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JAIME NOGUEIRA PINTO PORTUGAL: ASCENSÃO E QUEDA Ideias e Políticas de Uma Nação Singular Com a colaboração de INÊS PINTO BASTO

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J A I M E N O G U E I R A P I N T O

P O R T U G A L : A S C E N S Ã O E Q U E D A

I d e i a s e P o l í t i c a s d e U m a N a ç ã o S i n g u l a r

Com a colaboração deI N Ê S P I N T O B A S T O

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Í N D I C E

I. Ascensão e Queda II. Da Fundação à Primeira Crise III. Os Caminhos do Mar Oriente IV. Maquiavel em Portugal V. Sebastianismo: Derrota, Sujeição e MitoVI. O Déspota LusitanoVII. Portugal e a RevoluçãoVIII. A Partilha de ÁfricaIX. A República Jacobina X. A República Autoritária XI. Portugal na Guerra de Espanha XII. Orgulhosamente Neutros XIII. Um Império Contra as Nações Unidas XIV. Da Última Revolução à Última Crise

Notas

Índice Onomástico

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115125137145153183193209237

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A decadência no OcidenteA consciência do tempo histórico como um tempo de ascen-

são e queda, um tempo de sucessivas mudanças de mentalidades e formas de governo, surge no Livro de Daniel com o sonho de Nabucodonosor e depois na obra de Políbio. Na senda de Aristó-teles e de Platão, Políbio refere-se ao ciclo dos regimes políticos (anacyclosis) mais do que à ascensão e queda das comunidades, mas não deixa de confrontar as causas da degeneração das instituições, dos costumes e dos povos.

-nidade pós-republicana, não faltam também referências à decadên-cia imperial, à alteração dos costumes e à perda de valores. Santo Agostinho, no século IV, retoma o tema.

Mas só em Leonardo Bruni (1369-1444) encontramos a ideia mo-derna de decadência ou de declínio de um Império, de um Estado,

papas, é Bruni quem primeiro se refere à decadência como vacilatio,

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a propósito da crise do Império Romano. No século XV, um outro humanista, Flavio Biondo (1392-1463), dedicado ao estudo da an-

-pico da decadência em Historiarum ab Inclinatione Romanorum Imperii Decades, optando pelo termo inclinatio.

Montesquieu (1689-1755), com as Considérations sur les causes de la grandeur des romains et de leur décadence, e Gibbon (1737-1794), com Decline and Fall of the Roman Empire, publicado em seis volumes en-tre 1766 e 1788, vêm depois consolidar os conceitos de grandeza e decadência, de ascensão e queda dos impérios. Vão fazê-lo através da observação das características dos dois estádios – o alto e o bai-xo – e da análise, por vezes polémica, das causas da mudança ou

-los e continuadores.

O modelo é sempre o Império Romano e é sobre ele que es-crevem historiadores e pensadores como Ernest Renan, Georges Sorel e Ferdinand Lot, já nos séculos XIX e XX. É, no entanto, em 1918, com a publicação do primeiro volume de Der Untergang des Abend landes (A Decadência do Ocidente), de Oswald Spengler, que o tema assume a sua forma contemporânea.1

A Decadência do Ocidente, cujo segundo volume sairia em 1923, foi, à partida, uma obra polémica. Para os primeiros críticos, o livro era metafísico, dogmático e determinístico, não podendo, portanto,

e académicos, apesar da enorme erudição demonstrada.2

Spengler trazia novidades, e algumas de choque, contrariando

-senvolvimento cultural, técnico e até moral, vinha do cristianismo,

-da Vinda, e laicizara-se com o Iluminismo europeu, dos enciclo-

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atacava noutro sentido a universalidade da ideia: não nos devía-mos centrar no Ocidente como se este detivesse o monopólio da civilização; as civilizações eram múltiplas e plurais – começavam

-vas, passavam depois a civilizações, atingiam o apogeu, iniciavam a queda e morriam. Outra ideia-chave do livro era a de que, não ape-nas em Roma mas noutras civilizações, o processo de decadência

o aparecimento do cesarismo, do homem providencial e salvador, que detinha ou invertia a marcha para o abismo. Era o césar, o he-

dos grandes e patrícios, parava o inimigo externo e disciplinava a anarquia dos demagogos.

Eram ideias fáceis e férteis nesses anos 20 europeus, em que um césar revolucionário despontava na Rússia bolchevique e outro na Itália fascista, e em que pela Europa fora, da Polónia e dos Balcãs à Península Ibérica, apareciam ditadores militares. Também na Ale-manha derrotada, humilhada pelo Diktaat de Versailles, se esperava por alguém assim.

O editor vienense do livro de Spengler, Braumüller, começara por uma edição modesta, mas a relativa impopularidade da obra duraria pouco. Em 1926 o livro tinha já vendido mais de cem mil exemplares na Alemanha e fora traduzido nas principais línguas

políticos e militares. F. Scott Fitzgerald declarou ter lido A Decadência no tempo em

que escrevia The Great Gatsby, e o seu vilão, Tom Buchanan, aparece como alguém que, pela primeira vez na vida, se deixa deprimir por um livro: The Rise of the Colored Empires. Buchanan, de um tal Goddard, antevê a queda da raça branca e da civilização ocidental e a ascensão de outras raças e impérios.3 Pou-

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co depois, Evelyn Waugh também evoca Spengler no título de uma Decline and Fall.

A Decadência do Ocidente integrava-se numa tendência generalizada mas traduzia também a circunstância particular da Alemanha der-rotada pelos anglo-saxões e pela França. O pessimismo do autor

-cionária e a dissolução dos costumes. Mais tarde, em Anos Decisivos (publicado em 1933), Spengler desenvolveria a tese do cesarismo.

apesar dos paralelos teóricos e práticos, não o consagrariam como maître-à-penser. Nem tão-pouco Spengler, que morreria em 1936, se poderia rever neles.

