Por trás do Céu

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POR TRÁS DO CÉU De Caio Tedeschi

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Por trás do Céu - Caio Soh

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POR TRÁS DO CÉU De Caio Tedeschi

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Personagens

APARECIDA

EDIVALDO

MICUIM

VALQUIRIA

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POR TRÁS DO CÉU

De Caio Tedeschi

ATO I

(Música melancólica misturada aos berros de bois. Desenhado em animação e projetado em um varal de roupas que está no cenário, um rebanho de bois magros e agonizantes, atravessa as roupas. Durante a travessia, os bois ajudam-se; uns atravessam arrastando-se, outros rezando, uns morrem durante a travessia, outros choram... Luz, lentamente, é acesa. No palco, uma humilde casa de barro isolada de todo o mundo. Restos de madeira e sucatas de ferro velho ocupam um espaço ao lado da casa. Na frente, existe uma pequena cruz indicando que alguém foi enterrado ali. Tudo em volta está seco demonstrando que há tempos não chove naquele chão árido. No canto, amarrado em uma árvore morta, está LEPROSO, um jumento magro feito de retalhos. APARECIDA - uma jovem mulher que, apesar dos traços bonitos, tem a pele surrada pelo sol - veste trapos pouco femininos. Sentada em um tronco seco debaixo de forte sol, ela cutuca a terra dura com um graveto e derrama um leve choro. Uma pequena marionete de um rapaz sentado em uma bicicleta, representando o

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personagem MICUIM, cruza a frente do palco enquanto Aparecida fala.)

APARECIDA – (puxando papo com o jumento) Ô Leproso, meu amigo, o choro, a tristeza, a dor... É só esperá que ela vem, né? É sim, pode ter certeza que ela vem! A dor é fato! Vivê é dolorido, seja o sujeito rico ou pobre, bonito ou feio, esperto ou burro, a dor é um castigo certo do dia-a-dia. Fugi da dor, Leproso? Deve ser impossível. Ela derruba muro no sopro. A dor invade a alma sem pedi licença. Você pode corrê pra qualqué lado, a tristeza uma hora ou outra te cerca e te derruba! Engraçado, Leproso, tu parece mais feliz que eu... Mas se bem que os outro sempre parece mais feliz... Mentira! A tristeza não mora na cara. Não é fácil acostuma com essa idéia, mas a tristeza e a dor são parceiras da vida!!!! Leproso, me pergunta se eu sou uma mulhé triste? (ri limpando o choro) Todo mundo, no fundo, é triste! (Aparecida faz silêncio) Não me olha com essa cara de feliz que eu sei que tu também é um jumento muito dos triste. (irritando-se) Pelo amor de Deus, Leproso, me responde! Eu fico aqui um montão de hora falano com você, e você não diz uma palavra, não faz um treco qualqué. Se tu tivé entendeno o que eu tô falano faz um sim com a cabeça! (o jumento não se manifesta) Ou melhó, se você tivé entendeno o que tô falano e concordano com tudo que digo, não faz nada, me ingnora, faz de conta que não tá me ouvino! (o jumento continua sem se manifestar) Ah bom, pensei que você não tivesse me entendeno! (abrindo um leve sorriso) Ainda bem que eu tenho você pra dividi esses momento de monotonia. A monotonia dividida em dois fica um pouco menos chata, né? Né, Leproso? (irritada, levanta e ameaça bater no jumento com o graveto que está segurando) Eu tô falano com você, jumento burro! Qué sabê um negócio, você é bem mais infeliz que eu! Você fica aí quieto guardano tudo dentro de você, uma hora explode. (contentando-se) Se bem que a gente é grande por dentro, pode entuchar o peito de coisa que nunca explode, sempre cabe mais alguma dor! (de repente intrigada) É... Qual será que é o meu tamanho por dentro? Às veis, eu paro e me pergunto o que eu tô fazeno aqui nesse mundo? Me sinto pequena, vazia, tudo fica minúsclu, qualqué coisa deixa de ter valo. Sinto medo do meu tamanho. Qual é o meu tamanho, Leproso? O mundo deixa a gente tão curtinho. Sabe o que eu acho, meu amigo jumento, que minha confusão é achá demais. Eu não fui feita pra achá! Olha eu aqui, nesse fim de mundo... Por que eu vim nascê logo aqui? A gente não foi feito pra achá resposta, parece que a gente foi feito “memo” foi pra perguntá! (olha para o céu) Qué sabê, a imaginação é a

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resposta que ganhei de Deus. (encucada) Será que é bom perguntá o que não tem resposta? (desleixada) Eu penso mais do que posso, menos que quero e mais que preciso. Leproso, meu querido companheiro, sensível é aquele que pergunta; louco é aquele que tem a resposta? A pergunta já é resposta? (aflita) Me ajuda, Leproso, qual é o meu tamanho? (dando uma bronca em si mesma) Pára de besteira, Aparecida! Fica enchendo a cabeça de caraminhola!! Você não tem mais o que fazê? (desanimando) Pior que eu não tenho! E o tempo vai passano... (esmurra o chão) Leproso, eu tenho uma raiva de ver o tempo passá. (abrindo um largo sorriso irônico) É como se os segundos fossem passano, indo embora e me dano um tchauzinho; tirano um sarro da minha cara; e eu aqui parada vendo o tempo se despedi; me deixano pra trás, engolino a minha vida... (aflita quase atropelando as palavras) Essas monotonia me mata!! Eu queria sê corajosa e fazê... (sem idéia) sei lá o quê! Eu queria transforma, muda, joga essa vida cheia do “munotonismo” pra trás... (A marionete termina de atravessar o palco, nesse mesmo instante, chega MICUIM, um jovem com aparência de velho, vestindo calça de saco, uma surrada camisa para dentro das calças, sandálias remendadas, uma gravata sem combinar em nada com o restante da roupa e carregando nas costas uma mochila de couro. Micuim tenta ficar ajeitado, mesmo vestindo velhos trapos. Ele chega elegantemente em uma bicicleta estropiada.)

MICUIM – Olá Aparecida, falano sozinha?

APARECIDA – Não Micuim, eu tô falano com Leproso!

MICUIM – Ah bom! Te vi de longe dano chilique e já pensei que você tava doida! (para o jumento) Olá Leproso, desculpe minha desatenção; é que esse sol faz perdê a concentração. Aparecida, (referindo-se a bicicleta) posso guardá a máquina dentro da casa? A viagem foi longa, e ela já pegô poeira demais.

APARECIDA – (sorrindo) Você e essa bicicleta... Ela não serve nem pra ferro velho, e você trata ela como se fosse de ouro!

MICUIM – (sentido) Não fala assim dela! Eu sei que ela não tá das mais novinha, mas pra mim, vale mais que ouro. Me leva de lá pra cá sempre que eu preciso e nunca me deixou na mão.

APARECIDA – Eita, cada louco com a sua mania, pode pô lá dentro!

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MICUIM – Obrigado, Aparecida, essa bicicleta é tipo uma filha pra mim! (leva a bicicleta para dentro da casa)

APARECIDA – (grita para Micuim que está dentro da casa) Micuim, trouxe nuvidade?

MICUIM – (volta) Claro que truxe! (abrindo a mochila) Não dá pra voltá da cidade sem nuvidade! Aparecida, tu tá com os olho vermelho... Tu tava chorano?

APARECIDA – Tava sim!

MICUIM – Que bom, então; tristeza é sinal de saúde! (rindo de forma esquisita) Se o sujeito tá triste é sinal que tá aprendeno alguma coisa. (tira da mochila uma revista e joga-a para Aparecida) Essa revista eu peguei escondido no lixo de um casão enorme; deve ser revista das boa, tem figura em quase todas as páginas, tá facinho de entendê... (colocando suspense) é só ir grudano umas figura nas outra e, aos pouco, descobrino as história...

APARECIDA – (empolgada folhando a revista) É de gente estudada memo, pois a maioria das figuras são tudo colorida. (espantada) Nossa, tem até foto no meio! (preocupando-se) Micuim, você não roubou isso?

MICUIM – Claro que não. Tá me estranhano, Aparecida? Eu sei que eu faço tudo pra te agradá, mas roubá já é demais, né!

APARECIDA – Desculpa Micuim, é que não dá pra acreditá que alguém joga uma revista toda cheia de figura colorida no lixo.

MICUIM – Você não viu nada! Um dia eu vou te levá até a cidade. Lá, eles jogam até comida no lixo.

APARECIDA – (indignada) Como assim?

MICUIM – Te juro que é verdade! Quando sobra comida, eles joga no lixo.

APARECIDA – (curiosa) Mas como faz pra sobrá comida?

MICUIM – (contando vantagem) Viiixi, lá na cidade, até eu já deixei sobrá comida no prato!

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APARECIDA – (intrigada) Por quê?

MICUIM – Ué, porque matou a fome, e sobrou comida.

APARECIDA – Insquisito!

MICUIM – Primeira vez que eu fui lá também achei insquisito, mas você tem que conhecê a cidade; você vai ver cada coisa, parece até sonho. Tem lugar lá que você pára e pede pro sujeito que serve se ele pode enchê um copo de água da torneira... E o sujeito te dá um copão cheio, de graça, sem pedi nada em troca, às veis, dá até sorrindo.

APARECIDA – (inocente) Mas deve ser porque tu é um homem bunito, todo nos trinque, né, Micuim? Ele não deve dá água assim pra qualqué sujeito!

MICUIM – Viiixi, Aparecida, que é isso! Lá na cidade, eu num tô nem entre os dez mais bunito. Tem homem mais nos trinque que eu lá! Eles dão água de torneira pra todo mundo memo.

APARECIDA – Água assim fácil! É só pedi?

MICUIM – Te juro. Vou te contá uma coisa que você não vai acreditá! Lá na cidade, tem um monte de gente diferente, as pessoas, às veis, nem sabe o nome uma da outra.

APARECIDA – Como assim?

MICUIM – É tanta gente que não dá pra aprendê o nome de todo mundo.

APARECIDA – Mas é tanta gente assim?

MICUIM – Viiixi!!! Eu quase trombei com uma senhora, de tanta gente que tinha na rua. Lá, tu tem que andá prestano atenção. Sabia que lá tem tanto tipo de trabalho que não dá nem pra contá nos dedos?

APARECIDA – Sério?

MICUIM – Você pensa que o mundo é feito só de caminhoneiro e cortadô de cana? Tu tem que pedi pro Edivaldo te levá lá... Eu vou ficá uma vida aqui pra te contá as maluquices que inventaram lá na cidade.

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APARECIDA – Me conta, Micuim, que eu não agüento mais essa munotonia.

MICUIM – Vê essa revista com bastante atenção... Tudo que tá aí dentro existe memo! Qué dizê, eu não confio nos desenho totalmente, mas as foto é tudo verdade.

(Pequena marionete de Edivaldo começa atravessar a cena pela frente do palco.)

APARECIDA – (entusiasmada) Mas se Edivaldo não quisé conhecê a cidade, você me leva? MICUIM – Eu levo, mas eu acabei de voltá, vai demorá ano pra eu ir de novo. Precisa ajuntar dinheiro. Memo dormino na rua, precisa de dinheiro pra comê.

APARECIDA – Comê é o de menos!

MICUIM – Fora que a viagem é longa. Você vai precisá de uma bicicleta; isso se você agüentá a viagem toda pedalano!

APARECIDA – A vontade que eu tenho de conhecê novos horizonte vai me fazê pedalá a bicicleta como se tivesse flutuano.

MICUIM – Isso é o que tu pensa! O sonho te faz voá, mas não te faz batê as asa, não. Você precisa estar bem preparada pra agüentá essa viagem.

APARECIDA – Eu me preparo!

MICUIM – Tá bom, você venceu. Próxima vez que eu for, tu vai comigo!

APARECIDA – (abraça, empolgada, Micuim) Obrigada, Micuim! Quando tu vai?

MICUIM – Se tudo der certo e eu consegui realizá meus plano, daqui a uns quatro ano, eu vou ter dinheiro pra ir de novo.

APARECIDA – Perfeito! Acho que em quatro anos, se Edivaldo me ajudá, eu consigo ajuntar o dinheiro... (após um silêncio) Nem que pra isso eu volte a cortá cana.

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MICUIM – (tenso) Tu? Voltá a cortá cana?

APARECIDA – É, ué!!!

MICUIM – Não sei, não... acho que você tá falano uma grande de uma bestera!

APARECIDA – (agressiva) Eu sei muito bem o que estou falano. O que aconteceu, aconteceu comigo; e se eu tô falano que voltava naquele canavial...

MICUIM – Mas Edivaldo não vai gostá!

APARECIDA – Ele não tem que gostá.

MICUIM – Pare com isso, Aparecida!! Tu sabe o sacrifício que ele faz pra continuá trabalhano naquele canavial sem explodi! Eu convivia com Edivaldo e via, todos os dia, seus olho sangrano de raiva... Não foi fácil pro Edivaldo enguli seco; ele fez isso só porque tu pediu! Tu tá cometeno injustismo com Edivaldo!

APARECIDA – Eu só pedi pro Edivaldo não fazê nada, pois eu sabia que ia sobrá pra ele! Se ele matasse o patrão, ele ia estar morto agora, fora que era capaz de todos perderem o emprego. Não tem emprego sem patrão!

MICUIM – (raivoso) Eu, se fosse Edivaldo, teria metido a faca no sujeito. Pode ser ele patrão; pode ser ele Deus... Eu não enguliria, não... Se ele tivesse feito isso com minha mulhé!! Pra te falá a verdade, quando aconteceu aquilo, eu ia me vingá só pelo carinho que eu tenho por você, mas foi Edivaldo que não deixou. Eu furaria o bucho do patrão nem que isso custasse minha vida!

APARECIDA – Pare de falá besteira! Trocá a vida que te dá o direito de um futuro por uma mágoa que tá no passado. Tu tá falano besteira.

