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    POR UMA CULTURA PBLICA:ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO PBLICA NO ESTATALNA REA DA CULTURA

    Elizabeth Ponte

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    POR UMA CULTURA PBLICA:

    ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E

    A GESTO PBLICA NO ESTATAL

    NA REA DA CULTURA

    Elizabeth Ponte

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    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA04 05

    Centro de Documentao e Referncia Ita Cultural

    Ponte, Elizabeth.Por uma cultura pblica: organizaes sociais, Oscips e a gesto pblica

    no estatal na rea da cultura / organizao da coleo Lia Calabre. So Paulo : Ita Cultural : Iluminuras, 2012.

    208 p. (Rumos Pesquisa)

    ISBN 978-85-7979-029-41. Poltica cultural. 2. Gesto cultural. 3. Organizaes sociais. 4. Os-cips. 5. Gesto pblica no estatal. 6. Ttulo.

    CDD 353.7

    POR UMA CULTURA PBLICA:

    ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A

    GESTO PBLICA NO ESTATAL NA

    REA DA CULTURA

    Elizabeth Ponte

    So Paulo, 2012

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    DEDICATRIA

    s polticas pblicas de cultura no Brasil e ao futuro que esta-

    mos construindo para elas.

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    AGRADECIMENTOS

    Pesquisar um tema novo e desafiador no seria possvel sem a ajuda de muitos. Por isso agradeo:

    minha orientadora e professora, Gisele Nussbaumer, por toda a confiana e o apoio.

    Ao Instituto Ita Cultural, pelo apoio e reconhecimento a esta pesquisa, por meio do prmio concedido pelo Programa Rumos Ita Cultural 2010/2011 Carteira Pesquisa Acadmica Concluda. Este agradecimento se estende a toda a equipe do Programa Rumos Ita Cultural e professora Lia Calabre.

    A todos os entrevistados e colaboradores diretos e indiretos. De So Paulo: Cludia Toni, Ana Flvia Mannrich, Beatriz Amaral, Augusto Calil, Z Verssimo, Luis Nogueira, Maurcio Cruz, Ronaldo Bianchi, Maura Crostini, Cristina Matos, Eduardo Filinto, Miguel Gutierrez e Denis Oliveira. De Fortaleza: Luis Sabadia, Alexandre Barbalho e Rodrigo Vieira. De Minas: Diomar Silveira. Da Bahia: Jlio San Martins, Bruna Gasbarre, Ninon Fernandes, Sandra Guimares e Larissa Pedreira.

    Aos professores Paulo Miguez (UFRB), Antnio Pinho (UFBA) e Cludia Leito (Ueceu) pela contribuio dissertao que deu origem a este livro.

    A todos os colegas da Fundao Cultural do Estado da Bahia (Funceb) e da Secretaria de Cultura (Secult) pelo aprendizado cotidiano ao longo de trs importantes anos da minha vida.

    A Ricardo Castro e a todos que constroem os Ncleos Estaduais de Orquestras Juvenis e Infantis da Bahia (Neojiba), a primeira experincia de publicizao na rea cultural no estado da Bahia.

    Aos meus amigos, por cada pequena e grande contribuio individual: Jamile Vasconce-los, Janana e Fernando Teles, Fernanda Bezerra, Carlos Augusto, Daniel Rebouas, Giuliana Kauark, Thas Rebouas, Glria Ceclia, Ciro Sales, Mariana Gomach e Rodrigo Cogo e famlia.

    E, por fim, minha famlia, pelo exemplo, e a Florian, pela felicidade.

    Understanding public policy is both an art and a craft.

    Thomas Dye (1984)

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    APRESENTAO

    INTRODUO

    I O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    1.1 Olhando o Estado e o Terceiro Setor

    1.2 Olhando a cultura

    1.3 Breve panorama da organizao da cultura no Brasil

    1.3.1 Dependncia do Estado

    1.3.2 Relao com o mercado

    1.3.3 Diferenas entre setores culturais

    1.3.4 Desequilbrio regional

    1.3.5 Profissionalizao e representatividade do setor cultural

    1.4 Olhando a cultura dentro do Estado

    1.4.1 Institucionalizao

    1.4.2 Legislao e financiamento

    SUMRIO17

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    II O SENSO COMUM E A REALIDADE INCOMUM: INVESTIGANDO OS PROBLEMAS DA CULTURA NA ADMINISTRAO PBLICA

    2.1 Burocracia e legislao

    2.2 Gesto e contratao de pessoas

    2.3 Planejamento e continuidade das aes

    2.4 Recursos e execuo oramentria

    III A CULTURA DAS OSS E OSCIPS: CONHECENDO OS CASOS DOS ESTADOS DE SO PAULO E MINAS GERAIS

    3.1 Panorama da publicizao no Brasil

    3.2 OSs e Oscips: caractersticas, semelhanas e diferenas

    3.3 A publicizao na rea cultural

    3.4 Resistncias e polmicas

    3.5 O estado de So Paulo e as Organizaes Sociais da Cultura

    3.5.1 Orquestra Sinfnica do Estado de So Paulo (Osesp)

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    3.6 O estado de Minas Gerais e as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico

    3.6.1 Orquestra Filarmnica de Minas Gerais

    IV DILOGOS, DISCUSSES E SILNCIOS: UMA ANLISE CRTICA DA GESTO PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA

    4.1 Fragilidades e riscos: respondendo aos antigos e identificando novos problemas

    4.1.1 Critrios de qualificao e forma de seleo das entidades

    4.1.2 Atuao dos Conselhos de Administrao das entidades

    4.1.3 Elaborao e acompanhamento dos contratos de gesto e termos de parceria

    4.1.4 Controle social, transparncia e acesso s informaes

    4.1.5 Sistematizao e divulgao dos resultados da publicizao

    4.2 Vantagens e benefcios: esperanas para o futuro e para o dia a dia da cultura

    4.2.1 Agilidade e eficincia na prestao de servios

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    4.2.2 Regularizao da contratao de profissionais

    4.2.3 Polticas pblicas mais transparentes

    4.2.4 Mais recursos para a cultura

    4.2.5 Planejamento e profissionalizao na rea cultural

    4.3 Desafios para o Estado e para as polticas culturais

    POSFCIO

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    COLEO RUMOS PESQUISA

    O campo cultural como objeto de pesquisa apresenta uma singularidade: de um lado, h a escassez de coleta de dados e de anlises consistentes sobre dados j coletados; de outro, h poucos canais para a circulao de resultados, trocas e reflexes.

    Com o intuito de colaborar para a mudana desse cenrio e visando ampliar o aces-so produo de conhecimento em torno de dados coletados por pesquisadores do campo cultural, o edital 2010-2011 do programa Rumos Pesquisa est organiza-do em duas categorias de premiao: uma, voltada para pesquisas desenvolvidas por estudiosos ligados a programas de ps-graduao Pesquisa Acadmica Con-cluda; outra, voltada para o financiamento a projetos de estudo independentes, sem a obrigatoriedade de o pesquisador estar vinculado a programas acadmicos de ps-graduao Pesquisa Aplicada.

    Ao todo foram inscritos 706 trabalhos. Uma comisso independente e autnoma, for-mada por pesquisadores, gestores e professores universitrios, reuniu-se ao longo de um ms, em vrios encontros presenciais, e leu e avaliou minuciosamente as propos-tas. Dos trabalhos premiados, as quatro pesquisas acadmicas concludas agora so publicadas em forma de livro, numa linguagem mais acessvel ao amplo conjunto de leitores a que se destinam, constituindo a Coleo Rumos Pesquisa Gesto Cultural.

    Neste volume, apresentamos o ttulo Por uma Cultura Pblica: Organizaes Sociais, Os-cips e a Gesto Pblica No Estatal na rea da Cultura, de Elizabeth Ponte. O livro traz um panorama do modelo de gesto pblica compartilhada com o terceiro setor atravs de Organizaes Sociais (OSs) e Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (Oscips) e procura compreender seu impacto em programas, corpos estveis e equi-pamentos pblicos na rea cultural. O estudo baseado nas experincias de So Pau-lo, que emprega a gesto por meio de OSs, e de Minas Gerais, que possui parcerias com Oscips.

    Os outros trs ttulos que compem a srie so: A Proteo Jurdica de Expresses Cul-turais de Povos Indgenas na Indstria Cultural, de Victor Lcio Pimenta de Faria; Os Car-deais da Cultura: O Conselho Federal de Cultura na Ditadura Civil-Militar (1967-1975), de Tatyana de Amaral Maia; e Discursos, Polticas e Aes: Processos de Industrializao do Campo Cinematogrfico Brasileiro, de Lia Bahia.

    INSTITUCIONAL

    O Observatrio Ita Cultural elabora o programa Rumos Pesquisa como um instru-mento de incentivo investigao e coleta de informaes culturais e de divulgao de resultados provenientes dessas aes. E, segundo seu iderio, a ampla visibilidade dos estudos o caminho para fortalecer debates e consolidar conhecimentos.

    Mil Villela

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    Organizaes Sociais

    Lei Federal n 9.637, de 15 de maio de 1998

    Lei Complementar n 846, de 4 de junho de 1998 (estado de So Paulo)

    Oscips

    Lei Federal n 9.790, de 23 de maro de 1999

    Lei n 14.870, de 16 de dezembro de 2003 (estado de Minas Gerais)

    APRESENTAO

    APRESENTAO

    Conheci Beth Ponte nas minhas incurses, a partir de 2006, no Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult), promovido pela Universidade Federal da Bahia. Lembro de nossa primeira comunicao virtual, quando a ento mestranda do Pro-grama Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade da UFBA, na fase exploratria de sua pesquisa sobre as organizaes pblicas no estatais da cultura, buscava informaes, com base em minha experincia de gestora cultural do Cear, sobre o Centro Drago do Mar de Arte e Cultura, a primeira organizao social cultural do pas. Tempos depois, tive a grata surpresa de ser convidada por Gisele Marchiori Nussbaumer, a orientadora de Beth, para participar da sua banca de mestrado.

    Lembro da curiosidade que tive ao receber a dissertao, e da satisfao ao l-la. Tra-tava-se de um trabalho de pesquisa bibliogrfica consistente e, ao mesmo tempo, de uma pesquisa de campo bem construda, que buscava dar concretude s reflexes tericas sobre a publicizao de servios no exclusivos ao Estado no setor cultural.

    Do lugar da cultura e por meio de uma escrita clara e objetiva, a mestranda me fez revisitar os grandes problemas do Estado e da administrao pblica brasileira. Por outro lado, ao analisar a atuao dos estados de So Paulo (que emprega a gesto compartilhada por meio de OSs) e de Minas Gerais (que possui parcerias com Oscips), permitiu-me aprofundar e ampliar minhas reflexes sobre os desafios, os impasses e as perspectivas dos modelos no estatais da gesto pblica cultural.