A decadência, a partir do topo da ascensão e como processo e caminho da queda, volta ao Ocidente depois da Segunda Guerra Mundial, ecoando o recuo de uma Europa dividida entre Leste e

-doras. Sofrendo a perda dos impérios coloniais ultramarinos e um

esta Europa confrontava-se com a ascensão rápida e poderosa dos impérios soviético e americano, sobretudo a partir de 1945. Daí em diante, a supremacia americana em relação à velha Europa seria um tópico constante entre a intelectualidade europeia, como no famo-so best-seller francês dos anos 60 , de Jean-Jacques Servan-Schreiber.

Mais recentemente, Paul Kennedy (The Rise and Fall of the Great Powers, 1987) e Niall Ferguson (Colossus: The Rise and Fall of the Ame-rican Empire, 2004) centrar-se-iam no que passara também a consi-derar-se a rápida ascensão e queda do império americano. Ferguson, que em 2002 escrevera já um volume para o caso britânico (Empire, the Rise and Demise of the British World Order and the Lessons for Global Power), volta ao tema da queda do Ocidente no seu livro mais re-

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cente: The Great Degeneration: How Institutions Decay and Economies Die (2012).4 A decadência do Ocidente euro-americano é aqui analisada

-são de novos poderes. Os sintomas do declínio são a desacelera-ção do crescimento económico, a escalada das dívidas nacionais, o envelhecimento da população e a generalização de comportamen-tos anti-sociais.

Não estamos longe daquilo a que Montesquieu, Gibbon ou, mais tarde, Rostovtzeff apontaram como as causas da decadên-cia de Roma e do Mundo Antigo. Em 1500, argumenta Ferguson, o Ocidente tinha um nível de vida e de riqueza equivalente ao do resto do mundo, nível esse que, quinhentos anos depois, seria vin-te vezes superior.

É este mesmo Ocidente que agora se encontra em declínio, em curva descendente, em processo de degeneração. E essa degenera-ção, defende Ferguson, é indissociável da corrupção das instituições ocidentais: governo representativo, mercado livre, sociedade civil e império da lei. A degradação destas instituições explica a decadên-cia e a perda relativa em poder nacional e económico do Ocidente para poderes emergentes como a China e os outros BRICs – Bra-sil, Rússia e Índia.

O ciclo portuguêsEm Portugal, o caminho para a ascensão, a aventura das Desco-

bertas que levaria à expansão ultramarina e ao Império, foi desde logo visto por muitos como causa da degenerescência dos antigos costumes do reino, abrindo uma divisão no poder e na nação. Além

-cos da corrupção que as especiarias e os ouros das Índias trariam. Gil Vicente e Sá de Miranda falaram por todos e Camões sentiu-se obrigado a dar voz aos cépticos, com o Velho do Restelo.

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Alguns têm querido ver no Velho do Restelo, não apenas a voz de uma corrente que se opunha à expansão, mas o endosso, pelo próprio Camões, dessas críticas, como se o poeta estivesse, num episódio do poema, a contradizer-se, negando toda a gesta canta-da. A corrente a que Camões dá voz com o Velho do Restelo é im-portante e está bem expressa, por exemplo, em Sá de Miranda, na «Carta a António Pereira, Senhor de Basto». A expansão não é vis-ta como uma forma de garantir e reforçar a independência e a ri-queza do país, mas, ao contrário, como uma hemorragia de gente e de recursos que desvirtua o reino, sujeitando Portugal à corrupção dos próprios portugueses e à cobiça dos estranhos.5

Também pode encontrar-se no famoso Velho uma crítica à aventura oriental, em detrimento da cruzada e guerra de Marrocos:

Deixas criar às portas o inimigo por ires buscar outro de tão longe, por quem se despovoe o Reino antigo se enfraqueça e se vá deitando a longe; buscas o incerto e incógnito perigo por que a Fama te exalte e te lisonje Chamando-te senhor com larga cópia Da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia .6

Camões descreve o debate e a polémica de então e dá voz aos que viam na expansão para longes terras um perigo para a iden-tidade e independência do Reino, indo ao ponto de expor a am-bição e a vanglória do rei de Portugal nos seus títulos de senhor do Oriente.

Os custos da epopeia estão também nos clássicos de Diogo do Couto e Gaspar Correia, bem como na tradição das histórias de nau-frágios, anteriores e posteriores à História Trágico-Marítima, de Bernar-

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rigorosos dos navios da Carreira das Índias, os desastres e naufrá-gios ocorridos no regresso do Oriente eram conhecidos, e o poeta não deixa também de dar conta deles, como no episódio do nau-frágio de Sepúlveda.7

A par das preocupações e motivações iniciais – combater o Is-lão e chegar à Índia e às rotas das especiarias – e apesar dos custos humanos e materiais das navegações, houve sempre em Portugal a consciência explícita ou implícita de que eram as áreas de expansão que asseguravam, em termos territoriais, políticos e económicos, o equilíbrio em relação a Espanha, isto é, que nos garantiam a inde-pendência. Assim, enquanto para romanos, espanhóis, ingleses e americanos o Império implicou uma ambição de hegemonia mun-dial, para nós teve um carácter defensivo. Daqui deriva a relação especial com os espaços de expansão, que constitui a singularidade

Também por isto, a questão da decadência em Portugal nunca se confrontou com os problemas e as lições da decadência de um grande Império da Antiguidade, como o Império Romano. Nem tal faria sentido. O império português durou, no seu apogeu, um século a século e meio – entre Ceuta, em 1415, e a morte de Albu-querque, em 1515, ou entre Ceuta e a perda da independência, em 1580. E foi um império marítimo e comercial, com uma projecção maior na medida em que, no século XVI, com possessões em três continentes e esquadras em três oceanos, a sua dimensão ultrama-rina contrastava com a exiguidade da metrópole.

