POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO …1 POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO...

20
1 POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO CONHECIMENTO DENTRO DOS TERREIROS A PARTIR DO CULTO ÀS FOLHAS 12 Rafael Santos Ribeiro 3 Resumo O Candomblé é o reflexo das diversas reconfigurações religiosas que se moldaram no panorama religioso brasileiro. Os Orixás, voduns, inkises não são apenas deuses, mais, representações de forças da natureza que se materializam na terra através do transe, trazendo à vida, através dos sons dos atabaques, uma África deixada para trás. Dessa forma, cada nação, Ketu, Jeje, Angola, Mina, Terecô, entre outras, representam uma parte desta África desmembrada espiritualmente para o Brasil, os orixás não são somente deuses em guma, mas, uma África perceptível aos movimentos da natureza. Pensando nesta perspectiva, busco analisar o conhecimento sobre saúde/cura construído na Tenda Espírita de Umbanda Cabocla Yacira, a partir do culto às folhas. Parto de uma análise teórica proposta por Tim Ingold (2017), para refletir sobre a percepção do ambiente, onde, a vida social humana não é separada do restante da natureza, mas fazem parte do mesmo meio orgânico. Assim, o ambiente é percebido não dentro de lugares, mas através deles, desta forma, a percepção do culto às folhas está ligada ao peregrinar desta no sentindo de habitar a terra e como estas folhas e o culto relacionados a elas estão direcionados a produção de um conhecimento (garrafadas, remédios, ebós, comidas), longe dos parâmetros da medicina ocidental. Palavras-chave: Folhas; Percepção; Saúde; Epistemologia. 1 Trabalho apresentado ao III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado intitulada “Kosi Ewé, Kosi Orisà: O culto às folhas na Tenda Espirita de Umbanda cabocla Yacira (T.E.U.C.Y.) em Ananindeua-PA”, orientado pela professora Drª Gisela Macambira Villacorta. Agradeço imensamente ao Bàbá Alá Torí pelas grandes contribuições sobre o culto às folhas, onde, uma parte delas estão presentes nesse trabalho. 3 Graduado em história pela Universidade Federal do Pará. Mestrando do PPG em Estudos Antrópicos na Amazônia (PPGEAA-UFPA). Bolsista CAPES-DS.

Transcript of POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO …1 POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO...

1

POR UMA EPSTEMOLOGIA DO SANTO: A CRIAÇÃO DO

CONHECIMENTO DENTRO DOS TERREIROS A PARTIR DO CULTO ÀS

FOLHAS12

Rafael Santos Ribeiro3

Resumo

O Candomblé é o reflexo das diversas reconfigurações religiosas que se

moldaram no panorama religioso brasileiro. Os Orixás, voduns, inkises não são apenas

deuses, mais, representações de forças da natureza que se materializam na terra através

do transe, trazendo à vida, através dos sons dos atabaques, uma África deixada para trás.

Dessa forma, cada nação, Ketu, Jeje, Angola, Mina, Terecô, entre outras, representam

uma parte desta África desmembrada espiritualmente para o Brasil, os orixás não são

somente deuses em guma, mas, uma África perceptível aos movimentos da natureza.

Pensando nesta perspectiva, busco analisar o conhecimento sobre saúde/cura

construído na Tenda Espírita de Umbanda Cabocla Yacira, a partir do culto às folhas.

Parto de uma análise teórica proposta por Tim Ingold (2017), para refletir sobre a

percepção do ambiente, onde, a vida social humana não é separada do restante da

natureza, mas fazem parte do mesmo meio orgânico. Assim, o ambiente é percebido não

dentro de lugares, mas através deles, desta forma, a percepção do culto às folhas está

ligada ao peregrinar desta no sentindo de habitar a terra e como estas folhas e o culto

relacionados a elas estão direcionados a produção de um conhecimento (garrafadas,

remédios, ebós, comidas), longe dos parâmetros da medicina ocidental.

Palavras-chave: Folhas; Percepção; Saúde; Epistemologia.

1 Trabalho apresentado ao III Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os

dias 19 e 21 de setembro de 2018, Belém/PA. 2 Este trabalho faz parte de uma pesquisa mais ampla de mestrado intitulada “Kosi Ewé, Kosi Orisà: O

culto às folhas na Tenda Espirita de Umbanda cabocla Yacira (T.E.U.C.Y.) em Ananindeua-PA”,

orientado pela professora Drª Gisela Macambira Villacorta. Agradeço imensamente ao Bàbá Alá Torí

pelas grandes contribuições sobre o culto às folhas, onde, uma parte delas estão presentes nesse trabalho. 3 Graduado em história pela Universidade Federal do Pará. Mestrando do PPG em Estudos Antrópicos na

Amazônia (PPGEAA-UFPA). Bolsista CAPES-DS.

2

FOR NA APPEARANCE OF THE HOLY FATHER: TE CREATION

OF KNOWLEDGE WHITIN THE TERRITORIES FROM

CULTURE LEAVES

ABSTRACT

Candomblé is the reflection of the diverse religious reconfigurations that have

shaped the Brazilian religious panorama. The Orixás, Voduns, and Inkises are not only

gods, but representations of forces of nature that materialize on earth through the trance,

bringing to life, through the sounds of atabaques an African left behind. Thus, each

nation, Ketu, Jeje, Angola, Mina, Terecô, among others, represent a part of this African

spiritually dismembered for Brazil, Orixás are not only gods in play, but an African

perceptible to the movements of nature. Thinking from this perspective, I seek to

analyze the knowledge about health healing built in the Tenda Espírita de Umbanda

Cabocla Yacira, from the cult to the leaves. I star from a theorical analysis proposed by

Tom Ingold (2017) to reflect on the perception of the environment, where human social

fife is nor separated from the rest of nature, but are part of the same organic

environment. Thus, the environment is perceived not in places, but through the, in this

way, the perception of the cult of leaves is linked to the pilgrimage of this in the feeling

of inhabiting the earth and how theses leaves and worship related to the are directed to

the production of a knowledge (bottled, remedies ebós, foods), far from the parameters

of the western medicine.

