Posição Do Narrador No Romance Contemporâneo

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ADORNO, Theodor W. “Posição do narrador no romance contemporâneo”. In: _____. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. pp. 55-63. “... a situação do romance, enquanto forma, obriga a destacar um de sues momentos (...) o da posição do narrador. Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração. (...) O realismo era-lhe imanente. (....) No curso de um desenvolvimento que remonta o século XIX, e que hoje se intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se questionável. Do ponto de vista do narrador, isso é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade” (p. 55). “(...) Assim como a pintura perdeu muitas de suas funções tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indústria cultural, sobretudo o cinema. O romance precisaria se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato. Só que, em contraste com a pintura, a emancipação do romance em relação ao objeto foi limitada pela linguagem, já que ainda o constrange à ficção do relato (...)” (p. 56). “(...) O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada em si mesma contínua, que só a postura do narrador permite. Basta perceber o quanto é impossível, para alguém que tenha participado da guerra,

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Adorno, Theodor W.

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ADORNO, Theodor W

ADORNO, Theodor W. Posio do narrador no romance contemporneo. In: _____. Notas de Literatura I. So Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. pp. 55-63.... a situao do romance, enquanto forma, obriga a destacar um de sues momentos (...) o da posio do narrador. Ela se caracteriza, hoje, por um paradoxo: no se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narrao. (...) O realismo era-lhe imanente. (....) No curso de um desenvolvimento que remonta o sculo XIX, e que hoje se intensificou ao mximo, esse procedimento tornou-se questionvel. Do ponto de vista do narrador, isso uma decorrncia do subjetivismo, que no tolera mais nenhuma matria sem transform-la, solapando assim o preceito pico da objetividade (p. 55).

