Pós Colonial

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Thomas Bonnici* BONNICI, T. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais. Mimesis, Bauru, v. 19, n. 1, p. 07-23, 1998. RESUMO Durante as últimas três décadas, realizou-se intenso estudo sobre as li- teraturas de povos que experimentaram o colonialismo e este trabalho pretende ser um resumo dessas investigações. Discutiram-se questões sobre as estratégias colonizadoras, o papel do colonizador na formação educacional do colonizado através da língua e da literatura européias, o cânone colonial, a degradação de qualquer expressão cultural indígena e a resposta do colonizado. A crítica sobre os hiatos na literatura colo- nial e o surgimento de literaturas desvinculadas do padrão eurocêntrico começaram a questionar certos pressupostos da Teoria Literária ociden- tal. O resultado destes estudos tem sido a reinterpretação e a reescrita de obras canônicas ocidentais como resposta ao colonizador. Unitermos: Literatura, pós-colonialismo, metrópole-colônia, descolo- nização, estratégias pós-coloniais. INTRODUÇÃO Quando se repara que 185 nações independentes de 193 existentes no mundo integram a ONU, questiona-se a viabilidade dos termos colonia- lismo, pós-colonialismo e crítica pós-colonialista. No período pós-guer- ra, especialmente nos anos 60 e 70, parecia que o colonialismo se torna- ra algo do passado e que os povos das nações independentes haviam en- contrado o caminho para o desenvolvimento político. Uma ilação do campo político para o campo literário poderia ser aceita. Admitir-se-ia, então, que as literaturas dos povos independentes estariam livres de ma- nipulações coloniais que as degradaram e que daqui em diante teriam uma posição estética própria. Sabe-se, todavia, que as raízes do imperia- lismo são muito mais profundas e extensas. Durante o período de domi- nação européia, quando mais de três quartos do mundo estavam sub- metidos a uma complexa rede ideológica de alteridade e inferioridade, * Departamento de Letras - Universidade Estadual de Maringá - Av. Colombo, 5790 - 87020-900 - Maringá - PR. Introdução ao estudo das literaturas pós-coloniais 7

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  • Thomas Bonnici*

    BONNICI, T. Introduo ao estudo das literaturas ps-coloniais. Mimesis, Bauru, v. 19,n. 1, p. 07-23, 1998.

    RESUMO

    Durante as ltimas trs dcadas, realizou-se intenso estudo sobre as li-teraturas de povos que experimentaram o colonialismo e este trabalhopretende ser um resumo dessas investigaes. Discutiram-se questessobre as estratgias colonizadoras, o papel do colonizador na formaoeducacional do colonizado atravs da lngua e da literatura europias, ocnone colonial, a degradao de qualquer expresso cultural indgenae a resposta do colonizado. A crtica sobre os hiatos na literatura colo-nial e o surgimento de literaturas desvinculadas do padro eurocntricocomearam a questionar certos pressupostos da Teoria Literria ociden-tal. O resultado destes estudos tem sido a reinterpretao e a reescritade obras cannicas ocidentais como resposta ao colonizador.

    Unitermos: Literatura, ps-colonialismo, metrpole-colnia, descolo-nizao, estratgias ps-coloniais.

    INTRODUO

    Quando se repara que 185 naes independentes de 193 existentes nomundo integram a ONU, questiona-se a viabilidade dos termos colonia-lismo, ps-colonialismo e crtica ps-colonialista. No perodo ps-guer-ra, especialmente nos anos 60 e 70, parecia que o colonialismo se torna-ra algo do passado e que os povos das naes independentes haviam en-contrado o caminho para o desenvolvimento poltico. Uma ilao docampo poltico para o campo literrio poderia ser aceita. Admitir-se-ia,ento, que as literaturas dos povos independentes estariam livres de ma-nipulaes coloniais que as degradaram e que daqui em diante teriamuma posio esttica prpria. Sabe-se, todavia, que as razes do imperia-lismo so muito mais profundas e extensas. Durante o perodo de domi-nao europia, quando mais de trs quartos do mundo estavam sub-metidos a uma complexa rede ideolgica de alteridade e inferioridade,

    * Departamento deLetras - Universidade

    Estadual de Maring -Av. Colombo, 5790 -

    87020-900 -Maring - PR.

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  • 8os encontros coloniais deram um golpe duro cultura indgena, conside-rada sem valor ou de extremo mau gosto diante da suposta superiorida-de da cultura germnica ou greco-romana. Portanto, o desenvolvimentode literaturas dos povos colonizados deu-se como uma imitao servil apadres europeus, atrelada a uma teoria literria unvoca, essencialista euniversalista.

    A ruptura operada pela literatura ps-colonial e a apropriao doidioma europeu para desenvolver a expresso imaginativa na ficoaconteceram aps investigaes e reflexes sobre o mecanismo do uni-verso imperial, o maniquesmo por ele adotado, a manipulao constan-te do poder e a aplicao do fator desacreditador na cultura do outro. Tal-vez pelo fato de ter sido o mais extenso e o mais estruturado de todos, oimprio britnico proporcionou ao crtico uma singular ocasio para elepoder analisar a literatura escrita em ingls por povos to diversos emcircunstncias geogrficas e histricas to diferentes. Nestas ltimas trsdcadas, centenas de livros foram publicados sob a rubrica do ps-colo-nialismo, especialmente pela editora britnica Routledge. Editaram-sevrias revistas acadmicas especializadas em ps-colonialismo para a di-vulgao e a discusso das idias inerentes ao tema. A editora Heine-mann tem no apenas colees de obras crticas sobre a experincia lite-rria ps-colonial da frica (o conceituado African Literature in theTwentieth Century, de O . R. Dathorne, abrangendo inclusive a literaturaafricana em portugus e em francs), mas tambm publicou, no ReinoUnido, a maioria das obras literrias. Por outro lado, os livros seminaisde Fanon, Ngugi, Achebe, Memmi, Said e de outros tericos continuamtendo vrias edies, tal o interesse sobre os temas ps-coloniais.

