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POSITIVISMO "VERSUS" TEORIA CRITICA - Em torno do debate entre Karl Popper e Theodor Adorno acerca do metodo das ciencias sociais Em seu Congresso de 1961, a Sociedade de Sociologia Alema promoveu um debate em tomo do positivismo e da dialetica como model os explicativos nas ciencias sociais. Assim, sob a media<;ao de Ralf Dahrendorf eoutros, Karl Popper, considerado, as vezes, nao sem controversias, influenciado pelos membros do Circulo de Viena - mas, certamente, um pensador bastante lido e discutido por eles -, expos suas teses acerca da 16gica das ciencias sociais. Naquela ocasiao, coube a Theodor Adorno, representante da Escola de Frankfurt e, ao lado de Max Horkheimer, um dos formuladores da "teoria critica", oferecer uma replica aquelas teses tendo como ponto de partida a dialetica. Em seguida, surgiu uma serie de comentarios sobre 0 tema, alem dos que foram feitos durante 0 eventoe publicados na forma de livro, 0 que bem demonstra a sua relevancia. Tal, alias, foi ressaltado, entre n6s, por exemplo,em Marcondes (1998, p. 265), quando este lembra a importancia da "polemica dos frankfurtianos com Karl Popper,nos anos 60,em tomo da caracteriza<;ao da racionalidadecientifica", e em Freitag (1986, p. 43-52), que destaca as contribui<;oes que se seguiram aodebate, em Tlilio Velho Barreto e pesquisador da Funday30 Joaquim Nabuco e doutorando em Sociologia na UFPE. Agradeyo a Cynthia Hamlin ea Anatailde Crespo. A primeira, pelos comentarios esugest5es oferecidos quanta ao conteudo, e a segunda, quanta a forma. Contudo, os deslizes eequivocos que permaneceram SaD de l11inha inteira responsabiJidade.

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POSITIVISMO "VERSUS"TEORIA CRITICA- Em torno do debate entre Karl Poppere Theodor Adorno acerca do metodo dasciencias sociais

Em seu Congresso de 1961, a Sociedade deSociologia Alema promoveu um debate em tomo dopositivismo e da dialetica como model os explicativos nasciencias sociais. Assim, sob a media<;ao de Ralf Dahrendorfe outros, Karl Popper, considerado, as vezes, nao semcontroversias, influenciado pelos membros do Circulo deViena - mas, certamente, um pensador bastante lido ediscutido por eles -, expos suas teses acerca da 16gica dasciencias sociais. Naquela ocasiao, coube a Theodor Adorno,representante da Escola de Frankfurt e, ao lado de MaxHorkheimer, um dos formuladores da "teoria critica",oferecer uma replica aquelas teses tendo como ponto departida a dialetica. Em seguida, surgiu uma serie decomentarios sobre 0 tema, alem dos que foram feitosdurante 0 evento e publicados na forma de livro, 0 que bemdemonstra a sua relevancia. Tal, alias, foi ressaltado, entren6s, por exemplo, em Marcondes (1998, p. 265), quandoeste lembra a importancia da "polemica dos frankfurtianoscom Karl Popper, nos anos 60, em tomo da caracteriza<;aoda racionalidade cientifica", e em Freitag (1986, p. 43-52),que destaca as contribui<;oes que se seguiram ao debate, em

Tlilio Velho Barreto e pesquisador da Funday30 Joaquim Nabuco edoutorando em Sociologia na UFPE.Agradeyo a Cynthia Hamlin e a Anatailde Crespo. A primeira, peloscomentarios e sugest5es oferecidos quanta ao conteudo, e a segunda, quanta aforma. Contudo, os deslizes e equivocos que permaneceram SaD de l11inhainteira responsabiJidade.

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particular as de Herbert Marcuse, de Jilrgen Habermas e dopr6prio Adorno.

E do conteudo de tal debate que trata este artigo.Assim, aqui e abordado 0 pensamento de Popper, contidonaquelas teses, e 0 de Adorno, consubstanciado na teoriacritica, como disse, e em suas pr6prias formula((oes da"dialetica do esclarecimento" (1947) e da "dialeticanegativa" (1965) - esta ultima desenvolvida ap6s 0 debate.Nao se trata de discutir amplamente os dois autores, dada avasta obra produzida por cada um deles, mas de trazer atona aspectos pontuais expostos durante a polemicaprovocada por seus trabalhos e dos comentadores. Paratanto, alem de tratar da exposi((ao de Popper (1978a, p. 13-34) e da replica de Adorno (1986, p. 46-61), utilizam-se,aqui, os comentarios complementares feitos a posteriori porambos (Adorno, 1983a, p. 209-257; Popper, 1978b, p. 35-49). Ainda nesse sentido, faz-se necessario uma referencia aFreitag (op. cd.), que dedica uma se((ao de seu livro sobre aEscola de Frankfurt a tratar especificamente daquele debate,bem como ao comentario de Habermas sobre 0 mesmo(1983, p. 277-312).1 No final deste texto, pode-se verificar abibliografia complementar utilizada.