MICUIM – Eu tô te falano que Edivaldo não vai gostá da idéia, Aparecida! Até hoje, quando o patrão passa, Edivaldo começa a suá de raiva dele. É só o patrão aparecê que as veia do Edivaldo saltam de tanto ódio que ele fica, apertano aquele facão.

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APARECIDA – Eu também quero ver aquele desgraçado morto... (revoltando-se) Eu quero voltá a trabalhá pra ganhá dinheiro pra conhecê a capital. Eu não posso deixá que esse trauma do passado aleije meu futuro!

MICUIM – Vai procurá outro lugar pra trabalhá.

APARECIDA – (irritada) Pára, Micuim! Tu sabe que aqui é um fim de mundo; não tem quase uma alma viva, quanto mais emprego! Fora que eu não tenho estudo, sou tão esperta e estudada quanto qualqué animal que cruzá esse resto de mundo. O canavial é a única opção, e eu estou cheia de angústria pra mudá de vida.

MICUIM – Agora tu tá falano bestera! Tudo bem, tu pode até não ser estudada, mas é a mulhé mais esperta que eu já vi! Não esqueça que tu era filha de Girião, o único poeta de toda região. Tu fala umas coisa bonita igual teu pai.

APARECIDA – Eu vivi muito pouco! Tenho que ver mais gente, mais coisa, tô cansada desses gato pingado que vivem aqui; ninguém sabe nem falá... Nascê nessas terra é pior que nascê no inferno, o sujeito nasce pra trabalhá. O coitado que nasce nessas terras nem sabe o que é sonhá! Meu poblema é esse: herdei de meu pai o dom de sonhá, e isso acaba virano um poblema, pois quem não sonha não sofre. E tem outra, eu não quero acabá igual meu pai, embaixo de sete palmo dessa terra seca, junto com meus sonho. Eu quero, pelo menos, ir atrás deles, custe o que custá, Micuim!

MICUIM – Eu quero só ver o que Edivaldo vai falá disso.

APARECIDA – (descontraindo) Deixa que de Edivaldo eu cuido! (lembrando-se empolgada da revista) Deixa agora eu ver essa revista!

MICUIM – Aparecida, eu posso passá uns dia aqui?

APARECIDA – Claro, mas por quê? Aconteceu alguma coisa?

MICUIM – Eu vendi minha terra.

APARECIDA – Quem comprou aquela terra seca?

MICUIM – O patrão tá comprano todas as terra da região.

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APARECIDA – Por que tu vendeu tua terra pra aquele desgramento?

MICUIM – Eu precisava de dinheiro pra ir fazê um negócio na capital.

APARECIDA – Você? fazeno negócio na capital?

(Marionete, que representa EDIVALDO, vai saindo do palco. Nesse momento, chega EDIVALDO, um jovem também com aparência surrada. Ele chega carregando, na mão, um facão e uma panela com um pano onde leva a marmita. Edivaldo está vestindo trapos muito sujos e um pano na cabeça para se defender do sol.)

EDIVALDO – (sorrindo) Micuim! Que bom te ver de volta, meu amigo!

MICUIM – É bom também te ver, Edivaldo! Amizade como a sua e a de Aparecida é difícil de encontrá lá na capital. Lá é muito amigo pra pouca amizade. Não via a hora de dá um abraço em vocês. (Edivaldo abraça Micuim)

EDIVALDO – (afastando-se e olhando Micuim por inteiro) E tu, Micuim, não perde as elegância. De onde vem essa gravata?

MICUIM –Viiixi, ganhei de uma amiga... apaixonada!

EDIVALDO – Apaixonada memo! Pra te dá uma gravata chique dessas!

MICUIM – (gabando-se) Era do marido dela!

EDIVALDO – (rindo) Você é um safado!

APARECIDA – Credo, Micuim!

MICUIM – Calma, deixa eu terminar de contá a história! (fazendo suspense) Era do marido dela... Que já morreu.

APARECIDA – Ah bom!

EDIVALDO – (entra na casa) É mentira dele, Aparecida! Esse safado deve ter aprontado lá na capital.

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MICUIM – Viixi, eu não fiz nada além de me diverti...

APARECIDA – Eu também quero aprontá na capital!

EDIVALDO – (sai, de cara feia, de dentro de casa) Que isso, Aparecida?

APARECIDA – Eu não estou dizeno que quero aprontá igual Micuim, mas eu também quero me diverti.

EDIVALDO – Como assim? Você não se diverte aqui?

APARECIDA – Sinceramente... Não.

EDIVALDO – (volta irritado para dentro de casa) Ahhh, mas é bom sabê!

(Aparecida senta desanimada.)

MICUIM – (sussurrando para Aparecida) Que isso, Aparecida? Assim, tu magoa o coraçãozinho de Edivaldo.

APARECIDA – Eu prefiro magoá do que não ser sincera. Você sabe como eu sou, Micuim?!!! Poxa, eu não tô mais agüentano esse ritmo dessa vida; eu quero é mudá!

MICUIM – Mas precisa falá isso pro Edivaldo?

APARECIDA – Eu não falei nada demais, só a verdade. Eu não tô memo feliz! Agora, Micuim, tu acha que eu tenho que continuá infeliz só pra não magoá Edivaldo? Se pra ele ser feliz é preciso eu estar infeliz, então, tem alguma coisa errada. Eu decidi que quero deixá minha felicidade livre pra ser feliz. Se alguém quisé acompanhá ela, só tem a ganhá.

MICUIM – Não é assim, Aparecida! Afinal, Edivaldo é o seu marido.

APARECIDA – Ótimo, mais um motivo pra ele “quererer” me ver feliz!

MICUIM – (tentando descontrair, gritando para Edivaldo escutar de dentro da casa) Edivaldo, vem ver as nuvidade que eu truxe da capital! (mexe na mala de couro)

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EDIVALDO – O que tu truxe de bom?

MICUIM – Viiiixi, pra Aparecida eu truxe uma revista que eu tenho certeza que vai enchê a cabeça dela de idéia. Pra tu, meu amigo, deixa eu ver o que eu truxe... (procurando) Só falta eu ter perdido... Ahh, tá aqui! (Micuim dá uma barra de chocolate para Edivaldo) Experimente isso, tenho certeza que você vai gostá; é de um sabor “inequalivelmente” bom.

EDIVALDO – (tenta abrir a embalagem com o dente) O que é isso?

MICUIM – Chocolate! É moda comê isso na capital. Aproveita bastante, pois custa uma nota!

EDIVALDO – (come desajeitado) Tá meio duro pra bebê isso, Micuim!

MICUIM – (rindo) Vixi, Edivaldo, pelo contrário, tá é muito mole pra comê!

EDIVALDO – Isso é de comê? Mole desse jeito?

MICUIM – É que derreteu nesse sol, mas na verdade, é durinho, durinho! Chega ter até uma crocância quando se morde.

EDIVALDO – (come um pedacinho) Chega ardê de tão doce, mas é bom! (seco) Você qué experimentá, Aparecida?

APARECIDA – (emburrada) “Querere”, eu quero.

(Aparecida dá uma mordida.)

MICUIM – Não morde muito que isso tem que durá meses! Na verdade, chocolate é coisa chique. Não serve pra matá a fome, e sim pra deixá a boca e a vida um pouquinho mais doce, então, pode comê de pouquinho em pouquinho. (tira um resto de chocolate do bolso) Exemplificano, esse meu chocolate já tá durano é mais de mês.

APARECIDA – (abrindo um sorriso e querendo fazer as pazes) Esse chocolate adoça memo a vida, né, Edivaldo? Deixa gostinhu de quero mais, né?

EDIVALDO – (também cedendo um sorriso e guardando o chocolate cuidadosamente) Adoça memo! (dá a mão para Aparecida)

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MICUIM – Chocolate é coisa mágica! Lá na capital é cheio dessas invenção que deixam as pessoas mais feliz.

APARECIDA – Sério?

MICUIM – Lá, em toda loja, tem alguma coisa pras pessoa se divertirem.

APARECIDA – (empolgada) Você tá escutano isso, Edivaldo? Tá escutano?

EDIVALDO – Na capital, todo mundo é feliz, Micuim?

MICUIM – Deviam ser, mas lá na capital, tem um grande poblema...

APARECIDA – Qual?

MICUIM – As pessoa inventam muita coisa pra ajudá a ser feliz... Mas também enjoam muito rápido das coisa... Tudo perde a graça muito rápido.

EDIVALDO – Viu só, Aparecida, a vida na capital não é só esses grande sonho!

APARECIDA – (mordida) Pode não ser o seu grande sonho!

EDIVALDO - É, talvez seja esse o poblema, nóis temo sonho muito dos diferentes.

APARECIDA – Acho que a diferença é que eu tenho sonho. (levanta-se) Vocês me dão licença que eu vou ver minha revista em paz. (vai para dentro da casa)

MICUIM – Não liga não, Edivaldo. Isso é coisa de mulhé sonhadora. É só tu sabê levá que logo passa.

EDIVALDO – Dessa aí, parece que nunca passa. O pior é que dá pra ver, nos olho dela, a vontade de ir pra capital. Isso é o que me corta o coração!

MICUIM – Aparecida tá triste, né?

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EDIVALDO – Esse sonho tá matano ela, Micuim! Quem me dera se ela tivesse com a cabeça quieta que nem antigamente. Antes, Aparecida era feliz na munotonia. Agora, cada minuto que passa, a bichinha tá mais atiçada pra vivê. Parece que ela qué vivê todo segundo! Até pra dormir, Aparecida tem dificuldade. Parece que a cabeça dela não pára; ela fica falano dormino, feito uma tagarela, tendo idéia sem pará...

MICUIM – Acho que se você quisé continuá com sua mulhé, é melhó pensá em um jeito de levá ela pra capital...

EDIVALDO – (indignado) Você tá doido, Micuim? Sabe que nóis não temo condiçãos... E tem outra, ir pra capital é um sonho que dispois vira pesadelo. Conheço muita história de gente que vai pra lá, e vévi na miséria.

MICUIM – Aqui vocês também tão na miséria.

EDIVALDO – Mas aqui é uma miséria segura! Aqui a gente já sabe ser rico dentro da pobreza.

MICUIM – Eu tô falano isso porque gosto muito de tu e sei o quanto Aparecida gosta dela. É melhó tu começá a pensá mais no assunto, uma hora a gaiola pode abri, e se o passarinho escapá nunca mais volta!

EDIVALDO – Não sei o que fazê...

MICUIM – Aparecida tava com uma conversa meio das besta...

EDIVALDO – Que conversa?

MICUIM – Pensano em um jeito de ajuntar dinheiro pra ir pra capital.

EDIVALDO – (inconformado) Como Aparecida vai arranjá dinheiro?

MICUIM – Do memo jeito que antes.

EDIVALDO – (surpreendido e irritado) Aparecida? voltá a trabalhá no canavial?

MICUIM – Foi o que ela tava pensano.

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EDIVALDO – (levanta exaltado) Ela falô isso?

MICUIM – (tentado a voltar atrás) Espera, Edivaldo, ela só pensou...

(Edivaldo entra, nervoso, na casa. Micuim vai atrás. Pouco depois, sai Aparecida de dentro, fugindo de Edivaldo. Micuim sai atrás, tentando acalmá-lo.)

EDIVALDO – Como se atreve em falá que vai voltá pra aquele canavial?

APARECIDA – (enfrentando) Eu falei memo! Se fô a única maneira de eu ajuntar dinheiro...

EDIVALDO –Tu não teria coragem!

APARECIDA – Hoje em dia eu teria, e muita!

EDIVALDO – Antes de tu voltá lá eu mato aquele filho duma égua!

APARECERIA – Pára com isso, Edivaldo; eu já passei por cima de tudo.

EDIVALDO – Mas eu num passei, e tu sabe que enquanto aquele desgraçado tivé vivo eu não sossego!

APARECIDA – Vamu deixá pra lá essa mágoa. Já faz muito tempo; nóis temo que tentá levá nossa vida pra frente; não podemo deixá essa dor impedi que a gente cresça.

EDIVALDO – (fora de si) Pode até fazê muito tempo, Aparecida, mas nosso filho... (vai até a cruz que está enterrada no chão) Tu que gosta tanto de falá em sonho, então, olha bem meu sonho enterrado aqui!

APARECIDA – (começa a chorar) Esse também é meu sonho, seu desgraçado! Agora, se tu qué ficá pra sempre com seu sonho enterrado aí, eu não quero! Tu acha que algum dia vou esquecê que meu filho tá aí, morto? (senta chorando muito) Com toda certeza não vou, mas não agüento mais ser só feita de dor! (Micuim senta-se ao lado de Aparecida)

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EDIVALDO – (ameaçando e sentando sozinho do outro lado) Eu vou te avisá só uma coisa... O patrão só chega de novo perto de você, morto. Presta atenção, Aparecida, porque eu tô falano muito sério!

(O silêncio toma conta.) APARECIDA – (pouco depois, Aparecida levanta e desabafa enquanto volta para dentro da casa) Pode ficá transqüilo que eu não vou mais voltá naquele canavial. Eu vou apodrecê aqui nessas terra, mas saiba que eu já me sinto morta.

MICUIM – (senta-se ao lado de Edivaldo) Calma, Edivaldo, você viu o que Aparecida falô, ela não vai voltá lá e pronto.

EDIVALDO – Eu não sei... Num acredito! Uma hora, dá na cabeça dela, e ela vai.

MICUIM – Acho que não.

EDIVALDO – (irritando-se com Micuim) E eu num conheço Aparecida, Micuim? Essa mulhé é osso duro de roê. Tu não vê? dispois de tudo que aconteceu, ela ainda qué voltá lá.

MICUIM – Aparecida só qué tentá esquecê as coisas pra sê feliz. Com toda certeza, ela tá muito machucada, mas qué tentá mudá o rumo das coisa.

