Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em...

7
Revista Brasileira de Nutrição Funcional - ano 14, nº59, 2014 Por José Maria Filho, jornalista 45 O excesso de agrotóxicos da agricultura brasileira: o insustentável anunciado O tema é uma questão de saúde pública, de vida ou morte e preservação do meio ambiente. São necessárias decisões políticas que quebrem velhos paradigmas e viabilizem a aplicação de métodos e tecnologias para promover uma agricultura mais limpa e sustentada ao longo do tempo, que respeite as condições da natureza e a recomposição de matas nativas, com a eliminação de vários tipos de agrotóxicos ainda usados por aqui que já foram proibidos em países da Europa e nos EUA, a redução do volume de agroquímicos na agricultura brasileira, a produção de alimentos com vitalidade positiva, e a recuperação de solos e nascentes degradados. Para isso, os cidadãos devem estar diretamente envolvidos e engajados em cada etapa do processo, assim como são necessárias uma maior participação nas audiências públicas e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de bem estar para as gerações atuais e futuras. Pesquisas científicas nacionais e internacionais têm apontado os danos causados à saúde do planeta e ao ser vivo pelo uso abusivo de agrotóxicos. O maior engajamento do cidadão começa a ganhar repercussão nacional com movimentos de diversas organizações da sociedade civil. Um desses movimentos é a Campanha Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos coordenada pela CNTU – Confederação Nacional de Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados –, que integra a Campanha Brasil Inteligente, que soma outros 7 temas de interesse das categorias que congregam a entidade, como as federações de engenheiros, médicos, farmacêuticos, nutricionistas, odontólogos e o Sindicato dos Economistas do Estado de São Paulo, representando, juntas, em torno de 100 sindicatos no Brasil. Cada categoria elegeu um tema a ser trabalhado, e a Campanha Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos foi escolhida pela FEBRAN – Federação Interestadual dos Nutricionistas dos Estados de Alagoas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e São Paulo. Murilo Celso de Campos Pinheiro, presidente da CNTU Foto: Beatriz Arruda/SEESP Reunião CNTU sobre a Campanha contra o uso abusivo dos agrotóxicos Foto: Beatriz Arruda/SEESP

Transcript of Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em...

Page 1: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

Por José Maria Filho, jornalista

45

O excesso de agrotóxicos da agricultura brasileira: o insustentável anunciado

O tema é uma questão de saúde pública, de vida ou morte e preservação do meio ambiente. São necessárias decisões políticas que quebrem velhos paradigmas e viabilizem a aplicação de métodos e tecnologias para promover uma agricultura mais limpa e sustentada ao longo do tempo, que respeite as condições da natureza e a recomposição de matas nativas, com a eliminação de vários tipos de agrotóxicos ainda usados por aqui que já foram proibidos em países da Europa e nos EUA, a redução do volume de agroquímicos na agricultura brasileira, a produção de alimentos com vitalidade positiva, e a recuperação de solos e nascentes degradados. Para isso, os cidadãos devem estar diretamente envolvidos e engajados em cada etapa do processo, assim como são necessárias uma maior participação nas audiências públicas e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de bem estar para as gerações atuais e futuras.

Pesquisas científicas nacionais e internacionais têm apontado os danos causados à saúde do planeta

e ao ser vivo pelo uso abusivo de agrotóxicos. O maior engajamento do cidadão começa a ganhar repercussão nacional com movimentos de diversas organizações da sociedade civil.

Um desses movimentos é a Campanha Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos coordenada pela CNTU – Confederação Nacional de Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados –, que integra a Campanha Brasil Inteligente, que soma outros 7 temas de interesse das categorias que congregam a entidade, como as federações de engenheiros, médicos, farmacêuticos, nutricionistas, odontólogos e o Sindicato dos Economistas do Estado de São Paulo, representando, juntas, em torno de 100 sindicatos no Brasil.

Cada categoria elegeu um tema a ser trabalhado, e a Campanha Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos foi escolhida pela FEBRAN – Federação Interestadual dos Nutricionistas dos Estados de Alagoas, Bahia, Mato Grosso do Sul, Pará, Pernambuco e São Paulo.