-clínio do Império do Oriente. O Soldado Prático, de Diogo do Cou-to, é uma espécie de advogado do Diabo das glórias lusitanas e na Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, as peripécias da gesta portu-guesa chegam-nos numa admirável narrativa épico-pícara.

Camões não deixa de referir, no epílogo de Os Lusíadas, a «apagada

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e vil tristeza» de um reino de «gente surda e endurecida» que des-merece os que «ledos vão» pelas «várias vias» do Império.8

Assim, o tema da decadência e da ascensão e queda do Império atendeu, entre nós, às voltas cíclicas, aos altos e baixos do poder nacional, como garantia da liberdade e da independência do Estado

uma estratégia defensiva contra a absorção, primeiro por Castela e depois por Espanha. A extensão da soberania das terras do rei e do Reino, o controlo de rotas marítimas e comerciais no Atlântico

-vam o poder nacional português na Península.

de riscos, com ciclos de ascensão e queda cada vez mais apertados. Não tem, na sua versão imperial, nada que ver com a projecção do poder hegemónico da Espanha dos Áustrias no século XVII, ou da Grã-Bretanha nos séculos XVIII e XIX, ou ainda dos Estados Unidos na segunda metade do século XX.

XIX que a questão da deca-dência portuguesa em relação à Europa ganhou dimensão públi-ca. A perda do comércio do Índico e a independência do Brasil,

XIX e dos princípios do século XX -cional. Mas a sua percepção dos Descobrimentos e do Império foi quase sempre ambígua e até contraditória. Absorvendo as críticas da cultura europeia ilustrada aos impérios peninsulares – católicos e de direcção central –, esta elite cosmopolita censurava, por um lado, a invasão e opressão de outros povos e a perda de vidas e re-cursos próprios, lamentando, por outro, que não tivéssemos explo-rado bem os territórios e as populações, como os povos do norte, esses sim, verdadeiramente capitalistas e imperialistas.

A ideia de um Portugal de costas voltadas para a Europa, ou que a partir do século XVI teria abandonado a Europa em consequência da

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com Antero de Quental nas Causas da Decadência dos Povos Peninsula-resmovimento evolutivo Reforma-Ilustração-Progresso e de uma Pe-nínsula Ibérica que teria estagnado na opção contrária. A ideia foi depois desenvolvida por António Sérgio, em 1926, numa conferên-cia em Coimbra posteriormente publicada sob o título «O Reino Cadaveroso ou o Problema da Cultura em Portugal».9

Nos sucessivos prefácios ao Portugal Contemporâneo, Oliveira Mar--

nóstico moral, o que é para ele o drama insanável da nação.

francesas à Regeneração, história que vai conduzir ao seu Portugal, XIX -

lhação do Ultimato, com uma tensão dramática que lembra algu-mas passagens de Tucídides ou de Tácito ou mesmo a narrativa da tragédia isabelina. Numa linguagem de imagens orgânicas, fala em «febre» e em «epilepsia portuguesa», em «nação enlouqueci-da» e em «chaga do Reino» num país que vê «de joelhos perante o deus Fomento».10

Esta nota de extremo pessimismo estende-se a toda a Geração de Setenta e transmite-se às gerações futuras. Os seus dois pensa-dores mais profundos, Antero e o próprio Martins, ambos com raí-zes culturais no pensamento alemão, consideram a subordinação à Grã-Bretanha o grande travão à independência nacional.

Por isso, para eles, a decadência é uma decadência em relação à Europa, o declínio de um Portugal entre a absorção espanhola e a vassalagem ao inglês. Perigos e espectros que vão ditar o nos-so divórcio cultural do Continente.

As referências aos custos humanos e materiais, às injustiças e iniquidades dos poderosos, aos sacrifícios da gente humilde, aos peculatos, à corrupção e às deserções da gesta da Expansão tinham

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sido, em Camões e nos seus contemporâneos, uma descrição realista

do que de grande fora feito, apesar de todos os males. No século XIX, os autores da Geração de Setenta vão centrar-se nestes factos e episódios e dar-lhes uma interpretação decadentista: Antero criti-cará o modelo da economia do Império – o capitalismo centralista da Coroa – lamentando a ausência de uma classe mercantil de tipo holandês ou inglês; Oliveira Martins, fará comentários duríssimos sobre os portugueses da Índia:

Foram, saquearam, encheram os bolsos de dinheiro. De volta na nau abarrotada de riquezas, quando não naufragavam na terra dos negros, espalhavam por todo o reino essa semente de corrup-ção, essa fúria de gozar, esse desprezo do escrúpulo, essa ausência de toda a espécie de medo.11

Era daqui que vinham os males da cultura, da política e da eco-nomia do país. Desde o Fundador até ao rei de Boa Memória que as tarefas da garantia da independência e da preparação para a aventura das Descobertas tinham ocupado os portugueses. Depois, houvera o grande esforço das viagens e conquistas de além-mar. No século XVI, o esgotamento imperial de um império de três oceanos e três continentes, a repressão do catolicismo de Trento e da Inquisição, teriam sufocado a criatividade e originalidade do país, bloqueando a mudança. Mudança que os povos do norte, graças à Reforma, à burguesia e ao constitucionalismo precoce, tinham empreendido. E depois da formação das grandes potências continentais e da Con-ferência de Berlim, o país estava na cauda da Europa.

