, submetidas a uma hiperemia, as células se hidratam e voltam ao estado embrionário, readquirindo a capacidade de se proliferar.178

177 Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 18: 441. 178 Ibid., 20: 473.

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A conclusão era importante, mas não queria dizer que todo e qualquer

processo alinhado a essa sucessão de eventos levaria os tecidos ao câncer. Para

Pimenta Bueno, era preciso tempo para que a lesão inicial se transformasse em

um câncer, quando não fosse logo desencadeado pela intensidade da ação que

provocou a lesão inicial. Isso, segundo ele, explicava o fato de o câncer ser mais

comum em indivíduos de idade mais avançada.179 Ainda tendo a catarata como

base para o estudo dos mecanismos do câncer, o médico debruça-se sobre as

lesões oculares causadas por fulguração elétrica, raios e descargas elétricas de

alta tensão, todas conhecidas por desencadearem a catarata. A partir das ideias

de Terrien, ele conclui que, em consequência da ação da eletricidade, sobreviria

uma hiperemia, a que se seguiria a hidratação do cristalino, então a

desintegração hidrolítica das células que compunham suas fibras. Essas células

voltariam ao tipo embrionário, recuperando a capacidade de se proliferar.180

É importante ressaltar que enquanto Terrien estudava como fulgurações

poderiam causar lesões no cristalino, levando à catarata, Lavagna concluía que

o traumatismo, a naftalina, o diabetes, a senilidade, entre outras condições,

poderiam desencadear a mesma sequência de ações (hiperemia, hidratação,

desintegração hidrolítica) que culminaria na catarata. É interessante notar como as

constatações de Lavagna foram importantes para que Pimenta Bueno pudesse

fazer outro paralelo entre os mecanismos do câncer e da catarata.181 Segundo

ele, as conclusões de Lavagna seriam bastante pertinentes à condição de se ter

em mente a lei das reações específicas propostas pelo fisiologista alemão

179 Ibid., 18: 442. 180 Ibid., 18: 442. 181 Ibid., 21: 491.

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Johannes Müller no livro Handbuch der Physiologie des Menschen. Nele, Müller se

dedica ao estudo da ação nervosa e dos mecanismos sensitivos, estabelecendo,

talvez pela primeira vez, o principio segundo o qual o tipo de sensação que se

segue a uma estimulação não dependeria do tipo de estimulação, mas da

natureza do órgão sensitivo. Em outras palavras, as reações seriam especificas

de acordo com a natureza do tecido, e não com a dos agentes excitadores.

Seguindo este princípio, Pimenta Bueno diz que a catarata seria o modo ou a

maneira pela qual o cristalino reagiria a toda causa capaz de determinar a

vasodilatação ou a hiperemia do aparelho ciliar.182

A cataracta é, pois, uma syndrome e não uma molestia.

Ella poderá ser determinada por factores os mais diversos

em sua natureza mesma, mas todos identicos em seu

determinismo, em seu efeito final que é a cataracta.183

Há neste particular uma perfeita similaridade entre o que se dá com o

mecanismo da catarata e o do câncer, de acordo com Pimenta Bueno. Como a

catarata, o câncer teria como agentes as mais variadas causas físicas, químicas,

biológicas, mecânicas, entre outras; todas idênticas pelo só fato de que agem

produzindo uma irritação — hiperemia —, mais ou menos duradoura, e de que

resultaria, como na catarata, uma desintegração hidrolítica das proteínas celulares,

a perda de seus caracteres diferenciais, isto é, a volta ao estágio embrionário, e,

finalmente, o reestabelecimento da capacidade de proliferação.184 O câncer, para

o médico, seria, pois, uma síndrome, como a catarata, que dependendo das

condições gerais, se manifestaria localmente em uma determinada área irritada. 182 Ibid., 18: 442. 183 Ibid. 184 Ibid., 23: 549.

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As condições gerais para o desenvolvimento da doença respeitariam, contudo,

o metabolismo das células próprias de cada órgão, em concordância com a lei

das reações específicas de Müller, de modo que o câncer resultaria sempre de

um excesso de nutrição local, isto é, de uma hiperemia.