    Hoje a dissertao Por uma Cultura Pblica: Organizaes Sociais, Oscips e a Gesto Pblica No Estatal na rea da Cultura, de Beth Ponte, se torna livro graas ao Ita Cul-tural. A publicao bem-vinda e ter grande serventia para o campo cultural brasilei-ro, pois j nasce como uma referncia para o Terceiro Setor e seus modelos de gesto pblica. Ao mesmo tempo que o livro de Beth Ponte vem suprir a carncia de estudos e pesquisas na rea da cultura, a sua leitura estimular, certamente, outras pesquisas sobre as possibilidades da gesto cultural diante do potencial emergente da cultura enquanto eixo de desenvolvimento dos Estados contemporneos. Por isso, a pesquisa de Beth Ponte torna-se um livro indispensvel aos gestores, produtores, artistas, pes-quisadores, polticos, enfim, a todos aqueles que se dedicam a pensar o Brasil.

    Cludia Leito

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA18 19INTRODUO

    INTRODUO

    Elizabeth Ponte

    A pesquisa que deu origem a este livro foi orientada por uma perspectiva completamente pragmtica, com foco na curiosidade e na vontade de compreender quais os impactos e as transformaes, positivos ou no, que o novo modelo de gesto pblica no estatal, tambm conhecido como publicizao, poderia oferecer administrao pblica na rea cultural. Sucessivos acontecimentos me levaram ao encontro desse tema. Entre 2006 e 2007, pesquisando centros culturais pblicos brasileiros, realizei um estudo comparativo entre os dois maiores centros culturais das regies Nordeste e Sudeste, respectivamente, o Centro Drago do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza (CE), e o Centro Cultural So Paulo, em So Paulo (SP). Dentre as muitas diferenas entre os dois espaos culturais, uma em especial me chamou ateno: o modelo de gesto do Centro Drago do Mar, que, como vim a descobrir, foi a primeira experincia de publicizao na rea da cultura no Brasil. Mais do que um simples fato a ser acrescentado pesquisa, pude ver presencialmente alguns dos resultados positivos que esse modelo possibilitava gesto do espao.

    Logo aps essa pesquisa, comecei a trabalhar na Assessoria de Projetos da Fundao Cul-tural do Estado da Bahia, entidade da administrao indireta ligada Secretaria Estadual de Cultura, na qual permaneci por trs anos. Ao conhecer e conviver com a realidade da administrao pblica na rea cultural, com seus problemas, desafios e tempo prprios, quis entender por que a positiva experincia de gesto descoberta no Cear ainda era exceo, e no regra, na rea cultural. Apresentava-se, ento, diante de mim o tema da minha prxima pesquisa, que resultou na dissertao de mestrado homnima a este livro, apresentada em maio de 2010 no Programa Multidisciplinar de Ps-Graduao em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia e premiada no mesmo ano pelo Programa Rumos Ita Cultural 2010/2011, na Carteira Pesquisa Acadmica Concluda.

    Nessa pesquisa, que se estendeu de 2007 a 2010, pude averiguar que, apesar de ainda no ser regra, a gesto pblica no estatal na rea da cultura j no mais uma exceo. At a concluso da pesquisa, 19 estados do Brasil j possuam leis estaduais para regu-lao de parcerias com o Terceiro Setor, seja com Organizaes Sociais (OSs) ou Organi-zaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (Oscips). Em seis estados (Cear, Bahia, Minas Gerais, Par, Mato Grosso e So Paulo), o governo estadual adotou o modelo para a gesto de espaos e projetos culturais pblicos, a exemplo de museus, centros culturais e corpos estveis, como companhias de dana e orquestras sinfnicas. Outros estados,

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    como Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Esprito Santo, j demonstraram a inteno de adotar o modelo tambm na rea da cultura. Alguns governos municipais, a exemplo do que ocorre em Curitiba e Teresina, esto tambm adotando o modelo para gesto de programas culturais. Trata-se, portanto, de um tema recente e em rpida expanso, cujo desenvolvimento afeta sensivelmente a gesto pblica da cultura e traz novas configu-raes s funes e s responsabilidades do Estado e da sociedade civil.

    Nesse estgio de implantao da gesto pblica no estatal no Brasil, j includa na agenda da administrao pblica em diversos estados, muito mais do que simples-mente explicar ou descrever esse modelo de gesto, percebi que era preciso avanar na discusso, formulando e respondendo, sempre que possvel, algumas perguntas centrais, por exemplo: como a publicizao contribui para resolver ou minimizar os principais problemas da cultura na administrao pblica? Quais os pontos positivos e negativos do modelo? A sociedade e o Estado ganham ou perdem com essa trans-formao? Qual a relao entre a publicizao e as polticas pblicas na rea cultural?

    Desde a implantao desse novo modelo de gesto, a partir de 1998, muitos estudos e anlises nas reas jurdica e administrativa tm sido realizados sobre a gesto pblica no estatal, focando sobretudo as experincias do setor da sade, que tem sido um dos princi-pais envolvidos nesse processo de modernizao da gesto pblica. Infelizmente, a mesma ateno no tem sido dada rea cultural nesse processo. Os reflexos ainda em desdobra-mento na rea cultural so o ponto de partida deste livro, que pretende contemplar essa lacuna de ordem temtica nos estudos recentes sobre polticas culturais pblicas no Brasil.

    O recorte de estudo passou por muitas transformaes at chegar a este formato, acompanhando a evoluo da prpria pesquisa. A inteno inicial de estudar unica-mente o processo e os resultados da publicizao no Drago do Mar foi descartada pela preferncia em realizar um estudo com foco nas transformaes na gesto de um espao ou programa cultural j existente e que tivesse passado da administrao pblica, direta ou indireta, para a gesto pblica no estatal. Como o Drago do Mar foi criado j sob esse modelo de gesto, o estudo no seria muito frutfero, j que o objetivo era justamente compreender como a publicizao poderia contribuir para minimizar ou resolver os problemas existentes na administrao pblica.

    Ao descobrir que a publicizao vinha sendo implementada por meio de parcerias com diferentes tipos de entidades do Terceiro Setor, as OSs e as Oscips, optei por ana-lisar os casos dos principais estados que empregam esse modelo na rea da cultura:

    So Paulo, com instituies e programas geridos por OSs; e Minas Gerais, que possui parcerias com Oscips. Para ilustrar os dois casos, apresento a histria da publicizao das suas respectivas orquestras estaduais, que passaram por grandes transformaes em decorrncia do novo modelo de gesto empregado: a Orquestra Sinfnica do Es-tado de So Paulo (Osesp) e a Orquestra Filarmnica de Minas Gerais.

    Embora as reflexes expostas neste livro tenham sido construdas com base na anlise das experincias nos estados de So Paulo e Minas Gerais, elas so, em sua maioria, aplicveis a outros casos de publicizao nas diversas reas da administrao pbli-ca, seja em mbito federal, estadual ou municipal. Grande parte das informaes foi obtida por meio de entrevistas presenciais, assim como em palestras com gestores pblicos e privados ligados ao processo de publicizao da cultura nos dois estados. A contribuio de funcionrios da Secretaria de Cultura de So Paulo e de membros das OSs paulistas, assim como a transparncia do processo em Minas, por meio da atuao da Secretaria de Estado de Planejamento e Gesto (Seplag), foi fundamental para pos-sibilitar a anlise crtica desse fenmeno recente da administrao pblica brasileira e ainda parcamente sistematizado e estudado. Destaco ainda a importncia de depoi-mentos de gestores pblicos de outros estados que tambm aplicam a publicizao, a exemplo do Par, do Cear e da Bahia, alm de bibliografia recente sobre o tema (TORRES, 2007; VIOLIN, 2006), que, embora escassa e no relacionada especificamente rea cultural, contribuiu para o aprofundamento da discusso sobre o tema.

    No captulo 1, O espao da cultura: entre o pblico e o estatal, abordo o lugar ocu-pado pela cultura no poder pblico brasileiro e as relaes entre polticas pblicas de cultura e o modelo de gesto pblica no estatal. Qual a relao entre o surgimento desse modelo e o espao ocupado pela cultura hoje em dia no Estado? Para quem de-vemos voltar nosso olhar para entender a relao entre o campo da cultura e o Estado? Para responder a essas questes, o captulo est dividido em trs partes.

    A primeira delas, Olhando o Estado e o Terceiro Setor, como o prprio nome indica, traz uma anlise geral das condies polticas e sociais que fizeram emergir o paradigma da Reforma do Estado, contextualizando seu surgimento e suas principais realizaes. A se-gunda parte, Olhando a cultura, analisa em linhas gerais algumas das principais caracte-rsticas do campo cultural, de forma a compreender, mais adiante, de que maneira essas caractersticas influenciam no trato da cultura dentro da administrao pblica. At que ponto h incompatibilidade entre a gesto cultural e a gesto pblica? A cultura deve ser realmente tratada como uma rea especfica dentro do poder pblico? Essas perguntas

    INTRODUO

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    ecoaro durante a leitura do livro, e para isso necessrio analisar o que h de prprio no campo cultural, por meio da compreenso atual de cultura, caractersticas desse campo, organizao, atores e cadeia produtiva e relao com o Estado.

    A terceira parte, Olhando a cultura dentro do Estado, traa um breve diagnstico da atuao do Estado na rea cultural no Brasil com base em dois eixos centrais: institu-cionalizao e legislao e financiamento, tomando como parmetro os indicadores culturais municipais compilados pelo IBGE.

    O captulo 2 O senso comum e a realidade incomum: investigando os problemas da cultura na administrao pblica analisa alguns dos principais problemas que afetam a execuo da atividade cultural na administrao pblica direta e indireta, partindo do princpio de que no ser possvel entender a dimenso das mudanas provocadas pela publicizao sem o conhecimento da forma atual de gesto. Foram elencados quatro principais pontos de impasse na administrao pblica na rea da cultura: 1) burocracia e legislao; 2) gesto e contratao de pessoas; 3) planejamento e conti-nuidade das aes; e 4) recursos e execuo oramentria.

    As experincias de publicizao na rea cultural so propriamente apresentadas ao leitor no captulo 3, A cultura das OSs e Oscips: conhecendo os casos dos estados de So Paulo e Minas Gerais. Nele procuro construir um panorama da gesto pblica no estatal no Brasil, de modo geral e na rea da cultura, com exemplos em diversos esta-dos. Tambm so avaliadas caractersticas, semelhanas e diferenas entre OS e Oscip, no campo legal e nas relaes com o Estado.

    O ltimo captulo, Dilogos, discusses e silncios: uma anlise crtica da gesto p-blica no estatal na rea da cultura, o espao para a reflexo sobre a publicizao na rea da cultura, expondo suas vantagens e desvantagens no panorama atual.

