Poul Anderson - A Onda Cerebral

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A Onda Cerebral

Durante milhões de anos o nosso sistema solar vinha sendo banhado por um“cone” de radiação emitido do centro da galáxia. Esta radiação tinha o efeito de de-sacelerar determinadas reações eletroquímicas, entre elas as que têm lugar nos neu-rônios do cérebro humano e animal. Quando, em sua eterna viagem pelo espaço, aTerra sai do âmbito de influência dessa “chuva” radiativa, todos os cérebros do pla-neta aumentam espetacularmente suas capacidades, funcionando mais rápida e efici-entemente. As pessoas com mentes mais brilhantes alcançam o nível de gênios, en-quanto que as mais atrasadas se transformam em pessoas normais. Até os animaismelhoram sua inteligência e se negam a continuar servindo como animas de cargaou alimento; as espécies mais inteligentes, como os chimpanzés, chegam inclusive adesenvolver uma linguagem rudimentar. Com este nível mental, o Homem está próxi-mo a transcender sua antiga condição.

Título original: Brain Wave© 1954 By Poul Anderson

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O dia em que começou a mudança

Ao amanhecer, o coelho aproximou o focinho dos barrotes da armadilha, empur-rou–os para cima…. E ficou em liberdade. De agora em diante, o domínio do homemsobre o mundo animal havia terminado.

Antes do desjejum, um menino de dez anos começou a se enredar com alguns si-nais matemáticos por conta própria…. E inventou o cálculo diferencial. O sistema deensino em toda a nação imediatamente ficou antiquado.

No meio da tarde, o escritório de Peter Corinth, no Instituto de Estudos Avança-dos, zumbia de excitação. Tinham chegado as primeiras informações e Corinth asso-biava ao pensar nas consequências. Ainda era cedo demais para que o mundo sedesse conta do que estava acontecendo. “Mas amanhã – pensou Peter, – amanhãiam começar a falar daquilo de verdade”

Estivesse pronta para isso ou não, a humanidade ia a caminho de uma exaltaçãomental estupenda. Começava uma nova era, mais excitante e mais intensa, e nadamais seria como antes.

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A armadilha tinha se fechado ao pôr do sol.Com as últimas luzes avermelhadas, o coelho tinha dado cabeçadas contra as pa-

redes da jaula, até que o medo e o torpor o invadiram dolorosamente e ele ficou en-colhido e estremecido pelas palpitações do seu próprio coração. Quanto ao resto,não havia nele noção de que a noite e as estrelas chegavam. Mas quando a lua saiue sua claridade foi captada frigidamente por seus grandes olhos, olhou através dassombras para a floresta.

Sua visão não estava habituada a focar de perto, mas após um instante se fixou naporta da armadilha. Ela tinha descido de repente quando ele entrara e depois houve-ra somente aquelas entediantes e magoantes batidas contra a madeira. Agora, lenta-mente, esforçando–se em meio à branca e irreal claridade da lua, lembrou–se daporta quando cara sobre ele, ainda estremecido de terror. Mas a porta estava ali ago-ra, destacando–se sólida e foscamente contra a floresta palpitante; entretanto ela es-tivera levantada e caíra de repente. E aquilo, com sua dubiedade, era algo que o co-elho não havia conhecido antes.

A lua ergueu–se mais, fazendo seu giro pelo firmamento cheio de estrelas. Umacoruja piou e o coelho ficou paralisado de medo quando ela voou fantasmagorica-mente sobre sua cabeça. Também havia terror e assombro e uma dor de um novogênero no canto da coruja. Logo em seguida, a coruja se foi e só havia em torno docoelho os múltiplos e pequenos murmúrios e cheiros da noite. E ele ficou durantemuito tempo olhando para a porta e recordando como ela havia caído.

A lua começava a declinar também no pálido céu ocidental. Por acaso, o coelhochorou um pouco, a seu modo. Um amanhecer que era somente uma neblina na es-curidão perfilava os barrotes da jaula contra as árvores cinzentas. E abaixo, na porta,havia um barrote transversal.

Lentamente, muito lentamente, o coelho foi se aproximando até ficar junto à por-ta. Tinha medo daquela coisa que o havia aprisionado. Cheirava a homem. Depoisapalpou com o focinho, sentindo–a fria e úmida em seus lábios. A porta não se mo-veu; mas tinha caído.

O coelho se agachou, empurrou seu lombo contra barra transversal, então fez umesforço para cima e a madeira estremeceu. A respiração do coelho ficou mais rápidae forte, silvando entre seus dentes. Tentou de novo. A porta se moveu para cima nasranhuras e o coelho, com um salto, ficou em liberdade.

Por um momento ficou loucamente oprimido. A lua que se punha era um brilho ce-gante em seus olhos. A porta voltou de repente para seu lugar e ele se afastou dali,fugindo.

Archie Brock tinha ficado no campo até tarde, arrancando tocos no acre quarenta

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norte. O senhor Rossman queria que todos eles fossem arrancados até a quarta–fei-ra, a fim de poder começar a arar o novo campo, e prometeu a Brock um pagamentoextra se ele cuidasse daquilo. Assim, Brock jantou levemente e ficou trabalhando atéficar escuro demais para enxergar. Então começou a andar as três milhas que haviaaté sua casa, porque não o deixavam usar nem o jeep nem um caminhão.

Estava extremamente cansado, um pouco dolorido e com vontade de tomar umbom copo de cerveja. Mas, sobretudo, de não pensar em nada. Limitava-se a levan-tar os pés e baixá–los, enquanto o caminho deslizava atrás dele. Havia bosques som-brios de um e de outro lado da estrada que lançavam longas sombras contra a poeirabranca da lua e se ouvia o canto dos grilos e uma vez o de uma coruja. Tinha quepegar uma espingarda para matar aquela coruja antes que ela levasse algumas gali-nhas. O senhor Rossman não se importava que Brock caçasse.

Era divertido a forma como continuava pensando nas coisas aquela noite. Normal-mente se limitava a andar, sobretudo quando estava cansado, mas agora – talvezfosse por causa da lua – continuava recordando coisas fragmentadas. E as palavras,sem saber como, iam se formando por si só em sua cabeça, como se alguém as esti-vesse dizendo. Pensou em sua cama e como seria bom voltar para casa de carro de-pois do trabalho; só que quando ele dirigia, se atrapalhava um pouco e já tinha dadoalguns tropeços. Era curioso que lhe tivesse ocorrido isso, porque de repente dirigirlhe parecia facílimo; não precisava senão aprender alguns sinais e manter os olhosbem abertos; isso era tudo.

O som dos seus passos ressoava na estrada. Aspirou profundamente o ar fresco danoite e olhou para cima, mais além da lua. Nesta noite as estrelas pareciam aindamaiores e brilhantes.

Outra lembrança lhe veio à mente: alguém havia dito que as estrelas eram como osol, só que estavam muito mais distantes. Não tinha compreendido grande coisa da-quilo. Mas se por acaso fosse como uma luz, que era uma coisa pequena até que al-guém se aproximava e então ficava grande. Mas se as estrelas eram tão grandescomo o sol, tinham que estar terrivelmente distantes.

Parou de repente, sentindo que um calafrio repentino lhe percorria o corpo.Valha–me Deus, como aquelas estrelas deviam estar distantes!A terra parecia desaparecer sob seus pés; e ele estava pendurado em uma pedri-

nha que girava sobre si mesma na escuridão; e as grandes estrelas brilhavam e eco-avam ao seu redor, tão altas, que sentia vontade de chorar só de pensar.

Começou a correr.

O menino levantava cedo até no verão, quando não havia aula e o desjejum aindanão estava preparado. A rua e cidadezinha que estavam do outro lado da janela pa-reciam muito limpas e brilhantes na nascente claridade solar. Somente um caminhãomatraqueava estrada abaixo e um homem de macacão azul ia para a leiteria levandoa marmita do almoço. Fora isso, era como se tivesse o mundo inteiro para si. Seu paijá tinha saído para trabalhar e sua mãe gostava de ficar na cama mais uma hora de-pois de preparar o desjejum do pai. Sua irmã ainda estava dormindo. Então o meni-no estava totalmente sozinho em casa.

Seu amigo viria e eles iriam pescar. Mas antes queria trabalhar um pouco mais emseu modelo de avião. Lavou–se tão conscienciosamente como se poderia pedir a umgaroto de dez anos, pegou um pãozinho da dispensa e voltou para seu quarto e para

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a mesa cheia de coisas. O avião ia ser uma verdadeira preciosidade, um ShootingStar, com um cilindro de CO² sendo o propulsor. Mas ele não sabia porque naquelamanhã o avião não parecia tão bonito como na noite passada. Gostaria de fazer, emvez deste, um verdadeiro motor a propulsão.

Suspirou, deixou de lado o trabalho e pegou uma folha de papel. Sempre gostarade garatujar números e um dos seus professores lhe havia ensinado um pouco de ál-gebra. Alguns dos seus colegas diziam que ele era o predileto do professor, até elecomeçar a dar chutes neles. Mas a álgebra era uma coisa realmente interessante;não era como aprender a tabuada de multiplicar. Ali se conseguia que os números eas letras fizessem alguma coisa. O professor lhe dizia que se realmente desejavaconstruir naves espaciais, quando fosse mais velho, teria que aprender muita mate-mática.

Começou traçando alguns sinais. Os diferentes tipos de equações formavam figu-ras diferentes. Era curioso ver como x–y+c formava uma linha reta, enquanto quex²+y²–c era sempre um círculo. Mas se trocava uma das letras, fazendo–a igual a 3,em lugar de 2, que aconteceria então com o y? Não tinha lhe ocorrido pensar nissoantes!

Pegou o lápis com força, com a ponta da língua assomando por uma comissura daboca. Não precisava senão diminuir um pouquinho o x e o y, trocar um deles, só ima-ginariamente um pouquinho e então….

Estava no bom caminho para inventar o cálculo diferencial, quando sua mãe o cha-mou para tomar café.

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Peter Corinth saiu da ducha, ainda cantando energicamente, e encontrou Sheilaatarefada em fritar o toucinho e os ovos. Assanhou–lhe o suave cabelo castanho,beijou–a no pescoço e ela se voltou para sorrir–lhe.

– Parece um anjo e cozinha como um anjo – disse ele. – Por que, Peter – perguntou ela – você nunca….? – Nunca consigo achar as palavras – concordou ele. – Mas, meu amor, é a pura

verdade.Inclinou–se sobre a frigideira, aspirando o aroma da fritura com um suspiro conti-

do. – Tenho a impressão de que hoje é um desses dias em que tudo correrá bem –

disse ele. – Um pouco de Hubris, pelo que os deuses indubitavelmente quererão en-via uma Nêmesis para mim. Ate, a grande cadela, queimou uma lâmpada. Mas vocêconsertará tudo.

– Hubris, Nêmesis, Ate – uma ruguinha carrancuda contraiu a testa larga e lisadela. – Você já usou essas mesmas palavras outra vez. Que significam?

Ele piscou ao olhá–la. Dois anos de casamento e continuava profundamente apai-xonado por sua esposa. E quando ela estava ali, o coração se agitava em seu peito.Era carinhosa, alegre, bela e sabia cozinhar. Mas não tinha nada de intelectual; equando seus amigos vinham vê–lo, ela se recostava tranquilamente em uma poltronae não tomava parte na conversa.

– Em que está pensando? – perguntou ele. – Simplesmente pensava – respondeu ela.Ele entrou no quarto e começou a se vestir, deixando a porta aberta a fim de po-

der explicar os elementos básicos da tragédia grega. Aquela manhã ele estava alegredemais para se ocupar muito de um tema tão sombrio; mas ela o escutou com aten-ção, fazendo uma ou outra pergunta. Quando ele saiu, Sheila sorriu para ele.

– Ah que homem tão desajeitado – disse ela. – Não há ninguém como você paravestir um terno recém–chegado do tintureiro e fazer parecer que estava consertandoum carro vestido com ele.

Arrumou–lhe a gravata e puxou para baixo o paletó enrugado. Ele passou umamão pelos cabelos negros, fazendo com que ficassem imediatamente despenteados,e foi para a mesa da cozinha. Uma lufada de vapor da cafeteira embaçou seu óculosde armação de chifre. Ele tirou e limpou na gravata. Seu rosto magro, com o narizquebrado, parecia diferente sem os óculos; mais juvenil. Como se só tivesse trinta etrês anos, que era sua verdadeira idade.

– Me veio à cabeça, precisamente no momento de acordar – disse ele, enquantountava a torrada com manteiga, – que afinal de contas devo ter um subconscientebem treinado.

– Quer dizer que encontrou a solução do seu problema – Perguntou Sheila.

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Ele assentiu, absorto demais para refletir no que supunha a demanda dela. Geral-mente, Sheila deixava que ele continuasse, dizendo “sim”, ou “não” no lugar apropri-ado, mas sem realmente escutar. Para ela, o trabalho do seu marido era uma coisainteiramente misteriosa. Algumas vezes ele achava que sua esposa vivia no mundodas crianças, nada muito bem conhecido, mas todo ele brilhante e estranho.

– Venho tentando construir um analisador de fases para os nexos de ressonânciamolecular na estrutura dos cristais – disse ele. – Bem, não importa. A questão é queeu estive emperrado durante as últimas semanas. Eu tentava desenhar um circuitoque pudesse servir para o que eu precisava, mas sempre queimava. Acordei esta ma-nhã com uma ideia que pode funcionar bem. Vamos ver…. – os olhos dele olharammais além dela e comeu sem sentir o gosto do que comia. Sheila ria muito baixinho.

– Pode ser que eu chegue tarde esta noite – disse ele na porta. – Se esta novaideia funcionar, não quero interromper o trabalho até que…. Deus sabe quando. Euligarei.

– Está bem, meu amor, espero que consiga.Depois dele sair, Sheila ficou sorridente por um momento. Peter era…. Bem…. Ela

tivera sorte, isto era tudo. Não dera conta realmente de quão afortunada era; masaquela manhã parecia diferente, sem saber por quê. Tudo se destacava, limpo e ta-xativo, como se estivesse ali em cima, nas montanhas do Oeste, que seu marido tan-to gostava.

Cantarolava para si mesma enquanto lavava a louça e arrumava o apartamento.Vieram–lhe recordações da sua infância na pequena cidade da Pensylvania, dos as-suntos do colégio, da sua vinda para Nova Iorque, há quatro anos, para se encarre-gar do trabalho burocrático no escritório de um conhecido da família. Mas, valha–meDeus, não era feita para esse tipo de vida. Uma festa após outra e um amigo após ooutro, todo mundo falando depressa, agitando–se, cuidadosamente insensibilizados ecom conhecimentos; a multidão esbanjadora, mas conhecedora dos valores do mer-cado, entra a qual ela tinha que estar sempre em guarda…. Muito bem, havia se ca-sado com Peter, por vingança, quando Bill se afastou dela chamando–a deestúpida…. Pouco importava. Mas ela sempre tinha gostado daquele homem tranqui-lo e tímido e havia rechaçado todo um conceito de vida.

“E estou mais gorda – disse a si mesma – e me alegro de estar.”Uma existência de dona de casa comum e corriqueira; nada mais espetacular que

alguns amigos para tomar cerveja e conversar; ir à igreja de vez em quando, en-quanto Peter, o agnóstico, dormia até mais tarde; viagenzinhas de férias na Nova In-glaterra ou nas Montanhas Rochosas; projetos de logo ter um filho…. Quem queriamais? Seus amigos de antigamente estavam sempre dispostos a rir sobre o tédio daexistência burguesa, tola e gasta; mas quando alguém se metia naquela vida, nãoteria também senão uma rotina e uma série de lugares comuns em lugar de outros,e parecia que a pessoa tinha algo, em troca.

Sheila balançou a cabeça, intrigada. Não era próprio dela ter fantasias diurnascomo aquelas. Seus pensamentos, não sabia porque, tinham se tornado diferentes.

Terminou as tarefas domésticas e olhou ao redor. Ordinariamente, descansava umpouco antes do almoço, fazendo alguns dos trabalhos manuais que eram seu maiorvício; depois disso tinha que fazer algumas compras, dava um passeio pelo parque,fazia ou recebia alguma visita de alguma amiga e depois preparava a janta para Pe-ter e esperava. Mas hoje….

Pegou a novela policial que tinha o propósito de ler. Por um momento, a brilhante

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capa ficou em suas mãos indecisas, então voltou a colocá–la de volta, olhou para aestante repleta e pegou um exemplar manuseado de Lord Jim, de Peter, e voltou àpoltrona. Transcorreu metade de uma tarde antes que se desse conta de que tinhaesquecido o almoço.

Corinth se encontrou com Felix Mandelbaum no elevador quando descia. Eramaquela rara combinação que resulta de serem vizinhos de um edifício de apartamen-tos em Nova Iorque e se tornarem amigos íntimos. Sheila, com sua formação provin-ciana, tinha insistido em conhecer todos do mesmo andar, pelo menos, e Corinthgostou disso, pelo menos no caso dos Mandelbaum. Sarah era uma espécie de Haus-frau, roliça, tranquila e retirada, agradável, mas não com muito colorido; seu esposoera uma pessoa completamente diferente dela.

Felix Mandelbaum tinha nascido há cinquenta anos no baixo East Side, barulhento,sujo e de oficinas de dura exploração. Desde então a vida vinha lhe tratando às pata-das, mas ele tinha respondido do mesmo modo com uma enorme jovialidade. Tinhasido desde coletor de frutas ambulante até um hábil maquinista e mecânico na Mari-nha, durante a guerra, no outro lado do mar, onde seus dotes para os idiomas e tra-tamento com as pessoas tiveram tempo de se exercitarem. Sua carreira como organi-zador de trabalhadores transcorreu regularmente, desde quando era membro da an-tiga I.W.W até a relativa respeitabilidade correspondente ao seu cargo atual de se-cretário–executivo oficial do sindicato local, na realidade um liquidador de conflitosambulante com voz nos conselhos nacionais. E não é que tivesse sido radical desdeos vinte anos; ele dizia que tinha visto o radicalismo por dentro e que isso era o sufi-ciente para qualquer homem sensato. Certamente pretendia ser um dos últimos ver-dadeiros conservadores, mas para conservar é necessário podar, enxertar, acrescen-tar. Era autodidata, mas tinha lido muito e tinha mais capacidade para a vida quequalquer outro do círculo de amizades de Corinth, excetuando–se Nathan Lewis, na-turalmente.

– Olá – disse o físico. – Hoje está atrasado. – Não exatamente – Mandelbaum falava com o duro sotaque de Nova Iorque: de-

pressa e suprimindo letras e palavras. Era um sujeito pequeno, forte, de cabelos gri-salhos, com cara de ave de rapina e olhos intensamente negros.

– Eu acordei com uma ideia. Um plano de reorganização. É assombroso que issonão tenha ocorrido a ninguém até agora. Reduzirá a papelada pela metade. Por istoestou esboçando uma carta de trabalho.

Corinth balançou a cabeça, tristemente. – Mas, Felix, você deve saber que os americanos são acostumados demais com a

papelada para renunciar a uma só folha. – Você não viu os europeus – rosnou Mandelbaum. – É curioso – disse Corinth – que você não tenha tido essa ideia até agora. Lem-

bre–me mais tarde de obter detalhes, parece algo interessante. Eu acordei com a so-lução de um problema que estava me desconcertando desde o mês passado.

– Sim?Mandelbaum se abalançou sobre aquele fato. Quase se podia vê–lo dando voltas

nele em suas mãos, farejando–o e deixando–o outra vez.– Estranho – disse. Era uma despedida.O elevador parou e eles se separaram. Corinth pegou o metrô, como de costume.

Quanto aos carros, ele opinava como a maioria, que naquela cidade fazia sentido ter

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um carro próprio. Observou de um modo impreciso que o trem estava mais silenciosoque de costume. As pessoas pareciam menos apressadas e menos descorteses, ti-nham a aparência de estarem pensativas. Deu uma olhada nos jornais, se pergun-tando, depois de engolir em seco, se aquilo teria começado. Mas não havia nada ver-dadeiramente sensacional…. Só aquele anúncio local sobre um cachorro que ficarasozinho em um sótão durante a noite, e que, não se sabia como, tinha aberto o refri-gerador e colocado a carne para descongelar; e assim foi encontrado: alegre, se dan-do um banquete. Quanto ao mais, se lutava aqui e ali, por todo o mundo; uma gre-ve, uma manifestação comunista em Roma, quatro mortos em um choque decarros…. Palavras. Era como se as rotativas espremessem o sangue de tudo que pas-sava por elas.

Subindo até a superfície de Manhattan, andou três quarteirões até o InstitutoRossman, coxeando um pouco. O mesmo acidente no qual tinha quebrado o narizanos atrás, também lhe produziu lesões em seu joelho esquerdo e o livrou do serviçomilitar; embora o fato de ter sido enviado com um safanão da sua graduação juvenildo colégio para o Projeto Manhattan pudesse ter tido algo a ver com isso.

Sobressaltou–se ao se lembrar. Hiroshima e Nagasaki ainda pesavam duramenteem sua consciência. Tinha abandonado aquilo imediatamente após a guerra; e nãofoi somente para retomar seus estudos ou escapar da panelinha e realçar uma mes-quinha intriga da investigação oficial, passando para a vida acadêmica, sensata e malpaga; tinha sido uma fuga pela culpabilidade. Essas também eram suas últimas ativi-dades, segundo acreditava: nos Cientistas Atômicos, na União Federalista Mundial,no Partido Progressista. Quando pensava em como aquelas organizações foram mur-chando e como haviam sido atraiçoados, e quando recordava dos flamantes clichêsque tinham sido levantados como um escudo entre ele e os criticismos soviéticos –visíveis para qualquer um que tivesse olhos, – se perguntava até que ponto os pro-fessores eram sensatos, depois de tudo.

Mas era uma coisa mais equilibrada sua atual retirada diante da investigação e apassividade política…. Votando em uma decepcionante candidatura democrata e semfazer mais nada? Nathan Lewis, que o qualificava francamente de reacionário, eraum membro do comitê local do partido republicano e um animoso e extremado pes-simista. E Felix Mandelbaum tinha esperanças e energia. Até projetava criar no fimum partido trabalhista americano. Entre eles, Corinth ficava bastante descolorido.

“E eu sou mais jovem que qualquer um!”, Se dizia.Suspirou. Que estava lhe acontecendo? Os pensamentos continuavam se agitando,

brotando não sabia de onde. As coisas esquecidas se encadeavam entre si, em ca-deias que ressoavam dentro da cabeça. E precisamente quando ele tinha que resol-ver seu problema também. A reflexão fez com que os demais problemas fossem des-cartados. Até isso também; normalmente era lento para variar qualquer rumo dosseus pensamentos.

Avançou com uma vivacidade renovada. O Instituto Rossman era uma molde depedra que preenchia meio quarteirão e que era quase resplandescente ao lado dosmais antigos da vizinhança. Era conhecido como o céu dos cientistas. Para lá eramatraídos os homens capazes de todos os lugares e de todas as disciplinas, não pelobom salário e sim pela possibilidade de fazer, sem obstáculos, sua própria escolha,com equipes de primeira ordem e porque não havia nada da projectitis que estavaestrangulando a ciência pura no governo e na indústria em demasiadas universida-des. Havia a inevitável politicagem e os mexericos, mas em menor número que na

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maioria dos colégios; o Instituto para Estudos Avançados era russo e mais energéti-co, talvez, e certamente contava com muito mais amplitude.

Lewis havia dito a Mandelbaum, como uma prova da necessidade cultural de umaclasse privilegiada:

– Acha que pode haver algum Governo que funda uma coisa assim e que depois, oque é mais importante, tenha o bom senso de deixá–la continuar por si mesma?

– Brookhaven faz isto muito bem – tinha dito Mandelbaum.Mas para ele era uma resposta fraca.Corinth cumprimentou com a cabeça a garota da banca de jornais do vestíbulo,

que estava conversando com alguns conhecidos, e desapareceu na lentidão do eleva-dor.

