Por Uma Leitura Transformadora

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POR UMA LEITURA TRANSFORMADORA: UM OLHAR SOBRE A TEORIA DA LEITURA DE ELIANA YUNES 1 Valéria Moura Venturella 2 Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000), documento que estabelece as principais diretrizes para o planejamento desse nível de ensino no Brasil, define a linguagem, na seção dedicada às Linguagens, Códigos e sua Tecnologia, como "a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los [...]. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido" (p. 5). Assim, segundo o documento, a linguagem – em todas as suas manifestações possíveis – é o mais importante instrumento de atribuição de sentido, ou seja, de compreensão da realidade, por parte de um indivíduo, e de negociação dessa compreensão com outros. No contexto escolar, assim, o trabalho com os diferentes modos e formas de linguagem deve estar de acordo com a definição proposta. Sendo a linguagem um instrumento de apreensão da realidade, o desenvolvimento das capacidades lingüísticas dos estudantes deve ocorrer simultaneamente ao crescimento de sua habilidade para desvendar o mundo em que vive. De fato, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (op. cit.), os estudantes deveriam, através do progressivo domínio das linguagens, ser capazes de, entre outras aptidões: colocar-se como protagonistas em processos de recepção e produção de sentido; compreender a realidade, pela constituição de significados e também pela expressão dos mesmos; comunicar-se em situações de intersubjetividade; usufruir do patrimônio cultural mundial e das diferentes visões de mundo; exercer o distanciamento e a reflexão a respeito dos diferentes contextos; e integrar a organização do mundo e da própria identidade. Após a leitura do documento, podemos perceber a relevância conferida ao desenvolvimento das linguagens no âmbito educacional. Se é através do aprendizado contínuo das diferentes linguagens que cada pessoa pode construir sua identidade, estar no mundo com os outros, compreender o que a cerca, e ter o distanciamento necessário para realizar uma reflexão crítica a respeito dos eventos do mundo, então um dos objetivos primeiros do processo educacional é promover experiências que possibilitem a cada estudante a apropriação das linguagens e do que elas podem proporcionar. A realidade de boa parte das escolas brasileiras, no entanto, contradiz o que prega o documento. Pesquisas internacionais denunciam a incapacidade dos estudantes brasileiros 1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Por Uma Teoria da Literatura, ministrada pela Profa. Dra. Eliana Yunes no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de 30 de maio a 1º de junho de 2007. 2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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Artigo sobre a importância da leitura e sobre o processo de ensino e aprendizagem da leitura na escola

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POR UMA LEITURA TRANSFORMADORA:UM OLHAR SOBRE A TEORIA DA LEITURA DE ELIANA YUNES1

Valéria Moura Venturella2

Os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (BRASIL, 2000),

documento que estabelece as principais diretrizes para o planejamento desse nível de

ensino no Brasil, define a linguagem, na seção dedicada às Linguagens, Códigos e sua

Tecnologia, como "a capacidade humana de articular significados coletivos e compartilhá-los

[...]. A principal razão de qualquer ato de linguagem é a produção de sentido" (p. 5). Assim,

segundo o documento, a linguagem – em todas as suas manifestações possíveis – é o mais

importante instrumento de atribuição de sentido, ou seja, de compreensão da realidade, por

parte de um indivíduo, e de negociação dessa compreensão com outros. No contexto

escolar, assim, o trabalho com os diferentes modos e formas de linguagem deve estar de

acordo com a definição proposta.

Sendo a linguagem um instrumento de apreensão da realidade, o desenvolvimento

das capacidades lingüísticas dos estudantes deve ocorrer simultaneamente ao crescimento

de sua habilidade para desvendar o mundo em que vive. De fato, segundo os Parâmetros

Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (op. cit.), os estudantes deveriam, através do

progressivo domínio das linguagens, ser capazes de, entre outras aptidões: colocar-se como

protagonistas em processos de recepção e produção de sentido; compreender a realidade,

pela constituição de significados e também pela expressão dos mesmos; comunicar-se em

situações de intersubjetividade; usufruir do patrimônio cultural mundial e das diferentes

visões de mundo; exercer o distanciamento e a reflexão a respeito dos diferentes contextos;

e integrar a organização do mundo e da própria identidade.

Após a leitura do documento, podemos perceber a relevância conferida ao

desenvolvimento das linguagens no âmbito educacional. Se é através do aprendizado

contínuo das diferentes linguagens que cada pessoa pode construir sua identidade, estar no

mundo com os outros, compreender o que a cerca, e ter o distanciamento necessário para

realizar uma reflexão crítica a respeito dos eventos do mundo, então um dos objetivos

primeiros do processo educacional é promover experiências que possibilitem a cada

estudante a apropriação das linguagens e do que elas podem proporcionar.

A realidade de boa parte das escolas brasileiras, no entanto, contradiz o que prega o

documento. Pesquisas internacionais denunciam a incapacidade dos estudantes brasileiros

1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Por Uma Teoria da Literatura, ministrada pela Profa. Dra. Eliana Yunes no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de 30 de maio a 1º de junho de 2007.2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.

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para compreenderem o que lêem e para se expressarem. Segundo pesquisa divulgada pelo

instituto Paulo Montenegro (2007), apenas 26% da população brasileira entre 15 e 64 anos

consegue ler e interpretar textos corretamente e fazer relações entre eles, e 70% desse

grupo é de pessoas de até 34 anos. Isso significa que essas pessoas, apesar de terem

passado pelas instituições escolares, não desenvolveram ao longo de sua experiência

estudantil o domínio da linguagem escrita.