    Com a conscincia de que esse um fenmeno novo e ainda em transformao, no ofereo respostas conclusivas a todas as perguntas e dvidas que cercam esse modelo de gesto. Ofereo to somente algumas informaes, impresses e opinies acumu-ladas durante meu processo de curiosidade, descoberta e pesquisa. Ofereo tambm um primeiro passo e um convite para que mais gestores, pesquisadores e intelectuais orgnicos da cultura me acompanhem nesta jornada.

    I - INTRODUO

    I O ESPAO DA CULTURA:ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

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    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA24 25

    Muito embora a herana mais marcante deixada pelos anos 1990 na rea de polticas culturais seja associada aos modelos de financiamento pblico e privado para a cul-tura, por meio das leis de incentivo fiscal e do marketing cultural, o final da dcada foi marcado tambm pelo surgimento de novos modelos de gesto pblica e pelo cres-cimento das parcerias entre o pblico, o privado e a sociedade civil na rea da cultura.

    No final dos anos 1990, duas leis criaram novas figuras jurdicas: as Organizaes So-ciais (OSs) e as Organizaes da Sociedade Civil de Interesse Pblico (Oscips), por meio, respectivamente, das Leis Federais n 9.637/98 e n 9.790/99. Ambas esto relaciona-das ao contexto da Reforma do Estado no Brasil e s alteraes implementadas desde 1995 nas mais variadas reas da administrao pblica. Essas leis ensejaram o fortaleci-mento das aes de parceria entre o governo e o chamado Terceiro Setor, criando um espao pblico no estatal e dando origem a um modelo de gesto pblica conheci-do como publicizao, contratualizao ou simplesmente gesto pblica no estatal.

    O surgimento e o crescimento da publicizao na rea da cultura precisam ser com-preendidos dentro de contextos polticos, sociais e culturais bastante especficos. Mais do que propor definies ou conceitos, este o objetivo deste captulo: contextualizar esse fenmeno, que tem ocupado um espao cada vez maior na administrao pbli-ca e ainda no foi devidamente explorado no campo de estudos de polticas pblicas culturais no Brasil.

    Entretanto, por estarmos caminhando por rumos novos e, para muitos, ainda desco-nhecidos, a definio de um termo, que estar bastante presente neste trabalho, se faz necessria: afinal, o que exatamente a publicizao? A publicizao um modelo de gesto de servios e atividades pblicas por meio de parcerias entre o Estado e o Ter-ceiro Setor. O modelo tomou fora no Brasil a partir da Reforma do Estado, em 1995, e, como vimos, tambm denominado contratualizao ou gesto pblica no estatal.

    A publicizao no Brasil realizada por meio de parcerias dos governos federal, esta-dual e municipal com entidades do Terceiro Setor, nesse caso pessoas jurdicas sem fins lucrativos na forma de associaes, fundaes ou institutos que, cumprindo certos pr-requisitos, recebem uma qualificao ou titulao que lhes permite firmar parcerias com o Estado. Organizao social ou organizao da sociedade civil de inte-resse pblico so, portanto, ttulos concedidos a entidades do Terceiro Setor, e no as prprias entidades em si.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    Sendo assim qualificada, a entidade est habilitada a receber recursos pblicos e admi-nistrar bens e equipamentos do Estado, que continua sendo responsvel por planeja-mento, financiamento e controle da atividade, diferentemente das aes de privatiza-o. O controle dessa parceria com o Terceiro Setor feito por meio da celebrao de um contrato de gesto, no caso das OSs, ou termo de parceria, no caso das Oscips, nos quais so explicitadas metas e atividades a ser realizadas de acordo com o servio, pro-grama ou equipamento gerido. A consecuo dessas metas garante o recebimento do recurso e a prorrogao do contrato. O no cumprimento das metas ou irregularida-des na gesto ocasionam a troca e at a desqualificao da entidade.

    Para entender a publicizao na rea da cultura hoje, necessrio voltar a seu surgi-mento, no mbito das aes da chamada Reforma do Estado.

    1.1 - Olhando o Estado e o Terceiro Setor

    Os contextos poltico, social e econmico em meados da dcada de 1990, fragilizados em decorrncia da ainda recente democracia, impuseram ao Estado brasileiro a neces-sidade de construir-se e reformar-se simultaneamente, criando novas polticas e com-batendo antigas deficincias. Assim, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, surge a Reforma do Estado, uma srie de aes e polticas implementadas a partir de 1995 pelo extinto Ministrio da Administrao e Reforma do Estado (Mare), acompa-nhando o movimento internacional da nova gesto pblica e inspirada sobretudo no modelo britnico de contratualizao por meio das chamadas Quangos (sigla inglesa para organizaes semigovernamentais ou quase no governamentais). No preten-demos contemplar neste tpico um histrico detalhado das relaes entre Estado e Terceiro Setor, tema com vasta bibliografia, mas sim focar as transformaes ocorridas a partir da Reforma do Estado no Brasil.

    No Brasil, a Reforma do Estado tinha como meta a descentralizao da gesto de servios pblicos em trs vias: 1) transferncia dentro de esferas do governo (municipalizao); 2) transferncia total da gesto de bens e servios pblicos (privatizao), o que acabou resultando na criao de agncias executivas (que tambm esto dentro das aes de contratualizao com o Estado); e 3) outras modalidades de transferncia de gesto, por meio de terceirizao de servios e implementao de parcerias com o Terceiro Setor (publicizao). Nessa ltima via foi criado o Programa Nacional de Publicizao.

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

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    Assim, um dos principais objetivos da Reforma era o incentivo s parcerias para ges-to de servios pblicos, entre eles o ensino, a pesquisa cientfica, o desenvolvimento tecnolgico, a proteo e a preservao do meio ambiente, a sade, a ao social, a agropecuria, o desporto e, finalmente, a cultura. Esses setores passveis de publiciza-o so considerados reas no exclusivas do Estado, ou seja, incluem atividades que no envolvem a prtica de poder (a exemplo da segurana pblica) e que prescindem de um gerenciamento exclusivo por parte do Estado, mas que devem continuar a ser subsidiadas, mesmo que parcialmente, por ele.

    Segundo Boaventura Souza Santos (2005 apud VIOLIN, 2006, p. 31), o movimento de Re-forma do Estado, pelo qual passaram diversos pases entre as dcadas de 1980 e 1990, pode ser caracterizado em duas fases. A primeira a do Estado mnimo, em que prevalece a viso de cunho neoliberal extremista de que o Estado inerentemente ineficaz, parasi-trio e predador, por isso a nica reforma possvel e legtima consiste em reduzir o Estado ao mnimo necessrio ao funcionamento de mercado (VIOLIN, 2006, p. 31). A segunda fase tem como base os seguintes pilares: a reforma do sistema jurdico e o papel do cha-mado Terceiro Setor. Essas fases no obedecem a nenhum princpio causal ou mesmo linear, podendo assim existir diferentes tipos e graus de Reforma do Estado, a depender da especificidade de cada pas. No caso do Brasil, podemos dizer que a Reforma apresentou, concomitantemente, um pouco das duas fases mencionadas por Boaventura.

    Passados mais de 15 anos desde as primeiras aes da Reforma do Estado no Brasil e da criao do Mare, em 1995, mais do que em mbito federal, a gesto pblica no estatal teve um acentuado desenvolvimento no nvel estadual. Abrcio e Gaetani, relatores do Se-minrio Avanos e Perspectivas da Gesto Pblica nos Estados, promovido pelo Conselho Nacional de Secretrios de Estado de Administrao (Consad), em 2006, explicam a expan-so da publicizao nos estados brasileiros por meio de trs fatores principais, chamados de vetores impulsionadores das reformas, ou seja, as principais modificaes polticas em mbito estadual nas ltimas dcadas que acarretaram inovaes na administrao pbli-ca. So elas: a) o maior poder e autonomia dos estados a partir da redemocratizao; b) o crescimento da municipalizao (fortalecimento dos municpios); e c) o modelo brasileiro de federalismo compartimentalizado (o que dificulta o entrelaamento e o compartilha-mento de tarefas e funes entre os nveis de governo em diversas reas sociais).

    Alm da existncia desses vetores impulsionadores das reformas em mbito estadual, preciso entender a implementao da gesto pblica no estatal nos estados de uma forma integrada, e no apenas como uma simples cpia das aes de Reforma do Estado

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    em mbito federal. A publicizao faz parte do processo de modernizao da gesto que vrios estados sofreram no final dos anos 1990, que inclui outras mudanas, tais como: criao de centros de atendimento integrado ao cidado; incentivo ao governo eletrnico; modernizao das compras governamentais; e criao da carreira de gestores. Acrescenta-mos a esses ainda outro fator, referente ao crescimento e fortalecimento das entidades do chamado Terceiro Setor e s modificaes na sua forma de relacionamento com o Estado.

    Por Terceiro Setor compreende-se um universo de organizaes com duas caracte-rsticas bsicas: serem privadas e no terem fins lucrativos (SABADIA, 2001, p. 30). O termo ainda no utilizado de maneira consensual, sendo tambm criticado por sua caracterizao vaga e incapaz de diferenciar os diversos atores que o compem.

    O termo Terceiro Setor uma conceituao que antes confun-

    de do que esclarece, pois mescla diversos sujeitos com aparen-

    tes igualdades nas atividades, porm com interesses, espaos e

    significados sociais diversos, contrrios e at contraditrios, pois

    integrariam o setor as ONGs, organizaes sem fins lucrativos

    OSFL, as organizaes da sociedade civil OSC, as instituies

    filantrpicas, as associaes de moradores ou comunitrias, as

    associaes profissionais ou categoriais, os clubes, as institui-

    es culturais, as instituies religiosas [...] (VIOLIN, 2006, p. 129).

    Surgidas no Brasil ainda durante a dcada de 1970, as ONGs se propunham a suprir lacunas no preenchidas pelo Estado (ou, na definio de Thomas R. Dye1, atuando na-quilo que o Estado escolhia no atuar), muitas vezes por meio de voluntariado nas reas

    1 Public policy is whatever governments do choose to do or not to do. Note that we are focusing not only on

    government action, but also on government inaction, that is, what government chooses not to do. We contend that

    government inaction can have just as great impact on society as government action. (DYE, 1984, p. 4).

    Poltica pblica qualquer coisa que o governo escolhe ou no fazer. Notem que estamos focando no ape-

    nas a ao governamental, mas tambm a no ao, isto , aquilo que o governo escolhe no fazer. Conside-

    ramos que a no ao governamental pode ter tanto impacto na sociedade quanto a ao governamental.

    (DYE, 1984, p. 4). (Traduo nossa.)

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA28 29

    de assistncia social, cidadania, educao e cultura. Com sua proliferao durante as dcadas seguintes e o papel cada vez mais expressivo ocupado por essas organizaes, coube ao Estado criar mecanismos de dilogo e apoio a essas instituies que exerciam uma funo de complementao, quando no substituio, das aes governamentais.