– Sétimo – disse automaticamente, quando chegou.– Devo saber, senhor Corinth – respondeu sorridente o ascensorista. – O senhor

tem aqui, vamos ver…. Quase seis anos até hoje, não é isso?O físico piscou. Aquele homem havia sido para ele somente uma peça do elevador.

Trocaram as piadas de costume, mas aquilo não significava nada. De repente Corintho viu como um ser humano, como um organismo vivo único, como parte de umarede impessoal enorme, que em último termo se convertia em todo o universo, e,entretanto, levando consigo sua própria alma. “Bem – disse a si mesmo, assombra-do, – por que hei de pensar nisso?”

– Sabe – disse o ascensorista, – eu estive pensando. Acordei hoje de manhã e co-mecei a pensar para que estava fazendo isto e se realmente tiro disto alguma coisaalém do meu trabalho e da minha pensão e…. – fez uma pausa desajeitada, pois pa-raram para deixar um passageiro no terceiro andar. – Eu lhe invejo, você está indopara algum lugar.

O elevador parou no sétimo.– Você poderia…. Bem, você poderia fazer um curso noturno – disse Corinth.– Creio que sim, é o que desejo, senhor. Se tivesse a amabilidade de me recomen-

dar….– Bem, em outra ocasião. Tenho que ir agora.As portas deslizaram ao longo da jaula e Corinth desceu para os corredores de

mármore puro do seu laboratório.Tinha uma planilha fixa dos dois: Johansson e Grunewald; jovens concentrados em

seu trabalho que provavelmente sonhavam em ter laboratórios próprios algum dia. Jáestavam ali quando ele entrou e tirou o paletó.

– Bom dia…. Bom…. Bom.– Eu estive pensando, Peter – disse Grunewald de repente, quando o chefe foi

para sua mesa. – Tive uma ideia sobre um circuito que poderia funcionar….– Et tu, Brute – murmurou Corinth. Sentou–se em um tamborete, dobrando as

pernas. – Venha – disse a ele.A ideia de Grunewald parecia notavelmente paralela à sua. Johansson, geralmente

silencioso e capaz, mas só isso, lançava avidamente os sinos ao voo pelas coisas quelhe ocorriam. Corinth tomou a cargo dirigir a discussão; e durante meia hora ficaramenchendo papéis com os símbolos esotéricos da eletrônica.

Por acaso, Rossman não estava totalmente desinteressado ao fundar o Instituto,embora que um homem com uma conta no banco como ele pudesse se permitir aoluxo de ser altruísta. A pesquisa pura ajuda a indústria. Ele tinha feito sua fortunacom metais leves, desde a matéria–prima até os produtos terminados, em estreita

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relação com uma dúzia de outros negócios. Oficialmente semi–aposentado, continua-va segurando os fios em suas finas mãos. Até a bacteriologia podia ser proveitosa –não fazia muito tempo, haviam sido feitos trabalhos sobre a extração bacteriana doóleo de baleias – e os estudos de Corinth sobre os nexos dos cristais podiam signifi-car muito para a metalurgia.

Grunewald estava bastante satisfeito ante a perspectiva que o êxito poderia trazerpara sua reputação profissional. Antes do meio–dia tinha estabelecido uma série deequações parciais diferenciais que passariam para a calculadora nas folhas fixadasregularmente para seu uso e começaram a desenhar os elementos do circuito quedesejavam.

Um telefone tocou. Era Lewis, que estava chamando para almoçar com ele.– Vou fazer isso rápido, hoje – disse Corinth. – Achou que vou me limitar a pedir

que me subam uns sanduíches.– Bom, acontece o mesmo comigo. E além disso quero que você saiba no que es-

tou metido – insistiu Lewis. – Não estou muito seguro e pode ajudar a esclarecer mi-nha ideia passando–as para você.

– Ah, então muito bem. Convém–lhe o Commissary?– Se você deseja simplesmente encher a barriga, creio que sim.Lewis era partidário dos almoços de três horas, completadas com vinho e violinos.

Um costume que tinha adquirido durante seus anos em Viena, antes do Anschluss.– Uma hora está bom para você? Nessa hora os camponeses já terão atacado a

comida.– Muito bem.Corinth desligou o telefone, absorvendo–se novamente no frio êxtase do seu tra-

balho. Deu uma e meia antes que se desse conta da hora e saiu correndo.Lewis acabava de se sentar na mesa quando Corinth levou para lá sua bandeja.– Imaginei pelo seu jeito de falar que ia chegar tarde – disse. – O que tem para

comer?– O menu habitual das cafeterias, acho: ratos afogados em leite desnatado, filé de

ouriço do mar, assado especial do chefe…. Bem, pouco importa – sorveu o café e fezum gesto.

Não tinha uma aparência delicada. Era encorpado e baixo, com uns quarenta eoito anos; começava a engordar um pouco e ficar calvo. Os olhos eram penetrantespor trás dos óculos sem aro. Era certamente aficionado à comida e à bebida. Masoito anos na Europa muda o gosto e ele insistia que suas visitas ali, no pós–guerra,haviam sido puramente gastronômicas.

– O que você precisa – disse Corinth, com a afetação do convertido – é se casar.– Eu costumava acreditar nisso quando comecei a deixar para trás meus tempos

de libertinagem. Mas, bem, não importa. Agora é muito tarde.Lewis atacou uma bisteca ao minuto, que ele sempre pronunciava como se minuto

fosse sinônimo de minúsculo, e rosnou de boca cheia:– Agora estou mais interessado no aspecto histológico da biologia.– Você falou que estava com dificuldades….– Sobretudo com meus assistentes. Hoje todo mundo parece exaltado; o jovem

Robert se saiu com ideias ainda mais disparatadas que de costume. Mas se trata domeu trabalho. Eu lhe disse, não foi? Estou estudando as células nervosas, os neurô-nios. Tentando mantê–los vivos em diferentes meios artificiais e ver como variamsuas propriedades elétricas segundo as condições. Eu as mantenho em seções exci-

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tadas de tecidos; técnica de Lindbergh–Carrel com modificações. Tudo ia funcionan-do muito bem, então hoje, quando fizemos a verificação de costume, o resultado foidiferente. Então testei todos e…. Todos e cada um haviam mudado.

– Eh? – Corinth franziu as sobrancelhas e mastigou em silêncio durante um minuto– Alguma coisa que funcionava mal em seus aparelhos?

– Não que eu saiba. Não tem nada diferente…. Exceto as próprias células. Umamudança pequena, mas significativa – a voz de Lewis ficou mais apressada, com umtraço de crescente excitação. – Você sabe como funciona o neurônio? Como um con-tador digital. É excitado por…. Um estímulo, lança um sinal e depois disso fica inativopor um breve tempo. O neurônio contíguo no nervo recolhe o sinal, transmite–o etambém fica inativo. Bom, pois acontece que hoje tudo ficou apressado. O tempo deinatividade é uma boa quantidade de microssegundos menor e…. Bem, digamos quetodo o sistema reage significativamente mais depressa que o normal. E os sinaistambém são mais intensos.

Corinth resumiu a informação brevemente e depois disse lentamente:– Parece como se tivesse dado com alguma coisa importante.– Bom, mas qual é a causa? O meio, os aparelhos, tudo o mesmo de ontem, eu

lhe asseguro. Estamos ficando loucos, tentando verificar se topamos com um prêmioNobel em potencial ou se é simplesmente alguma geringonça técnica.

Lentamente, como se sua mente tivesse sido desviada de algo que havia entrevis-to obscuramente, Corinth disse:

– É estranho que isso tenha acontecido hoje.– O que? – Lewis olhou para ele de modo penetrante e Corinth referiu seus pró-

prios encontros – muito estranho – concordou o biólogo. – E ultimamente não temhavido grandes tempestades. O ozônio estimula a mente, mas sempre mantenhomeus cultivos selados e debaixo de vidro…. – alguma coisa brilhou em seus olhos.

Corinth olhou ao redor.– Olá, Helga. Estranho que tenha se atrasado tanto. Ei, aqui! – levantou–se e fez

sinais para Helga Arnulfsen, que levou sua bandeja para e mesa deles e se sentou.Ela era uma mulher alta, bonita, com uma longa cabeleira loira recolhida apertada-

mente em torno da sua cabeça erguida. Mas alguma coisa em seus modos – umaenergia impessoal, um distanciamento, talvez a falta de feminilidade em sua formade falar e de vestir – fazia com que fosse menos atraente do que poderia ser. Não ti-nha mudado desde os velhos tempos, deste antes da guerra, pensou Corinth. Tinhase doutorado em Minnesota, onde estudou jornalismo, e ali tinham se divertido jun-tos, mesmo ele estando então muito apaixonado pelo seu trabalho e por outra mu-lher para pensar seriamente nela. Depois tinham mantido correspondência e ele ti-nha lhe conseguido um posto de secretário no Instituto, fazia isto dois anos. Era atu-almente auxiliar do chefe administrativo e fazia um bom trabalho neste cargo.

– Ufa! Que dia! – passou uma forte e delicada mão nos cabelos, alisando–os, e lhesorriu com ar de cansaço.

– Todo mundo está tendo conflitos e todos querem que eu me encarregue. Gertiepegou uma birra….

– Hein?Corinth ficou olhando para ela um tanto desolado. Tinha contado com a calculado-

ra para resolver suas equações aquele dia.– Que está acontecendo?– Só Deus e Gertie sabem; e nenhum dos dois me disse. Allanbee fez um teste ro-

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tineiro esta manhã e saiu errado. Não muito, mas o suficiente para tirar do sérioqualquer um que precise de respostas precisas. Vem procurando nela desde então,tentando encontrar a dificuldade, até agora sem êxito. E eu tive que marcar um novohorário para todos.

– Muito estranho – murmurou Lewis.– Depois disso, diferentes instrumentos, especialmente nas seções de física e quí-

mica, estão um pouco enlouquecidos. O polarímetro de Murchison teve um erro de….Bem, uma coisa terrível, coisa de um décimo por cento, não sei.

– Ah, sim? – Lewis abriu a boca e se lançou sobre os pratos – Então talvez não se-jam meus neurônios, e sim meus instrumentos que estão desajustados. Mas não,não pode ser. Não até este ponto. Tem que ser alguma coisa nas próprias células.Mas como posso medir isso se os instrumentos estão todos errados.

– Um monte de garotos subiu de repente com projetos brilhantes – prosseguiuHelga. – Querem utilizar os instrumentos imediatamente, como a grande centrífuga,e ficam furiosos quando lhes digo que têm que esperar sua vez.

– Todos hoje? – Corinth deixou sua sobremesa de lado e pegou um cigarro. “Cadavez mais curioso”. Os olhos deles se arregalaram e a mão que sustentava o fósforotremeu levemente. – Nathan me perguntou….

– Um fenômeno geral? – Lewis assentiu com um gesto, contendo sua excitaçãocom algum esforço. – Pode ser, pode ser. Sem dúvida, seria melhor averiguar.

– De que está falando? – perguntou Helga.– De coisas – explicou Corinth, enquanto ela terminava de comer.Lewis permaneceu calado e inclinado para trás, lançando no ar a fumaça do charu-

to, concentrado.– Hum! – Helga tamborilou na mesa com suas longas unhas sem pintar – Parece

interessante…. Não teriam sido todas as células nervosas aceleradas de repente, in-cluindo as dos nossos próprios cérebros?

– É algo mais básico que isto – disse Corinth. – Alguma pode ter acontecido a…. Aque? Aos fenômenos eletroquímicos? Como vou saber? Não nos aprofundemos de-mais até que tenhamos investigado isso.

– Sim, deixo isso com vocês – Helga pegou um cigarro para ela e aspirou profun-damente. – Se eu pensar em algumas coisas evidentes para testar…. Mas isso é comvocê – voltou–se de novo para sorrir para Corinth, com o amável sorriso que reserva-va para uns poucos. – A propósito, como está Sheila?

– Ah, bem, bem. E você?– Eu estou perfeitamente bem – havia indiferença em sua resposta.– Você deve ir comer lá em casa alguma vez – era preciso um pequeno esforço

para prosseguir cortesmente a conversa quando o pensamento estava pedindo aosgritos para se ocupar daquele novo problema. – Não a vimos há muito tempo. Tragaseu novo amiguinho se quiser, seja quem for.

– Jim? Ah, eu o dispensei a semana passada. Mas com certeza voltará – se levan-tou. – Vamos voltar a remar de novo, amigos, até a vista.

Corinth a seguiu enquanto ela se dirigia a grandes passos para o caixa. Quase semquerer, pois seus pensamentos hoje se lançavam em todas as direções, murmurou:

– Não sei porque ela não consegue conservar um homem ao seu lado. É inteligen-te e bem parecida.

– Porque não deseja – disse Lewis, concisamente.– Sim, acho que é isso. Ela se tornou fria desde quando a conheci em Minneapolis.

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Por quê?Lewis encolheu os ombros.– Achei que você soubesse – disse Corinth. Você entende as mulheres melhor do

que tem direito. E ela o aprecia mais que a qualquer dos que andam por aí, me pare-ce.

– Nós dois somos amantes da música – disse Lewis, que opinava que já não se es-crevia música desde mil e novecentos. – E nós dois sabemos ficar de boca fechada.

– Muito bem, muito bem – riu Corinth, e se levantou. – Vou para o laboratório ou-tra vez. Odeio deixar de lado o analisador de fases, mas este novo assunto…. – umapausa – Ouça, vamos nos concentrar naqueles outros e dividamos nosso trabalho,que tal? Que todo mundo teste uma coisa. Assim isso não levará muito tempo.

Lewis assentiu concisamente e o acompanhou.

À noite tinham conseguido os resultados.Quando Corinth olhou para as cifras, seu interesse deu passagem a uma frieza que

ia crescendo dentro de si. Percebeu de repente o quanto era pequeno e incapaz. Osfenômenos eletromagnéticos haviam mudado. Não era muito, mas o próprio fato deque as supostas eternas constantes da natureza tivessem sido alteradas, era o sufici-ente para reduzir a pó uma centena de sistemas filosóficos. A sutileza do problematem algo de elementar. Como medir novamente os fatores básicos quando os pró-prios aparelhos de medição variaram? Bom, havia um meio. Não existem absolutosneste universo. Tudo se relaciona com o resto e era um fato que certos dados havi-am alterado relativamente outros que eram significativos.

Corinth estivera trabalhando na determinação das constantes elétricas. Para osmetais eram as mesmas, ou quase as mesmas de antes, mas a resistência e a con-dutividade dos isolantes tinham variado de forma mensurável; tinham se tornado umpouco melhores condutores.

Salvo nos aparelhos de precisão, tais como a calculadora Gertie, a mudança dascaracterísticas eletromagnéticas não era suficiente para produzir nenhuma diferençanotável. Mas os mecanismos mais complexos e mais delicadamente equilibrados quese conhecem são as células vivas. E o neurônio é a mais altamente evoluída e maisespecializada de todas as células, particularmente essa variedade de neurônios quese encontra no córtex cerebral humano. E aqui a mudança era perceptível. Os minús-culos impulsos elétricos que representam as funções nervosas – sentido, percepção,reações motoras, o próprio pensamento, fluíam com mais rapidez e mais intensa-mente. E a mudança estava apenas começando.

Helga estremeceu.– Preciso beber alguma coisa – disse. – Preciso desesperadamente.– Conheço um bar – disse Lewis. – Vou com você também, antes de voltar para

trabalhar um pouco mais. E você, Peter?– Vou para casa – disse o físico – Espero que se divirtam – suas palavras foram di-

tas em tom insosso.Saiu sem ao menos notar como o vestíbulo estava sombrio e como estava tarde.

Para os outros, aquilo era ainda uma coisa brilhante, nova, maravilhosa; mas ele nãopodia deixar de pensar que por acaso, com um golpe gigantesco e ao acaso, o uni-verso estava a ponto de extinguir todas as raças humanas. Que efeito poderia ter emum corpo vivo….?

Bem, tinham feito quase tudo quanto era possível fazer agora. Tinham feito quan-

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tas observações fossem possíveis. Helga estivera em contato com o Escritório de Pe-sos e Medidas em Washington e havia lhe comunicado. Ela entendeu, pelo que lhedisse a pessoa que falava, que alguns outros laboratórios esparsos pelo país tambémhaviam notificado anomalias.

“Amanhã – pensou Corinth – vão começar a ouvir falar nisso de verdade.”Lá fora – a cena ainda era a mesma da Nova Iorque ao escurecer – mal havia al-

guma mudança. Por acaso só um pouco mais de silêncio do que deveria haver. Com-prou um jornal na esquina e deu uma olhada ali mesmo. Estava equivocado ou exis-tia nele, obscuramente, uma diferença muito sutil, uma fraseologia mais literária,algo individual que abria passagem através dos obstáculos que supunham os leitoresde jornais, porque esses mesmos tinham mudado sem saber? Mas não havia mençãoalguma da grande causa, que ainda era enorme demais e nova demais para ter alte-rado a velha história de sempre: guerra, inquietação, desconfiança, medo, ódio eambição; um mundo doente que estava desmoronando.

De repente se deu conta de que tinha lido de cima a baixo toda a primeira páginado Times, cheia de artigos. Botou o jornal no bolso e precipitou–se para o metrô.

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Havia conflitos em todo lugar.Um vozerio de indignação pela manhã fez com que Archie Brock fosse correndo

para o galinheiro, onde Stan Wilmer havia pousado o coxo de comida e ameaçava omundo inteiro com o punho.

– Olhe para isto! – gritou – Simplesmente olhe!Brock assomou o pescoço pela porta e assobiou. O galinheiro era um rebuliço. Al-

guns cadáveres com a plumagem ensanguentada estavam estendidos sobre a palhae outras poucas galinhas cacarejavam nervosamente no poleiro. Isso era tudo. Asdemais tinham ido embora.

– Parece como se tivessem entrado raposas porque alguém deixou a porta aberta– disse Brock.

– Sim – Wilmer engoliu em seco ruidosamente – Algum asqueroso filho da….Brock lembrou que o encarregado do galinheiro era o próprio Wilmer, mas preferiu

não fazer alusão a isso. O outro se lembrou e se calou, franzindo a testa.– Não sei – disse devagar. – Ontem à noite, como de costume, dei uma olhada

aqui antes de ir dormir e juraria que a porta estava fechada e o ferrolho corrido,como sempre. Estou aqui há cinco anos e nunca houve nenhuma contrariedade.

– Então por acaso alguém abriu a porta mais tarde, depois de escurecer?– Sim. Algum ladrão de galinhas. Mas é curioso: os cachorros não latiram; não sei

de nenhum bicho vivo que tenha vindo aqui sem que eles latissem – Wilmer enco-lheu os ombros com amargura.

– Bem, seja como for, alguém abriu a porta.– E depois, mais tarde, as raposas entraram – Brock virou uma das galinhas mor-

tas com a ponta do pé. – E por acaso teve que sair correndo quando um dos cachor-ros veio farejando por aqui e deixou isto.

– E a maior parte das aves devem estar na floresta. Vai ser preciso uma semanapara pegá–las…. As que estiverem vivas. Maldição!

Wilmer saiu furioso do galinheiro, esquecendo de fechar a porta. Brock fechou a porta por ele, um pouco surpreso de ter se lembrado de fazer isso.

Lembrou do seu medo de duas noites atrás e da singular maneira como vinha pen-sando desde então. Talvez houvesse algo assim como uma febre por aí. Bom, per-guntaria a alguém mais tarde. Hoje tinha trabalho a fazer: arar o campo que acabavade ser limpo. Todos os tratores estavam ocupados com o cultivo, assim ele teve queusar uma parelha de cavalos.

Estava tudo bem. Brock gostava dos animais, sempre havia se entendido e se davabem com eles, melhor que com as pessoas. Não que estas tivessem se portado malcom ele, pelo menos há pouco tempo. Os garotos costumavam deixá–lo enraivecidoantigamente, quando ele era também uma criança, e depois teve alguma dificuldadepara dirigir e algumas garotas tinham se assustado e o irmão de uma delas tinha

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dado nele. Mas isso foi há anos. O senhor Rossman havia–lhe dito cuidadosamente oque podia e o que não podia fazer, encarregando–o daquilo, e desde então as coisastinham corrido muito bem. Agora podia entrar em uma taberna quando ia à cidade,tomar uma cerveja como qualquer outro, e os demais o cumprimentavam.

Durante um momento ficou pensando por que tinha que lembrar daquilo, quandoconhecia tão bem, e por que havia de doer da forma que doía. “Não há nada o quedizer de mim – pensou. – Talvez eu não seja inteligente, mas sou forte. O senhorRossman disse que nunca teve um fazendeiro melhor do que eu.”

Encolheu os ombros e entrou no estábulo para tirar os cavalos. Ele era um jovemde altura mediana, robusto, musculoso, feições fortes e toscas e cabeça redonda,com os cabelos avermelhados cortados à escovinha. Suas roupas de trabalho azuiseram usadas, mas estavam limpas. A senhora Bergen, a esposa do superintendentegeral, em cuja casa ele tinha um quarto, cuidava desses detalhes. O lugar era grandee sombrio, carregado de odores fortes do feno e dos cavalos. Os potros castanhosbateram no chão com os cascos e relincharam inquietos quando ele colocou os arrei-os. Era curioso, pois antes eles eram sempre tranquilos.

– Ô, ô, quieto, rapaz! Quieto, Tom! Que está havendo, Jerry? Quieto, quieto!Os cavalos se acalmaram um pouco, ele os fez sair e amarrou–os em um poste,

enquanto ia ao celeiro buscar o arado.Seu cachorro Joe veio fuçar em torno dele. Era um setter irlandês alto, cuja pela-

gem brilhava ao sol como o ouro e o cobre. Na realidade, Joe pertencia ao senhorRossman, mas Brock tinha cuidado dele desde que era um filhote e ele sempre lheseguia.

– Desça, garoto, desça. Que diabos está acontecendo? Calma!A propriedade estendia–se verde em torno dele, com os prédios da granja de um

lado e as casinhas dos trabalhadores ocultas pelas árvores do outro, e muitos bos-ques por trás. Havia uma boa quantidade de pradarias, hortas e jardins entre estaparte cultivada e a grande casa branca do dono, que estivera quase sempre vaziadesde que as filhas do senhor Rossman tinham se casado e a esposa tinha morrido.O dono estava aqui agora, embora passasse algumas semanas em sua propriedadeem Nova Iorque com suas flores. Brock se perguntava por que um milionário como osenhor Rossman tinha que se afanar cultivando rosas, mesmo depois de velho.

A porta do celeiro se abriu rangendo e Brock entrou para ir buscar o arado grandee tirou–o rodando, resmungando um pouco pelo esforço. “Não há muitos capazes detirá–lo”, pensou, com um estremecimento de orgulho. Riu entredentes ao ver comoos cavalos batiam no chão ao vê–lo. Os cavalos eram animais preguiçosos, que nun-ca trabalhariam se pudessem evitar.

Empurrou o arado para trás deles, com a lança para a frente, e o enganchou. Comum movimento hábil soltou as rédeas do poste, ocupou seu assento e agitou as ré-deas sobre as largas ancas.

– Arre!Os cavalos ficaram ali, movendo as patas.– Arre! Tom começou a recuar. “Soo! Soo!“Brock pegou na parte traseira das rédeas e a

fez estalar silvando com força. Tom protestou, relinchando, e colocou seu enormecasco sobre a lança, que se rompeu.

Por um instante Brock ficou ali sem encontrar palavras. Depois balançou sua cabe-ça vermelha.

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– Foi um acidente – disse em voz alta. A manhã de repente parecia muito silencio-sa. Foi um acidente.

No celeiro havia uma lança de reposição. Ele foi buscá–la, assim como algumasferramentas, e começou obstinadamente a tirar dali a lança quebrada.

