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    conhecimento jornalstico

    O CONCEITO DE PS-MODERNIDADE EM LYOTARDE A POSSIBILIDADE DA INFLUNCIA NIETZSCHIANA

    Felipe Szyszka Karasek *

    Resumo

    O principal objetivo deste estudo apresentar a teseque os elementos constituintes da re exo de Lyo-tard sobre a ps-modernidade j estavam presentesnas suspeitas e na loso a de Friedrich Nietzsche.Realizando um estudo genealgico sobre a crtica de Nietzsche ao socratismo, pretendemos demonstrar que

    a descon ana de verdades j fazia parte do perspecti-vismo nietzschiano, bem como a crtica s legitimaesmetafsicas. Pretendemos, dessa maneira, apresentar a possibilidade da in uncia da loso a nietzschiana naformao do pensamento de Lyotard sobre o conceitode ps-moderno.

    Abstract

    The aim of this is study is to present the thesis that theconstituents of Lyotards re ection on postmodernismhad already been present in Nietzsches suspicionsand philosophy. Making a genealogic study about Nietzsches criticism of Socratic, we intend to demons-trate that the distrust of truth had already been part of

    the Nietzschean perspectivism as well the criticism of metaphysical legitimations. Is this way, we intend to present the possibility of the in uence of Nietzsches philosophy in the formation of Lyotards thoughts aboutthe concept of postmodernism.

    Keywords Postmodernity; Lyotard; Nietzsche.

    Em seu livro intitulado O Ps-Moderno (1986), Jean-Franois Lyotard aborda o con-ceito de ps-modernidade. O autor procurademonstrar que o entendimento desse con-ceito est relacionado abolio da ideia deverdade, que durante muitos anos foi umadas principais armas do poder. Nesse sen-tido, defende a ideia de um niilismo novo, possivelmente in uenciado pelo conceitonietzschiano, em relao inexistncia detais verdades.

    Com esta publicao, Lyotard pre-

    tende apresentar argumentos que demons-trem a decadncia da ideia de verdade emuma sociedade conceituada como ps-mo-derna, alm de demonstrar que o conjuntode transformaes ocorridas nas regras do jogo de produo cultural que marcam as so-ciedades ps-industriais so caractersticasdeste mesmo conceito. Ainda neste mesmofoco, pretende avaliar as condies do saber produzido nas sociedades mais avanadas, principalmente sobre o saber cient co e nasuniversidades.

    Palavras-chave Ps-modernidade; Lyotard; Nietzsche

    Para Lyotard, o ps-moderno estmarcado por uma incredulidade perante

    o metadiscurso los co metafsico, que possui pretenses atemporais e universali-zantes. Este cenrio seria composto por umaessencialidade ciberntica, informatizadae informacional. O saber seria legitimado pela cincia, pelo virtual e pelo arti cial.A verdade seria o resultado da vitria dodiscurso mais sedutor ou daquele mais forte para impor o seu discurso.

    A diferena entre a modernidade e

    a ps-modernidade estaria presente na per-cepo de que na primeira eram as cinciasque criavam as verdades e as leis, assimcomo a idealizao de um bem-comumgeral. A dialtica era reveladora de saber e emancipatria, um conhecimento base-ado em justi caes metafsicas. Enquantoque na segunda, o saber est marcado peladvida, desconstruo, perspectiva, descon-fiana, interpretao, no-existncia deverdades, suspeitas, construo do conheci-mento a partir da problemtica. Existe uma

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    recomendao ao exerccio do pensamentoe uma incitao e provocao para a dvida.

    O principal objetivo deste estudo apresentar a tese de que estes elementos

    constituintes da re exo de Lyotard sobrea ps-modernidade j estavam presentesnas suspeitas e na filosofia de Friedrich Nietzsche. Realizando um estudo geneal-gico na loso a de Nietzsche, pretendemosdemonstrar que a descon ana de verdades j fazia parte do perspectivismo nietzschi-ano, bem como a crtica s legitimaesmetafsicas na abordagem sobre a questode Scrates. Pretendemos, dessa maneira,

    apresentar a possibilidade da influnciada loso a nietzschiana na formao do pensamento de Lyotard sobre o conceito de ps-moderno.

    Para atingirmos esse objetivo, reali-zaremos a investigao genealgica abor -dando a crtica de Nietzsche ao socratismo,sua crtica racionalidade conceitualsocrtica que teria in uenciado a formaodo Ocidente e o seu elogio ao conhecimentoesttico.