EDIVALDO – Eu sei disso! Eu sei que ela é forte, mas dessa vez, ela qué demais; não é tão simples assim... Fingi que não aconteceu nada?! (entristecendo e ainda nervoso) Aquele filho duma égua violentô ela grávida, fez Aparecida abortá nosso filho que já tava pra nascê, e eu não tava lá pra ajudá ela... Não deve existi dor maior que a que eu senti.

MICUIM – Talvez a dor que Aparecida sentiu seja maior, e memo assim ela qué botá a vida pra frente; fingi que o passado não existiu.

EDIVALDO – (grita) Mas ele existiu! O passado existiu e sempre vai existi!!!!!

MICUIM – O passado não existe mais. O que passou não existe mais. Edivaldo, você que tá carregano essa dor pro presente.

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Deixa essa dor virá passado, homem; pára de carregá ela nas costa.

EDIVALDO – Enquanto o patrão estivé vivo, essa dor vai estar viva também. Eu estou falano, Micuim, meu corpo começa a tremê só de pensá na Aparecida perto dele de novo. Eu não vou cometê o memo erro duas veis.

(Luz é apagada.)

POR TRÁS DO CÉU

De Caio Tedeschi

ATO II

(Música melancólica misturada com um cantar sofrido de um pássaro. Desenhado em animação, projetado no varal, um pássaro cansado, lentamente, atravessa as roupas. Durante o percurso, devido ao sol forte, o pássaro derrete, sem conseguir atravessar o varal inteiro. Luz é acesa. Anoiteceu. Aparecida, sentada no tronco, está segurando uma vela e folheando a revista, atenciosamente; Edivaldo está a seu lado, preparando um cigarro. Micuim sai de dentro da casa segurando um lampião e vai sentar-se ao lado deles.)

MICUIM – (descontraindo) E aí casal, se acalmaram-se? Se entenderam-se? Posso ganhá um pouco das atenção dos meus amigos agora?

EDIVALDO – A gente já tá conversado.

MICUIM – (olha para o céu) Tá uma lua bunita. Se tem uma coisa que Deus acertou foi na beleza da lua!

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APARECIDA – (olha para o céu intrigada) É só a lua que tu vê no céu?

MICUIM – É ósbiviu que não, Aparecida! Viiiixi, eu vejo as estrela também!

APARECIDA – (com pequena indignação) Só?

EDIVALDO – Por que, Aparecida, tu vê mais alguma coisa?

APARECIDA – Não, eu também enxergo mal.

EDIVALDO – O que tu queria ver?

APARECIDA – Quem tá rino!

MICUIM – Como assim, mulhé?

APARECIDA – Queria ver quem tá por trás desse céu rindo de nóis. Queria sabê se é Deus ou o Diabo!

MICUIM – Bom, Aparecida, tu tenta ver o que quisé... Eu vou continuá veno essa lua linda que até parece estar gritano de tanto brilhismo.

APARECIDA – É só disfarce.

EDIVALDO – O que tu tá quereno dizê?

APARECIDA – Quem tá por trás desse céu colocou a Lua no meio do caminho só pra disfarçar. A gente olha pro céu e pára na beleza da Lua.

MICUIM – Essa revista que eu te dei tá fazeno mal pros seus miolo.

APARECIDA – Eu queria abri a cortina do céu e pegá Deus ou o Diabo no fraga!

EDIVALDO – Por que pegá no fraga?

APARECIDA – Eles tão rindo de nóis. Vista do alto, a nossa desgraça deve ser é muito das engraçada! A nossa dor deve diverti Deus.

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MICUIM – Credo, Aparecida!

EDIVALDO – O que foi que te deu?

APARECIDA – Muita raiva.

MICUIM – Viiixi! E tu precisa descontá em Deus?

APARECIDA – Ele desconta em mim, por que eu não posso descontá nele? (levanta-se e grita para o céu) Traidor, desgraçado!

EDIVALDO – (puxa Aparecida pelo braço e a faz sentar de novo) Pára com isso!

APARECIDA – Fica transqüilo, Edivaldo! Deus deve estar se mijando de rir.

MICUIM – E se fô o Diabo que tá rindo?

APARECIDA – (irônica) Então tá, o Diabo tá rindo da nossa cara enquanto Deus não tinha o que fazê e resolveu saí pra pescá.

EDIVALDO – Desse jeito você vai pro inferno!

APARECIDA – Ir pro inferno pode ter certeza que eu não vou. O máximo que pode acontecer é eu continuá nele! Só existe céu e inferno aqui em baixo; fomos nóis memo que inventamo esse tal de céu e inferno.

MICUIM – Às veis, tu fala umas coisas bunita, mas maluca.

APARECIDA – Mas eu tenho razão, nóis que inventamos muitos dos nossos poblemas... também não precisamos enfiar todas as pimenta no cú de Deus!

MICUIM – (corrigindo-se) Às veis, tu fala umas coisa que não são tão bunitas, mas continuam sendo malucas.

EDIVALDO – Que isso, Aparecida, olha como tu fala!

APARECIDA – Ué, o que eu falei de errado? Não foi Deus que inventou as pimenta?

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MICUIM – Foi.

APARECIDA – Não foi Deus que inventou o cú?

MICUIM – Foi.

APARECIDA – Deus nos deu liberdade pra eu pudê enfiar a pimenta que ele inventou no cú de quem eu quisé.

EDIVALDO – Pára de falá assim, Aparecida! Pára de sê agressiva!

APARECIDA – Se Deus fez a gente podê ser agressivo, sabia que, mais cedo ou mais tarde, alguém poderia ser agressivo com ele. Talvez ele até ria mais com isso!

EDIVALDO – Você não sabe o que tá falano.

APARECIDA – Então, tudo bem, Edivaldo; fica aí quieto, apanhano, veno Deus se diverti as suas custa.

EDIVALDO – Eu não estou apanhano.

APARECIDA – (irônica) Não, tu tá muito feliz!

EDIVALDO – Eu não estou feliz, mas a tristeza faz parte.

APARECIDA – (levanta-se olha para o céu e aplaude) Muito bom, muito bom, Deus! É desse tipo de gente conformada que tu precisa aqui pra se diverti.

EDIVALDO – Eu vou “ingnorá” você, Aparecida, porque eu tô cansado de brigar.

MICUIM – (olhando para o céu e empolgando-se) Agora que tu falô, Aparecida, sabe o quê veio na minha cabeça?

EDIVALDO – Danou-se!!

MICUIM - Acho que não tem só um deus olhano pra nóis agora, e sim vários!

APARECIDA – Vários?

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MICUIM – Uma sala cheia de deuses. Enquanto uns se distraem olhano pra cá, comentano, se divertino com nossa desgraças, outros deus estão na sala do lado, papeano entrusiasmados, criano novas catásfotres, doenças, desastres...

EDIVALDO – (inconformado) Meu Deus, como vocês falam besteira!

MICUIM – (empolgando-se) Sabe o que mais? Por trás desses primeiros deuses, tem outro céu, e por trás desse outro céu, tem outros deuses se divertino com as desgraça dos primeiros deuses; e por trás desses outros deuses, tem outros deuses se divertino ainda mais com a desgraça desses outros deuses; e dispois tem mais outros; e mais outros...

APARECIDA – (cortando) E por trás dos últimos deuses?

MICUIM – Aí existe algo que não é deus. Alguma coisa que nem Deus sabe o que é! A pergunta pra mim, minha gente, não é quem criou o homem, e sim quem criou Deus?

APARECIDA – Gostei de ver, Micuim, essa tu foi longe! Quem criou o criador de tudo?

MICUIM – Viiixi, então, digo mais...

EDIVALDO – (desanimado) Aí vem!

MICUIM – Deus tá no meio do caminho do infinito... Agora, o que tá por trás do infinito? (sorrindo) Essa eu sei que fui longe memo, então, dou um tempinho pra vocês acompanharem...

(Após um pequeno silêncio.)

EDIVALDO – (irritado) Nada, Micuim, nada. Deus é o criador de tudo!

MICUIM – (tirando sarro) Ah... então, surgiu primeiro uma cegonha que trouxe Deus, e aí Deus criou tudo... Mas quem criou a cegonha que trouxe Deus e de onde ela vem?

(Edivaldo tenta ir para dentro de casa, mas Micuim segura.)

EDIVALDO – (levanta-se irritado) Eu não vou ficá aqui dano atenção pra essas bestagens. Tu e Aparecida quando se juntam

Page 23: Por trás do Céu

adoram endoidecer e ficá encheno a cabeça com bosta. Eu fico irritado ouvino tanta maluquice! Vocês são é bom de papo furado.

MICUIM – Espera Edivaldo! Senta aí que eu vou aproveitá pra contá um negócio sério.

EDIVALDO – Sério?

MICUIM – Juro que é sério?

(Edivaldo senta).

EDIVALDO – Então, desembucha!

MICUIM – Tu já sabe que eu vendi minhas terra pra ir na capital fazê uns negócio, mas você ainda não sabe que negócio...

APARECIDA – Boa, Micuim, eu tô curiosa pra sabê que negócio é esse.

MICUIM – Então, espera que eu vou mostrá! (Micuim entra na casa e volta com sua mochila de couro) Aqui está! (tira de dentro da mochila uma sacola cheia)

EDIVALDO – O que tem aí?

MICUIM – Vocês já ouviram falá de Jesus Cristo?

EDIVALDO – Claro, Micuim, ele é filho de Deus!

MICUIM – Ele não é só isso; ele também é a maior moda da capital! Muita gente fica rica com isso.

APARECIDA – Como?

MICUIM – Na verdade, tem várias maneira, mas eu arranjei um amigo na capital que me ensinou a melhó.

EDIVALDO – Que amigo é esse, Micuim?

MICUIM – Ele chama Arnaldo! bom, mas isso não importa. O que importa é o negócio bom que eu fiz com ele! O Arnaldo trabalha de contador de história na capital. É um tipo de um

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padre... é difícil explicar. Vocês dois nunca saíram desse fim de mundo, nunca nem viram um padre ao vivo! Se bem que é por esse motivo que acho que o negócio é bom! Por essas bandas, tenho certeza que ninguém nunca viu um pastor!

APARECIDA – Pastor? (ansiosa) Tenta explicar melhor, Micuim!

MICUIM – O negócio é simples! Tem que ser bom de papo e vendê vaga no céu.

APARECIDA – Credo!

EDIVALDO – Micuim, tu tá brincano?

MICUIM – Claro que não!

EDIVALDO - Tu qué enganá os outros?

MICUIM – Não é enganação! Quando você vira pastor, tem o direito memo de vendê vaga no céu.

APARECIDA – E tu acredita que dá pra comprá vaga no céu?

MICUIM – Eu quase acredito, mas o Arnaldo me jurou, por Deus, que as aula que fiz dá direito a vendê as vaga. E tem outra: eu só vou vende, quem comprá é que tem que acreditá. Mas em todos os causos, eu vou comprá a minha, vai que no final precisa memo.

EDIVALDO – Que aula tu fez lá?

MICUIM – (tira, de dentro da sacola, uma camisa, um terno, uma bíblia, um megafone e várias chaves de porta) Este foi o meu grande investimento!

EDIVALDO – (pega o livro da mão de Micuim) Deixa eu ver isso!

MICUIM – Olha que nome chique tem esse livro: (esforçando-se pra lembrar) Víblia Sangrada ... (com dúvida) Agora não lembro se é “sangrada” ou “sangadra”! Mais é um dos dois.

EDIVALDO – Tu fez as aula e não lembra nem do nome do livro? (Aparecida pega o livro)

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MICUIM – O homem falava muito rápido... Mas as mensage fica tudo no suvi... (esquecendo) suvi... suvi... “suvicosciente”.

(Marionete pequena de Valquíria atravessa o palco.)

APARECIDA – (espantada) Nossa, Micuim, acho que tu foi enganado!

MICUIM – Por quê?

APARECIDA – Não tem figura dentro do livro, como tu vai ler?

MICUIM – (irritando-se) Num precisa ler figura, pois no curso, eu aprendi todos os ensinamento do livro.

APARECIDA – Tu pode até ensinar?

MICUIM – Até poderia, mas prefiro me qualificá melhor nas venda das vaga memo. Arnaldo disse que é mais lucrativo!

(Pega o megafone.)

APARECIDA – O que é isso?

MICUIM – Sei não, veio tudo no pacote.

EDIVALDO – Isso tá me parecendo sujeira!

MICUIM – É não, Edivaldo! Eu me informei. Esse negócio é legalizado na capital; até delegado compra vaga no céu! O Arnaldo me disse um negócio que não tem como não concordá: esse negócio de vendê vaga no céu não é enganação até que provem o contrário! E pelo jeito, ainda ninguém voltou do céu pra reclamar.

EDIVALDO – Talvez tu tenha razão! Quando você estivé vendeno as vaga, avisa que eu vou comprá a minha só pra garantir. É cara?

MICUIM – Que isso, Edivaldo, pra amigo dá pra fazê um preço melhor.

EDIVALDO – Tem desconto se eu comprá a minha e a da Aparecida juntas?

Page 26: Por trás do Céu

MICUIM – Claro!

APARECIDA – Só vende vaga pro céu ou vende pro inferno também?

MICUIM – Boa pergunta! Quem será que vende vaga pro inferno?

EDIVALDO – Cuidado, Micuim, de repente você tá vendendo vaga pro inferno e nem sabe!

(Edivaldo avista alguém chegando.)

EDIVALDO – Espera, tem alguém chegano aí! Ilumina ali na frente, Micuim!

MICUIM – (iluminando com o lampião) Parece que é uma mulhé! Parece que ela tá bêbada! Ela tá cambaleando...

APARECIDA – Acho que ela tá machucada!