Eliana Yunes, professora dos cursos de graduação e pós-graduação em Letras da

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, considera que o problema da leitura no

sistema educacional brasileiro é a incapacidade que os estudantes apresentam para atribuir

sentido aos textos que lêem3. Na escola, afirma a educadora, um grande erro é deixar o

aprendizado da leitura a cargo apenas do professor de língua portuguesa, uma vez que a

formação do leitor abrange muito mais do que o eixo língua-literatura. O desenvolvimento

das linguagens perpassa as diferentes áreas do conhecimento e o próprio processo de

aprendizagem das diferentes disciplinas depende do desenvolvimento das linguagens.

Assim, esse é um problema educacional global, cuja solução se torna mais urgente à

medida em que a quantidade de informações e conhecimentos se multiplica e a

necessidade de discernimento cresce.

Nessa perspectiva, dada a importância e a necessidade do domínio das diferentes

linguagens para a construção identitária e para a compreensão – requisito básico para a

participação – do mundo, e considerada a deficiência histórica no Brasil em relação às

linguagens, especialmente à linguagem verbal escrita, a educação deve assumir a formação

de leitores como uma de suas prioridades.

Essa formação de leitores deve ser um processo permanente – que se inicie nas

primeiras etapas da Educação Básica e se prolongue até o final do Ensino Médio – e

abrangente, no sentido de ser abraçado por todos os educadores, independentemente de

sua área de especialização. Esse processo deve se constituir, fundamentalmente, na

reconstrução da relação que as pessoas estabelecem com o mundo e com todo tipo de

objetos a serem lidos, de paisagens urbanas a poemas, de anúncios publicitários a ensaios

filosóficos.

É com vistas à realização de um projeto educacional desse tipo que Yunes apresenta

uma proposta de formação de leitores que inicia muito antes do aprendizado da leitura

propriamente dita. Este trabalho apresenta uma releitura dos ensinamentos e proposições

da professora4, a partir do ponto de vista de uma de suas “leitoras”. Inevitavelmente, e

coerentemente com a própria proposta, essa leitura é, em grande parte, reconstituição, mas

3 Informação verbal disponibilizada pela professora Eliana Yunes em exposição realizada no dia 30 de junho de 2007 no curso Por uma Teoria da Leitura para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.4 A apresentação da proposta foi realizada durante o curso Por uma Teoria da Leitura para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, de 30 de maio a 1º de junho de 2007.

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também é reconstrução e ficcionalização. Eliana Yunes acredita que os leitores têm o direito

de realizar suas próprias interpretações, e também de estabelecer relações singulares entre

as diferentes informações a que têm acesso e entre os diferentes estudos que realizam. Ela

também tem consciência de que, uma vez enunciada, cada palavra dita ou escrita escapa

ao controle de seu emissor, e entra em uma rede de relações que resultam em sentidos,

posicionamentos e transformação da realidade que o autor não previra inicialmente.

Assim, este trabalho é o resultado de uma produção pessoal feita a partir das

palavras e gestos de Yunes, e mostra um entendimento possível do processo de formação

de leitores que ela defende. A proposta aqui descrita inclui as seguintes etapas:

§ A tomada de consciência da linguagem – a leitura do mundo e a leitura da palavra – e a

apreensão do próprio discurso;

§ A constituição da subjetividade e da intersubjetividade, a recuperação da memória e a

leitura;

§ A percepção da diversidade de linguagens e da inter-relação das diferentes áreas do

conhecimento;

§ O protagonismo na recepção e na atribuição de sentido às leituras;

§ O domínio de recursos de expressão e de comunicação das leituras, e a reflexão a

respeito das repercussões da própria produção.

Cada um desses momentos do processo e seus possíveis desdobramentos no

contexto escolar são descritos abaixo.

A tomada de consciência da linguagem – a leitura do mundo e a leitura da palavra – e a apreensão do próprio discurso

Vivemos imersos nas linguagens. Elas nos envolvem como o próprio ar que

respiramos, a ponto de, por vezes, chegarmos a nos tornar inconscientes de sua presença.

Muitos estudiosos consideram que a linguagem é uma propriedade humana natural

(CHOMSKY, 1997), mas nesse trabalho partimos do princípio de que, embora presente em

todas as civilizações, a linguagem, como instrumento de expressão e comunicação, é

também fruto da cultura (BROWN, 1994) e, portanto, não é simplesmente uma qualidade

natural dos seres humanos, o que significa que ela deve ser ensinada e aprendida.

Aprendemos a falar ao mergulharmos em um universo de sonoridade, em que cada

elemento assume um sentido através dos usos que presenciamos e experimentamos. A

linguagem é um complexo sistema binário (SAUSSURE, 1989) – entre um significante (a

imagem acústica ou escrita da linguagem, o que denota) e um significado (a face semântica,

a idéia ou o conceito que é representado pelo signo) – que tendemos a aprender de forma

quase automática, pela necessidade de compartilhar o mundo com outros. O resultado é

que tendemos a falar quase mecanicamente, como se os discursos se apossassem de nós,

em vez do contrário.

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Sem termos consciência da linguagem, não falamos. Somos apenas porta-vozes de

discursos já prontos que se apropriam de nós (FOUCAULT, 1995). Do mesmo modo que

podemos possuir os enunciados, eles também podem nos usar como seu instrumento.

Considerando que a linguagem é um modo de ver e de construir a realidade, se quisermos

apreender e expressar o mundo a nosso próprio modo e não apenas reproduzir a visão de

mundo de outros, necessitamos nos apossar plenamente dos instrumentos de compreensão

e de comunicação que usamos. Ao nos tornarmos conscientes de nosso uso das linguagens

– e também do de outros – não apenas assumimos nossa própria fala, mas também

começamos a fazer leituras próprias de nosso entorno.