    Aquesto do socrAtismoO socratismo , como Nietzsche de-

    nomina, o movimento dialtico inaugurado por Scrates, o qual teve como principalseguidor Plato. Esse movimento estava presente tanto na loso a como na atitudesocrtica, quando a rmava que tudo precisaser consciente para ser bom. Em Plato, Nietzsche percebe o socratismo na sua forma

    de escrever, quando inaugura o dilogo platnico, nos quais Scrates o heri e nosquais a poesia e a palavra lgica possuemuma relao hierrquica, estando a lgicaacima da poesia.

    A palavra mais incisiva em favor dessanova e inaudita estimao do saber e da in-teligncia foi proferida por Scrates, quandoveri cou que era o nico a confessar a simesmo que no sabia nada ; enquanto, em

    suas andanas crticas atravs de Atenas,conversando com os maiores estadis-

    tas, oradores, poetas e artistas, deparavacom a presuno do saber. Com espanto,reconheceu que todas aquelas celebridadesno possuam uma compreenso certa esegura nem sequer sobre suas pro sses eseguiam-nas apenas por instinto. Apenas por instinto: por essa expresso tocamosno corao e no ponto central da tendnciasocrtica. Com ela o socratismo condenatanto a arte quanto a tica vigentes; paraonde quer que dirija seu olhar perscruta-dor, avista ele a falta de compreenso e o poder da iluso; desta falta, infere a ntimainsensatez e a detestabilidade do existente.A partir desse nico ponto julgou Scratesque devia corrigir a existncia: ele, s ele,entra com ar de menosprezo e de superiori-dade, como precursor de uma cultura, artee moral totalmente distintas, em um mundotal que seria por ns considerado a maior felicidade agarrar-lhe a fmbria com todo orespeito (Nietzsche, 1992, p. 85).

    A partir desta anlise, Scrates en-fatiza que, a partir desse procedimento, acerteza e o conhecimento afastariam a trag-dia da vida dos homens. Com a sabedoriae o entendimento socrticos o homem nosucumbiria mais pelo trgico, ele entrariaem um processo de certeza a partir de suas prprias aes e com o passar do tempoaprenderia a resolver as questes trgicascom a razo.

    Essa metodologia criada por Scrates inau-gura um princpio curativo pelo saber. Ao ter sido pronunciada contra ele a sentena demorte, e no apenas a de banimento, parece

    algo que o prprio Scrates levou a cabo,com plena lucidez e sem qualquer temor: elecaminhou para a morte com aquela calmacom que, na descrio de Plato, deixa osimpsio como o ltimo dos beberres afaz-lo, nos primeiros albores das manhs,a m de comear um novo dia. OScratesmoribundo tornou-se o novo e jamais vistoideal da nobre mocidade grega: mais doque todos, o tpico jovem heleno, Plato, prostou-se diante dessa imagem com todaa fervorosa entrega de sua alma apaixonada

    (Nietzsche, 1992, p. 87).

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    Na apologia de Scrates, Plato des-creve a maravilhosa seriedade com que fezvaler em toda parte, e at perante os juzes, adivina vocao socrtica. Era to impossvel

    refut-lo a esse respeito quanto dar por boa asua in uncia dissolvente sobre os instintos.Pode-se assim, perceber nos escritos platni-cos a in uncia marcante do socratismo,daquela divina ingenuidade e segurana daorientao socrtica de vida. A formidvelroda motriz do socratismo lgico acha-se, por assim dizer, em movimento por detrsde Scrates. Para segui-lo, Plato queimoutodos seus poemas, que eram considerados

    escritos vindos do ilgico, portanto, sem avalidade socrtica.

    O dilogo platnico absorve todosos estilos e formas precedentes narrativa,lrica e drama, prosa e poesia -, tendo umaforma de Scrates furioso, que represen-tava muito para a vida de Plato. O dilogo platnico conduz para dentro de um novomundo que jamais se saciou de contemplar a fantstica imagem socrtica. Com issoPlato funda o prottipo de uma nova formade arte, o romance. No romance, a poesiavive com a loso a dialtica em uma relao

    hierrquica semelhante que essa mesmaloso a manteve durante muitos sculoscom a teologia, como uma escrava. Essa foia nova posio a que Plato, sob a in unciade Scrates, arrastou a poesia (Nietzsche,1992, p. 88).

