Por Que É Tão Importante Ver as Estrelas e o Homem Nu

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Texto 1 O Homem Nu Fernando Sabino Ao acordar, disse para a mulher: — Escuta, minha filha: hoje é dia de pagar a prestação da televisão, vem aí o sujeito com a conta, na certa. Mas acontece que ontem eu não trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum. — Explique isso ao homem — ponderou a mulher. — Não gosto dessas coisas. Dá um ar de vigarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas obrigações. Escuta: quando ele vier a gente fica quieto aqui dentro, não faz barulho, para ele pensar que não tem ninguém. Deixa ele bater até cansar — amanhã eu pago. Pouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao banheiro para tomar um banho, mas a mulher já se trancara lá dentro. Enquanto esperava, resolveu fazer um café. Pôs a água a ferver e abriu a porta de serviço para apanhar o pão. Como estivesse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-se a dar dois passos até o embrulhinho deixado pelo padeiro sobre o mármore do parapeito. Ainda era muito cedo, não poderia aparecer ninguém. Mal seus dedos, porém, tocavam o pão, a porta atrás de si fechou- se com estrondo, impulsionada pelo vento. Aterrorizado, precipitou-se até a campainha e, depois de tocá-la, ficou à espera, olhando ansiosamente ao redor. Ouviu lá dentro o ruído da água do chuveiro interromper- se de súbito, mas ninguém veio abrir. Na certa a mulher pensava que já era o sujeito da televisão. Bateu com o nó dos dedos: — Maria! Abre aí, Maria. Sou eu — chamou, em voz baixa. Quanto mais batia, mais silêncio fazia lá dentro.

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conto de José Eduardo Agualusa

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Texto 1O Homem NuFernando SabinoAo acordar, disse para a mulher: Escuta, minha filha: hoje dia de pagar a presta!o da tele"is!o, "em a# o sujeitocom a conta, na certa$%as acontece &ue ontem eu n!o trouxe dinheiro da cidade, estou a nenhum$ Expli&ue isso ao homem ponderou a mulher$ N!o gosto dessas coisas$ '( um ar de "igarice, gosto de cumprir rigorosamente as minhas o)riga*es$ Escuta: &uando ele "ier a gente fica &uieto a&ui dentro, n!o fa+ )arulho, para ele pensar &ue n!o tem ningum$ 'eixa ele )ater at cansar amanh! eu pago$,ouco depois, tendo despido o pijama, dirigiu-se ao )anheiro para tomar um )anho,mas a mulher j( se trancara l( dentro$ En&uanto espera"a, resol"eu fa+er um caf$ ,.s a (gua a fer"er e a)riu a porta de ser"io para apanhar o p!o$/omo esti"esse completamente nu, olhou com cautela para um lado e para outro antes de arriscar-sea dar dois passos at o em)rulhinho deixado pelo padeiro so)re o m(rmore do parapeito$ Ainda era muito cedo, n!o poderia aparecer ningum$ %al seus dedos, porm, toca"am o p!o, a porta atr(s de si fechou-se com estrondo, impulsionada pelo "ento$Aterrori+ado, precipitou-se at a campainha e, depois de toc(-la, ficou 0 espera, olhando ansiosamente ao redor$ Ou"iu l( dentro o ru#do da (gua do chu"eiro interromper-se de s1)ito, mas ningum "eio a)rir$ Na certa a mulher pensa"a &ue j(era o sujeito da tele"is!o$ 2ateu com o n3 dos dedos: %aria4 A)re a#, %aria$ 5ou eu chamou, em "o+ )aixa$6uanto mais )atia, mais sil7ncio fa+ia l( dentro$En&uanto isso, ou"ia l( em)aixo a porta do ele"ador fechar-se, "iu o ponteiro su)ir lentamente os andares$$$'esta "e+, era o