Quando perguntamos a uma criança se ela já aprendeu a ler, partimos do princípio

de que ler significa decifrar a palavra escrita, desvendar o conteúdo de um texto. Tendemos

a esquecer que existe uma forma de leitura que deve preceder a leitura do escrito. Paulo

Freire (1982), em uma afirmação hoje célebre, nos apresentou à necessidade de

aprendermos a ler o mundo antes de ler a palavra. Estabelecemos nossa relação com o

mundo através de uma primeira forma de leitura: observamos a realidade para coletar

dados, estabelecer relações entre eles, planejar nossa atuação. Não é possível, segundo

Freire, aprendermos a ler textos sem antes aprendermos a ler a realidade.

Se assumirmos que o texto é a tradução da oralidade em signos gráficos, isso tem

repercussões muito importantes em nossa concepção de leitura. Em primeiro lugar,

percebemos que, uma vez que a linguagem escrita se origina na oralidade, a leitura do texto

é uma segunda forma de leitura, cujo domínio depende do aprendizado da leitura primeira, a

da realidade. Em segundo lugar, embora oralidade seja a instância em que nós

primeiramente organizamos nossos pensamentos, compreendemos que ela não está

apenas na origem da escrita, mas a transpassa, acompanhando seu desenvolvimento.

Desse modo, compreendemos que nosso sucesso na compreensão e na

interpretação de textos depende tanto de nossa habilidade para ler o mundo quanto de

nossa capacidade para expressar nossas compreensões através da linguagem oral. Ambos

os processos permeiam nosso aprendizado da leitura da palavra escrita, e também de

nossa expressão através da escritura.

Nessa perspectiva, podemos compreender porque tantas crianças oriundas de

classes sociais menos favorecidas, ao chegarem à escola, não conseguem aprender a ler

ou escrever. Essas crianças, muitas vezes, crescem em um mundo em que há pouco

estímulo intencional para o desvendamento da realidade, e a linguagem oral que

experimentam se articula na forma de monossílabos e frases fragmentadas, um mundo em

poucos pensamentos completos e coerentes são articulados. Poucos são os ambientes

domésticos em que as pessoas conversam longamente, discutindo e compartilhando idéias.

Assim, essas crianças perdem a oportunidade de desfrutar da leitura do mundo e da

linguagem oral já em casa. E, ao chegarem à escola, devem permanecer silentes e atentas

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ao discurso de seus professores. Na sala de aula, em geral, os estudantes falam apenas

quando o professor lhes faz uma pergunta e, assim mesmo, a resposta é previsível.

Segundo Yunes, a escola deveria ser, em primeiro lugar, um espaço privilegiado

para a compreensão do mundo, a leitura primeira. E também um local de fomento do

desenvolvimento da sensibilidade para as linguagens e de estímulo à oralidade dos

estudantes. Os jovens devem ser estimulados compreender e narrar suas experiências,

compartilhando-as com os colegas e professores.

Nesse processo – que deve preceder a formação do leitor de textos, a leitura

segunda – os estudantes ampliam seu uso das linguagens, e aprendem a escutar e

compreender os companheiros e a confiar em sua capacidade de expressar suas idéias com

clareza. E, quando entram em contato com a leitura da palavra escrita, devem ser

convidados a expressar – tanto oralmente quanto por escrito – sua compreensão dos textos

e as relações que estabelecem entre lido e o vivido, confrontando-as com as visões dos

professores e dos colegas. Nesse jogo, os estudantes encontram oportunidades para ir além

do mero reconhecimento da linguagem que os envolve, elaborando uma linguagem que lhes

é peculiar, própria, que expressa o que vivem, sabem e são. Assim, constróem aos poucos

uma subjetividade e uma intersubjetividade em que podem se reconhecer.

A constituição da subjetividade e da intersubjetividade, a recuperação da memória e a leitura

No raiar da era moderna, a questão principal das investigações filosóficas deixou de

ser “o que é o real e como ele chega até nós?” – como era na Antiguidade – para ser “como

é possível conhecer o real?”, ou “quem é o sujeito que se dispõe a conhecer?” Essa

mudança de foco inaugurou a metafísica da subjetividade e iniciou o esforço para enunciar

uma noção de sujeito que desse conta da compreensão e da representação da realidade.

Descartes (2001) pode ser considerado como o filósofo que deu o primeiro passo

nessa trajetória, concebendo o sujeito como o ser pensante e consciente que, através da

desconfiança dos sentidos, atinge a única certeza possível, que é a do pensamento. Esse

modelo racional foi revisto e revisitado por uma longa linhagem de filósofos que

consolidaram a noção de sujeito consciente, congnoscente e absoluto.

No final do século XIX, essa idéia de sujeito começou a sofrer duros ataques,

desferidos por pensadores que questionavam a consciência e o conhecimento do sujeito

sobre si mesmo. Freud (1987) parece ter lhe dado o golpe de misericórdia, ao afirmar que

há uma parte de nós mesmos da qual não temos conhecimento ou controle. Para o pai da

psicanálise, cada sujeito porta uma parte consciente, iluminada, e uma parte inconsciente,

que fica em um canto escuro de nosso conhecimento sobre nós mesmos. E é essa parte

inconsciente, ao contrário do que a tradição tentou estabelecer, governa nossos atos.

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Por outro lado, segundo Martin Buber (2003), somos sujeitos entre sujeitos, temos a

capacidade de nos relacionar com os outros e de nos modificar permanentemente nessas

interações. Nessa relação que, segundo o autor, envolve o encontro, o diálogo e a

responsabilidade, nos abrimos para influenciar e sermos influenciados, nos deixamos

transformar à medida que contribuímos na mudança do que nos rodeia, e esse intercâmbio

nos flexibiliza, nos desendurece e nos modifica.

O sujeito é concebido hoje, então, como um constructo em modificação permanente,

um resultado sempre parcial, construído a cada momento, a partir de nossas experiências

de leitura do mundo e de partilha da realidade com outros sujeitos. A subjetividade é, desse

modo, uma busca constante, um caminho de experiências, vivências e relações, em que a

intersubjetividade é construída concomitantemente, pois através da consolidação do “eu”

cada pessoa pode estabelecer ligações com os demais. E esse é um percurso sobre o qual

– é importante lembrar – não temos controle completo, uma vez que há sempre uma porção

desse constructo que nos escapa, que nos é obscura.