    Referente literatura de lngua inglesa, este fenmeno pode ser apre-ciado sob outro ngulo. Os prmios literrios britnicos mais cobiadosagraciaram a um indiano (Salman Rushdie), um sul-africano (J. M.Coetzee), um nigeriano (Bem Okri), um japons (Kazuro Ishiguro) e umcingals (Michael Ondaatje), enquanto o Prmio Nobel de Literatura de1993 foi dado a Derek Walcott, de Santa Lucia, no Caribe. Quando al-gum prmio literrio recebido por um autor ingls nascido na Inglater-ra, a exceo prova a regra (Iyer, 1993).

    Salvo raras excees (entre as quais os trabalhos de Silviano Santia-go, Lynn Mrio T. Menezes de Souza e Flvio Kothe), esta nova estticaainda no informou a literatura brasileira que, de acordo com os princ-pios e definies arrolados mais adiante, neste trabalho, poderia ser con-siderada ps-colonial. Por outro lado, a Editora tica publicou uma s-rie de autores africanos e os livros de Jameson, enquanto Helosa Buar-que de Hollanda organizou a traduo de ensaios de autores comoBhabha e Said. Poucos so os trabalhos sobre a literatura brasileira doperodo colonial que tentam analisar as estratgias coloniais existentesna literatura e os mecanismos de subverso pelos quais a imaginaopotica experimentou a subjetificao. Rarssimas vezes (por exemplo,os trabalhos das feministas brasileiras) foi questionada a formao do c-

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  • none brasileiro em seus privilegiados e excludos. Tampouco parmetrosps-coloniais foram adotados para abordar as questes do idioma portu-gus e de sua apropriao na formao da literatura aps a independn-cia poltica e, especialmente, no modernismo e nos anos que o seguem.Os grandes silncios e hiatos do indgena e do negro escravo ou foragi-do, como tambm a dupla colonizao da mulher so dignos de seremapreciados no contexto ps-colonial brasileiro.

    Este trabalho pretende ser uma contribuio para que se conheamalguns princpios bsicos da teoria ps-colonial referente literatura.Sua finalidade colocar ao crtico e acadmico brasileiros o que fun-damental nos conceitos e nas teorias ps-coloniais desenvolvidas nas l-timas dcadas e que se tornaram paradigmas de anlise s literaturasoriundas dos povos que experimentaram o sufoco da colonizao.

    A TEORIA PS-COLONIAL

    Autores tradicionais, definindo ps-colonialismo, usam o termo co-lonial para descrever o perodo pr-independncia e os termos moder-no ou recente para assinalar o perodo aps a emancipao poltica.Embora no haja um consenso sobre o contedo do termo ps-colonia-lismo, Ashcroft et al. (1991) o usam para descrever a cultura influencia-da pelo processo imperial desde os primrdios da colonizao at os diasde hoje. Muitas vezes este termo ignorado ou no entendido como descrito acima porque certos grupos que saram do colonialismo tmcomo preocupao primria o nacionalismo cultural e econmico e noquerem sacrificar a especificidade de suas preocupaes ao termo geralps-colonialismo (Souza, 1986; Adam & Tiffin, 1991)

    Outro conceito a ser considerado o de literatura ps-colonial, quepode ser entendida como toda a produo literria dos povos colonizadospelas potncias europias entre o sculo XV e XX. Portanto, as literatu-ras em lngua espanhola nos pases latino-americanos e caribenhos; emportugus no Brasil, Angola, Cabo Verde e Moambique; em ingls naAustrlia, Nova Zelndia, Canad, ndia, Malta, Gibraltar, ilhas do Pac-fico e do Caribe, Nigria, Qunia, frica do Sul; em francs na Arglia,Tunsia e vrios pases da frica, so literaturas ps-coloniais. Apesarde todas as suas diferenas, essas literaturas originaram-se da experin-cia de colonizao, afirmando a tenso com o poder imperial e enfati-zando suas diferenas dos pressupostos do centro imperial (Ashcroft etal., 1991).

    A crtica ps-colonialista enfocada, no contexto atual, como umaabordagem alternativa para compreender o imperialismo e suas influn-cias, como um fenmeno mundial e, em menor grau, como um fenme-no localizado. Esta abordagem envolve: um constante questionamentosobre as relaes entre a cultura e o imperialismo para a compreenso dapoltica e da cultura na era da descolonizao; o auto-questionamento do

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  • crtico, porque solapa as prprias estruturas do saber, ou seja, a teoria li-terria, a antropologia, a geografia eurocntricas; engajamento do crti-co, porque sua preocupao deve girar em torno da criao de um con-texto favorvel aos marginalizados e aos oprimidos, para a recuperaoda histria, da voz e para a abertura das discusses acadmicas para to-dos; uma desconfiana sobre a possvel institucionalizao da disciplinae a apropriao da mesma pela crtica ocidental, neutralizando a suamensagem de resistncia (Parry, 1987).