Murilo Celso de Campos Pinheiro, presidente da CNTUFoto: Beatriz Arruda/SEESP

Reunião CNTU sobre a Campanha contra o uso abusivo dos agrotóxicos Foto: Beatriz Arruda/SEESP

Page 2: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

O excesso de agrotóxicos da agricultura brasileira: o insustentável anunciado

46

Para Murilo Celso de Campos Pinheiro, presidente da CNTU, a questão dos agrotóxicos é gravíssima no Brasil. A bandeira foi proposta na época pelo SINESP - Sindicato dos Nutricionistas do Estado de São Paulo – com coordenação nacional da CNTU. “Conforme têm demonstrado os nossos companheiros nutricionistas, garantir a segurança alimentar da população brasileira passa necessariamente por cultivar e comercializar produtos livres dessas substâncias que têm inúmeros e graves efeitos sobre a saúde e o ambiente. Um ponto essencial é banir do Brasil os agrotóxicos que já são proibidos na Europa, por exemplo, mas que continuam presentes nas refeições do nosso povo. Foi elaborado um documento sobre o tema, lançado durante a jornada da Campanha Brasil Inteligente, e a partir daí iniciaram-se diversas discussões e debates com especialistas e outras organizações, processo que vem sendo coordenado e executado com muita competência pelo nutricionista Ernane Silveira Rosas, Presidente do SINESP e da FEBRAN”,

diz Murilo. Murilo considera a participação do nutricionista

parte essencial da campanha. “Quem chamou a atenção da entidade para a importância de se defender uma alimentação saudável, livre de agrotóxicos, foram os nutricionistas, e são principalmente eles que detém o saber, o conhecimento técnico e científico e a experiência sobre o assunto, que podem fortalecer essa luta e fazê-la vitoriosa. Ao longo da Campanha Brasil Inteligente temos visto uma adesão muito importante da categoria, o que demonstra, de fato, seu compromisso com o bem-estar da população”. Outra categoria profissional que interage cada vez mais na campanha, de acordo com Murilo, são os engenheiros agrônomos, que junto com os nutricionistas avançam para uma maior integração na discussão. “A sustentabilidade é hoje um imperativo no trabalho dos engenheiros e, portanto, deve ser também a tônica nessa área literalmente vital”.

O nutricionista Dr. Ernane Silveira Rosas, presidente do SINESP e da FEBRAN

De acordo com o Dr. Ernane Silveira Rosas, presidente do SINESP e da FEBRAN, que integra a CNTU para tornar esse debate mais inteligente, a entidade está em constante sintonia com sindicatos, ONGs e também com cientistas para que possam subsidiar as ações e qualificar ainda mais as discussões. A estratégia da entidade é

divulgar aos nutricionistas as ações da Campanha, conscientizá-los da importância de assumirem o papel de educadores e formadores de opinião na prevenção de doenças, principalmente aquelas que sabemos que têm ligação com o consumo de alimentos envenenados pelos agrotóxicos.

Page 3: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

Por José Maria Filho, jornalista

47

Podemos consumir alimentos produzidos sem veneno!

Segundo Ernane “Precisamos entender que estas discussões serão sempre decididas no parlamento brasileiro. Portanto elas sempre serão decisões políticas. E precisamos saber quem é o vereador, o prefeito, o deputado, o senador, o governador e o presidente que se preocupa com a nossa saúde, com a nossa vida e bem-estar. E saber também (para não errar e eleger) qual desses políticos só está preocupado em atender aos interesses das multinacionais que dilapidam o que temos de melhor (nossas matas, nossa fauna e flora, nossos rios, nosso ar) porque querem preservar seus países de origem da destruição causada pelos seus produtos, ou ao seu próprio interesse financeiro”.