A constituição do “eu”, ou seja, da própria subjetividade, passa pela permanente

recuperação da memória pessoal (BENJAMIN, 2006), um elemento essencial na

organização de nossa identidade pessoal por formar nosso horizonte de percepção de nós

mesmos e do mundo. A memória é, assim, uma espécie de pano de fundo para nossas

novas vivências, o panorama ao qual opomos nossas impressões, modificando o velho e o

novo nessa permanente contraposição.

Freud (1996) comparou a memória a uma “lousa mágica”. O que experienciamos,

nossas leituras de mundo e de textos, nossas interações e interlocuções vão sendo escritas

sobre a folha transparente da lousa mágica. A cada novo dia, levantamos a folha

transparente, apagando o que foi escrito no dia anterior, e começamos uma nova escrita.

Mas tudo o que registramos, mesmo depois de levantarmos a folha transparente, fica

impresso na superfície negra da lousa mágica. Nos primeiros dias após terem sido escritas,

nossas memórias ainda permanecem distinguíveis na superfície escura, mas aos poucos

elas vão se sobrepondo, se confundindo, se transformando num emaranhado de marcas,

traços e palavras desconexas. Se quisermos restaurar essas memórias, um traço não se

separa mais dos outros, e sua reabilitação exige um trabalho de re-elaboração. Desse

modo, ao lembrarmos, o que estamos realmente fazendo é uma recriação, uma

ficcionalização a partir de um arranjo pessoal dos traços desconexos da memória, um

processo que á atravessado por nossas disposições e afetos.

Quando conversamos com alguém, esse é um exercício em que cada palavra de

nosso interlocutor desencadeia um processo de recuperação de nossas memórias pessoais

– e também da memória coletiva, da qual nos apossamos ao vivermos no seio de uma

cultura. Para compreendermos o que nos dizem, devemos “recordar” – trazer de volta ao

coração – uma cadeia de conexões estabelecidas ao redor das palavras proferidas. Essas

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conexões que estabelecemos não são apenas intelectuais, mas são, acima de tudo,

afetivas, e a recordação não é um ato voluntário e consciente. Para dialogar, precisamos

reorganizar toda nossa história de vida, e fazemos isso naturalmente.

O mesmo deve ocorrer no processo de leitura, que é um colóquio entre o leitor e o

texto – seja ele escrito ou não. Para compreendermos o que lemos é necessário recuperar

nossas vivências e conhecimentos prévios, reunindo-os de modo a conseguir atribuir um

sentido à leitura.

Podemos nos perguntar, neste momento, por que o processo de reorganizar

lembranças não é tão natural na leitura quanto o é em uma conversa com outra pessoa.

Uma resposta plausível para essa pergunta é que não somos estimulados a abordar o texto

com esse objetivo. A tradição escolar, em geral, nos ensina a realizar um processo

diferente, que é o de decifrar o texto apenas através do texto, procurando descobrir o que o

escrito e o autor querem expressar, e não tentando buscar em nossas memórias conexões a

serem estabelecidas com o conteúdo do texto.

Partindo dos princípios expostos acima, Yunes propõe que os educadores iniciem o

processo de formação de leitores oferecendo aos estudantes a oportunidade de entrarem

em contato com quem são. Para conhecer seus estudantes, e para lhes dar a oportunidade

do auto-conhecimento, o professor deve fazer uso de textos dos mais diversos tipos –

anúncios, contos, poemas, filmes, entre outros – e de atividades de sensibilização, de

compreensão e de interpretação preparadas a partir desses textos. No entanto, a escolha de

um conjunto de textos para um programa de leituras não pode ser aleatória, mas informada.

Os textos devem poder ser relacionados com a realidade do grupo de leitores, devem

dialogar entre si e devem ser unidos por um fio de sentido.

Por outro lado, ao contrário do que geralmente ocorre no ambiente escolar, o critério

de ordenação dos textos não deve ser necessariamente temporal. Yunes sugere, ao

contrário, iniciar com textos contemporâneos e traçar um caminho rumo ao passado. Esse

procedimento faz com que os estudantes percebam a história que existe por trás das

leituras que hoje realizam, uma história não apenas literária, mas também cultural. Nesse

processo, as experiências contemporâneas se agregam à herança e à tradição já

acumuladas pela humanidade.

Além disso, a leitura não é uma vivência realizada em isolamento. Não lemos

sozinhos; não estabelecemos uma relação exclusiva com o texto – ou com o mundo.

Quando nos dispusemos a ler, mobilizamos toda nossa experiência, que compartilhamos

com outros. Desse modo, sempre que lemos, trazemos para esta relação as influências que

recebemos. Também, após a leitura, o compartilhamento permite que nossas compreensões

e interpretações se aprofundem e ampliem.

Assim, a leitura de uma reunião intencional de textos, especialmente se seguida de

um compartilhamento de impressões, oferece aos estudantes, além do conhecimento de si,

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a oportunidade de construir um repertório de reflexões e de leituras realizadas, um acervo

que permitirá que os estudantes ampliem seus horizontes e sejam capazes de intelecções

mais abrangentes. Quanto mais vasto for esse acervo, mais rica é a interpretação.

A percepção da diversidade de linguagens e da inter-relação das diferentes áreas do conhecimento

Basarab Nicolescu (2002) estabelece uma diferença importante entre os conceitos

de realidade e real. Enquanto o real é aquilo que é, a realidade se caracteriza como o que

resiste à nossa experiência, ou seja, o modo como nós traduzimos o real em

representações, descrições, imagens ou formulações. Devido às limitações insuperáveis de

nossa capacidade cognitiva, o real não se nos desvela por inteiro. O que temos são

aproximações, traduções e interpretações do real. Nosso aparato cognitivo se apodera de

certos elementos da realidade, estabelece relações entre eles, atribui-lhes um significado e

traduz essas relações em algum tipo de linguagem, que podemos partilhar com outros.