    o socrAtismo como fAtor de decAdnciA do drAmA musicAl grego

    A tendncia socrtica no s in u-enciou Plato como diversos outros pensa-dores. Nietzsche, na sua crtica ao socra-

    tismo, atribui obra de Eurpedes o agentedeterminante da decadncia da tragdiagrega, eliminando da tragdia a hegemoniado esprito da msica e introduzindo na arte

    trgica o processo lgico.A msica entre os gregos tinha atarefa de transformar o suportar do herina mais intensa compaixo dos ouvintes. Atragdia grega traz uma relao entre pala-vra e msica. Ela leva ao palco a relao de poder entre palavra e msica. O protagonistadomina a palavra, mas a msica do coroque domina o que produz as palavras. A

    palavra est submetida a mal-entendidos e

    interpretaes errneas, no sai do maisinterno e no chega at l. Vive e tece margem do ser. A msica diferente. Atingeo corao diretamente, como a verdadeiralinguagem comum que se entende por toda parte (Safranski, 2005, p. 55).

    O despedaamento da tragdiaocorre na carreira da palavra. Ologos vence o pathos da tragdia. A tragdia, para Nietzsche, est liquidada quando a lin-guagem se emancipou da msica e fez valer em excesso a sua prpria lgica, de maneiraque a linguagem um rgo da conscincia,enquanto que msica ser. O m da tragdiaocorre quando ser e conscincia no se har -monizam mais. o m da velha tragdia do

    pathos e o incio da nova tragdia dologos. Na conferncia de Nietzsche intitu-

    lada Scrates e a Tragdia , faz-se notar umaousadia de pensamento que iria atemorizar o prprio Wagner. Partindo de uma interpre-

    tao penetrante das obras de Aristfanes, particularmente de As Rs , Nietzsche nosmostra a obra de Eurpedes e o socratismocomo agentes determinantes da decadnciada tragdia grega, ao eliminarem da tragdiaa hegemonia do esprito da msica e ao de-sencadearem na arte trgica a prepondern-cia da lgica. Essa conferncia, justamente,rendeu a Nietzsche as primeiras inimizades,ao promover a crtica ao cienti cismo cara-

    cterstico do meio acadmico em que este pensador, como professor de lologia se

    O socratismo , como Nietzsche denomina, o movimento dialtico inaugurado por Scrates, o qual teve como principal seguidor Plato

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    inseria, e ao negar a todo racionalismo a pos-sibilidade de tocar o cerne da fora vital dahumanidade grega, como queria a lologia(Nietzsche, 2005, p. 8).

    A conferncia proferida na Basiliaem fevereiro de 1870, faz uma crtica da altavalorizao da conscincia. uma crticaao pensamento socrtico: tudo tem de ser consciente para ser bom. Nietzsche acreditaque isso destruiu a tragdia, pois limita oinconsciente criativo e o inibe. Scrates que- bra o poder da msica e em seu lugar colocaa dialtica. Nietzsche a rmava que Scratesajudava Eurpedes em seu poetar e que s

    se fazia presente nas tragdias quando umanova pea dele era encenada. Lembremostambm que o Orculo de Delfos apontouScrates como o mais sbio de Atenas,mas, em segundo lugar, Eurpedes, tal era ain uncia que ambos estavam exercendo.

    Nas encenaes das obras de Eur- pedes, a natureza do heri euripidiano defender as suas aes por meio de razoe contra-razo. A essncia da dialtica oelemento otimista que celebra a cada con-cluso a sua festa de jbilo e s conseguerespirar na fria clareza da conscincia. Esteelemento otimista insere-se na tragdia e vai pouco a pouco recobrindo todas as regiesdionisacas e levando-as superao. Oheri, antes virtuoso ao enfrentar a Moira ,agora precisa ser dialtico. Precisa existir entre virtude e saber, crena e moral, umaligao obrigatoriamente visvel. Nas trsmximas socrticas est a decadncia da

    tragdia: Virtude saber, S se peca por ignorncia e O virtuoso o mais feliz(Nietzsche, 1992, p. 88).

    Quanto ao drama musical grego, o pathos do destino foi afastado pelo calcu-lismo e intrigas. Agora no se canta mais no palco, se discute.