Eça de Queirós, nos Maias, dava voz a um país onde a civili-

Éramos iguais aos negros de São Tomé na ânsia e na ilusão de nos

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sentirmos europeus e civilizados. Mas da fala de João da Ega per-passa também, não só a autocrítica de uma elite que não era alheia a esta importação servil, censurada e usufruída entre charutos, mas uma relação singular e de incómoda proximidade com os espaços e os povos colonizados:

-suntos, estéticas, ciências, estilo, indústrias, modas, maneiras, pilhé-rias, tudo vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos caríssimo, com os direitos de Alfândega: e é em segunda mão, não

civilizados como os negros de S. Tomé se supõem cavalheiros, se supõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha

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Esta imagem de um país em segunda mão, em ruptura com a Europa ou na sua cauda, persistiu como dominante, fazendo de

para outros sem ela) um fenómeno à parte, isolado e marginaliza-do da matriz europeia. Foi um Portugal vergonhosamente só o que

poetas dos séculos XIX e XX e o que, mais tarde, durante o Estado Novo, mereceu o favor político de parte substancial da intelectua-lidade doméstica.

Para os modernistas, Portugal, sendo, como em Eça, o selva-gem da Europa, era também decadente como e com uma Europa

-mente esta duplicidade e esta excepcionalidade que lhe conferia um

recomeço do zero, que oscilava entre o espiritual e o metafísico e o

vir a ser o rosto da ressurreição da Europa decadente.

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Almada Negreiros, no Manifesto Anti-Dantas, chamara-lhe «o exí-lio dos degredados e dos indiferentes, a África reclusa dos europeus, o entulho das desvantagens e dos sobejos» e, mais tarde, «pedaço de terra ibérica que sobeja do tamanho da bandeira espanhola». Mas este Portugal «anti-higiénico» e selvagem de Almada, desprezível resto de tudo, até de Espanha, fora já, no seu apogeu, a pátria «dos modernistas da expansão europeia» e podia, hipoteticamente (ou só esteticamente) e depois de devidamente expurgado, voltar a dar novos mundos a uma Europa em falência.13

No Ultimatum de Álvaro de Campos, assistíamos à «falência total de tudo por causa de todos e de todos por causa de tudo»: Portugal era decadente em relação à civilização ocidental, mas era também decadente como e com ela. Na Mensagem de Pessoa, é de uma Eu-

ocidental do Continente, de cauda, passa a rosto, olhar esfíngico a

simultaneamente a ascensão passada, o império material, e a ressur-reição futura, o império espiritual, expressão última das Descobertas.

Mensagem, um caminho de ascensão até às Descobertas, até ao apogeu, até ao momento em que surge o Infante («O único imperador que tem deveras,/O globo mun-do em sua mão») e em que se vê «A terra inteira, de repente/Sur-gir redonda do azul profundo». Assim, D. Tareja é «mãe de Reis e avó de impérios», D. Dinis, «plantador de naus a haver», D. Filipa

-reira o que «ergue a luz da espada para a estrada se ver». Depois de Alcácer-Quibir, vem um longo tempo sebástico, de dependência, de decadência, de nevoeiro, de espera. A «apagada e vil tristeza» do Portugal de Camões é, no presente de Pessoa, «fulgor baço de ter-ra a entristecer», em que «ninguém conhece que alma tem». Mas Portugal, tendo conhecido o apogeu, o vislumbre pioneiro da terra inteira que lhe permitiu sobreviver no Velho Continente e dar-lhe

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novos mundos, viverá sempre com uma «ânsia distante» que «per-to chora». O pessoano «desejar poder querer» é o vago desejo que antecede a vontade nacional, uma ânsia distante fundada na me-mória da glória passada e de olhos postos na chegada de uma qual-quer hora futura que volte a empurrar a nação para outros longes.14

Foi sempre na Europa – e no extremo da Europa –, em reais ou supostas retaguardas e vanguardas, que Portugal viveu os seus vários desfasamentos, as suas várias solidões vergonhosas ou orgulhosas: ora dominado por ela e copiando servil ou caricaturalmente o que

indissociável dos espaços ultramarinos.

Aqui, onde a Europa acaba e o mar começa

europeia.Não fomos uma espécie de Rússia exótica do Extremo-Ociden-

te, isolada e separada pelos Pirenéus e pela Espanha dos proble-mas, das tensões, das novidades e das soluções europeias que aqui nos foram chegando. Vivemos na Europa muito antes de 1986 e das presentes venturas e desventuras da União e da Moeda Única.

Para o bem e para o mal, estivemos na Europa desde que os

Lisboa com a sua experiência militar e as suas máquinas de assédio.Mas se a história das ideias e das formas de civilização em Por-

tugal é paralela à da Europa Ocidental, há sinais de desfasamento, quer de atraso, quer de pioneirismo, em matéria de ideias e de ins-tituições políticas.

Esta diferença cultural e política e esta assincronia devem-se, so-bretudo, à especial relação com os espaços de além-mar e à política

de Madrid, as lideranças nacionais optaram por criar e manter uma

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relação privilegiada com a Grã-Bretanha, que teve como contra-partida a dependência económica e que, no século XIX, nos trouxe também uma forte dependência política.

XIV, com a crise de 1383-1385, vemos em avant-la-lettre, quando par-

te do país contestou o herdeiro legal do trono, D. João de Castela,

nacionalismo precoce, como consciência de um destino político e da necessidade de defesa da identidade e da independência daí de-correntes, só muito mais tarde apareceria no resto da Europa.

Pelo contrário, temos, até 1974-75, a persistência de institui-ções autoritárias e de um império ultramarino, quando tais insti-tuições e impérios tinham já desaparecido da Europa Ocidental.

eram interdependentes e, na segunda metade do século XX, a ma-nutenção dos territórios de além-mar na soberania portuguesa foi considerada pelos governantes do Estado Novo incompatível com soluções democráticas.

