Por Que Os Cientistas Nao Tem Diabo

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Trabalho escrito a partir das obras “O diabo e o fetichismo da Mercadoria na América do Sul”, de Michael Taussig; e “A vida de laboratório – a produção dos fatos científicos”, de Bruno Latour

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINACENTRO DE FILOSOFIA E CIENCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE ANTROPLOGIADisciplina: Leituras Etnogrficas III 2014.2Professoras: Letcia Cesarino e Viviane VedanaEstudante: Ndia Brasil Silva

Por que os cientistas no tm diabo?

Tomando como ponto de partida a pergunta por que os cientistas no tm diabo?, irei discutir as obras de Michael Taussig, O diabo e o fetichismo da Mercadoria na Amrica do Sul; e A vida de laboratrio a produo dos fatos cientficos, de Bruno Latour e Steve Woolgar. Desta forma, procurarei verificar possveis motivos pelos quais a cincia faz tanto sentido aos cientistas retratados por Latour e Woolgar, enquanto a cultura capitalista no faz tanto sentido aos camponeses da obra de Taussig.Em O diabo e o fetichismo da Mercadoria na Amrica do Sul, Michael Taussig aborda o capitalismo como uma cultura que se impe aos modos de vida tradicionais de trabalhadores canavieiros do Vale do Cauca, na Colmbia, e mineradores de estanho da cidade de Oruru, na Bolvia.O objetivo do livro seria o de evidenciar o significado social que o diabo tem nas narrativas desses trabalhadores, presentes em documentos histricos, entrevistas e depoimentos atuais poca, uma vez que o diabo conferiria num smbolo surpreendentemente apropriado para descrever a alienao vivenciada por camponeses quando estes engrossam as fileiras do proletariado (: 17). De acordo com Taussig, o diabo adquire importncia entre os camponeses retratados apenas na medida em que estes passam por um processo de proletarizao, de forma que o diabo e o mal caracterizam a metafsica do modo de produo capitalista (Pg. 37) Assim sendo, o diabo aparece como mediador da transio entre distintos sistemas de troca, preenchendo as lacunas de significado que existe entre um sistema e outro, sendo que o primeiro seria baseado na reciprocidade e no valor de uso dos produtos, como em uma tpica sociedade pr-capitalista e, o segundo, baseado na competio e nos valores de troca da mercadoria orientados pelo acmulo de capital. As crenas no diabo so interpretadas como a reao nativa a troca de seus modos de vida tradicionais por um novo, que chega em suas vidas por meio dos processos de proletarizao. Ainda, poder-se-ia dizer que uma das caractersticas mais importantes do livro seria a de explicitar, atravs das narrativas nativas, as crticas que as sociedades pr-capitalistas fazem ao modo de vida e s relaes capitalistas e evidenciam a objetividade fantasmagrica com a qual a cultura capitalista reveste suas criaes sociais (: 25), de forma a trazer luz as formas histricas, sociais e humanas pelas quais o capitalismo se constitui, as quais aqueles j familiarizados com a cultura capitalista enxergam como algo natural ou fsico, uma coisa. O conceito de fetichismo de Karl Marx utilizado na obra de Taussig para fomentar sua desconstruo das relaes de produo capitalista. Marx define o fetiche do capital [...] [como sendo] uma mistificao do capital em sua forma mais flagrante (Marx, 1967, v.3, p.392 apud Taussig: 62). Assim sendo, num processo de descontextualizao, as mercadorias, por exemplo, apareceriam no mais como produtos de uma relao social, mas simplesmente como coisas. A descontextualizao, portanto, seria a condio reificao. Para os canavieiros e mineiros da Amrica do Sul, esse novo sistema socioeconmico no natural nem bom. Em vez disso, ao mesmo tempo antinatural e mal, como o simbolismo do diabo to bem demonstra (:44). Assim, as crenas no diabo configurariam aspectos da expresso do modo de produo campons, no sentido que resistem aos