Por que reduzir a maioridade penal não é solução para o problema da violência?

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Por que a redução da maioridade penal não é solução para os fenômenos da violência e da criminalidade? Há três motivos principais que apontam para a inocuidade de uma medida como a redução da maioridade penal no combate à violência e à criminalidade: (1) porque não há nenhuma correlação provada, no campo da criminologia (a ciência humana voltada a investigar as causas individuais e ambientais na prática de crimes), entre o recrudescimento penal (de que redução da maioridade penal é forma particular) e a queda da taxa de prática de crimes, isto é, o registro da taxa de crimes nos países que recrudesceram o tratamento penal (inclusive com a redução da maioridade penal) conduz à conclusão de que o efeito da medida é praticamente nulo; (2) porque adolescentes em conflito com a lei já são responsabilizados penalmente pela prática de atos infracionais por meio das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que uma dessas medidas, a menos eficiente para fins de ressocialização, já consiste justamente na privação de liberdade (internação); (3) porque uma medida como a redução da maioridade penal não atua sobre os fatores criminógenos, ou seja, não altera as causas do problema. Para uma compreensão ampliada da questão, faz-se necessário atentar para alguns dados relativos não somente a atos infracionais praticados por adolescentes em conflito com a lei, mas para os perfis dos delitos e da população carcerária adulta, que são reveladores da lógica de funcionamento de nosso sistema penal. O perfil dos delitos cometidos pelos encarados, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, é muito constante: 76% foi encarcerado por prática de delitos como tráfico de drogas e crimes contra a propriedade e apenas 12% por crimes contra a pessoa (homicídio, lesão corporal, crimes contra a liberdade individual etc.), o que mostra a profunda relação entre situação de vulnerabilidade social e prática de delitos entre os encarcerados. Ainda com esteio na criminologia, é necessário considerar, ademais, que os sistemas penais, especialmente em sociedades marcadas pelo colonialismo e por conflitos étnico-sociais, são seletivos, isto é, os sistemas penais funcionam mediante a prévia seleção de grupos sociais específicos eleitos como aptos a serem encarcerados, havendo um traço social e étnico muito claro entre os encarcerados, o que varia de sociedade a sociedade: no caso do Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, a população encarcerada é composta em sua maioria por pardos (43,7%) de baixa escolaridade (77% entre analfabetos e indivíduos somente com o ensino fundamental completo), oriundos de uma classe social bem definida, a de trabalhadores precarizados, à margem do acesso a efetivação dos direitos componentes da condição de cidadania (direitos individuais e coletivos, sociais e políticos). Esses dados, interpretados teoricamente pela criminologia, mostram que explicações personalistas calcadas na “índole pessoal” dos sujeitos não se sustentam de um ponto de vista científico, uma vez que há padrões definidos para a composição de nossa população carcerária e mesmo para a prática de delitos, mostrando haver estruturas sociais presentes e operantes na configuração do fenômeno para além da simples conduta ou vontade pessoal: uma estrutura social criminógena e um sistema penal seletivo.

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Por que a redução da maioridade penal não é solução para os fenômenos da violência e da criminalidade?

Há três motivos principais que apontam para a inocuidade de uma medida como a redução da maioridade penal no combate à violência e à criminalidade: (1) porque não há nenhuma correlação provada, no campo da criminologia (a ciência humana voltada a investigar as causas individuais e ambientais na prática de crimes), entre o recrudescimento penal (de que redução da maioridade penal é forma particular) e a queda da taxa de prática de crimes, isto é, o registro da taxa de crimes nos países que recrudesceram o tratamento penal (inclusive com a redução da maioridade penal) conduz à conclusão de que o efeito da medida é praticamente nulo; (2) porque adolescentes em conflito com a lei já são responsabilizados penalmente pela prática de atos infracionais por meio das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo que uma dessas medidas, a menos eficiente para fins de ressocialização, já consiste justamente na privação de liberdade (internação); (3) porque uma medida como a redução da maioridade penal não atua sobre os fatores criminógenos, ou seja, não altera as causas do problema.

Para uma compreensão ampliada da questão, faz-se necessário atentar para alguns dados relativos não somente a atos infracionais praticados por adolescentes em conflito com a lei, mas para os perfis dos delitos e da população carcerária adulta, que são reveladores da lógica de funcionamento de nosso sistema penal. O perfil dos delitos cometidos pelos encarados, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, é muito constante: 76% foi encarcerado por prática de delitos como tráfico de drogas e crimes contra a propriedade e apenas 12% por crimes contra a pessoa (homicídio, lesão corporal, crimes contra a liberdade individual etc.), o que mostra a profunda relação entre situação de vulnerabilidade social e prática de delitos entre os encarcerados. Ainda com esteio na criminologia, é necessário considerar, ademais, que os sistemas penais, especialmente em sociedades marcadas pelo colonialismo e por conflitos étnico-sociais, são seletivos, isto é, os sistemas penais funcionam mediante a prévia seleção de grupos sociais específicos eleitos como aptos a serem encarcerados, havendo um traço social e étnico muito claro entre os encarcerados, o que varia de sociedade a sociedade: no caso do Brasil, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça, a população encarcerada é composta em sua maioria por pardos (43,7%) de baixa escolaridade (77% entre analfabetos e indivíduos somente com o ensino fundamental completo), oriundos de uma classe social bem definida, a de trabalhadores precarizados, à margem do acesso a efetivação dos direitos componentes da condição de cidadania (direitos individuais e coletivos, sociais e políticos). Esses dados, interpretados teoricamente pela criminologia, mostram que explicações personalistas calcadas na “índole pessoal” dos sujeitos não se sustentam de um ponto de vista científico, uma vez que há padrões definidos para a composição de nossa população carcerária e mesmo para a prática de delitos, mostrando haver estruturas sociais presentes e operantes na configuração do fenômeno para além da simples conduta ou vontade pessoal: uma estrutura social criminógena e um sistema penal seletivo.

Por fim, voltando à questão da redução da maioridade penal, dados de 2011 do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF mostram que, dentre os homicídios cometidos, apenas 8,4% do total foi cometido por adolescentes. Assim, o homicídio praticado por adolescentes não corresponde sequer a 10% de um tipo de delito que não corresponde sequer 10% dos crimes cometidos por adultos encarcerados. Logo, vê-se que a redução da maioridade penal pouco resolve o problema da segurança, seu efeito é meramente simbólico, mas pode levar a consequências catastróficas em um país que tem a terceira maior população carcerária do mundo, atrás apenas de EUA e China, e com políticas públicas ainda tão deficitárias para promoção dos direitos da juventude. Ainda, segundo os mesmos dados os mesmos dados do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF, há de notar que enquanto cerca de 1,8 mil homicídios foram cometidos por adolescentes (os 8,4% referidos), cerca de 4,3 mil (20,06%) adolescentes foram vítima de homicídio. Dentre essas vítimas de homicídios, mais uma vez encontramos um perfil bem definido: esmagadora maioria de adolescentes pardos e negros residentes nas periferias dos centros urbanos. Diante desses dados, talvez se possa concluir que, se queremos combater criminalidade e violência, só há um caminho: oferecimento de políticas públicas para acesso à efetivação dos direitos componentes da cidadania.