Há 3 anos, no dia 7 de abril de 2011, data em que é comemorado o Dia Mundial da Saúde, foi

criada a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, coordenada por Susana Prizendt. Este movimento surgiu com a missão de alertar a população do país para o atual uso recorde de venenos agrícolas em nosso território, buscando uma transformação deste cenário tão alarmante. “De lá pra cá já conseguimos instalar comitês na maior parte dos estados brasileiros e realizamos um amplo conjunto de atividades para levar informações aos cidadãos de todas as classes sociais e promover ações concretas para modificar o atual sistema de cultivo, baseado no agronegócio monocultor, latifundiário, mecanizado e dependente de produtos tóxicos, de modo a rumarmos para um novo modelo, ancorado nos princípios da agroecologia”, diz Susana.

Susana Prizendt, coordenadora da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida

Alimentos orgânicos aos escolares

A Campanha Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos, neste momento, se empenha junto ao Legislativo municipal para aprovar um projeto de lei a fim de tornar obrigatória a adoção de produtos orgânicos na alimentação escolar no Município de São Paulo. A mesma estratégia é intensa junto ao Executivo municipal, para que o prefeito Fernando Haddad, que foi ministro da Educação dos governos Lula e Dilma, sancione o projeto que levaria alimentos com energia vital à população escolar, extremamente necessária para o desenvolvimento da educação.

“Toda decisão que o prefeito toma é sempre uma decisão política. E a política sempre envolve

forças às vezes muito diferentes (que chegam a ser até antagônicas). O prefeito irá tomar a decisão que os seus eleitores pedem para tomar. Porém, se houver uma apatia geral quanto à Prefeitura de São Paulo servir ou não servir alimentação escolar com agrotóxico, o prefeito pode decidir pelo que vai custar menos aos cofres públicos imediatamente, e não o que irá custar em investimentos em saúde pública para ele tentar curar os doentes que foram contaminados pelos alimentos tratados com agrotóxico, porque ainda pode demorar 10, 15 ou 30 anos para aparecerem os primeiros sintomas”, acrescenta o nutricionista.

Page 4: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

O excesso de agrotóxicos da agricultura brasileira: o insustentável anunciado

48

A percepção no meio urbano

De acordo com Susana, os centros urbanos têm menos contato com o mundo do cultivo agrícola, e há uma tendência a ignorar o assunto no dia a dia, mas em São Paulo conseguimos mobilizar um grupo de vereadores desde a época em que eram candidatos, assegurando um rico diálogo na Câmara Municipal, inclusive com a realização de seminários sobre o tema em seus auditórios. Há projetos de lei importantes, prontos para serem votados, e para isso é preciso que a população e a mídia se manifestem, cobrando dos parlamentares a sua aprovação. Em relação ao Poder Executivo, há diálogo com algumas secretarias, mas o processo esbarra na burocracia e mesmo na desorganização decorrente da troca de comando de cargos pelos ajustes entre os partidos da situação, além da questão da escala (já que tudo aqui é monumental). No caso dos municípios menos urbanizados, em que a atividade rural ainda é forte, há outros problemas, como a influência muito mais forte dos representantes do agronegócio, que, além de exercer maior pressão sobre o poder público, podem cooptar ou intimidar a população, mantendo-a sob seu controle, às vezes com o uso da violência.

Susana observa que gradualmente ocorre uma retomada de consciência e de posição de inúmeros setores da sociedade. O aumento de problemas graves de saúde, como o câncer, e os desequilíbrios ambientais decorrentes da perda da biodiversidade e da contaminação por substâncias altamente lesivas já despertam cada vez mais a atenção das pessoas. “Os profissionais da nutrição estão entre os que já despertaram para esse quadro e começam a assumir um papel de destaque para garantir mudanças rumo

à alimentação segura e, portanto, à agricultura limpa. Quando a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida foi criada, por meio da união de dezenas de organizações, ela nasceu justamente com esse objetivo: tornar-se uma grande frente, capaz de mobilizar a sociedade para combater o atual modelo tóxico, rompendo com o poder hegemônico dos setores ligados à indústria agroquímica”, completa.