    Em primeiro lugar, at hoje, h dois livros importantes que traam ahistria dos pressupostos filosficos da crtica ps-colonial, ou seja, TheEmpire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colonial Literatures(1989), de Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin e WhiteMythologies: Writing History and the West (1990), de Robert Young. Oprimeiro analisa os pressupostos filosficos, a teoria literria europia, ahegemonia da lngua inglesa e as estratgias polticas do imprio britni-co. Os autores chegam a vrios princpios e questes que fundamentamo conceito de literatura ps-colonial. Partindo de certas linhas filosficasde Hegel e de Sartre, o segundo livro aprecia a contribuio de crticos derenome mundial como Spivak e Bhabha (Benson & Conolly, 1994), em-bora sempre os considere criticamente, de modo especial, na deteco deseus resqucios europeus (Slemon, 1995). Em segundo lugar, Orientalis-mo (1978) e Cultura e imperialismo (1993), de Edward Said, In OtherWorlds (1987) e The Post-Colonial Critic (1990), de Gayatri Spivak,como tambm Nation and Narration (1990), de Homi Bhabha, mudaramo eixo da questo referente crtica exclusivamente eurocntrica, formu-laram teorias para a anlise do relacionamento imperialismo/cultura emostraram os caminhos para uma literatura e estudos literrios ps-colo-niais autnomos. No se pode negar, todavia, que a metodologia dessesautores tem muito a ver com o ps-estruturalismo e o desconstrucionis-mo muito em voga recentemente na crtica literria europia.

    Sem dvida, muitas questes ainda no foram resolvidas, como: a re-lao da lngua europia trazida pelos colonizadores e as lnguas indge-nas; a convenincia das tradues; a influncia cultural hbrida dentro deuma mesma cultura e fora dela; a paridade da oratura (narrativas orais)com a literatura; os padres de valores estticos; a importncia das ins-tituies (como as universidades) para a produo literria e crtica; a re-viso do cnone literrio.

    Desde a sua sistematizao nos anos 70, a crtica ps-colonial sepreocupou com a preservao e documentao da literatura produzidapelos povos degradados como selvagens, primitivos e incultospelo imperialismo; a recuperao das fontes alternativas da fora cultu-ral de povos colonizados; o reconhecimento das distores produzidaspelo imperialismo e ainda mantidas pelo sistema capitalista atual.

    Vrios autores percebem que, pelo menos no caso do ingls, o estu-do dos idiomas europeus como disciplinas acadmicas e o desenvolvi-mento dos imprios no sculo 19 partiram de uma nica fonte ideolgi-

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  • ca. Ambos funcionaram como fatores utilitrios de propaganda e de con-solidao de valores. No ltimo caso, os valores, o estilo e os parmetrosinculcados nos acadmicos confirmaram a superioridade da civilizaoeuropia, com a conseqente degradao e total rejeio de qualquer ma-nifestao cultural nativa, considerada inferior, primitiva e selvagem,digna de ser extirpada. The Tempest e Robinson Crusoe testemunhamtais fatos, como ser discutido adiante. A lngua europia, estudada emseu padro culto, no admitia concorrncias e, portanto, rejeitava as dis-tores no-cannicas oriundas da periferia e da margem. A seduoera tanta que muitos nativos comearam a mergulhar nessa cultura im-portada e, negando as suas origens, a escrever na lngua padro europiae a imitar os clssicos de sua literatura. Os administradores coloniaisbritnicos, instigados pelos missionrios e pelo medo das insubordina-es nativas, descobriram um aliado na literatura inglesa para os apoiarem seu controle dos nativos sob um pretexto de educao liberal (Vis-wanathan, 1987). A neutralizao deste arcabouo conspiratrio entrelngua, literatura e cultura no fcil de ser realizada. No que diz respei-to frica, Ngugi (1972) analisa este estado de coisas em On the Abo-lition of the English Department, enquanto Docker (1978) em TheNeocolonial Assumption in the University Teaching of English, discur-sa sobre o Commonwealth em geral. Ngugi organizou um programa emque o Departamento de Lngua Inglesa fosse abolido e substitudo porum Departamento de Literatura e Lngua Africanas, relativizando as fon-tes literrias europias e insistindo sobre a tradio oral ou oratura comonossa raiz primordial. Docker admite que pouca descolonizao acon-teceu nas naes ps-coloniais, ou seja, o status cannico das literaturaseuropias ainda est firme. O perigo enfrentado pelo estudo literriops-colonial que ele pode ser descartado apenas como uma opo in-teressante. O desafio da literatura ps-colonial est de fato em que, des-mascarando e atacando pressupostos anglocntricos diretamente, podesubstituir a literatura inglesa pela literatura mundial em lngua inglesa(Docker, 1978). Embora haja muita resistncia, os questionamentos so-bre os pressupostos em que o estudo da lngua e da literatura europiasestavam fundamentados j surtiram efeitos considerveis.

    DESENVOLVIMENTO DAS LITERATURAS PS-COLONIAIS

    A emergncia e o desenvolvimento de literaturas ps-coloniais depen-dem de dois fatores importantes: (1) as etapas de conscientizao nacio-nal e (2) a assero de serem diferentes da literatura do centro imperial.