Key-words: Leaf; perception; health; epistemology.

3

1. Introdução

É muito comum nas religiões afro-brasileiras o uso de folhas nos seus rituais, sejam

eles nos preparos de banhos, remédios, defumações, fumos, e em casos mais privados,

como o uso em camarinhas. É notório que essas ervas vem sendo estudadas por diversos

pesquisadores, em busca de uma compreensão antropológica, botânica e sócio-histórico

da sua importância, não somente no campo religioso, mas na sociedade brasileira.

O panteão dos deuses africanos é construído por diversos orixás, Exu, Ogum, Odé,

Logun Edé, Òsayìn, Obaluaê, Xangô, Iansã, Iemanjá, Oxalá, entre vários outros. Cada

um possuindo a sua propriedade dentro das forças da natureza. Òsayìn é o Orixá que

cuida das folhas, logo, é atribuído a ele o poder da medicina, pois indica as ervas

próprias para a cura. Segundo Pierre Verger (1981, 122), nenhuma cerimônia pode ser

feita sem a presença das folhas e a permissão de Òsayìn, já que ele é o detentor do axé

para a utilização das mesmas.

O fato das folhas possuírem uma divindade capaz de saber os seus usos medicinais,

nos mostra que muito além de assumirem um papel secundário na sociedade afro-

religiosa, as folhas têm uma importância sacramental e terapêutica que inicia logo na

sua coleta e no modo como vai ser retirada, e todo o processo deve ser realizado por

quem compreende a capacidade de despertar o poder das folhas. Ainda segundo Verger;

Nessas encantações, os nomes das folhas são acompanhadas de duas

ou três linhas descrevendo suas qualidades naquele caso em particular.

A uma certa folha podem ser atribuídas virtudes diferentes segundo

sua associação com um ou outro conjunto de folhas, pois elas entram

em composição de diferentes preparações medicinais (VERGER,

2017, p. 25).

Neste trabalho proponho fazer uma análise do culto das folhas na Tenda Espírita

de Umbanda Cabocla Yacira (T.E.U.C.Y.), localizada na cidade de Ananindeua-PA,

região metropolitana de Belém. O texto está dividido em quatro partes, a primeira é a

introdução, onde busco situar alguns pontos importantes que serão trabalhados; o

segundo tópico intitulado “Coco, tabaco e vela”: Entrando na Ilê de Òsayìn, narro uma

experiência da prática do “catar” as folhas para a camarinha de um yawo; no terceiro

tópico “A folha é tudo, o principio de tudo vai ser Òsayìn”: Entre o ensinamento e a

prática, construo o debate a partir dos ensinamentos de um Babalorixá da casa chamado

Alá Torí sobre as folhas na T.E.U.C.Y.; na quarta “O devolver das folhas” dialogo

4

sobre a utilização das folhas na formação da cama do santo e no processo do sacrifício

dos animais, o quinto e último tópico “fechando um trabalho e abrindo outros”, concluo

o trabalho com algumas considerações sobre o culto das folhas na casa aqui analisada.

Devo ressaltar que a pesquisa encontra-se em construção, ou seja, as conclusões são

parciais.

2. “COCO, TABACO E VELA”: ENTRANDO NA ILÊ DE ÒSAYÌN

As folhas na Tenda Espírita de Umbanda Cabocla Yacira, assim como em diversos

outros espaços afro-religiosos, são utilizadas para diversos fins, defumação, banhos,

garrafadas, remédios, essências, fumos, camarinhas, entre outros. A sacralização das

folhas começa desde o momento da sua coleta na mata até o despertar das suas energias,

ou seja, no momento que as rezas próprias serão ditas para despertar o axé que a folha

possui. Abaixo relato uma experiência que tive em participar da coleta das folhas na

casa aqui analisada. É importante ressaltar que me encontro no que Vagner Gonçalves

da Silva chama de os “segredos do escrever e o escrever dos segredos” (SILVA, 2015,

p. 133). A casa de santo que pesquiso é a mesma que faço parte e possuo um cargo,

Ogam4 de Odé

5, portanto, as experiências aqui narradas fazem parte de um mundo do

qual faço parte. Outro ponto importante é que não busco contar os segredos do ritual,

mas sim, mostrar como os mesmos funcionam dentro de um processo litúrgico enquanto

forma de construção de saberes, o que chamo de uma epistemologia do santo. O segredo

encontra-se na religião enquanto instituição, desta forma, quem quiser saber dele deve

adentra-la enquanto adepto.

Madrugada de 04 de setembro de 2017. O terreiro está calmo. Estou sentado no

chão do barracão, junto com Bàbá Alá Torí. Estamos vestidos de branco com um fio de

nossos Orixás no pescoço. O sono era grande, pois fazia mais de duas semanas que não

dormíamos direito. Estávamos esperando a hora para ir na mata pegar folhas. Tínhamos

acabado de separar umas folhas de tabaco, vela e um pedaço de coco, para ofertar à

4 Título (cargo) masculino hierárquico dentro do Candomblé, referente a pessoas que não passam pelo

processo do transe. O vocábulo tem origem etimológica no iorubá ògá, “pessoa proeminente”, “chefe”,

“superior”, “patrão”, da mesma raiz do fongbé hougan, “superior”, “acima de”. Para maiores

informações vide: LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da Diáspora Africana. São Paulo-SP: Ed, Selo

Negro, 2004., p. 489. 5 Nome pelo qual o Orixá Oxóssi é invocado no Candomblé Ketu. Pode ser usado, também, como nome

genérico pelo quais são referidos todos os orixás caçadores. Nome de origem iorubá ode, que quer dizer

“caçador”.