– Ei, pare! Pare, eu disse!Brock levantou a vista. Os chiados e grunhidos eram como golpes, Viu passar um

traço negro e depois outro e outro. Os porcos haviam escapado!– Joe – vociferou, um pouco surpreso pela rapidez com que tinha reagido. – Vá

atrás deles, Joe! Cerque–os, garoto!O cachorro partiu como um raio. Avançou sobre a porca que ia adiante e mordeu–

a. A porca grunhiu e deu meia volta. O cachorro foi buscar o porco seguinte. StanWilmer veio correndo das pocilgas. Estava com o rosto branco. Brock correu para in-terceptar a passagem de outro porco e fez com que ele voltasse, mas um quarto es-capuliu de lado e se perdeu no bosque. Foi preciso vários minutos de confusão parafazer retroceder a maioria e para colocá–los de novo na pocilga; mas alguns deleshaviam escapado.

Wilmer ficou boquiaberto. Sua voz era desagradável.– Eu vi – balbuciou. – Valha–me Deus, eu vi! Não é possível.Brock encheu as bochechas e enxugou o rosto.– Está me ouvindo? – Wilmer o agarrou por um braço – Eu vi, vi com meus pró-

prios olhos. Esses porcos abriram a porta sozinhos.– Não! – Brock sentiu que sua boca se abria.– Estou lhe dizendo que vi. Um deles se levantou sobre as patas traseiras e abriu a

porta com os beiços. Ele fez isto sozinho. E depois os outros outros se amontoaramatrás dele. Ah, sim, sim!

Joe saiu do bosque, levando diante dele um porco e lançando latidos sardônicos. Oleitão se entregara momentos depois e ia trotando tranquilamente para a pocilga.

Wilmer voltou–se maquinalmente e abriu a porta de novo para que ele passasse.– Bom cachorro! – Brock acariciou a sedosa cabeça do animal, que esfregou seu

focinho nele. – Cachorro inteligente!– Demasiado, condenadamente inteligente – Wilmer contraiu os olhos. – Ele já ti-

nha feito isso mesmo antes?– Claro que sim – disse Brock, indeciso.Joe saiu do seu lado e voltou a se meter na mata.– Apostaria como ele vai buscar outro porco – havia uma espécie de horror na voz

de Wilmer.– Com certeza. É um cachorro inteligente.– Vou dizer a Bill Bergen – Wilmer girou sobre os calcanhares.Brock olhou ele ir, encolheu as largas costas e voltou ao seu trabalho. Quando ter-

minou, Joe tinha cercado mais dois porcos e os tinha feito voltar. Agora estava mon-tando guarda na porta da pocilga.

– Bom cachorro – disse Brock. – Vou conseguir um osso para você por causa disso– enganchou Tom e Jerry, que estavam soltos. – Muito bem, eh, preguiçosos, vamos.Are!

Lentamente, os cavalos foram para trás.– Ei – gritava Brock.Desta vez não se detiveram na lança. Muito cuidadosamente, pisaram dentro do

próprio arado, dobrando sob ser peso a armação de ferro, e quebraram a relha.

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Brock sentiu que sua garganta ficava seca.– Não – murmurou.

Wilmer quase teve um ataque quando soube o que os cavalos tinham feito. Bergensó ficou quieto, assobiando desafinado.

– Não sei – disse, coçando a cabeça de cabelos cor de areia. – Sabe o que lhedigo? Vamos deixar todos os trabalhos que tenham a ver com os animais, excetodar–lhes de comer e ordenhar, claro. Trancaremos todas as portas e que alguém osvigie ao longo das cercas. Eu falarei com o velho sobre isto.

– Pois eu vou levar um rifle – disse Wilmer.– Bem, talvez não seja uma má ideia – disse Bergen.Archie Brock ficou encarregado de cuidar de uma zona de quase quatro milhas que

englobava os bosques. Levou Joe, que brincava alegremente atrás dele, e partiu,contente de estar só, pois era uma novidade.

Como o bosque estava silencioso! A luz do sol vinha de lado através das folhasimóveis, lançando brilhos manchados nas sombras de um pardo quente. O firmamen-to estava indizivelmente azul sobre sua cabeça, sem nuvens nem vento. Seus pés tri-turavam desajeitados um ou outro pedaço de terra endurecida ou alguma pedra. Umramo roçou por ele e foi arranhando suavemente suas roupas. Quanto ao mais, o lu-gar estava inteiramente silencioso. Os pássaros pareciam ter silenciado o tempo, nãose via nenhum esquilo, até as ovelhas haviam se retirado mais profundamente nobosque. Pensou inquieto que, sem saber como, todo o mundo vegetal dava uma sen-sação de esperar aquilo.

Talvez como antes de uma tempestade?Pensava em como as pessoas iam se assustar se os animais começassem a ficar

mais inteligentes. Se ficassem verdadeiramente inteligentes, como deixariam que oshomens os encerrassem, que os fizessem trabalhar, que os castrassem, os tosquiassee os comessem? Suponhamos que Tom e Jerry agora…. Mas eles eram tão carinho-sos!

Ah, mas espere, os humanos também não estavam se tornando mais inteligentes?Parecia como se nesses dois últimos dias estivessem falando mais. E não era con-

versa sobre o tempo nem sobre os vizinhos e sim sobre coisas, como por exemplo:quem ganharia a próxima eleição para presidente, ou se era melhor a tração traseiranos carros. Já haviam falado assim de vez em quando, mas não tanto, e tampoucotinham tanto a dizer. Ele até tinha visto a senhora Bergen lendo uma revista; e tudoque ela fazia antes em seu tempo livre era ver televisão.

“Eu também estou me tornando mais inteligente!” – se disse.Saber isto teve o efeito de um trovão. Ficou paralisando por um longo tempo e Joe

veio cheirar sua mão, intrigado.“Estou ficando mais inteligente.”Sem dúvida…. tinha que ser isso. Aquela forma que tivera de se fazer perguntas

ultimamente, e de lembrar de coisas, e de falar em voz alta, quando antes apenasnão dizia nada para si mesmo…. Que outra coisa poderia ser? Todo mundo estava fi-cando mais inteligente.

“Eu sei ler – disse a si mesmo. – Não muito bem, mas me ensinaram o alfabeto eposso ler um livro de histórias. Talvez agora eu consiga ler um livro de verdade.”

Nos livros estavam as respostas sobre o que se havia perguntado sobre o sol, a luae as estrelas; do porque de haver verão e inverno; do porque das guerras e presi-

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dentes e sobre quem vivia do outro lado da Terra e….Balançou a cabeça, incapaz de abarcar a solidão que se erguia em seu interior e

que ia se espalhando, até que abarcou a criação além de tudo que ele podia conce-ber. Antes nunca havia se perguntado nada. As coisas simplesmente aconteciam eeram esquecidas outra vez.

– Mas…. – olhou para as mãos, maravilhado. – Quem sou eu? O que estou fazendoaqui?

Nele havia se produzido uma evolução. Apoiou a cabeça contra o frio tronco deuma árvore, escutando o barulho do sangue em seus ouvidos.

– Eu te rogo, meu Deus, faça com que seja verdade. Faz–me como os demais.Depois de algum tempo, rechaçou aquilo e continuou revisando a cerca como lhe

haviam dito.À noite, depois de terminar suas tarefas, vestiu uma roupa limpa e subiu para a

casa grande. O senhor Rossman estava sentado na varanda, fumando cachimbo e vi-rando as páginas de um livro entre seus dedos delgados, sem realmente vê–lo. Brockse deteve timidamente, com o gorro entre as mãos, até que o proprietário levantou avista para fixar–se nele.

– Ah, olá, Archie! – disse em sua voz suave – Como está?– Muito bem, obrigado – Brock dava voltas ao gorro entre suas mãos rechonchu-

das e mudava o peso do corpo de um pé para outro. – Eu poderia falar com você ummomento, por favor?

– Claro que sim, entre – o senhor Rossman deixou o livro de lado e ficou fumandoenquanto Brock abria a porta divisória e vinha até ele – Aqui, sente–se.

– Estou muito bem, obrigado. Eu…. – Brock passou a línguas pelos lábios secos –queria só perguntar uma coisa.

– Pergunte o que quiser, Archie.O senhor Rossman se recostou no respaldo. Era um homem alto e magro, com o

rosto finamente talhado, orgulhoso sob sua amabilidade momentânea, com o cabelobranco. Os pais de Brock tinham sido arrendatários dele. E quando ficou manifestoque seu filho nunca chegaria a nada, tinha se encarregado do rapaz.

– Está tudo bem?– Bem, trata–se dessa mudança que está havendo aqui.– Hein? – o olhar de Rossman se aguçou – Que mudança?– O senhor sabe, os animais que estão ficando mais inteligentes e atrevidos.– Ah, sim, é isso – Rossman lançou uma nuvem de fumaça. – Me diga, Archie, no-

tou alguma mudança em você?– Bem, sim, acho que sim.Rossman assentiu com um gesto.– Você não teria vindo aqui se não tivesse mudado.– O que está acontecendo, senhor Rossman? O que está correndo mal?– Não sei, Archie. Ninguém sabe – o ancião olhou para fora, para a azulada con-

centração de sombras do anoitecer. – Mas você está certo de que é ruim? Talvez fi-nalmente alguma coisa esteja correndo bem.

– O senhor não sabe?– Não, ninguém sabe – as mãos do dono, com suas veias azul–pálido, deram uma

palmada nos jornais que tinha sobre a mesa ao lado. – Aqui há sugestões. Está sesabendo pouco a pouco. Estou certo de que se sabe mais, mas o Governo proibiuque se informe sobre isso por medo do pânico – riu entredentes com uma certa malí-

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cia. – Como se um fenômeno de amplitude mundial pudesse ser guardado em segre-do! Sem dúvida continuarão com sua estupidez em Washington até o último instante.

– Mas senhor Rossman…. – Brock levantou as mãos e deixou–as cair outra vez – Oque podemos fazer?

– Esperar. Esperar para ver o que acontece. Irei agora mesmo à cidade para averi-guar alguma coisa por mim mesmo. Esses meus cérebros prediletos do Instituto de-vem….

– Vai partir?Rossman balançou a cabeça, sorridente.– Pobre Archie – disse. – Há algo terrível em ficar abandonado, não é verdade? Al-

gumas vezes eu acho que é por isto que os homens temem a morte. Não pelo es-quecimento, e sim por estarem predestinados a isto. E não podem fazer nada paradetê–la. Até o fatalismo é um refúgio para isto, de um certo modo…. Mas estou diva-gando.

Ficou fumando por um bom tempo. O anoitecer de verão gorjeava e murmuravaem torno deles.

– Sim – disse por fim. – Eu sinto isto em mim mesmo também. E não é de tododesagradável. Não é só o nervosismo dos pesadelos. Isso seria puramente fisiológico,acho. São os pensamentos. Eu sempre tinha me imaginado como um pensador lógi-co, capaz e rápido. Mas agora está vindo algo dentro de mim que não entendo emabsoluto. Às vezes toda minha vida parece ser um enredo mesquinho e sem sentido.E eu que acreditava ter servido bem à minha família e ao meu país – sorriu mais umavez. – Entretanto, desejaria ver o final disto. Seria interessante.

As lágrimas faziam cócegas nos olhos de Brock.– O que posso fazer?– Fazer? Viver. Dia a dia. Que outra coisa pode fazer o homem? – Rossman se le-

vantou e pousou sua mão no ombro de Brock. – Mas continue pensando. Mantenhaseu pensamento junto à terra, a qual pertence. Não venda sua liberdade porque ou-tro homem se ofereceu para pensar por você e cometer os erros em seu lugar. Tiveque fazer o papel de senhor feudal com você, Archie, mas pode ser que já não sejanecessário fazê–lo mais.

Brock não entendia a maior parte daquilo. Mas parecia que o senhor Rossman es-tava lhe dizendo para ter ânimo, que aquilo não era uma coisa tão ruim, afinal decontas.

– Talvez pudesse me emprestar alguns livros – disse, humildemente. – Eu gostariade ver se consigo lê–los.

– Claro, Archie. Vamos à biblioteca. Verei se encontro alguma coisa que seja apro-priada para você começar….

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Seleção do “Times” de Nova Iorque de 23 de junho.

O PRESIDENTE NEGA QUE EXISTA PERIGO NA ACELERAÇÃO CEREBRAL.“Conservar a calma, continuar cada um em seu posto”, aconselha a Casa Branca.Não há dano algum para os humanos na mudança.Os cientistas dos Estados Unidos trabalham sobre o problema.Os especialistas responderam rapidamente.

A BAIXA DOS VALORES NO MERCADO PREOCUPA WALS STREET.

AS TROPAS CHINESAS SE AMOTINAM.O governo comunista declara estado de alarme.

EM LOS ÂNGELES É FUNDADA UMA NOVA RELIGIÃOSawyer proclamou–se a si mesmo o “Terceiro Baal”. Milhares assistem o comício de

massas.

TIESENDEN PEDE UM GOVERNO MUNDIALOs separatistas de Iowa derrotaram a oposição em um discurso no Senado.

JOHSON DISSE QUE UM GOVERNO MUNDIAL É IRREALIZÁVEL PRESENTEMENTE.O senador de Oregon derrota a oposição anterior.

REBELIÃO NO ESTABELECIMENTO DOS RETARDADOS MENTAIS DO ESTADO

MOTIM NO ALABAMAA Diminuição das vendas faz com que baixem os valores e os preços.Os Estados Unidos em perigo de uma baixa repentina de preços.

Conferência.Todo mundo ficou trabalhando até tarde e deu dez horas antes que a reunião para

a qual Corinth os havia convidado em sua casa estivesse a ponto de começar. Sheilatinha insistido em oferecer os costumeiros sanduíches e café do seu buffet; depois sesentou em um canto afastado, falando baixinho com Sarah Mandelbaum. Seus olhoserravam de vez em quando para seus respectivos esposos, que estavam jogando xa-drez, e havia em seu olhar uma insinuação de medo.

Corinth estava jogando melhor do que costumava fazê–lo antes. Comumente, ele e

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Mandelbaum eram uma dupla muito igualada. A estratégia lenta e cuidadosa do físi-co compensava a valentia enervante do organizador. Mas naquela noite o mais jovemestava distraído demais. Fazia planos que teriam agradado Casablanca, mas Mandel-baum os adivinhava e arremetia brutalmente contra suas defesas. Por fim, Corinthsuspirou e recostou–se em sua cadeira.

– Me rendo – disse. – Seria mate em sete jogadas.– Não será assim – Mandelbaum apontou com seu dedo – Ah, sim, tem razão. Mas não importa. Simplesmente não estou de humor para

jogar.– O que estará impedindo Nathan de vir?– Ele virá, tenha calma.Mandelbaum mudou–se para um sofá e começou a encher o fornilho do seu ca-

chimbo.– Não sei como você consegue ficar aí sentado desse modo, quando….– Quando o mundo se faz aos pedaços ao meu redor? Olhe, Peter, ele está se fa-

zendo aos pedaços desde quando em lembre. Mas até agora, neste episódio em par-ticular, não assomou os canhões.

– Mas ainda pode assomar.Corinth se levantou e ficou em pé olhando pela janela, com as mãos cruzadas nas

costas e os ombros afundados. Os inquietos brilhos das luzes da cidade faziam comque se destacasse contra a escuridão.

– Não está entendendo, Félix? Este novo fator, se conseguirmos sobreviver a ele,mudará inteiramente a base da vida humana. Nossa sociedade foi construída por de-terminados tipos de homens e para um determinado tipo. Mas agora o homem setransformou em outra coisa.

– Duvido – o ruído do fósforo riscado na sola do sapato de Mandelbaum era sur-preendentemente forte. – Continuamos sendo o mesmo animal de antes.

– Qual era seu Q.I. antes da mudança?– Não sei.– Você nunca fez um teste?– Sim, claro. Costumava fazê–los de vez em quando para conseguir este ou aquele

trabalho, mas nunca perguntei os resultados. O que é Q.I. senão a pontuação que éalcançada em um teste de Q.I?

– É mais que isso. Mede–se a capacidade para o uso de dados e para compreendere criar abstrações.

– Se a pessoa é de raça caucasiana ou tem uma preparação cultural euro america-na ocidental. É para o que foi idealizado o teste, Peter. Um bosquímano do Kalahaririria se soubesse que se omitia nele a capacidade de achar água. Para ele, é mais im-portante que a capacidade de brincar com números. Eu não subestimo a lógica nemos aspectos visualizadores da personalidade, mas não tenho nela sua fé comovedora.Há no homem mais que isso, e um mecânico de garagem pode ser um tipo melhorcomo sobrevivente do que um matemático.

– Sobrevivente em que condições?– Em qualquer uma. Adaptabilidade, resistência, agilidade…. estas são as coisas

que mais contam.– Acho que a bondade significa muito – disse Sheila, timidamente.– É um luxo. E eu sinto por isto, mesmo porque, naturalmente, são esses luxos

que nos tornam humanos – disse Mandelbaum. – Bondade para quem? Às vezes te-

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mos que nos soltar e sermos violentos. Algumas guerras são necessárias.– Não seriam se os homens fossem mais inteligentes – disse Corinth. – Não tería-

mos que ter lutado na segunda guerra mundial. Se Hitler tivesse sido detido quandoentrou na Renânia. Uma divisão o teria lançado por terra. Mas os políticos eram es-túpidos demais para prever….

– Não – disse Mandelbaum, – é que simplesmente havia razões pelas quais nãoera…. digamos, conveniente recorrer a essa divisão. Noventa e nove por cento daraça humana, e pouco importa quão inteligentes sejam, farão as coisas que lhes con-vém, em lugar das coisas sensatas, e enganarão a si próprios pensando que podemescapar às consequências de algum modo. Simplesmente somos feitos desse modo.E além disso, o mundo está carregado demais de velhos ódios e superstições, e hátantas pessoas que são boas e tolerantes e que obram em consequência, que é as-sombroso que através da história o inferno não tenha transbordado com mais fre-quência – em sua voz havia um traço de amargura. – Talvez as pessoas práticas, osque se adaptam, tenham razão, afinal de contas. Talvez seja realmente mais moral fi-car primeiro eu, e minha mulher e meu pequeno Hassan com as pernas arqueadas.Como fez um dos meus filhos. Agora ele está em Chicago. Trocou de nome e mudouo nariz. Não estava envergonhado dos seus pais, mas salvou sua família e a si mes-mo de uma porção de contrariedades e humilhações. E, honradamente, não sei se oadmiro por sua resistência mental para a adaptação ou se o chame de cria de um in-vertebrado.

– Estamos nos afastando muito do tema – disse Corinth, desconcertado. – O quequeremos fazer esta noite é tentar avaliar isso para o qual nós e o mundo inteiromarcha – balançou a cabeça. – Meu Q.I. passou de cento de sessenta para duzentosem uma semana. Penso em coisas que não nunca me ocorreram antes. Meus antigosproblemas profissionais se tornaram ridiculamente fáceis. Só que o resto é confuso.Minha mente continua errando pelas mais fantásticas cadeias de pensamentos, al-guns dos quais são totalmente disparatados e mórbidos. Estou tão nervoso quantoum gato, me jogo para qualquer sombra e me assusto sem nenhuma razão para isto.De vez em quando tenho vislumbres, em cuja luz tudo parece grotesco…. como emum pesadelo.

– Ainda não está ajustado ao seu novo cérebro, isso é tudo – disse Sarah.– Eu sinto o mesmo que Peter – disse Sheila; sua voz era fraca e medrosa. – Não

vale a pena.A outra mulher encolheu os ombros e estendeu os braços.– Para mim parece um pouco divertido.– É questão da personalidade básica que não mudou – disse Mandelbaum. – Sarah

sempre foi muito apegada à terra. Você, querida, não leva muito a sério sua novaalma. Para você, o poder da abstração mental é um jogo. Tem pouco a ver com asimportantes questões do trabalho caseiro – exalou fumaça e no seu rosto se formouuma rede de rugas, enquanto enviesava os olhos entre o fumo. – E eu fiquei louca-mente fascinado, como você, Peter, mas não deixei que isso me perturbasse. É so-mente uma questão fisiológica e eu não tenho tempo para tais baboseiras. Pelo me-nos conforme as coisas estão agora. Todo mundo no sindicato parece vir com algumaideia disparatada sobre como devemos conduzir os negócios. A um dos eletricistasocorreu entrar em greve para derrubar o Governo inteiro. Um deles até disparou emmim com um revólver, outro dia.

– O que? – ficaram olhando para ele.

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Mandelbaum encolheu os ombros.– Foi um tiro para o ar. Mas alguns estão se tornando loucos e outros ficando mi-

seráveis, embora a maioria esteja simplesmente assustada. Os que, como eu, estãotentando capear na tormenta e manter as coisas tão próximas do normal quantopossível, estamos destinados a criar inimigos. As pessoas hoje pensam muito mais,mas não pensam direito.

– Sem dúvida – disse Corinth. – O homem médio…. – começou a dizer quando to-cou a campainha da porta – Devem ser eles – disse. – Entrem.

Helga Arnulfsen entrou. Seu perfil esbelto ocultou por um momento a sólida corpu-lência de Nathan Lewis. Parecia tão serena, suave e dura como antes, mas seu rostoestava marcado por olheiras profundas.

– Olá – disse ela, em tom indiferente.– Não se divertiu, hein? – perguntou Sheila afetuosamente.– Pesadelos.– Eu também – um estremecimento percorreu a pequena figura de Sheila.– E sobre o psicólogo que você ia trazer? – perguntou Corinth.– Ele se negou a vir no último instante – disse Lewis. – Tinha uma certa ideia para

um novo teste de inteligência e seu colega de trabalho estava ocupado demais, fa-zendo os ratos passarem por labirintos. Mas não importa. Na realidade, não precisa-mos deles. Ele era o único que parecia estar sem preocupações nem mau presságios,ocupado demais para se lançar aos novos horizontes que haviam sido abertos de re-pente, para se preocupar com suas próprias contrariedades – foi andando para obuffet, pegou um sanduíche e mordeu.

– Hum, delikat. Sheila, por que não deixa na mão esse grande bebedor de água ese casa comigo?

– E trocá–lo por um bebedor de cerveja? – respondeu ela, rindo estremecida.– Touché! Você mudou também, não é verdade? Mas realmente deveria te me tra-

tado melhor. Digamos, um grande bebedor de uísque, pelo menos.– Depois de tudo – disse Corinth sombriamente, – não estamos aqui para nenhu-

ma finalidade determinada. Eu tinha pensado somente em uma discussão geral quepudesse esclarecer o assunto na mente de todos e por acaso termos algumas ideias.

Lewis se instalou na mesa.– Vi que o Governo finalmente admitiu que está acontecendo alguma coisa – disse,

fazendo um gesto para o jornal ao seu lado. – Acho que tiveram que fazê–lo, mas re-conhecer não ajuda em nada os que se sentem em pânico. As pessoas estão assus-tadas. Não sabem o que esperar e…. bem, quando eu vinha para cá vi um homemque corria gritando pela rua, vociferando que o fim do mundo tinha chegado. NoCentral Parque houve um comício de proporções monstruosas. Três bêbados estavamperturbando na porta de um bar e não havia nenhum guarda à vista que os fizessemse calar. Ouvi sirenes de alarme; havia uns grandes brilhos pela banda do Queens.

Helga acendeu um cigarro, contraindo as bochechas e quase fechando os olhos.– John Rossman está em Washington agora – disse. E um instante depois, acres-

centou, dirigindo–se a Mandelbaum. – Ele veio ao Instituto há alguns dias e pediuaos nossos garotos inteligentes que pesquisassem o assunto, mas que mantivessemseus achados em segredo. Depois partiu de avião para a capital. Com sua influência,ele conseguirá para nós a história completa de tudo isso, se houver alguém que pos-sa fazê–lo.

– Para dizer a verdade, não acho que se possa dizer ainda que seja uma história –

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disse Mandelbaum. – Trata–se somente de minúcias, do que todos experimentamosno mundo inteiro. Em conjunto, supõem uma enorme catástrofe, mas não há umquadro completo dela.

– Basta esperar – disse Lewis, jovialmente. Pegou outro sanduíche e uma xícara decafé. – Eu predisse que no prazo de uma semana as coisas vão começar a se tornarum verdadeiro inferno.