    A primeira etapa envolve textos literrios que foram produzidos porrepresentantes do poder colonizador (viajantes, administradores, solda-dos e esposas de administradores coloniais). Tais textos e reportagenscom detalhes sobre costumes, fauna, flora e lngua do nfase metr-pole em detrimento da colnia; privilegiam o centro em detrimento da

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  • periferia. A pretenso de objetividade e a atomizao dos objetos descri-tos escondem o discurso imperial (Mello e Souza, 1993).

    A segunda etapa envolve textos literrios escritos sob superviso im-perial por nativos que receberam sua educao na metrpole e que sesentiam gratificados em poder escrever na lngua do europeu (no hconscincia de ela ser tambm do colonizador). A classe alta da ndia, osmissionrios africanos e, s vezes, prisioneiros degredados na Austrliasentiram-se privilegiados em pertencer classe dominante, ou serem porela protegidos, e produziram volumes de poemas e romances. A Proso-popia, de Bento Teixeira, um exemplo clssico na literatura brasileira(Bosi, 1983).

    Embora muitos dos temas (cultura mais antiga do que a europia, abrutalidade do sistema colonial, a riqueza de seus costumes, leis, cantose provrbios) abordados por esses autores estivessem carregados de sub-verso, sem dvida no podiam e no queriam perceber esta potenciali-dade. Alm disso, a manuteno da ordem e as restries impostas pelapotncia imperial no permitiam qualquer manifestao que pudesse in-dicar algo diferente dos critrios cannicos ou polticos.

    A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo graude diferenciao at uma total ruptura com os padres emanados pelametrpole. Evidentemente, essas literaturas dependiam da ab-rogao dopoder restritivo e da apropriao da linguagem/escrita para fins diferen-tes daqueles pelo quais outrora foram usados. Quando o nigeriano AmosTutuola escreveu The Palm-Wine Drinkard (1952), Dylan Thomas e ou-tros crticos ingleses estranharam a linguagem e o estilo deste novo ro-mance africano (Benson & Conolly, 1994; Sampson, 1979; Phelps,1984) . Os crticos ingleses logo perceberam o nascimento do romanceps-colonial em Things Fall Apart (1958), no qual Chinua Achebe ridi-culariza o administrador colonial que deseja escrever um livro sobre oscostumes primitivos dos selvagens do alto Rio Niger quando o autor jhavia exposto a complexidade de costumes, religio, hierarquia, legisla-o e provrbios da tribo dos Igbos em Umuofia.

    Deslocamento e linguagem

    Uma das caractersticas da sociedade colonizada o deslocamento.Relacionando linguagem e deslocamento, distinguem-se trs categoriasde sociedades ps-coloniais:

    Settler colonies: Na Amrica espanhola, no Brasil, nos EstadosUnidos da Amrica, Canad, Austrlia, Nova Zelndia, a terra foi ocupa-da por colonos europeus que conquistaram e deslocaram as populaesindgenas. Uma certa modalidade de civilizao europia foi transplan-tada e os descendentes de europeus, mesmo aps a independncia polti-ca, mantinham o idioma no-indgena. Se no incio os colonos inquestio-

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  • navelmente consideravam que o seu idioma era apropriado para expres-sar a complexa realidade do lugar ocupado, os escritores mais recentesiniciaram uma srie de questionamentos a este respeito.

    Sociedades invadidas: Na Amrica Central, na ndia e na fricacom suas civilizaes dspares em vrios estgios de desenvolvimento,as populaes foram colonizadas em sua terra. Portanto, os escritores na-tivos j possuam suas respostas milenares e seu modo de ver, embora es-tes fossem marginalizados pelos colonizadores. s vezes, o idioma eu-ropeu substituiu o idioma do escritor; s vezes, ofereceu-lhe uma opor-tunidade para que seus escritos fossem melhor divulgados e lidos. Emambos os casos, o idioma europeu causa uma certa ambigidade no tex-to escrito.

    Sociedades duplamente invadidas: As sociedades primordiaisdos indgenas das ilhas do Caribe foram completamente exterminadasnos primeiros cem anos do descobrimento. A populao atual das ndiasOcidentais veio da frica, ndia, sia, Oriente Mdio e da Europa atra-vs do deslocamento, do exlio ou da escravido. De todas as sociedadescolonizadas, talvez a sociedade caribenha seja a que mais sofreu os efei-tos devastadores do processo colonizador, onde o idioma e a cultura do-minantes foram impostos e as culturas de povos to diversos aniquiladas.

    COLONIALISMO E FEMINISMO

    H uma estreita relao entre os estudos ps-coloniais e o feminis-mo. Em primeiro lugar, h uma analogia entre patriarcalismo / feminis-mo e metrpole / colnia ou colonizador / colonizado. Uma mulher dacolnia uma metfora da mulher como colnia (Du Plessis, 1985). Emsegundo lugar, se o homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades ps-coloniais, foi duplamente colonizada. Os romances de Jean Rhys, DorisLessing, Toni Morrison e Margaret Atwood testemunham esta dialtica.Portanto, o objetivo dos discursos ps-coloniais e do feminismo a inte-grao da mulher marginalizada sociedade. De modo semelhante aoque aconteceu nas reflexes do discurso ps-colonial, no primeiro pero-do do discurso feminista, a preocupao consistia na substituio das es-truturas de dominao. Esta posio simplista evoluiu para um questio-namento sobre as formas e modos literrios e o desmascaramento dosfundamentos masculinos do cnone. Nestes debates, o feminismo trouxe luz muitas questes que o ps-colonialismo havia deixado obscuras;outrossim, o ps-colonialismo ajudou o feminismo a precaver-se de pres-supostos ocidentais do discurso feminista.