No reinado de D. Manuel I (1497-1521), o regime económico das Descobertas foi o chamado capitalismo da Coroa, um dirigis-mo tributário que coincidiu com o apogeu do Império. Ao Rei Ven-

o Piedoso, que, por ter sido o introdutor da Inquisição em Portugal e um adepto fervoroso da Contra-Reforma tridentina, se tornou um símbolo conveniente do início da decadência, até porque foi também no seu reinado que se deu a primeira contracção imperial, com o abandono de algumas praças de Marrocos.

Será também por causa de Marrocos que D. Sebastião partirá para a sua jornada de África, que acabará em Alcácer-Quibir, a 4 de Agosto de 1578, deixando o trono vago. Este gesto de um rei cavaleiro, esgotado há muito na Europa o tempo das Cruzadas, irá, pelo modo da gesta e pelo seu desfecho trágico, inspirar um mito e

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uma tradição singulares. Um mito que animará a resistência nacio-nal aos Filipes e perdurará como tradição política e cultural, reno-vando-se em horas de crise.

A partir de 1580, a União Real com Espanha trouxe para o impé-rio ultramarino altos custos, já que os inimigos de Madrid, holande-ses, ingleses e franceses, nos foram atacando e pilhando fortalezas, navios e mercados, no Brasil, em África e no Extremo-Oriente.

A Restauração marcou uma reacção à decadência e a recupera-ção de uma estratégia nacional que levou à reconquista de Angola e do Brasil aos holandeses e à paz vitoriosa com Espanha de 1668. A partir daqui, e apesar de o iberismo estar sempre latente de um e do outro lado da fronteira, acordando, cá e lá, nos momentos de desencanto, a capitulação portuguesa perante o vizinho não volta-ria a repetir-se.

Esta singularidade nacional em relação às terras de descoberta e conquista não afectou, quanto às ideias e às ideias políticas, a in-tegração de Portugal no espírito e na prática da Europa, sobretudo a partir do moderno sistema de Estados, inaugurado em Vestfália.

O país foi vivendo os acontecimentos políticos e militares do -

co-britânicos do século XVIII, que apanharam a euforia do ouro brasileiro com D. João V e o consulado de Pombal, as guerras da Revolução e do Império napoleónico. A partir do século XIX, tal como o resto da Europa, Portugal conheceu as novidades ideoló-gicas e institucionais das revoluções e constituições liberais, sobre-tudo as vindas de França e de Espanha.

Sob o pano de fundo das Invasões Francesas, vivemos as polémi-cas europeias, a partir de uma periferia economicamente dependente da Grã-Bretanha. Assistimos ao duelo entre as forças revolucioná-rias ou progressistas – liberais, constitucionalistas, inimigas da mo-

as de um Portugal contra-revolucionário – tradicionalista, católico

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-tricida na casa de Bragança, entre D. Pedro e D. Miguel, e veio a radicalizar-se e a resolver-se na guerra civil de 1828-1834. Encon-

legitimista e descentralizador e o liberalismo isabelino e centralista de Madrid, e em França, na luta entre o ramo tradicionalista dos Bourbon, der-rubado em 1830, e o ramo dos Orleães, liberal, triunfante com Luís Filipe e a monarquia de Julho.

No campo das ideias políticas, o século XIX português acompa-nhou as vicissitudes europeias: o ciclo polémico revolução, contra--revolução e vitória do constitucionalismo liberal; o tempo dos golpes militares e das guerras civis de baixa intensidade do liberalismo con-vulsivo; o triunfo da nova classe burguesa e das suas políticas de me-lhoramentos públicos e de fomento com a Regeneração, o fontismo e os caminhos-de-ferro; e a contestação do regime monárquico pelo republicanismo, expressão da radicalidade possível. De França e de

argumentação. Se a retórica dos liberais foi fortemente inspirada na revolução de Paris – e a chancela de «estrangeirados» ou «afran-cesados», dada pelos adversários, mostrava-o bem –, os teóricos e os

-tismo e familiaridade com os seus homólogos franceses.15

A modernidade que nos chegou prende-se com a internaciona--

cionárias e napoleónicas atingiram Portugal no princípio do século XIX de vários modos, quer na Península, como testa-de-ponte e ponto de partida da reconquista dos ingleses contra o centro na-poleónico, quer com a saída de D. João VI e da corte para o Brasil, decisão apoiada por Londres e só possível graças à esquadra britâ-nica. Mas também houve manifestações ideológicas e políticas dos «afrancesados», desde os voluntários que integraram os exércitos napoleónicos, aos episódios anteriormente protagonizados por

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Leonor da Fonseca Pimentel e por outros portugueses na revolução de Nápoles, onde foram vítimas da contra-revolução, capitaneada pelo cardeal Rufo. Depois de ocupar Portugal em 1808 e seguin-do instruções de Napoleão para desarmar completamente o país, Junot organizou uma Legião Portuguesa onde juntou os efectivos militares nacionais num corpo de 9000 homens, comandados pelo marquês de Alorna, força que participou nas campanhas napoleó-nicas em Espanha e na Europa. Apesar do carácter compulsório desta unidade, o que levou a numerosas deserções, pode dizer-se

com o internacionalismo napoleónico. Até porque Portugal estava em guerra com a França desde 1808.16

Logo a seguir ao Congresso de Viena, que determina doutrinária e politicamente a idade da Restauração na Europa, dá-se, em 1817, o episódio da conspiração e execução de Gomes Freire de Andra-de. Mas a revolução liberal do Porto de 1820 iniciou um novo ci-clo, o das guerras civis, que só terminou em 1834. Este ciclo, além de ser a réplica local do confronto entre tradicionalistas e liberais,

-portantes no futuro: a oposição entre o nacional e o estrangeirado, entre a ideia de um caminho próprio e singular, de um Sonderweg lusitano, com soluções originais e mesmo exóticas para o país, e as propostas de abertura, europeização e integração modernizantes.