    [...] como se todas essas figuras nosucumbissem pelo trgico, mas pela super -afetao do lgico. Scrates um sintomade uma transformao cultural profunda de

    consequncias at a atualidade. A vontadede saber domina as foras vitais do mito, dareligio e da arte. O ser deve agora se jus-ti car perante a conscincia. A vida anseia pela luz, a dialtica vence a msica trevosado destino. Desperta a esperana otimista deque a vida se deixa corrigir, dirigir, calcular a partir da conscincia. Assim morre o tea-tro musicado, por delrio, vontade e dores(Safranski, 2005, p.55).

    Depois de proferida em 1 de fe-

    vereiro de 1870, Nietzsche enviouScratese a Tragdia para Wagner. Em 4 de feverei-ro, Wagner responde a Nietzsche:

    Ontem li para a amiga [Cosima] a sua dis-sertao. Depois tive que acalm-la: paraela o senhor lida com os gigantescos nomesdos grandes atenienses de uma maneirasurpreendentemente moderna. Isto foi logoentendido e desculpado como decorrente deuma fraqueza da poca. Eu, de minha parte,senti sobretudo um temor diante da ousadiacom a qual o senhor, de maneira to breve ecategrica, participa a um pblico suposta-mente no destinado formao acadmica

    uma idia to nova, de modo que se tem decontar, para a sua absolvio, somente coma total incompreenso por parte daquele.Mesmos os iniciados em minhas idias poderiam por sua vez se assustar, se, comessas idias, entrassem em con ito com asua [a deles] f em Sfocles e mesmo emsquilo . Eu - pela minha pessoa - clamoao senhor: assim ! O senhor est correto etocou o ponto prprio da maneira exata e amais precisa, de modo que no posso seno,cheio de surpresa, aguardar o desenvolvi-

    mento do senhor, para o convencimento do preconceito vulgar dogmtico. - Todavia,estou preocupado com o senhor e desejode todo corao que o senhor no se faaquebrar o pescoo. Por isso gostaria deaconselhar o senhor a no tratar dessasopinies to inacreditveis em dissertaescurtas que tm em vista efeitos leves por meio de consideraes fatais, mas se estto profundamente compenetrado delas -como eu reconheo - rena as suas foras para um trabalho maior e mais abrangentesobre isso. Ento o senhor certamente ir

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    A essncia da dialtica o elemento otimista que celebra a cada concluso

    a sua festa de jbilo e s consegue respirar na fria clareza da conscincia.

    encontrar tambm a palavra justa para os er-ros divinos de Scrates e Plato (Nietzsche,2005, pp. 11-12).

    H indcios de que Nietzsche conce- beu o plano para seu livro sobre a tragdiainstigado por isso. Domina-o um pressen-timento singular de grandes coisas que voacontecer com ele, e que ele h de realizar.Escreve a Rohde5 em meados de fevereirode 1870: Cincia, arte e loso a se vofundindo tanto em mim que algum dia cer -tamente vou parir um centauro (Safranski,2005, p. 56).

    Para Nietzsche, a dialtica otimistaexpulsa a msica da tragdia: quer dizer,destri a essncia da tragdia, essnciaque cabe interpretar unicamente comomanifestao e configurao de estadosdionisacos, como simbolizao visvelda msica, como o mundo onrico de umaembriaguez dionisaca. to certo que oefeito imediato do impulso socrtico visava destruio da tragdia dionisaca queuma profunda experincia vital do prprioScrates nos obriga a perguntar se de fatoexiste necessariamente, entre o socratismoe a arte, apenas uma relao antip dica e seo nascimento de um Scrates artstico no em si algo absolutamente contraditrio(Safranski, 2005, p. 55).

    Scrates teve um sonho na priso,que lhe dizia: - Scrates, faz msica! Elea rma at seus ltimos instantes que a sualoso a a mais elevada de todas, mas, nom, para aliviar a sua conscincia, praticaaquela msica to menosprezada por ele.Compe um promio a Apolo e pe em

    versos algumas fbulas espicas.

    Aquela palavra da socrtica apario onrica o nico sinal de uma dvida de sua partesobre os limites da natureza lgica: ser -assim devia ele perguntar-se - que o nocompreensvel para mim no tambm,desde logo, o incompreensvel? Ser queno existe um reino da sabedoria, doqual a lgica est proscrita? Ser que arteno at um correlativo necessrio e umcomplemento da cincia? Para Nietzsche,colocar-se na escola dos gregos aprender a lio de uma civilizao trgica para quema experincia artstica superior ao con-hecimento racional, para quem a arte tem

    mais valor do que a verdade. Se Scrates,Eurpedes e Plato signi cam o incio deum grande processo de decadncia quechega at nossos dias porque os instintosestticos foram desclassi cados pela razo,a sabedoria instintiva reprimida pelo saber racional (Machado, 1999, p.8).