Saiba mais:

- Campanha Brasil Inteligentewww.cntu.org.br/cntu/brasil-inteligente

- Campanha Nacional Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos Coordenação Nacional: CNTU – Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados http://www.cntu.org.br/cntu/brasil-inteligente-tema/alimentacao-saudavel-contra-o-uso-abusivo-de-agrotoxicos

FEBRAN – Federação Interestadual Brasileira de Nutricionistas e SINESP – Sindicato dos Nutricionistas do Estado de São Paulowww.sindicatonutricionistas.com.br

- Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vidawww.contraosagrotoxicos.org

- Mapa de Feiras Orgânicas – IDECwww.idec.org.br/feirasorganicas

A Campanha é constituída por organizações que representam setores de um amplo conjunto da sociedade, como profissionais da saúde, defensores dos direitos humanos, movimentos campesinos, entidades ambientalistas e instituições dedicadas ao ensino e à pesquisa acadêmica. “Devido a essa constituição tão diversa, temos a possibilidade de agir em instâncias que vão desde a produção do conhecimento sobre o assunto às

manifestações públicas populares, passando pela redação de artigos para a mídia, pelo trabalho de base com os trabalhadores rurais e pelo diálogo com o poder público, sempre com o intuito de buscar a integração entre os representantes de todos esses setores, tentando reunir forças para enfrentar o poder da elite político-econômica que é responsável pelo atual modelo tóxico e injusto de produção no campo”, comenta Susana.

Page 5: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

Por José Maria Filho, jornalista

49

Entrevista com o Prof. Dr. Cesar Koppe Grisolia, autor do livro “Agrotóxicos: Mutações, Câncer & Reprodução”

Prof. Dr. Cesar Koppe Grisolia, da UnB

JM - Na última década o Brasil vem pontuando como um sucesso no campo do agrobusiness. A agricultura tem sustentado o crescimento do PIB brasileiro, mas ao mesmo tempo somos considerados os campeões no uso de agrotóxicos, inclusive aqueles proibidos em países da Europa e nos EUA. Qual é a posição atual do Brasil em relação ao uso de agrotóxicos? Quais são os produtos que são proibidos no exterior que usamos por aqui sem restrições e por que isso ocorre? Sabendo que lá fora há restrições, há falha por parte dos órgãos fiscalizadores?

Prof. Cesar - Os órgãos regulamentadores e fiscalizadores, como IBAMA, ANVISA e MAPA, agem de acordo com a legislação em vigor. Muitos agrotóxicos já proibidos no Brasil, bem como em outros países, continuam a ser usados, pois entram no país ilegalmente, contrabandeados.

Com relação às proibições em outros países, o exemplo mais sério ocorre com relação aos herbicidas triazínicos, que foram banidos na

Europa pela Comunidade Europeia, mas são permitidos no Brasil. Essa classe de herbicidas sofre escoamento superficial e atinge corpos de águas superficiais, além de lixiviar e atingir o lençol freático. Resíduos de herbicidas triazínicos já foram encontrados em águas subterrâneas nos Estados Unidos. No Brasil esses herbicidas são muito usados na cultura da cana-de-açúcar e já foram detectados por pesquisadores do Estado de São Paulo nas águas subterrâneas paulistas. Os herbicidas do grupo triazinas possuem nitrosaminas como resíduos de síntese. As nitrosaminas no pH ácido do estômago humano podem transformar-se em compostos nitrosos que são reconhecidamente carcinogênicos, principalmente ao fígado.

JM - Em seu livro “Agrotóxicos: Mutações, Câncer & Reprodução”, lançado pela Editora UnB, você estabelece uma relação entre os riscos ao homem e ao meio ambiente e os efeitos cancerígenos destas substâncias.Isso pode ocorrer em função da exposição ao produto direto no campo?