A história do constitucionalismo liberal também se integrou na história da Europa Ocidental contemporânea: liberalismo convulsi-vo e pretoriano (1834-1851); liberalismo estabilizado e desenvolvi-mentista (1851-1891); liberalismo instável e agonizante (1891-1910). Depois de Berlim, a política externa portuguesa deixará de enqua-drar-se nos problemas do concerto e da balança europeus, sobre os quais Garrett escreverá, para acompanhar as questões da expansão e da ocupação efectiva de África, as rivalidades das potências, a busca

-

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plará a necessidade de alianças com os grandes e a humilhação do confronto, mesmo que virtual, com as novas tecnologias militares,

--de-rosa» e do Ultimato.

Lendo os testemunhos críticos e epistolares da Geração de Se-tenta, apercebemo-nos bem do espírito do tempo: o enciclopedis-

de intelectual e tecnocrata, foi também político activo, chegando a ministro das Finanças no governo de Dias Ferreira, a sátira social de Eça de Queirós, perfeitamente cosmopolita, o utopismo trágico de Antero de Quental e os escritos de Ramalho Ortigão, que entre-tanto dará a volta para o nacionalismo conservador, mostram bem que esta elite, sediada em Lisboa, estava consciente das questões políticas e sociais da época.

Através da análise da vida política, diplomática e militar, percebe--se também que, dentro da natural periferia e dos recursos e aspira-ções de uma pequena potência perante as grandes – Grã-Bretanha, França e Alemanha –, os problemas da Europa e do mundo eram seguidos e sentidos, não só pela elite político-social, mas também

que integravam as carreiras da Administração Pública.17

Anos decisivos: o século XXOs pensadores e escritores que marcaram os portugueses do sé-

culo XIX e princípios do XX viram a classe política e o país de for-ma hipercrítica. A progressiva decadência da imagem dos políticos,

A Queda de um Anjo, de Camilo Castelo Branco, ou O Conde de Abra-nhos, de Eça de Queirós.

Depois da Conferência de Berlim e do Ultimato, um núcleo de políticos, militares, diplomatas e altos funcionários, conhecidos por

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e ocupação efectiva dos territórios ultramarinos, num esforço que terá continuidade na Primeira República.

Daqui nasce uma ideologia imperial ou colonial moderna, encarna-

Couceiro e Caldas Xavier, uma corrente que terá os seus seguidores entre os militares e civis em serviço no Ultramar. As suas linhas de acção são semelhantes às europeias, prosseguidas pelos governos, pe-

-cípios mobilizadores são a exaltação da civilização ocidental e o con-sequente imperativo de propagação da mesma, com a religião cristã

-nino à metralhadora – que permitem a ocupação e o controlo das novas áreas, e a preocupação de descrever as viagens, as terras e os

todo este espaço e na sua expressão pública, descobrimos parale-los entre os motivos portugueses e os das outras nações europeias.18

A fase terminal da Monarquia Constitucional – o reinado de D. Carlos I (1890-1908) e o brevíssimo reinado de D. Manuel II (1908-1910) – é o tempo desta acção colonial, que procura con-servar posições e espaços a despeito do choque produzido pelo Ultimato. Esta humilhação é uma das razões da perda de prestí-gio popular da monarquia. Lembre-se que o próprio hino nacional da República, A Portuguesa, nasce da reacção popular ao Ultimato.

O rei D. Carlos e os seus governos mostraram-se sensíveis às vicissitudes da balança de poder europeu e, a par da aliança britâ-nica, abalada pelas repercussões do Ultimato, procuraram manter e estreitar as ligações com outras potências, como a Alemanha e a França, cujos chefes de Estado foram recebidos em Lisboa.

A proclamação da República dá-se em 1910, quando na Europa

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a partir do periférico rastilho balcânico: a rivalidade germano-bri-tânica e o desejo de revanche francês em relação a 1870-71.

Perante a Grande Guerra, debate-se a atitude a tomar. Os re-publicanos procuram a legitimação do regime através da interven-ção ao lado do aliado britânico e da Entente. A entrada na guerra

uma Europa que, à excepção da França e da Suíça, é ainda toda

europeus, de que os Impérios Centrais representam «a reacção»,

a presença, entre os aliados, da Rússia imperial, quinta-essência dessa mesma reacção.

A questão ultramarina, sobretudo quanto a Angola e Moçam-bique, determinara há muito uma regra: Portugal não podia ter como inimigo a Grã-Bretanha, que controlava as rotas marítimas de acesso às colónias, o que fazia do Ultramar um refém da En-tente. Por outro lado, havia a vizinhança com as possessões alemãs, quer em Angola, com o Sudoeste Africano ou Damaralândia, quer em Moçambique, com o Tanganica, a África Oriental Alemã. Por isso, entre os militares, desejava-se uma intervenção em África, mas não na Europa.