    Nesta anlise sobre a questo dosocratismo devemos partir da reflexosobre o socratismo esttico. Se, para Ni-

    etzsche, Eurpedes o marco que assinalaa decadncia da tragdia, porque com ele, pela primeira vez, o poeta se subordina ao pensador racional, ao pensador consciente.O que caracteriza a esttica racionalista, aesttica consciente, introduzir na arte o

    pensamento e o conceito a tal ponto quea produo artstica deriva da capacidadecrtica. Momento em que a conscincia,a razo, a lgica despontam como novoscritrios de produo e avaliao da obra dearte. Quando a racionalidade faz uma crticaexplcita produo artstica na perspectivada conscincia, quando toma como critrioo grau de clareza do saber, a tragdia serdesclassi cada como irracional ou comodesproporcional, ou uma profundidadeenigmtica e in nita, incerta, indiscernvel,sombria, obscura. Por no ter conscincia doque faz e no apresentar claramente o seusaber, o poeta trgico ser desvalorizado,

    desclassi cado pelo saber racional (Mach-

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    ado, 1999, p.30).Por este motivo, Nietzsche percebe

    na in uncia de Scrates um rompimentodos vnculos da arte com a vida, provocando

    um fenecimento nos laos de encantamentoque existem entre elas, pois a arte passa atrazer em si prpria a re exo. A fundaode um homem terico cuja meta com- preender o mundo, a vida e a si mesmo, e ainstaurao da cincia dotada de verdadesabsolutas, dotadas de uma inabalvel f deque o pensar por meio da causalidade do-tado de poder de, no apenas conhecer, mastambm de corrigir, supondo uma noo de

    verdade universal, que encontra uma alter -nativa diversa em Nietzsche, quando este privilegia a metafsica do artista e a rmaser a arte, e no a cincia, quem tem maisvalor, por esta viabilizar a vida.

    Talvez no seja tarefa de nossa re-exo colocar, como fez Scrates, cincia earte em uma relao hierrquica, mas iden-ti car as possibilidades e perspectivas quesurgem a partir da experincia, se pensadasatravs da esttica. No devemos ser herdei-ros de Scrates, de uma lgica metafsicasegundo a qual os valores racionais devem prevalecer, nos tornando homens tericos. Aausncia de certezas, a falta de consistncianas respostas impulsionaram Scrates emdireo a uma busca sem m na qual durantetodo o tempo s fazia comprovar que, aomesmo tempo que se percebia mais sbioque os demais, era apenas por reconhecer em si sua ignorncia. Scrates buscava que

    os poetas explicassem a poesia que faziam, buscando conhec-la. Ao julgar a poesia por um critrio que havia sido lanado peloorculo de Delfos, ou seja, o conhecer e osaber, Scrates instituiu um caminho, uma busca que seria o legado de toda a civiliza-o ocidental.

    Essa crtica de Nietzsche a Scrates uma crtica ao pensamento lgico, cient-

    fico, iluminista, que regia a Alemanhadurante a sua vida. Alm disso, Nietzsche

    procura, com essa crtica, atrair a ateno

    dos homens para um ensino mais humani-sta, que valorize a arte em um nvel maiselevado, no a arte de intrigas6, mas a artetrgica, inspirada na ao do destino, que Nietzsche entende como o re exo da vida,incontrolvel, indomvel, irracionalizvel.Percebemos emO nascimento da tragdia ,e tambm na motivao do lsofo, umaexaltao do msico Richard Wagner, dequem Nietzsche esperava uma renovao

    do drama musical alemo. Mas o que nosinteressa no a motivao de Nietzschee seu posterior rompimento com Wagner,mas a capacidade do lsofo que desejavaum novo mundo, uma renovao na formade arte existente, que passasse a valorizar,assim como os gregos um dia zeram, avida a partir de uma viso esttica. Talvez amaior lio que Nietzsche nos traga na suasabedoria trgica a sua viso do mundo. Asua percepo de que o excesso de racion-alismo trouxe mais mazelas do que coisas boas. Re etir a loso a de dentro desta perspectiva re etir sobre a possibilidadede uma loso a a partir da arte, do entendi-mento sobre as consequncias que o excessode racionalismo pode gerar e as diversasrealidades que ele pode negar. A arte exaltaa vida a partir das novas possibilidades deconhecimento que ela traz e a torna mais bela e digna de ser vivida.