    Peterson (1995) fala que em muitos pases do Terceiro Mundo h odilema sobre o que necessrio empreender primeiro: a igualdade femi-nina ou a luta contra o imperialismo presente na cultura ocidental. Em

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  • Things Fall Apart, o personagem Okonkwo castigado no porque bateuem sua esposa, mas por ter batido nela numa semana considerada sagra-da. Peterson resolve a questo com uma citao de Ngugi: Nenhuma li-bertao cultural sem a libertao feminina. A opinio de Buchi Eme-cheta oposta de Achebe. A fora literria da autora nigeriana consis-te em sua autntica perspectiva feminista, sua focalizao na explora-o da mulher e a luta dela pela libertao (Benson & Conolly, 1994).Efetivamente, a dupla colonizao causou a objetificao da mulher pelaproblemtica da classe e da raa, da repetio de contos de fada europeuse da legislao falocntrica apoiada por potncias ocidentais. Entre ou-tras, a mais eficaz estratgia de descolonizao feminina concentra-se nouso da linguagem (experincia de Sistren) e da experimentao lings-tica (Ashcroft et al., 1991; Bonnici1, 1998 no prelo).

    A DICOTOMIA SUJEITO-OBJETO

    A opresso, o silncio e a represso das sociedades ps-coloniais de-correm de uma ideologia do sujeito. Sartre discursa sobre a construoda pessoa como Sujeito em relao ao Outro e, portanto, enfatiza a ca-racterstica da reciprocidade. Atravs da percepo do prprio Ser-obje-to para o Outro deve-se compreender a presena do Ser-sujeito dele, afir-ma Sartre (1997). Esta reciprocidade permite as relaes mtuas entre apessoa e o outro. Ambos podem voluntariamente ter a funo de objetopara o Outro. Nas sociedades ps-coloniais, porm, o sujeito e o objetopertencem inexoravelmente a uma hierarquia em que o oprimido fixa-do pela superioridade moral do dominador. a dialtica do Sujeito e doOutro, do dominador e do subalterno. A lngua cortada do personagemFriday no romance Foe (1986), de J. M. Coetzee, o smbolo do coloni-zado mudo por ato voluntrio do colonizador.

    Os crticos tentam expor os processos que transformam o coloniza-do numa pessoa muda e as estratgias dele para sair desta posio.Spivak discursa sobre a mudez do sujeito colonial e, conseqentemen-te, da mulher subalterna. O sujeito subalterno no tem nenhum espaoa partir do qual ele possa falar, sentencia Spivak (1985). Bhabha(1984) afirma que o subalterno pode falar e a voz do nativo pode ser re-cuperada atravs da pardia, da mmica e de ttica chamada sly civi-lity, que ameaam a autoridade colonial. Por outro lado, a validade daposio destas teorias foi questionada por Benita Parry (1987), alegan-do que poderiam ser uma mscara para a dominao neo-colonial, umadas forma[s] metamorfoseada[s] do imperialismo. A autora comparti-lha a mesma opinio de Fanon (1990) e Ngugi (1986), que provaramcomo o colonizado pode ser reescrito na histria. Se a descolonizaosempre um fenmeno violento (Fanon, 1990), o colonizado fala quan-do se transforma num ser politicamente consciente que enfrenta oopressor com antagonismo sem cessar.

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    1 BONNICI, T.Tendncias do fe-minismo no contex-to ps-colonial. In:SEMINRIONACIONAL MU-LHER E LITERA-TURA, 7. 1997,Niteri. Anais...Niteri: UFF, 1998(no prelo)

  • H trs teorias sobre a reverso do colonizado-objeto em sujeitodono de sua histria e da sua capacidade de reescrever sua histria.Janmohammed (1988) afirma que o autor da literatura ps-colonial devededicar-se produo de esteretipos negativos do colonizador e de ima-gens autnticas do colonizado. Deste modo, criar um mecanismo quefoi produzido inversa mas eficazmente na era colonial. Bhabha (1983)recusa a polaridade colonizador-colonizado e reconhece que a alteridade a sombra amarrada do sujeito porque ambos se construram. Estehiato entre o sujeito e o objeto, o territrio da incerteza, aproveitadopelo autor ps-colonial para reconstruir seus personagens ps-coloniais.O hibridismo ps-colonial com sua subverso da autoridade e a implo-so do centro imperial constri o novo sujeito ps-colonial. O guianen-se Wilson Harris (1973) fala do sujeito colonizado como algum quepossui muitas facetas, o eu e o outro. A procura deste eu composto anova identidade ps-colonial. A violncia (o desmembramento do sujei-to) seguida pela fragmentao e pela reconstruo do vazio a partir doqual as culturas so liberadas da dialtica destrutiva da histria. A chavede tudo isso a imaginao, o nico e antigo refgio de pessoas oprimi-das pela poltica de dominao e de subservincia (Souza, 1994).

    Com exceo da teoria simplista de JanMohammed, as outras duastentam mostrar a possibilidade de ser do sujeito ps-colonial, porque ra-dical e internamente subverte a noo de eurocentrismo e constri a al-teridade como sujeito.