Em suma, Pimenta Bueno procura demonstrar a identidade bioquímica

que haveria de existir entre o processo de opacificação do cristalino e o de

cancerização dos tecidos saudáveis, sem, no entanto, fazer da opacificação, em

si, um processo canceroso. Ao aproximar os dois processos, o médico baseia-se

no pressuposto de que a catarata seria determinada pela hidratação do

cristalino. Logo, sendo ela ao mesmo tempo caracterizada pela proliferação de

suas células, até então inertes deste ponto de vista, e que por isso regrediam em

seu tipo morfológico, então estaria justificado o conceito que ele tinha do

mecanismo do câncer e, sobretudo, sua maneira de interpretar esses fenômenos

como devido à mesma hidratação.

A semelhança entre os dois processos perduraria a propósito da

possibilidade de ambas as condições poderem ser causadas por um dos

produtos de destilação do alcatrão, como a naftalina, por exemplo.185 Com

efeito, tanto a catarata quanto o câncer também seriam complicações muito

notadas em síndromes como o diabetes ou o mesmo o alcoolismo, sendo que

todos os agentes físicos capazes de determinar o câncer poderiam igualmente

185 Ibid., 20: 468.

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determinar a catarata, a saber, traumatismos e irritações térmicas, luminosas,

ultravioletas, Raios X e eletricidade.186

É interessante fazer aqui um paralelo às ideias do médico francês Eugène

Doyen187, segundo as quais o câncer seria uma doença infecciosa crônica que

poderia ser induzida pela injeção de microrganismos e se desenvolveria mais

facilmente em células que já haviam sido irritadas por infecções anteriores.188

Vale lembrar que no livro de 1909, ele afirmou que a gênese dos tumores seria a

expressão de um ato de defesa do organismo contra a invasão de um germe

patológico.189 Algo semelhante havia sido sugerido pelo patologista alemão

Julius Cohnheim, que considerava terem todos os tumores uma origem

embrionária — conforme também foi visto no primeiro capítulo desta

dissertação.190 Para ele, os tumores malignos seriam determinados pelo

crescimento de células embrionárias esparsas pelo organismo. Ocorre, porém,

que as ideias propostas por Cohnheim, mesmo tendo sido aceitas por inúmeros

cientistas, não conseguiram penetrar o âmago da questão, a saber, quais as

razões que determinavam a proliferação das células embrionárias.

Como podemos concluir a partir da análise dos artigos de Pimenta

Bueno, o médico defende o ponto de vista de que a cancerização dos tecidos,

em sua natureza íntima, com a regressão das células ao estado embrionário,

resultaria de um paroxismo inflamatório, então o último estágio de reação dos

186 Ibid. 187 Vide página 20. 188 Doyen, Le Cancer, 106. 189 Ibid., 32-33. 190 Vide página 5.

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tecidos a irritações compulsórias.191 Ou seja, o câncer resultaria de uma super

hidratação celular de um tecido até então normal ou simplesmente irritado,

inflamado, em que se formam com grande abundancia produtos de

desintegração proteica.192 A volta ao estágio embrionário, por sua vez, seria um

mecanismo das células para remediar as feridas causadas por essas irritações.

Por outros caminhos, essa mesma hiper-hidratação poderia levar a um acúmulo

de ácidos no interior das células.193 Dessa forma, o câncer para Pimenta Bueno

seria resultado de uma acidose celular, ou seria, ela mesma, o câncer.

191 Pimenta Bueno, “Estudo da pathogenia”, 21: 496. 192 Ibid., 29: 720. 193 Ibid., 47: 1319.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação expôs como os conceitos relacionados aos mecanismos do

câncer foram construídos e reinterpretados ao longo do século XIX, e como

médicos e cientistas, cada um a seu modo e com os instrumentos materiais e

conceituais de sua época, tentaram entender a origem da doença, propondo

novos caminhos conceituais, médicos e institucionais de pesquisa e tratamento

para a moléstia. Por caminhos silenciosos e menos trilhados, muitos cientistas

tentaram entender a etiologia do câncer na segunda metade do século XIX e no

início do século XX, propondo diversas teorias sobre as possíveis origens das

células tumorais. Muitos encontraram evidências médicas que não puderam (ou

souberam) interpretar; outros implantaram técnicas de tratamento que, não raro,

fizeram mal a eles próprios.

Nesse sentido, as análises levadas a cabo neste trabalho nos permitem

concluir que o câncer, uma doença sobre a qual outrora se falava aos sussurros,

metamorfoseou-se ao longo do século XIX em uma entidade cada vez mais

discutida e estudada, sobretudo na Europa. Isso se deveu, em grande medida, ao

aumento da incidência das pesquisas no campo da biologia celular, capitaneadas

por cientistas como Johannes Müller e Rudolf Virchow, cujos trabalhos em

meados daquele século possibilitaram um melhor entendimento do

funcionamento celular e, portanto, das condições que poderiam favorecer ou

determinar o surgimento das células cancerígenas.