Por fim, 0 texto esta organizado daseguinte forma:a primeira e a segunda se((oes tratam das teses de Popper eda replica de Adorno, mas tambem do contexto em queforam formuladas as ideias originais desses autores e dasescolas que eles representam ou as quais saG associados; naterceira e ultima, a guisa de conclusao, saG expostos ediscutidos os comentarios posteriores de ambos acerca dotema.

1. Popper: do Circulo de Viena a logica dasciencias sociais

Antes de deter-me especificamente nas teses depopper, creio ser relevante destacar alguns aspectosrelacionados aquele autor, em especial ao dialogo que elemanteve com os membros do Circulo de Viena. Dentreoutras razoes, tal procedimento parece razoavel - talvezprudente - na medida em que alguns consideram quePopper foi influenciado pelas (ou influenciou as) ideiasdaquele grupo. Come((o, portanto, referindo-me en passantao Circulo de Viena e ao "positivismo 16gico", pois ja trateideles, mais detalhadamente, em outro artigo (Barreto,1999).

1.1 Popper e 0 positivismo logico do Circulo deViena

o Circulo de Viena ganhou notoriedade a partirda divulga((ao do Manifesto A Concepc;iio Cientifica doMundo, de 1929, subscrito por Hans Hahn, Otto Neurath eRudolf Carnap, onde "a rigorosa elimina((ao da metafisicado dominio do pensamento racional e 0 estabelecimento daciencia unificada por meio da redu((ao 16gica da ciencia aostermos da experiencia imediata foram anunciados" (Sauer,1996, p. 799-803; cf. tambem Pasquinelli, 1983, p. 9-22,para uma analise mais detalhada do manifesto vienense).

Com base no empirismo classico, que deuorigem ao positivismo de tradi((ao francesa, em especial asformula((oes de Comte e Durkheim, os membros do Circulode Viena admitem que 0 conhecimento factual resulta daobserva((ao e nao de proposi((oes a priori. Assim, "julgavaminsatisfat6ria a concep((ao da matemMica e da 16gica comosistemas de proposi((oes muito gerais, estabelecidasindutivamente a partir de fatos empiricos particulares"

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(Schlick-Carnap, 1983, p. xl Ademais, para eles, eraespecial mente importante, a ideia de Wittgenstein de que

"toda proposir;:ao e significativa, fornece algwnainformar;:aoacerca do estado atual do mundo, namedida em que afirme a ocorrencia de certosfatos atomicos e exclua a ocorrencia de outros.o valor de verdade de uma proposir;:ao deve,po is, poder ser determinado a partir doconhecimento da ocorrencia, ou nao-ocorrencia,dos fatos atomicos envolvidos. Imaginando-seuma linguagem capaz de exprimir cada fatoatomico, toda proposir;:ao significativa poderiaser reduzida a wna combinar;:ao de proposir;:oesatomicas mediante funr;:oes de verdade, de modoa ficar 0 valor de verdade da proposir;:aocomplexa univocamente determ.inado pelosvalores de verdade das proposir;:oes atomicascomponentes" (op. cit., p. X).

Dessa concep~ao resultou 0 princlplO daverificabilidade, formulado no ambito do Circulo, ou seja: 0

significado de uma proposi~ao esta relacionado diretamenteaos dados empiricos que resultam de sua observa~ao e que,uma vez existentes, dao veracidade a proposi~ao. Quandoisso nao ocorre, pode-se concluir que a proposi~ao e falsa.Assim, toda proposi~ao que, a principio, pode ser

2 As citac;;oes identificadas par: "Vida e Obra" in Schlick-Carnap, 1983, p.(algarismo romano), foram extrafdas da sec;;ao introdut6ria do volumededicado aqueles autores na colec;;ao Os Pensadores, de 1983, editado pela .Abril Cultural. Cantu do, as citac;;oes de obras dos referidos autores,reproduzidas na coletanea e aqui utilizadas, sao feitas segundo as nonnaisusuais, isto e, identificam-se a autor, a data da publicaC;;ao e a(s) pagina(s), 0

que permite a devida identificac,;ao da referencia na bibl iografia apresentadano final deste artigo.

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Positivismo "versus" Teoria Critica

transformada em enunciados protocolares, s6 temsignificado se for verificada empiricamente. Da mesmaforma, os membros do Circulo de Viena foram levados adefender a ideia de que e possivel submeter as proposi~5esmatemMicas e l6gicas ao principio empiricista. Entretanto ,s6 a verifica~ao empirica de tais proposi~5es definini se elassao providas de significado ou nao, se sao de fatoproposi~5es ou pseudoproposi~5es. Isto e, se sao apenasformais e desprovidas de significado, vazias de conteudo, e,portanto, mais uma linguagem do que proposi~5es acerca darealidade. Finalmente, eles estenderam a filosofia a crfticaentao formulada a metaffsica, pois s6 teria valor cientffico 0

que pudesse ser verificado empiricamente (cf. Sauer, op.cit.; Hegenberg, 1976.; cf. "Vida e Obra" in Schlick-Carnap, op. cit.). Assim, percebe-se logo a razao daimportancia que a lingilistica teve para os empiricistasl6gicos.