    Embora controverso, o termo ser utilizado neste trabalho por ser ainda o mais co-mum entre os estudiosos do tema. Luiz Carlos Mendes enxerga trs formas de aproxi-mao entre o Estado e o Terceiro Setor:

    A confrontao, a complementaridade e a substituio. Admitin-

    do que a fase de confrontao, predominante no perodo da di-

    tadura militar, no hoje desejada e priorizada por qualquer das

    partes, preciso examinar as outras duas modalidades. A comple-

    mentaridade entre o Terceiro Setor e o Estado reconhecida, nos

    pases democrticos, como a outra grande via de criao de um

    espao pblico no estatal, onde a parceria pressupe a soma de

    esforos, identificados os limites e possibilidades dos parceiros. A

    substituio, por sua vez, assenta na distino entre funes ex-

    clusivas e funes no exclusivas do Estado (MENDES, 1999, p. 16).

    Podemos dizer, em uma viso geral, que a atuao do Terceiro Setor no Brasil encon-tra-se entre a complementaridade e a substituio, comprovadas, por exemplo, pelo crescimento expressivo do volume de recursos pblicos da Unio transferidos para organizaes no governamentais (ONGs) na ltima dcada, mediante convnios, ter-mos de parceria e outros instrumentos similares.

    No exerccio de 2008, o Governo Federal contabilizou um mon-

    tante de 3 (trs) bilhes de reais transferidos para as organizaes

    no governamentais, mediante convnio, termos de parceria e

    outros instrumentos congneres. Por seu turno, apenas a renn-

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    cia previdenciria prevista na Lei Oramentria Anual do exerccio

    de 2009 alcanou a cifra de 5 bilhes e oitocentos milhes de re-

    ais. A renncia fiscal decorrente das isenes concedidas a essas

    entidades est estimada em 9 bilhes e novecentos milhes de

    reais. Portanto, sob a forma de renncias, as entidades privadas

    sem fins lucrativos, especialmente as filantrpicas, recebem do

    Estado Brasileiro montante anual superior a 16 bilhes de reais

    (MINISTRIO DO PLANEJAMENTO, 2010, p. 107-108).

    No apenas a expanso do Terceiro Setor, mas, sobretudo, a necessidade vinda do pr-prio Estado so as principais justificativas para esse crescimento to acentuado, como apontam Aldino Graef e Valria Salgado (2009):

    A expanso das parcerias entre Poder Pblico e as entidades

    civis sem fins lucrativos, ocorridas nos ltimos anos, decorre da

    grande expanso das organizaes da sociedade civil a partir da

    redemocratizao do pas, mas, tambm, em grande parte, pelas

    dificuldades encontradas pelos governos na prestao direta de

    servios pblicos, decorrentes da rigidez da estrutura normativa

    da Administrao Pblica, que conta com um regime nico de

    pessoal e de compras e contrataes, alm de formas de geren-

    ciamento iguais para todo seu conjunto de rgos e entidades,

    independentemente das competncias que cada um exerce

    se de direo e coordenao central ou de natureza meramente

    burocrtica ou se atividade de prestao direta de servios es-

    senciais populao, inflexvel necessidade que essa ltima

    tem de ter agilidade e flexibilidade em sua atuao. Alm disso,

    a ausncia de polticas de gesto de pessoal adequadas, seja no

    que se refere remunerao, incentivos, ou capacitao pro-

    fissional, no raras vezes impacta negativamente na qualidade

    dos servios prestados, notadamente nos setores de sade e da

    educao pblica [...] (GRAEF; SALGADO, 2009, p. 16).

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA30 31

    Essa necessidade do prprio Estado de formas mais eficientes de gesto tambm um dos principais motivos para o surgimento e o crescimento das estratgias de publici-zao que estudaremos a seguir.

    Alm desses pontos, a grande questo que deu origem Reforma do Estado foi a necessidade de repensar os limites entre aquilo que deve ser puramente pblico no sentido de mantido e executado exclusivamente pelo poder pblico , o que pode ser promovido exclusivamente pelo mercado ou pela sociedade organizada e, principal-mente, o que pode ser promovido por meio de parcerias entre as partes.

    Essas questes estavam tambm em sintonia com o universo do pensamento e da formulao das polticas pblicas culturais, refletindo os diversos posicionamentos do Estado em relao ao financiamento e gesto da cultura. A grande pergunta da Refor-ma encontrava ento seu eco no campo das polticas culturais: qual deve ser o papel do Estado na rea cultural? Antes de contextualizar a relao entre Estado e cultura, vamos analisar um pouco a conformao geral do campo cultural e sua organizao no Brasil.

    1.2 - Olhando a cultura

    Partimos do princpio de que, para compreender os impactos da gesto pblica no es-tatal na rea cultural, preciso compreender a organizao da cultura, seu funcionamen-to e suas principais caractersticas enquanto campo social no Brasil, pois estes so fatores que interferem diretamente na sua relao com a administrao pblica. No objeti-vo deste tpico adentrar em questes referentes definio da cultura. Interessa-nos explor-la enquanto campo social, abordando suas caractersticas, atores, processos e transformaes, ou a prpria organizao da cultura, definida por Teixeira Coelho como:

    Complexo de relaes formais e informais que regem o sistema

    de produo cultural. Envolve instituies culturais, formaes

    culturais, movimentos ou escolas, criadores individualmente con-

    siderados, receptores da cultura, normas jurdicas, organismos

    econmicos, instituies de ensino e pesquisa, corpos doutri-

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    nrios etc., o que tem por consequncia uma multiplicidade de

    abordagens diferentes do fenmeno cultural, de modo amplo, e

    da poltica cultural, de modo especfico (COELHO, 1997, p. 283).

    Entretanto, importante registrar que a abordagem do termo cultura ao longo des-te livro tende a aproximar-se mais da sua dimenso sociolgica, enquanto produo elaborada com a inteno explcita de construir determinados sentidos e de alcanar algum tipo de pblico, atravs de meios especficos de expresso (BOTELHO, 2001, p. 76). A preferncia pela dimenso sociolgica, que compreende a cultura enquanto um sistema organizado socialmente, diferentemente da dimenso antropolgica que compreende a cultura enquanto costumes, tradies e modos de vida, justificada tambm pelo histrico das polticas do Estado brasileiro relativas rea cultural, o qual apenas recentemente passou a enxergar as manifestaes culturais para alm de seu mbito estritamente artstico. Antes de abordarmos a relao do Estado com a cultura atualmente no Brasil, vamos analisar algumas das caractersticas gerais e especficas da organizao do campo cultural e de seus atores.

    A organizao da cultura nos dias de hoje resultado do processo de autonomizao do campo cultural, ou seja, sua afirmao enquanto campo social legitimado, confor-me explica Albino Rubim:

    Com a modernidade temos a autonomizao (relativa, claro)

    do campo cultural em relao a outros domnios societrios, no-

    tadamente a religio e a poltica. Tal autonomizao que no

    deve ser confundida com isolamento, nem com desarticulao

    ou desconexo com o social implica na constituio da cultura

    enquanto campo singular, o qual articula e inaugura: instituies,

    profisses, atores, prticas, teorias, linguagens, smbolos, iderios,

    valores, interesses, tenses e conflitos, como sempre assinalou

    Pierre Bourdieu em seus textos acerca da cultura. [...] A partir desse

    momento e movimento, a cultura passa a ser nomeada e perce-

    bida como esfera social determinada que pode ser estudada em

    sua singularidade (RUBIM In: NUSSBAUMER (Org.), 2008, p. 141).

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA32 33

    Segundo Bourdieu (1970), em seu livro A Economia das Trocas Simblicas, essa auto-nomizao foi acompanhada e potencializada por outras trs importantes transfor-maes: a) a constituio de um pblico de consumidores virtuais cada vez mais ex-tenso, ou seja, a diversificao do pblico consumidor e o crescimento de seu poder e influncia sobre a produo cultural; b) a constituio de um corpo cada vez mais numeroso e diferenciado de produtores e empresrios de bens simblicos, com desta-que para a profissionalizao desses agentes, fator importante para a consolidao do campo cultural; e c) a multiplicao e a diversificao das instncias de consagrao e de difuso, competindo pela legitimidade cultural.

    Rubim elenca ainda alguns processos sociais que contribuem para a consolidao e a al-terao do campo cultural. Entre os principais, destacamos os movimentos de politizao da cultura (relacionada j mencionada autonomizao do campo cultural, passando a ter legitimidade poltica e social), a mercantilizao da cultura (associada ao desenvolvi-mento do capitalismo e da chamada indstria cultural) e a tecnologizao da cultura (as-sociada ao desenvolvimento da prpria indstria cultural e da tecnologia da informao).

    Compreender as dimenses polticas e econmicas da cultura, bem como as transfor-maes trazidas pelas novas tecnologias, essencial para entender a conformao do campo cultural hoje. tambm essencial compreender os papis e a atuao do que Gisele Nussbaumer (2000) chama de atores sociais do mercado da cultura. A autora acrescenta aos quatro elementos do sistema cultural (artistas, pblico, patrocinadores e mdia) os agentes culturais, como intermediadores/reguladores das relaes entre artistas, patrocinadores e mdia (citando como exemplo os marchands do mercado das artes visuais ou os gestores de marketing cultural privado). Acrescentamos ainda ao rol dos agentes os gestores culturais, profissionais cujo papel, seja nas instituies culturais pblicas ou privadas, cada vez mais central e cuja importncia acerca da especializao, terica ou prtica, desperta cada vez mais ateno.

    A atuao de todos esses atores est vinculada a um processo histrico de consolidao do campo cultural, com caractersticas bastante distintas nos diferentes pases. Essas ca-ractersticas tambm podem guardar muitas semelhanas, em especial em relao sua debilidade, como bem define o terico espanhol D. Xavier Fina Rib (2000), em sua an-lise sobre a sociedade civil no setor cultural na Espanha. Para caracterizar em linhas gerais a organizao da cultura no Brasil, utilizaremos alguns dos tpicos da anlise de Rib sobre o setor cultural espanhol, em busca de aproximaes dentro de nosso contexto.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    Essas aproximaes dizem respeito relao histrica de dependncia do financiamento da cultura em relao ao Estado; relao de desconfiana que alguns setores culturais mantm com o mercado; existncia de diversos setores culturais e de diferenas entre eles; relao de desequilbrio regional no financiamento cultura no territrio nacional; e, por fim, recente e ainda frgil profissionalizao e representatividade do setor cultural.