– O fato é…. – Corinth se levantou do sofá, no qual havia se deixado cair, e come-çou a passear pela sala. – O fato é que a mudança ainda não terminou. Ainda estáem marcha. Até onde nossos melhores instrumentos podem indicar (embora não es-tejam muito exatos, em parte porque eles próprios foram afetados) a mudança atése acelerou.

– Dentro dos limites de erro, creio que vejo mais ou menos um avanço hiperbólico– disse Lewis. – Acabamos de começar, meus irmãos. De forma que dentro de umasemana todos teremos um Q.I. próximo a quatrocentos.

Permaneceram durante um longo momento sem falar. Corinth estava de punhosfechados e os braços caídos de lado e Sheila, dando um leve grito inarticulado, cor-reu para ele e agarrou–se ao seu braço. Mandelbaum exalava nuvens de fumo efranzia o cenho, à medida que ia se encarregando da informação. Estendeu uma mãopara confortar Sarah e ela a estreitou, agradecida. Lewis sorriu, junto ao sanduíche,e continuou comendo. Helga permanecia sentada e imóvel. As longas e lisas curvasdo seu rosto tinham se tornado indizivelmente inexpressivas. A cidade ressoava comum ruído amortizado.

– O que vai acontecer? – perguntou finalmente Sheila, sussurrando. Estava tre-mendo e eles viam. – Que vai acontecer conosco?

– Só Deus sabe – disse Lewis, não sem amabilidade.– Continuará sempre aumentando? – perguntou Sarah.– Não – respondeu Lewis. – Não é possível. O que se trata é que as cadeias de

neurônios aumentaram sua velocidade de reação e a intensidade dos sinais quetransmitem. Mas a estrutura física da célula não pode suportar muito. Se foram esti-mulados assim…. será a loucura, seguida da idiotice e da morte.

– Até onde podemos chegar? – perguntou Mandelbaum, com senso prático.– Não posso dizer. Os mecanismos da mudança e o das células nervosas não são

suficientemente bem conhecidos. Em todo caso, o conceito de Q.I. é válido somentedentro de uma faixa limitada. Falar de um Q.I de quatrocentos, na realidade não fazsentido. A inteligência a esse nível já não pode ser inteligência em absoluto, tal ecomo nós a conhecemos, e sim alguma outra coisa.

Corinth estivera atarefado demais com seu próprio trabalho de medições físicaspara perceber o muito que a seção de Lewis sabia e teorizava. O aterrador conheci-mento mal começava a penetrar nele.

– Esqueçamos os últimos resultados – disse Helga, taxativa, – visto que não pode-mos fazer nada sobre isso. O mais importante agora é: como manteremos a civiliza-ção funcionando? Como comeremos?

Corinth assentiu com um gesto, dominando a onda de pânico que o invadia.– Até agora apenas a simples inércia social nos fez continuar – assentiu. – Muitas

pessoas continuam com seus afazeres cotidianos porque não há nenhuma outra coi-sa a fazer. Mas quando as coisas realmente começarem a mudar….

– O zelador e o ascensorista do Instituto abandonaram o trabalho ontem – disseHelga. – Diziam que era monótono demais. O que acontecerá quando todos os zela-

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dores e todos e lixeiros, e os escavadores, e os trabalhadores decidirem abandonarseus trabalhos em cadeia?

– Nem todos deixarão – disse Mandelbaum. Esvaziou as cinzas do cachimbo e foibuscar um pouco de café. – Alguns terão medo de fazê–lo e outros terão o bom-sen-so de compreender que temos que continuar funcionando. Alguns…. bem, não sepode dar uma resposta fácil a isto. Admito pelos menos que estamos em um difícilperíodo de transição: pessoas que renunciam ao seu trabalho, pessoas que se assus-tam, que se tornam loucas em um sentido ou outro. O que precisamos é de uma or-ganização interina que nos ajude a passar os próximos meses. Creio que os sindica-tos poderiam ser o núcleo…. Eu me ocupo disso. E quando meus rapazes estiveremmetidos no caminho, vou até City Hall e oferecer nossa ajuda.

Após um silêncio, Helga olhou para Lewis.– Continuam sem saber a causa de tudo isso?– Ah, sim! – disse o biólogo. – Há um certo número de ideias, mas não existe pos-

sibilidade de escolher entre elas. Teremos simplesmente que pensar e estudar umpouco mais. Isso é tudo.

– É um fenômeno físico que abarca pelo menos todo o sistema solar – declarouCorinth. – Os observatórios chegaram a deixar assente nada menos que isto, medi-ante estudos espectroscópicos. É possível que o sol, em sua órbita em torno do cen-tro da galáxia, tenha entrado em um certo campo de força. Mas por razõesteóricas…. que diabos! Não quero lançar mão da teoria geral da relatividade até quetenha que fazê–lo…. Por razões teóricas, me inclino a acreditar que é mais possívelque tenhamos saído de um campo de força que atrasava a propagação da luz e queafetava, de outra forma, os processos eletromagnéticos e eletroquímicos.

– Em outras palavras – disse Mandelbaum, lentamente, – estamos iniciando atual-mente um estado normal de atividades? Todo nosso passado foi vivido em condiçõesanormais?

– Talvez. Só que, naturalmente, essas condições são normais para nós. Estamoscompreendidos nelas. Podemos ser como peixes da profundeza, que rebentam sesão tirados da pressão habitual.

– Ora, ora, um pensamente agradável!– Não acho que eu tenha medo de morrer – disse Sheila em voz baixa, – mas mu-

dar dessa forma….– Não perca as estibeiras – disse Lewis, taxativo. – Creio que este desequilíbrio vai

fazer com muitas pessoas se tornem verdadeiramente loucas. Não sejamos um deles.- Tirou a cinza do charuto com uma pancadinha. – No laboratório, averiguamos algu-mas coisas – prosseguiu em tom isento de paixão. – Como disse Peter, é algo físico.Ou é um campo de força ou a falta deste que afeta as interações eletrônicas. Comefeito, quantitativamente, agora é muito pequeno. Com efeito, as reações químicasordinárias funcionam como antes e não creio que tenha sido detectada nenhumamudança significativa na velocidade das reações inorgânicas. Mas quanto mais com-plexa e delicada for uma estrutura, tanto mais sente esse leves efeitos.

Você deve ter observado que ultimamente está mais enérgico. Fizemos muitos tes-tes com o metabolismo básico dos ratos e ele aumentou. Não muito, mas algumacoisa. Suas reações motoras também estão mais rápidas, embora alguém não possater notado, porque sua sensação subjetiva do tempo também foi acelerada. Em ou-tras palavras, não houve muitas mudanças nas funções glandulares, vasculares e ou-tras puramente somáticas; só o justo para que alguém se sinta nervoso. E a pessoa

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se adapta perfeitamente a isso, se não acontecer mais nada. Por outro lado – prosse-guiu – as células mais altamente organizadas, os neurônios, e entre todos os neurô-nios, aqueles do córtex cerebral, foram muito afetados. A velocidade de recepção seeleva; isso se mede em psicologia. Vocês devem ter observado quão mais depressaestão lendo. E o tempo de reação a todos os estímulos é menor.

– Eu soube por Jones – assentiu Helga, friamente, – que ele verificou uma esta-tística de acidentes de trânsito na semana passada. Era verdadeiramente baixa. Seas pessoas reagem mais depressa, serão, naturalmente, melhores motoristas.

– Hum…. – exclamou Lewis – Até que comecem a se cansar de andar por aí a oi -tenta e por hora e queiram ir a cento e vinte. Então não haverá mais acidentes, masaqueles que houver…. humm

– As pessoas estão mais inteligentes – começou a dizer Sheila – se sabem de so-bra que….

– Temo que não seja assim – interrompeu–a Mandelbaum, balançando a cabeça. –A personalidade básica não muda. Não é assim? As pessoas inteligentes sempre fize-ram lindas idiotices. E maldades também, de vez em quando, a mesma coisa quequaisquer outras.

– Pode ser um cientista brilhante, coloquemos por caso, mas isto não impede queele se descuide da sua saúde ou que o empurrem atordoado e protetoralmente paraos espiritualistas.

– Ou que votem nos democratas – assentiu Lewis, rindo entredentes. – Você estácerto, Felix. Com o tempo, não resta dúvida de que um aumento na inteligência afe-tará toda a personalidade, mas por enquanto não impedirá as fraquezas, ignorâncias,ciúmes, lágrimas ou ambições de ninguém. Dar-lhes-á somente mais energia, força einteligência para fazerem o que lhes pareça, o que é uma das causas para que a civi -lização esteja se destroçando. - sua voz tomou um tom seco e didático: – Voltandopara onde estávamos, o tecido vivo mais altamente organizado do mundo é, natural-mente, o do cérebro humano, a massa cinzenta, sede da consciência, se vocês prefe-rirem, se a teoria de Peter estiver correta. O cérebro percebe o estímulo ou a falta deestímulo do tudo quanto existe. Suas funções aumentam em maior proporção que oresto do organismo. Talvez não saibam como é complexa a estrutura do cérebro hu-mano. Pois acreditem: é algo que faz com que o universo sideral pareça uma arquite-tura de brincadeira de meninos. Há muito mais possibilidades de conexões interneu-rônicas do que átomos no universo inteiro; o fator é alguma coisa assim como dezelevado à potência de vários milhões. Não é surpreendente que uma leve mudançaeletroquímica, leve demais para originar uma diferença importante para o corpo, pos-sa modificar completamente a natureza da mente. Olhem o que um pequeno narcóti-co ou o álcool podem fazer e depois lembrem que este novo fator age na verdadeirabase da existência celular. A questão realmente interessante é se uma função tão fi-namente equilibrada poderá sobreviver a uma mudança ou não.

Não havia em sua voz sinal de temor e seus olhos, por trás das grossas lentes, ti-nham um brilho de excitação despersonalizada. Para ele, isso era um puro assombro.Corinth o imaginou moribundo mas tomando notas clínicas sobre si mesmo enquantoa vida se extinguia.

– Bom, – disse o físico, baixinho – breve saberemos.– Como vocês podem ficar aí sentados falando desse jeito? – exclamou Sheila,

com a voz estremecida pelo horror.– Minha querida – disse Helga, – acha que neste momento podemos fazer outra

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coisa?

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Seleção do “The New Iorque Times” de 30 de junho.

DESACELERAÇÃO NA MUDANÇAUma diminuição, sob todos os efeitos, aparentemente irreversível.A teoria de Rirayader pode encerrar uma explicação.

ANUNCIADA A TEORIA DO CAMPO UNIFICADORirayader anuncia a extensão das teorias de Einstein.As viagens interestelares, uma possibilidade teórica.

O GOVERNO FEDERAL PODE RENUNCIAR ÀS SUAS FUNÇÕES.O presidente pede às autoridades que trabalhem com prudência.As autoridades trabalhistas de Nova Iorque, conduzidas por Mandelbaum, pedem

cooperação.

AVISO À REVOLUÇÃO NOS PAÍSES SOVIÉTICOSHá notícias de ter sido decretado blackout.Os revolucionários podem ter implantado novos conceitos militares.

A CRISE ECONÔMICA MUNDIAL PIORAMotins em Paris, Dublin, Roma e Hong Kong.Os transportes marítimos estão próximos de uma parada completa, porque milha-

res de trabalhadores deixaram o emprego.

OS ADORADORES DO TERCEIRO BAAL SE AMOTINAM EM LOS ANGELES.A Guarda Nacional desmoralizada.Os fanáticos se apoderam dos pontos-chave.Continuam as lutas nas ruas.A Prefeitura de Nova Iorque previne contra atividades locais dos partidários desse

culto.

NO ZOOLÓGICO DO BRONX, OS TIGRES MATAM O ENCARREGADO E ESCAPAMA Polícia lança um aviso e organiza a caça.As autoridades estudam a conveniência de matar todos os exemplares perigosos.

TEME–SE NOVAS REVOLTAS NO HARLEMO chefe de polícia disse: Isso é só o começo.Parece impossível impedir o pânico crescente.

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UM PSIQUIATRA DISSE: O HOMEM ESTÁ MUDANDO PARA ALÉM DO COMPREEN-SÍVEL.

Kearnes de Bellevue disse que os resultados imprevisíveis da aceleração neuronalfaz com que todos os antigos dados e métodos de controle não sejam válidos.

É impossível sequer imaginar as consequências futuras.

No dia seguinte apareceu no jornal: já não havia Imprensa.

Pareceu estranho a Brock ficar como encarregado da propriedade. Mas estavaacontecendo uma série de coisas estranhas ultimamente. Em primeiro lugar, o senhorRossman tinha partido. Depois, logo no dia seguinte, Stan Wilmer foi atacado pelosporcos quando entrava para lhes dar comida. Arremeteram contra ele, grunhindo eguinchando, pisotearam–nos com todo o peso dos seus corpos e eles tiveram quematar alguns antes que o deixassem. Depois, outros tinham se lançado contra a cer-ca, arremetendo contra ela, derrubando–a, e desapareceram no mato. Dois trabalha-dores braçais tinham deixado o trabalho no mesmo dia.

Brock estava desconcertado demais, e preocupado pela mudança íntima que so-fria, para se preocupar com tudo isso. Em todo caso, não havia muito o que fazer,agora que todos os trabalhos, exceto os essenciais, tinham sido suspensos. Atendiaaos animais, tendo cuidado em tratá–los bem, e levava um revólver no cinto. Tevepoucas dificuldades. Joe estava sempre ao seu lado. O resto do tempo ele passavasentado e lendo, ou pensando com a mão no queixo.

Bill Berger foi vê–lo alguns dias depois do episódio dos porcos. O encarregado nãoparecia ter mudado muito, pelo menos aparentemente. Estava com o mesmo palitode dentes entre os lábios e continuava olhando de lado com seus olhos descoloridos.Mas falou com Brock com mais pachorra e cautela do que fazia antes. Ou era só oque parecia?

– Bem, Archie – disse. – Smith acaba de ir embora. Brock passava seu peso de umpé a outro e olhava para o chão. – Ele disse que quer ir para o colégio. Não conseguiconvencê–lo do contrário – na voz de Bergen havia um tom desdenhoso e divertido.– O idiota. Dentro de um mês já não haverá mais colégios. Assim, só restamos eu,Voss, minha mulher e você.

– Alguma escassez de braços – murmurou Brock, achando que devia dizer algumacoisa.

– Um homem só pode fazer o mais indispensável se for preciso – disse Bergen. –Por sorte estamos no verão. Os cavalos e as vacas podem ficar ao ar livre e assim seevita a limpeza dos estábulos.

– E a colheita?– Ainda não há muito o que fazer. Mas em todo caso, que vão para o diabo.Brock ficou olhando fixamente. Durante todos os anos que esteve trabalhando na

propriedade, Brock tinha o trabalhador mais duro e constante que havia ali.– Você se tornou inteligente como os demais, não é verdade, Archie? – perguntou

Bergen. – Eu diria que agora você está acima do normal, do normal antes da mudan-ça, quero dizer. E isso ainda não terminou. Ainda ficará mais.

Brock ficou vermelho.– Desculpe, eu não me referia a você pessoalmente. Você é um bom rapaz – sen-

tou–se, brincando por um momento com os papeis que havia sobre sua mesa. De-

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pois disse: – Archie, você vai se encarregar disto agora.– O que?– É que eu vou embora também.– Mas Bill, não pode….– Quero e posso, Archie – Bergen ficou de pé. – Olhe, minha mulher sempre quis

viajar e eu tenho algumas coisas em que pensar. Pouco importa quais sejam. É algoque vem me intrigando há muitos anos e agora creio que achei uma resposta. Vamospegar nosso carro e nos dirigir para o Oeste.

– Mas…. mas o senhor Rossman…. confia tanto em você, Bill….– Sinto que há coisas mais importantes na vida que a propriedade de férias do se-

nhor Rossman – disse Bergen tranquilamente. – Você pode perfeitamente tomar con-ta dela, mesmo quando Voss partir também.

O medo e a surpresa se mesclaram com o desdém:– Assustado com os animais, hein?– Não, Archie. Lembre sempre que você é ainda mais inteligente do que eles e, o

que é mais importante: que você tem mãos. Um revólver poria termo a tudo – Ber-gen foi andando para a janela e olhou por ela. Era um dia claro e ventoso; a luz dosol se desgarrava pelos agitados ramos das árvores. – Na realidade, uma fazenda émais segura que qualquer outro lugar que me ocorra. Se os sistemas de produção ede distribuição caírem, como pode acontecer, você sempre terá o que comer. Mas mi-nha mulher e eu já não somos jovens. Durante toda minha vida eu fui um homemsedentário, sóbrio, consciente. Agora eu me pergunto para que serviam todos os tra-balhos, os anos perdidos.

Voltou–lhe as costas.– Adeus, Archie – era uma ordem.Brock saiu para o pátio, balançando a cabeça e falando consigo mesmo entreden-

tes. Joe gemeu, inquieto, e esfregou o focinho na palma da sua mão. Ele alisou a pe-lagem dourada do cachorro e, sentando–se em um banco, segurou a cabeça com asmãos.

“A dificuldade está – pensou – em que ao mesmo tempo que os animais e eu nostornamos mais inteligentes, isto está acontecendo a todos. Santo Deus, que coisasse meteram na cabeça de Bill Bergen?”

Era uma ideia aterradora. A rapidez, a amplidão e a agudeza da sua própria mentede repente era cruel. Não se atrevia a pensar no que o homem normal seria atual-mente. Mas era difícil de compreender. Bergen não havia se transformado em umdeus. Seus olhos não lançavam chamas, sua voz não era vibrante nem resoluta, nãotinha começado a construir máquinas que rugissem e lançassem chamas. Continuavasendo o homem alto de costas curvadas e rosto fatigado e que gaguejava penosa-mente, nada mais. As árvores continuavam sendo verdes, os pássaros cantavam en-tre os roseirais, e uma mariposa azul–cobalto pousou em um braço do banco.

Brock lembrou vagamente de alguns sermões das poucas vezes que tinha ido àigreja. O fim do mundo. O firmamento iria se abrir? Os anjos derramariam as redo-mas da cólera sobre uma terra estremecida? Deus apareceria para julgar os filhosdos homens? Prestou atenção ao estrondo de um grande galopar de cascos; mas erasomente o vento atravessando as árvores. Isso era o pior de tudo, o céu não presta-va atenção. A Terra continuava dando voltas na interminável escuridão e silêncio e oque acontecia na tênue escória depositada sobre sua crosta não importava.

Não importava a ninguém. Não tinha importância alguma.

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Brock olhou para seus sapatos grosseiros e depois para suas mãos fortes e peludascaídas entre os joelhos. Pareciam incrivelmente alheias. As mãos de um estranho.

“Meu Jesus – pensou, – o que está me acontecendo de verdade?”Puxou Joe pelo pela área revolta do pescoço e o prendeu ao seu lado. De repente

sentiu uma necessidade louca de uma mulher, de alguém que o segurasse, que con-versasse com ele, que obstruísse a solidão do firmamento. Levantou–se, com o corpoempapado de suor frio, e foi para a casa dos Bergen. Agora era sua, ao que parecia.

Voss era um jovem, um garoto da cidade não muito inteligente que não tinha sidocapaz de encontrar outro emprego. Levantou a vista do livro, mal–humorado, quandoo outro entrou na sala de estar.

– Bem – disse Brock, – Bill acaba de partir.– Eu sei. O que vamos fazer?Voss estava assustado, sentia–se fraco e estava disposto a entregar–lhe a direção.

Bergen devia ter previsto isto. O senso de responsabilidade havia se fortalecido nele.– Estaremos muito bem ficando aqui – disse Brock. – Simplesmente esperamos,

mantendo isto em funcionamento.– Os animais….– Você tem um revólver, não é isso? Em todo caso, eles saberão disso quanto fo-

rem se desenvolvendo. Basta ter cuidado, fechar sempre as portas quando passar,tratá–los bem….

– Não vou cuidar de nenhum desses animais condenados – disse Voss, emburrado.– Mas é seu serviço.Brock foi ao refrigerador, tirou duas ladas de cerveja e abriu–as.– Olhe, eu sou mais inteligente que você e….– E eu sou mais forte. Se não está gostando, pode ir embora.Brock deu a Voss uma lata e inclinou a outra na sua boca.– Olhe – disse, depois de um momento, – eu conheço esses animais. Na sua maio-

ria são o de costume. Ficarão por aqui porque não sabem fazer outra coisa e porquelhes damos de comer e porque…. hum, porque penetrou neles o respeito pelo ho-mem. Não há ursos nem lobos no bosque, nada que possa nos dar desgosto, salvoos porcos. Eu teria mais medo se vivesse em uma cidade.

– Como isso aconteceu?Apesar de si mesmo, Voss estava subjugado. Deixou o livro de lado e tomou a cer-

veja. Brock deu uma olhada no título: Noite de Paixão, uma edição de dois centavos.Voss podia ter conseguido uma mente melhor, mas fora isso não tinha mudado. Nãodesejava pensar.

– As pessoas – disse Brock, – só Deus sabe o que farão.Foi até o rádio, ligou e depois achou um jornal falado. Não significava grande coisa

para ele. Tratava sobretudo das novas faculdades mentais. Mas as palavras eram en-groladas de tal forma que não faziam muito sentido, pois a voz parecia atemorizada.

Depois de almoçar, Brock decidiu fazer uma exploração pelo bosque e ver se podialocalizar os porcos e ver o que eles estavam fazendo. Se preocupava mais com elesdo que teria admitido. Os porcos sempre foram mais inteligentes do que crê a maio-ria das pessoas. Tinham que pensar também sobre os alimentos armazenados queeram guardados na granja e que só estavam aos cuidados de dois homens. Vossnem sequer foi convidado; teria se negado. Em todo caso, era prudente ter um ho-mem que cuidasse da casa. Brock e Joe foram até a cerca e a saltaram, entrando

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nos seiscentos acres onde havia somente floresta e nada mais.A floresta verde, sombria e cheia de ruídos. Brock segui devagar, com o rifle debai-

xo do braço, separando o mato diante dele com o cuidado habitual. Não viu esquilos,ainda que comumente houvesse muitos. Bem…. deviam ter compreendido, como fa-zia tempo que os corpos haviam compreendido, que um homem com uma arma defogo era algo de que deveriam se afastar. Se perguntou quantos olhos os vigiariam eo que pensariam por trás desses olhos. Joe se mantinha junto aos seus calcanhares,sem saltar para todo lado como costumava fazer.

Um ramo que ele esqueceu de afastar golpeou malevolamente o rosto do homem.Ele ficou aterrado por um momento. As árvores pensariam também agora? O mudointeiro iria se rebelar? Não. Depois de uns instantes conseguiu se dominar e conti-nuou imperturbável pela trilha do gado. Para ter sofrido uma mudança como essa,fosse o que fosse, era preciso que pensasse, primeiramente. As árvores não tinhamcérebro. Parecia-lhe lembrar de ter ouvido dizer que os insetos tampouco tinham;anotou isso para verificar. Era uma boa coisa que o senhor Rossman tivesse uma ex-celente biblioteca. E uma boa coisa também, Brock se tornou ciente disto, que elefosse ajuizado. Nunca tinha ficado excitado por nada e estava aceitando a nova or-dem das coisas com mais calma do que lhe parecia possível. Um passo depois do ou-tro, era isso. Simplesmente continuar, dia após dia, fazendo tudo quando pudessepara continuar vivendo.

O matagal se separou diante dele e apareceu um porco. Era um javali negro, umacriatura de aparência desprezível e que se mantinha imóvel, interceptando–lhe o ca-minho. O focinho pontudo era uma máscara; mas Brock nunca tinha visto algo tãofrio como aqueles olhos. Joe se eriçou, rosnando, e Brock levantou o rifle. Ficaramassim por um longo tempo, sem se moverem. Depois o porco grunhiu, ao que pare-ceu depreciativamente, e, voltando–se, desapareceu nas sombras. Brock notou queestava empapado de suor.