5

Òsayìn6, Orixá dono das folhas. As folhas seriam recolhidas para utilizar na camarinha

de um yawo7 que estava “pagando” obrigação para o seu Orixá. Em meio a conversas e

brincadeiras, que nos mantinham acordados, Alá Torí me diz quais folhas iríamos

buscar e para que serviria; aroeira, cacau, mangueira, melão-de-são-Caetano, malvaísco

e folha-da-costa.

Às 5:00h da manhã nos levantamos, abrimos o portão, fechamos e saímos em

direção da mata para “catar” folhas. A mata fica atrás da casa de santo8. Caminhamos na

rua ainda escura, em silêncio. Com 15 minutos de caminhada chegamos à entrada da

mata, é um buraco num muro velho, o terreno pertence à uma universidade privada de

Belém e região. Antes de entrar pedimos agô9, que é um pedido de licença. O agô não é

somente para Òsayìn, mais para todas as outras entidades que ali moram.

Após pedir agô, entramos na mata e nos dirigimos para a árvore mais próxima

com a vela, o tabaco, e o coco, para arriar a oferenda de Òsayìn. Chegando ao pé da

árvore finco a vela no chão, afasto um pouco as folhas que estão próximas da vela, pois

Òsayìn não gosta que queimem as suas ervas até mesmo as que já estão caídas (Ver

Imagem 1). Pego uma folha do chão, coloco o tabaco e posiciono ao lado da vela junto

com o coco. Ascendo a vela, fecho os olhos e começo a me concentrar com as energias

daquele local pedindo permissão para catar as folhas na obrigação de devolvê-la, no

final do processo, para aquele mesmo lugar. Após o pedido, bato paó10

junto com o

Bàbá e entramos na mata para buscar folhas.

O processo de “catar as folhas” acontece enquanto cantamos fundamentos de

Òsayìn. A todo instante, na pausa dos fundamentos cantados, Alá Torí pede para me

concentrar no que estou fazendo, pois aquele era um dos principais rituais dentro do

candomblé. Como levamos o paneiro, íamos catando algumas folhas e às colocando

dentro dele, outras levamos para catar na casa (Ver Imagem 2). Como já havia falado

para Alá Torí sobre a pesquisa que pretendia desenvolver, pedi permissão para registar o

momento com algumas fotografias, e o mesmo concordou.

Passamos torno de duas horas na mata catando folhas, pois esse é um processo

minucioso onde algumas folhas devem ser procuradas com cuidado para não serem

6 Divindade do panteão iorubá que cuida das folhas litúrgicas e medicinais. É um dos principais Orixás do

candomblé, já que, sem folhas não se realiza nenhum ritual. Do iorubá Òsonyìn. 7 Filho-de-santo que está passando pelo ritual de iniciação, ultrapassa a condição de abiã.

8 Rua Nova, bairro Guanabara, Ananindeua-PA, atrás da UNAMA da BR, na rua do banco ITAU.

9 Palavra de origem iorubá, àgó, utilizada na religião dos orixás como pedido de licença ou desculpas.

10 Palmas ritmadas utilizadas no culto as Orixás. Palavra de origem iorubá “awó”, mão, acrescida do “pa”,

bater.

6

confundidas com outras. Quando saímos agradecemos à Òsayìn pelas folhas, batemos

paó e voltamos para a ilê11

com os paneiros cheios e alguns galhos nos ombros (Ver

imagem 3). Chegando na casa, colocamos as folhas no chão (Ver Imagem 5), enquanto

o Bàbá ia para a cozinha preparar um café e eu ia organiza-las, meu trabalho ainda não

havia terminado. Peguei três esteiras, coloquei na sala de pinturas12

e fui organizar

primeiro a dos paneiros, dividi cada uma delas nas esteiras, não juntando e misturando

elas, a mistura das folhas só ocorre na hora do ritual (ver imagem 6). Após arrumar as

folhas nas esteiras organizei outras que não podiam ficar nela, devido serem sensíveis

(melão-de-são-Caetano e malvaísco(, ficando elas numa bacia com água para não

murcharem, deixei descansando até a hora do ritual. Após organizar as folhas que

estavam no paneiro, fui atrás de uma quartilha com água e vela. Coloquei-as enfrente

das esteiras, a quartilha era de louça branca sem alça e a vela fina verde acessa. Bati

paó, cantei para Òsayìn e deixei as folhas descansando. Fui organizar o restante que

estava nos galhos. Aproveitei dois filhos de santo que já estavam na casa para

debulharem as folhas dos galhos. Organizei o local no barracão que isso seria feito,

esteiras que ficariam as folhas e dois apotis onde sentariam os dois rapazes, e os deixei

fazendo o processo enquanto ia tomar meu café e saber do Alá Torí os próximos passos

para aquele dia (ver imagem 8).

As imagens abaixo nos apresentam o processo de catar as folhas citados acima.