Os principios acima correspondem sobretudo afase mais radical do Circulo de Viena, posteriormenteabrandada, quando tomou uma fei~ao mais liberal, emespecial com Carnap. Ocorre que tais principios levaram aum impasse com rela~ao, por exemplo, as leis naturais quenao podem ser plena e definitivamente verificadas. Pararesolve-lo, Schlick propos que as leis naturais fossemtomadas nao como proposi~5es, mas como regras das quaispudessem ser deduzidas proposi~5es, sendo, entao,passiveis de verifica~ao. Mas, essa formula~ao sofreuresistencia de Carnap, que argumentava que, mesmo taisproposi~5es, nao poderiam ser submetidas ao "principio deverifica~ao". Como conseqilencia, Carnap deu nova formaao principio, concebendo as ideias ou no~5es deconfirmabilidade e testabilidade a fim de concluir se umaproposi~ao teria significado ou nao. De tal forma que, emvez de verificar se determinada proposiyao tinhacomprovayao empirica ou nao, Carnap passou a defender a

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verificayao de certo grau de confirmabilidade daquelasegundo dados empiricamente· observados. Quanto ittestabilidade, Carnap estava preocupado em saber em quegrau uma proposiyao poderia ser submetida a confirmayaoou nao. Em sintese, de seu modelo apreende-se que umaproposiyao po de ser (I) testavel completamente, (IIi)testavel apenas parcialmente, (III) confirmada parcialmenteou (IV) confirm ad a pOl' completo, que carresponderia itverificabilidade da proposiyao (Carnap, 1983, p. 171-219;cf. tambem Sauer, op. eit.; Hegenberg, op. eit.; "Vida eObra" in Schlick-Carnap, op. eit. p. X).

Mas a pr6pria identificayao de Popper com 0

Circulo e tais ideias, bem como a natureza dessa relayao, epolemica. Freitag (1986, p. 44), pOl' exemplo, afirma quePopper era ariginalmente um de seus membros. Entretanto,chama a atenyao para 0 fato de que ele, diferentemente dosp0sitivistas 16gicos, nao era partidario da identidade entre asciencias sociais e naturais em funyao da especificidade doobjeto de umas e outras. Dai, para Freitag, deriva asofisticayao do positivismo defendido pOl' Popper. Mas, haquem 0 veja como "0 principal herdeiro do positivismol6gico, embora de uma perspectiva bastante critica. [Pois,]procurando escapar dos impasses gerados pela adoyao doprincipio de verificayao e pela exigencia do estabelecimentoconclusivo da verdade das proposiyoes fundamentais,Popper formulou [...] uma inversao desse principio, atravesde seu principio da falsifieabilidade" (Marcondcs, 1998, p.263). Outros autores vaG mais alem e defendem que Popperpretendeu superar os positivistas ou empiricistas l6gicos doCirculo de Viena.

verdadeira, como a teoria da relatividade deEinstein. A ultima, deeidiu Popper, era testavel;fazia previsoes sobre 0 mundo que podiam serempirieamente eheeadas. Era 0 .que ospositivistas tinham afirmado. Mas Poppernegava a afirmac;iio positivista de que oseientistas podem provar uma teoria por induc;iio[como queria, por exemplo, Carnap com sualogiea indutivaJ ou por testes empirieos ouobservac;oes sueessivas [como outros defendemj.Nunea se sabe se as observac;oes foramsuficientes; a observac;iio seguinte podeeontradizer tudo 0 que a preeedeu. Asobservac;oes nunea siio eapazes de provar umateoria; so podel1'l provar a sua inverdade ourefuta-la. Popper eostumava se vangloriar de ter'matado' 0 positivismo logieo com essaargumentac;iio" (Horgan, 1998, p. 50).

"[A filosofia de Popper] derivava dos esforc;oSque ele fazia para distinguir a pseudoeieneia - 0

marxismo [da£ sua er£tiea ao materialismohistorieo ou historicismo de Marx], a astrologiaou a psieologia freudiana da eieneia

Embora, segundo Horgan, Popper sevangloriasse de ter superado 0 positivismo 16gico com seuprincipio da falsificabilidade ou refutabilidade, 0 fato e queele chegou a ter uma relayao intelectual bem pr6xima comos membros do Circulo de Viena, e suas primeiras obrasforam ali bastante discutidas. Entretanto, isso nao 0

impediu, e verdade, de expressar suas criticas aopositivismo 16gico. Giddens (1978, p. 344-349), parexemplo, identifica semelhanyas e diferenyas entre 0

positivismo 16gico e 0 "positivismo" popperiano. (Umaexplicayao: no caso de Popper, uso aqui 0 termo positivismoentre aspas, sobretudo porque ele nao se consideravapositivista e seu "principio da refutayao", como detalhareimais adiante, e prova empirica nao da verificayao dahip6tese, ao estilo dos empiricistas 16gicos, mas de suaaceitayao, ainda que parcial ou momentanea, ate que novostestes sejam operados.) Por um 1ado, Giddens (op. eit., p.