Forçou–se a ficar durante duas horas na mata, dando uma batida, mas viu poucacoisa. Ao voltar, ia absorto em seus pensamentos. Os animais haviam mudado, comcerteza, mas não havia modo de saber quanto nem o que iam fazer em seguida. Tal-vez nada.

– Eu estive pensando – disse Voss, quando ele entrou na casa – que talvez devês-semos ir para outro fazendeiro. Ralph Martinson precisa de quem o ajude, agora queos que ele tinha o deixaram.

– Eu fico.– Voss lançou–lhe um olhar frio.– Porque não quer voltar a ser um néscio, não é?Brock fez um gesto, mas respondeu simplesmente:– Chame como quiser.– Pois eu não vou ficar aqui eternamente.– Ninguém está lhe pedindo. Vamos, já é hora de ordenhar.– Maldição! Que vamos fazer com o leite de trinta vacas? Faz trinta dias que o ca-

minhão da leiteria não vem.– Hum…. sim. Bem, depois acharemos uma solução, Mas por enquanto não pode-

mos deixá–las com os úberes a ponto de arrebentar.– Não podemos? – murmurou Voss, mas foi atrás dele para o estábulo.Ordenhar trinta vacas era muito trabalho, mesmo com a ajuda de 2 máquinas.

Brock optou por dessecar a maioria, mas mesmo para isso precisava tempo e tinha

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que fazê–lo gradualmente. E elas estavam inquietas e difíceis se serem manipuladas.Saiu, pegou um forcado e começou a jogar feno por cima do cercado das ovelhas,

que como de costume tinham vindo em manada do bosque. Na metade da tarefa foisobressaltado por um latido selvagem de Joe. Ao se voltar, viu o enorme touro Hols-tein que se aproximava.

“Está solto”, disse para si mesmo. Sua mão dirigiu–se para a pistola que levava nocinto mas voltou para a forquilha. Uma pistolinha como aquela não servia de grandecoisa contra um monstro como aquele. O touro resfolegou, escarvando o solo e agi-tando a cabeça de chifres sem pontas.

– Muito bem, amigo – Brock aproximou–se lentamente dele, umedecendo os lábiossecos como areia, com a língua. O barulho do coração ressoava em seus ouvidos. –Muito bem, volte tranquilo para seu cercado, certo?

Joe rosnava junto ao seu dono, com as patas rígidas. O touro abaixou a cabeça earremeteu.

Brock se preparou, O gigante que vinha contra ele parecia encher o céu. Cravou oforcado em baixo da mandíbula. Foi um erro. Se deu conta, furioso, de que devia tê–lo atingido nos olhos. O forcado voou das suas mãos e sentiu um golpe que o derru-bou por terra. O touro apoiou a cabeça contra o peito de Brock, tentando chifrá–locom chifres inexistentes.

De repente bramiu, com um tom horrendo de dor. Joe tinha vindo por trás dele etinha ferrado os dentes no lugar certo. O touro se voltou, roçando com um casco ascostelas de Brock. Este sacou a pistola e disparou dali mesmo, do chão. O touro cor-reu. Brock voltou–se, ficou de pé e saltou para trás da grande cabeça do animal, co-locou o cano atrás de uma orelha e disparou. O touro cambaleou e caiu de joelhos.Brock esvaziou a arma na sua cabeça. Depois disso deixou–se cair junto ao touro emergulhou em um negro torvelinho. Voltou a si quando Voss o sacudiu.

– Está ferido, Archie? – as palavras em seus ouvidos eram um gaguejar sem senti-do. – Está ferido?

Brock deixou que Voss e carregasse para casa. Depois de um bom trago sentiu–semelhor e se examinou.

– Estou bem – murmurou. – Machucados e arranhões, mas nenhum osso quebra-do. Estou muito bem.

– Isto decide a questão – Voss estava mais agitado que Brock. – Vamos embora.A cabeça vermelha do outro balançou.– Não.– Está louco? Sozinho aqui com todos esses animais que estão se enfurecendo e

tudo indo para o inferno. Está louco?– Eu fico.– Pois eu não. E estou com vontade de lhe obrigar a vir comigo.– Não tente – disse Brock. De repente sentiu um imenso cansaço. – Vá se quiser,

mas me deixe aqui. Não acontecerá nada.– Bem….– Amanhã pode levar parte do gado para Martinson, se quiserem ficar com eles.

Eu me arranjarei com o resto.Voss discutiu um pouco mais com ele, depois pegou o jeep e se foi. Brock sorriu

sem saber inteiramente o que estava fazendo.Inspecionou o touril. A porta tinha sido quebrada com um empurrão decidido. Me-

tade da resistência das cercas sempre tinha consistido em que os animais não sabi-

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am como empurrá–las. Mas ao que parecia agora sabiam.– Terei que enterrar esse sujeito com uma escavadeira – disse Brock. – Estava se

tornando cada vez mais natural falar alto com Joe. – Farei isso amanhã. Agora vamosjantar, rapaz. E depois leremos e ouviremos música. Parece que a partir de agora es-taremos sozinhos.

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6

Uma cidade é um organismo, mas até então Corinth não soubera apreciar seu in-tricado e precário equilíbrio. Agora que esse equilíbrio havia desaparecido, Nova Ior-que estava deslizando velozmente para a desintegração e a morte. Só funcionavamalguns trens do Metrô, um serviço precário a cargo de alguns que sentiam apego su-ficiente ao trabalho para continuar fazendo–o, agora que tinha se tornado completa-mente monótono e desagradável. As estações estavam vazias e escuras, sujas pelolixo que não tinha sido varrido, e o ranger das rodas levava em si uma solidão tortu-rante. Corinth foi para seu trabalho através de ruas sujas, cujo tráfego havia diminuí-do, sendo somente uma parte um tanto desordenada do anterior e regular rio de cir-culação.

Lembranças de cinco dias atrás: “As estradas estão lotadas; são como uma barri-cada de aço de dez milhas de comprimento; as buzinas e os gritos fazem tremer atéas mais altas janelas. O ar está cheio da fumaça dos escapamentos e as pessoas seasfixiam….; pânico cego, uma multidão que foge da cidade que, em sua opinião, estáagonizante, e a deixam a uma velocidade que podia ser calculada em oito quilôme-tros por hora, em média. Dois carros se chocaram, ficando enganchados, e os moto-ristas saíram deles e lutaram entre si até que seus rostos se tornassem máscarassanguinolentas. Os helicópteros da Polícia zumbiam acima, impotentes, como moscasmonstruosas. Era triste saber que a multiplicação da inteligência não amainava aque-la debandada animal.”

Aqueles que ficavam – provavelmente três quartos dos habitantes da cidade – con-tinuavam vivendo como podiam. O gás e a eletricidade continuavam sendo forneci-dos, mas severamente racionados. Os alimentos ainda chegavam escassamente docampo, mesmo quando se tinha de pegar o que houvesse e pagar preços exorbitan-tes. A cidade era como uma onda que ressoasse e se agitasse a ponto de romper eferver.

Lembranças de três dias atrás: “Segunda revolta no Harlen, quando o medo dodesconhecido e a cólera pelas injustiças passadas impulsionou a luta; sem nenhumaoutra razão, salvo que as mentes não habituadas não conseguiam controlar seus no-vos poderes. O monstruoso rugir das casas incendiadas, chamas vermelhas se deba-tendo contra o vento do céu noturno. O inquieto brilho como sangue em um milharde rostos escuros; uma milhar de corpos mal vestidos se chutam. Cambaleantes, lu-tam pelas ruas. Uma faca que brilha no alto e que vai se saciar em uma garganta hu-mana. Um vozerio entrecortado entre os estrondos das fogueiras. Gritos, quando al-guma mulher cai no chão é pisoteada, ficando informe sob centenas de pés que cor-rem. Os helicópteros se agitando e se contorcendo na borrasca do ar sobreaquecidoque sobe das chamas. E pela manhã, ruas vazias, uma neblina de fumaça acre, um

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soluço confuso por trás de janelas fechadas.”

Ainda havia uma fraca imitação de ordem rigidamente mantida. Mas…. quantotempo poderia durar?

Um homem em farrapos, com uma barba áspera e recente, estava desabado emuma esquina. Uma dúzia de pessoas o rodeavam, escutando com uma estranha con-centração. Corinth ouviu as palavras sonoras e broncas em meio ao silêncio:

“….porque nos esquecemos dos princípios eternos da vida; porque deixamos queos cientistas nos traíssem; porque seguimos os sabichões." Mas eu vos digo que avida é a única coisa que interessa ante a grande Unicidade, na qual o todo é um eum é o todo. Ouçam–me, eu lhes trago a palavra da volta à….”

Ficou todo arrepiado e dobrou a esquina rapidamente. Seria um missionário doculto do Terceiro Baal? Não sabia e não tinha vontade de ficar para verificar. Não ha-via um guarda à vista a quem avisar. Sobreviria um verdadeiro conflito se a nova reli-gião conseguisse muitos seguidores na cidade. Sentiu um certo alívio ao ver umamulher que entrava em uma igreja católica próxima.

Um táxi deu a volta em uma esquina sobre duas rodas, batendo de lado em umcarro estacionado, e prosseguiu com grande estrépito. Outro automóvel andava de-vagar, rua adiante, o chofer com o rosto fechado e o passageiro segurando um revól-ver. Medo. As lojas de um e de outro lado estavam fechadas; só permanecia abertauma pequena loja de comestíveis; seu proprietário estava com uma pistola no cinto.Na lôbrega entrada de uma casa da vizinhança estava sentado um velho, lendo ACrítica, de Kant, com uma ansiedade frenética e estranha, ignorando o mundo que orodeava.

– Senhor, faz dois dias que não como.Corinth olhou para a silhueta que tinha saído deslizando de um beco.– Desculpe, só tenho dez dólares, o que é o bastante para apenas uma refeição,

com os preços atuais.– Meu Deus, não consigo encontrar emprego….– Vá à Prefeitura, amigo. Eles lhe darão trabalho e cuidarão da sua alimentação.

Estão precisando de gente desesperadamente.– Esses trabalhos? – contestou o outro, com desprezo – Varrer ruas, recolher lixo,

transportar alimentos? Antes prefiro morrer de fome.– Pois então morra de fome – disse Corinth, e continuou andando ainda mais de-

pressa.Mas se poderia esperar algo diferente? Não precisava senão tomar um homem típi-

co, um trabalhador de uma fábrica ou um empregado de uma oficina, com sua men-te embrutecida por uma série de reflexos verbais, cujo futuro não é senão trabalhardia após dia para ter só uma chance de encher sua barriga; um homem anestesiadopelo cinema e pela televisão….; mais e maiores automóveis; mais plásticos e maisbrilhantes, acima e abaixo da Forma de Vida Americana. Até antes da mudança hou-vera um vazio íntimo na civilização ocidental, uma certeza subconsciente de que de-veria haver mais na vida além do nosso próprio ser efêmero; e o ideal não estavapróximo.

Então, de repente, quase da manhã para a noite, a inteligência humana tinha ex-plodido para alturas fantásticas. Um universo inteiramente novo se abriu diante des-se homem com visões, compreensíveis; pensamentos que se moviam espontanea-mente nele. Viu a mísera impropriedade da sua vida, a trivialidade do seu trabalho, a

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estreiteza dos mesquinhos limites das suas crenças e convicções…. e deixou seu tra-balho.

Claro, nem todos deixaram; nem sequer a maioria. Mas houve bastantes que o fi-zeram, lançando deste modo a estrutura da civilização técnica para fora dos trilhos.Se não se tirava mais carvão das minas, os que fabricavam o aço e as máquinas nãopoderiam permanecer em suas tarefas, mesmo que o quisessem. A isto se podiaacrescentar os distúrbios causados pelas emoções descarrilhadas, e….

Ia andando pela rua uma mulher nua que levava a cesta de compras. Ela tinha co-meçado a pensar por conta própria, imaginou Corinth, e decidindo que usar roupa noverão era absurdo, tinha aproveitado o fato da Polícia estar preocupada com outrascoisas para que não pudesse detê–la. Não havia dano algum naquilo, per si, mas eraum sintoma que o fez estremecer. Toda sociedade está necessariamente fundamen-tada em certas regras e restrições mais ou menos arbitrárias. De repente muito gen-te tinha se dado contra de que as leis eram arbitrárias, sem significado intrínseco, etinham começado a violar todas aquelas de que não gostavam.

Um jovem sentado no umbral de uma porta, segurando os joelhos com as mãos eapoiando nelas o queixo, se balançava de um lado para outro soluçando fracamente.

Corinth se deteve.– Está lhe acontecendo alguma coisa? – perguntou.– Medo – seus olhos estavam brilhantes e vidrados. De repente me dei conta dis-

so. De que estou sozinho.A mente de Corinth previu tudo quanto ele ia lhe dizer, mas escutou as palavras

ofuscadas pelo pânico:– Tudo o que sei, tudo o que eu sou, está aqui, na minha cabeça. Tudo existe para

mim tal e como eu sei. E algum dia vou morrer – um fio de baba escorria por umacomissura da boca. – Um dia a grande treva chegará e eu não existirei…. nada existi-rá. Você ainda pode existir, para você…. ainda assim, como posso saber se não é ou-tra coisa senão um senho meu? Mas para mim não haverá nada, nada. Nem sequerterei existido – lágrimas de aflição emanavam dos seus olhos.

Corinth se afastou.Insensatez…. sim. Isso tinha muito a ver com o marasmo. Devia haver milhões de

pessoas que não tinham sido capazes de suportar o repentino aumento, em amplitu-de e em agudeza, da compreensão. Tinham sido incapazes de se haver com as novasfaculdades e pouco a pouco foram enlouquecendo.

Sentiu um calafrio naquele ambiente quente e quieto.

O Instituto era como o céu. Quando entrou, havia um homem sentado, de guarda,com um sub–fuzil apoiado contra a cadeira e um texto de química no colo. O rostoque se levantou para Corinth era sereno.

– Olá.– Algum problema, Jim?– Ainda não. Mas nunca se pode saber, com todos esses vagabundos e fanáticos.Corinth assentiu, sentindo que algo daquela viscosidade o abandonava. Ainda ha-

via homens racionais que não se deixavam arrastar como cometas pelas estrelas per-cebidas de repente, mas que continuavam fazendo tranquilamente o trabalho imedia-to.

O ascensorista era um garoto de dezesseis anos, filho de um empregado do Insti-tuto; as escolas estavam fechadas.

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– Olá, senhor – disse ele alegremente. – Eu estava lhe esperando. Como diabosMaswell conseguiu suas equações?

– Hum – o olhar de Corinth pousou em um livro que jazia no assento. – Ah, vocêsestá estudando rádio, não é? O Cadogan é bastante difícil para começar. Você devetentar ler….

– Eu vi os diagramas dos circuitos, senhor Corinth, mas não sei como funcionam.Cadogan dá somente as equações.

Corinth lhe recomentou um texto sobre cálculo vetorial.– Quando tiver terminado, volte a me ver.Sorria quando saiu do elevador no sétimo andar, mas seu sorriso se extinguiu

quando foi andando pelo corredor adiante.Lewis estava no laboratório, esperando–o.– Atrasado – resmungou.– Sheila – replicou Corinth.A conversa ali tinha se transformado em uma nova linguagem. Quando nossa

mente tem a capacidade quadruplicada, uma só palavra, um gesto de mão, uma mu-dança de expressão podem conter em si, para aquele que conhece alguém e suasmaneiras, todo um parágrafo de inglês gramatical.

– Está chegando tarde esta manhã – teria dito Lewis – Ocorreu algum contratem-po?

– Saí tarde de casa por causa de Sheila – teria respondido Corinth. – Ela não estáaceitando isto nada bem. Nat, francamente, estou preocupado com ela. Mas o queposso fazer? Já não entendo mais a psicologia humana; mudou muito e muito de-pressa. Ninguém a entende. Todos nós nos tornamos estranhos para os outros…. epara nós mesmos. E isso é aterrador.

Lewis adiantou seu pesado corpo.– Vamos. Rossman está aqui e quer conferenciar conosco.Foram pelo corredor, deixando Johansson e Grunewald imersos em seu trabalho:

medir as constantes alteradas pela natureza, recalibrar os instrumentos e refazertodo o enorme trabalho básico de ciência novamente, a partir dos fundamentos.

Por todo o edifício, os outros departamentos mostravam os rostos alterados dassuas correspondentes disciplinas. Em cibernética, química, biologia e, sobretudo, empsicologia, havia muito o que fazer e os cientistas economizavam as horas de sono.

Os chefes de departamento estavam reunidos em torno de uma longa mesa no ss-lão principal de reuniões. Rossman estava sentado em uma ponta, alto, magro, grisa-lho, sem a menor mobilidade em suas austeras feições. Helga Arnulfsen estava à suadireita e Felix Mandelbaum à sua esquerda. Por um instante Corinth se perguntou oque fazia ali o organizador trabalhista, mas logo compreendeu que devia representaro Governo provisório da cidade.

– Bom dia, cavalheiros – Rossman cumpria com as formas de cortesia eduardianacom uma minucia que teria feito rir se não fosse evidentemente uma tentativa deses-perada de se apegar a algo real e conhecido. – Façam o favor de se sentarem.

Ao que parecia estavam todos presentes. Rossman foi direto à questão.– Acabo de chegar de Washington. Eu pedi que vocês se reunissem porque me pa-

rece que uma troca de ideias de informação é uma necessidade urgente. Ficarãomais à vontade ao saber que posso lhes dar uma imagem do conjunto. E sem dúvidaeu ficarei feliz se encontraram uma explicação científica. Juntos, estaremos em con-dições de planejar inteligentemente.

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– Quanto à explicação – disse Lewis – estamos todos de acordo, aqui no Instituto,de que a teoria de Corinth é a correta. Esta teoria postula um campo de força, emparte de caráter eletromagnético, gerado pela ação giromagnética dentro de um núc-leo atômico perto do centro da galáxia. Irradia para fora em forma de cone, e pelotempo que alcançou nossa seção no espaço, já percorreu muitos anos-luz. Seus efei-tos são inibir certos processos eletromagnéticos e eletroquímicos, entre os quais asfunções de certos tipos de neurônios se sobressaem. Supomos que o sistema solar,em sua órbita em torno do centro da galáxia, penetrou em um campo de força hámilhões de anos…. não mais distante que o cretáceo. Indubitavelmente, muitas es-pécies desse tempo morreram. Não obstante, em conjunto a vida sobreviveu…. ado-tando sistemas nervosos que compensaram a força inibitória e fazendo com que estafosse muito mais eficiente. Em poucas palavras: todas as formas de vida de hoje são(ou eram, imediatamente antes da mudança) aproximadamente tão inteligentesquanto deveriam ter sido em qualquer caso.

– Compreendo – assentiu Rossman. – E depois o sol e seus planetas saíram docampo de força.

– Sim. O campo teve ter contornos bastante definidos, dado como são as coisas naastronomia, pois a mudança teve lugar em poucos dias. A faixa do campo, desde aregião de plena intensidade até a região em que não tem efeito algum, é talvez so-mente de uma largura de dezesseis milhões de quilômetros. Agora estamos definiti-vamente fora dele; as constantes físicas permaneceram estáveis há vários dias.

– Mas nossas mentes não – disse Mandelbaum sombriamente.– Eu sei – atalhou Lewis. – Falaremos nisso em um instante. O efeito geral na Ter-

ra ao sair do campo inibidor foi, naturalmente, um repentino aumento da inteligênciaem todas as formas de vida que possuem cérebro. De improviso, a força frenadora àqual estavam adaptados os organismos vivos, cessou. Portanto, a falta da dita forçaproduziu um desequilíbrio enorme. O sistema nervoso tende a funcionar enlouqueci-do, tentando se estabilizar e reger um novo nível; por isso todo mundo se senta tãoagitado e tão assustado, para não dizer mais. A estrutura física do cérebro estáadaptada a uma velocidade…. ou melhor, a uma série de velocidades dos sinais neu-rônicos. Agora, de repente, a velocidade aumentou enquanto que a estrutura físicapermanece a mesma. Falando simplesmente, vamos precisar de um certo tempopara nos habituarmos a isto.

– Por que não estamos mortos? – perguntou Grahovitch, o químico – Eu diria quenossos corações e demais órgãos se poriam a funcionar enlouquecidos.

– O sistema nervoso vegetativo foi relativamente pouco afetado – disse Lewis. –Parece ser uma questão de tipos celulares. Há muitos diferentes tipos de células ner-vosas, como você sabe, e, ao que parece, somente aquelas do córtex cerebral reagi-ram muito à mudança. Ainda assim, a média do funcionamento não subiu realmentegrande coisa; o fator é pequeno, mas ao que parece os processos implicados naconsciência são tão sensíveis que isso supôs uma enorme diferença ao que chama-mos de pensamento.

– Mas, sobreviveremos?– Ah, sim! Estou certo de que não haverá dano físico…. para a maioria das pesso-

as, pelo menos. Alguns se tornaram loucos, mas isto provavelmente foi mais por ra-zões psicológicas que histológicas.

– E…. entraremos em algum outro campo desse? – inquiriu Rossman.– Dificilmente – respondeu Corinth. – De acordo com esta teoria, estou convencido

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de que só pode haver um assim, pelo menos em qualquer galáxia. Contando que osol precisa de uns duzentos milhões de anos para completar sua órbita em torno docentro galáctico.. bem, precisaremos de mais da metade desse período antes de nospreocuparmos se poderemos tornar–nos estúpidos outra vez.

– Humm…. Entendido, cavalheiros. Fico–lhes muito agradecido. – Rossman se incli-nou para a frente, entrelaçando seus finos dedos. – Agora, quanto ao que conseguiaveriguar, temo que não seja grande coisa, principalmente más notícias. Washingtoné uma casa de loucos. Muitos homens que ocupavam postos chaves deixaram estespostos; ao que parece, há coisa mais importantes na vida que a Administração Públi-ca e a lei….

– Bom, temo que tenham razão – disse Lewis, sorrindo ironicamente.– Não resta dúvida. Mas enfrentemos o fato, cavalheiros: por pouco que nos agra-

de o presente sistema, não podemos deixar que desmorone do dia para a noite.– O que se fala da Europa? – perguntou Weller, o matemático. – O que está ha-

vendo na Rússia?– Estaríamos indefesos contra um ataque armado – disse Rossman. – Mas o que

resta do serviço de espionagem militar indica que a ditadura soviética tem suas pró-prias dificuldades – suspirou. – Antes de tudo, cavalheiros, temos que cuidar da nos-sa própria queda. Washington se torna cada dia mais inútil; cada vez há menos pes-soas que escutem as ordens e chamamentos do presidente; cada vez tem menos for-ças à sua disposição. Em muitas zonas foi declarada a lei marcial, mas qualquer ten-tativa de impô–la significaria unicamente a guerra civil. A reorganização tem que serfeita sobre uma base local. Estas são, essencialmente, as notícias que trago.

– Estivemos trabalhando nisso aqui em Nova Iorque – disse Mandelbaum. Pareciacansado, esgotado pelos dias e noites de esforço incessante. – Agora eu conseguideixar os sindicatos em ordem. Vão ser feitos acordos para trazer e distribuir alimen-tos; espero também conseguir uma milícia voluntária que mantenha uma certa or-dem – voltou–se para Rossman. – Você é um organizador capaz. Seus outros interes-ses, seus negócios e suas fábricas, foram arrastados pela enxurrada e aqui há umatarefa que tem que ser feita. Pode nos ajudar?

– Naturalmente – assentiu o ancião com um gesto – E o Instituto….– Temos que continuar energicamente. Conseguimos compreender o que está

acontecendo e o que podemos esperar em um futuro imediato. Temos que colocarem marcha um milhar de coisas, imediatamente, o mais breve possível.

A conversa mudou para detalhes da organização. Corinth tinha pouco a dizer. Esta-va preocupado demais com Sheila, que na noite passada tinha acordado dando gri-tos.