11

Do iorubá ilè, “casa”, “lar”. Utilizado pelas comunidades afro-religiosas para denominar o espaço que

se cultua os Orixás. 12

Local na casa onde se fazem as orações antes de iniciar as giras. A sala recebe este nome, pois conta-se

que quando o seu fundador construiu-a pintou nas suas paredes os 16 orixás do candomblé, pinturas estas

que não mais existente nos dias de hoje, ficando nos seus ligares banners com as imagens dos 16 orixás

(Oxalufam, Oxaguiam, Oiá, Obaluaê, Xangô, Iemanjá, Oxum, Oxóssi, Ossayin, Ogum, Oba, Ibejada,

Oxumarê, Xapanã, Nanã e Logum-Edé), contudo o nome permaneceu sala das pinturas.

7

Imagem 1: O coco, a vela e o tabaco

FONTE: O Autor. 2017.

Imagem 2: As folhas no paneiro

FONTE: O autor. 2017.

8

Imagem 3: Procurando as folhas de cada Orixá

FONTE: O autor. 2017.

Imagem 4: A entrada das folhas na casa de santo

FONTE: O autor. 2017

9

Imagem 5: O primeiro descanso das folhas

FONTE: O autor. 2017.

Imagem 6: O segundo descansar das folhas

FONTE: O autor. 2017.

10

3. “A FOLHA É TUDO, O PRINCIPIO DE TUDO VAI SER OSSAYIN”:

ENTRE O ENSINAMENTO E A PRÁTICA OU COMO SE FORMAR UM

OGAM-PESQUIASADOR

Após preparar as folhas e coloca-las para descansar nas esteiras e dividir as tarefas

com alguns filhos da casa, fui para a cozinha tomar café com Alá Torí e planejar o resto

do dia. Bàbá Alá Torí é o meu maior interlocutor na casa, exerce o cargo de Bàbá

Agam, aquele que cuida dos ancestrais e seus assentamentos. Estando na mesa com ele

o mesmo me ensinava alguns fundamentos sobre as folhas, enquanto ele falava tomei

posse de um papel que estava por cima da mesa e comecei a anotar alguns pontos

importantes da sua fala, pois não daria tempo de ir até minha mochila e pegar meu bloco

de notas. Fazendo uma pausa na sua fala ele me questiona se não irei gravar o que

estava dizendo, pois aquilo seria importante para mim enquanto ogam. Respondi que

iria usar aqueles seus ensinamentos nas funções do meu cargo, mas que também usaria

na minha pesquisa e perguntei se não havia problema gravar. O mesmo disse que não,

só gostaria que lembrasse nos trabalhos que utilizaria sua fala de fazer um

Imagem 7: O debulhar das folhas

FONTE: O autor. 2017.

11

agradecimento a ele. Fui até o quarto dos homens13

busquei na minha mochila meu

caderno de notas, caneta e meu celular para gravar. Quando voltei para a cozinha Bàbá

Alá Torin acendeu um cigarro me pediu para não perder nem um momento da sua fala,

pois seria importante enquanto ogam e pesquisador. Abaixo transcrevo uma parte desta

sua fala, que considero importante para o raciocínio que aqui estamos elaborando.

O culto das folhas é feito em particular, geralmente ele é um culto

restrito, a não ser o culto no salão, aonde canta-se para o Orixá

Òsayìn. Tem a diferença que ele é o único Orixá que é homenageado

em todas as festas. Pode ser festa de qualquer um Orixá, tem que ter a

obrigação de Òsayìn, o que é as próprias folhas dele jogada no salão.

A folha no candomblé, na mina, no jeje e na umbanda é tudo, sem

folha não se faz nada. A folha é tudo. Tu deita na folha, tu come na

folha, toma banho de folha, o Orixá é a mesma coisa, toma banho de

folha, deita na folha e come na folha, não tem como escapar, a folha é

tudo, o principio de tudo vai ser Òsayìn. Por isso que se tu fores

prestar bem atenção, quando começa o ritual, todos nós pensamos o

quê? “Ah! Começou o ritual com Exu”. Não! O ritual começou com

as folhas, tá?! Porque “pra tí” cortar pra esse Exu tem que ter a folha,

então começou com a folha e não começou com Exu.

As ervas das camarinhas elas são quase que as mesmas e todos os

orixás, por pertencer a Ossayin, entendeu? Por Exemplo, tu não vai

fazer um orixá, com folha (pausa na fala), com qualquer folha, tu vai

botar o malvaísco, a capeba né?! Sei lá como tu chama, entendeu?

Essa aí é a folha sagrada do Orí (cabeça), que vai em todas as

obrigações que forem no Orí, do individuo, entendeu? Aí, (pausa na

fala) é o que vai. Uma das ervas é ela, do Orí, ervas de Orí, folha-da-

costa e malvaísco, entendeu? Erva de Orí, folha da costa e malvaísco,

pronto, essas duas folhas, né?! E agora tem o banho, o banho

específico. Geralmente a gente usa manjericão, por quê? Porque ele é

neutro, de Exu a Oxalá recebe ele, né?! Aí tem as ervas de acordo com

o Orixá, que é, no caso, vamos botar Ogum, estoraque, né?!Oxóssi,

estoraque, manjericão, tais entendendo? É (pausa na fala) Òsayìn,

todas as ervas, mas geralmente nós usamos o manjericão, por

“abranjir” todos os orixás, né?! Aí vai no caso Logun-Edé tu pode

usar o estoraque, , tu pode usar o manjericão, tudo pode usar o próprio

malvaísco pra fazer o banho, tu pode usar, o que mais pra Logun-Edé?