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345) resume assim os aspectos que ele identifica em Poppere que 0 distinguiriam dos pensadores do Circulo:

"[1] sua [de Popper] rejeir;iio total da indur;iio esua rejeir;iio concomitante da certeza 'sensoria',[. ..] manifesta como fenomenalismo oufisicalismo; [2] sua substituir;iio da verificar;iiopela refutar;iio, com a correspondente enfase naousadia e engenhosidade na formular;iio dehipoteses cientijicas; [3] sua defesa da tradir;iioque, em conjunto com a operar;iio do espiritocrWco, e fundamental para a ciencia; e [4] suasubstituir;iio da ambir;iio da logica positivista decolocar um fim na metafisica, revelando-a C0l110

um absurdo, com 0 objetivo de assegurarcriterios de demarcar;iio entre ciencia epseudociencia. "

Da mesma forma, Baudouin (1992, p. 30-1)aponta que, alem de contestar 0 "indutivismo" .dospositivistas 16gicos, adotando 0 modelo hipotetico-dedutlvo,Popper insurgiu-se contra "a eliminayao da metafisica doprocesso de conhecimento, reafirmando 0 ?apel que estapo de desempenhar na formulayao das conJec~uras ou. naconstruyao das teorias". Assim, para Baudoum, no lIvroLogica da Descoberta Cientifica, de 1935, Popper nadamais fez do que replicar as teses centrais dos membros doCirculo de Viena. ,

Mas, a controversia procede na medida em. que epossivel relacionar semelhanyas entre eles. Senao, veJamos.Popper tem a me sma posiyao dos positivistas l6g~cos quantoao fato de 0 conhecimento cientifico ser "0 mats seguro efidedigno" que se pode pretender, embora esta nao seja umaprerrogativa exclusiva do positivismo. Da mesma fonna, elesempre proCurOU demarcar claramente os lil-r:ite~. entreciencia e pseudociencia, e, ao formular 0 prmclplO da

refutayao, era cioso de que as teorias e constatayoescientfficas podiam ser submetidas a prova empfrica,condiyao necessaria para serem refutadas ou nao (Giddens,op. cit.). Da mesma forma, apesar de divergir em pontosessenciais, Popper e os positivistas 16gicos tinham comointeresse comum "a preocupayao de caracterizar a cienciaempirica por oposiyao a outras construyoes te6ricas, aimportancia concedida a l6gica na construyao dametodologia e 0 valor atribuido a experiencia comoinstancia de teste para hip6tese ou teorias" (Carvalho, 1994,p. 65). Dessa convergencia resultou "um debate fecundoentre eles", pois as crfticas de Popper nao se apoiavam em"pressupostos incomensuraveis aos do Cfrculo: era possfvelo dialogo" (Carvalho, op. cit., idem). Dialogos, esses,marcados por afinidades, 0 que nao ocorreu, como se vera,nos "dialogos" de Popper com os membros da Escola deFrankfurt.

1.2 Popper e suas teses sabre "A L6gica dasCi€mcias Sociais".

Sob 0 titulo acima, Popper elaborou, a pedido daorganizayao do Congresso de Soci6logos Alemaes, umpaper onde expos e defendeu suas principais ideiasrelacionadas sobretudo a epistemologia das ciencias sociaisna forma de teses enumeradas, visando facilitar a discussao.Esta subseyao trata de tais teses. Aqui, 0 objetivo e, antes demais nada, dar uma ideia de seu conteudo geral e destacaraqueles pontos mais relevantes para 0 debate que se seguiuentre Popper e Adorno.

Popper propoe, logo no inicio de sua exposiyao,partir de duas teses, onde ele opoe 0 conhecimento e 0 nao-conhecimento (a ignorancia). Com efeito, afirma ele,"conhecemos muito" (primeira tese), mas "nos sa ignoranciae s6bria e ilimitada" (segunda), inclusive "no campo daspr6prias ciencias naturais". No entanto, apenas

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aparentemente ha contradi<;ao entre essas duas teses, pois edo desencontro entre tais situa<;oes que surge a tensao queimpulsiona 0 conhecimento. Cabe entao it 16gica doconhecimento discutir tal tensao (terceira e quarta teses)Assim, pode-se dizer que

"[. ..] 0 conhecimento niio comec;a de percepc;oesou observac;oes ou de colec;iio de fatos ounumeros, porem, comec;a, mais propriQlnente, deproblemas. Poder-se-ia dizer: niio ha nenhumconhecimento sem problemas; Inas, tambem, niioha nenhum problema sem conhecimento. Masisto significa que 0 conhecimento comec;a datensiio entre conhecimento e ignorancia" (p. 14).

Na tese seguinte, Popper desenvolve a rela<;aoentre a importancia do problema a ser investigado e a forma(0 metodo) como isso deve ser feito. Assim, para ele, "e 0

carater e a qualidade do problema e tambem, e claro, aaudacia e a originalidade da solu<;ao sugerida, quedeterminam 0 valor ou a ausencia do valor de uma empresacientifica" (p. 15). Dito isso, e antes de apresentar sua sextae "principal tese", Popper redimensiona 0 papel daobserva<;ao para a produ<;ao e aquisi<;ao do conhecimentocientifico (quinta tese). Afirma ele:

"[Em todas as ciencias] 0 ponto de partida esempre wn problema [te6rico ou pratico] e aobservac;iio torna-se algo como um ponto departida somente se revelar um problema. [Mas]o ponto de partida de nosso trabalho cientfjico eniio tanto a pura e simples observac;iio, porem,mais adequadamente, uma observac;iio quedesempenha um papel particular, isto e, umaobservac;iio que cria um problema [depesquisa}" (idem).