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7

Ato, o médico bruxo, estava traçando figuras no pó, na frente da sua choça comteto de ramos e murmurando alguma coisa para si mesmo. Amanzio o ouvia entre otilintar das armas e os distantes sons dos tambores, enquanto os guerreiros de altoescalão iam de cá para lá. A lei da semelhança, de que o semelhante engendra o se-melhante, pode ser expressa na forma já, ou não já, mostrando assim que esse tipode magia obedece à lei da causalidade universal.

Mas como ajustá–la à lei da contaminação?….Amanzio lançou um olhar irônico quando passou por ali. Tinha que deixar que o

velho edificasse seus sonhos empoeirados como quisesse. O rifle em seu ombro erauma sólida realidade e bastava para ele. E seriam as armas de fogo, e não a magia,que fariam com que se cumprisse o antigo desejo: Emancipar o negro! Que os bran-cos opressores voltassem a cruzar o mar! Desde sua juventude, nos dias de terror naplantação, isso tinha sido sua vida. Mas somente agora….

Bem, não tinha se sentido assustado com o que estava se passando em sua alma,como os outros estavam. Seu potencial mental tinha aumentado. E ele, exaltado atéa ferocidade, dominava a tribo inteira, quase meio louca de terror, pronta para sevoltar a qualquer parte, buscando a comodidade de ser comandada. Em milhares dequilômetros, desde as selvas do Congo até os veletes do Sul, os atormentados, osescravizados, os cuspidos levantavam seus rostos fatigados para a mensagem quevoava no vento. Agora era o momento de dar o golpe, antes que o branco tambémse preparasse. O plano estava pronto, jazia na alma de Manzanze, o Elefante. A cam-panha tinha sido planejada para ser realizada em alguns poucos dias, como um re-lâmpago, e sua língua sutil tinha conseguido ganhar o comando de uma centena degrupos em conflito e o exército estava pronto para ganhar vida. Agora era o momen-to de ser livre!

Os tambores conversavam em torno dele, à medida que se dirigia para a borda daselva. Passou através do muro de um canavial e pela espessa e quente sombra dobosque. Outras sombras se moviam, deslizavam pela terra e aguardavam grotesca-mente diante dele. Olhos escuros o olhavam com uma tristeza inata.

– Congregou todos os irmãos da floresta? Perguntou Amanzio.– Virão logo – disse o macaco.Esta tinha sido a grande realização de M’wanzi. O resto, a organização, a campa-

nha planejada, não era nada ao lado daquilo; porque se as almas dos homens ti-nham ficado extraordinariamente maiores de repente, as almas dos animais tinhamque ter crescido. Esta suspeita tinha sido confirmada por uma aterrorizante históriade assaltos às fazendas, realizadas por elefantes de uma astúcia demoníaca. Masquando chegaram estas informações, ele já estava inventando uma linguagem com-posta de sinais (verdadeiras frases feitas) e grunhidos, com um chimpanzé captura-do. Os macacos nunca tinham sido menos inteligentes que os homens, conforme

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achava M’wanzi. Hoje ele poderia oferecer–lhes muito em troca da sua ajuda. E nãoeram africanos também?

– Meu irmão da floresta, vá dizer ao seu povo que se prepare.– Nem todos eles desejam isto, irmão dos campos. Terei que bater–lhes para que

desejem isto. O que exige tempo.– Tempo que não temos. Use os tambores como lhe ensinei. Mande aviso através

da terra e que a hostes se congreguem nos lugares assinalados.– Será feito como deseja. Quando a lua voltar a subir, os filhos da floresta estarão

aqui e estarão armados com facas, zarabatanas e azagaias, como você me ensinou.– Irmão da floresta, você alegrou meu coração. Que tenha sorte. Transmita minha

palavra.O macaco se foi. E quando agilmente se balançou um pouco, agarrado a uma ár-

vore, um raio de sol errante refletiu no fuzil que levava às costas.

Corinth suspirou e, com um bocejo, se levantou da sua mesa–escrivaninha, jogan-do os papeis de lado. Não disse nada em voz alta, mas para seus assistentes, inclina-dos sobre certos aparelhos de teste, o sentido era claro: “Ao diabo com tudo isto. Es-tou cansado demais para pensar direito por mais tempo. Vou para casa.”

Johansson fez um gesto com a mão, que expressava tão bem como se tivessedito: “Acho que ficarei aqui mais um tempo, chefe. Isto está tomando uma linda for-ma.”

Grunewald acrescentou a isto um breve gesto de cabeça.Corinth procurou maquinalmente um cigarro, mas seu bolso estava vazio. Naqueles

dias não se achava tabaco. Desejou que o mundo voltasse logo à sua situação nor-mal, mas isto parecia menos provável a cada dia. Que estaria acontecendo fora dacidade?

Algumas estações de rádio, profissionais e amadoras, estavam mantendo a tênueteia de aranha das comunicações através da Europa ocidental, das Américas e do pa-cífico; mas o resto do planeta parecia ter sido engulido pelas trevas; uma ou outrainformação sobre violências, como relâmpagos à noite, e mais nada. Sabia–se comsegurança que missionários do Terceiro Baal tinham entrado na cidade, apesar de to-das as precauções, e que estavam fazendo palestas à direita e à esquerda. A novareligião parecia ser totalmente orgiástica, com um ódio mortífero à lógica, à ciência eà racionalidade de todo gênero. Devia–se esperar distúrbios.

Corinth desceu pelos corredores, que agora eram túneis de escuridão. Tinham quecuidar da eletricidade; ainda funcionavam algumas usinas elétricas, manipuladas eguardadas por voluntários. O serviço de elevadores acabava no por do sol, pelo queele desceu os sete trechos da escada até chegar ao andar térreo. A solidão o opri-mia. Quando viu a luz no escritório de Helga, parou surpreso, e depois bateu à porta.

– Entre.Abriu a porta. Ela estava sentada atrás de uma mesa desarrumada, escrevendo

uma espécie de manifesto. Os símbolos que usava eram desconhecidos para ele, pro-vavelmente inventados por ela, e mais eficientes que os convencionais. Ainda pareciaseveramente formosa, mas em seus olhos pálidos havia uma profunda fadiga.

– Olá, Peter – disse ela. O sorriso que contraiu seus lábios era de cansaço, mas ca-rinhoso. – Como tem passado?

Corinth disse duas palavras e fez três gestos. Ela os completou com sua ideia dalógica e seu conhecimento das antigas formas de falar: “Ah, muito bem, mas eu….

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achava que você tinha sido capturada por Felix para ajudá–lo a formar seu novo Go-verno.”

– E fui – respondeu ela – Mas me sinto sozinha. – Como vai seu trabalho? – perguntou ela, depois de um momento.O silêncio reinava em torno deles.– Bastante bem. Estou em contato com Rhayader, na Inglaterra, por ondas curtas.

Estão passando mal, mas continuam vivendo. Alguns dos seus bioquímicos estão tra-balhando com leveduras e obtendo bons resultados. Lá para o fim do ano eles espe-ram estar em condições de se alimentarem adequadamente, embora de forma nãoagradável ao paladar; serão construídas usinas para fabricar alimento sintético. Elemeu deu uma certa informação que se ajusta à teoria do campo inibidor. ColoqueiJohansson e Grunewald trabalhando em um aparelho para gerar um campo seme-lhante em pequena escala; se tiver êxito, saberemos se nossa hipótese é aproxima-damente correta. Depois Nat poderá usar o aparelho para estudar os efeitos biológi-cos em detalhe. Quanto a mim, eu me meti no desenvolvimento da mecânica geralrelativista quântica, aplicando uma nova variante da teoria das comunicações, aomenos para seguir em frente.

– Que finalidade você persegue além da curiosidade?– É algo inteiramente prático, eu lhe asseguro. Poderemos encontrar o meio de ge-

rar energia atômica de uma matéria qualquer, por desintegração nuclear direta; en-tão já não haverá problemas de combustível. Até poderemos achar o meio de viajarmais rápido que a luz. As boas….

– Novos mundos. Ou podemos regressar ao campo inibidor no espaço, por quenão? Voltar a ser estúpidos. Talvez sejamos mais felizes deste modo. Mas não, medei conta de que não se pode voltar ali de novo – Helga abiu uma gaveta e tirou umpacote amassado de cigarros – Fuma?

– Você é um anjo. Como diabos conseguiu isso?– Tenho meus meios – acendeu um fósforo e acendeu seu cigarro. – Eficiência….

sim.Fumaram em silêncio por um momento, mas a compreensão mútua do que pensa-

va o outro era como uma pálida chama entre eles.– Será melhor que me permita acompanhá–la à sua casa – disse Corinth. – Lá fora

não há segurança. As turbas do profeta….– Muito bem – respondeu ela. – Embora eu tenha um carro e você não.– São somente alguns quarteirões da sua casa até a minha, e é um bairro seguro.Como ainda não era possível patrulhar por toda a cidade, o Governo havia se con-

centrado em certas ruas e zonas chaves.Corinth tirou as lentes e esfregou os olhos.– Eu realmente não entendo isso – disse. – As relações humanas nunca foram meu

forte, e ainda não são de todo…. Bem, por que este repentino crescimento da inteli-gência lançou tantos ao estado animal? Por que não compreendem….?

– Não querem compreender – Helga aspirou com força o fumo do seu cigarro. –Deixando totalmente de lado aqueles que se tornaram loucos, e que são um fatorimportante, resta a necessidade ter, não somente algo sobre o que pensar, comotambém algo em que pensar. Temos milhões…. centenas de milhões de pessoas queem toda sua vida tiveram pensamento próprio; e de repente seus cérebros se põema toda velocidade. Começam a pensar, mas que base terão para fazê–lo? Ainda con-servam as antigas superstições, os ciúmes, os ódios, medos e apetites; a maior parte

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das suas energias mentais tende à laboriosa racionalização disso. Então alguém,como esse Terceiro Baal, chega oferecendo um calmante para as pessoas assustadase confusas. Dizem-lhes que está muito bem que se desfaçam do terrível peso do seupensamento e que se esqueçam de si mesmos em uma orgia emocional. Não durará,Peter, mas a transição é penosa.

– Sim…. hum…. Eu cheguei a um Q.I. de quinhentos ou coisa assim…. Seja comofor, isso significa que sei apreciar a importância que têm, depois de tudo, os peque-nos cérebros. Bonito pensamento.

Corinth riu com uma careta e apagou o resto do cigarro no cinzeiro.Helga recolheu seus papeis e colocou–os na gaveta.– Vamos?– Sim, já é quase meia–noite. Temo que Sheila esteja preocupada.Andaram pelo vestíbulo deserto, passaram pelo guarda e saíram para a rua. Um

poste de iluminação solitário lançava um charco de luz sobre o carro de Helga. Elapegou o volante e o automóvel deslizou silencioso por uma avenida.

– Eu gostaria…. – sua voz soava fracamente na escuridão – Eu gostaria de estarfora daqui. Nas montanhas, em qualquer parte.

Ele assentiu com um gesto, sentindo–se de repente acometido por sua própria ne-cessidade de céu aberto e da clara luz das estrelas.

A turba se lançou sobre eles tão rapidamente que não tiveram tempo de escapar.Há um momento atrás estavam dirigindo por uma rua deserta, entre muros cegos, eum instante depois parecia que o chão estava vomitando homens. Fluíam pelas rue-las laterais, quase em silêncio, somente alterado por alguns murmúrios e o arrastarquase apagado de milhares de pés. As poucas luzes da iluminação pública faziamseus olhos e dentes brilharem. Helga freou com um rangido quando a maré humanaavançou contra eles, cortando–lhes o caminho.

– Morram os cientistas!Um grito trêmulo, que se transformou em cântico grave, pairou durante um instan-

te como uma nuvem que se rasgasse. O rio humano se espalhou, velado nas som-bras, em torno do carro e Corinth ouviu a respiração quente e áspera junto aos seusouvidos:

– Quebremos seus ossos e queimemos suas moradias. Tomemos seu dinheiro, osfilhos do pecado, viremos o carro e abramos a porta para deixar que o Terceiro Baalentre por ela.

Uma muralha de fogo corria por trás dos edifícios, que ardiam em chamas. A luzdo incêndio era cor de sangue, como se alguém suspendesse uma cabeça gotejanteno alto de uma vara.

Devem ter quebrado a linhas das patrulhas – pensou Corinth, atordoado, – irrom-pendo nesta zona protegida e disposto a devastá–la antes dos reforços chegarem.

Um rosto sujo e barbudo, repugnante, assomou pela janela do lado do volante.– Uma mulher! Tem uma mulher aqui!Corinth tirou a pistola do bolso do paletó e fez fogo. No mesmo instante sentiu o

recuo da arma e do estampido, da picada dos grãos de pólvora em sua pele. O rostopermaneceu ali por um tempo que parecia interminável, uma massa confusa de san-gue e ossos despedaçados. Quando o corpo caiu para o lado, dobrado, a multidão ui-vou. O carro balançava com seus empurrões.

Corinth se dispôs a enfrentar a situação; lançou–se contra a porta, obstruída pelapressão dos corpos que a cercavam, e abriu–a. Pisando em algum corpo caído, dan-

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do pontapés de um e outro lado, conseguiu se sustentar por um instante. O brilho doincêndio iluminava seu rosto. Tinha tirado as lentes sem parar para pensar, por queera mais perigoso mostrar–se com elas, e o fogo, a multidão, os edifícios se transfor-maram em um borrão oscilante.

– Ouçam–me! – gritou – Ouça–me povo de Baal!Uma bala chocou–se ao seu lado e ele sentiu seu zumbido de vespa. Mas não ti -

nha tempo para ter medo.– Ouvi a palavra do Terceiro Baal!– Deixem que fale! – vociferou alguém naquele desumano rio de sombras, fluente,

murmurante – Ouçam sua palavra!– Raios e trovões, chuva de bombas – gritou Corinth. – Comei, bebei e se diverti,

porque o fim do mundo está próximo! Não ouvis como o planeta range sob vossospés? Os cientistas lançaram a grande bomba atômica. Vamos matá–los antes que omundo se rompa como um fruto apodrecido. Estais conosco?

Eles se detiveram, murmurando, arrastando os pés, duvidando daquilo que tinhamencontrado. Corinth continuou colérico, mal se dando conta do que dizia:

- Matai! Entrai à força, roubai as mulheres! Assalteis as lojas de bebidas! Fogo emais fogo! Que ardam os cientistas que lançaram a grande bomba atômica! Por aqui,irmãos! Sei onde estão escondidos! Segui–me!

– Vamos matá–los!A gritaria cresceu, enorme e obscena, entre o penhasco das paredes de Manhat-

tan. O fogo do incêndio se refletia oscilante sobre um fundo de escuridão. Era sur-preendente.

– Para lá! – Corinth dançava sobre o capô, apontoando para o Brooklin. – Estãoescondidos ali, povo de Baal! Eu vi com meus próprios olhos a grande bomba atômi-ca. Sei que o fim do mundo está próximo. O próprio Terceiro Baal me enviou paraguiá–los. Que seus raios me matem se não estou dizendo a verdade!

Helga tocou a buzina e um clamor enorme fez eco àquele ruído que parecia incitá–los ao frenesi. Alguém começou a fazer cabriolas, como uma cabra, e os demais oseguiram. A multidão, dando–se as mãos, dançava pela rua.

Corinth saltou para o chão, tremendo sem poder evitar.– Siga–os – balbuciou – Eles suspeitariam se não os seguíssemos.– Claro, Pete – Helga o ajudou a entrar e seguiu a multidão. Os faróis iluminavam

as costas. De vez em quanto ela tocava a buzina para apressá–los.Houve um torvelinho no céu. Corinth respirava ansiosamente, silvando entre os

dentes.– Vamos – murmurou.Helga fez um gesto de assentimento, virou de repente e saiu em disparada pela

avenida. Atrás deles a multidão se dispersava, enquanto os helicópteros da polícia jo-gava gás lacrimogêneo.

Continuaram em silêncio por um tempo; então Helga parou diante da casa de Co-rinth.

– Chegamos – disse.– Mas eu ia levá–la em casa – disse ele fracamente.– Você já fez isto. Além disso, impediu que essas pessoas causassem muitíssimo

dano, tanto ao bairro como a nós – um vago resplendor brilhou em seu sorriso, es-tremecido, em seus olhos havia lágrimas. – Foi admirável, Peter. Não achava que fos-se capaz disso.

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– Nem eu, tampouco – disse ele sombriamente.– Talvez tenha errado sua vocação. A pregação religiosa dá mais dinheiro, segundo

ouvi dizer. Bem…. – ficou imóvel por um instante e então acrescentou: – Bem, boanoite.

– Boa noite – respondeu ele.Ela se inclinou para diante com os lábios entreabertos, como se fosse dizer alguma

coisa. Depois fechou–os, balançando a cabeça. A batida de porta, ao arrancar, resso-ou no vazio.

Corinth ficou olhando para o carro que se afastava, até que o perdeu de vista. En-tão voltou–se lentamente e entrou em casa.

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8

Todas as provisões estavam se acabando; tanto o alimento para ele como para osanimais que restavam, e também sal para eles. Não havia energia elétrica e não de-sejava gastar o combustível da lâmpada a gasolina que tinha encontrado. Brock deci-diu ir à cidade.

– Fique aqui, Joe – disse. – Volto logo.O cachorro assentiu com um gesto incrivelmente humano. Estava entendendo o in-

glês muito depressa. Brock sempre costumava falar com ele e ultimamente tinha em-preendido um consciencioso programa de educação.

– Vigie tudo aqui, Joe – disse, olhando intranquilo para o limite do bosque.Encheu o tanque de uma velha camionete verde nos grandes tanques e seguiu

pela rua, ainda dentro da propriedade. Fazia uma manhã fresca e neblinosa. No arhavia cheiro de chuva e o horizonte estava nublado. Enquanto ia matraqueando pelocaminho vicinal, viu que a campina estava estranhamente deserta. Que teria aconte-cido ali durante dois meses desde a mudança? Talvez não houvesse ninguém na ci-dade.

Ao entrar na rodovia pavimentada, apertou o acelerador até o motor rugir. Não ti-nha desejo algum de visitar a humanidade normal e queria acabar logo com aquilo.O excesso de trabalho tinha–o mantido tranquilo durante o tempo que permanecerasozinho. E quando não tinha muito o que fazer ou estava cansado, lia e pensava, ex-plorando as possibilidades da sua mente, que por enquanto, achava, eram as de umgênio de primeira linha pelas normas anteriores à mudança. Tinha se adaptado fleu-maticamente a uma vida de anecoreta – outros destinos eram piores – e não ansiavaem se encontrar com as pessoas de novo. Alguns dias atrás tinha ido na casa do seuvizinho Martinson, mas ali não havia ninguém. A casa estava fechada e vazia. Isso ti-nha lhe provocado uma sensação tão aterradora que não tentou encontrar mais nin-guém.

Deixou para trás algumas casas dos arredores e depois, passando pelo viaduto,entrou na cidade. Não se via ninguém, mas as casas davam a sensação de estaremocupadas. As portas da maioria das lojas estavam trancadas e ele, achando que al-guém o olhava por trás das vitrines fechadas, estremeceu.

Estacionou junto ao supermercado Atlântico–Pacífico. Não parecia um mercado. Asmercadorias estavam ali, mas sem nenhum preço marcado, e o homem que estavapor trás do balcão não tinha a aparência de um vendedor. Estava simplesmente ali;sentado e pensando.

Brock foi até ele. Suas pisadas ressoavam estranhamente no chão.– Ei, desculpe – começou a dizer muito baixo.O homem levantou a vista. Em seus olhos surgiu um brilho ao reconhecê–lo e por

seu rosto passou um breve sorriso.– Ah! Olá, Archie – disse, falando com lentidão premeditada – Como vai?

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– Estou bem, obrigado – Brock olhou para os pés, incapaz de enfrentar aquelesolhos serenos. – Eu…. bem, vim comprar algumas coisas.

– Ah! – havia frieza na voz do homem. – Desculpe, mas isto já não funciona comdinheiro.

– Bem, pois eu…. – Brock se endireitou e, fazendo um esforço, levantou a vista. –Sim, acho que entendo. O Governo Nacional veio abaixo, não é isso?

– Não exatamente. Simplesmente deixou de contar para nada, isto é tudo – o ho-mem balançou a cabeça. – A princípio tivemos aqui nossas dificuldades, mas nos re-organizamos sobre uma base racional. Agora as coisas estão funcionando muito bem.Ainda precisamos de alguns produtos, que não podemos trazer de fora, mas pode-mos continuar indefinidamente, se for necessário, e é como estamos.

– Uma…. economia socialista?– Bem, Archie – disse o homem, – este não é precisamente o título apropriado, já

que o socialismo sempre esteve fundamentado na ideia da propriedade. Mas o quesignifica possuir uma coisa atualmente? Quer dizer somente que a pessoa pode fazercom ela o que quiser. Segundo esta definição, resta muito pouca propriedade totalem qualquer parte do mundo. É mais uma questão simbólica. Alguém diz a si mes-mo: “Esta é minha casa, minha terra.” E a pessoa tem a sensação de força, de segu-rança, pois o “meu” é um símbolo desse estado de ânimo, e a pessoa que o diz rea-ge diante deste símbolo. Mas agora…. bem, agora vimos o que havia por trás dessepequeno autoengano. Cumpria com suas finalidades antes, contribuindo para a pró-pria autoestima e para o equilíbrio emocional, mas já não era preciso. Não havia ra-zão alguma para estar sujeito a um pedaço de terra determinado, quando a funçãoeconômica pode ser feita mais eficazmente de outro modo. Então a maioria dos fa-zendeiros daqui se mudou para a cidade, ocupando as casas que foram abandonadaspelos que preferiram deixar este lugar completamente.

– E trabalham a terra em comum?– Dificilmente seria esta a forma de expressar. Alguns, bem-dotados para a mecâ-

nica, têm inventado máquinas que fazem a maior parte do trabalho que precisamos.É assombroso o que se pode fazer com um trator e com alguns pedaços de ferro–ve-lho se a pessoa tem cabeça suficiente para combiná–los devidamente. Por fim encon-tramos o nível que nos corresponde para o tempo vindouro. Aqueles que não gosta-ram se foram, em sua maior parte, e o resto está ocupado em desenvolver novas re-formas sociais que combinem com nossa nova personalidade. Temos aqui uma orga-nização boa e bem equilibrada.

– Mas o que você faz?– Sinto que não vou conseguir explicar – disse o homem, amavelmente.Brock desviou a vista outra vez.– Bem – disse por fim, com voz particularmente rouca, – estou completamente so-

zinho na propriedade de Rossman e estou com escassez de comida. Além disso, vouprecisar de ajuda na colheita e em outras coisas. Qual sua opinião sobre isso?

– Se deseja se associar conosco, estou certo de que se poderá encontrar um pla-no.

– Não, eu quero somente….– Eu lhe recomendo, mui encarecidamente, que venha conosco, Archie. Você preci-

sa do apoio da comunidade. Aqui já não estamos seguros. Havia um circo aqui pertoe os animais selvagens escaparam. Vários deles andam soltos por aí.

Brock sentiu um frio por dentro.

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– Isso deve ter sido…. emocionante – disse, bem devagar.– E foi – o homem sorriu levemente. – A princípio nós não sabíamos; tínhamos

muitas coisas com que nos preocuparmos e por isto não pensamos que os animaistambém estavam mudando. Um deles deve ter aberto sua jaula com as próprias fau-ces e soltou os outros para proteger sua fuga. Houve um tigre que ficou andando du-rante semanas pela cidade, levou um par de crianças e não conseguimos caçá–lo;um bom dia ele desapareceu. E que me diz dos elefantes e de….? Não, você não estáseguro sozinho, Archie – fez uma pausa. – E depois tem que contar com o trabalhopuramente físico. Seria melhor que ocupasse um cargo em nossa comunidade.

– Ao diabo com o cargo – disse Brock, com uma cólera repentina, fria e amarga. –Tudo que eu quero é um pouco de ajuda. Podem ficar com uma parte da colheitacomo pagamento. Vocês não teriam nenhuma dificuldade com essas máquinas queinventaram.