Em A Ficção Tematizada no Discurso Filosófico, Wolfgang Iser (1996) lembra que,

desde os tempos mais remotos, os seres humanos sempre procuraram compreender,

explicar e expressar seu entendimento a respeito dos fenômenos interiores e exteriores –

para o que ocorre dentro de si e na natureza. E essas compreensões sempre foram

expressas de diferentes modos, dos mitos mais ancestrais até as teorias científicas de ponta

da atualidade, além, é claro, das artes e do conhecimento religioso. Nesse mesmo trabalho,

Iser define como ficção toda e qualquer produção da mente humana, toda e qualquer

formulação do ser humano a respeito de sua percepção da realidade. Com isso, o autor

coloca a ciência, a filosofia, a religião e a arte na mesma categoria e no mesmo patamar,

uma vez que todas elas são tentativas humanas de compreender e explicar seu mundo.

Essas formulações são complementares e – na perspectiva apontada pelo autor – não

existe uma que seja a mais legítima.

As ficções, portanto, descrevem nossas experiências e revelam nossas verdades.

Ciência, filosofia, religião e arte não são o real, mas elas são as aproximações que podemos

fazer ao real. A realidade que podemos acessar é, assim, um referente. E a referência

desse mundo são as diferentes ficções – ou linguagens – humanas. O sentido que

atribuímos ao mundo se expressa através dessas diferentes linguagens, que ora se

aproximam do concreto, ora do simbólico, ora da ciência, ora da arte.

Mas essa é uma visão que ainda está para ser consolidada na comunidade científica.

No final do século XIX, os cientistas chegaram a pensar que a ciência havia descoberto tudo

o que havia para saber, e que a tarefa da humanidade seria apenas a de se dedicar a

aprender a viver com aqueles conhecimentos que pareciam dar conta do mundo como um

todo. A comunidade científica e a sociedade em geral viviam sob o paradigma cartesiano

para o conhecimento, a ciência, e a educação, e sob a égide da mecânica clássica –

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objetivista, determinista, linear. A especialização – a divisão da realidade em partes cada

vez menores para permitir um estudo cada vez mais aprofundado – havia tomado conta da

prática científica e educacional, e foi como se as diferentes áreas do conhecimento tivessem

deixado de se comunicar.

Nessa perspectiva, a arte, a filosofia e a religião passavam por uma crise de sentido,

de valores e de métodos, sendo forçadas a se aproximar do paradigma científico vigente,

sob pena de perderem o estatuto de linguagens através das quais o real pudesse ser

traduzido. Foi um momento de busca de “cientificismo”, em que o positivismo lógico parecia

dar conta dessa necessidade de uma abordagem científica para as manifestações humanas.

Na Teoria da Literatura, o apogeu dessa concepção foi o Estruturalismo. Essa abordagem,

que tem suas bases nas noções de estrutura e de sistema de Saussure, parte do princípio

de que o valor de um texto literário reside não em especificidades, tais como a construção

de personagens, mas em sua estrutura (EAGLETON, 1997). Essa é uma abordagem que,

para evitar o relativismo, mergulhou na estrutura invariante subjacente ao texto, tentando

desvendar sua “mecânica”.

Isso foi às vésperas da descoberta da microfísica, que não apenas abriu todo um

novo campo – quase inesgotável – de pesquisas e estudos, como também abalou as

concepções de mundo, de natureza e de ciência que estavam estabelecidas na época.

Repentinamente, a realidade recobrou todo seu mistério e sua imprevisibilidade, e os

cientistas passaram a admitir que a ciência, por si só, não poderia dar conta da realidade. A

ultra-especialização também passou a dar mostras de suas deficiências, e o diálogo entre

os diferentes campos científicos, e também entre as diferentes formas de linguagem foi

reiniciado.

Estamos hoje vivendo essa retomada, buscando a integração do conhecimento que

foi perdida ao longo do desenvolvimento científico e tecnológico dos últimos séculos.

Temos, no entanto, a consciência de que linguagem alguma, manifestação alguma, poderá

abarcar a realidade como um todo, tamanha sua complexidade. O que buscamos é uma

complementaridade entre ciência, filosofia, arte e religião, de modo que, solidariamente,

talvez possam nos auxiliar a compreender o mundo e nós mesmos.

Somos, porém, incapazes de abarcar, em nossa compreensão, a complexidade da

realidade. Para acessá-la, necessitamos circunscrever e realçar âmbitos a serem abordados

de forma interdisciplinar. As narrativas, de globais, passam a ser locais. E temos que

aprender a lidar com essas verdades parciais que são as únicas que poderemos acessar.

A literatura, como uma das múltiplas linguagens humanas, em intenso diálogo com

diferentes áreas do conhecimento – história, psicanálise, antropologia, economia –

reassume sua posição de representação e passa a ser um instrumento de estudo e reflexão

a respeito de temas diversos. Concomitantemente, o declínio dos grandes épicos, que

abarcavam toda a história de uma civilização, abre espaço para a emergência de histórias

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locais e específicas. Assim, embora não existam grandes obras literárias capazes de

representar todo um povo, há lugar para manifestações de vozes diversas.

Na experiência educacional, é necessário que os estudantes tenham consciência da

complexidade da realidade, dos rumos do conhecimento, das diferentes linguagens e da

possibilidade de diálogo entre elas.