(pausa na fala), isso é fundamento, é amor crescido, tá? Pra Omolu tu

pode usar o pau-da-angola, tu pode usar um alecrim-da-angola, tu

pode usar o manjericão, que é pra todos né?! É as ervas mais

específicas que a gente usa, né?! A própria canela-de-velha, pra ele.

Acho que são essas as ervas dele, porque ele é um santo misterioso. Aí

são bem pouquinhos. Já pra Xangô, tu pode usar a própria folha da

gamela, tu pode usar a folha da fortuna, tu pode usar o beto-cheiroso,

né?! Isso dependendo do Xangô, porque tem a qualidade, tem a

13

Local no terreiro onde os homens guardam seus bens e roupas enquanto trabalham na casa, não é um

espaço grande, possuindo somente um banco grande para pôr as bolsas. Diferente do quarto das mulheres

que além de grande e espaçoso possui ventiladores, guarda-roupas, cruzetas e vários bancos. A

justificativa é que os homens não precisam de um espaço grande, pois, suas vestimentas são poucas,

diferentes das mulheres que possuem vestimentas mais avantajadas.

12

qualidade do Xangô vermelho e do Xangô Ayrá. Se for Xangô Ayrá tu

vai usar manjericão, beto-cheiroso, tu pode usar pra ele que é folha

fria, o próprio quioiô. Mas quando já for pra Ayrá, aí já é uma coisa

mais, assim como pra Omolu, misterioso, de acordo com o que o pai

de santo vai te ensinando. Isso tudo pro Orí, pra fazer o banho de Orí.

Mas geralmente pra todos os orixás “cara” é o manjericão, porque ele

é neutro, né?! E a gente sabe que um Orí, não é um só que é dono do

Orí. No Orí vem vários, tem vários orixás ali, tem Oxalá com Iemanjá,

Oxalá com Oxum, aí pra não agredir ninguém a gente põem

manjericão (Entrevista feita com Bàbá Alá Torí, em 04/09/2017).

Primeiro peço desculpa pela extensão da citação, contudo, considero importante

para o debate aqui seguido. Alá Torin deixa claro que não existe nada no santo sem as

folhas. Isso nos mostra que a vida no candomblé é uma expressão da natureza. Cada

orixá corresponde a uma folha diferente, há um fundamento. Ogum14

não leva as folhas

que Xangô15

leva, assim como Logun-Edé16

leva as mesmas folhas de Oxum17

e Odé

(Oxóssi). Desta forma cria-se uma epistemologia ecológica nos terreiros, pois, o

principal alicerce do candomblé é a natureza. Assim, o cuidar do santo e das folhas não

está somente ligado ao bem estar do santo, mas do próprio terreiro em relação humano e

natureza. Tirar uma folha e não usá-la em algum ritual é cometer um suicídio na

natureza. Folha é vida, é o ar, é o sangue vegetal, sendo assim, Òsayìn não representa

somente as folhas, mais o ar que respiramos, a fotossíntese. Quando se destrói uma

floresta, ou derrubasse uma árvore, acreditasse, no Candomblé, que Òsayìn vai se

afastando da humanidade, pois com estas atitudes, o próprio homem se afasta das

plantas. Portanto, na fala de Alá Torí fica claro que a essência do Candomblé está na

energia das folhas, no que se chama de sangue vegetal. E como disse anteriormente e

ficou explícito na transcrição acima, cada Orixá possui uma folha especifica dada por

Òsayìn.

Nos terreiros existe um conhecimento sobre o ritual das folhas para justificar o uso

de cada folha atribuída a um determinado Orixá. Bàbá Alá Torí nos mostra que as folhas

de um Orixá não pode ser confundida com a de outros, exemplo, no trecho da sua fala

“Já pra Xangô, tu pode usar a própria folha da gamela, tu pode usar a folha da fortuna (...)

Isso dependendo do Xangô, porque tem a qualidade, tem a qualidade do Xangô vermelho e do

14

Orixá do panteão Iorubá. No Brasil é um dos Orixás mais cultuados. 15

Orixá do panteão iorubá. Sendo atribuído para ele o poder da justiça, dos raios e do fogo. 16

Orixá da tradição ijexá, ligado aos elementos da terra e da água. Segundo a tradição é filho Oxum com

Oxóssi, morando seis meses nos rios com a mãe e seis meses na mata com o pai. 17

Orixá iorubano das águas doces, da riqueza, da beleza e do amor.

13

Xangô Ayrá18

. Se for Xangô Ayrá tu vai usar manjericão, beto-cheiroso, tu pode usar pra ele

que é folha fria, o próprio quioiô”. Fica claro que existe um Xangô, divindade da justiça,

contudo, existem as qualidades deste orixá, ou seja, a linha que esse Orixá vai seguir. O Xangô

vermelho é um Orixá quente, o Xangô Ayrá é um orixá mais frio. Assim, segundo a explicação

na fala de Alá Torí, as folhas que vão servir para o Orí de um filho de Xangô vermelho são as

folhas específicas desse santo, geralmente são folhas quentes, já os filhos de Ayrá vão receber

outro tipo de folha, específica dele, que já são folhas frias. No entanto, existem momentos que

um filho de santo que possui um orixá quente tem que tomar um banho de folhas frias para

esfriar a sua cabeça (Orí), isso só pode acontecer com a permissão do Babalorixá ou Yalorixá da

casa. Para tanto, existe uma folha que é neutra em meio a todas as outras e que é usada por todos

os filhos de santo, o manjericão. Dentro da T.E.U.C.Y., o manjericão é tido como uma erva de

Oxalá, por isso é usada para todos os santos. Contudo, devemos levar em consideração que nem

todas as ervas de oxalá servem para todos os santos, por exemplo, na sua fala Alá Torí diz que

por mais que duas pessoas sejam do mesmo santo elas podem não levar a mesma erva na

cabeça, pois, cada Orí é diferente do outro. Isso é devido a sua ancestralidade.