– Pode perguntar para os outros – disse o homem. – Realmente eu não sou o en-carregado disso. A decisão final depende do Conselho e dos cientistas. Mas temo quepara você não haja senão tudo ou nada, Archie. Não o perturbaremos se não quiserficar conosco, mas tampouco pode esperar que façamos uma caridade. Este é tam-bém outro símbolo fora de moda. Se quiser se amoldar à economia total, que demodo algum é tirânica, pois é mais libre que todas que o mundo já viu, nós achare-mos uma ocupação para você.

– Em resumo – disse Brock com dificuldade, – posso ser um animal domesticado efazer tudo que me mandarem, ou um animal selvagem e ser ignorado. Maldição….Eu me encarregarei disso e continuarei com isso – disse, girando sobre os calcanha-res.

Tremia enquanto voltava ao caminhão. O pior de tudo, pensou furioso, o pior detudo é que eles têm razão. Ele não poderia continuar suportando uma situação emque era mais ou menos um pária. Isso estava muito bem antigamente, quando eraum retardado mental, quando não sabia o suficiente para se dar conta do que signifi-cava. Mas agora sim, e a vida de empregado o destroçaria.

As engrenagens rangeram quando se pôs em marcha. Se arranjaria sem a ajudadeles, ora se podia. Se não chegasse a ser um mendigo meio domesticado nem umanimal doméstico, seria um animal selvagem.

Voltou dirigindo despreocupadamente a grande velocidade. No caminho viu umamáquina que havia em um campo de feno; um gigantesco e enigmático artefato debraços cintilantes fazia todo o trabalho com um só homem que, entediado, o guiava.Logo poderiam construir um robô piloto, assim que tivessem os materiais. Mas e daí?Ele ainda tinha um par de braços.

Mais adiante havia uma parte do bosque que chegava até a borda do caminho. Pa-receu-lhe ver brilhar alguma coisa ali. Uma grande forma cinza que se distanciavasossegadamente até se perder de vista, mas não estava certo daquilo.

Seu caráter tranquilo se reafirmou mais ao se aproximar da propriedade, quandocomeçou a fazer cálculos. Das vacas poderia obter leite, manteiga e talvez queijo. Aspoucas galinhas que tinha sido capaz de recapturar lhe proporcionariam ovos. Matan-do uma ovelha de vez em quando…. Mas por que não caçar aqueles porcos condena-dos? Teria carne para uma boa temporada; na propriedade havia um defumadouro.

Poderia colher feno, trigo e milho suficientes – Tom e Jerry teriam que fazer o tra-balho – para se manter durante o inverno. Se aperfeiçoasse um moinho de mão, po-dia moer e fazer uma farinha grossa, da qual cozeria seu próprio pão. Tinha muitas

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roupas, sapatos e ferramentas. O sal era seu maior problema; mas devia haver salpor aí, a uns cento e cinquenta quilômetros ou coisa assim. Trataria de averiguar efaria uma viagem até lá. Teria que economizar a gasolina e cortar uma boa quantida-de de lenha para o inverno. Poderia ir levando, de uma forma ou de outra.

A magnitude da empresa o aterrou. Um homem só! Um par de braços! Mas isto játinha sido feito anteriormente; a raça humana inteira tinha subido por aquele ásperocaminho. Embora reduzisse seu nível de vida e adotasse uma dieta não muito equili-brada, isso não o mataria.

E tinha um cérebro que, de acordo com as avaliações de antes da mudança, eraalgo extraordinário. Já tinha posto a mente para trabalhar: primeiro, idealizando umplano de operações para o próximo ano ou coisa assim e, segundo, inventando apa-relhos para tornar a vida mais cômoda. Sem dúvida poderia fazê–lo.

Encolheu os ombros se pisou no acelerador; com vontade de chegar em casa e co-meçar.

Quando entrou na pista da propriedade, o ruído era ensurdecedor. Ouviu grunhi-dos, berros, madeiras que se quebravam; a camionete balançou quando ele virou ovolante em pânico. “Os porcos!” pensou. Os porcos, vigilantes, tinham visto ele sair.

E ele tinha se esquecido do revólver.Soltou uma maldição, subiu para o curral urrando pelo caminho, deixando para

trás a casa, e entrou no curral. Estava uma ruína. Os porcos eram como pequenostanques brancos e pretos, resfolegando e grunhindo. A porta do celeiro tinha sidoaberta com violência e os porcos estavam no armazém de sacos de comestíveis, ras-gando–os e revolvendo a farinha. Alguns deles arrastavam sacos inteiros e os leva-vam para o bosque. Havia também um touro, que devia ter se tornado selvagem,que ao ver o homem bramiu e resfolegou, enquanto as vacas andavam mugindo porali. Elas tinham quebrado a cerca do pasto para irem com o touro. Duas ovelhasmortas, pisoteadas e desentranhadas jaziam no pátio; as outras deviam ter fugidoaterrorizadas. E Joe….

– Joe! – gritou Brock – Onde está você, garoto?Chovia. Uma neblina constante e molhada, que fazia ver o bosque confusamente,

e se misturava com o sangue derramado na terra. O velho varrão reluzia como ferropolido, por causa da umidade. Levantou a cabeça grunhindo quando o caminhãochegou.

Brock dirigiu diretamente para ele. Agora o veículo era sua única arma. O varrãopulou de lado e Brock se deteve diante do celeiro. Em seguida os porcos o rodearam,empurrando os lados e as rodas, grunhindo seu ódio. O touro baixou a cabeça e es-carvou o chão.

Joe latiu furiosamente do alto de uma incubadeira. Estava ensanguentado; tinhasido uma luta cruel, mas ele tinha trepado ali, não se sabia como, e tinha se calado.

Brock deu ré com o caminhão, movendo–se de um lado para outro, metendo–seentre a manada. Os porcos se dispersaram, mas ele não conseguiu velocidade sufici-ente no apertado espaço para empurrá–los com o veículo e eles não cederam. O tou-ro arremeteu.

Não tinha tempo para ficar assustado, mas Brock viu a morte. Fez o caminhão gi-rar, voltando–se de lado através do curral e o touro meteu a cabeça nele. Brock sen-tiu que uma mão gigantesca o lançava contra o para-brisas. As trevas se rasgaramdiante dos seus olhos. O touro estava cambaleante, mas o caminhão ficou inutiliza-do. Os porcos pareciam ter compreendido e se apinhavam triunfalmente rodeando o

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homem.Tateando, se agachou na cabine e levantou o assento. Ali havia uma chave-inglesa

de cabo longo, consoladoramente pesada.– Muito bem – murmurou, – venham me pegar.Um disparo explodiu como um trovão. O varrão começou a galopar em círculos,

demonstrando dor. Outra explosão fez com que o touro enfurecido desse a volta efosse para o bosque.

“Um elefante – gaguejou Brock. – E vem em minha ajuda….”A grande forma cinzenta avançou lentamente para os porcos. Estes giraram inquie-

tos, com olhares cheios e ódio e de terror. O varrão caiu por terra dando as últimasarfadas. O elefante curvou a tromba e começou a correr com uma graça singular. Osporcos fugiram.

Brock ficou imóvel por alguns instantes, agitado demais para se mover. Quandopor fim saiu, a chave-inglesa pendia frouxamente em sua mão. O elefante tinha idopara o palheiro e estava comendo tranquilamente. E duas pequenas silhuetas pelu-das sentavam–se de cócoras no chão na frente do homem.

Joe foi para seu amo, latindo fracamente e coxeando.– Calma, rapaz – murmurou Brock. Mantinha–se de pé sobre as pernas fracas,

olhando para a enrugada cara morena do chimpanzé que tinha o revólver.– Muito bem – disse por fim. A chuva fria e fina era refrescante em seu rosto sua-

do. – Muito bem, agora você é o patrão. O que quer?O chimpanzé ficou olhando para ele durante longo tempo. Era um macho. O outro

era uma fêmea e ele lembrou que os macacos dos trópicos não podiam resistir muitobem ao clima do Norte. Eles seriam do circo que o homem da loja tinha falado. Su-pôs que ele tinha roubado o revólver e se apoderado do elefante. Ou seria um acor-do? Agora….

O chimpanzé estremeceu. Depois, muito devagar, sempre observando o homem,soltou a arma e, indo até ele, lhe tirou o casaco.

– Você me entende? Perguntou Brock. Estava cansado demais para poder apreciarcomo aquela cena era fantástica. – Compreende o inglês?

Não houve resposta, salvo que o macaco continuava tirando sua roupa, não comforça, e sim com uma espécie de insistência. Depois de um momento, o macaco to-cou no casaco de Brock com sua mão de longos dedos e depois apontou para si mes-mo, em um gesto amistoso de companheiro.

– Bem – disse Brock em voz alta – Acho que estou entendendo. Tem medo e preci-sa de ajuda humana, mas não quer voltar a ficar sentado na jaula, não é isso?

Tampouco houve resposta, mas alguma coisa nos olhos selvagens assentiu.– Muito bem – disse Brock, – você chegou bem a tempo para me fazer um bom

serviço e não me matou quando poderia fazê–lo sem dificuldade – aspirou profunda-mente. – Deus sabe que eu precisava de alguém para me ajudar nesta propriedade.Você e o elefante fariam com que tudo mudasse. E muito bem, sem dúvida.

Tirou o casaco e deu ao chimpanzé. O macaco rangeu suavemente os dentes e sevestiu. Não lhe assentava muito bem e Brock teve que rir.

Depois endireitou suas costas dobradas.– Muito bem, magnífico. Agora todos nós seremos animais selvagens reunidos. De

acordo? Venha comigo para a casa e acharemos alguma coisa para comer.

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9

Vladimir Ivanovitch Pantushkin estava de pé em baixo das árvores, deixando que achuva pingasse do seu capacete e corresse pelo dorso do seu casaco, que havia tira-do de um coronel depois da última batalha, e na qual a água resvalava como sobreuma plumagem de pato. O fato dos seus pés estarem folgados dentro de umas botasvelhas, não tinha importância.

Seu olhar se movia pelo monte abaixo, mais além do limite da floresta, e penetra-do no vale, mas ali a chuva o interceptava. Não conseguia distinguir nada que se agi-tasse; nada, salvo o regular cair da chuva, e não conseguia ouvir outra coisa senãoseu som profundo. Mas o aparelho dizia que havia uma unidade do Exército Verme-lho nas proximidades.

Olhou para o aparelho que estava na mão do sacerdote. Suas agulhas pareciamborradas pela chuva que caía pelo vidro da esfera, mas podia vê–las dançar. Ele nãoo compreendia – o sacerdote o havia feito com um rádio que tinha pegado, – mas jáhavia avisado antes.

– Eu diria que estão a uns dez quilômetros daqui, Vladimir Ivanovitch – a barba dosacerdote se movia quando ele falava. Estava desgrenhada pela chuva e caía rigida-mente sobre suas roupas toscas. – Estão dando voltas ao nosso redor sem se aproxi-marem. Talvez Deus os esteja desorientando.

Pantushkin encolheu os ombros. Era materialista. Mas se o servidor de Deus esta-va disposto a ajudá–lo contra o governo soviético, estava muito contente em aceitarsua ajuda.

– Talvez eles tenham outros planos – replicou. – Creio que seria melhor consultarFedor Alesandrovitch.

– Não é bom para ele que o usemos tanto – disse o sacerdote. Está muito cansa-do.

– Estamos todos assim, meu amigo – as palavras de Pantushkin careciam de ex-pressividade. – Mas é uma operação chave. Se pudéssemos cortar para Kirovograd,isolaríamos a Ucrânia do resto do país e então os nacionalistas da Ucrânia poderiamse sublevar com esperança de êxito.

Assobiou suavemente algumas notas que tinham um amplo significado. A músicapodia ser uma linguagem. Toda a insurreição ao longo do império soviético dependiaem parte das linguagens secretas criadas do dia para a noite.

O Sensitivo saiu do gotejante matagal que ocultava as tropas de Pantushkin. Erapequeno para seus quatorze anos e em seus olhos havia algo inexpressivo. O sacer-dote notou o vermelho febril em suas bochechas e se persignou, murmurando umaoração pelo rapaz.

Era entristecedor utilizá–lo tanto. Mas se os homens sem Deus tinham que ser der-rotados, tinha que ser logo e os Sensitivos eram necessários. Eram uma forma decontato que não era preciso tocar, que nunca era interceptado, que não podia ser de-

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tectado, mediante o qual estavam unidos os homens sublevados desde Riga até Vla-divostok; os melhores deles eram espiões que nenhum exército já possuíra até ago-ra. Mas ainda havia muitos que estavam ao lado dos seus senhores por razão de leal-dade, de temor ou de interesse próprio, e estes possuíam a maior parte das armas.Por conseguinte, teve que ser inventado todo um novo conceito de guerra por partedos rebeldes.

Um povo pode detestar seu Governo, mas o suporta porque sabe que aqueles queprotestarem morrerão. Mas se todo o povo conseguir se unir para agir ao mesmotempo – ou muitos deles desobedeceram com uma espécia de calma aterradora, – oGoverno só pode fuzilar uns poucos. Desarraigados das suas mais profundas raízes, aterra e o povo, o Governo era vulnerável, e menos de um milhão de homens arma-dos seriam suficientes para destruí–lo.

– Há uma Estrela Vermelha – disse Pantushkin, apontando para a chuva – Pode medizer o que eles planejam, Fedor Alesandrovitch?

O rapaz se sentou na ladeira escorregadia e molhada e fechou os olhos. Pan-tushkin ficou observando–o com ar sombrio. Era bastante difícil. Ser o elo com dezmil outros Sensitivos através da metade do continente. Alcançar mentes que nãoagradassem faria com que se esforçasse até o limite. Mas tinha que fazer.

– Existe…. eles nos conhecem – a voz do rapaz parecia vir de muito longe. – Elestêm instrumentos…. Seu metal nos fareja. Eles…. são a morte. Mandam a morte! –abriu os olhos, contraiu as bochechas para emitir um som entrecortado e desmaiou.

O sacerdote ficou de joelhos e o levantou, lançando um olhar de censura para Pan-tushkin.

– Projéteis dirigidos! – o comandante girou sobre os calcanhares. – Então agoraeles têm detetores como os nossos. Fizemos bem em verificar, não sacerdote? Agoravamos sair daqui antes que os foguetes cheguem.

Deixou material bélico suficiente para enganar os instrumentos detetores e condu-ziu seus homens pela cordilheira. Enquanto o exército estivesse ocupado disparandofoguetes no seu campo, ele prepararia o ataque pela retaguarda. Com ou sem a aju-da do deus incompreensível do sacerdote, tinha quase certeza de que o ataque teriaêxito.

Felix Mandelbaum acabava de se instalar em sua poltrona quando o introdutor dis-se:

– Gantry.O tom de voz do secretário dizia que era importante. Gantry? Não conhecia nin-

guém que se chamasse assim. Suspirou, olhando pela janela. As sombras da madru-gada ainda se estendiam frias pelas ruas, mas ia ser um dia quente.

Havia um tanque como que agachado sobre seus pés ali embaixo, com os canhõespreparados para proteger a Prefeitura. O pior da violência parecia ter passado; o cul-to do Terceiro Baal estava se desintegrando depois da ignominiosa captura do profe-ta na semana anterior; os bandos criminosos estavam sendo mantidos na linha aoaumentar as milícias em tamanho e experiência; um tom de calma ia retornando àcidade. Mas não se sabia de nada sobre os que ainda vagavam pelos bairros da peri-feria e sem dúvida ia haver outros conflitos antes que tudo ficasse finalmente sobcontrole.

Mandelbaum estirou–se em sua poltrona, relaxando seus músculos tensos. Sentia–se cansado naqueles dias, apesar da aparência enérgica, dificilmente sustentada. Ha-

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via muito o que fazer e muito pouco tempo para dormir. Apertou o intercomunicador,o que queria dizer: “Pode entrar.”

Gantry era um homem alto e esquelético, com roupas boas que não lhe assenta-vam muito bem. Havia um acentuado sotaque em sua voz irritada.

– Me disseram que agora você é o ditador da cidade.– Não exatamente – respondeu Mandelbaum, sorrindo. – Sou simplesmente uma

espécie de sufocador geral de conflitos, por ordem do prefeito e do Conselho.– Sim, mas quando não há nada mais que conflitos, o que os sufoca se torna o Se-

nhor.Havia uma certa truculência na rapidez da réplica. Mandelbaum não tentou negar

a acusação: era bastante correta. O prefeito tinha trabalho suficiente com o manejoda maquinaria administrativa; Mandelbaum era o homem flexível, o coordenador demilhares de elementos em conflito, ou criados de uma polícia básica, e o ConselhoMunicipal, recentemente criado, raras vezes deixava de votar no sentido que ele su-geria.

– Sente–se – convidou–o. – Quais suas dificuldades? – Sua mente veloz já sabia aresposta, mas ganhava tempo para fazer com que o outro a formulasse para ele.

– Represento os fazendeiros cultivadores de hortaliças de oito condados. Manda-ram-me aqui para perguntar o que sua gente pretende ao roubar-nos.

– Do que você está falando? – perguntou Mandelbaum inocentemente.– Você sabe tão bem quanto eu. Quando não queremos receber dólares por nossa

mercadoria, tentam nos dar um papel da cidade. E quando tampouco não queremosaceitar isso, dizem que se apoderarão das nossas colheitas.

– Eu sei – disse Mandelbaum. – Alguns dos rapazes têm pouco tato. Sinto muito.Gantry enrugou o cenho.– Está disposto a impedir que nos ameacem com revólveres? Espero que seja as-

sim, pois nós também temos.– Também têm tanques e aviões? – perguntou Mandelbaum. Esperou um pouco

para que o significado do que queria dizer fosse captado. Depois prosseguiu rapida-mente: – Olhe, senhor Gantry, resta na cidade seis ou sete milhões de pessoas. Senão conseguirmos assegurar–lhes um fornecimento regular de alimentos, eles morre-rão de fome. Não podem permanecer impassíveis e deixar que sete milhões de ho-mens, mulheres e crianças inocentes morram de fome enquanto vocês têm mais ali-mentos do que podem comer. São seres humanos dignos. Não devem fazer isso.

– Não sei – respondeu Gantry sombriamente. – Depois do que a multidão fezquando saiu fugindo da cidade no mês passado….

– Creia–me, o Governo da cidade fez o que pôde para contê–los. Fracassamos emparte, pois o pânico era grande demais, mas impedimos que a cidade inteira mar-chasse sobre vocês – Mandelbaum fez uma ponte com os dedos e disse sensatamen-te: – Agora, bem, se vocês fossem realmente monstros, deixariam que os que fica-ram aqui morressem de fome. Mas eles não tolerariam isso e cedo ou trade se lança-riam como um enxame sobre vocês e então tudo viria abaixo.

– Sem dúvida, sem dúvida – Gantry entrelaçou suas longas mãos vermelhas. Semsaber como se encontrava na defensiva. – Não é que queiramos criar conflitos nocampo. É que simplesmente, bem, que nós cultivamos verduras para vocês, mas vo-cês não nos pagam. Simplesmente as tomam. Seus papeis não significam nada. Queposso comprar com isso?

– Agora nada – disse Mandelbaum com ar candoroso, – mas creia–me, não é nos-

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sa culpa. As pessoas precisam de trabalho. Ainda não conseguimos organizar as coi-sas suficientemente. Uma vez que tenhamos feito isso, esses papeis significarão rou-pas e maquinaria para vocês. Mas se nos deixarem morrer de fome…. qual será en-tão seu mercado?

– Tudo isso foi dito na reunião da associação – replicou Gantry. – A questão é: quegarantia temos de que vocês manterão sua palavra até o fim do trato?

– Olhe, senhor Gantry, nós desejamos cooperar. Desejamos tanto, que estamosdispostos a oferecer um assento no Conselho Municipal a um representante de vo-cês. Como poderemos enganá–los então?

– Humm…. – os olhos de Gantry se contraíram com uma expressão de astúcia. –Quantos posto no Conselho, em resumo?

Regatearam por algum tempo e Gantry partiu com uma oferta do município dequatro postos de conselheiros, que teriam faculdades especiais de veto nas questõesconcernentes à política rural. Mandelbaum estava certo de que os fazendeiros aceita-riam; parecia algo assim como uma manifesta vitória de sua parte.

Sorriu consigo mesmo. Como definir a vitória? O Poder de veto não podia significarnada, posto que a política rural era perfeitamente honrada de todos os modos. A ci-dade, a totalidade do Estado e da nação ganhariam reunificando uma zona tão am-pla. Talvez as dívidas acumulados dos fazendeiros nunca fossem pagas – a sociedadeestava mudando tão rapidamente, que talvez já não houvesse cidades em algunsanos, – mas isso, por mais lamentável que fosse, teria pouca importância. O mais ur-gente agora era sobreviver.

– North e Morgan – disse o introdutor.Mandelbaum se preparou. Aquilo ia ser duro. O chefe dos trabalhadores do porto e

o teórico político louco tinham suas próprias ambições e um considerável número deseguidores; um número grande demais para se submetido pela força. Levantou–secortesmente para cumprimentá–los.

North era um homem fornido, de rosto duro e grande papada gordurosa. Morganera calvo, fisicamente desdenhável; mas seus olhos brilhavam como brasas sob aalta fronte. Olharam um para o outro ao entrarem e depois olharam acusadoramentepara Mandelbaum. North formulou a mútua pergunta rosnando:

– De quem foi a ideia de entrarmos ao mesmo tempo? Eu queria falar com vocêem particular.

– Desculpe – respondeu Mendelson sem sinceridade. – Deve ter havido uma con-fusão. Bem, querem se sentar por alguns minutos? Talvez possados resolver isto jun-tos de alguma forma.

– Não pode haver “de alguma forma” nisto – saltou Morgan. – Eu e meus seguido-res já estamos fartos de ver que este Governo ignora os evidentes princípios dadina–psicologia. Eu lhe aviso: a menos que reconheça de imediato com linhas com-preensivas….

North empurrou–o para o lado e se voltou para Mandelbaum.– Ouça, há cerca de uma centena de barcos inativos no porto de Nova Iorque, en-

quanto que na costa Leste e na Europa estão pedindo transportes aos gritos. Meusrapazes já estão fartos de não serem ouvidos.

– Não tivemos muitas notícias da Europa ultimamente – disse Mandelbaum emtom de desculpa. – E as coisas ainda estão enroladas demais para podermos tentarsequer o tráfego costeiro. O que iríamos transportar? Onde encontraríamos combus-tível para esses barcos? Sinto muito, mas…. – mentalmente, prosseguiu dizendo: “a

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verdadeira dificuldade é que agora os maleantes do seu bando não têm um porto deque viver.”

– Se tudo provém de uma cega teimosia – declarou Morgan, – como eu demons-trei de modo concludente, uma integração social segundo os princípios psicológicosque eu descobri, eliminaria….

“E sua dificuldade está em querer mandar e ainda há muitas pessoas procurandouma panaceia, uma resposta final – pensou Mandelbaum friamente. – Você tem umaaparência intelectual, então eles acreditam que é um intelectual; certas classes aindaprecisam de um homem em um cavalo-branco, mas o preferem com um livro de tex-to debaixo do braço. Você e Lenin.”

– Desculpem–me – disse em voz alta. – Que propõe você que se faça, senhor Nor-th?

– Nova Iorque começou sendo um porto e o será novamente dentro de poucotempo. Desta vez queremos que os trabalhadores que o fazem funcionar obtenhamuma justa participação no Governo.

“Em outras palavras: você também deseja ser um ditador”, disse para si mesmo. Eem voz alta, premeditadamente:

– Pode haver alguma coisa certa no que vocês dizem. Mas não podemos fazer tudode uma vez, entendam. Parece-me entretanto, que como vocês, senhores, opinamigualmente em muitos ramos paralelos, por que não se reúnem e apresentam umafrente unida? Então me seria muito mais fácil apresentar suas propostas ao Conse-lho.