    AB-ROGAO E APROPRIAO

    Na era colonial, a literatura na colnia estava sob o controle direto daclasse dominante, que emitia parecer sobre a forma literria e controla-va a publicao e distribuio do texto. Portanto, tais textos surgiramdentro do contexto do poder restritivo e limitador, testemunhando estefato. Conseqentemente, a existncia de literaturas fora do eixo eurocn-trico dependia da ab-rogao deste poder restritivo, como tambm daapropriao da escrita para usos distintamente novos. A ab-rogao arecusa das categorias da cultura imperial, de sua esttica, de seu padronormativo e de uso correto, bem como de sua exigncia de fixar o signi-ficado das palavras. um momento da descolonizao do idioma euro-peu. A apropriao um processo pelo qual o idioma apropriado eobrigado a carregar o peso da experincia da cultura marginalizada(Ashcroft et al., 1991). Como o idioma um instrumento ideologicamen-te carregado, o autor ps-colonial sempre se encontra numa verdadeiratenso entre os plos da ab-rogao do idioma castio recebido da me-trpole e da apropriao que submete o idioma a uma verso popular,atrelado ao lugar e s circunstncias histricas. Seja em sociedades mo-noglotas (Argentina), ou em diglotas (ndia, frica, populaes indge-nas no Brasil) ou em poliglotas (ilhas do Caribe), o autor ps-colonialemprega as duas estratgias. Ele arrebata o idioma, o recoloca numa si-

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  • tuao cultural especfica e ainda mantm a integridade daquela alteri-dade (a escrita) que historicamente foi empregada para manter o homemps-colonial nas periferias do poder, da autenticidade e mesmo da reali-dade. (Ashcroft et al., 1991)

    O CNONE COLONIAL

    A desmistificao da formao e da constituio do cnone ociden-tal algo recente e, em parte, deve-se ao desenvolvimento das literaturasps-coloniais. A excelncia do idioma e a complexidade da obra literriaproduzida e consagrada pelo centro comeam a ceder s investigaessociais e polticas que privilegiaram certas obras e certos autores en-quanto descartaram outros (obras e autores). No somente a ligao en-tre o cnone literrio e o poder um fato indiscutvel, mas tambm suautilizao para fixar a superioridade do colonizador, degradar o primi-tivismo do colonizado e relegar periferia qualquer manifestao cul-tural e literria oriunda da colnia. A tentao dos pblicos metropoli-tanos em geral tem sido decretar que esses livros, e outros similares, nopassam de exemplos de uma literatura nativa escrita por informantes na-tivos, em vez de contribuies contemporneas ao saber. A [sua] autori-dade tem sido marginalizada porque, para os estudiosos profissionaisocidentais, parecem escritas de fora para dentro (Said, 1995). A nudezdos povos indgenas descrita em todos os documentos coloniais meto-nmica da suposta incapacidade dos povos ps-coloniais de emergir comsua literatura e produzir obras de arte iguais s europias. Com estespressupostos, a literatura europia fixa-se como essencial, indiscutvel,influenciando e impondo estilos e padres literrios. Por outro lado, a li-teratura ps-colonial fixada como tributria, dependente, imitativa.

    Max Dorsinville apud Hutcheon (1995) diz que o relacionamento en-tre sociedades dominantes e dominadas produz a configurao do cno-ne literrio. Na Austrlia, a literatura dos aborgenes considerada peri-frica diante da literatura australiana em ingls, que, por sua parte, j foiconsiderada perifrica no contexto da literatura inglesa. A pouca reper-cusso da literatura brasileira no contexto mundial devida sua supos-ta derivao da literatura portuguesa que, por sua parte, sempre foi con-siderada tributria da francesa. Embora o Canad atual no possa serconsiderado um pas em desenvolvimento, houve um tempo em que a ca-nonicidade de sua literatura foi nula devido alegada dependncia domodelo britnico e, depois, estadunidense. Apesar disso e no que concer-ne a estas duas literaturas, pode-se afirmar com Margaret Laurence queos autores ps-coloniais tiveram o grande trabalho de descobrir suasvozes e escrever o que realmente pertence a eles mesmo enfrentando oimperialismo cultural esmagador (Dorsinville apud Hutcheon, 1995).

    interessante mencionar a situao da literatura dos Estados Unidosda Amrica para analisar melhor o modelo dominante-dominado de Dor-sinville. A literatura estadunidense foi considerada uma literatura tribu-

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  • tria at o sculo XIX. A transformao do pas nos sculos XIX e XX,de uma posio poltica perifrica para a de dominante, contribuiu paraa assimilao de parmetros europeus. Conseqncia disso foi a produ-o de obras cannicas e o exerccio de grande influncia nas outras li-teraturas. O crescente poderio poltico dos Estados Unidos e sua capaci-dade de dominao influenciaram a seleo das obras cannicas e as co-locaram a par do cnone literrio europeu.