Desta forma, não basta apenas saber para que servem as folhas, ou de que Orixá elas

pertencem, tem que compreender a família espiritual de cada filho. Alá Torí deixa claro

que isso só é possível através do pai ou mãe-de-santo, pois eles são os responsáveis pela

vida espiritual do filho. Dentro do Candomblé existe um tripé que é a base para a

sustentação desta religião: Adivinhação, colheita das folhas, e o culto as antepassados,

cada uma delas ligadas a um sacerdote, Babalorixá/Yalorixá; Babalossaim e Baba

Agam. Quem conhece o segredo das folhas é o Babalossaim, contudo, quem sabe o

banho de ervas que cada filho vai levar na sua cabeça é o Babalorixá/Yalorixá, pois são

eles que consultam, através do jogo de búzios, a vida terrena e espiritual de cada filho-

de-santo da casa. Assim, quem mantem o equilíbrio dessas energias das folhas é o chefe

do terreiro (Babalorixá/Yalorixá), contudo, quem vai manipular essas energias é o

Babalossaim, pois ele terá o maior contato com as ervas e os seus segredos.

Logo abaixo temos um gráfico que explica a organização das ervas segundo a fala

de Bàbá Alá Torí e nome de algumas ervas coletadas ao longo da pesquisa.

18

Uma das qualidades de Xangô, tendo fundamento com Oxaguiam, Oxalá mais novo, por esse motivo

veste branco.

14

Nesta tabela colocamos algumas folhas citadas por Bàbá Alá Torí e outras que não

estão na sua fala, porém que foram encontradas ao longo da pesquisa, que ainda se

encontra em desenvolvimento. O principal objetivo deste gráfico é mostra como divido

as ervas encontradas na T.E.U.C.Y., folhas Neutras, folhas quentes, folhas da terra e

folhas da água. Esta divisão ocorre devido perceber que o terreiro divide as suas folhas

de acordo com a sua ligação com o Orixá. Assim, as folhas neutras seriam as

relacionadas ao orixá Oxalá, pois, segundo a tradição iorubá e presente no terreiro que

pesquiso e faço parte, nenhum outro orixá briga com Oxalá. No entanto, percebemos na

fala de Alá Torí que por mais neutra que a erva seja deve ser levado em consideração a

ancestralidade da pessoa, ou seja, a ancestralidade espiritual que vai delimitar quais as

ervas devem ser usadas no ritual da lavagem do Orí de um individuo. As folhas quentes

estão voltadas para os Orixás de dendês, Xangô, Iansã, Ogum, entre outros. As folhas de

água são de orixás ligados ao mar (Iemanjá) e ao rio (Oxum). Deve ser levado em

consideração que algumas qualidades, ou seja, várias manifestações de um mesmo

orixá, por exemplo, por mais que Ogum seja um orixá quente, pode vim no caminho de

Iemanjá (Ogum-Beira-Mar, Ogum-Iara, Ogum-Marinho, entre outros) que por estarem

nos caminhos de Iemanjá poderão levar folhas de água nos seus rituais. Outro exemplo

Fonte: Dados coletados em pesquisa de campo realizada pelo autor no ano de 2017.

Tabela 1: Algumas folhas e suas classificações

15

é Logun-Edé, que pode levar tanto folhas de água, pois vêm nos caminhos de Oxum,

quantas folhas quentes e neutras, pois vem no caminho de Oxóssi, Ogum e Iansã

Onira19

. Segundo narra um itam, Logun-Edé era filho de Oxum com Oxóssi, morando

seis meses nos rios com a mãe e seis meses com o pai na mata. Certo dia

desobedecendo Oxum vai para as profundezes do rio onde é afogado por Oba20

, que

tinha antigos conflitos com Oxum. A mãe desesperada corre até Orunmilá e pede para

salvar seu filho. Orunmilá atendendo aos pedidos de Oxum salva Logun-Edé das águas

traiçoeiras de Oba. Foi retirado da água por Iansã, sendo criado por ela e Ogum.

Esses itans servem para explicar determinados rituais que acontecem no candomblé,

neste caso específico, nos mostra porque Logun-Edé leva folhas de vários orixás

diferentes. Por fim, as folhas da terra estão voltadas para os Orixás Obaluaê21

, Omolu,

Nanã22

e Iansã do Balè23

. Esses orixás estão ligados à ancestralidade, a linha tênue entre

a vida e a morte. São os orixás que cuidam de quem já partiu, sendo zelados, na

T.E.U.C.Y., pelo Bàbá Agam.

Esta classificação é uma escolha minha enquanto organização da pesquisa, não

sendo divida desta forma na casa de santo que pesquiso e faço parte e podendo ser

mudada ao longo da pesquisa. O símbolo que está no meio do gráfico serve para

fazer uma ligação com a fala de Bàbá Alá Torí no sentido de que as ervas servem como

equilíbrio na vida das pessoas, ou seja, “não pode ser frio nem quente, tem que ser morno, é

o equilíbrio na verdade. Tem o equilíbrio das ervas também”. Portanto, por mais que um filho

seja de um determinado Orixá, vamos supor Oxalá, para manter o equilíbrio deve-se dar um

banho com alguma erva quente, não somente neutra, desta forma, as folhas circulam entre si de

acordo com a necessidade de cada individuo.