(Marionete de Valquíria sai do palco. Entra, na penumbra, Valquíria, uma prostituta vestindo uma curta roupa vermelha de couro, descalça e com a maquiagem toda borrada. Ela entra cambaleando, demonstrando estar muito fraca. Está com o nariz sujo de sangue seco e tem um dos olhos inchado. Valquíria aproxima-se e cai quase desacordada.)

APARECIDA – (cobrando) Vão ajudá ela!

(Edivaldo e Micuim aproximam-se de Valquíria.)

EDIVALDO – (com receio) Ilumina ela, Micuim!

MICUIM – (iluminando apreensivo) É uma mulhé memo!

EDIVALDO – Claro que é uma mulhé, idiota!

MICUIM – Eu já sabia que era uma mulhé, eu só falei porque não sabia o que falá.

APARECIDA – (corajosamente, ajoelha-se ao lado de Valquíria) Vocês dois vão ficá aí falano ou vão ajudá? Alguém pega água lá dentro!

EDIVALDO – Mas a gente tem pouca água...

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APARECIDA – (explodindo) Vai lá, Edivaldo, dispois eu viajo até o poço e pego!

(Edivaldo corre para pegar água dentro de casa.)

MICUIM – Acho que ela tá morreno!

APARECIDA – Vira essa boca pra lá!

MICUIM – Será que ela foi atropelada por um caminhão?

APARECIDA – Se ela tivesse sido atropelada por um caminhão, não teria chegado até aqui.

MICUIM – De onde será que ela veio?

APARECIDA – Deve ter vindo da estrada. Mas de qualqué jeito, para ter chegado aqui, deve estar andano há dias.

MICUIM – Será que ela é perigosa?

APARECIDA – Pára de ser medroso, Micuim! A mulhé não consegue nem falá... Tu e seus medo besta!

MICUIM – Não é medo besta, não! Lá na cidade até morto é perigoso.

(Edivaldo traz a água.)

EDIVALDO – (entregando a garrafa para Aparecida) Olha que azar! É a última garrafa! APARECIDA – (corrige) Olha que sorte, né, Edivado? Ainda bem que tem essa última garrafa. (joga a água, cuidadosamente, na cara de Valquíria)

VALQUIRIA – (acordando fraca e assustada) Me solta! Me larga...

(Micuim e Edivaldo recuam com medo.)

APARECIDA – (segurando Valquíria) Calma tá tudo bem! Nóis não vamu te machucar.

VALQUIRIA – (ainda assustada) Quem são vocês?

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APARECIDA – Eu sou Aparecida! Ele é Edivaldo meu esposo...

EDIVALDO – (de longe) Prazê!

APARECIDA – E ele é Micuim.

MICUIM – (também de longe) Oi!

VALQUIRIA – O que eu estou fazendo aqui?

EDIVALDO – Eu também não sei!

APARECIDA – Bebe água, dispois a gente conversa!

(Aparecida dá a água para Valquíria.)

EDIVALDO – (cutucando Micuim) Ela tá bebeno toda água, Micuim!

MICUIM – Eu tô veno!

APARECIDA – (dando bronca) Dá pra vocês dois pararem?!

(Valquíria bebe a garrafa inteira desesperadamente e desmaia.)

MICUIM – Acho que ela desmaiou!

EDIVALDO – Que malandra! Por que ela não desmaiou antes de bebê toda a nossa água?

APARECIDA – Ela tem que descansar! (Aparecida tenta levantar Valquíria sozinha) Será que os dois marmanjões podem me ajudá? (Edivaldo e Micuim ajudam a carregar Valquíria para dentro de casa) Leva ela pra dentro; amanhã, a gente conversa com ela!

EDIVALDO – Ela vai dormir aqui?

APARECIDA – Claro! Você qué que eu deixe ela morreno aí fora?

EDIVALDO – Mal cabe nóis dois... Mais Micuim... Agora essa mulhé!

MICUIM – Qualqué coisa, ela pode dormir comigo!

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APARECIDA – Pode parano de safadeza, Micuim!

EDIVALDO – Eu vou saí cedo pra trabalhá, Micuim, você toma conta da Aparecida; fica de olho pra essa mulhé não aprontá nenhuma!

MICUIM – Como assim? Amanhã eu também ia pro canavial, ver se ainda tem vaga pra mim.

EDIVALDO – Vai dispois de amanhã.

(Luz é apagada.)

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POR TRÁS DO CÉU De Caio Tedeschi

ATO III

(Projeção no varal de um galo que lentamente prepara-se para cantar. Quando o galo cria coragem, canta engasgado e cansado como se estivesse morrendo. O galo sai envergonhado. Luz acende. Aparecida está pegando ferro velho do lado da casa e juntando na frente do palco. Após juntar alguns pedaços de ferro e madeira ela entra dentro da casa e pega uma corda; joga a corda junto das tralhas e volta para dentro da casa para pegar a revista. Ajoelha-se no chão, ao lado dos ferros, abre a revista no chão e começa a observá-la, estudando alguma coisa; ao mesmo tempo em que estuda, faz um desenho com um graveto na terra seca, tentando copiar o desenho da revista.)

APARECIDA – Não é tão simples quanto parece! Mas se eu consegui fazê igualzinho o desenho da revista, eu vou consegui voá pelo céu e ir pra onde eu quisé. Quem sabe até realizá o sonho de meu pai e ver o mar! (olha para o céu) Mas antes, se eu consegui avoá, Leproso, eu vou ir em direção ao céu. Vou atravessar as nuvem, a lua, o sol e só vou pará quando chegar em algum lugar atrás do céu. Quem sabe lá é que tá as respostas, né? Talvez lá eu encontre até quem já tá morto. (empolgando-se e voltando a olhar para a revista) Já pensou, se eu descubro da onde a gente vem? Esse negócio que avoa aqui na revista tá pintado de vermelho, e eu não tenho tinta vermelha... Mas acho que a cor não deve atrapaiá, o negócio é as forma! (levantando-se com a revista e juntando alguns pedaços de ferro, tentando copiar o formato do desenho da revista) Dispois de ajuntar todas as peça, é só grudá tudo e botá fogo em baixo!

(Valquíria sai de dentro da casa, toda descabelada, vestindo apenas o vestido em que veio.)

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VALQUIRIA – (coça-se) Bom dia!

APARECIDA – (larga tudo para dar atenção a Valquíria) Bom dia, dona! Dormiu bem?

VALQUIRIA – Muito bem. Obrigada pela hospedagem!

APARECIDA – (humildemente) Eu sei que a casa não é das mais confortável, mas também não é das mais desconfortável, né? Como a dona chama?

VALQUIRIA – Valquíria!

APARECIDA – Valquira? Nossa, mas que nome mais dos chique!!!

VALQUIRIA – (corrigindo) Não é Valquira! É Valquíriiiiia!!! (coça-se)

APARECIDA – Valquiiiira? Nossa, mas é mais chique ainda! Nome de gente importante... (dando a mão para cumprimentar) O meu nome é Aparecida! Você deve estar com fome?

VALQUIRIA – Tá até doeno minha barriga...

APARECIDA – (dando uma leve risada) Aqui a gente já tá tão acostumado em não come que fome não dói... Faz cócega! Agüenta mais um pouco que Micuim foi buscar água e algum negócio pra nóis come!

VALQUIRIA – Claro! Você tem uma aspirina?

APARECIDA – Aspe... O quê?

VALQUIRIA – (sem paciência) Aspirina! Remédio para dor de cabeça...

APARECIDA – Ah tá... Aqui só tem um remédio que serve pra tudo!

VAQUIRIA – (coça-se) Qual?

APARECIDA – Tempo. Pra qualqué dor a gente deixa o tempo curar... Ou o tempo cura ou o tempo mata!

Page 32: Por trás do Céu

VALQUIRIA – Então, acho que vou morrer!

APARECIDA – Se o caminhão que te atropelou não te matou, não vai ser uma dorzinha de cabeça que vai fazê o serviço!

VALQUIRIA – Minha cabeça tá explodindo!

APARECIDA – Desculpe o astrevimento, mas porque tu tá toda arrebentada desse jeito?

VALQUIRIA – (coça-se) Briguei com o meu homem!

APARECIDA – E daí?

VALQUIRIA – E daí que eu fiquei assim porque eu briguei com ele.

APARECIDA – Tá, mas eu também já briguei muitas das veis com Edivaldo e não fiquei assim toda estrupiada! Você brigou e... Alguma coisa! Brigou, tropeçou e se esborrachou no chão! Brigou e foi atropelada...

VALQUIRIA – Não! Eu só briguei e ele se exaltou!

APARECIDA – E...?

VALQUIRIA – (tranqüilamente) E ele me espancou!

APARECIDA – (chocada) Que desgramento!

VALQUIRIA – (defendendo) Eu devo ter merecido; ele é muito ciumento, mas me ama!

APARECIDA – Te ama e te arrebenta?

VALQUIRIA – Dói, mas também é uma forma de demonstrar amor!

APARECIDA – Se te ama e faz isso... Imagina se ele te odiasse! Tomara que Edivaldo nunca me ame desse jeito!

VALQUIRIA – (espantada) Teu marido nunca te deu umas porradinhas?

Page 33: Por trás do Céu

APARECIDA – Se ele me encostar o dedo, eu quebro os dedos dele e como dispois!

VALQUIRIA – (coça-se) Desculpe, sem querê desmerecer teu esposo, mas homem que é homem tem que mostrá quem manda.

APARECIDA – É... Realmente, você mereceu as porrada! (voltando a ver a revista) Ele que rasgou sua roupa?

VALQUIRIA – (procurando um rasgo na própria roupa) Minha roupa não tá rasgada!

APARECIDA – Como não?

VALQUIRIA – (rindo da inocência de Aparecida) Eu comprei essa roupa curta memo!

APARECIDA – Por quê?Ah, tadinha não tinha dinheiro pra compra a roupa inteira?

VALQUIRIA – (gabando-se) É minha roupa de trabalho.

APARECIDA – Que trabalho é esse?

VALQUIRIA – (coça-se) Eu trabalho nas estradas.

APARECIDA – Caminhoneira?

VALQUIRIA – Credo! Digamos que eu trabalho para os caminhoneiros. Eu fico na beira da estrada, quando eles têm algum problema, eu faço um servicinho sujo no caminhão...

APARECIDA – Ah tá... Tu é borrachera! Meu pai antes de me ter e vim pra essas bandas também era borracheiro!

VALQUIRIA – (com preguiça de explicar) É, eu sou borracheira!

APARECIDA – Nossa! Então você é estudada!

VALQUIRIA – Sou nada, essas coisas você aprende na vida! Tem telefone por aqui?

APARECIDA – Tele... O quê?

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VALQUIRIA – (decepcionada) Telefone! Como vocês conversam com as outras pessoas da região? (coça-se)

APARECIDA – Com a boca...

VALQUIRIA – (irritando-se) Como vocês conversam com quem tá longe?

APARECIDA – Gritano... Mas isso depende da distância, se o sujeito tivé muito longe não dá pra escutar.

VALQUIRIA – (coça-se) Deixa pra lá!

APARECIDA – Como você veio pará nessas banda?

VALQUIRIA – Não sei! Eu pulei do caminhão do Adão e saí da estrada correndo, fugindo... Adão queria me matá; corri desesperada, dias, sem pará... E ele atrás de mim... Depois, eu consegui tomá distância, mas continuei correndo, fugindo...

APARECIDA – Quem é Adão?

VALQUIRIA – (coça-se) Meu homem!

APARECIDA – Aquele seu homem que te ama e te espancou também queria te matá?!

VALQUIRIA – É... Ele tinha os motivos dele. (assustando-se) Mas eu tenho que continuá fugindo, se Adão me encontra, com toda certeza, me mata!

APARECIDA – Fica tranqüila; aqui tu tá bem escondida; até o vento tem dificuldade de achá esse lugar! Deus quando fez esse lugar, nem conseguiu achá o caminho de volta pra trazê água. (voltando a mexer no ferro velho) Pode ficá a vontade, Valquira; aqui cê tá segura!

VALQUIRIA – (senta desanimada) Que vida maldita!

APARECIDA – O que foi, Valquira?

VALQUIRIA – Cansada de tudo!

APARECIDA – De tudo, tudo?

Page 35: Por trás do Céu

VALQUIRIA – De tudo!

APARECIDA – Então, muda tudo. (senta-se ao lado de Valquíria) Eu também tô cansada, mas tô corajosa pra mudá o que tivé que mudá!

VALQUIRA – (coça-se) Esse é o problema; pra mudá tudo, precisa ter tudo, e eu não tenho nada.

APARECIDA – Como não tem nada?

VALQUIRIA – Sou uma pessoa vazia! Eu não amo nada, nem ninguém! Também não odeio! Eu simplesmente convivo com as pessoas e as trato como trato qualquer outro animal. Não agrido ninguém, mas não faço isso por afeto. Longe disso, mas sim por cuidado com o convívio; meu interesse é apenas cumprir tabela no mundo. Não xingo uma pessoa, nem lhe faço mal; não agrado um ser humano por amor, e sim pelas conseqüências. Por mim, não faço questão de falá com ninguém, mas até quieto você se comunica; o mundo te obriga a falá com ele. O que me cansa é isso... precisá de habilidade pra vivê pois é necessário convivê pra podê sobrevivê.

APARECIDA – Eita, cê tá mal memo, Valquira!

VALQUIRIA – Tô de saco cheio de tentá vencer na vida!

APARECIDA – Que isso, Valquira? A vida é pra ser vivida; e não vencida! A derrota é muita das veis mais colorida do que a vitória. Existe felicidade em todos os momento; existe felicidade até na dor! Ninguém precisa de grandes vitória pra ser feliz. No sossego, no silêncio, na calma também existe felicidade! A felicidade não mora na vitória, e sim na vida. A felicidade não tem ritmo certo!