Ao se referir it sexta tese como a principal,popper, e evidente, tinha uma razao maior. Nela, comoveremos a seguir, ele praticamente resume a l6gica quedefende nao s6 para a investiga<;ao no campo das cienciassociais mas tambem para as ciencias naturais. Trata-se, semduvida, de uma clara sintese de seu principio darefutabilidade, por um lado, e do que 0 pr6prio Popperdenominava de "racionalismo crftico", por outro. Por estarazao, abaixo a reproduzo na integra.

"a) 0 Inetodo das ciencias sociais, como aquefedas ciencias naturais, consiste em experimentarpossiveis soluc;oes para certos problemas; osproblemas com os quais iniciam-se nossasinvestigac;oes e aqueles que surgem durante ainvestigac;iio. As soluc;oes siio propostas ecriticadas. Se uma soluC;iioproposta niio estaaberta a uma critica pertinente, entiio e excluidacomo niio cientfjica, embora, talvez, apenastemporariamente.b) Se a soluC;iio tentada esta aberta a criticaspertinentes, entiio tentamos refuta-la; pois toda acritica consiste em tentativas de refutac;iio.c) Se uma soluC;iiotentada e refutada, atraves donosso criticismo, fazemos outra tentativa.d) Se ela resiste a critica, aceitamo-latemporariamente; e a aceitamos, acima de tudo,como digna de ser discutida e criticada maisalem.e) Portanto, 0 metodo da ciencia consiste emtentativas experimentais para resolver nossosproblemas por conjecturas que siio controladaspor severas criticas. E um desenvolvimentocritico consistente do metodo de 'ensaio e erro'.j) A assim chamada objetividade da cienciarepousa na objetividade do metodo critico. Isto

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significa, acima de tudo, que nenhuma teoriaesta isenta do ataque da critica; e mais aindaque 0 instrumento principal da critica l6gica - ~contradic;iio l6gica - e objetivo" (p. 15-16).

Como conseqlh~ncia da tese anterior, massobretudo a partir das demais que se seguem, apreende-se,dentre outras coisas, que 0 criterio para definir 0 carMercientifico de uma teoria esta na possibilidade de valida-larefuta-la e testa-la. Deve-se aceitar, ainda, que tod~conhecimento e provis6rio no sentido em que e umaverdade momentaneamente ace ita ate que seja operado novoteste, nova tentativa de refutavao. Em tal processo, enecessario, entretanto, rejeitar 0 dogmatismoconsubstanciado, para Popper, principal mente no marxismoe na psicanalise - e 0 indutivismo.

Contra 0 indutivismo, particularmente, Popperdedica varias de suas teses para ataca-lo enquanto faz adefesa da adovao do metodo hipotetico-dedutivo. Antes,porem, ele aborda, tambem em divers as teses, a questao daobjetividade e da neutralidade valorativa do conhecimentocientifico. Em ambos os casos, tais temas estao submetidosa critica 16gica. Quanto a objetividade cientifica, Popper,alem do que afirma em sua sexta tese - particularmente noultimo t6pico -, nega que ela dependa da objetividade docientista, quer ele se dedique as ciencias naturais ou associais. Ademais,

"0 que pode ser descrito como objetividadecientijica e baseado unicamente sobre umatradic;ao critica que, a despeito da resistencia,freqiientemente toma possivel criticar um dogmadominante. [Assim,] a objetividade da ciencianiio e uma materia dos cientistas individuais,porem, mais propriamente, 0 resultado social desua critica reciproca, da divisiio hostil-amistosa

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de trabalho entre cientistas, ou sua cooperac;Cioetambem sua competic;iio" (p. 23).

Quanto a questao da valoravao, segundo Popper,existem os valores e desvalores puramente cientificos e osextra-cientificos. Cabe, portanto, ao cientista criticodemarcar claramente quais os val ores e desvalores situadosem um e em outro campo, impedindo, sobremodo, queaspectos extra-cientificos se confundam com as quest5es deverdade.

Voltando agora a critica que Popper faz doindutivismo, e relevante ressaitar que, para ele, "a funvaomais importante da pura 16gica dedutiva e a de um sistemade critica" incompativel com 0 indutivismo. Mas 0 quePopper quer dizer ao usar a expressao "16gica dedutiva"?Em suas palavras:

"A l6gica dedutiva e a teoria da validade dasdeduc;oes 16gicas ou da relaC;aode conseqiiencia16gica. Uma condic;iio necessaria e decisiva paraa validade de uma conseqiiencia 16gica e aseguinte: se as premissas de uma deduc;ao validaSaG verdadeiras, entao a conclusiio deve tambemser verdadeira. [Portanto 1 a 16gica dedutiva e ateoria da transmissiio de verdade, das prem.issasa conclusao" (p. 26; grifos no original).