(...) Assim como a pintura perdeu muitas de suas funes tradicionais para a fotografia, o romance as perdeu para a reportagem e para os meios da indstria cultural, sobretudo o cinema. O romance precisaria se concentrar naquilo de que no possvel dar conta por meio do relato. S que, em contraste com a pintura, a emancipao do romance em relao ao objeto foi limitada pela linguagem, j que ainda o constrange fico do relato (...) (p. 56).(...) O que se desintegrou foi a identidade da experincia, a vida articulada em si mesma contnua, que s a postura do narrador permite. Basta perceber o quanto impossvel, para algum que tenha participado da guerra, narrar essa experincia como antes uma pessoa costumava contar suas aventuras. (...) Noes como a de sentar-se e ler um bom livro so arcaicas. Isso no se deve meramente falta de concentrao dos leitores, mas sim matria comunicada e sua forma. Pois contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso impedido pelo mundo administrado, pela estandardizao e pela mesmice. Antes de qualquer mensagem de contedo ideolgico j ideolgica a prpria pretenso do narrador, como se o curso do mundo ainda fosse essencialmente um processo de individuao, como se o indivduo, com suas emoes e sentimentos, ainda fosse capaz de aproximar da fatalidade, como se em seu ntimo ainda pudesse alcanar algo por si mesmo: a disseminada subliteratura biogrfica um produto da desagregao da prpria forma do romance (pp. 56-7).(...) No apenas porque o positivo e o tangvel, incluindo a facticidade da interioridade, foram confiscados pela informao e pela cincia que o romance foi forado a romper com esses aspectos e a entregar-se representao da essncia e de sua anttese distorcida, mas tambm, porque, quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfcie do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essncia como um vu. Se o romance quiser permanecer fiel sua herana realista e dizer como realmente as coisas so, ento ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas a auxilia na produo do engodo (grifos do autor). A reificao de todas as relaes entre indivduos,que transforma suas qualidades humanas em lubrificante para o andamento macio da mquina, a alienao e a auto-alienao universais, exigem ser chamadas pelo nome, e para isso o romance est qualificado como poucas outras formas de arte. Desde sempre, seguramente desde o sculo XVIII, desde o Tom Jones de Fielding, o romance teve como verdadeiro objeto o conflito entre os homens vivos e as relaes petrificadas. Nesse processo, a prpria alienao torna-se um meio esttico para o romance. Pois quanto mais se alienam uns dos outros os homens, os indivduos e as coletividades, tanto mais enigmticos eles se tornam uns para os outros. O impulso caracterstico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da ida exterior, converte-se no esforo de captar a essncia, que por sua vez aparece como algo assustador e duplamente estranho no contexto do estranhamento cotidiano imposto pelas convenes sociais. O momento anti-realista do romance moderno, sua dimenso metafsica, amadurece em si mesmo pelo seu objeto real, uma sociedade em que homens esto apartados uns dos outros e de si mesmos. Na transcendncia esttica reflete-se o desencantamento do mundo (pp.57-8).(...) as modificaes histricas da forma acabam se convertendo em suscetibilidade idiossincrtica dos autores, e o alcance de sua atuao como instrumentos capazes de registrar o que reivindicado ou repelido um componente essencial para a determinao de seu nvel artstico. (...) Quanto mais firmo o apego ao realismo da exterioridade, ao gesto do foi assim, tanto mais cada palavra se tornar um mero como se, aumentando ainda mais a contradio entre a sua pretenso e o fato de no ter sido assim. Mesmo a pretenso imanente que o autor obrigado a sustentar, a de que sabe exatamente como as coisas aconteceram, precisa ser comprovada (...). O empenho pico em no expor nada do objeto que no possa ser apresentado plenamente do incio ao fim acaba por suprimir dialeticamente a categoria pica fundamental da objetividade (pp. 58-9).O romance tradicional, cuja idia talvez se encarne de modo mais autntico em Flaubert, deve ser comparado ao palco italiano do teatro burgus. Essa tcnica era uma tcnica de iluso. O narrador ergue uma cortina e o leitor deve participar do que acontece como se estivesse presente em carne e osso. A subjetividade do narrador se afirma na fora que produz essa iluso e (...) na pureza da linguagem que, atravs da espiritualizao, ao mesmo tempo subtrada do mbito da empiria, com o qual est comprometida. Um pesado tabu paira sobre a reflexo: ela se torna o pecado capital contra a pureza objetiva. (...) Muitas vezes ressaltou-se que no romance moderno (...) a reflexo rompe a pura imanncia da forma. Mas essa reflexo, apesar do nome, no tem nada a ver com a reflexo pr-flauberiana. Esta era uma ordem moral: uma tomada de partido a favor ou contra determinados personagens do romance. A nova reflexo uma tomada de partido contra a mentira da representao, e na verdade contra o prprio narrador, que busca, como um atento comentador dos acontecimentos corrigir sua inevitvel perspectiva. A violao da forma inerente a sue prprio sentido. S hoje a ironia enigmtica de Thomas Mann, que pode ser reduzida a um sarcasmo derivado do contedo, torna-se inteiramente compreensvel, a partir de sua funo como recurso de construo da forma: o autor, com gesto irnico que revoga seu prprio discurso, exime-se da pretenso de criar algo real, uma pretenso da qual nenhuma de suas palavras pode, entretanto, escapar. Isso acontece de modo mais evidente na fase tardia, (...) onde o escritor, brincando com um motivo romntico, reconhece, pelo comportamento da linguagem, o carter de palco italiano da narrativa, a irrealidade da iluso, devolvendo assim obra de arte, nos seus prprios termos, aqueles carter de brincadeira elevada que ela possua antes de se meter a representar, com ingenuidade da no-ingenuidade, a aparncia como algo rigorosamente verdadeiro (pp. 60-1).Quando em Proust o comentrio est de tal modo entrelaado na ao que a distino entre ambos desaparece, o narrador est atacando um componente fundamental de sua relao com o leitor: distncia esttica. No romance tradicional, essa distncia era fixa. Agora ela varia como as posies da cmera no cinema: o leitor ora deixado do lado de fora, ora guiado pelo comentrio at o palco, os bastidores e a casa de mquinas. O procedimento de Kafka, que encolhe completamente essa distncia pode ser includo entre os casos extremos (...). Por meio de choques ele destri no leitor a tranqilidade contemplativa da coisa lida. Seus romances (...) so a resposta antecipada a uma constituio de mundo na qual a atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento. A distncia tambm encolhida pelos narradores menores, (...) neles se anuncia fraqueza de um estado de conscincia que no tm flego suficiente para tolerar sua prpria representao esttica, e que quase no produz homens capazes dessa representao, ento isso significa que, na produo mais avanada, que no permanece estranha a essa fraqueza, a abolio da distncia um mandamento da prpria forma, um dos meios mais eficazes para atravessar o contexto do primeiro plano e expressar o que lhe subjacente, a negatividade do positivo. (...) a diferena entre o real e a imago cancelada por princpio. (...) O sujeito literrio, quando se declara livre das convenes do objeto, reconhece ao mesmo tempo a prpria impotncia, a supremacia do mundo das coisas, que reaparece em meio ao monlogo. assim que se prepara uma segunda linguagem, destilada de vrias maneiras do refugo da primeira, uma linguagem de coisa deterioradamente associativa, como a que entremeia o monlogo no apenas do romancista mas tambm dos inmeros alienados da linguagem primeira, que constituem a massa. (...) os romances de hoje contam, aqueles em que a subjetividade liberada levada por sua prpria fora de gravidade a converter-se em seu contrrio, assemelham-se a epopias negativas. So testemunhas de uma condio na qual o indivduo liquida-se a si mesmo (...). Nenhuma obra de arte moderna que valha a alguma coisa deixa de encontrar prazer na dissonncia e no abandono. (...) O encolhimento da distncia esttica e a conseqente capitulao do romance contemporneo diante de uma realidade demasiado poderosa, que deve ser modificada no plano real e no transfigurada em imagem, uma demanda inerente aos caminhos que a prpria forma gostaria de seguir (pp. 61-3).