    DESCOLONIZAO

    Em Les damns de la terre (1961), de Frantz Fanon (1925-1961), eem Portrait du Colonis prcd du Portrait du Colonisateur (1957), deAlbert Memmi (1920 - ), analisa-se o relacionamento entre colonizadore colonizado dentro do contexto dialtico imprio-colnia. Os autoresconcluem que qualquer texto oriundo desta dialtica produto do con-trole poltico exercido em todo o perodo ps-colonial. Segue-se que aexistncia de um conjunto de textos diferenciados da literatura metropo-litana e caracterizados pela cultura existente depende da descolonizao.Para certos autores, o termo descolonizao significa a recuperao dosidiomas e culturas pr-coloniais. Ngugi (1986) e Huggan (1995) consi-deram o colonialismo como uma fase histrica e que o renascimento dacultura indgena outrora florescente anular todos os malefcios que in-formaram a cultura no perodo ps-colonial. Por outro lado, Williams(1969) afirma que os traos da histria jamais podem ser apagados ou ig-norados. A cultura hbrida e sincrtica dos povos ps-coloniais fatorpositivo e uma vantagem da qual recebe a sua identidade e fora.

    Realmente, a ndia e a frica tm possibilidades de desenvolver umacultura e uma literatura com moldes pr-coloniais. Aps 1970, o quenia-no Ngugi escreve exclusivamente no idioma Gikuyu e os romances dosnigerianos Achebe e Tutuola so exemplos tpicos de oratura (a tradiooral africana), embora escritos em ingls. Movimentos semelhantes sur-giram na Austrlia e na Nova Zelndia. Parece, porm, que h um equ-voco quando se identifica a descolonizao com a reconstituio da cul-tura pr-colonial. Por outro lado, a cultura eurocntrica to profundaque a produo de um romance em lngua indgena ainda constitui umtexto culturalmente sincrtico. Nos anos 70, houve um debate entre estasduas correntes, especialmente referente frica e ao Caribe. Chinweizu,em Towards the Decolonization of African Literature (1983) e Brathwai-te condenavam a subservincia a tcnicas literrias ocidentais e defen-diam a volta a razes africanas como o fator mais importante da identi-dade; por outro lado, o nigeriano Soyinka e os caribenhos Harris eWalcott foram favorveis ao sincretismo e pluralidade cultural (Benson& Conolly, 1994). Os trabalhos de Todorov (1991) e Said (1995), anali-sando os encontros coloniais literrios referentes ao Europeu e ao Outroe os estudos de Jameson, Bhabha e Spivak (Benson & Conolly, 1994) so-

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    bre o impacto da ideologia na formao do sujeito colonial, debatem for-mas pelas quais a subjetificao do colonizado poder se tornar realida-de. Jamais se pode esquecer que a descolonizao o processo oposi-cionista contra a dominao, uma verdadeira criao de homens novos... no se originando de algum poder sobrenatural, porque o objeto quefoi colonizado torna-se pessoa durante o mesmo processo em que se li-berta (Fanon, 1990).

    A REINTERPRETAO E A REESCRITA

    At certo ponto, todas as literaturas nacionais desenvolveram o se-guinte esquema para chegarem a ser consideradas como tal: (1) a imita-o de um padro dominante e sua assimilao ou internalizao; (2) arebelio, onde tudo o que foi excludo pelo padro dominante comea aser valorizado. Embora haja crtica a este modelo (Tiffin, 1988), pode-sedizer que a formao e a consolidao das literaturas ps-coloniais sedo na subverso, ou seja, a resposta ao centro, formulada na famosa fra-se de Rushdie the Empire writes back to the centre. A estratgia das li-teraturas dominadas dupla: (1) uma tomada de posio nacionalista,quando a literatura ps-colonial assegura a si mesma uma posio deter-minante e central e (2) quando questiona a viso europia e eurocntricado mundo, desafiando a sistematizao de plos antagnicos (domina-dor-dominado) para regulamentar a realidade.

    A primeira estratgia consiste na reinterpretao de obras do cnoneeuropeu. O exemplo de The Tempest (1623) muito significativo. Emboradesde meados do sculo XIX houvesse indcios de uma interpretao ps-colonial desta pea de Shakespeare (Ashcroft, 1991), a apropriao deu-seprincipalmente com os caribenhos George Lamming (em seus romancesNatives of My Person e Water with Berries, ambos de 1971 e a coleo deensaios The Pleasures of Exile, 1960), Aim Csaire (Une tempte:daprs La Tempte de Shakespeare Adaptation pour un thatre ngre) eoutros (Brydon, 1984). A relao entre Prspero e Calib considerada oparadigma das relaes centro-margem ou a realidade ps-colonial. En-quanto a dominao da realidade, a linguagem, a arrogncia e a posse deterritrio alheio executadas por Prspero so metforas do domnio colo-nizador, a submisso forada, o castigo, a rebeldia e o uso da linguagempara amaldioar pertencem ao colonizado Calib (Bonnici, 1993).

    No mesmo vis, encontra-se o romance aparentemente incuoMansfield Park (1814), de Jane Austen, que, atravs de uma estratgia deleitura ps-colonial, poder revelar certos fatores outrora ocultos. As baseseconmicas das famlias abastadas e da sociedade afluente inglesa, mudase envoltas em silncio, so fatores denunciantes do trfico de escravos e dolucro auferido do trabalho escravo em Antgua, engendrados por SirThomas Bertram, o tio da protagonista Fanny. A afirmao de YasmineGooneratne em seu discurso Historical truths and Literary fictions

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  • (apud Ashcroft et al., 1991) de que a leitura e reinterpretao ps-coloniaisdo romance podero privilegiar estes silncios e torn-los os anncios maisimportantes do texto, realmente abre caminhos novos. Alm de mencionaro silncio de Austen, Said (1995) faz semelhante crtica no caso de Camus.No caso da literatura brasileira, Anchieta, na pea Na Festa de So Louren-o (1587), transfere o weltanschaung europeu sobre demonologia, alterida-de e marginalizao ao indgena brasileiro, polariza a dicotomia coloniza-dor-colonizado e justifica a objetificao do nativo (Bonnici, 1996).