VALQUIRIA – (coça-se) Eu queria ver beleza nesse mundo, mas não acho graça em nada. O som que eu mais gosto é o silêncio; a cor que mais me agrada é transparente; o homem que eu amo não existe; o sonho que eu quero alcançar tá tão longe que eu nem consigo enxergar pra ver se ele existe. A gente ganha, não sei de quem e nem porquê, uma certa quantidade de tempo pra vivê. O que eu quero fazê com esse meu tempo?! Sabe, eu fico pensando, Aparecida, será que se eu trabalhar bastante, tiver uma família, filhos, marido, dinheiro, uma porção de amigos... será que se eu fizer tudo isso, quando eu chegar no fim desse

Page 36: Por trás do Céu

tempo, vou me senti satisfeita? Não sei, às vezes, acho tudo tão pouco pra eu gastar meu tempo. Fico aflita; não sei qual a melhor maneira de gastar esse tempo.

APARECIDA – Acho que é sentino prazê.

VALQUIRIA – Sentir prazer em todos os segundos?

APARECIDA – Senti prazê no máximo dos segundos possíveis.

VALQUIRIA – Mas senti só prazer deve enjoá.

APARECIDA – Será?

VALQUIRIA – Se bem que é bom senti desgosto pra lembrá como é bom senti prazer.

APARECIDA – Memo assim, acho que você tem que tentá senti prazê a todo segundo porque o desgosto, pode ficá tranqüila, que a vida naturalmente já traz pra você.

VALQUIRIA – Será que é impossível viver só sentindo prazer?

APARECIDA – Impossível. A dor, no futuro, é coisa certa! A vida traz o sofrimento de graça e sem pedi licença. A vida é recheada de decepções, traições, abandonos... Batalha pelo prazê que a dor vem sozinha.

VALQUIRIA – (coça-se) Mas eu não sei se estou indo atrás do verdadeiro prazê!?

APARECIDA – Sabe quando é possível percebê que tá no caminho do prazê? Quando o caminho já te dá prazê. Os meus prazê moram tudo dentro de mim. Eu queria me virá do avesso pra vivê a vida, colocar na cara do mundo o meu lado mais íntimo e deixá no escuro essa parte minha que vévi do lado de fora e que menos me conhece!

VALQUIRIA – (olha atenciosamente para Aparecida e abre um sorriso) Sabia que quem te vê de primeira impressão acha que você é burra?

APARECIDA – Isso é um elogio?

VALQUIRIA – (rindo) É. (abraça Aparecida que fica sem reação)

Page 37: Por trás do Céu

APARECIDA – Por que tu tá me abraçano?

VALQUIRIA – Porque você me fez rir, e fazia muito tempo que eu não ria. (larga Aparecida) Por mais incrível que pareça, acho que a gente pode ser grandes amigas!

APARECIDA – Você acha?

VALQUIRIA – (coça-se) Claro!

APARECIDA – Por que tu se coça tanto?

VALQUIRIA – Eu tenho sarna!

APARECIDA – Isso é bom ou ruim?

VALQUIRIA – Coça, incomoda um pouco... São castiguinhos da vida!

APARECIDA – Ah tá! Tu já foi na cidade?

VALQUIRIA – Eu nasci lá!

APARECIDA – Eu nunca conheci ninguém que nasceu na capital! Meu sonho é ir pra cidade!

VALQUIRIA – Lá é estranho, mas é bom!

APARECIDA – Você sabe ler?

VALQUIRIA – Sei.

APARECIDA – Então você pode me ajudá, Valquira! (mostra a revista para Valquíria) Eu quero construí um desse!

VALQUIRIA – Isso é um foguete.

APARECIDA – Fo... O quê?

VALQUIRIA – Foguete! Aparecida é impossível construir um foguete.

APARECIDA – (irritando-se) Impossível por quê?

Page 38: Por trás do Céu

VALQUIRIA – Precisa de muita tecnologia.

APARECIDA – Tec... O quê? Que palavra mais compliquenta de falá! Dá até medo de perguntá o que é.

VALQUIRIA – Quem bom que você não perguntou, pois eu também não iria sabê explicá. O que importa é que você não vai consegui construí esse foguete.

APARECIDA – Por que não? Por um acaso você já tentou?

VALQUIRIA – Não!

APARECIDA – Você já viu alguém tentando construir? VALQUIRIA – Não.

APARECIDA – Então, claro que pra você é impossível. Sem tentá, tudo é impossível; afinal de contas, algum dia alguém tentou!

(Aparecida volta a mexer no ferro velho e encaixa uma peça na outra, tentando copiar o foguete da revista.)

VALQUIRIA – Você tá certa. Se você acredita, quem sou eu pra desacreditá!

APARECIDA – Eu quero construir isso pra avoá e ver o que tem por trás do céu.

VALQUIRIA – (coça-se) Por trás do céu?

APARECIDA – (decepcionada) Não vai me dizê que, na cidade, já descobriram o que tem por trás do céu?

VALQUIRIA – Com toda certeza não. Isso é o que eles menos querem sabê!

(Chega Micuim sentado em bicicleta, trazendo água.)

MICUIM – Pelo visto a acidentada tá melhó? E fica bem mais abelezada acordada! (desce da bicicleta, coloca a camisa para dentro das calças e beija a mão de Valquíria) Muito prazê; eu sou o famoso Micuim!

Page 39: Por trás do Céu

VALQUIRIA – Prazer... Valquíria!

MICUIM – Valquira?

VALQUIRIA – (coça-se) Valquíriiia!

MICUIM – Que nome bunito... É estrangeiro?

VALQUIRIA – Não. É de guerra mesmo!

APARECIDA – (coça-se) Valquira é borrachera!

MICUIM – Sério?

VALQUIRIA – Não é bem isso; eu faço um serviço sujo no caminhão... (pisca maliciosamente) entendeu?

MICUIM – (sussurrando) Ah, entendi... Tipo: mecânica?

VALQUIRIA – (sem saco) É.

MICUIM – (galanteador) Valquira, eu truxe uma surprezinha pra você.

APARECIDA – Cuidado, Valquira, pra não caí no galantismo do Micuim!

VALQUIRIA – Surpresa pra mim?

MICUIM – Fecha os olhos!

VALQUIRIA – (fecha os olhos) Obaaaa!

APARECIDA – (empolgada) Eu fecho também, Micuim?

MICUIM – Claro que não, Aparecida, a surpresa é apenas pra Valquira, minha musa!

APARECIDA – (dando uma de coitada) Deixa eu fechá também.

MICUIM – Tá bom, pode fechá, mas a surpresa é só pra Valquira!

APARECIDA – (realizada fecha os olhos) Combinado!

Page 40: Por trás do Céu

(Tira um tatu de dentro de um saco e esconde atrás de si como se escondesse flores.)

VALQUIRIA – Vai logo que eu tô curiosa!

APARECIDA – Eu também... MICUIM – Pode abri!

(Aparecida e Valquíria abrem os olhos.)

APARECIDA – O quê você tem escondido aí atrás, Micuim?

MICUIM – Eu peguei com carinho pra você, Valquira!

APARECIDA – (aflita) Mostra logo, Micuim, que eu não tô mais agüentano!

MICUIM – (mostra o tatu morto para Valquíria) Toma; é de coração.

VALQUIRIA – (assusta-se e logo em seguida faz cara de nojo) Credo!

APARECIDA – (encantada) Quanto “romantissismo”, Micuim!

VALQUIRIA – (afastando-se) Que nojo! Tira isso de perto de mim!

MICUIM – Como assim? Tu não gosto, não?

APARECIDA – Não liga não, Micuim, ela não gosta de homem sensível; ela gosta de leva porrada.

VALQUIRIA – Pra que você pegou isso?

MICUIM – Pra nóis comê.

VALQUIRIA – Comê esse bicho de café da manhã?

MICUIM – Não.

VALQUIRIA – Ah bom!

MICUIM – ... De café da manhã, almoço e janta.

VALQUIRIA – Meu Deus!

Page 41: Por trás do Céu

APARECIDA – Valquira, você devia tá feliz pelo Micuim ter conseguido pegá esse tatu!

VALQUIRIA – Tá certo, com a fome que tô, como até os olhos desse bicho.

APARECIDA – Nem vem, Valquira, que os olhos já são meu!

MICUIM – Eu vou prepará ele pra nóis comê.

APARECIDA – (mostrando empolgada a revista para Micuim) Espera, Micuim, antes vem ver o que eu tô fazeno!

MICUIM – (vendo a revista) O quê é isso?

APARECIDA – Como chama memo, Valquira?

VALQUIRIA – (coça-se) Foguete!

APARECIDA – Isso memo. Eu quero construir isso pra avoá e ver o que tem lá por trás do céu.

MICUIM – E isso voa memo?

APARECIDO – Ué, olha na revista! É igual um balão gigante, só que tem outras forma; tem que ser de lata e precisa de mais fogo embaixo!

MICUIM – (impressionado) Viiixi!!!

APARECIDA – Mas pode parano com esse sorriso que eu tenho pouco ferro; só vai cabe uma pessoa no fosquete!

MICUIM – Isso é egoismísmo da sua parte, Aparecida!

APARECIDA – Calma, eu vou, volto... E dispois tu vai.

MICUIM – Tá certo!

APARECIDA – Micuim, Valquira nasceu na cidade.

MICUIM – Sério Valquira?

VALQUIRIA – (coça-se) Sério.

Page 42: Por trás do Céu

APARECIDA – Ah... Ela tem sarna.

(Valquíria olha com cara feia para Aparecida)

MICUIM – E isso é bom ou é ruim?

APARECIDA – Coça, incomoda um pouco... São castiguinhos da vida!

MICUIM – Nossa, eu acho um charme mulhé que se coça!

APARECIDA – (olhando encantada para Valquíria) Valquira é linda, né, Micuim?!

MICUIM – Nossa, ela é uma coisa...

APARECIDA – Valquira, você tem um brilhantismo, uma luz pópria que encanta qualqué um!

MICUIM – É coisa de mulhé da cidade.

VALQUIRIA – (coça-se) Assim vocês me deixam sem graça!

MICUIM – Olha aí, que danada Valquira é, Aparecida, ela se coça só pra fazê charme! Já tô avisano: mais duas coçadinha e meu coraçãozinho pula pela garganta.

APARECIDA – (chateando-se) Eu também quero ser assim... Mulhé da cidade! Eu tô falano sério, dispois que eu construí meu fosquete e avoá, eu vou ajuntar dinheiro e ir pra cidade!

MICUIM – Você pode ir de fosquete!

VALQUIRIA – (corrigindo) Foguete!

APARECIDA – (para Micuim) Será que dá?

MICUIM – Dá, mas é mais rápido ir de bicicleta!

VALQUIRIA – (impressionada) De bicicleta? (coça-se)

MICUIM – É, de bicicleta eu demoro só uns dia.

VALQUIRA – Você vai daqui até a cidade de bicicleta?

Page 43: Por trás do Céu

APARECIDA – Ué, como você anda de um lado pro outro?

VALQUIRIA – Eu pego carona de caminhão.

APARECIDA – Esqueci que tu é chique.

VALQUIRIA – Se você quisé, Aparecida, eu te levo pra conhecê a cidade de caminhão.

APARECIDA – Sério?

VALQUIRIA – Eu tenho muito amigo caminhoneiro, não vai ser difícil arranjá carona. Você só precisa de um pouco de dinheiro pra passá os primeiros dias... que depois você pode trabalhá comigo.

APARECIDA – (explodindo de felicidade) Tu não tá brincano comigo, Valquira?

VALQUIRIA – Claro que não.

APARECIDA – (abraça Valquíria) Eu nem posso acreditá! Amanhã memo, eu vou pedi meu emprego de volta na plantação pra pode ajuntar um dinheirinho.

MICUIM – Edivaldo não vai gostá nada da idéia!

APARECIDA – Eu vou falá direito com ele; com jeitinho eu sei que consigo!

MICUIM – (bravo) Olha, Aparecida, você sabe que de “instrometido” eu não tenho nada, mas acho um desaforo você voltá lá!

APARECIDA – Entende uma coisa, Micuim! Eu sou dona de mim. Gosto de paixão do Edivaldo e de jeito nenhum quero judiar dele, mas o respeito acaba quando a vontade de um atropela a do outro! Edivaldo sabe o quanto é importante pra mim ir pra cidade; e eu cansei. Não vou mais deixá o tempo me atropelar!

MICUIM – Eu tô falano isso porque gosto de você. Por mim, eu te colocava na garupa da bicicleta e te levava pra cidade, mas também entendo Edivaldo.

Page 44: Por trás do Céu

APARECIDA – Então, não se “instrometa”. (Aparecida senta)

MICUIM – Tá bom, já não tá mais aqui quem falô. (entra em casa ofendido) Eu vou prepará o Tatu!

VALQUIRIA – (sentando ao lado de Aparecida) O que aconteceu?

APARECIDA – Foi uns poblema dolorido que tive no passado... E que eu tô fazeno um esforço danado pra deixá essa dor lá... Mas Edivaldo num consegue!

VALQUIRIA – Eu posso sabê que problemas?

APARECIDA – Foi com o nosso patrão! Já faz uns anos...

VALQUIRIA – Se você não quisé falá!

APARECIDA – Dói, mas não tem poblema! Certas dor, ou a gente acostuma e deixa virá só cicatriz ou, então, fica tirano a casquinha. Pra mim, já virou uma cicatriz bem grande, bem feia e, às veis, dolorida... Mas virou só cicatriz! Mas pro Edivaldo ainda sangra muito, enfraquece...

VALQUIRIA – O que o teu patrão fez?

APARECIDA – Eu e Edivaldo trabalhávamu na plantação; a mesma plantação que ele trabalha ainda; é o único lugar pra trabalhá nas redondeza. O patrão é rico; anda cheio de capataz... Um certo dia, ele mandô Edivaldo fazê um serviço bem longe, mas era tudo uma combinação pro patrão me pega!