Dai, concluir Popper:

"A 16gica dedutiva torna-se a teoria da criticaracional, pois todo criticismo racional tOlna aforma de uma tentativa de demonstrar queconclusoes inaceitaveis podem se derivar daaflrmac;ao que estivemos tentando critical'. Setivermos sucesso em deduzir, logicamente,conclusoes inaceitaveis de uma aflrmac;Cio,entiio, a afirmac;iio pode ser colocada comodigna de ser recusada" (p. 27).

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Ja em suas teses finais, Popper, por um lado,mantem 0 foco sobre 0 "conceito de verdade", que eleconsidera indispensavel a sua abordagem critica, e acerca daideia de explicayao causal, que Ihe e tao cara, ja que "asoluyao tentada de um problema, isto e, a explicayao,consiste sempre numa teoria, em um sistema dedutivo quenos permite explicar 0 'explicandum' [aquilo que se querexplicar] relacionando-o a outros fatos (as assim chamadascondiyoes iniciais)". Com tais conceitos 16gicos, busca-se,sobretudo, a "aproximayao da verdade" e 0 "poderexplicativo de uma teoria". Por outro lado, Popperacrescenta a 16gica formal um metodo, que ele consideranecessario as ciencias sociais, denominado de "16gica dasituayao" ou "situacional". Tal metodo "consiste emanalisar suficientemente a situayao social dos homens ativospara explicar a ayao com ajuda da situayao, sem outra ajudamaior da psicologia". Para ele, trata-se de "um metodopuramente objetivo nas ciencias sociais, que bem pode serchamado de metodo de compreensao objetiva, ou de 16gicasituacional" (p. 31-32; grifos no original). E 0 pr6prioPopper que explica:

teorias ou com certas informac;oes" (ibidem;grifo no original).

Conseqtientemente, ele conclui que 0 metodo dal6gica situacional e individualista mas nao psicol6gico, eque as explicayoes que 0 metodo propicia saG"reconstruyoes racionais e te6ricas" onde 0 mundo fisico,que nos cerca e no qual agimos, e considerado.

Por fim, devo ressaltar que outras questoes foramabordadas por Popper em suas teses, mas, no meuentendimento, saG as que tratei aqui aquelas que maischamaram a atenyao de Adorno e foram discutidas por ele.Dessa forma, passo, a seguir, a expor alguns aspectos da"teoria critica", para, na seqtiencia, referir-me a replica queAdorno fez as teses de Popper a partir da dialeticaapregoada pela Escola de Frankfurt.

2. A Teoria Critica da Escola de Frankfurt e areplica de Adorno a Popper

"A compreensiio objetiva consiste em considerarque a ac;iia foi objetivamente apropriada asituac;iio. Em outras palavras, a situac;iio eanalisada 0 bastante para que os elementos queparecem, inicialmente, ser psicol6gicos (comodesejos, motivas, lembranc;as e associac;oes),sejam transformados em elementos da situac;iio.Um homem com determinados desejos, portanto,torna-se um homem cuja situac;iio pode sercaracterizada pelo fato de que persegue certosalvos objetivos,' e um homem com determinadaslembranc;as au associac;oes torna-se um homemcuja situac;iiopode ser caracterizada pelo fa to deque e equipado, objetivamente, com outras

Inicialmente, farei algumas considerayoes acercada Escola de Frankfurt, seus principais representantes eideias. Criada em 1923-24, a Escola de Frankfurt s6 adotou,de fato, tal denominayao a partir dos anos 50, quando - comexceyao de Walter Benjamin, que havia se suicidado em1940, na fronteira entre a Franya e a Espanha, de ondepretendia fugir de perseguiyao nazista - Horkheimer,Adorno, Marcuse e Habermas (este integrando-se ao gruponaqueles anos) reencontram-se na Alemanha, ap6s a derrotade Hitler e seu regime totalitario. Ao lado de Erich Fromm eFranz Neumann, formaram, entao, 0 nucleo principal daEscola. Eram pensadores com origens intelectuais einfluencias te6ricas variadas, que, sob 0 impacto dosacontecimentos da epoca (fim da monarquia na Alemanha econstituiyao da Republica de Weimar; primeira GuerraMundial; Revoluyao Sovietica; intensas lutas operarias,

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so.bretud? n~ pr~pria/~.Iemanh~;. ascensao do ~azismo etc.),alJados a reJelyao teonca e pratlca que eles dlspensavam adetenninada versao do marxismo (irradiada a partir da entaolJRSS), procuravam

"desenvolver uma teoria critica do conhecimentoe da sociedade inspirados na obra de Marx e emsuas raizes hegelianas, relacionando 0 marxismocom a tradir;iio critica moderna. 0 principalaspecto dessa critica diz respeito aracionalidade tecnica e instrwnental que teriadominado a sociedade moderna com aRevolur;iio Industrial. Essa racionalidadeinstrumental acaba por ser incorporada peladoutrina marxista ortodoxa e por correntesfilosoficas como 0 positivismo" (Marcondes, op.cit., p. 233-234).

Assim, para os frankfurtianos, era precisorebelar-se contra essa tendencia, a epoca dominante.Ademais, era "necessario desenvolver a razaoemancipat6ria, com base na crftica da dominayao e emnome da comunicayao e do consenso entre individuosracionais e livres" (idem, ibidem).