modos de produo da cultura capitalista, uma vez que atravs da imagem do mal e do diabo que o homem continua a ser o objetivo da produo. A partir das imagens do mal e do diabo, a cultura do capitalismo se subordina aos modos de vida e s crenas pr-capitalistas. Por exemplo, seria graas aos rituais feitos ao Tio que os mineradores de estanho bolivianos no se tornariam tpicos trabalhadores alienados da indstria moderna, mas sim aqueles que detm o conhecimento das minas, sendo exatamente os rituais ao Tio aquilo que torna o trabalho de minerao possvel. Desta forma, o Tio coexiste com uma histria simblica da conquista e da minerao, cujo mal promessa de sua reverso (:215). Ao mesmo tempo, como aponta Taussig, esses mesmos rituais so reprimidos porque eles sustentam uma solidariedade proletria e o alto nvel de conscincia revolucionria que deram renome s reas mineradoras (:204).Se por um lado Taussig desconstri a objetividade do capitalismo atravs da imagem do mal e do diabo em uma dialtica do prprio discurso marxista, mas tambm das narrativas nativas, em A vida de Laboratrio A produo dos fatos cientficos, Bruno Latour e Steve Woolgar, abordam a maneira pela qual um fato cientfico construdo, mas de forma a tambm desconstruir a premissa cientfica de que os fatos simplesmente existem, procurando evidenciar como o fato separado de seu contexto material, social e histrico. A construo, para os autores, corresponde ao processo lento e prtico pelo qual as inscries se superpem e as descries so mantidas ou refutadas (:266). Ou seja, o laboratrio constitudo por uma configurao particular de instrumentos e aparelhos que produzem resultados na forma escrita. Estes aparelhos seriam os inscritores. Os fenmenos do laboratrio, como o surgimento das ideias, teorias e razoes dos cientistas, por esta perspectiva, dependem de fatores materiais. Desta forma, se constri no laboratrio - graas aos seus equipamentos - uma realidade artificial que tida como se fosse uma entidade objetiva, de ordem natural, de forma que o ambiente material do laboratrio possui uma dupla caracterstica: ele o que torna possvel o fenmeno e dele que se deve facilmente esquecer (:67), e este paradoxo que constitui um dos traos mais fundamentais da cincia. atravs do esquecimento dos fatores materiais que tornaram possvel a construo do fato cientfico que o mesmo produzido, uma vez que os cientistas no acreditam que os fatos so produtos sociais ou histricos, mas que eles simplesmente existem e o trabalho deles o de revelar a existncia das coisas, como no caso do TRF, descrito no livro, em que os milhares de ratos que foram utilizados na pesquisa, todos os pedaos de crebro utilizados, e todos os demais equipamentos, o prprio laboratrio e as negociaes entre os cientistas em jogo foram olvidadas.A construo do TRF seria, portanto, baseada na acumulao de inscries armazenadas pelo autor a partir dos instrumentos reunidos no laboratrio (...) A solidez desse objeto, garantia para que ele no seja considerado nem um produto da subjetividade nem um artefato, feito pela mobilizao regular das tcnicas (:130), de forma que tambm se oculta a construo social e a histria da construo do TRF, garantindo a estabilidade desse fato cientfico. Se antes os cientistas se ocupavam de enunciados, no momento em que estes enunciados se estabilizam, eles perdem qualquer referncia aos processos que os construram. Assim, os enunciados aparecem ao mesmo tempo como objetos e enunciados sobre eles mesmos. (...) No comeo da estabilizao o objeto a imagem virtual do enunciado, em seguida, o enunciado torna-se a imagem no espelho da realidade exterior (...) O TRF sempre existiu, apenas esperava por ser descoberto (:193).Se por um lado, os canavieiros e mineiros de Taussig evidenciam as formas pelas quais o capitalismo opera, desmistificando suas objetificaoes fantasmagricas e, atravs das imagens do mal e do diabo