O debate entre neutralistas e intervencionistas acaba por ser vencido pelos intervencionistas, apesar de os próprios ingleses não estarem interessados na entrada de Portugal na guerra. A ideia in-tervencionista, com o objectivo de projectar Portugal entre as «na-ções civilizadas», não olhou à falta de recursos e de preparação das forças militares para uma guerra já fortemente mecanizada, como a da Flandres, e a outras graves limitações, como a escassez e a ine-

19 Não é, por isso, de admirar, que a guerra tenha sido vista por

parte do exército e da opinião como a «guerra dos democráticos» e que tivessem surgido sérias dúvidas sobre a sua legitimidade e

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oportunidade, em termos de interesse nacional. A quebra nas ren-dições de tropas para a Flandres a partir da revolução sidonista, em Dezembro de 1917, é sinal deste estado de espírito.

um movimento que, não fora o assassínio do «Presidente-Rei», te-ria sido percursor dos nacionalismos populares autoritários que lhe sobrevieram, antecipando a criação do nacionalismo totalitário e justicialista que seria depois o fascismo.20

O Exército, pouco feliz com o tratamento que recebera da Re-pública, vai ser o instrumento da mudança do regime, quando este

desordem pública. Em 1926, as Forças Armadas actuarão, à parti-da, numa perspectiva quase técnica e asséptica, de derradeiros su-portes do interesse nacional posto em causa pela rua.

À ditadura militar comissarial de 1926-1933 sucedeu o Estado Novo, regime com uma ideologia nacional-conservadora, pensa-do e institucionalizado pelo professor de Coimbra que os militares

António de Oliveira Salazar não se limitará a funções técnicas e, no

para introduzir a mudança política. O regime constituído depois da ditadura quer responder à crise

interna e à crise geral da democracia europeia, pressionada pelos mo-vimentos e regimes totalitários nacionalistas (o fascismo italiano) e internacionalistas (o comunismo soviético). No Estado Novo haverá uma convergência de direitas doutrinárias e sociais, desde o Integra-lismo Lusitano e dos movimentos fascistizantes à Igreja e aos cató-licos. Internacionalmente, adopta-se uma terceira via entre as forças conservadoras europeias e anglo-saxónicas e os Estados fascistas.

A Constituição de 1933 é inspirada na tradição jusnaturalista portuguesa: todo o poder é para o Estado, mas este subordina-se à Moral e ao Direito. As instituições são híbridas e, na retórica pa-

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triótica, na manutenção da forma republicana e da separação Igre-ja-Estado, permanece o espírito do republicanismo conservador.

-da Guerra Mundial, seguem-se políticas consequentes.

A intervenção em Espanha tem uma componente ideológica de cruzada anticomunista, que dará lugar a alguma aproximação aos regimes de Roma e Berlim. Mas, ao mesmo tempo, o Estado por-tuguês mantém toda a reserva em relação a Espanha – mesmo à Espanha amiga de Franco – e não perde a forte ligação e colabo-ração com a Grã-Bretanha.

Vai ser também esta a estratégia portuguesa na Segunda Guerra, em que o governo de Lisboa equilibrará as possíveis identidades e simpatias em relação aos nacionalismos autoritários do Eixo com as razões do Estado e do Império portugueses, que impõem uma

hostilizar, o poder marítimo anglo-saxónico. Esta política, com re-

orientação do Governo, ditando soluções de «neutralidade colabo-rante». Soluções que não deixam de lembrar a prudência aristotélica ou tacitista, ou uma cristianização dos ensinamentos de Maquiavel dotada da respeitabilidade da opção consciente e bem-sucedida.

os princípios ideológicos da nova ordem mundial e da ONU. Por-tugal ia deixar de ter, para equilibrar o peso da comunidade inter-nacional, a convergência dos interesses imperiais europeus. Assim, a partir de 1954 (caso do Estado da Índia), mas sobretudo de 1961 (guerra de Angola), o país via-se isolado na defesa do seu interes-se nacional e de uma ideologia euro-africana que, para inimigos e neutros, aparecia como uma sobrevivência exótica e sem futuro. Nestas condições, a reacção patriótica de parte da população e a manutenção e reforço dos poderes do Estado autoritário não im-

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pediriam que Portugal, com um regime singular na Aliança Atlân-

A defesa, testada com sucesso no terreno durante treze anos, acabou por ceder, quando parte dos militares foi atingida por uma crise de consciência sobre a identidade e legitimidade da sua missão. A política do Estado português sucumbiu assim sob o peso da nova ideologia internacionalista, que condenava os nacionalismos das velhas nações da Europa perante os nascentes nacionalismos dos espaços asiáticos e africanos.

A revolução de Abril de 1974, na versão dos capitães do MFA e do Conselho da Revolução, teve também uma carga exótica, a contraciclo da Europa; desde logo, na própria nomenclatura ins-

Comissão Coordenadora, Conselho da Revolução eram expressões de tradição latino-americana, médio oriental e magrebina. Era tam-bém desfasado um projecto de socialismo revolucionário na Euro-pa, a dez anos de a União Soviética iniciar o desmantelamento do comunismo e a seis anos da ascensão dos governos conservadores nos países anglo-saxónicos. Na retórica ideológica dos militares ra-dicais, subsistiu, além do 25 de Novembro, a ideia de um Portugal neutralista com um modelo de revolução inspirado nos movimen-

no seu utopismo exótico, tinham ditado também a singularidade do fenómeno revolucionário português.

A partir do Thermidor de 25 de Novembro de 1975, o país saía da situação de excepção e adoptava a ideologia europeia da demo-cracia individualista e partidária, dando por terminados o império ultramarino e a revolução e passando a sua política exterior a in-tegrar-se na política dos aliados da NATO e da União Europeia.

--mundistas, o triunfo dos europeístas com a integração na Co-munidade Económica Europeia, em 1986, levaria a que a política

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política europeia.A integração foi, para a classe política portuguesa do chamado

«Arco Constitucional» – os partidos PS, PPD-PSD e CDS-PP –, um seguro de vida para a democracia instaurada. Argumentou-se que se os elementos até aí inibitórios – o regime político não de-mocrático e o império ultramarino – tinham desaparecido, nada obstaria à adesão à Europa.