Nao parece haver duvidas, contudo, que a Escolade Frankfurt e seus principais artifices buscaram em Marx"LIma inspirayao [...] para uma analise da sociedadecontemporanea, alem de desenvolver 0 conceito de teoriacrftica e de crftica da ideologia em uma perspectivafilos6fica e sociol6gica" (ibidem), recusando 0 papel demeros comentadores ou interpretes da obra marxiana.

Ate 1933, quando a situayao ficou insustentavelna Alemanha nazista, sobretudo para intelectuais deesquerda e de origem judia, como a maior parte deles, aEscola de Frankfurt funcionou em territ6rio alemao, tendosua sede transferida; para Genebra, naquele ano, e

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posteriormente para os Estados Unidos (cf. "Vida e Obra"in Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno, 1983, p. VII-XIX).·3 Entretanto, sua primeira fase vai ate os an os 50,quando Horkheil~ler e Adorno retornam do exilio (Freitag,op. cit., p. 30). E desse perfodo, a primeira elaborayao dateoria critica, que viria a se opor "a todo pensamento daidentidade, da nao-contradiyao, tipico da filosofia desdeDescartes, denominada pelos frankfurtianos TeoriaTradicional. A Teoria Critica realiza uma incorporayao dopensamento de fil6sofos 'tradicionais', colocando-os emtensao com 0 mundo presente" (Matos, 1993, p. 12-13;grifos no original). Nesse perfodo, Horkheimer - queassumira a direyao da Escola oficialmente em 1930 -"imaginava reorganizar a reflexao filos6fica da epoca,partindo de um patamar abstrato para um nivel maisconcreto [...]", 0 que significava a elaborayao de uma teoriaque incluisse "as contribuiyoes empiricas e hist6ricas dasociologia e da moderna historiografia" (Freitag, op. eft., p.14-15).

Essa era uma intenyao ja esboyada por doisautores marxistas bastante influentes a epoca: Georg Lukacse Karl Korsch. Sob certo ponto de vista - em especial nacritica a ossificayao do marxismo -, eles exerceram papelimportante para que intelectuais viessem a formar uminstituto de estudos sobre 0 movimento operario e socialistana Alemanha ..

De um lado, Lukacs criticava 0 marxismo oficialque transformara 0 pensamento de Marx "em L1I11

dogmatismo positivista, que interpretava a hist6ria a partirde uma concepyao de ciencia naturalista, tornado a historiaamlloga a natureza bruta, com suas foryas mecanicas"(Matos, op. cit., p. 12-17; grifos no original). Para Lukacsera necessario recompor a ideia de dialetica de Marx, entilodeturpada pelo estalinismo. Pois, como ressalta Matos,

3 As citac;:5es indicadas par "Vida e Obra", aplica-se aqui a criteria expasta nanata 2 deste artiga.

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"a dialhiea e 0 pensamento da eontradic;ao.Uma aflrmac;ao e ultrapassada pOl' sua negac;ao,e esta, pOI' sua vez, pela negac;ao da negac;ao,isto e, uma nova aflrmar;ao. Esse movimento epeculiar: eada momenta de dialhiea e dahist6ria ao mesl1'zotempo ultrapassa 0 anterior eo eonserva [. ..]. 0 mhodo dialhieo deinterpretac;ao da hist6ria nao e 0

estabeleeimento previo de um eaminho a serseguido, mas Ulna orientac;ao nas possibilidadesrevolueionarias de que eada epoea e portadora"(p. 14-15; grifo no original).

Matos complementa chamando a aten<;ao paraque, segundo Lukacs, sem tal conteudo original, a dialetica"estava se perdendo em favor dafetiehizar;ao", responsavelpela "petrifica<;ao positivista, mescla de marxismo epos~tivismo. [Assim,] a dialetica de sua epoca nao passavade um metodo positivista, capaz de controlar osacontecimentos hist6ricos postulando a homologia entrenatureza e sociedade" (idel1'l,p. 15). Ja Korsch, alinhando-sea Rosa Luxemburgo, travava inumeros embates em defesade maior democracia e autonomia das organiza<;oesoperarias frente aos partidos. Dessa forma, contestava asimples aplica<;ao do modelo de revolu<;ao bolchevique noOcidente, considerando-o uma experiencia hist6rica e naoLIma f6rmula (ibidem, p. 15-17).

Enfim, tanto Lukacs quanta Korsch chamavam aaten<;ao para questoes fundamentais do marxismo, adotadasposteriormente pelos frankfurtianos em sua teoria crftica.

Feita esta breve introdu<;ao, passo a tratarespecificamente de Teoria Tradieional e Teoria Critiea, deHorkheimer, de 1937, tida quase como um manifestodaquela Escola, e de Dialhiea do Escfareeimento, deHorkheimer e Adorno, publicado 10 anos depois. As duasobras expoem as bases da teoria critica, enquanto 0 debate

entre Popper e Adorno corresponde, para Freitag, porexemplo, a fase seguinte da teoria crftica (op. eit., p. 30).Para ela, em Teoria Tradieional e Teoria Critiea,Horkheimer ja estava preocupado em tematizar "0 profundoconflito existente entre dialetica e positivismo" (idem, p.37).