resistem a tais objetificaoes, por outro, os cientistas de Latour e Woolgar trabalham arduamente no sentido de tornar sua prtica objetiva e os produtos de seu trabalho, objetos, separando os fatos dos contextos que os estabeleceram. Apesar da estabilizao dos fatos cientficos consistir no paradoxo de depender totalmente do ambiente material que o constituiu, deixando de se fazer referncia a este espao uma vez que o fato torna-se estvel, ainda assim os cientistas, de certa forma, participam e tem conhecimento dos processos que constituem os fatos, como evidente nas passagens do livro que contata a histria de como se chegou at a estrutura molecular do TRF.A cincia, tal como ilustrada em Latour e Woolgar, um fenmeno que no ultrapassa a prpria rede que a instituiu, fazendo com que os fatos por ela produzidos paream no produzidos por eliminaram os contextos materiais, sociais e histricos que os produziram. Seria exatamente por isso que um enunciado cientfico torna-se objeto - no sentido de objetivo: O fato de que um enunciado dado seja objetivo ou subjetivo no pode ser determinado fora do contexto do laboratrio. Este trabalho tem exatamente por finalidade construir um objeto sobre o qual se pode afirmar que existe alm de qualquer subjetividade (ver captulo 4). Como diz Bachelard, a cincia no objetiva, ela projetiva. (Latour e Woolgar 1997:87, nota 20) tornando-se algo universal, ou seja, que no existe apenas no ambiente do laboratrio, mas sobretudo, na natureza. E pela sua descontextualizaao que os fatos podem circular. Assim sendo, cria-se a ideia de algum descobriu a estrutura molecular do TRF. E, tendo esta estrutura estabilizada, a mesma aplicada em outros mbitos cientficos sem a necessidade de se fazer referncia a todos os processos que tornaram possvel a sua estabilizao.Da mesma forma que a cincia faz sentido aos cientistas, o capitalismo tambm faz todo o sentido para algum que investe na bolsa de valores ou para um corporativista, alm de ser rentvel para essas pessoas. Contudo, acaba fazendo muito menos sentido aos camponeses retratados por Taussig, alm de ser muito pouco rentvel a eles. Podemos pensar nisso no sentido em que, a medida que o capitalismo passa a existir em outros espaos ou para alm de suas redes, ou passa a estender suas redes , ele perde o seu sentido e o seu carcter de bvio, como aponta Latour: mesmo um fato bem institudo perde o sentido quando separado de seu contexto (:108), uma vez que os modos de vida pr-existentes nestes espaos desmistificam e resistem s relaes objetificadas da cultura capitalista. Como evidente, os camponeses, no conhecem e nem participaram dos processos que tornaram como so as relaes de trabalho da cultura capitalista, estas relaes apenas foram impostas para eles. Ou seja, perante os camponeses, o capitalismo fica fora de contexto. Portanto, para subsidiar esta falta de contexto e de sentido da cultura capitalista, que emerge a imagem do mal e do diabo entre essas pessoas. possvel tambm pensar na falta de contexto de uma realidade em relao a outra na obra de Taussig no somente no que diz respeito ao capitalismo, mas tambm pensando na imposio das crenas catlicas aos escravos colombianos nos tempos coloniais. Neste sentido, podemos pensar a maneira pela qual os escravos atriburam outros significados, que no os originais, em relao a Deus e ao diabo da igreja catlica. Nas crenas vinculadas a cosmologia da origem dos escravos, no existia uma figura ou entidade que representasse o mal total como o diabo - e outra que representasse a bondade e a perfeio como Deus. Contudo, quando passaram a ser catequizados, apropriam-se de Deus e do diabo, de forma que demonizavam os atos de seus donos, e culpavam deus pelos castigos que lhes eram impostos.Dessa mesma forma, a partir de um outro contexto, que seria o fim a escravido na Colmbia, A Igreja e a religio adquiram um novo significado