    A ausncia de certezas, a falta de con- sistncia nas respostas impulsionaram

    Scrates em direo a uma busca sem fm na qual durante todo o tempo s fazia comprovar que, ao mesmo tempo que se percebia mais sbio que os demais, era apenas por reconhecer em si sua ignorncia.

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    c onsiderAes f inAisAo falarmos da filosofia de Nietzsche,diversas vezes utilizamos o termo perspec-tiva. Para o lsofo, no existem verdades

    absolutas e referenciais nicos, existemsomente perspectivas. O que existe um perspectivismo que permite propor umaverdade ccional e o homem como um cria-dor ccional de conceitos interpretativos.O conhecimento caria na esfera de umainterpretao, o que signi ca ser impossvel pensar fora do perspectivismo interpreta-tivo, do acontecer, do trgico.

    No que concerne ao perspectivismonietzschiano, as di culdades da concepometafsica da verdade no podem ser elimi-nadas por uma simples modificao emnvel do conceito de verdade. Na concepode Nietzsche, melhor seria considerar verdade como nome para um produzir nos processos de interpretao. Com estes processos, no se chega a um m de nitivoe universalmente vlido. Neles nasce ver -

    dade, que ao mesmo tempo tambm serve para a classi cao de teses (juzos, ideias)como verdadeiras ou falsas. Neste sentido,

    pode-se apreender verdade enquanto inter- pretao. Nos processos de interpretao, portanto, no se trata mais, em primeirolugar, de descobrir uma verdade pronta e pr-existente. No mais a interpretaoque depende da verdade, e sim a verdade que depende da interpretao. Isto, contudo,

    no signi ca nem que a questo da verdadese torne obsoleta nem que ela desaparea

    Talvez a maior lio que Nietzsche nos traga na sua sabedoria trgica a sua viso do mundo. A sua percepo de que o excesso de racionalismo trouxe mais mazelas do que coisas boas

    no conceito de interpretao. Pois fazemosa diferenciao entre verdadeiro e falsoe, evidentemente, tambm a entendemos.Trata-se, pois, no de destruio, mas de

    re-concepo do sentido de verdade. E estare-concepo pode se dar sobre a base dosmais abrangentes e basilares processos dainterpretao (Abel, 2002, p. 41).

    Nietzsche utiliza-se da palavra per -spectiva para evitar o fechamento, evitar um conceito regulador que esconde o desejode simpli cao, de dominao, anulandoa singularidade do diferente e reduzindo acomplexidade do mundo e do conhecimento.

    Mas mesmo assim, Nietzsche no deixa deusar o conceito, mas no o usa como mor -alizador, como regularizador, como eterno euniversal, mas como perspectiva, da mesmaforma como concebe a ideia do sujeito. Ouseja, no deixa de valer-se do conceito, daideia de sujeito, como tambm no o usacomo regulado pelo ideal eterno, bem e maleternos, o que lhes possibilita re etir comas contingncias dos acontecimentos, coma moral do perspectivismo como o prpriovalor, com o provisrio, com o transitrio.

    Nessa abordagem, podemos supor que, voluntariamente ou involuntariamente,a tese de Lyotard para a formulao doconceito de ps-modernidade carrega ostraos crticos de Friedrich Nietzsche, noque concerne descon ana de verdades eao perspectivismo.

    * Mestrando do Programa de Ps-Graduao em Filoso-a da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grandedo Sul PUCRS. E-mail: [email protected]

    Logos uma palavra grega que antes do surgimento daloso a signi cava palavra, verbo. A partir de Herclito

    passa a signi car razo, capacidade de racionalizaoindividual.

    Pathos uma palavra grega que signi ca emoo, paixo, excesso. Cosima Wagner, esposa de Richard Wagner e amigade Nietzsche.

    NOTAS

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    4 Sfocles e squilo so autores de tragdias clssicas,exaltados por Nietzsche, nas quais o heri atingido pelo Pathos do destino.

    5 Erwin Rohde era um amigo de Nietzsche a quem o l-sofo freqentemente enviava cartas.

    6 Romance, novela.

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