2.1 Teoria Critica e a "nova" 16gica das ciemciassociais

Esta subse<;ao nao tem 0 objetivo de resenharessas duas obras, nem sequel' trazer a tona os diversos temasabordados em uma e outra, mas ressaltar sobretudo asquestoes, ali tratadas, que se referem ao debate acerca dal6gica das ciencias sociais. Ou seja, pOl' um lado,caracterizar melhor a teoria critica e, pOl' outro lado,possibilitar 0 contraponto com as teses, ja expostas, dePopper acerca do tema, 0 que vai ser feito mais adiante.

"Em primeiro lugar, eabe indagar em quesentido Horkheimer se opoe a teoria tradieional.No sentido usual da pesquisa, teoria equivale auma sinopse de proposic;oes de um campoespeeializado, ligadas de tal modo entre si que sepoderiam deduzir de algumas dessas teoriastodas as demais. Quanto menor for 0 numero dosprinC£pios mais elevados, em relar;ao aseoncfusoes, tanto mais perfeita sera a teoria. Suavalidade real reside na eonsondneia dasproposir;oes deduzidas com os fatos oeorridos.Se, ao eontr6rio, se evideneiam eontradir;oesentre a experieneia e a teoria, uma ou outra teraque ser revista. Ou a observac;ao falha, ou h6algo diserepante nos prinC£pios te6rieos.Portanto, no que eoneerne aos fatos, a teoriapermaneee sempre hipotetiea. [. ..] Esta Ii, em

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linhas gerais, a representar;:ao atualmentedifundida da esseneia da teoria" (1983a, p. 117-118).

Tal representayao, para Horkheimer, remonta aollllCIO da filosofia moderna, inaugurada com Descartes, ecorresponde a teoria tradicional, segundo seu mode10. Seria,pOl"tanto, necessario supeni-la, papel que caberia, enfim, ateoria crftica. Esta, como ja se disse, estaria filiada a trescorrentes filos6ficas alemas, ou seja: a kantiana, a hegelianae a marxiana. Na primeira, estariam estabelecidos "oslimites do exercicio da razao no conhecimento da natureza:a razao s6 pode legislar no ambito do espayo e do tempo;apenas os fenomenos sao objetos da ciencia; os juizos naciencia pertencem a uma instancia 16gica - 0 entendimento,que trabalha com a identidade dos objetos e com conceitosabstratos". Na segunda, ha uma critica a tal forma depensamento, isto e, "ao principio da identidade e aoexercicio formalizador do entendimento kantiano,considerando que as coisas e os seres hist6ricos e sociaisnao possuem uma identidade permanente, mas seconstituem por sua negayao interna. [...] Ao afirmativo epositivo kantianos, Hegel responde com a diallitiea, 0pensamento do negativo, da contradiyao que nao separasujeito e objeto, natureza e cultura". E, por fim, na terceira,a dialetica e mantida, porem Marx "a submete a umatransformayao radical: no lugar do espirito esta a Materia, ascondiyoes reais de produyao do homo eeonomieus (Matos,op. cU., p. 20-22; grifos no original). E, continua Matos,apesar da adoyao de tais bases, em especial a marxiana, osfrankfurtianos nao levaram "ao pe da letra" a tesc de Marxde que "os fil6sofos ja interpretaram 0 mundo; trata-se,agora, de transforma-lo", mas buscaram separar a reflexao ea formulayao te6ricas do ativismo bem como dos riscos deideologizayao da teoria crftica. Particularmente, nao estoubem certo se eles cumpriram suas promessas. Contudo, sei

que este e tema para outro debate.Aqui, no que nos interessa, e necessano ainda

demarcar os limites ou as diferenyas entre as teoriastradicional e crftica. Assim, e importante reproduzir doistrechos de Filosofia e Teoria Critiea, um pequeno ensaio deHorkheimer, tambem de 1937, onde e1e mais claramenteapresenta uma sintese delas. Em suas palavras:

"A teoria em sentido tradieional, eartesiano,como a que se eneontra em vigor em toda aseieneias espeeializadas, organiza a experieneiada vida dentro da soeiedade atual. Os sistemasdas diseiplinas eontem os eonheeimentos de talforma que, sob eireunstdneias dadas, saoaplieaveis ao maior numero possivel de oeasioes.A genese social dos problemas, as situar;:oesrea is, nas quais a eieneia e empregada e os finsperseguidos em sua apliear;:ao, sao por elamesma eonsideradas exteriores.[..]A teoria eritiea da soeiedade, ao eontrario, temcomo objeto os homens como produtores detodas as suas formas histGrieas de vida. Assituar;:oesefetivas, nas quais a eieneia se baseia,nao e para ela uma eoisa dada, eujo unieoproblema estaria na mera eonstatar;:ao eprevisao segundo as leis da probabilidade. 0que e dado nao depende apenas da natureza,mas tambem do poder do homem sobre ela. Osobjetos e a espeeie de pereepr;:ao, a formular;:aode questoes e 0 sentido da resposta dao provasda atividade humana e do grau de seu poder"(l983b, p. 155).

Como se ve, nos anos 30, os frankfurtianos -particularmente Horkheimer, mas nao s6 ele - lanyavam as

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