VALQUIRIA – Te pega?

APARECIDA – (abre um pequeno e doído sorriso) Lá na cidade chamam isso de estrupu, né? Essa palavra, eu aprendi a falá e não esqueço, não.

VALQUIRIA – (impressionada) O teu patrão te violentou?

APARECIDA – O pior é que eu carregava um sonho meu e do Edivaldo na barriga.

VALQUIRIA – (coça-se) Que filha da puta!

Page 45: Por trás do Céu

APARECIDA – (deixando escapar as lágrimas) Nosso sonho já tava pra nascê... (olhando para a sepultura no canto do palco) Agora, nosso sonho tá ali, enterrado. Demorou pra eu aceitá que a vida, às veis, é traiçoeira. Nóis escrevemo nosso próprio livro, mas o destino sempre mete o bedelho e escreve umas linha; e obriga nóis a várias das veis mudá o rumo da história que tamo escreveno. A gente quereno ou não, o destino faz uns rabisco na nossa história!

VALQUIRIA – Deve ser muito difícil perdê um filho.

APARECIDA – Perdê!! Essa palavra já é dolorida por si só. Perdê é ruim demais, dói, sufoca... A gente não sabe perdê, não!

VALQUIRIA – (faz cafuné em Aparecida) Coitada de você.

APARECIDA – (tira a mão de Valquíria) Coitada de mim, não! Você tem que ter pena daquela que tava chorano ontem. Hoje, eu já sou outra mulhé; trato essa dor de maneira diferente.

VALQUIRIA – E Edivaldo? Não fez nada com o patrão?

APARECIDA – Edivaldo queria matá o homem, mas eu não deixei; disse que se ele fizesse alguma coisa nunca mais ia me ver.

VALQUIRIA – Por que você fez isso?

APARECIDA – Se Edivaldo matasse o patrão, rapidinho os capataz dele matava Edivaldo. Aí, eu que ia sofrê... Ia ficá aqui só eu, a minha dor e a solidão. E ao invés de um, eu enterraria dois sonhos. Sem Edivaldo do meu lado, eu não sei se teria agüentado.

VALQUIRIA – (coça-se) Você foi forte.

APARECIDA – Engraçado, mas eu achava que tava fraca, na verdade, eu nunca fui mais forte que naquela época. Tem que ser muito forte pra agüentá a fraqueza!

(Micuim volta.)

MICUIM – (passando a mão na barriga) Daqui a pouco, o tatu muda de toca.

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APARECIDA – (limpa as lágrimas e volta a construir o foguete) Vamu deixá o passado dormino e vamu amontá é no futuro! Me ajudem, vocês dois, a montá esse fosquete, que eu quero deixá ele pronto antes do Edivaldo chegar. Quero fazê uma surpresa pra ele!

MICUIM – Viiixi, eu tô doidinho pra ver esse treco saí do chão!

APARECIDA – (empolgada) Então, vai arrumá lenha pra nóis podê fazê o “bichão” voá!

MICUIM – Tá certo!

(Micuim monta em Leproso para ir buscar lenha.)

VALQUIRIA – Onde eu posso ajudá?

APARECIDA – Ué, você nem acredita que isso vai saí do chão! Pra que tu qué ajudá?

VALQUIRIA – (ajudando Aparecida) Seus olhos tão brilhando tanto... Parece que você faz o foguete voar mesmo sem saí do chão.

APARECIDA – Acho que me divirto mais, vou mais longe, dentro da minha cabeça memo. A minha imaginação vai onde eu quisé sem precisá do mundo. Se pudesse, eu ia vivê a minha vida inteira voano dentro de mim. Mas nóis não temo escolha; o corpo é uma gaiola, e a nossa alma é um passarinho trancado dentro dessa gaiola. (lembra-se) Meu Deus, o avoado do Micuim deve ter deixado o tatu no fogo. Vai lá, Valquira, vê se o tatu já tá bom pra comê!

VALQUIRIA – Como eu vou sabê se tá bom?

APARECIDA – É só vê se os olho já tá esbugalhado.

VALQUIRIA – Credo!

APARECIDA – (perdendo a paciência e indo para dentro da casa) Tenha santa paciência! Então, vai juntando as peça enquanto eu vou ver o tatu.

(Valquíria, coçando-se, começa a separar os ferros enquanto Aparecida entra em casa para ver o tatu. Luz é apagada.)

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POR TRÁS DO CÉU

De Caio Tedeschi

ATO IV

(Luz é acesa. Micuim está no centro ao lado do foguete que tem o mesmo tamanho que Micuim, e está coberto por um velho pano. Micuim olha para longe e, ao ver Edivaldo chegando, grita empolgado para Aparecida que está dentro da casa.)

MICUIM – Aparecida, corre; corre que Edivaldo tá chegano!

(Aparecida sai aflita de dentro de casa e coloca um chapéu em cima do pano que cobre o foguete. Valquíria sai logo em seguida.)

APARECIDA – Só falta esse último detalhe!

MICUIM – Pra que esse chapéu aí?

APARECIDA – É pro Edivaldo não descobri logo que por baixo do pano tem um fosquete!

MICUIM – (tira o chapéu de cima do pano) Pare de besteira! Edivaldo nunca viu um desse na vida; como ele vai descobri?

APARECIDA – Como você sabe que ele nunca viu... Você já perguntou pra ele?

MICUIM – Eu não.

APARECIDA – Então, pronto! (arranca o chapéu da mão de Micuim e o coloca novamente em cima do pano) Olha ele chegano aí; disfarça, Micuim! (mudando de assunto para disfarçar) E você gostou, Micuim?

(Aparecida entra na frente do foguete, tentando escondê-lo.)

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MICUIM – De quê?

APARECIDA – Disfarça, idiota!

MICUIM – Ah tá!

(Edivaldo entra.)

APARECIDA – (voltando a disfarçar) E você gostou, Micuim?

MICUIM – De quê?

APARECIDA – Daquilo!

(Edivaldo aproxima-se.)

MICUIM – Daquilo o quê?

EDIVALDO – De que vocês tão falano?

MICUIM – Não sei. Quando você começou a chegar perto, Aparecida começou com um papo insquisito! APARECIDA – Eu tava falano da Valquira!

MICUIM – Mentira.

APARECIDA – (grita para dentro de casa) Valquira, venha conhecê Edivaldo!

EDIVALDO – Ela melhorô?

(Valquíria aparece.)

VALQUIRIA – Muito prazer!

APARECIDA – Essa é Valquira, Edivaldo!

MICUIM – (corrigindo) Aparecida, o nome dela não é Valquira, e sim Valquiiiiira!

VALQUIRIA – (coça-se) Na verdade, meu nome é Valquíria!

MICUIM – Viu só.

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APARECIDA – Ela é bonita, né, Edivaldo?

EDIVALDO – Muito das linda!

APARECIDA – (dando indireta) Sabia que toda mulhé que vai pra cidade fica com esse brilho?

MICUIM – Isso é verdade!

APARECIDA – Viu só, Edivaldo! É só ir pra cidade que fica linda igual Valquira.

VALQUIRIA – (coça-se) Vocês estão exagerando! Eu não sou tão bonita assim!

APARECIDA – Fora que ela, Edivaldo, é estudada, borrachera e tem sarna.

EDIVALDO – Sarna? Isso é bom ou ruim?

MICUIM – Coça, incomoda um pouco... São castiguinhos da vida!

VALQUIRA – (coça-se) Vocês já mostraram o foguete pro Edivaldo?

APARCIDA – (irritada) Não! Era surpresa, mas tu acabou de estragar!

EDIVALDO – Que surpresa é essa?

APARECIDA – (sai da frente do foguete) Aqui tá a surpresa.

EDIVALDO – Quem tá embaixo desse pano?

MICUIM – É um fosquete!

EDIVALDO – Quem é ele?

APARECIDA – (sonhadora) Aqui em baixo, Edivaldo, está a chance de realizá mais um dos meus sonho... Eu vou podê avoá pra vê o que tem por trás do céu.

EDIVALDO – Sério?

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APARECIDA – (tira o chapéu de cima e prepara-se para tirar o pano) Se prepara, Edivaldo!

MICUIM – (ansioso) Mostra logo!

APARECIDA – Lá vai... (contagem) zero, um e... já! (tira o pano; aparece o foguete todo montado com sucata)

EDIVALDO – (encantado) Nossa, que lindo!

APARECIDA – A idéia e todo “estruturamento” foi eu que fiz...

MICUIM – Eu fiz toda parte de marcinerismo. Valquira fez toda parte de... (esquecido) de que memo, Valquira?

VALQUIRIA – Assistência técnica, planejamento de dados, auxílio no projeto visual, fiscalização e revisão da linha de montagem!

APARECIDA – (com ciúmes) Se tudo isso, que ela falô, quisé dizê que ela ficou sentada só olhano e dano palpite, foi isso memo que ela fez.

EDIVALDO – (ainda encantado) E isso avoa memo?

APARECIDA – É só colocar fogo ali embaixo, na lenha, que ele sobe!

EDIVALDO – E não é perigoso?

APARECIDA – Tem que só tomá cuidado pra desviá da lua.

MICUIM – É verdade, eu não tinha pensado nisso!

APARECIDA – Eu vou parti amanhã memo; e quero sabê o que vocês querem de lá!

MICUIM – O que tem lá pra trazê?

APARECIDA – Sei lá, Micuim, nunca fui pra lá! Mas pede; se tivé, eu trago.

EDIVALDO – (chateado) Você vai parti assim, de uma hora pra outra?

Page 52: Por trás do Céu

APARECIDA – (paparicando) Ai, meu ratinho magro, não faz essa carinha que assim eu não vou!

EDIVALDO – Tu vai me abandoná aqui sozinho?

APARECIDA – Eu vou amanhã de manhã; vejo o que tem por trás do céu e volto antes de escurecer.

EDIVALDO – Ah bom!

MICUIM – Eu quero que tu me traga de lá uma... Sei lá... Traz qualqué coisa que eu ainda não tenha!

APARECIDA – Então, eu vou trazê qualqué coisa memo; tu só tem uma bicicleta caindo aos pedaço!

VALQUIRIA – Eu quero algo que não exista!

APARECIDA – Tipo... Uma bicicleta a motor?

VALQUIRIA – Já existe.

APARECIDA – Então... Um descascador de mandioca!

VALQUIRIA – (coça-se) Já existe.

APARECIDA – ... Um fogarero que não precise de lenha?

VALQUIRIA – Já existe.

APARECIDA – Assim não dá. Tem coisa que não existe pra mim e existe pra tu! Quando eu voltá, te empresto o fosquete, e tu vai lá. E você. Edivaldo? O que tu qué?

EDIVALDO – Eu só quero que tudo que vá volte!

APARECIDA – (abraça Edivaldo) Ôôô, meu ratinho magro, pode deixá que eu volto! (levando Edivaldo para dentro de casa) Agora vem cá, que Micuim pegô um tatu delicioso. Vem comê, Edivaldo!

EDIVALDO – (rindo) Micuim pegô um tatu?! (Aparecida e Edivaldo entram)

Page 53: Por trás do Céu

MICUIM – (gritando para eles ouvirem dentro de casa) Viiixi, só não peguei mais porque a minha magrela querida não iria agüentá trazê!

(Ficam apenas Micuim e Valquíria.)

VALQUIRIA – (oferecendo-se) Tem que ser muito corajoso pra pegá aquele tatu!

MICUIM – (fingindo ser humilde) Que isso, eu só fiz o que qualqué homem corajoso faria.

VAQUIRIA – Eu te acho uma graça!

MICUIM – Deve sê muito sol na sua cabeça!

VALQUIRIA – Você parece ator de cinema!

MICUIM – Acho melhor você freqüentar mais pra sombra.

VALQUIRIA – (coça-se) Você tem esposa?

MICUIM – Não.

VALQUIRIA – Por quê?

MICUIM – As mulhé enxerga bem por aqui, aí a coisa complica pra mim!

VALQUIRIA – (dando indireta) Eu também não tenho esposo.

MICUIM – Coitada!

VALQUIRIA – (olha para o céu) Tá escurecendo! (coça-se)

MICUIM – É normal, de noite sempre escurece.

VALQUIRIA – (irônica) Ah, é?

MICUIM – (inocente) Te juro.

VALQUIRIA – (aproximando-se do pescoço de Micuim) Você não qué aproveitá o escuro pra me mostrá outros lugares!

MICUIM – No escuro, Valquira? Mas não dá pra vê nada!

Page 54: Por trás do Céu

VALQUIRIA – (arrastando Micuim para dar uma volta.) Vem cá, Micuim, que eu vou te mostrá uma coisa.

MICUIM – (sendo arrastado) Vai escurecer, deixa eu pegá umas vela!

VALQUIRIA – Vem que nós não vamo precisá de vela.

MICUIM – Onde a gente tá indo?

VALQUIRIA – Fica quieto; agora, eu dou as ordens, Micuim!

(Luz é apagada.)

Page 55: Por trás do Céu

POR TRÁS DO CÉU

De Caio Tedeschi

Page 56: Por trás do Céu

ATO V

(Palco iluminado apenas pela luz da lua, e apenas Edivaldo olha pra lua)

EDIVALDO – (humildemente) Ô, Deus, precisava se esconder? Precisava fingi que não existe? Tu não dá sinal de vida... Aí, Aparecida fica agoniada pra quererer sabê as coisa, e tu não tá aqui pra respondê! Eu sei que o senhô qué ficá transqüilo aí, sei que o senhô já fez a sua parte... Nem sou eu que quero aporrinhá o senhô! Eu entendo que a sua ausência é de propósito pra que a gente possa aprendê as coisa tudo sozinho memo. Mas Aparecida num entende e não vai sussegá enquanto não tirá satisfação com o senhô.