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80

É igualmente notável o modo como o câncer deixou o quase anonimato e

se tornou uma questão de saúde pública no Brasil, transformando-se em um dos

principais focos da atenção de médicos e pesquisadores brasileiros. As

evidências obtidas nesta dissertação sugerem que a construção do câncer como

problema médico no Brasil nas primeiras décadas do século XX se deu em meio

a um cenário em que a preocupação maior ainda se centrava em doenças de

maior impacto social, como sífilis e tuberculose. O fato de em um primeiro

momento médicos e pesquisadores priorizarem a definição das melhores ou

mais adequadas técnicas cirúrgicas para a extirpação dos tumores, ou a

realização de estudos epidemiológicos que ajudassem a delimitar o alcance da

doença na população, está de acordo com a concepção médica da época de que

os pressupostos conceituais sobre a etiologia do câncer já haviam todos sido

estabelecidos por pesquisadores europeus.

Conforme pudemos verificar ao longo deste trabalho, poucos foram os

cientistas brasileiros que se propuseram ir além dos pressupostos conceituais

estabelecidos e investigar os mecanismos que conduziam os tecidos ao câncer.

Tudo indica que Pimenta Bueno foi um dos poucos a examinar a etiologia do

processo cancerígeno no Brasil, corporificando seus pontos de vista em uma

série de artigos publicados na revista científica O Brasil Médico. A análise de seu

trabalho nos permite concluir que o médico fez uma síntese dos escritos sobre

fenômenos celulares acumulados até então, ajustando ao seu raciocínio

conceitos clássicos elaborados por aqueles que vieram antes dele e por seus

contemporâneos, recorrendo a esses autores em diversos momentos, a fim de

justificar seus argumentos.

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Em seus artigos, o médico coordena fatos clínicos e experimentais à luz do

campo da física médica e das ideias do físico e fisiologista alemão Hermann von

Helmholtz sobre a lei da conservação de energia para, então, propor uma

explicação sobre os fenômenos bioquímicos que desencadeariam o câncer a

partir dos trabalhos dos oftalmologistas franceses Felix Lavagna e Felix Terrien

sobre os mecanismos da catarata. A partir do cruzamento desses e de vários

outros materiais, o médico tira conclusões bastante originais, ao menos no que

tange o panorama científico brasileiro. De um modo mais amplo, a análise dos

documentos aqui apresentados nos permite concluir que o trabalho do médico é

fruto de uma mudança de percepção da classe médica e do poder público sobre

o câncer no Brasil nas primeiras duas décadas do século XX, que aos poucos

incorporou a doença como um problema de saúde pública na agenda

governamental do país.

Ao mesmo tempo, se é verdade que o médico apresenta ideias originais

sobre a etiologia do câncer, também é notório que também defende princípios

que destoam em meio ao conhecimento científico de sua época. Isso porque não

encontramos ao longo de nossa pesquisa estudos ou teorias alinhadas à

possibilidade de qualquer célula, integrante da coletividade orgânica, após sua

completa evolução embrionária e já em estado adulto, ser capaz de retroceder

sobre seus passos, sob influência de fatores diversos, e tender ao seu estado

embrionário, tornando-se maligna. Para alguém que dizia não estar sujeito à

volúpia da notoriedade ou mesmo ao desejo comum de também ter ideias

próprias sobre os mecanismos do câncer, suas teorias são um tanto singulares.

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De fato, muitos outros estudos são necessários para que possamos

compreender melhor o trabalho de Pimenta Bueno, e muitas perguntas ainda

precisam ser contempladas. Apesar das contribuições que esperamos ter feito

com este trabalho, ainda é preciso investigar melhor de que forma Pimenta

Bueno teve contato com o conhecimento discutido e analisado em seus artigos,

se também embarcou para o exterior em temporadas de estudo e pesquisa como

outros médicos e pesquisadores de sua época, se manteve diálogo direto com

algum cientista de fora do país, ou mesmo o modo como se deu sua formação

na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Sem uma compreensão mais

ampla de sua formação, carreira e produção científica, estaremos fadados a ter

uma visão unilateral e, portanto, insuficiente de suas ideias.

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