Uma vez que não há uma ciência que possa dar conta da realidade, é importante

que os estudantes tenham a oportunidade de conhecer e experienciar as diversas maneiras

de acessá-la. É fundamental também que possam experienciar diferentes modalidades de

expressão do conhecimento, sempre em uma perspectiva interacional e dialógica. Isso se

torna possível através da leitura dos diferentes “textos” do mundo, e dos diversos suportes

de leitura possíveis, em que as aproximações e as reflexões não passem por separações

artificiais e especificidades forçadas que acabam por reduzir e simplificar o mundo. As

delimitações de âmbitos particulares podem, e necessitam, ser feitas, porém o modo como

eles são abordados não pode ser fracionado, mas integrado.

E, considerando que não há uma realidade global, mas diversas realidades locais

que convivem e se comunicam, é importante oferecermos aos nossos estudantes a

oportunidade de experienciar as múltiplas visões de realidade, ou culturas, mesmo que em

justaposições improváveis entre o próximo e o distante, entre o tradicional e o

contemporâneo. Uma perspectiva multicultural não significa a homogeneização das

diferentes manifestações humanas, mas, ao contrário, um resgate das memórias

particulares e uma reafirmação das identidades locais, através da aproximação e da

interação com o diferente.

O protagonismo na recepção e na atribuição de sentido às leiturasNa passagem do século XIX para o XX, a Teoria da Literatura se encontrava em um

limbo, pois, como foi mencionado acima, no paradigma científico em vigor na época, não era

considerada uma ciência. O Formalismo veio a atender as exigências de um modelo

“científico” que exigia a neutralidade e a objetividade, excluindo as abordagens psicológica e

histórico-cultural e focando a forma do texto (EAGLETON, 1997). Os formalistas afirmavam

que a natureza autônoma da linguagem poética consistia na especificidade do estudo da

literatura, e se empenharam em definir um conjunto de propriedades características da

linguagem literária que tornavam redundante a noção de autoria.

O formalismo teve conseqüências importantes para a leitura e para o sentido na

literatura. Dado o risco sempre presente do impressionismo, o sentido passou a ser visto

como imanente, como contido na própria estrutura do escrito, e o leitor foi destituído do

poder de interpretar o texto com seus próprios recursos.

Sartre (1989), porém, se encarregou de devolver ao escritor o poder da expressão e

ao leitor o poder da interpretação. Em Que é a Literatura?, de 1948, ele afirma que, ao

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escrever, o autor se revela e revela o mundo a outros seres humanos. A escrita, um ato

estético intencional, é um processo de tradução e de recriação da realidade, com o qual o

leitor pactua. O leitor, no ato da leitura, colabora com o escritor nessa recriação, assumindo

a responsabilidade por sua parte no processo.

Há autores, no entanto, que discordam de Sartre. Stanley Fish (1980) concebeu a

noção de “comunidade interpretativa”, que designa um grupo integrado de sujeitos que tem

o poder de produzir consenso a respeito do sentido atribuído a um texto. A partir dessa

noção, tanto o autor quanto o leitor são privados da faculdade de interpretação, que passa a

pertencer a uma compreensão compartilhada. Isso ocorre não porque o sentido emana do

texto, como sugeria o formalismo, mas porque há um conjunto finito de regras e estratégias

de interpretação aceitas e compartidas em uma comunidade. Para Fish, a interpretação é

um jogo, cujo resultado é uma estabilidade de significados, e que permite a

comunicabilidade, a reciprocidade e a simultaneidade de interpretações.

Para o autor, então, uma comunidade interpretativa aborda um texto conforme a

história, os valores e as normas daquela comunidade. Os significados atribuídos ao texto

são acordados, e os posicionamentos dissonantes tendem a ser exceções. Isso significa

que o fato de pertencermos a uma comunidade faz com que realizemos leituras e reflexões

mais como parte desse grupo do que como indivíduos.

Nesse jogo de relações que estabelecemos com os outros sujeitos, há um processo

permanente de construção e de dissolução da subjetividade, e corremos sempre, mais do

que imaginamos, o risco de ficarmos muito semelhantes a todos os de nosso grupo. Por

outro lado, nossa capacidade de tomarmos ciência de quem somos, de nossa subjetividade

e de nossa identidade, depende, em grande parte, de estarmos cônscios dos grupos por

onde transitamos.

Mas, como podemos, no seio de uma comunidade, ultrapassar a barreira do que já

foi ou do que é repetidamente dito, para chegarmos a compreensões novas, nossas? Nossa

busca é pela singularidade, ou seja, por um fio interpretativo que não seja totalmente

compartilhado com nosso grupo. A singularidade não significa a diferença total e absoluta,

mas um traço que nos distingue em nossa busca de sentido, em nossa interpretação de

enunciados e em nossa elaboração a partir deles. A singularidade é um olhar particular e

original, a possibilidade de um insight pessoal, mesmo que dentro das regras e das

estratégias interpretativas da comunidade.

A atribuição pessoal de sentido a uma leitura ocorre através de uma eleição feita

dentre uma certa gama de possibilidades. Quando começamos a realizar leituras singulares

e a delimitar, em nosso acervo de leituras, um âmbito de sentidos que é nosso,

estabelecemos uma teia pessoal de acepções através da qual começamos a filtrar nossos

novos conhecimentos, modificando tanto a teia quanto o modo como vemos a realidade. O

objetivo da leitura não é, como afirmava o formalismo, encontrar o sentido implícito no texto,

Page 12: Por Uma Leitura Transformadora

mas perceber os sentidos que ele pode assumir para nós e para nossa comunidade.

Embora alguns críticos (PERRONE-MOISÉS, 1998) temam o relativismo de uma

abordagem tão pessoal e parcial, é possível aliarmos a singularidade à consistência na

argumentação e mesmo à solidez teórica.