Page 6: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

O excesso de agrotóxicos da agricultura brasileira: o insustentável anunciado

50

Prof. Cesar - Os aplicadores de agrotóxicos são os mais vulneráveis, pois não usam EPIs, ou, quando usam, o fazem irregularmente. As estatísticas do SINTOX do Ministério da Saúde são subestimadas, pois no interior do Brasil há muitos casos de intoxicações, inclusive com óbito, que não são notificados. A venda de agrotóxicos sem o receituário agronômico e o desrespeito ao intervalo de carência, que é o intervalo entre a última aplicação do agrotóxico e a colheita, aumentam os riscos de exposição, bem como os níveis de resíduos nos alimentos.

JM - Esse risco também existe pela ingestão de alimentos produzidos com essas substâncias? Neste caso, como ocorre essa mutação, e em quanto tempo isso pode ocorrer no organismo?

Prof. Cesar - É muito difícil quantificar o quanto a população estaria exposta por meio da ingestão, pois os dados que temos do programa PARA (Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos) da ANVISA são muito pontuais em termos das grandes dimensões nacionais. Podemos fazer um raciocínio lógico – “quanto mais veneno no campo, mais resíduos nos alimentos”, assim como maiores seriam os riscos toxicológicos. Nós já publicamos dois artigos científicos demonstrando que algumas formulações do herbicida glifosato provocam alterações no material genético (mutações) de peixes e outros animais experimentais. O herbicida glifosato é o agrotóxico mais comercializado no mundo todo, inclusive no Brasil.

JM - Quais são os riscos da aplicação de agrotóxicos pela água ou ar?

Prof. Cesar - A agricultura extensiva com a utilização de pulverização aérea é a maior responsável pelas contaminações das águas e do ar. Somente cerca de 30% dos agrotóxicos pulverizados por avião caem sobre a lavoura – os outros 70% sofrem deriva, isto é, atingem matas, propriedades dos vizinhos, rios e até cidades, como tem ocorrido no sul do Estado de Goiás.

JM - Nos últimos anos observamos um aumento na incidência de pessoas com câncer de vários tipos. Considerando que a maioria dos alimentos que consumimos são oriundos

de uma agricultura que utiliza agrotóxicos, podemos dizer que este quadro também pode ser atribuído ao excesso de agrotóxicos?

Prof. Cesar - Para se fazer esse tipo de

associação há a necessidade de estudos mais profundos de correlação entre a presença de moléculas agrotóxicas carcinogênicas no corpo do indivíduo exposto e a ocorrência do câncer. O câncer é uma doença multifatorial, e a sociedade industrial moderna produz muitas substâncias químicas, além dos agrotóxicos, e fatores que aumentam o risco para câncer como o tabagismo, aditivos químicos nos alimentos industrializados, automedicação, poluição do ar por combustíveis fósseis, entre outros. Esses são fatores de interferência que nos dificultam fazer associações diretas entre exposição aos agrotóxicos com o câncer. Para certificar-se sobre essa associação é necessário realizar um estudo epidemiológico com uma amostra de indivíduos estatisticamente significativa.

JM - Outra consequência da exposição ao agrotóxico apontada no seu livro, apesar da dificuldade diagnóstica e dos estudos inconclusivos mencionados, é em relação à queda da fertilidade masculina. Como se dá esse fenômeno? E também pode ocorrer queda na fertilidade em mulheres?

Prof. Cesar - Existem moléculas de agrotóxicos com efeitos estrogênicos, como alguns compostos clorados, além de outras moléculas que interferem com o sistema endócrino. Moléculas endócrino-ativas podem interferir no sistema reprodutor tanto masculino como feminino.

JM- Em “O Futuro Roubado”, os autores Theo Colborn, Dianne Dumanoski e John Peterson Myers fazem um relato dramático da queda de fertilidade em animais, e comentam que muitos nascem com anomalias.