MICUIM – O que você tá fazeno?

EDIVALDO – Falano com Deus?

MICUIM – (coça-se) Falano sozinho?

EDIVALDO – (se segurando para não perder a paciência) Eu tava falano com Deus.

MICUIM – (concluindo) Ah tá, você tava falano sozinho memo. (senta-se ao lado de Edivaldo)

EDIVALDO – Não sei porquê ainda te dou atenção!

MICUIM – Você fala até com Deus que te deixa falano sozinho... Não vai falá comigo? Eu, pelo menos, gasto saliva e tempo com você.

EDIVALDO – (levanta-se e vai sentar sozinho) Só porque você não escuta, não qué dizê que ele não fala. Deus fala comigo só pra eu ouvir!

MICUIM – (irônico) Então, Deus cochicha? (falando para o céu) Quem cochicha o rabo espicha! (coça-se)

EDIVALDO – Fica tirano sarro de Deus; eu quero só ver!

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MICUIM – Eu tô “transqüilo”, Edivaldo! Não esqueça que eu vou comprá a minha vaga pro céu. (coça-se) Isso qué dizê que posso ficá sussegado, fazê o que eu quisé, pois já vou ter minha vaguinha garantida memo!

EDIVALDO – É verdade! Com essa nova lei de comprá vaga, o céu deve ter ficado cheio de pecador.

MICUIM – E o inferno cheio de pobre. (intrigando-se) Só por curiosismo, Edivaldo, o que você tava falano com Deus? Tava reclamano ou pedindo?

EDIVALDO – Reclamano.

MICUIM – Por quê? (coça-se)

EDIVALDO – Eu tô preocupado com esse negócio da Aparecida avoá!

MICUIM – Deixa ela avoá, Edivaldo! Você conhece Aparecida; ela vai sofrê mais se ficá no chão do que se avoá; e caí lá do alto; e se esburrachá no chão.

EDIVALDO – Micuim, e se ela gostá lá do alto e não quererê voltá?

MICUIM – Aí, ela gostou lá do alto e não quis mais voltá.

EDIVALDO – Simples assim?

MICUIM – Ué, tu vai “querere” ela aqui no chão memo sabendo que ela “prefiriria” tá lá, no alto?

EDIVALDO – Eu só quero que ela esteja feliz!

MICUIM – (coça-se) Então?

EDIVALDO – É.

MICUIM – Mas fica “transqüil”o, amigo, ela só vai dá uma olhada no que tem por trás do céu e volta! O que Aparecida qué memo é ir pra cidade.

EDIVALDO – E eu quero ficá aqui. Quem sabe, um dia, eu mude de idéia...

Page 58: Por trás do Céu

MICUIM – Acho que ela cansou de esperá esse tal “um dia”! Ela qué ir já, Edivaldo; e parece que isso ninguém tira da cabeça dela. É com isso que você tem que se preocupar!

EDIVALDO – Como assim, Micuim?

MICUIM – Eu não quero ser dedo duro, memo porque Aparecida mora no fundo do meu coração, mas acho que devo falá porque se eu não falo dispois dá besteira...

EDIVALDO – (interrompendo) Desembucha!

MICUIM – Aparecida falô pra mim que vai falá com o patrão pra pedi o emprego de volta.

EDIVALDO – (irritando-se) Ela falô isso?

MICUIM – A minha opinião é que tu devia respeitá a vontade dela! Se ela quer, Edivaldo! Se ela tá dizeno que já superou...

EDIVALDO – Ela superou? E eu? E a dor que eu sinto? Não conta? Quando aquele desgraçado violentô ela, me enfiou uma faca na alma. Será que não importa, nada, eu não ter superado? Que bom pra ela que ela é forte; acontece que eu não sou! Aparecida que me pediu pra eu enguli seco essa dor; agora, ela tá engasgada aqui no meu peito. Micuim, se eu tivesse matado o patrão, com certeza, eu não ia ter que acordá todo dia com o peito apertado.

MICUIM – Não ia memo, pois você ia tá morto! E é isso que ela não queria. (instala-se um silêncio) O que cê vai fazê?

EDIVALDO – Não sei o que fazê! O sonho dela me agredide. Será que Aparecida não podia trocá de sonho? Escolher alguma coisa que não invada meu espaço! Poxa, ela é minha mulhé!

MICUIM – (coça-se) Não é só porque ela é sua mulhé que tem que sonhá a mesma coisa que tu.

EDIVALDO – Tá certo, Micuim! Mas acho que muita das veis, na vida, a gente tem que sabê fazê escolhas. É difícil, mas é preciso abri mão de um sonho pra ter outro. Vai vê, eu deixei de ser um sonho pra Aparecida!

Page 59: Por trás do Céu

MICUIM – Pára de falá besteira.

EDIVALDO – (chateado) Será que o amor pelo outro é uma mentira que a gente conta pra gente e, por fraqueza, acreditamo que precisamo de alguém pra ser mais felizes? Vai vê, a melhor companhia que nóis temo somos nóis memo.

MICUIM – Acho que uma companhia é importante, mas não deixa de ser só uma companhia.

EDIVALDO – A gente não deixa de ser sozinho.

MICUIM – As pessoa fazem companhia pra parte mais distante de nóis que é essa parte que fala; pensa; reage; julga... mas essa parte distante serve de ponte pra parte mais verdadeira, sozinha e desconhecida que é a parte nossa que sente.

EDIVALDO – É memo, Micuim, a gente é o que a gente sente; e o que sentimo... Sentimo sozinho.

MICUIM – (coça-se) Uma vez, eu gostei tanto de uma pessoa que eu perdi o controle de mim; preferia morrer do que ficá sem o amor dela.

EDIVALDO – E tu ficou com o amor dela?

MICUIM – Não.

EDIVALDO – Ué, e tu morreu?

MICUIM – Acho que não.

EDIVALDO – Estranho. Se tu preferiria morrer do que vivê sem o amor dela, e ela não te deu o amor, como tu tá vivo?

MICUIM – Sei lá. Você vai perguntá pra mim?

EDIVALDO – Vou perguntá pra quem?

MICUIM – (coça-se) Pergunta pra aquele que não queria vivê sem ela.

EDIVALDO – Mas não era tu, homem?

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MICUIM – Era alguém que naquela época era eu, mas atualmente não mora mais comigo. De repente, alguém dentro de mim realmente morreu quando ela não retribuiu o amor. Alguém que o desamor matou, e o tempo fez o favor de enterrá. É isso que você tem que fazê, Edivaldo! Deixa o tempo enterrá essa sua dor.

EDIVALDO – Micuim, tu sabe qual é o meu sonho?

MICUIM – Não.

EDIVALDO – Matá essa dor, essa mágoa... Enquanto ela tá viva dentro de mim, eu tô morto.

MICUIM – Então, pronto! Deixa ela ir embora.

EDIVALDO – Eu mandaria, Micuim, mas dor não aceita ordem! A dor não respeita; ela tem vontade “pópria”.

MICUIM – (coça-se) Pelo menos se esforça!

EDIVALDO – Eu? Me esforçar?

MICUIM – Meu amigo deixe Aparecida ir falá com o patrão.

EDIVALDO – (olha feio para Micuim) Tá, eu vou deixá, sim!

MICUIM – Assim que se fala. Viu só, Edivaldo? Agora, tu foi maior que a mágoa!

(Aparecida e Valquíria saem de dentro da casa)

EDIVALDO – (de cara fechada) Tá certo.

APARECIDA – Já tá tudo certo pra eu avoá amanhã bem cedo.

MICUIM – (coça-se) Eu tô ansioso.

APARECIDA – E eu, então! Mas Valquira acha que não vai avoá.

VALQUIRIA – (coça-se) Eu não disse nada.

Page 61: Por trás do Céu

APARECIDA – Não disse, mas tá na tua cara! Micuim, amanhã, tu me ajuda?

MICUIM – Não vai dá, não! Amanhã eu vou com Edivaldo na plantação pra vê se consigo voltá pro trabalho.

VALQUIRIA – Eu te ajudo, Aparecida!

APARECIDA – Tu não, Valquira! Sem querê ofendê, mas tô te achano com os olho cheio de “pessimismice”!

VALQUIRA – Credo, Aparecida!

MICUIM – (coça-se) E você, Aparecida, quando vai pedi pro patrão seu emprego de volta? (Aparecida olha feio para Micuim) Não precisa me olhar com essa cara! Eu já contei pro Edivaldo e ele deixou tu ir lá!

APARECIDA – Verdade?!

EDIVALDO – (ainda seco) Quem sou eu pra deixá ou desdeixá?

APARECIDA – (empolgada, abraça Edivaldo) Obrigada, meu ratinho magro! (Edivaldo não se mexe) Me abraça também, homem! (Edivaldo abraça Aparecida sem vontade)

MICUIM – (interrompendo) Espera um pouco, vocês dois! Parem com esse carinhismo que eu tenho que contá um negócio importante!

APARECIDA – Fale, Micuim!

MICUIM – (mostrando-se) Olhe bem pra mim! (coça-se devagarzinho, mostrando para todos) Viram?

APARECIDA – (empolgada) Tu tá com coceira.

MICUIM – Sabe o que isso significa?

APARECIDA – (encantada) Que tu também tá com sarna!

MICUIM – E...

Page 62: Por trás do Céu

APARECIDA – (mais encantada) Que agora tu tem doença de gente da cidade!

MICUIM – E... Que eu e Valquira vamu casá!

APARECIDA – Verdade?

EDIVALDO – (ainda mordido) Eu se fosse você, Valquira, pensava duas veis.

VALQUIRIA – Quem disse isso, Micuim?

MICUIM – (coça-se) Ué, têm certas coisa que não precisa dizê!

VALQUIRA – Eu não vou casá coisa nenhuma.

MICUIM – Como assim, Valquira, e tudo que a gente passou?

VALQUIRA – (coça-se) Que tudo? Nós só ficamos!

MICUIM – Como assim?!

VALQUIRIA – Divertimento sem compromisso!

MICUIM – (doído) Pra tu, eu fui só um causo? (coça-se)

VALQUIRIA – Você deveria me agradecer que eu não te cobrei!

MICUIM – E a sarna?

VALQUIRA – (coça-se) O quê tem?

MICUIM – Nóis agora compartilhemo da mesma sarna! Isso não significa nada pra tu?

VALQUIRIA – Não.

APARECIDA – Credo, Valquira!

VALQUIRA – Não me leve a mal, Micuim, mas eu sou uma mulhé livre... Da vida! Sou casada com a minha liberdade. (Micuim vai chateado para dentro da casa) Espera, Micuim, deixa eu conversá com você! (Valquíria entra na casa, atrás de Micuim)

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EDIVALDO – (alfinetando) É esse tipo de casamento que tu quer, né, Aparecida?

APARECIDA – Pára Edivaldo!

EDIVALDO – Tu não é mais feliz do meu lado.

APARECIDA – Não é isso!

EDIVALDO – Então, é o quê?

APARECIDA – Não sei... Eu gosto muito de tu, mas...

EDIVALDO – (continuando) ...Mas gostá não é mais o suficiente.

APARECIDA – Edivaldo, eu queria conhecê outras coisa na vida; e eu queria que tu tivesse do meu lado...

EDIVALDO – ... Mas?

APARECIDA – Mas parece que nóis não queremo seguir o memo caminho. (silêncio) Eu não sei o que fazê!

EDIVALDO – Ou um de nóis abre mão ou...

APARECIDA – Eu não acho justo um de nóis ter que abri mão do que quer!

EDIVALDO – Às veis, a vida não é justa, Aparecida! (levanta-se muito chateado) Eu vou dormir que o sono já tá me derrubano.

APARECIDA – Vamo terminá de conversa, Edivaldo!

EDIVALDO – Pra mim, a melhó conversa é a atitude! (indo para dentro de casa) Tu faz o que o teu coração mandá que eu vou respeitá! Porque eu também vou fazê o que o meu coração mandá! (Edivaldo entra)

APARECIDA – (olha para o céu) Você deve tá se divertino?! Mas pode me esperá... (olhando para o próprio coração) E aí, meu coraçãozinho, me diz o que você quer? Fala que eu faço! Em tu, eu confio. Às veis, é tão difícil entendê o que tu fala! Parece que, a cada segundo que passa, tu muda de idéia. Assim não dá! Me ajuda a te ajudá! Ou melhor, não me responde o que tu qué porque parece que tu qué tudo; me responde só o que tu

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mais qué! (levanta e vai até o foguete) Que culpa eu tenho de querê vivê o novo? (Valquíria sai de dentro da casa e vai silenciosamente aproximando-se) Ninguém manda na vontade; ninguém tem controle do que sente... Eu não mereço essa culpa me beliscando.

VALQUIRIA – Então, pára de se beliscá!

APARECIDA – Que susto Valquira!

VALQUIRIA – Já tava voano?

APARECIDA – Pelo contrário! Eu tô com a culpa me prendeno no chão; eu não sei o que fazê!

VALQUIRIA – Por quê?

APARECIDA – Eu não quero magoá Edivaldo, mas quero seguir o meu sonho!

VALQUIRIA – Edivaldo não é um sonho?

APARECIDA – Talvez um sonho que sonhei! Mas a última coisa que eu quero é deixá ele triste!

VALQUIRIA – Que egoísmo!

APARECIDA – Meu?

VALQUIRIA – Claro. Você queria que Edivaldo ficasse com você sem vontade?

APARECIDA – Claro que não.

VALQUIRIA – Então, não faz o mesmo com ele. (animando) Aparecida, isso não é o fim do mundo! Os sentimentos mudam e a gente não pode fazê nada a não ser respeitá.