    A segunda estratgia refere-se reescrita, ou seja, a retomada deobras literrias do cnone ... para a reestruturao das realidades euro-pias em termos ps-coloniais. A finalidade no a reverso da ordem hie-rrquica, mas interrogar os pressupostos filosficos sobre os quais tal or-dem estava baseada (Ashcroft, 1991). Exemplos clssicos da reescrita soos romances Wide Sargasso Sea (1966), da escritora dominicana JeanRhys (1890-1979) a partir de Jane Eyre (1847), de Charlotte Bront (1816-1855), e Foe (1986), do escritor sul-africano J. M. Coetzee (1940- ), a par-tir de Robinson Cruso, de Daniel Defoe (1719). Wide Sargasso Sea de-senvolve os eventos do romance de Bront sobre a esposa creola de Mr.Rochester trancada no sto. Antoinette narra sua histria de espoliaopraticada pelo seu marido ingls na fazenda dela no Caribe. A gradual de-gradao e submisso forada de Antoinette por seu esposo, at sua depor-tao para Thornfield Hall, tornam-se o fator emblemtico de encontroscoloniais. O incndio da manso mostra a resposta da mulher coloniza-da diante da arrogncia e domnio do europeu (Bonnici, 1994). Em Foe,o narrador no mais o inventivo e prtico Robinson Cruso, mas umamulher inglesa chamada Susan Barton. Desterrada numa ilha, ela encon-tra um pacato e desanimado Cruso e seu escravo, o africano Friday. Crusomorre durante a viagem de volta Inglaterra. Na metrpole, Susan temdois problemas: transmitir a sua narrao da estada na ilha a um elusivoescritor Mr. Foe e arrancar do mudo Friday a sua histria. Ambas as tare-fas tornam-se quase impossveis: a primeira por causa da pretendida ma-nipulao da histria por Mr Foe e a segunda pela incompreenso do eu-ropeu diante de singulares manifestaes literrias empreendidas porFriday. O romance avana na problemtica posta pelo romance original ediscute o silncio do colonizado, a possibilidade de fala aps uma histriade brutalidades cometidas pelos europeus, o relacionamento entre o colo-nizador e o colonizado, as modalidades no-cannicas de fala e escrita, amanipulao da histria pelo europeu e a subverso gentil (o conceito desly civility, discutido por Bhabha) do subalterno (Bonnici, 1995).

    CONCLUSO

    A anlise da obra literria sob o enfoque da teoria ps-colonialistapode ser uma tarefa difcil porque implica uma metania no leitor e nocrtico. Pode inclusive subverter noes importantes da Teoria Literria e

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    criar um mal-estar quando se faz a comparao tipicamente ocidental(porque hierrquica) entre a literatura de uma ex-colnia e as principaisliteraturas europias. Vivendo num pas cuja literatura no tem quaseprojeo alguma na literatura mundial porque sempre foi considerada tri-butria (Kothe, 1997) e, no caso especfico do autor deste trabalho, en-sinando as literaturas de naes colonizadoras no idioma do colonizador,a anlise ps-colonialista pode privilegiar uma prtica estratgica. Elafavorece a escolha de textos de origem ps-colonial, escritos por autoresque experimentaram a degradao e, s vezes, o aniquilamento de suacultura pelo colonialismo, para investigar a resposta de cada um dianteda arrogncia colonial ainda existente. Oferece tambm a oportunidadede resgatar textos que o poder colonial suprimia e fazia sumir porquesubvertiam a ordem colonial por ele estabelecida, de analisar textos sobuma nova perspectiva e recuperar aspectos satricos e irnicos pelosquais os autores, superando convenincias laudatrias, mostram a inf-mia da colonizao e da alteridade.

    A investigao literria ps-colonialista abre novas perspectivas paraliteraturas que, embora nitidamente ps-coloniais, tm dificuldade emaceitar esta situao. So literaturas j maduras, como a brasileira, masrelegadas posio tributria e cujos autores no aparecem na lista ca-nnica de The Western Canon, de Harold Bloom. Como o africanoFriday no romance Foe, de Coetzee, elas possuem mtodos prprios parafalar e contar a sua histria. O mergulho nau naufragada reproduz avolta s profundezas da histria para que o sujeito ps-colonial represen-tado na literatura recupere a voz e assim possa narrar e anunciar as suasexperincias como o Outro.

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    ABSTRACT

    During the last three decades intense research work has been done on theliteratures of peoples who had been colonized in various forms. This paperis a summary of the achievements. Investigations on colonizing strategies,the colonizers role in the educational formation of the natives through theEuropean language and literature, the colonial literary canon, themarginalization of all native cultural expressions and the colonizedpeoples answer have been discussed. Criticism on the silences in colonialliterature and the birth of literatures free of Eurocentric standardsquestioned certain bases of traditional Literary Theory. Among otherresults reinterpretation and rewriting of Western canonical works have hadan important role in the answer of post-colonial peoples.

    Key Words: Literature, post-colonialism, metropolitan center-colony,decolonization, post-colonial strategies.

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