Não existindo uma direita nacional no leque político-partidário, a oposição a esta opção limitou-se aos comunistas e à extrema-es-querda, internacionalistas que, por mera táctica, chegaram a invocar posições de nacionalismo e de defesa da independência nacional, uma das muitas ironias da Terceira República.

Portugal veio a integrar-se progressivamente no europeísmo, -

so momento em que a própria Europa entrava numa fase de deca-dência dourada.

Esta crise e decadência não eram de espantar numa Europa dei-xada sem dinheiro, sem impérios, sem mercados e sem poder mili-tar perante soviéticos e americanos depois de duas guerras internas de média duração e alta letalidade – em 1914-1918 e 1939-1945.

-rios e populações apareceram como vitória da coligação ociden-tal, mas vieram alterar os dados geopolíticos e geoestratégicos de uma forma que, a longo prazo, acabaria por prejudicar a cons-trução europeia.

A ameaça soviética conferia alguma unidade na resistência. Com -

lítico e económico que tinha mantido juntos os Estados europeus e os Estados Unidos.

Seguir-se-iam dez anos de mudanças numa aparente estabilidade.

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aperfeiçoamento e expansão das tecnologias digitais, a radicalização das diferenças entre ricos e pobres à escala de continentes, países e famílias. E adensava-se, sobretudo nos Balcãs, no Médio Oriente

Esta evolução relativamente contida, foi radicalmente alterada pelo ataque da Al Qaeda aos Estados Unidos, em 11 de Setembro de 2001, no primeiro ano da presidência de George W. Bush.

O Ocidente conheceu então um clima de medo apocalíptico, na certeza de que, perante o macroterrorismo suicida dos seus inimi-gos difusos, de pouco lhe serviria a superioridade tecnológica. Teria valido a pena pensar que o terrorismo seria, aqui, a única respos-ta possível, a única reacção espectável de um inimigo que se sabia tecnologicamente inferior. A globalidade da ameaça terrorista, não

os ataques bombistas em Madrid e Londres.A questão principal era saber se se tratava de uma manifesta-

ção de extremismo milenarista ou se a agenda da Al Qaeda ou da galáxia terrorista que albergava e representava era também polí-

pode-se dizer que a agenda era e é política. Isto é, que tinha e tem objectivos racionais e limitados. Talvez por isso os terroris-tas não tenham ainda recorrido às grandes ameaças que pendem sobre a humanidade – a destruição nuclear e ecológica e a mani-pulação biológica.

A coordenação defensiva funcionou na medida em que, desde o 11 de Setembro de 2001, não se repetiu nenhum atentado que se aproximasse do primeiro. As respostas americanas directas, no Afeganistão e no Iraque, tiveram resultados mistos, mas epílogos de efeitos perversos.

A Europa e a construção europeia continuaram a ser as direc-ções principais da política nacional. O eurocepticismo apenas se

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e dos partidos de extrema-esquerda e, ainda assim, por considera-ções de política interna.

A agenda eleitoral e a preocupação de manter os eleitorados sa-tisfeitos dominaram os governos do PSD e do PS nestes primeiros

-te aproveitamento dos fundos europeus, também o aproveitamen-to das vantagens iniciais do euro – muito dinheiro a taxas de juro

acabar com os sectores produtivos na agricultura e nas pescas, cum-prindo à letra o caderno de encargos eurocrático.

Brothers e da Bolsa de Nova Iorque, a Europa e o resto do mundo, contaminados pela recessão americana e suportando o peso dos seus próprios fardos, seguiram o rumo do empobrecimento eco-nómico e da crise social.

Em Portugal, como noutros países do sul da Europa, a crise levou progressivamente ao endividamento galopante, à baixa dos ratings e

da dívida pública subiram.Em Maio de 2011, ainda no governo de José Sócrates, a Troika

-sámos a viver sob tutela económica e com os horizontes de escolha política limitados, acentuando-se a nossa decadência em relação a uma Europa decadente.

Nos anos trinta do século passado, Fernando Pessoa, numa das -

guês. Do império material – o do Índico dominado pelas naus dos Gamas, Almeidas e Albuquerques, do Brasil dos Bandeirantes, da África demarcada pelas expedições dos Mouzinhos e Couceiros. Era o império das armas e das leis, das bandeiras dominadoras e

– ele que era um realista esotérico – desejou e viu, para além desse

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império que se ia perder, outras formas de comunhão, na língua, na expressão e na história, capazes de construir uma identidade na di-versidade, uma vez que o futuro já presente de Portugal era indisso-ciável de um além-mar de «gente vária, oculta neste mundo misto».

O império português desapareceu há quarenta anos, fragmenta-do em partes, povos e comunidades que começaram então, também no sofrimento, na incerteza e na esperança, a sua vida na história. Século e meio antes, outra parte desse império tinha-se separado,

-munidade internacional.

É a história acontecida, sancionada pela justiça dos factos. No mundo presente, a decadência da Europa e do Ocidente é também um facto – até porque a Europa e o Ocidente deixaram as crenças e os valores que lhes deram a grandeza e a força, trocando-os por uma listagem de conceitos médios e retoricamente correctos. Ago-ra, outros continentes, outros povos, outras áreas estão a tomar as chaves e as rédeas do futuro.

A maioria dos povos lusófonos está nestas áreas e são agora, como nós fomos: povos jovens, unidos, com a fé, a vontade e a força de fazerem coisas no mundo. E alguns têm os trunfos e os

O lugar dos portugueses que não se resignam à mediocridade mansa ou ressentida de tributários do centro europeu, pode também ser ao lado desses povos, erguendo a partir de um passado unido, sofrido, dividido, uma convergência futura.

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