    1.3 - Breve panorama da organizao da cultura no Brasil

    1.3.1 - DEPENDNCIA DO ESTADO

    Historicamente, o financiamento de grande parte da produo e da difuso artstica no Brasil esteve vinculado ao estatal (BOTELHO, 2007; CALABRE, 2007), seja por meio da atuao de instituies culturais pblicas, subvenes e apoios a instituies privadas, patrocnio direto a projetos (muitas vezes pelo conhecido apoio de balco) ou, mais recentemente, por meio de isenes fiscais, leis de incentivo, fundos estatais de cultura ou lanamento de editais especficos para os setores artsticos. No que toca dependncia do setor cultural em relao ao Estado, o panorama brasileiro bem semelhante ao espanhol, de acordo com a descrio de Rib:

    Con la excepcin de las industrias culturales (y no todas) los sec-

    tores de la cultura dependen, en un sentido u otro, del Estado. El

    Estado es el principal contratador, el Estado subvenciona, el Esta-

    do organiza buena parte de las exposiciones, el Estado tiene los

    museos que pueden comprar obra, el Estado tiene las bibliotecas,

    etc. No obstante, este protagonismo no va acompaado de un

    papel legitimador; es un protagonista en tanto que est presente,

    no porque establezca unas reglas del juego [...] (RIB, 2000, p. 21)2.

    2 Com exceo das indstrias culturais (e no todas), os setores da cultura dependem, em um sentido

    ou outro, do Estado. O Estado o principal contratante, o Estado subvenciona, o Estado organiza boa parte

    das exposies, o Estado tem os museus que podem comprar obras, o Estado tem as bibliotecas etc. No

    obstante, este protagonismo no acompanhado de um papel legitimador, um protagonista pelo quanto

    que est presente, no porque estabelea as regras do jogo.

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA34 35

    Obviamente, a dependncia do Estado no uma caracterstica aplicvel a todos os setores ou atividades culturais brasileiros. Como exceo acrescentaramos, alm das indstrias culturais (e no todas), segmentos da produo cultural independente, so-bretudo do meio musical, e tambm a grande maioria das manifestaes da cultura popular ou tradicional, que prescindem desde sua origem do apoio ou fomento estatal.

    Fato que essa dependncia estatal, mesmo que minimizada aps o surgimento e o incremento da participao do setor privado, seja pelo marketing cultural ou pelo patrocnio direto de empresas, responsvel por algumas sequelas na relao entre sociedade civil e Estado no campo cultural, cujo efeito pode ser caracterizado por uma desresponsabilizao da sociedade e, na definio de Rib, por uma paradoxal rela-o de alta dependncia e alta desconfiana entre a sociedade e o Estado:

    No obstante, hay una tendencia general a delegar toda esa res-

    ponsabilidad en el Estado (en su sentido ms amplio, que inclu-

    ye los distintos niveles de la Administracin) sin acompaar la infinita reivindicacin de derechos con una asuncin de deveres

    cvicos y colectivos. Esta desresponsabilizacin, esta delegacin,

    tiene como consecuencia que se establezca con el Estado una

    paradjica relacin de alta dependencia y alta desconfianza: lo

    esperamos todo sin ninguna esperanza (RIB, op. cit., p. 21)3.

    Rib faz ainda uma interessante reflexo, caracterizando a dependncia do setor artsti-co ao Estado tambm como um movimento de dupla dependncia (doble cautividad) entre as polticas culturais e a produo cultural predominante. Ou seja, as prprias po-lticas culturais acabam sendo norteadas pela produo cultural predominante, resul-tando em polticas mais focadas nas necessidades dos artistas do que nas dos cidados.

    3 No obstante, h uma tendncia geral em delegar toda essa responsabilidade ao Estado (no seu senti-

    do mais amplo, que inclui nveis distintos da Administrao) sem que a infinita reivindicao de direitos seja

    acompanhada por um crescimento dos deveres cvicos e coletivos. Esta desresponsabilizao, essa delega-

    o, tem como consequncia que se estabelea com o Estado uma paradoxal relao de alta dependncia

    e alta desconfiana: esperamos tudo sem nenhuma esperana.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    Las polticas culturales responden em exceso a la lgica profe-

    sional. En muchas ocasiones, no parecen responder al inters

    general o a las necesidades de la ciudadana, sino a dar satis-

    faccin a las demandas y reivindicaciones de los profesionales

    (sector artstico) (RIB, op. cit., p. 25)4.

    1.3.2 - RELAO COM O MERCADO

    Em uma lgica complementar do tpico acima, notamos que, de forma geral, boa parte dos segmentos artsticos alimenta uma relao ainda pouco esclarecida ou mes-mo antagnica com o mercado. Embora a demanda por financiamento seja constante e crescente, a aproximao de alguns segmentos artsticos com o mercado vista com desconfiana e resistncia, guardando temores sobre a mercantilizao e consequen-te deturpao ou desvirtuamento da produo artstica.

    No contexto brasileiro, essa desconfiana natural foi fortalecida pela relao de depen-dncia de diversos projetos, artistas e produtores culturais para com empresas patroci-nadoras, decorrente tambm do fortalecimento da Lei Rouanet como principal meca-nismo de financiamento de projetos culturais. O fato de a deciso de patrocnio estar concentrada nos setores de marketing de grandes empresas pode ocasionar uma in-terferncia direta na proposta artstica ou no formato do projeto cultural, colaborando muitas vezes para o aumento da resistncia na relao entre cultura e mercado.

    A relao com o mercado tem tambm outro vis, j citado no tpico anterior. Existem setores culturais e segmentos artsticos, vinculados em sua maioria indstria cultural e ao entretenimento, nos quais a aproximao com o mercado fator essencial, geran-do, na maioria dos casos, autonomia e profissionalizao para os agentes envolvidos. Nesses setores, a relao entre cultura e mercado desejada e, no caso do setor de entretenimento, quase simbitica, dependendo deste para sua realizao.

    4 As polticas culturais respondem em excesso lgica profissional. Em muitas ocasies, no parecem

    responder ao interesse geral ou s necessidades da cidadania, e sim dar satisfaes s demandas e reivindi-

    caes dos profissionais (setor artstico).

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA36 37

    1.3.3 - DIFERENAS ENTRE SETORES CULTURAIS

    No possvel falar do campo cultural, e mais especificamente do campo artstico, como uma formao nica. Existem inmeras distines dentro da prpria atividade artstica e elas so determinantes para a compreenso da cultura enquanto campo social. Existem diversas reas ou linguagens artsticas, que se distinguem inicialmente por sua classificao (artes visuais, msica, teatro, dana etc.), e mesmo dentro das lin-guagens temos diferenciaes profundas, seja por suas origens, seja por suas tendn-cias estticas, pblicos e formas de relacionamento com o mercado, Estado e mdia. Como exemplo, no podemos pensar no teatro amador ou de rua e no teatro profis-sional da mesma forma, pois ambos possuem caractersticas bastante distintas, mes-mo fazendo parte do mesmo setor artstico: o teatro. No que toca ao relacionamento das diversas linguagens com o Estado, Rib faz a diferenciao entre setores mais ou menos estruturados, tambm do ponto de vista do desenvolvimento econmico:

    Es importante destacar el hecho de que los sectores ms estruc-

    turados, con mayor capital social y con una relacin ms madu-

    ra con la Administracin son los sectores ms desarrollados des-

    de una perspectiva econmica e productiva. [...] Por otro lado,

    hay sectores culturales protagonizados prcticamente de una

    forma exclusiva por creadores y artistas. Los derechos son con-

    secuencia de su propia condicin de creadores y su relacin con

    el Estado es exclusivamente reivindicativa. En ello encontramos

    un circulo perverso: su debilidad como sector les impide de de-

    sarrollar unas estructuras de relacin slidas, y esta ausencia de

    solidez en sus estructuras de relacin es una de las causas que

    explican la debilidad del sector (RIB, op. cit., p. 23)5.

    5 importante destacar o fato de que os setores mais estruturados, com maior capital social e com uma

    relao mais madura com a Administrao, so os setores mais desenvolvidos de uma perspectiva econmi-

    ca e produtiva. [...] Por outro lado, h setores culturais protagonizados praticamente de forma exclusiva por

    criadores e artistas. Os direitos so consequncia de sua prpria condio de criadores e sua relao com

    o Estado exclusivamente reivindicativa. Por isso encontramos um crculo perverso: sua debilidade como

    setor lhes impede de desenvolver estruturas de relao slidas, e esta ausncia de solidez em suas estruturas

    de relao uma das causas que explicam a debilidade do setor.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    A diversidade de setores culturais, suas diferentes formas de organizao, demandas e est-gios de desenvolvimento constituem um desafio s polticas culturais pblicas, que deve-riam contemplar todos os segmentos, mas que na prtica se concentram no atendimento s demandas mais urgentes ou visveis da cultura. Alm disso, o surgimento de novas reas, segmentos e manifestaes culturais, sobretudo no ambiente das grandes cidades, traz tona novas demandas de legitimao, reconhecimento e ateno por parte do Estado.

    medida que a sociedade brasileira se torna mais complexa,

    mais diferenciadas e mltiplas passam a ser as demandas que

    o Estado recebe em relao a apoio e patrocnio, ou no mnimo,

    por reconhecimento e legitimidade para determinadas manifes-

    taes culturais [ALBUQUERQUE, Jr. In: RUBIM (Org.), 2008, p. 66].

    Por fim, cabe destacar tambm que o pblico e a mdia enfrentam ainda hoje certa difi-culdade em lidar com a diversidade e as inovaes do campo cultural e em superar con-ceitos como os de cultura erudita ou de cultura de massa, que hoje, como destaca Nuss-baumer (op. cit., p. 21), no so mais suficientes para dar conta do atual estado da cultura.

    1.3.4 - DESEQUILBRIO REGIONAL

    No contexto espanhol, Rib destaca a desigualdade dos setores culturais com base em sua localizao territorial na Espanha, com visvel concentrao de ateno (por parte do poder pblico e da mdia), e na representao organizada dos segmentos artsticos nas grandes metrpoles, em detrimento da zona rural. As metrpoles so campo de maior protagonismo e articulao da sociedade civil e so o local de maior ateno das polticas culturais, por concentrar grande parte da produo artstica legitimada. No Brasil, podemos dizer que, em mbito estadual, a dicotomia est localizada forte-mente entre as capitais e o interior dos estados, e na esfera nacional, entre as regies Sul/Sudeste e as demais. A concentrao no apenas gira em torno de ateno do poder pblico e da mdia ou de organizao dos segmentos culturais, mas tambm da distribuio de renda, que bastante desigual entre eles.

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA38 39

    O debate iniciado em 2009 sobre a Reforma da Lei Rouanet trouxe dados bastante sintomticos sobre a distribuio do patrocnio por meio de iseno fiscal no Brasil. Da-dos do Ministrio da Cultura mostram que, em 2007, as regies Sul e Sudeste ficaram com 80% de toda a verba captada para projetos culturais. O Centro-Oeste ficou com 11%, o Nordeste com 6% e o Norte apenas com 3%6.