4. O devolver das folhas

Iniciei este trabalho falando sobre a entrada na mata para a coleta das folhas, que

seriam utilizadas na camarinha de um yawo que estava recolhido. Após passar o dia

descansando na esteira, chega o momento, geralmente à noite, que é necessário fazer a

cama do yawo com as folhas. Este é um dos rituais mais importantes que existem dentro

do candomblé, pois, não se faz o Orixá sem a sua cama está feita. Este ritual é restrito

19

Qualidade de Iansã relacionada a Oxum. 20

Orixá feminino dos iorubás, guerreira e muito forte. Uma das esposas de Xangô. 21

Orixá da varíola e da cura. 22

Orixá de origem jeje ou vodum, cultuada na Mina, no Candomblé e na Umbanda. 23

Iansã relacionada aos mortos. Trabalha junto com Obaluaê.

16

para alguns membros do terreiro, geralmente pessoas de cargo e confiança do

Babalorixá ou Yalorixá.

Antes do inicio de fazer à cama do yawo a mãe-de-santo (Ya Yacira) pede para a

ajibonã24

leva-lo para o tor25

e banhá-lo. Enquanto o banho ocorre o chefe do terreiro,

junto com os cargos, iniciam o processo de montar a cama. Primeiramente é levada para

dentro do roncó uma pequena vasilha contendo arroz, alpiste, e outros grãos,

simbolizando a fartura. Esta parte do ritual inicia com a mãe de santo e vai passando

para os cargos de acordo com a hierarquia do santo. Ao jogar estes grãos no chão, no

local onde irá ficar a cama do yawo, as pessoas vão pedindo boas vibrações e energias

para aquela pessoa que vai deitar naquela cama de folhas e nascer para o Orixá. Logo

em seguida começa outra parte do ritual que é trazer as folhas para dentro do roncó e

começar a montar a cama. A mãe de santo inicia cantando fundamentos próprios de

Òsayìn e todos que estão ali presentes acompanham. A Yalorixá então me pede a

primeira esteira com as folhas, trago-as e a mesma pega com as mãos e vai jogando no

chão em cima dos grãos que foram ali colocados anteriormente, ainda entoando os

fundamentos cantados. A cama vai se formando conforme as pessoas que ali estão

presentes vão, após a Yalorixá e seguindo a hierarquia, jogando as folhas no chão. As

esteiras com as outras folhas vão entrando de acordo com o término das anteriores. Aqui

fica claro, o que debatemos no tópico anterior, pois as folhas presentes na cama do

yawo englobam folhas frias, de água, neutras e do fogo, justamente para manter o

equilíbrio na vida daquele individuo que lá vai se deitar. Assim, não importa se é de

Orixá de dendê ou de mel, haverá folhas de ambos, para manter o equilíbrio. Por fim é

feita a cabeceira da cama, colocando as folhas que ficaram numa bacia com água, por

serem mais sensíveis, que são o malvaísco e o melão-de-São-Caetano. Com estas folhas

é feito tipo uma coroa, onde se coloca por cima do malvaísco, formando como se fosse

um ninho, o melão-de-São-Caetano, no centro deste ninho colocasse um acaçá e milho

branco, após esta coroa está pronta, coloca-se na cabeceira da cama de folhas. A criação

desta coroa com estas folhas e o milho branco junto com o acaçá na cabeceira da cama

serve para esfriar o Orí do filho, pois, o mesmo, quando for deitar-se na cama de folhas,

deve colocar a sua cabeça na direção desta coroa. Tendo montado toda a cama e a coroa

do Orí, coloca-se a esteira em cima das folhas e a cobre com um lençol branco. Neste

momento o yawo já saiu do banho e está sentado no apoti esperando para poder entrar

24

Cargo feminino. Pessoa que toma conta do roncó. 25

Lugar sagrado na T.E.U.C.Y., onde ocorrem os banhos das pessoas que estão recolhidas ou de preceito.

17

no roncó. Com o término da montagem da cama, a mãe-de-santo finda os fundamentos

cantados e manda colocarem o yawo para dentro e deitá-lo na cama de folhas.

Quando termina esta parte do ritual as pessoas ali presentes irão se preparar para a

segunda parte que é o sacrifício animal, não irei tratar especificamente dos sacrifícios,

pois iria alongar o trabalho e sairia do eixo principal que é a questão do culto às folhas,

contudo, devo apresentar algumas partes que envolvem as folhas ao longo do sacrifício.

Enquanto o yawo está deitado, estamos preparando a cama que o Orixá vai comer,

pois já preparamos a que ele vai deitar, agora é necessário montar com as folhas o lugar

que vai ocorrer o sacrifício animal. As mesmas folhas que servem para a cama servem

para o sacrifício. Colocamos as folhas no chão, num lugar escolhido pelo chefe da casa,

e os assentamentos do Orixá em cima delas. Quando tudo está pronto, os animais já

próximos, trazem o yawo de dentro do roncó, o sentam no apoti, bem de frente para o

assentamento do seu orixá, e iniciam o processo de sacrifício. Os animais que são

sacrificados são bode ou cabras, dependendo se o Orixá é fêmea ou macho, galinhas ou

galos, pato, picota e pombo26

. No momento do sacrífico do pato, da picota e do pombo,

seus olhos são tampados com folha-da-costa (Òdúndún), pois se acredita que esta folha

está ligada aos Orixás ancestrais, ao mito da criação, conhecidos como Orixás funfun.

Cobrem-se os olhos destes animais com esta folha para os mesmo não verem Ikú (a

morte).