quando o lao senhor-escravo foi rompido. Os grandes proprietrios de terra no mais podiam pretender divindade, e dada a supremacia da Teologia como fora que sanciona as leis senhoriais, todas as doutrinas e aes revolucionrias tornaram-se, necessariamente, herticas. Pela mesma razo, a subclasse da sociedade moldou os latifundirios imagem do anticristo. Desta forma, Deus e diabo que, para os senhores e para o clrigo, consistiam em entidades cujos significados eram bvios, em outros contextos, lhes eram atribudos outros significados.Assim sendo, podemos dizer que atributos como natural e bvio possuem validade apenas em determinados contextos e, no caso dos exemplos mencionados os aspectos da cultura capitalista e o Deus e o diabo do catolicismo -, apresentam-se como naturais e bvios apenas em seus contextos de origem, sendo-lhes atribudos diferentes significados de acordo com o contexto em que estes esto inseridos. Ou como o meu professor de biologia do ensino mdio dizia quando retrucvamos a alguma de suas afirmaes sobre o contedo dizendo que isto ou aquilo era bvio ele sempre dizia que o bvio s bvio quando as pessoas possuem os mesmos conhecimentos.Podemos tambm pensar essa relao a partir do conceito de rede presente na obra de Latour e Woolgar. A cincia, por tanto, prevalece como universal na medida que estende/amplia sua rede para continuar se reproduzindo e, desta forma, uma mesma experincia cientfica consegue ser reproduzida num laboratrio aqui no Brasil ou l na Frana, produzindo os mesmos resultados. Contudo, o que faz com que isso acontea no o fato da cincia ser realmente universal, mas sim as condies materiais dos laboratrios serem quase que idnticas: possuem os mesmos aparelhos, as mesmas substancias, as pessoas que executam as experincias estudam as mesmas coisas, leem as mesmas pessoas... Da mesma forma que um trem s consegue circular por onde tenham trilhos, os fatos cientficos existem apenas no interior de sua rede, que incrivelmente extensa.O espanto particularmente acentuado nos temas da cincia, ningum fica espantado de que a primeira mquina a vapor de Newcastle tenha se desenvolvido para formar uma rede de estradas de ferro que atualmente se estende pelo mundo inteiro. Do mesmo modo, ningum considera essa extenso como a prova de que a mquina pode circular, mesmo que no haja trilhos! Assim, importante lembrar que a extenso de uma rede uma operao cara e que as mquinas a vapor s circulam em trilhos em trilhos sobre os quais foram concebidos para circular. Do mesmo modo, os observadores da cincia extasiam-se com a verificao de um fato no interior da rede no qual ele foi construdo. Ao mesmo tempo, eles esquecem com facilidade o custo da extenso da rede. A nica explicao para essa dupla norma a suposio de que um fato seja uma ideia. Infelizmente, a observao emprica dos laboratrios impossibilita a idealizao dos fatos (Latour e Woolgar, pg.202, nota 24)Por outro lado, a cultura capitalista e a religio catlica estabelecem-se em outros contextos de maneiras, por assim se dizer, menos rgidas que os fatos cientficos, permitindo lacunas entre suas realidades de origem e as realidades locais como os modos de produo campons e capitalista -, fazendo, como no caso dos camponeses do Vale do Cauca e de Oruru, emergir a imagem do diabo para mediar a transio entre estes dois sistemas distintos, sendo que o diabo se expressa de uma maneira no contexto dos canavieiros e de outra no dos mineiros de estanho. De maneira semelhante, as entidades que possuem os significados mais estanques no mbito do catolicismo europeu, Deus e o diabo, adquirem novos significados de acordo com o contexto que se inserem.

Bibliografia:

LATOUR, B. & WOOLGAR, S. A vida de laboratrio a produo dos fatos cientficos. Rio de Janeiro: Relume & Dumar, 1997.

TAUSSIG, M. T. O diabo e o fetichismo da mercadoria na Amrica do Sul. So Paulo: Ed. UNESP, 2010.