    1.3.5 - PROFISSIONALIZAO E REPRESENTATIVIDADE DO SETOR CULTURAL

    Outro ponto que merece destaque no contexto brasileiro diz respeito profissio-nalizao e especializao do setor cultural, tanto no que toca s reas artsticas quanto em relao ao campo da gesto. Apesar de sua expressiva produo cul-tural, o pas ainda carente de instituies de formao artstica, em nvel tcnico e superior, e as existentes esto concentradas majoritariamente nas capitais e nas grandes cidades. A profissionalizao de produtores e gestores culturais ainda mais recente, escassa e calcada sobretudo na experincia prtica dos agentes en-volvidos, no mbito seja de instituies pblicas ou privadas. No apenas no Bra-sil, o prprio reconhecimento da existncia e da necessidade de capacitao de profissionais dedicados gesto da cultura bastante recente e ainda passa por impasses de definio conceitual.

    La gestin cultural es una profesin que se ha desarrollado a

    partir de la prctica real y se ha ido concretando con el tiempo

    y los acontecimientos. No es, por tanto, el resultado de un plan-

    teamiento terico elaborado en alguna institucin formativa,

    generadora o receptora de programas culturales. Es evidente

    que una nueva forma de intervencin en cultura ha creado la

    necesidad de nuevos profesionales. Por tanto, en la medida en

    que se avanza, se hace cada vez ms necesario definir qu es la

    6 Dados extrados do documento intitulado Nova Lei de Fomento Cultura, usado para a divulgao

    da proposta de reformulao da Lei Rouanet. Disponvel em: http://blogs.cultura.gov.br/blogdarouanet/

    files/2009/03/novaleidefomentoacultura.pdf. Acesso em: 19 maio 2009.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    gestin cultural y qu se entende por gestor/a cultural (ASOCIA-

    CIN DE PROFESIONALES DE LA GESTIN CULTURAL DE CATA-

    LUNYA, apud. CUNHA, 2007, p. 146)7.

    Em relao aos segmentos artsticos, preciso ainda falar de profissionalizao no m-bito no apenas da formao, mas tambm de organizao e maturidade das relaes com o Estado, o mercado e o pblico. Experincias de associativismo, por meio de r-gos de classe ou cooperativas, so recentes ou mesmo ainda inexistentes em muitos segmentos culturais, variando bastante tambm entre as regies do pas. A Cooperati-va Paulista de Teatro, fundada em 1979, um dos principais exemplos de associativis-mo na rea cultural no Brasil, contando em 2010 com 892 ncleos e 3.066 associados. Alm de possibilitar que os artistas cooperados tenham disposio uma empresa estruturada, regular e legtima, a cooperativa luta por benefcios para a rea teatral perante os governos municipal e estadual. Experincias como essa tm se mostrado benficas, tanto para o segmento artstico quanto para seus interlocutores, como des-creve Rib (op. cit.) ao analisar o contexto espanhol:

    En el sector cultural, el desarrollo de este tipo de asociaciones

    ha sido uno de los factores de cambio ms importantes de los

    ltimos aos. [...] Esto se ha producido con un doble objetivo:

    garantizar su representatividad y facilitar la interlocucin con los

    poderes pblicos. En este sentido, los propios poderes pblicos

    han jugado un papel importante, han forzado la estructuracin

    del sector, la unin de los distintos interlocutores. A ello hay que

    unir el crecimiento de los colectivos y el desarrollo de pautas

    de interaccin entre s y con el Estado. Este signo de madurez,

    es una condicin previa y fundamental para establecer lo que

    7 A gesto cultural uma profisso que se desenvolveu a partir da prtica real e foi se concretizando com o

    tempo e os acontecimentos. No , portanto, o resultado de um planejamento terico elaborado em alguma

    instituio de formao, geradora ou receptora de programas culturais. evidente que uma nova forma de

    interveno na cultura criou a necessidade de novos profissionais. Portanto, na medida em que se avana, se

    faz cada vez mais necessrio definir o que a gesto cultural e o que se entende por gestor(a) cultural.

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA40 41

    constituye el gran reto del sector: unas reglas de juego claras y

    precisas (RIB, op. cit., p. 24)8.

    A organizao dos diversos setores artsticos no Brasil vem sendo potencializada tam-bm pela abertura da administrao pblica participao da sociedade nos proces-sos de planejamento e por meio de iniciativas como as Conferncias Setoriais, Estadu-ais e Nacional de Cultura. Essas iniciativas contribuem, mesmo que a mdio ou longo prazo, para uma mudana de postura por parte do setor cultural, substituindo a posi-o ora contestadora, ora passiva, por uma participao propositiva.

    1.4 - Olhando a cultura dentro do Estado

    Encerrando este captulo, apresentamos um breve diagnstico da atuao do Es-tado na rea cultural no Brasil. Essa anlise foi realizada com base nos dados da edio 2009 da Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (Munic), realizada pelo IBGE. Contamos tambm com informaes disponveis no livro Cultura em Nmeros: Anurio de Estatsticas Culturais, lanado pelo Ministrio da Cultura (MinC) em 2009, em parceria com o IBGE (com dados do Munic 2006), o Ipea e outras fontes, sobre consumo e demanda de produtos culturais, dados sobre financiamento privado e gesto pblica da cultura.

    Os dados relativos gesto pblica da cultura sero foco deste tpico, que foi orga-nizado com base em dois eixos centrais: institucionalizao (tomando como indica-dores a existncia de rgos pblicos de cultura secretarias, fundaes culturais e conselhos e documentos, como planos estaduais e municipais de cultura etc.)

    8 No setor cultural, o desenvolvimento desse tipo de associaes tem sido um dos fatores de mudana

    mais importante dos ltimos anos. [...] Isso foi produzido com um duplo objetivo: garantir sua representati-

    vidade e facilitar a interlocuo com os poderes pblicos. Neste sentido, os prprios poderes pblicos tm

    representado um papel importante, tm forado a estruturao do setor, a unio dos distintos interlocuto-

    res. Para isso temos de unir o crescimento dos coletivos e o desenvolvimento de pautas de interao entre

    si e com o Estado. Este sinal de maturidade uma condio prvia e fundamental para estabelecer o que

    constitui o grande desafio do setor: regras de jogo claras e precisas.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    e legislao e financiamento (tendo como indicador a existncia de leis relativas ao patrimnio cultural e ao fomento e incentivo cultura, por meio de fundos estaduais e municipais de cultura etc.).

    As informaes obtidas nessas pesquisas proporcionam um retrato do campo cultural recente no Brasil e so resultado de um processo de dcadas de institucionalizao da cultura nos nveis federal, estadual e municipal. Portanto, antes de partirmos para o panorama atual, convm contextualizar brevemente a atuao do Estado brasileiro na rea cultural, em consonncia com Isaura Botelho (2008), que cita trs principais momentos para a cultura: as dcadas de 1930, 1970 e 2000.

    A dcada de 1930, durante o governo Vargas, foi marcada pelo forte movimento de institucionalizao da cultura, a partir da criao de instituies como: o Servio de Radiodifuso Educativa e o Instituto Nacional do Cinema Educativo, ambos em 1936; o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Sphan) atual Instituto do Pa-trimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan) , o Servio Nacional do Teatro e o Ins-tituto Nacional do Livro, todos em 1937; e o Conselho Nacional de Cultura, em 1938.

    J a dcada de 1970 foi o segundo momento importante do ponto de vista da organizao institucional no Brasil, quando houve uma grande reformulao do quadro existente at ento, e, mais uma vez, instituies foram criadas para atender s novas necessidades do perodo (BOTELHO, op. cit., p. 118). Destacamos nesse perodo: a criao da Poltica Nacional de Cultura (PNC), em 1975, documento sis-tematizado pelo Conselho Federal de Cultura; a promulgao da chamada Lei dos Artistas, n 6.533, de 24 de maio de 1978, bem como de seu respectivo decreto, n 82.385, de 5 de outubro de 1978, que regulamentam as profisses de artista e de tcnico em espetculos de diverses; e a criao de instituies como a Fundao Nacional de Artes (Funarte) e a Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme), ambas em 1975. Foram criados tambm o Conselho Nacional do Direito Autoral (CNDA) e o Conselho Nacional de Cinema (Concine). A importncia dos anos 1970 para a institucionalizao da cultura teve reflexo sem mbito estadual e foi determinante para a criao do Ministrio da Cultura (MinC), em 1985, como ressalta Lia Calabre:

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA42 43

    O processo de institucionalizao do campo da cultura dentro

    das reas de atuao do governo ocorrido na dcada de 70 no

    ficou restrito ao nvel federal. Nesse mesmo perodo, o nmero

    de secretarias de cultura e de conselhos de cultura de estados

    e municpios tambm cresceu. Em 1976, ocorreu o primeiro en-

    contro de Secretrios Estaduais de Cultura, dando origem a um

    frum de discusso que se mantm ativo e que muito contri-

    buiu para reforar a ideia de criao de um ministrio indepen-

    dente [CALABRE In: RUBIM (Org.), 2008, p. 92].

    Para Botelho, o terceiro momento marcante para a poltica cultural pblica no Brasil se ini-cia no ano de 2003, com o fortalecimento da atuao do MinC sob a gesto do ex-ministro Gilberto Gil, no governo Lula. Os anos anteriores, desde a criao do MinC, em 1985, foram bastante instveis em nvel federal, culminando com a dissoluo do ministrio e a criao de uma Secretaria da Presidncia, em 1990, durante o governo Collor. A volta ao status de ministrio, em 1992, foi sucedida de tentativas de fortalecimento do rgo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, calcado especialmente na figura do incentivo fiscal, gerando um esvaziamento do papel do MinC em outras esferas das polticas pblicas de cultura que no relativas ao financiamento. Isso justifica, para a autora, a importncia desse momento, de retomada da real funo ministerial:

    Somente em 2003, depois de tantas idas e vindas ao longo

    desses anos, o Ministrio da Cultura deu incio a um intenso

    processo de discusso e reorganizao do papel do Estado na

    rea cultural. Nesse sentido, houve um grande investimento no

    sentido de recuperao de seu oramento e a discusso de me-

    canismos que possibilitassem uma melhor distribuio de seus

    poucos recursos do ponto de vista do equilbrio regional voltou

    a ser uma preocupao (BOTELHO, op. cit., p. 127-128).

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    Destacamos ainda, na atuao do MinC, desde 2003, a adoo de um conceito mais abrangente ou antropolgico de cultura, incluindo segmentos, agentes e pbli-cos at ento nunca contemplados por polticas pblicas, em especial por meio da criao da Secretaria de Identidade e da Diversidade e de aes dirigidas s comu-nidades quilombolas, indgenas, ciganas e s culturas populares. Assim, aps esse sucinto panorama, vamos agora anlise do panorama cultural brasileiro com os dados do IBGE e do MinC analisados em dois eixos centrais: 1) institucionalizao; e 2) legislao e financiamento.