homem da tele"is!o4N!o era$ 8efugiado no lano da escada entre os andares, esperou &ue o ele"ador passasse, e "oltou para a porta de seu apartamento, sempre a segurar nas m!os ner"osas o em)rulho de p!o: %aria, por fa"or4 5ou eu4'esta "e+ n!o te"e tempo de insistir: ou"iu passos na escada, lentos, regulares, "indos l( de )aixo$$$ Tomado de p9nico, olhou ao redor, fa+endo uma pirueta, e assim despido, em)rulho na m!o, parecia executar um )allet grotesco e mal ensaiado$ Os passos na escada se aproxima"am, e ele sem onde se esconder$ /orreupara o ele"ador, apertou o )ot!o$ :oi o tempo de a)rir a porta e entrar, e a empregada passa"a, "agarosa, encetando a su)ida de mais um lano de escada$ Ele respirou ali"iado, enxugando o suor da testa com o em)rulho do p!o$%as eis &ue a porta interna do ele"ador se fecha e ele comea a descer$ Ah, isso &ue n!o4 fe+ o homem nu, so)ressaltado$E agora; Algum l( em)aixo a)riria a porta do ele"ador e daria com ele ali, em p7lo, podia mesmo ser algum "i+inho conhecido$$$ ,erce)eu, desorientado, &ue esta"a sendo le"ado cada "e+ para mais longe de seu apartamento, comea"a a "i"er um "erdadeiro pesadelo de sso &ue n!o repetiu, furioso$Agarrou-se 0 porta do ele"ador e a)riu-a com fora entre os andares, o)rigando-o a parar$8espirou fundo, fechando os olhos, para ter a moment9nea ilus!o de &ue sonha"a$ 'epois experimentou apertar o )ot!o do seu andar$ ?( em)aixo continua"am a chamar o ele"ador$Antes de mais nada: @Emerg7ncia: parar@$ %uito)em$ E agora; >ria su)ir ou descer;/om cautela desligou a parada de emerg7ncia, largou a porta, en&uanto insistia em fa+er o ele"ador su)ir$ O ele"ador su)iu$ %aria4 A)re esta porta4 grita"a, desta "e+ esmurrando a porta, j( sem nenhuma cautela$ Ou"iu &ue outra porta se a)ria atr(s de si$Aoltou-se, acuado, apoiando o traseiro no )atente e tentando inutilmente co)rir-se com o em)rulho de p!o$ Era a "elha do apartamento "i+inho: 2om dia, minha senhora disse ele, confuso$ >magine &ue eu$$$A "elha, estarrecida, atirou os )raos para cima, soltou um grito: Aalha-me 'eus4 O padeiro est( nu4E correu ao telefone para chamar a radiopatrulha: Tem um homem pelado a&ui na porta4Outros "i+inhos, ou"indo a gritaria, "ieram "er o &ue se passa"a: B um tarado4 Olha, &ue horror4 N!o olha n!o4 C( pra dentro, minha filha4%aria, a esposa do infeli+, a)riu finalmente a porta para "er o &ue era$ Ele entrou como um foguete e "estiu-se precipitadamente, sem nem se lem)rar do )anho$ ,oucos minutos depois, resta)elecida a calma l( fora, )ateram na porta$ 'e"e ser a pol#cia disse ele, ainda ofegante, indo a)rir$N!o era: era o co)rador da tele"is!o$Esta uma das crnicas mais famosas do grande escritor mineiro Fernando Sabino. Extrada do livro de mesmo nome, Editora do Autor - Rio de Janeiro, !"#,$%g. "&.'E(') * POR QUE TO IMPORTANTE VER AS ESTRELASAUTOR -Jos Eduardo Aua!usaEsta a hist3ria "erdadeira do meu amigo :ortunato, &ue numa madrugada de pouca sorte acordou nu no corredor de um grande hotel londrino$ :ortunato, alto funcion(rio da administra!o do Estado, em ?uanda, tinha ido a ?ondres participar num encontro internacional de )urocratas$ Tcnico competente, homem de cultura ede )om gosto, incorrupt#"el por nature+a e educa!o, o meu amigo sofre amargamente com a situa!o do pa#s e a imagem de Angola no exterior$ Ele acredita, um pouco ingenuamente, &ue ca)e a todos os tcnicos honestos a miss!o de melhorar essa