Holliday (2002), ao responder as críticas a respeito da carência de exatidão científica

e da impossibilidade de generalização na pesquisa qualitativa – um tipo de investigação

essencialmente personalista – afirma que, mesmo que levemos em conta a natureza aberta

e subjetiva desse tipo de estudo, é possível alcançar o rigor que é essencial à cientificidade.

O autor afirma que esse rigor reside, em grande parte, no modo como o estudo é relatado.

Ele recomenda, então, que a narrativa de um estudo qualitativo explicite de modo detalhado

seu passo-a-passo, as estratégias selecionadas e as justificativas para cada escolha.

O mesmo pode ser afirmado a respeito da leitura. Os significados atribuídos a um

texto são fundamentalmente pessoais e não podem ser generalizados. Não poderíamos

exigir da leitura qualquer tipo de rigor científico stricto sensu. Mas, ao estimularmos que os

estudantes expressem suas compreensões, identifiquem e justifiquem suas eleições e, por

fim, busquem apoio para elas em obras já consagradas, estamos nos aproximando do que

Holliday define como cientificidade.

No ambiente escolar, portanto, podemos oferecer a nossos estudantes a

oportunidade de interpretações próprias e compartilhadas a partir da leitura de diferences

tipos de textos, estimulando-os a realizar elaborações pessoais, desde que lhes exijamos

que legitimem suas eleições e posicionamentos, e que produzam argumentos substanciais

que fundamentem sua atribuição de sentido.

O domínio de recursos de expressão e de comunicação das leituras, e a reflexão a respeito das repercussões da própria produção

Em O Prazer do Texto (1977) Roland Barthes afirma que há livros legíveis e livros

escrevíveis. Enquanto há textos que lemos e esquecemos (os que são meramente legíveis),

há os que nos provocam a refletir, falar, escrever, produzir (esses são os escrevíveis). Um

texto assume por completo seu papel no mundo quando, diante dele, o leitor se sente

compelido a se posicionar, a realizar elaborações próprias e, especialmente, a comunicá-

las.

Um leitor maduro – aquele que é seguro de seu domínio sobre as linguagens, de

posse de seu próprio discurso, de sua subjetividade, de sua memória e de um acervo de

leituras que lhe permite dialogar com um novo texto – que atingiu uma interpretação singular

se sente impulsionado a comunicar sua leitura. Para que ele seja capaz disso, deve dominar

também os diferentes recursos de expressão.

Embora essa manifestação seja possível através da oralidade, a escrita é uma

prática de concretização dos pensamentos, que permite o ordenamento da linguagem e a

Page 13: Por Uma Leitura Transformadora

permanência da comunicação. Registramos para organizar e para preservar nossas

reflexões A escrita permite que nossas elaborações nos transcendam espacial e

temporalmente. Segundo Bárbara Tuchman (1991), o ato da escritura é acompanhado do

desejo de ser lido. Nenhum texto vive, diz a autora, a não ser que seu autor vislumbre o

leitor. No entanto, no momento em que cometemos o ato da escrita, perdemos a autoridade

sobre nosso texto. As palavras detêm certa autonomia, um poder de evocar no leitor

imagens e sentidos sobre o qual o escritor não tem domínio. O texto parece rígido e fixo,

mas o é apenas aparentemente. Ele apresenta aberturas de diferentes naturezas que dão

espaço para as mais impensadas interpretações.

Desse modo, tanto a produção de um autor – que é, primordialmente, um leitor –

quanto a resposta de um leitor demandam responsabilidade, e a responsabilidade de um se

imbrica na do outro. A palavra “responsabilidade”, aqui, assume o significado de “obrigação

de responder pelas próprias ações”, o que tem consideráveis implicações. No momento em

que o leitor assume essa responsabilidade, ou seja, passa a responder por suas leituras, ele

passa de observador a construtor da realidade.

O construtivismo radical, uma perspectiva essencialmente pragmática para a

compreensão da realidade, propõe uma concepção de conhecimento cujo objeto e

fundamento não é a verdade metafísica – pré-existente e exterior ao sujeito cognoscente –

mas a construção subjetiva que fazemos a partir de nossa experiência. Ernst von

Glasersfeld (1996), o principal estudioso dessa teoria do conhecimento, propõe que nada

podemos saber ou afirmar a respeito de uma realidade que se estrutura independentemente

de nós. A única realidade que podemos conhecer é aquela que nós próprios concebemos, a

que nós construímos ao tentarmos atribuir sentido para nossas experiências. Se, portanto,

assumimos que construímos a realidade em nosso esforço por compreendê-la, é importante

que pensemos nas repercussões éticas dessa abordagem.

Não somos observadores da realidade. Ela não está fora de nós. Somos

responsáveis por sua própria existência. As leituras – do mundo e de todos os tipos de

textos que nele estão – que realizamos, as escolhas que fazemos, nosso modo de atuar e

de interferir no modo como os outros atuam é a única realidade que existe para nós, a única

a respeito da qual podemos refletir, teorizar, imaginar, criar. Somos, desse modo, seus

únicos agentes. Em última instância, nossas leituras constróem a realidade.

Ler é fazer. Ler é ser, é ser com outros, é conhecer, é integrar, é participar, é mudar.

Só podemos assumir nosso papel de agentes quando aprendemos a ler o mundo, quando

passamos a atribuir sentido a ele, quando começamos a construí-lo no próprio processo de

apreendê-lo. Cada um de nós que deixa de ler a realidade delega a outro que o faz – de seu

modo – a responsabilidade por essa construção. Estar no mundo plenamente pressupõe a

disposição para essa leitura compreensiva, reflexiva, transformadora, a leitura que faz o

mundo no gesto de contemplá-lo.