    1.4.1 - INSTITUCIONALIZAO

    Um dos grandes mritos da publicao do MinC Cultura em Nmeros: Anurio de Estatsticas Culturais fornecer informaes sobre o estado geral da cultura enquan-to rea de atuao do poder pblico em mbito regional e municipal, com base nos dados coletados na Pesquisa de Informaes Bsicas Municipais (Munic), do IBGE, de 2006. Porm, com a publicao da Munic 2009, algumas informaes da publicao do MinC mostraram-se j defasadas. Uma vez que alguns dos indicado-res e cruzamentos disponveis no Cultura em Nmeros no foram contemplados na Munic 2009, utilizamos ainda algumas informaes da publicao do MinC como referncia e base comparativa.

    Tal qual os indicadores de institucionalizao do setor cultural na esfera pblica nos baseamos em dados sobre: rgos gestores de cultura (existncia e autonomia das secretarias de Cultura dos municpios); conselhos municipais de Cultura (existncia, funes e composio); municpios com Planos e Polticas Municipais de Cultura; e adeso dos estados e municpios ao Sistema Nacional de Cultura.

    Em relao aos rgos gestores de cultura nos municpios, a comparao entre os dados da Munic 2006 e da Munic 2009 mostra o crescimento da institucionalizao da cultura entre as prefeituras no Brasil.

    Segundo a pesquisa de 2009, dos 5.565 municpios brasileiros, 521 (9,36%) possuem secretaria municipal de Cultura exclusiva, mais do que o dobro registrado na edio anterior, quando foram contabilizados apenas 236 municpios (4,24%) com secreta-

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA44 45

    ria de Cultura autnoma. Essa diferena representou queda em relao ao nmero de municpios nos quais a cultura est em pasta compartilhada com outros seto-res (educao, desporto, lazer etc.). Em 2006, 4.007 municpios (72%) mantinham a cultura em secretarias compartilhadas; em 2009, esse nmero passou para 3.948 cidades (70,94%). Houve queda tambm na quantidade de municpios nos quais a cultura ocupava um setor subordinado, normalmente na forma de uma coorde-nao, dentro de outra secretaria em 2006 eram 699 (12,56%) e em 2009 foram registrados 511 (9,18%) , e naqueles em que o rgo de cultura estava subordinado prpria chefia do Executivo em 2006 eram 339 municpios (6,09%) e em 2009 foram registrados 297 (5,33%).

    H ainda cidades nas quais fundaes pblicas de cultura exercem a funo de secre-taria, cuja quantidade entre 2006 e 2009 tambm diminuiu: de 145 para 105 munic-pios (1,88%). Entretanto, as notcias no so to positivas quanto parecem: a quantida-de de municpios que no possuem nenhum rgo gestor na rea cultural aumentou em trs anos, passando de 136 em 2006 para 183 (3,28%) em 2009.

    O Sudeste se destaca no nmero total de municpios com secretarias exclusivas de Cultura, com 205 cidades (o que corresponde a 12,14% do total de 1.688 municpios da regio, quase o dobro do registrado em 2006, quando havia 107 municpios). A Re-gio Nordeste tambm teve aumento bastante expressivo, passando de 67 prefeituras com secretaria exclusiva para 179, do total de 1.703 municpios da regio.

    Quanto aos estados, nem todas as unidades federativas possuem rgo gestor ex-clusivo de cultura, correspondendo a um total de 18 estados com secretaria aut-noma. Os demais nove estados possuem secretarias compartilhadas com as reas de educao, turismo e esporte. Essa situao j havia sido diagnosticada em 1998 pelo MinC e pela Fundao Joo Pinheiro, em um estudo sobre gastos pblicos com cultura em nvel estadual:

    Observa-se que a estrutura institucional responsvel pela ges-

    to de atividades e projetos na rea de cultura bastante vari-

    vel nos estados. perceptvel a tendncia nos estados menores

    pela extino de entidades da administrao indireta e a conse-

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    quente redistribuio de suas funes em rgos da estrutura

    da administrao direta, bem como a convivncia do setor cul-

    tural com outros setores, como desportos, educao e turismo,

    em uma mesma secretaria. Independentemente da estrutura

    adotada, registra-se nesse nvel da administrao pblica uma

    diversificao da ao, em que diversas secretarias de estado

    interagem para a realizao dos projetos e atividades culturais,

    bem como a presena, como rgos da secretaria que cuida da

    cultura, dos denominados equipamentos culturais arquivo

    pblico, biblioteca pblica, centros culturais, galerias e cinemas

    de artes, museus, teatros, escolas de danas, orquestras sinf-

    nicas e escolas de artes (MINISTRIO DA CULTURA; FUNDAO

    JOO PINHEIRO, 1998, p. 35).

    No que toca existncia e atuao de conselhos municipais de Cultura, os dados das edies 2006 e 2009 da Munic tambm mostram um aumento. Em 2006, 948 muni-cpios brasileiros (17,03%) possuam conselhos municipais de Cultura. Em 2009, esse nmero passou para 1.372 (24,65%). Esses organismos so importantes instncias re-presentativas, que atuam de forma colaborativa e complementar s polticas culturais pblicas, congregando membros do poder pblico e da sociedade civil, e possuem funes variadas e no exclusivas, podendo ser consultivos, normativos, deliberativos ou fiscalizadores. A partir de suas funes, os conselhos podem desempenhar diver-sas atividades, tais como: acompanhar e avaliar a execuo de programas e projetos; elaborar e aprovar planos de cultura; pronunciar-se e emitir parecer sobre assuntos culturais e fiscalizar as atividades do rgo gestor de cultura. A Munic 2009 mostra que o estado de Minas Gerais se destaca na quantidade de conselhos em atividade, com 492. Comparativamente, os estados de Roraima e Acre possuem, respectivamen-te, apenas um e dois.

    Em relao aos dados sobre municpios com Poltica Municipal de Cultura ou Plano Municipal de Cultura, no encontramos informaes na edio 2009 da pesquisa. Os dados de 2006, disponveis na publicao Cultura em Nmeros, mostravam que, embo-ra a grande maioria dos municpios brasileiros ainda no contasse com uma secretaria exclusiva de Cultura, 57,94% (3.224) afirmaram possuir uma Poltica Municipal de Cul-

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA46 47

    tura e 11,61% declararam a existncia de um Plano Municipal de Cultura. A pesquisa do MinC contemplou tambm dados sobre a adeso dos municpios ao Sistema Na-cional de Cultura, equivalente a 33,9% (1.886) do total, com destaque para os estados do Cear (82,1%) e Mato Grosso do Sul (69,2%).

    Apesar do elevado percentual de municpios que alegam possuir polticas ou planos de cultura, experincias de cooperao e associativismo intermunicipais ainda so escassas. At 2009, 336 municpios brasileiros (6,03%) participavam de Consrcios In-termunicipais de Cultura, com destaque para Minas Gerais, com 54 consrcios inter-municipais. Esse nmero j apresenta um aumento em relao a 2006, quando foram contabilizadas apenas 127 cidades (2,3%) em todo o Brasil.

    Esse diagnstico, embora de carter quantitativo, de suma importncia para a compreenso da situao atual de institucionalizao da cultura em um pas com as dimenses do Brasil, com o recente histrico de democratizao e de compreenso da cultura enquanto direito e componente da cidadania. Tanto pelo histrico bra-sileiro quanto por serem as primeiras iniciativas de quantificao sobre a institucio-nalizao da cultura em mbito nacional, acreditamos que os dados acima devam ser lidos com otimismo. O incremento em alguns dados, como a quantidade de secretarias exclusivas de Cultura e conselhos municipais de Cultura, foi incentivado por avanos nas polticas culturais de alguns estados, a exemplo do Cear (durante a gesto da ex-secretria de Cultura Cludia Leito, entre 2003 e 2006) e da Bahia (a partir da criao da Secretaria de Cultura, em 2007), cujas secretarias de Cultura comprometeram-se com o desenvolvimento cultural em escala estadual, estimu-lando a municipalizao das polticas culturais, a criao de secretarias, conselhos e fundos municipais de Cultura.

    1.4.2 - LEGISLAO E FINANCIAMENTO

    Na atuao do poder pblico na rea cultural, os temas de legislao e financiamento esto bastante prximos, uma vez que grande parte das leis federal, estadual e muni-cipal promulgadas com foco na rea cultural refere-se criao e ao disciplinamento de mecanismos de fomento cultura (a exemplo das leis de incentivo fiscal ou dos fundos de cultura). Porm, como ressalta Francisco Cunha Filho (2000), embora consti-

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

    tuam a maioria, as leis de fomento no so as nicas no campo cultural. Outros temas relativos atividade cultural tambm so objeto de leis, a exemplo dos direitos auto-rais (Lei n 9.610, de 19 de fevereiro de 1998) e da proteo do patrimnio artstico e histrico (Decreto-Lei n 25/37, de 30 de novembro de 1937) e imaterial (Decreto n 3.551, de 4 de agosto de 2000).

    Acompanhando a tendncia recente de ampliao do conceito de patrimnio cul-tural, incluindo sua dimenso imaterial, vrios estados promulgaram leis prprias para reconhecimento de mestres da cultura tradicional ou popular (tambm cha-mados de Mestres das Artes, Patrimnio Vivo, Tesouros Vivos da Cultura, Mestre de Saberes e Fazeres). O primeiro a promulgar esse tipo de lei foi Pernambuco, em 2002, sendo seguido por outros, como Cear, Alagoas, Bahia, Rio Grande do Norte e Piau. Segundo a Munic 2009, 1.618 municpios brasileiros possuem legislao municipal de proteo ao patrimnio cultural (material e imaterial). Na pesquisa anterior, esse dado equivalia a 984 municpios, mostrando um aumento considervel.

    Alm dessas, que tratam especificamente de temas da cultura, existem outras leis e decretos que, por extenso, atingem a rea cultural, a exemplo da legislao tributria federal (Lei n 10.451, de 10 de maio de 2002), da lei que trata da normatizao da aces-sibilidade de pessoas portadoras de deficincia a espaos pblicos (Lei n 10.098, de 19 de dezembro de 2000) e das prprias leis de criao das figuras jurdicas das OSs (Lei n 9.637, de 15 de maio de 1998) e das Oscips (Lei n 9.790, de 23 de maro de 1999).