No primeiro capítulo, os pesquisadores relatam o caso ocorrido na costa leste do Canadá e dos Estados Unidos, onde o canadense Charles Broley, em 1939, iniciou estudo sobre as águias americanas, mais precisamente na Flórida, acompanhando 125 ninhos, o que representava cerca de 150 filhotes por ano. Em

Page 7: Por José Maria Filho, jornalista O excesso de agrotóxicos ......e a inserção do tema em programas de campanha eleitoral dos partidos para um salto qualitativo e de ... o prefeito,

Revi

sta

Bras

ileir

a de

Nut

riçã

o Fu

ncio

nal -

ano

14,

nº5

9, 2

014

Por José Maria Filho, jornalista

51

1947, Broley percebeu que o número de águias havia caído violentamente e acabou constatando que, na época do acasalamento, as mesmas tinham perdido o hábito de fazer ninhos. Na continuação dos trabalhos durante o ano de 1952, ficou confirmado que 80% das águias da Flórida estavam estéreis. Essa infertilidade também poderia estar acometendo aves e animais no Brasil, dado os relatos frequentes de especialistas mencionando os riscos de extinção de determinadas espécies?

Prof. Cesar - Sim, pois as mesmas substâncias que causaram esses problemas no Canadá e nos Estados Unidos também são bastante utilizadas no Brasil. O maior problema ecológico no Brasil, associado ao uso indiscriminado de agrotóxicos, é a extinção de insetos polinizadores como as vespas e as abelhas.

JM - Em sua opinião, o sistema de agroecologia poderia dar um salto qualitativo para a produção agrícola no país, considerando que muitos países da Europa, e mesmo os EUA, optam por alimentos produzidos via agricultura sustentável e livre de agrotóxicos? Não seria uma ótima oportunidade para o Brasil, que é um grande produtor?

Prof. Cesar - O governo brasileiro tem verba e um programa para incentivar a agricultura familiar com base na agroecologia, como o PRONAF (Programa Nacional de Agricultura Familiar), mas esse programa não decola devido ao excesso de burocracia. Nesse caso, a participação das entidades de classe encabeçando esse processo poderia alavancar a agroecologia e a agricultura familiar, pois o Estado Brasileiro é lento, burocrático e corrupto. Além disso, muitos programas que estão dando certo são interrompidos por intrigas político-partidárias.

JM - Qual seu diagnóstico em relação às condições de veios d’água e saúde do solo caso continuemos com o sistema de produção

agrícola pautada no uso desenfreado de agrotóxico? Existe agrotóxico não prejudicial à saúde humana e ao meio ambiente?

Prof. Cesar - Os agrotóxicos são, por essência, biocidas. Foram produzidos para exterminar alguma forma de vida. A potência tóxica de um agrotóxico está ligada à natureza da molécula e à quantidade de uso. Os maiores episódios de contaminação ambiental e intoxicações humanas estão associados ao mau uso dos agrotóxicos. O contrabando de agrotóxicos, o desvio de uso, a sua utilização fora das recomendações agronômicas são as principais causas das contaminações.

A legislação brasileira que regulamenta o registro e uso de agrotóxicos é moderna e rigorosa, e acompanha as legislações dos países mais desenvolvidos. Por isso é que há um movimento lobista no Congresso Nacional para mudá-la e tornar o processo de registro no Brasil mais frouxo e permissivo. O grande problema no Brasil é a falta de fiscalização e de punição dos infratores. Ao apertar a fiscalização e punir os infratores, muitos desses problemas podem ser reduzidos.

*O Professor Cesar Kopper Grisolia é graduado em Ciências Biológicas, Modalidade Médica pela Universidade de São Paulo (1981), Mestre em Ciências Biológicas (Genética) pela Universidade de São Paulo (1985) e Doutor em Ciências Biológicas (Genética) pela Universidade de São Paulo (1991). Pós-doutorado em Ecotoxicologia, no Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro (Portugal, 2008), atualmente é professor Associado da Universidade de Brasília. Tem experiência na área de genética, com ênfase em mutagênese, atuando principalmente nos seguintes temas: ecotoxicologia, ecogenotoxicologia, mutagênese química e genética humana. Credenciado nos programas de pós-graduação em Patologia Molecular (Faculdade de Medicina da UnB) e Biologia Animal (Instituto de Ciências Biológicas da UnB), é pesquisador CNPq-1D e autor do livro “Agrotóxicos: Mutações, Câncer & Reprodução”, publicado pela Editora UnB.