Após o sacrifico dos animais, onde o yawo passou este momento em transe com o

Orixá, levanta-o e leva ele para dar uma volta no salão. Nesta volta o yawo, ainda em

transe, está banhado de sangue dos animais e leva a cabeça do bode nas mãos. Após dar

a volta pelo salão é levado para o tor, onde irá tirar todo aquele sangue do sacrifício e

tomará banhos de ervas. Bàbá Alá Torin, explicando esta parte diz:

Eu pego o santo, “trago pro salão”, entendeu? O ejé27

é tirado. Você

corta, o santo vai dar uma volta no salão todo sujo de ejé, quando ele

volta ele toma um banho de amaci28

, com as folhas especificas dele lá,

ou o neutro mesmo. Mas essa daí não tira, essa daí fica, tais

entendendo? Essa daí fica por quê? Porque é Òsayìn que vai tomar

conta daquele santo. Ele que vai ficar ali, entendeu? Porque todo

mundo tem segredo, todo mundo tem as cosias, mais quem tem o

segredo maior é Òsayìn. O dono da cabaça é ele, Òsayìn, é o dono da

cabaça (Entrevista feita com Bàbá Alá Torí, em 04/09/2017).

26

Isso na nação Mina-Nagô. No Ketu sacrifica-se também um jabuti. 27

Sangue. 28

Banho preparado com folhas maceradas com água, utilizados para banho de purificações.

18

Com essa fala percebemos que por maior que seja a importância do sangue animal

para a iniciação de um yawo, o banho com as ervas é quem vai fechar todo esse

processo ritualístico, ou seja, termina-se este ritual com o sangue vegetal. E é este

sangue que vai ficar na cabeça do filho de santo que acabou de nascer para o Orixá.

Enquanto a ajibonã dar banho no yawo, em transe com o erê, alguns filhos da casa tiram

as vísceras dos animais sacrificados para colocar no assentamento do Orixá. Neste

momento eu e Bàbá Alá Torí estamos levando o assentamento do Orixá para dentro do

roncó, pois ficará na cabeceira da cama do yawo. As folhas que fizeram cama para o

assentamento do orixá são tiradas e colocadas num paneiro para serem levadas de volta

para a mata no amanhecer do outro dia. Após o yawo sair do tor, e as pessoas ali

presentes limpar todo o espaço que foi realizado o ritual, chega a hora de descansar,

retornando para aquele local apenas três dias depois e levando para o mar o que for dele

e para as matas as suas folhas, como foi prometido para Òsayìn.

5. Fechando o trabalho e abrindo outros...

O conhecimento que é construído na Tenda Espírita de Umbanda Cabocla Yacira

sobre às folhas faz parte de um processo histórico construído desde o a sua fundação. O

candomblé é múltiplo nas suas práticas e saberes. Cada casa de santo é uma escola,

produzindo elas próprias as suas epistemologias e conhecimentos próprios. O objetivo

central deste trabalho era buscar compreender como se desenvolvia a produção de saber

dentro da T.E.U.C.Y., através do culto às folhas. Vários caminhos poderiam ser

seguidos, elaboração de banhos, garrafadas, remédios, fumos, incensos, todavia busquei

através do catar as folhas para uma camarinha, o que gerou uma conversa com o

Babalorixá Alá Torí, perceber o que seria as folhas dentro de um processo sacro.

Muito além que simples ornamentos da natureza, a folha possui um significado

próprio e importante nos cultos realizados na TEUCY. Existe uma elaboração própria

sobre como equilibrar um banho para um determinado filho, sem que aquilo altere suas

emoções físicas e espirituais. Entendo que isso é uma construção de conhecimento que é

adquirido com o tempo, através, principalmente, da oralidade e passado de geração em

geração.

A fala do Alá Torí nos mostra o quão, dentro do espaço religioso do candomblé, a

hierarquia é necessária. Por mais que a Yalorixá saiba quais ervas serão utilizadas para

19

determinados filhos, será uma pessoa específica, geralmente o Babalossaim, que irá

saber ativar as energias daquelas folhas. Isso nos mostra que o conhecimento não é

restrito na mão de uma única pessoa, mas o saber perpassa, gera conhecimento e isso

muitas das vezes gera conflitos dentro de uma casa de santo.

A conclusão parcial deste trabalho encontra-se nas duas fotografias a seguir, onde, a

primeira retrata o balançar do conhecimento das folhas, esse redemoinho de

epistemologias que não estão presas em uma única árvore, mas se espalham com as

folhas pelos ventos dos salões dos terreiros. A segunda nos mostra o quanto tudo é

essencial no candomblé quando se trata de conhecimento, o sol, as folhas, a fumaça, o

incenso, o céu, mostrando que o homem é apenas um dos vários seres que habita esse

plano chamado terra.

Imagem 8: O movimento das folhas

FONTE: O autor. 2017.

20

Imagem 9: Natureza: o lócus do saber afro-religioso

6. Bibliografia

INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: Emaranhados criativos num mundo

de materiais. In. Horizontes antropológicos. Porto Alegre, ano 18, nº 37, pp. 25-44,

jan./jun. 2012.

LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da Diáspora Africana. São Paulo-SP: Ed, Selo

Negro, 2004.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O Antropólogo e sua magia: Trabalho de campo e

texto etnográfico nas pesquisas antropológicas sobre religiões afro-brasileiras. São

Paulo-SP: Ed. Da Universidade de São Paulo, 2015.

VERGER, Pierre. Ewé: o uso das plantas na sociedade iorubá. São Paulo: Companhia

das letras. 2017.

______________. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. Salvador:

Corrupio, 1981.

FONTE: O autor. 2017.