    Em relao ao fomento cultura, a primeira lei brasileira de incentivos fiscais foi a Lei Sarney (Lei Federal n 7.505), aprovada em 1986 e revogada em 1990 durante o gover-no Collor, juntamente com a extino do MinC. Como resposta s presses do setor artstico, o governo Collor acabou por sancionar a Lei n 8.313/91, mais conhecida como Lei Rouanet, em substituio Lei Sarney. Essa lei criou o Programa Nacional de Apoio Cultura (Pronac), que recuperou e ampliou alguns mecanismos da Lei Sarney, estabelecendo os seguintes instrumentos de fomento a projetos culturais: Fundo de Investimento Cultural e Artstico (Ficart), Fundo Nacional da Cultura (FNC) e o incentivo a projetos culturais (conhecido como mecenato). O ano de 2009 foi marcado por um amplo debate promovido pelo MinC com o intuito de colher propostas para a refor-mulao da Lei Rouanet. O novo projeto de lei prev novas faixas de deduo fiscal e o fortalecimento do FNC.

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA48 49

    Um dos objetivos da criao da Lei Rouanet era incentivar a criao de legislao de fomento tambm em mbito estadual, estimulando a descentralizao do apoio cul-tura. Com base nos dados de um amplo estudo publicado em 2007 pelo Servio Social da Indstria (Sesi) sobre a existncia e o funcionamento das legislaes estaduais de incentivo cultura no Brasil, podemos ver o desenvolvimento do estmulo cultura nos estados brasileiros. poca, apenas cinco estados (Amazonas, Roraima, Rondnia, Alagoas e Maranho) no contavam com nenhum mecanismo de fomento cultura, seja por meio de leis de incentivo fiscal, leis de fundo de cultura, programas ou siste-mas de cultura. Ao total, 12 estados possuem leis prprias de incentivo fiscal cultura e seis possuem leis de criao de fundos de cultura.

    91

    9 Vale destacar que, poca do levantamento de dados feito pelo Sesi, o Cear ainda no contava com

    seu Sistema Estadual de Cultura, aprovado no final de 2006 e atualmente vigente.

    Tabela 1: Legislao estadual de incentivo cultura no Brasil/Classificao estados por categorias de A a F

    Unidades daFederao

    AC

    AM

    AP

    PA

    RO

    RR

    TO

    AL

    BA

    CE 9

    MA

    PB

    PE

    PI

    RN

    SE

    ES

    MG

    RJ

    SP

    PR

    SC

    RS

    DF

    GO

    MT

    MS

    A B C D E F

    Tabela reproduzida da publicao Estudos das leis de incentivo cultura, editada pelo Servio Social da indstria (Sesi), 2007, p.38.Sendo:(A) Estados em que no existem Leis de Incentivo, Leis de Fundo de Incentivo Cultura nem Sistemas de Incentivo Cultura (INEXISTNCIA)(B) Estados em que existem apenas Leis de Incentivo (LEIS DE INCENTIVO)(C) Estados em que existem apenas Leis de Fundo (LEIS DE FUNDO)(D) Estados em que existem Leis de Incentivo, e o Fundo um artigo na Lei de Incentivo (PROGRAMA CULTURA)(E) Estados em que existe um Sistema Estadual de Cultura (SISTEMA DE CULTURA)(F) Estados em que existe Lei de Incentivo Cultura vinculada a outros setores (CULTURA E OUTROS)

    Tabela reproduzida da publicao Estudos das Leis de Incentivo Cultura, editada pelo Servio Social da Indstria (Sesi), 2007, p. 38

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA50 51

    Sendo:

    (A) Estados em que no existem leis de incentivo, leis de fundo de incentivo cultura nem sistemas de incentivo cultura (INEXISTNCIA)

    (B) Estados em que existem apenas leis de incentivo (LEIS DE INCENTIVO)

    (C) Estados em que existem apenas leis de fundo (LEIS DE FUNDO)

    (D) Estados em que existem leis de incentivo, e o fundo um artigo na lei de incentivo (PROGRAMA CULTURA)

    (E) Estados em que existe um sistema estadual de cultura (SISTEMA DE CULTURA)

    (F) Estados em que existe lei de incentivo cultura vinculada a outros setores (CULTU-RA E OUTROS)

    As leis de incentivo fiscal e de fundos de cultura foram replicadas tambm em nvel municipal. Infelizmente, na Munic 2009 no foram localizados dados sobre a poltica municipal de fomento cultura. Segundo os dados do Cultura em Nmeros, em 2006, 5,57% municpios brasileiros (310) possuam legislao municipal de fomento cultura e 5,12% (285) possuam Fundo Municipal de Cultura. A criao de legislaes muni-cipais, a exemplo da primeira delas, a Lei Mendona, do municpio de So Paulo, foi considerada uma alternativa extino da Lei Sarney.

    A criao de mecanismos de incentivo fiscal no mbito muni-

    cipal foi a soluo encontrada para o fomento das atividades

    artstico-culturais. A Lei Mendona (Lei n 10.923/90), do mu-

    nicpio de So Paulo, regulamentada em 1991, constituiu me-

    dida pioneira que serviu de modelo para diversos municpios

    ao permitir a deduo do Imposto sobre a Propriedade Predial

    e Territorial Urbana (IPTU) e do Imposto sobre Servios (ISS)

    para os contribuintes que aplicassem recursos na rea cultu-

    ral. Aps a Lei Mendona, surgiram leis municipais em diversas

    capitais brasileiras e outras cidades, bem como leis estaduais

    de incentivo cultura, as quais definem como instrumento de

    incentivo fiscal um percentual do Imposto sobre Circulao de

    Mercadorias e Servios (ICMS). Entretanto, em ambos os nveis,

    o processo de implantao das leis tem sido lento e, muitas

    vezes, seus resultados no correspondem s expectativas e

    demandas dos artistas e produtores culturais (SERVIO SOCIAL

    DA INDSTRIA, 2007. p. 16-17).

    A quantidade total de cidades com leis de incentivo e fundos municipais de cultura (595) ainda pequena se comparada a outros dados registrados em 2006, como o nmero de municpios que alegam ter uma poltica estadual de cultura (3.224), e, mais ainda, se comparada aos municpios com recursos prprios destinados cultura, que de acordo com os dados do MinC correspondia a 4.920, ou 88,44% do total. A discre-pncia entre esses dados reafirma a importncia de uma anlise qualitativa acerca do direcionamento e da efetividade das polticas pblicas culturais em mbito municipal, de forma a incentivar seu fortalecimento.

    Todos os dados trazidos, apesar de ainda tmidos em alguns setores, confirmam a incluso da cultura enquanto rea de atuao do poder pblico no Brasil, em seus trs nveis. Apesar da importncia desses dados para uma viso geral da rea cultural, sabemos que nmeros, estatsticas e leis no constroem por si s o cotidiano da cul-tura e que os dados podem destoar da realidade. Cabe agora questionar como so implementadas as polticas pblicas na rea cultural e quais os principais problemas encontrados para sua execuo dentro da administrao pblica, no captulo 2. Assim poderemos compreender algumas das principais motivaes para a implementao da publicizao na rea cultural no Brasil.

    I - O ESPAO DA CULTURA: ENTRE O PBLICO E O ESTATAL

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA52 53

    II O SENSO COMUM E A REALIDADE INCOMUM:

    INVESTIGANDO OS PROBLEMAS DA CULTURA NA

    ADMINISTRAO PBLICA

  • POR UMA CULTURA PBLICA: ORGANIZAES SOCIAIS, OSCIPS E A GESTO

    PBLICA NO ESTATAL NA REA DA CULTURA54 55

    Para analisar as novas perspectivas de gesto pblica no estatal na rea da cultura, necessrio primeiramente lanar um olhar sobre a forma de gesto que vigora: a admi-nistrao pblica, direta ou indireta. A administrao pblica direta aquela realizada pelos prprios rgos e entidades da administrao. No mbito estadual, por exemplo, representa o conjunto de rgos integrados estrutura administrativa do governo do estado. J a administrao pblica indireta aquela em que o Estado outorga a tercei-ros (autarquias, empresas pblicas, sociedades de economia mista ou fundaes pbli-cas) a realizao de servios pblicos, observadas as normas do direito administrativo.

    Independentemente do formato direto ou indireto, um pensamento predomina na sociedade quando o assunto administrao pblica: o descrdito. A mquina p-blica enxergada majoritariamente pelos estigmas da ineficincia, da morosidade e da corrupo. Estar o senso comum incorreto? No de todo, obviamente. Mas, para alm das crticas, existem poucos estudos no sentido de compreender a origem dos problemas, e menos ainda no sentido de buscar solues possveis.

    Como vimos no captulo 1, nas ltimas duas dcadas o Estado brasileiro, nos nveis federal, estadual e municipal, viveu uma poca de institucionalizao da cultura, com o fortalecimento do MinC, em especial a partir da gesto do ministro Gilberto Gil, em 2003, com a criao de formas especficas de financiamento e de legislao para o setor e estmulo cada vez maior implantao de secretarias estaduais e mu-nicipais de Cultura. Essa institucionalizao reflete uma mudana bastante radical na compreenso de cultura pelo Estado e a necessidade de reconfigurao do seu papel. E uma resposta tambm necessidade de ampliao do raio de ao das polticas pblicas de cultura, tendo que atender tanto s tradicionais obrigaes de fomento e difuso quanto aos novos desafios advindos do reconhecimento da di-versidade e da transversalidade da cultura.

    Enfrentamos, entretanto, ainda um grande problema: embora a viso e a abrangn-cia das aes do Estado na rea cultural tenham se expandido, os instrumentos e as formas de gesto permaneceram os mesmos. Assim, a gesto pblica da cultura tornou-se um eterno embate entre o otimismo da vontade e a aridez da mquina administrativa, resultado muitas vezes da dificuldade de dilogo entre as lgicas or-ganizacionais da administrao pblica e da cultura e das prprias caractersticas e conformao do campo cultural.

    II - O SENSO COMUM E A REALIDADE INCOMUM:

    INVESTIGANDO OS PROBLEMAS DA CULTURA NA ADMINISTRAO PBLICA

    A realidade mostra que a gesto de espaos, projetos e programas culturais pblicos est sujeita a muitos problemas, enfrentados tambm em outras reas da administra-o pblica, e que so incompatveis com a atividade cultural: pouca agilidade, como um dos reflexos do excesso de formalidades burocrticas para compras, reformas, contrataes e realizao de servios; utilizao irracional de recursos; dificuldades ou impossibilidade de captao de apoios ou patrocnios etc.

    Para ilustrar a situao da rea cultural na administrao pblica, relembramos a perti-nente distino marcada por Teixeira Coelho entre os setores nobres e os setores po-bres do Estado, estando a execuo destes sujeita s normas e possibilidades daqueles:

    No conjunto, a cultura organizacional da administrao da cul-

    tura especfica e de difcil compreenso para a cultura organi-

    zacional da administrao pblica como um todo. Como a ad-

    ministrao pblica ainda dividida entre setores nobres (obras

    pblicas, indstria, comrcio, fazenda, agricultura) e setores po-

    bres (cultura e educao, alm de sade, por exemplo) e como

    aqueles predominam sobre estes, a cultura organizacional dos

    primeiros imposta aos segundos (COELHO, 1997, p. 116).

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