imagem$Nos pa#ses da Europa Ocidental f(cil a &ual&uer funcion(rio manter intacta a integridade moral$ O dif#cil, na "erdade, ser corrupto$ Exige, no m#nimo, alguma coragem e imagina!o$ Num pa#s essencialmente corrupto acontece o in"erso: um funcion(rio incorrupt#"el olhado com suspeita e re"olta por toda a genteD com suspeita por&ue ningum acredita na sua incorrupti)ilidade EFalguma coisa a&uele tipo de"e estar a esconderGHD com re"olta por&ue pertur)a a lucrati"a acti"idade dosoutros$ 'este modo, ao )urocrata incorrupt#"el de um pa#s corrupto n!o )asta a firme+a das con"ic*es morais - ele tem de ter o do)ro da coragem de um funcion(rio "enal europeu$ E ao contrario deste n!o ganha nada com isso$:ao estas o)ser"a*es para melhor esclarecer a personalidade do meu amigo$ :ortunato partiu para ?ondres decidido a mostrar ao mundo a compet7ncia, o rigor e a honestidade dos &uadros angolanos$ ?ogo na primeira noite recusou o con"ite de um grupo de colegas portugueses, &ue insistiam em o le"ar a um espet(culo de tra"estis, EFcom gajos t!o femininos &ue ao p deles as mulheres parecem imita*esGH e ficou no &uarto a estudar os dossiers$ 'eitou-se cedo, inteiramente nu, e adormeceu$ A meio da noite le"antou-se para urinar$ 'esde criana &ue :ortunato se le"anta de noite, e "ai confusamente, sem interromper o sono, fa+er o seu xixi$ Na&uela noite ele fe+ xixi sem pro)lemas, mas ao regressar confundiu a porta do &uarto com a da casa de )anho, saiu para o corredor, sempre sonam)ulando, tropeou num largo sof(, meio afundado na penum)ra, e estendeu-se nele$ Acordou de madrugada, tremulo de frio, sem sa)er onde esta"a$ 6uando finalmente compreendeu o &ue lhe tinha acontecido le"antou-se num salto, lanou-se em direc!o 0 porta do &uarto$$$ E encontrou-a fechada4$$$$$I ,ensei em suicidar-me, mas n!o tinha como$ Ali esta"a eu, 0s seis da manh!, um preto nu no corredor de um dos melhores hotis de ?ondres$$$$$$I ,ensei em suicidar-me, mas n!o tinha como$ Ali esta"a eu, 0s seis da manh!, um preto nu no corredor de um dos melhores hotis de ?ondres$$ A a"3 de :ortunato nasceu em /alom)oloca e "iu pela primeira "e+ a lu+ elctrica, j( adulta, &uando o marido a le"ou para ?uanda$ Ao contr(rio do &ue seria de esperar n!o ficou encantada$ Na opini!o da "elha senhora o esplendor elctrico das grandes cidades, ao ocultar o )rilho das estrelas, prejudicou a humanidade$ Ela acha &ue, tendo deixado de "er as estrelas I tendo deixado de se confrontar, todas as noites, com o ilimitado, o infinito, a fant(stica imensid!o do uni"erso -, os homens perderam a humanidade, e com a humanidade perderam a ra+!o$ O des"ario do mundo est(, na opini!o dela, directamente ligado ao 7xodo rural e 0 multiplica!o "ertiginosa das grandes cidades$:ortunato, nu, encostado 0 porta do &uarto, te"e algum tempo para meditar na filosofia da a"3$ Achou &ue a&uilo fa+ia sentido:$$$$$I /ompreendi de repente a tremenda desimport9ncia da minha nude+$Entrou no ele"ador, desceu at 0 recep!o, e pediu &ue lhe a)rissem a porta do &uarto, pois tinha-a fechado inad"ertidamente$ O recepcionista, um irland7s muito rui"o, muito irland7s, olhou para ele e o &ue "iu foi um homem #ntegro$ Esta"a nu; O recepcionista n!o o sa)eria di+er$ Era uma dignidade, a&uele homem$ ,rocurou a cha"e e foi a)rir-lhe a porta$Jos Eduardo AgualusaP"S# 6uantas "e+es os preconceitos n!o nos deixam ser "erdadeiramente e realmente humanos4