APARECIDA – Não mudou o que eu sinto pelo Edivaldo! O que mudou foi o que eu sinto pela vida. Parece que tem uma curiosidade gritano dentro de mim; me cobrano pra eu avoá; implorano que eu deixe esse vento me levá. Sei lá... De repente, percebi que eu tô viveno a vida igual uma árvore: plantada aqui

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nessas terra, secando, veno sempre a mesma paisagem... Mas agora eu cansei de ser árvore, eu quero é ser pássaro.

VALQUIRIA – (dando um tapa no foguete) Pronto, a partir de amanhã, você começa seu vôo!

APARECIDA – Será que eu vou consegui avoá com tanto peso dentro de mim?

VALQUIRIA – Depende da força com que tua coragem batê as asas.

APARECIDA – (vai pegar Leproso) Eu vou!

VALQUIRIA – O que você tá fazendo?

APARECIDA – Não adianta nada eu ficá aqui só falano!

(Amarra uma ponta da corda em Leproso e outra no foguete.)

VALQUIRIA – Espera um pouco, Aparecida, você tá pensando em parti agora?

APARECIDA – Vou aproveitá que a coragem veio!

VALQUIRIA – Espera amanhecer!

APARECIDA – Eu quero parti antes que Edivaldo saia pra trabalhá!

VALQUIRIA – Mas você volta?

APARECIDA – (após um silêncio) Se eu avoá, eu não volto!

VALQUIRIA – Como assim? Você não ia só ver o que tem por trás do céu?

APARECIDA – Se eu ver o que tem por trás do meu céu, eu não volto!

VALQUIRIA – E Edivaldo?

APARECIDA – (monta em Leproso e prepara-se para partir, arrastando o foguete com a corda amarrada no jumento) Uma hora,

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Edivaldo também vai querere avoá; ou a gente se encontra avoano ou não se encontra mais!

VALQUIRIA – Tem certeza que você qué isso?

APARECIDA – Não. Mas só tem um jeito de ter certeza... “Ingnorando” a incerteza! (vai partindo) Adeus, Valquira!

VALQUIRIA – O que eu falo pro Edivaldo?

APARECIDA – Não precisa falá nada. No fundo, ele já sabe; e o que ele não souber, pode deixá que o vazio fala.

(Aparecida vai sumindo de vista.)VALQUIRIA – (Senta-se) Boa sorte, minha amiga! (Luz é apagada totalmente.)

POR TRÁS DO CÉU

De Caio Tedeschi

ATO VI

(Projetado no varal, animação de um homem com sua família, todos exaustos, tentam atravessar as roupas mas aos poucos vão derretendo. Luz é acesa novamente, representando o amanhecer do dia. Valquíria está dormindo sentada no mesmo lugar. Micuim sai da casa.)

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MICUIM – (magoado) Bom dia, Valquira!

VALQUIRIA – (acordando) Bom dia, Micuim!

MICUIM – Dormiu do lado de fora?

VALQUIRIA – Dormi.

MICUIM – (dando uma indireta) Dormi igual uma pedra pra me recuperar do trauma de ontem!

VALQUIRIA – Pára com isso, Micuim; eu já te expliquei e você disse que entendeu.

MICUIM – Eu ter entendido não qué dizê que meu coraçãozinho aceitou!

VALQUIRIA – Uma hora passa.

MICUIM – Credo, Valquira, não precisa chutá cachorro morto! Já tá doeno demais.

(Edivaldo sai de dentro da casa.)

EDIVALDO – Ué, cadê Aparecida?

VALQUIRIA – Já foi.

EDIVALDO – Já?

MICUIM – Tô ansioso pra ver o que ela vai trazê de lá!

VALQUIRIA – E se ela não voltar?

EDIVALDO – (agressivo) Cale essa maldita boca!

MICUIM – Não fale isso nem de brincadeira, Valquira!

EDIVALDO – Vamu trabalha, Micuim!

(Edivaldo põe um pano na cabeça e sai andando rápido. Micuim entra correndo em casa, pega sua bicicleta e vai saindo atrás de Edivaldo.)

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MICUIM – Espere Edivaldo! (Pára e fala carinhosamente) Valquira, mais tarde quando eu voltá, você ainda vai tá aqui?

VALQUIRIA – Vou sim, Micuim; ainda não estou totalmente recuperada pra caminhá até a estrada!

MICUIM – (com empolgação infantil) Oba! (partindo às pressas atrás de Edivaldo) Me espere, homem!

(Valquíria entra para dentro de casa. Marionete de Aparecida montada em leproso, que puxa o foguete, atravessa o palco. Ouve-se um som de relógio, demonstrando que passaram-se horas. Quando a marionete termina de atravessar o palco, entra Aparecida, montada em Leproso, com cara de decepcionada e trazendo de volta o foguete. Valquíria sai de dentro de casa.)

VALQUIRIA – E aí, Aparecida? (Aparecida ignora) Pelo jeito não deu muito certo!

APARECIDA – (chateada) Às veis, é preciso mais que coragem!

VALQUIRIA – O que deu errado?

APARECIDA – Não sei! Eu ainda tentei pega impulso com Leproso, mas esse jumento não ajuda.

VALQUIRIA – Não fica assim. Se você quisé pode parti comigo!

APARECIDA – Acho que o meu destino é secar aqui.

VALQUIRIA – Só se você quisé!

APARECIDA – Talvez seja isso que eu queira! Se eu quisesse memo, tinha feito esse fosquete avoá memo que fosse no sopro. No fundo, no fundo, não consigo desgrudá do Edivaldo. Acho que não tem jeito, meu sonho vai ter que se adaptar ao meu amor.

VALQUIRIA – Se você tá dizendo...

APARECIDA – (arrancando um pedaço do foguete) Me ajuda aqui, Valquira!

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VALQUIRIA – O que você vai fazê agora?

APARECIDA – (pega a enxada e bate no foguete) Eu vou desmontá esse sonho! (bate várias vezes com a enxada no foguete até desmontá-lo)

VALQUIRIA – E se você mudar de idéia?

APARECIDA – Aí eu construo de novo!

VALQUIRIA – (ajudando Aparecida) Eu te admiro; você é uma mulher forte; vai e faz!

APARECIDA – Não adianta ser forte; tem que ser resistente, e isso eu não sou! Pra que serve ter só impulso pra subi no muro se o meu desequilíbrio sempre me derruba de volta?!

VALQUIRIA – Você sabe lidá com a dor!

(Pegam os pedaços do foguete e jogam ao lado da casa.)

APARECIDA – É por vivê demais com ela.

VALQUIRIA – Quando a vida me derruba, eu preciso de um caminhão pra me tirá do chão.

APARECIDA – A vida sempre coloca umas casca de banana no nosso caminho. Muita das veis, eu caio e me esburracho no chão, mas às veis, eu vejo a casca antes de caí. Sabe qual é o poblema? A gente tem mania de ficá sentino a dor do tombo antes de caí! Hoje em dia eu vejo a casca no chão e, até o último segundo, tento desviá; me equilibrar. Se o tombo fô inevitável, sabe o quê eu faço? (saboreando) Caio! Caio com gosto, prestano o máximo de atenção na queda; na altura; no peso; na dor... E quando estou no chão, lógico que tento levantá o mais rápido que posso, mas não antes de aproveitá pra aprendê com tudo que eu encontrá no chão; com tudo que eu enxergar de baixo. Cada tombo tem seu traço, seu gosto... Um tombo é igual um arco-íris, no final tem um baú, só que não de ouro... No final do tombo, sempre tem um baú cheio de lição.

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VALQUIRIA – Pode até ser uma lição, mas levá uma rasteira da vida dói demais!

APARECIDA – Claro que caí dói, mas a dor só é amarga no começo, dispois ela passa a ter gosto de vitória. Caí é horrível, mas levantá é o maior prazê que existe! E tem outra, muita das veis, nóis que colocamo a profundidade no buraco que a gente cai.

VALQUIRIA – Aparecida, deixa eu te fazê uma pergunta: Se o foguete voasse você iria mesmo deixá Edivaldo?

APARECIDA – Sim.

(Marionete de Micuim na bicicleta, carregando Edivaldo junto, atravessa o palco.)

VALQUIRIA – Você acha que depois você poderia se arrependê?

APARECIDA – Sim.

VALQUIRIA – E mesmo assim você iria?

APARECIDA – Sim.

VALQUIRIA – Você é difícil de entendê.

APARECIDA – Todo mundo é difícil.

(Valquíria avista Micuim no horizonte.)

VALQUIRIA – Olha Micuim voltando!

APARECIDA – (também avista) Por que ele tá voltano tão cedo?

VALQUIRIA – Vai ver não conseguiu o emprego!

APARECIDA – Acho difícil!

VALQUIRIA – Espera um pouco, Aparecida! Parece que ele tá trazeno alguém na bicicleta!

APARECIDA – Eita, Micuim tá pedalano muito rápido!

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VALQUIRIA – Parece que quem ele tá trazendo tá dormindo!

APARECIDA – Ou machucado! (aflita) Será que é Edivaldo?

VALQUIRIA – Não deve ser.

(Marionetes de Micuim e Edivaldo terminam de cruzar o palco.)

MICUIM – (desesperado; ainda sem chegar no palco) Aparecida! socorro, Aparecida!

VALQUIRIA – Aconteceu alguma coisa!

APARECIDA – (ajoelhando no chão) Ah não! Meu Deus, é Edivaldo!

(Micuim, todo sujo de sangue, larga a bicicleta. Pega Edivaldo morto no colo e o coloca no chão. Aparecida desesperada acompanha de perto a ação.)

MICUIM – (chorando) Desculpa, Aparecida, eu tentei segurar ele, mas já era tarde demais.

VALQUIRIA – O que aconteceu, Micuim?

APARECIDA – Edivaldo?! Fale comigo, Edivaldo! pelo amor de Deus!

MICUIM – Edivaldo matou o patrão... (quase sem conseguir falar) Dispois ele tentou fugi... Mas o patrão tinha muito homem armado... Eu juro que tentei, Aparecida! Edivaldo tinha me jurado que não ia fazê isso...

APARECIDA – (tenta cavar. A terra está muito dura, mas Aparecida não desiste.) Agora sim, sou aquela árvore: viva, mais morta; sem motivo pra existi; sem ter fruto nenhum pra dá pra ninguém.

MICUIM – (chora) Não fala assim, Aparecida, tu tem muito pra dá pra mim! Eu preciso da tua amizade, das tuas palavra...

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APARECIDA – (Ainda tenta, em vão, cavar) Essa Aparecida que tinha essas coisa pra te dá, Micuim, morreu! Eu sou agora construída só de mágoa, raiva de Deus, do destino, da vida... sou um copo cheio de tristeza; não tem espaço pra mais nada dentro de mim! Vai embora, Micuim. Pegue ele, Valquira, e sumam daqui!

MICUIM – E nossa amizade? O carinho que nóis temo um pelo outro?

APARECIDA – Já disse que morreu tudo! Não tenho mais nada por tu nem por ninguém. Eu só vou aceitá do meu lado a solidão!

MICUIM – (Ainda chorando, tenta novamente abraçar Aparecida) Não fala assim, Aparecida! Eu te amo, minha amiga! Eu preciso muito, muito de tu. Por favor, Aparecida, não me deixa sem você!!!!

APARECIDA – (Micuim aproxima-se) Num chegue perto de mim! (Ameaça bater-lhe com a pá) Já te disse que não te quero perto. Vá embora antes que essa minha mágoa me faça agir de má fé. Vocês dois sumam da minha frente pra sempre! Será que vocês não tão me ouvino?!!

VALQUIRIA – (puxando Micuim) Vamu, Micuim!

MICUIM – Cidinha, tu não teria coragem...

APARECIDA – (Micuim aproxima-se; Aparecida prepara-se para lhe bater com a pá) Não duvide, Micuim, que te machuco e nem vou percebê seu grito de agonia; e nem vou senti o teu cheiro de sangue, pois já não tenho mais coração! É a última vez que aviso... Vá embora daqui e não volte! (Micuim dá dois passos pra trás, e Aparecida volta a tentar cavar) Só me faça um favor! Leve Leproso embora, que esse jumento magro nem pra janta serve.

(Micuim olha fundo pra Aparecida, despedindo-se no silêncio, vira-se e entra dentro de casa. Valquíria desamarra Leproso. Micuim volta de dentro com sua bicicleta e sua mochila; olha pela última vez para Aparecida.)

MICUIM – Eu volto.

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APARECIDA – Suma daqui e volte só quando Deus morrer e o destino esquecê que eu existo, pra pará de me castigar... Antes disso, tu não tem nada pra fazê aqui porque eu vou ser só mais uma coisa seca no meio desse fim de mundo! (Micuim vai saindo. Valquíria e Leproso o acompanham. Depois que eles saem, marionetes de Micuim, Valquíria e Leproso cruzam pela frente do palco. Aparecida desiste de tentar cavar. Sozinha no palco Aparecida fala com Deus agressiva) Deus. Deus? Tu é mal ou tu é cego mesmo? Ou tu acha graça da desgraça ou tu não sabe o que é a dor. Se tiver me ouvindo me mate, se tiver me vendo me ataque uma pedra na cabeça... (cai no choro) mas, por favor, por favor, não me ignore... Deus, eu acredito que tu existe, mas, por favor, acredite também que eu existo. Eu to aqui na sua frente, feita de carne, osso, dor, e fé! (violenta) Filho duma égua, acredite que eu existo e me ajude! Não sei o que eu te fiz, até aceito a minha barriga vazia de fome, a minha garganta seca de sede, minha cabeça derreteno nesse sol, mas tire do meu coração essa saudade, essa raiva, esse medo, essa tristeza, essa solidão... (ajoelha-se) Castigue meu corpo, mas pare de maltratar meu coração! Deus, acredite que eu existo ou então só me faça um favor... Desinvente a dor... Desinvente a dor ou então, Deus, me desinvente! (Luz apaga com Aparecida ajoelhada chorando)

Fim?

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