Page 14: Por Uma Leitura Transformadora

A releitura da proposta para um programa continuado de formação de leitores da

professora Eliana Yunes apresentada neste trabalho não aponta para soluções globais, ou

mesmo regionais, para o problema da leitura no contexto escolar. Temos consciência da

complexidade de nossa realidade e da especificidade de cada contexto, e sabemos hoje que

não há uma verdade a ser buscada. O que existem são validades locais, que são

adequadas para comunidades interpretativas e subjetividades peculiares. Cada educador,

assim, deverá buscar essas validades. Apesar disso, há algumas proposições que podem

ser assumidas por cada um de nós.

A primeira delas é a necessidade de romper com a tradição escolar da leitura

mecânica, sem uma significação que vá além do ato de ler em si, sem vínculos com a

realidade ou com o leitor. A leitura de textos de todos os tipos deve ser um processo de

descoberta de si e de desvendamento do mundo, deve ser uma aventura, deve significar

ludicidade, comprometimento e transformação. O que deve ser fomentado na escola não é o

hábito de ler. Isso não é o suficiente, isso não muda a realidade. O que deve ser gerado é o

prazer de ler, o deleite de compreender, o desejo de comunicar e, não podemos esquecer, a

consciência do poder de transformar que emana do ato de ler.

A segunda proposição é o reconhecimento da importância e da necessidade do

posicionamento, da responsabilidade e da crítica diante dos textos e da realidade. Um texto

jamais é uma manifestação neutra ou ingênua. Quem escreve, o faz a partir de um lugar,

defendendo uma posição e uma visão, esperando que elas sejam aceitas e difundidas. A

leitura crítica exige o distanciamento que permite reconhecer o agente que se coloca através

do texto, de onde ele fala, o que ele prega, e porque o faz. Conscientes disso, podemos nos

posicionar criticamente em relação à sua mensagem.

O papel da crítica não é a censura ou a depreciação, mas o discernimento. Um

posicionamento crítico é necessário para que alcancemos patamares de compreensão para

além do que é dado em nossa comunidade interpretativa. A crítica é necessária para a

desmistificação do que parece inabalável, desmistificação sem a qual a transformação não

pode ocorrer.

Vivemos hoje uma grande crise de paradigmas. Os valores burgueses que vêm nos

regendo desde o final do século XIX parecem estar se esgotando, sem que saibamos ao

certo como substituí-los. Sabemos que a própria civilização necessita ser repensada, com

urgência (BOFF, 2001). Para que possamos dar saltos qualitativos em relação à realidade

presente, precisamos conhecê-la e lê-la criticamente. E nesse processo, o papel do

professor como mediador da leitura se torna essencial.

Neste ponto, podemos trazer a terceira proposição, que é o reconhecimento do papel

e da responsabilidade dos professores – e não apenas de língua portuguesa e de literatura

– na formação de leitores maduros, críticos e atuantes. Para que a leitura assuma um papel

verdadeiramente transformador na escola, o professor deve se tornar um leitor-mediador,

Page 15: Por Uma Leitura Transformadora

fazendo uma seleção de textos que seja adequada à realidade de seus leitores,

sensibilizando os estudantes para a abordagem do texto, mediando as discussões e

sistematizando as compreensões alcançadas.

E, para que isso ocorra, o educador, ele mesmo, deve ser um leitor, capaz de

estabelecer suas próprias relações e realizar suas elaborações a partir da leitura, e também

de entender como esses processos ocorrem, para poder assim compreender o que se

passa com os educandos em seu momento de leitura. Se o professor não for um leitor, não

realizará um trabalho transformador mesmo que receba um roteiro de trabalho detalhada e

cuidadosamente planejado para seguir. Por outro lado, se o educador for um leitor

apaixonado, ele comunicará a seus estudantes seu amor e entusiasmo pelos textos e pela

leitura, contaminando-os através do exemplo.

Piaget (2000) considera que, embora a motivação seja um fator essencial no

processo de aprendizagem, não é possível motivarmos os outros, pois essa é uma

construção pessoal e interior. Assim, por mais arrebatado que um educador seja a respeito

da leitura, ele não pode motivar seus estudantes a gostar de ler. Ele pode, no entanto,

demonstrar sua motivação e seu entusiasmo, contaminar seus jovens pupilos através do

exemplo.

O professor, segundo Eliana Yunes, faz mais do que divulgar conceitos, idéias e

conhecimentos já consagrados pela história da humanidade. Através de suas palavras e de

seus gestos, ele professa, mesmo sem querer, suas próprias crenças em um modo de vida5.

Esses ensinamentos, que são mais sutis, são internalizados quase inconscientemente pelos

estudantes. Ser educador é uma atividade comprometedora, pois esse é um trabalho que

não termina ao final de cada período, de cada semestre ou de cada ano. A influência de

seus ensinamentos, assim como os efeitos de um texto, pode perdurar nos corações e

mentes de seus estudantes por toda a vida. Desse modo, cada professor deve procurar

estar consciente de seus valores e convicções, e do poder que detém sobre seus

educandos, para que seu trabalho tenha a intencionalidade que é tão necessária em um

processo educacional transformador.

Por último, é importante ressaltar que os educadores que trabalham com leitura e

formação de leitores devem ter o direito e devem ser capazes de buscar práticas

inovadoras, e também de defender sua atuação, com base em suas leituras da realidade e

dos conhecimentos já consolidados. E têm também o dever de registrar suas reflexões,

contribuindo para a memória e para o conhecimento de sua comunidade. A teoria não é um

conjunto de dogmas e de doutrinas que deve nos guiar a cada passo, mas a sistematização

do olhar reflexivo lançado sobre a realidade. E a teoria necessita ser gestada no interior de

5 Informação verbal disponibilizada pela professora Eliana Yunes em exposição realizada no dia 31 de junho de 2007 no curso Por uma Teoria da Leitura para o Doutorado em Letras no Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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cada educador. Lembremos que esse é o objetivo último da leitura: nos permitir

compreender, repensar e recriar nosso mundo, a cada dia.

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