As pálidas bochechas de Morgan ficaram vermelhas.– Com uma coleção de máquinas humanas suadas….Os grandes punhos de North se cerraram.– Cuidado com a linguagem, amiguinho.– Mas vamos ver – disse Mandelbaum. – Os dois desejam um governo melhor inte-

grado, não é isso? A mim me parece que….“Hummm” – O mesmo pensamento brilhou nos olhos dos dois. Tinha sido espanto-

samente fácil planejar aquilo. – “Juntos talvez pudéssemos…. e depois eu me livrariadele….”

Houve alguma discussão, mas terminou com North e Morgan saindo juntos.Mandelbaum quase podia ler o desprezo por ele. “Nunca ouviu falar de dividir e

conquistar”? Sentiu uma leve sensação de tristeza. Até agora, as pessoas realmentenão tinham mudado muito. O sonhador com olhar de louco simplesmente construíacastelos nas nuvens; o recketeer fornido não tinha nem palavras, nem ideias, nemconceitos que dissimulassem sua própria linguagem de cobiça. Mas aquilo não dura-ria. Dentro de alguns meses não haveria nem Norths nem Morgans. A mudança nelese em toda a humanidade destruiria sua mesquinhez. Mas enquanto isso, ainda eramanimais perigosos e tinha que saber como tratá–los.

Estendeu a mão para o telefone e chamou pela linha que funcionava só para ele.– Olá, Bowers, como vai? Olhe, estiveram aqui o dina–psicólogo e o chefe dos

racketeers juntos. Provavelmente vão planejar uma espécie de Frente Popular, com opropósito de conseguirem postos no Conselho e depois se apoderaram de tudo pelaforça…. uma revolução palatina, um coup d’etat, ou como queira chamar…. Sim, po-nha nossos agentes de sobreaviso em ambos os lados. Precisarei de relatórios com-pletos. Depois usaremos esses agentes para fazer com que briguem um contra o ou-tro…. Sim, é a aliança mais instável que já conheci. Ao primeiro empurrão, enterra-

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rão o machado um na cabeça do outro. Depois, quando a milícia tiver limpado o querestar da guerra de seitas, podemos iniciar nossa campanha a favor do senso co-mum…. Será um tempo de dificuldades, mas poderemos superá–lo.

Ao soltar o auricular, foi invadido por um antigo sentimento de culpa. Seu rosto secontraiu por alguns instantes. Acabara de condenar à morte várias dúzias de pesso-as, a maior parte das quais eram simplesmente pessoas desconcertadas e mal dirigi-das. Mas não se podia evitar. Tinha que salvar a vida e a liberdade de vários milhõesde seres humanos; e o preço não era exorbitante.

– Incomodado se sinta o traseiro que suporta o chefe – murmurou, olhando para alista das visitas marcadas de antemão.

Ainda faltava uma hora para a chegada do representante de Albany. Ia ser umadas entrevistas mais difíceis. A cidade estava infringindo cada vez mais as leis do Es-tado e da nação – tinha que fazê–lo – e o governador estava ofendido. Queria quetodo o Estado voltasse à sua autoridade. Não era um desejo irrazoável, mas não ha-via chegado a hora e, quando chegasse, as antigas formas de governo já não seriammais importantes que as diferenças entre Homousian e Homoiousian1. Mas ia serpreciso uma boa quantidade de argumentos para convencer disso o de Albany.

Mas enquanto isso tinha uma hora livre. Durante uma fração de segundo, hesitouentre elaborar um novo sistema de racionalização ou planejar como estender a lei ea ordem na periferia de Jersey. Depois abandonou esses pensamentos quando che-gou o último relatório sobre a situação das reservas de água.

1Homousian – cristãos que afirmam que Deus Pai e Deus Filho são da mesma substância; Homoi-ousian – cristãos que afirmam que Deus Pai e Deus Filho são da mesma substância, mas não idênti-cos. (N. de Espinhudo)

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Havia uma penumbra no laboratório que fazia destacar a luz pulsante do coraçãoda máquina mais brilhante, fantasticamente azul e inquieta, entre as bobinas e as es-feras impassíveis dos contadores. O rosto de Grunewald estava cadavérico quando seinclinou sobre o aparelho.

– Bem, parece que é assim.Deu uma pancadinha no comutador principal e o zumbido da eletricidade parou e

a luz se extinguiu. Por um momento ele ficou pensativo, olhando para os ratos anes-tesiados dentro das bobinas. Fios finos como cabelo corriam dos seus corpos peladospara os contadores, diante dos quais estavam Johansson e Lewis.

Este último assentiu com um gesto.– Novo salto na média neural – tocou as esferas do osciloscópio com um cuidado

especial. – E precisamente segundo a curva aproximada que previmos. Geraram per-feitamente um campo inibidor.

Teria que fazer outros testes e estudos detalhados, mas isso podia deixar para osauxiliares. O problema principal estava resolvido.

Grunewald introduziu suas mãos gordas, mas estranhamente delicadas, e tirou orato, começando a extrair as sondas.

– Pobre animalzinho – murmurou. – Me pergunto se lhe teremos feito um favor.Corinth, que estava sentado em um tamborete, encurvado e taciturno, levantou os

olhos com vivacidade.– Para que pode servir–lhe a inteligência? – prosseguiu Grunewald. – Isso só fará

com que perceba o horror da sua própria situação. Com efeito, de que serve a algumde nós?

– Estaria querendo voltar atrás? – perguntou Corinth.– Sim – a quadrada e rubicunda cara de Grunewald mostrava uma repentina des-

confiança – Sim, eu queria. Não é bom pensar tanto ou muito claramente.– Talvez você tenha conseguido alguma coisa ai – sussurrou Corinth. – A nova civi-

lização, não meramente sua tecnologia, mas todo seu sistema de valorização, todosseus sonhos e esperanças, terão que ser construídos de novo, e isso levará gerações.Agora somos selvagens, com toda a nudez da existência selvagem. A ciência não étudo na vida.

– Não – disse Lewis, – mas eu acho que os cientistas, assim como os artistas dequalquer gênero…. em geral devem manter sua sensatez através da mudança, poistêm uma finalidade a cumprir na vida; algo que está fora deles e para o que podemter tudo quanto têm – seu rosto roliço brilhou com um sorriso felino. – Além disto,Pete, como sensualista inveterado, estou muito contente com as novas possibilida-des. A arte e a música com as quais costumávamos nos deleitar, desapareceram.Sim, mas nem por isto deixamos de apreciar o bom vinho e a boa cozinha. Com efei-to, minha percepção se elevou e há matizes que antes eu não suspeitava.

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Tinha sido uma conversa estranha, uma daquelas conversas de poucas palavras,muitos gestos e expressões faciais adicionadas a uma discussão simultânea de pro-blemas técnicos.

– Bem – comentou Johansson, – temos nosso campo inibidor. Agora corresponde avocês os neurologistas estudarem-no em detalhe e simplesmente descobrirem o quepodemos esperar que aconteça com a vida na Terra.

– Humm.. – replicou Lewis – Não estou trabalhando nisso agora, salvo como umabelhudo e não como um jogador. Bronzini e MacAndrews podem atendê–lo. Eu voume encerrar no departamento psicológico que, não só é mais interessante, como temuma importância prática mais imediata. Eu me ocuparei do aspecto neurológico–ci-bernético do seu trabalho.

– Nossa antiga psicologia é quase inútil – disse Corinth. – Mudamos demais parapodermos compreender nossas próprias motivações. Por que estou investindo a mai-or parte do meu tempo aqui, quando deveria estar em casa ajudando Sheila a en-frentar sua adaptação? Simplesmente não posso me impedir; tenho que explorar onovo campo, mas…. Para começar de novo sobre uma base racional, teremos quesaber alguma coisa da dinâmica do homem…. E no que a mim se refere, tenho quedeixar também esta perspectiva bajuladora. Agora que conseguimos realmente gerarum campo, Rossman quer que eu trabalhe no projeto da nave espacial enquanto elepossa mantê–lo organizado.

– Navegação espacial…. viajar mais depressa que a luz, não?– Isso mesmo. O fundamento é o emprego de um aspecto da mecânica ondulató-

ria, insuspeitado antes da mudança. Geraremos uma onda psi que…. não importa. Eulhe explicarei quando tiverem conseguido aprender análise tensorial e álgebra de ma-trizes. Estou colaborando com outros aqui a fim de traçar os planos do aparelho, en-quanto esperamos os homens e o material para começar a construí–lo. Estaremosem condições de ir a qualquer lugar da galáxia assim que tivermos a nave.

As duas extremidades se uniam.– Fugindo de nós mesmos – disse Grunewald. – Fugindo para o próprio espaço

para escapar.Por um instante os quatro homens ficaram silenciosos, pensativos.Corinth se levantou.– Vou para casa – disse, rouco.Sua mente era um labirinto de cadeias de pensamentos que se entrelaçavam,

quando descia as escadas. Pensava sobretudo em Sheila, mas algo lhe falava baixi-nho de Helga, e havia um caudal de diagramas e equações, uma visão de uma friaimensidão, através da qual a Terra ia girando como um grão de poeira. Uma parte desi, singularmente dissociada, estava estudando friamente aquela rede de pensamen-tos para poder aprender como funcionava e para se habituar a manejar suas própriaspotencialidades.

Linguagem: Os que trabalhavam no instituto, e que se conheciam mutuamente,estavam criando involuntariamente uma nova série de símbolos de comunicação.Algo sutil e potente, no qual cada gesto tinha um significado e onde a rápida mentedo que escutava, sem esforço consciente, preenchia os hiatos e captava seu sentidoem diversos planos. Era eficiente demais para manifestar abertamente seu ser ínti-mo. O homem do futuro preferirá ir nu, tanto de alma como de corpo, e Corinth nãoestava seguro de que gostava dessa perspectiva.

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Mas ali estava Sheila e ele próprio. Sua mútua compreensão fazia com que suaconversação fosse ininteligível para os alheios. E havia um milhar, um milhão de gru-pos, por todo o mundo, que criavam seus próprios dialetos sobre a base das expe-riências passadas e que não tinham sido compartilhadas por toda a humanidade.Uma linguagem apta para todo o mundo tinha que ser inventada. Telepatia? Já nãopodia haver dúvida alguma de que existia, em algumas pessoas, pelo menos. A per-cepção extrassensorial tinha que ser pesquisada quando as coisas se apaziguassem.Havia tanto o que fazer e a vida era tão terrivelmente curta!

Corinth estremeceu. Supunha–se que o temor à extinção pessoal fosse uma reaçãode adolescente; mas, em certo sentido, todos os homens eram, uma vez mais, ado-lescentes em um novo plano; não, eram mais como crianças, bebês recém-nascidos.Bom, sem dúvida os biólogos, nos anos vindouros, encontrariam um meio de ampliara duração da vida, prolongando–a, talvez, por séculos. Mas, afinal era isto desejável?

Saiu para a rua e localizou o automóvel que Rossman havia lhe emprestado. “Pelomenos – pensou, com um gesto enfastiado ao entrar no carro – o problema de esta-cionamento foi resolvido. Já não haverá trânsito como havia antes”.

Na realidade, tampouco havia em Nova Iorque. As grandes cidades não tinham,verdadeiramente, justiça econômica. Vinha de uma pequena cidade e sempre haviaamado as montanhas, os bosques, o mar. Mas havia alguma coisa em torno daquelacidade barulhenta, frenética, superpovoada, dura, desumana, magnífica, cuja ausên-cia deixaria um vazio no mundo futuro.

Era uma noite quente, a camisa pregava no corpo e o ar parecia denso. Sobre suacabeça, entre os edifícios em trevas e os anúncios de neon apagados, os relâmpagosde calor iluminavam palidamente e toda a terra anelava pela chuva. Seus faróis sega-vam, como um gadanho, as trevas pegajosas. Havia mais carros que na semana an-terior. A cidade estava a ponto de ser domada. A guerra de clãs entre os portuários eos dina–psicólogos, liquidada há duas semanas, parecia ter sido a última chama daviolência. As rações ainda eram escassas, mas as pessoas tinham retomado seus tra-balhos novamente e todos viveriam.

Corinth parou no espaço para estacionamento que havia atrás dos apartamentos efoi dando ré para a parte dianteira. As autoridades que racionavam a energia tinham,ultimamente, permitido a este edifício retomar o serviço de elevadores, o que erauma mercê. Tinha-lhe irritado muitíssimo subir quinze andares de escadas nos diasem que a eletricidade estava escassa.

“Espero….” Estava pensando em Sheila, mas deixou o pensamento inconcluso. Elatinha emagrecido aos poucos, a pobre criatura; não dormia bem e algumas vezesdespertava com um grito sufocado na garganta e procurando–o pelo tato. Corinthdesejava que seu trabalho não o distanciasse dela. Necessitava desesperadamenteda sua companhia. Talvez pudesse encontrar um trabalho para ela a fim de preen-cher seu tempo.

Quando chegou ao seu andar, o vestíbulo estava quase às escuras, salvo uma vagaluminosidade noturna, mas sob a porta do seu apartamento fluía a claridade. Dandouma olhada no relógio, viu que era mais tarde do que a hora em que Sheila habitual-mente se deitava. Quis abrir a porta, mas estava fechada a chave, e então chamou.Pareceu-lhe ouvir lá dentro um grito sufocado e chamou mais forte. Ela abriu a portacom tal violência que ele quase caiu dentro.

– Pete, Pete, Pete!Estreitava–se contra ele e tremia. Ao abraçá–la, notou como suas delicadas coste-

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las estavam próximas da pele. A luz crua da lâmpada enchia o apartamento e nos ca-belos dela ficava estranhamente sem brilho. Quando Sheila levantou o rosto, ele viuque estava úmido.

– O que está acontecendo? – perguntou. Falava alto, à antiga maneira, e sua vozlogo se tornou trêmula.

– Os nervos – fez ele entrar e fechou a porta. Com a camisola e o albornoz, pare-cia pateticamente jovem, mas em seus olhos havia algo antigo.

– A noite está quente para usar essa roupa.– Tenho frio – seus lábios tremeram.Os dele se contraíram em uma dura linha e, sentando–se em uma poltrona, a

atraiu para seu regaço. Ela lhe lançou os braços, estreitando–o contra si, e ele sentiucomo o corpo dela tremia.

– Isso não está nada bem – disse ele. – Este é o pior ataque que você teve.– Não sei o que eu teria feito se você tivesse demorado mais a chegar – disse ela,

sem inflexão alguma na voz.Começaram então a falar na nova linguagem de palavras, gestos, sons, silêncios e

recordações compartilhados que lhes era peculiar.– Andei pensando demais – disse–lhe ela. – Todos nós pensamos demais estes

dias.(“Ajuda–me, meu querido! Estou mergulhando nas sombras e só você pode me

salvar”.)– Você tem que se habituar a isso – respondeu ele, surdamente.(“Como posso ajudá–la? Minhas mãos se estendem para você e se cerram no va-

zio”.)– Você tem força – exclamou ela. – Dê–me.(“Pesadelos, toda vez que tento dormir”,)Tédio, desespero.– Eu não sou forte – disse ele. – Simplesmente me mantenho em marcha como

posso. Assim deve fazer você também.– Aperte–me mais, Pete, (“imagem paterna”), aperte–me mais – murmurou ela.Unindo–se a ele, como se fosse um escudo contra as trevas exteriores e a escuri-

dão interior das coisas que se alçavam nela.– Não me deixes, Sheila – disse ele.(“Amada esposa, amante, amiga.”)– Sheila, você tem que se sustentar. Tudo isso é somente um crescente poder de

pensamento…. de visualização, para manejar os dados e os sonhos que você mesmacriou. Nada mais.

– Mas estou mudando! – o horror e a morte estavam sobre ela agora. Se debatiacontra ele, ansiosamente. – Onde foram parar nossos mundos? Onde estão nossasesperanças e nossos planos juntos?

– Não podemos fazer com que voltem – replicou ele. Vazio, irreversibilidade. – Te-mos que supri–los com o que temos agora.

– Eu sei, eu sei…. e não consigo! – em suas faces brilhavam as lágrimas. – Ah,Pete, estou chorando agora mais por você (“Talvez eu nem sequer possa continuarlhe amando”) do que por mim

Ele tentou permanecer sereno.– Distanciar–se demais da realidade é a loucura. Se você ficasse louca….. impossi-

bilidade de pensar.

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– Eu sei, eu sei – dizia ela. – Em sei muito bem, Pete. Abrace–me forte.– Mas isto não impedirá que você saiba….Disse isto, perguntando–se se os engenheiros poderiam ser capazes de descobrir o

lugar onde as forças do espírito humano se quebram. Sentia–se a ponto de se ren-der.

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Em uma noite morna no final de setembro, Mandelbaum achava–se sentado juntoà janela com Rossman, trocavam ambos algumas quantas palavras em voz baixa. Olugar, sem iluminação, estava pleno de noite. Lá, muito abaixo, Manhattan reluziacom pontos luminosos; não com os brilhos frenéticos e os resplendores dos primeirosdias, e sim com a luz de milhões de lares. Sobre suas cabeças, uma tênue luminosi-dade azulada através do firmamento, piscante e brilhante até o limite da visibilidade.O Empire State Building estava rematado com uma esfera ardente, como se um pe-queno sol tivesse vindo pousar ali, no ar errante havia um leve comichão por causado ozônio. Os dois homens estavam sentados tranquilamente, fumando o tabaco quenovamente tinha se tornado acessível. O cachimbo de Mandelbaum e o cigarro deRossman brilhavam como dois olhos avermelhados na penumbra da sala. Estavamesperando a morte.

– Esposa – disse Rossman, com um tom de amável reproche. O que podia ser tra-duzido por: “Não vejo por que não quer dizer isso à sua esposa e ficar ao lado delaesta noite. Pode ser a última noite das suas vidas.”

– Trabalho, cidade, tempo – e a contração de homens de épocas imemoriais e otom de voz anelante: (“Nós dois temos que fazer nosso trabalho. Ela no centro desocorro e eu aqui no centro, eixo da defesa. Não dissemos à cidade, tampouco, nemvocê, nem eu, nem os poucos que sabem.”) É melhor não fazê–lo, não acha? (“Nãoteríamos conseguido evacuá–los, nem teria lugar algum para onde trasladá–los. E ofato de tentar equivaleria a revelar um segredo ao inimigo; um convite para quemandasse seus foguetes imediatamente. Poderemos salvar a cidade? No momentoninguém pode fazer nada, senão esperar e ver se as defesas funcionam.”) (“Não sepreocupe, minha amada. Ela estará preocupada comigo, com os meninos e com osnetos. Não, aconteça o que acontecer. Desejaria que pudéssemos estar juntos agora,Sarah, eu e toda a família….”)

Mandelbaum apertou o cachimbo com o polegar calejado.(“Os de Brookhaven acham que o campo deterá a explosão e a radiação – suben-

tendia Rossman. – Nós os mantivemos trabalhando secretamente durante o mês pas-sado, ou mais, prevendo o ataque. As cidades que achamos que serão atacadas ago-ra estão protegidas…. esperamos. Mas é problemático. Desejaria não ter que fazê–lodeste modo”.)

– Mas, de que outro modo? (“Sabemos por nossos espiões e nossas deduções:Primeiro, que os soviets aperfeiçoaram seus foguetes intercontinentais; segundo, queestão desesperados. Revolução interna e armas e ajuda aportada clandestinamentepara os insurgentes da América. Farão uma tentativa, de vida ou de morte, de var-rer–nos do mapa e achamos que o ataque está planejado para esta noite. Mas seeles fracassarem ficarão indefesos. O desenvolvimento e a construção desses fogue-tes exigiu todas as reservas que lhes restava.”) Deixemos que se esgotem lutando

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contra nós, enquanto os rebeldes ocupam seu próprio país. A ditadura termina as-sim.

– Mas o que a substituirá?– Não sei. Quando os foguetes vierem, me parece que este será o último golpe do

homem-animal. Em certa ocasião, você não chamou o século vinte de A Era dosMaus Modos? Éramos estúpidos antes…. incrivelmente estúpidos. Mas agora tudoisso desapareceu.

– Sem deixar…. nada.Rossman acendeu outro cigarro e apagou o primeiro. O breve e avermelhado bri-

lho fez destacar em alto-relevo seu rosto de delicada ossatura contra a escuridão.– Ah, sim! – prosseguiu – o futuro não vai se parecer em nada com o passado.

Presumivelmente, ainda haverá sociedade ou sociedades. Mas não serão do mesmotipo dessas que conhecemos antes. Talvez serão puramente abstratas, coisas men-tais, intercambiáveis e interatuantes no plano simbólico. Não obstante, haverá socie-dades melhor ou pior desenvolvidas; e acho que as piores serão as que prosperarem.

– Hum! – Mandelbaum aspirou seu cachimbo com força – À parte o fato de que te-mos que começar desde o princípio, e que assim estamos destinados a cometer er-ros, por que há de ser assim, necessariamente? Temo que você seja pessimista portemperamento.

– Sem dúvida. Nasci em uma época tranquila que vi morrer entre sangue e loucu-ra. Mas ainda antes de mil novecentos e quatorze podia–se ver que o mundo se des-moronava. Isto faria de qualquer um pessimista. Creio que é verdade o que digo.Porque o homem, com efeito, repeliu para trás a mais extrema selvageria. Mas não,não é isso, tampouco; o selvagem tem seu próprio sistema de vida. O homem voltouao plano animal.

Com um amplo gesto, Mandelbaum assinalou a arrogância gigantesca da cidade.– Isto é animal?– As formigas e os castores são bons engenheiros – (“Ou eram. Pergunto-me o

que os castores estarão fazendo agora”.) – Os artefatos materiais não contam muito,na realidade. Só são possíveis pelo fundo social de conhecimento, tradição, desejo;são sintomas, não causas. E fomos despojados de todo nosso fundo. Ah!, não esque-cemos de nada, não. Mas já não têm validade para nós, salvo como instrumentopara as atividades puramente animais de sobrevivência e comodidade. Pense em suaprópria vida. Que utilidade vê para ela agora? Que representam seus esforços dopassado? Ridicularias! Pode ler, agora, algo da grande literatura com agrado? As ar-tes representam alguma coisa para você? A civilização do passado, com suas ciên-cias, artes, crenças e significados é tão inadequada para nós, que seria o mesmo quenão existissem. Já não temos civilização alguma. Não temos metas, sonhos ou traba-lho criador. Não temos nada!

– Ah! A respeito disso, não sei – disse Mandelbaum, em tom de brincadeira. – Eutenho bastante trabalho a fazer para seguir adiante, pelo menos durante vários anos.Temos que conseguir com que as coisas se ponham em marcha sobre bases de am-plitude mundial em economia, política, atenção médica, controle da população e con-servação. É uma tarefa que causa vertigens.

– Mas, e depois? – insistiu Rossman. – Que faremos a seguir? Que fará a geraçãoimediata e todas as gerações por vir?

– Encontrarão alguma coisa para fazer.– Gostaria de saber. O propósito de edificar um mundo futuro estável, embora seja

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difícil e exija uma razão hercúlea, é possível. Nós nos damos conta disto: será so-mente uma questão de anos. Mas e depois? No melhor dos casos, o homem pode sesentar comodamente e embotar–se em uma pretensão anódina. Um gênero de vidahorrivelmente vazio.

– A ciência….– Ah, sim!, os cientistas terão campo de ação durante algum tempo. Mas a maioria

dos físicos com quem conversei ultimamente suspeitam que o alcance da ciência temlimites. Acham que a diversidade das leis naturais que podem ser descobertas, e dosfenômenos, há de ser finita, podendo ser resumida em uma teoria unificada…. e quenão estamos distante dessa teoria, atualmente. Não é uma dessas proposições quepodem ser demonstradas com certeza, mas parece provável.

– E em caso algum poderemos todos ser cientistas.Mandelbaum olhou para as trevas. “Como a noite está tranquila”, pensou. Arran-

cando da sua mente a recordação visual de Sarah e das crianças, disse:– E a respeito das artes? Temos que desenvolver toda uma nova pintura e escultu-

ra. Nova música, literatura e arquitetura…. e formas que não tenham sido imagina-das antes!

– Se conseguirmos o tipo justo de sociedade (“A arte, através de toda a história,teve uma terrível tendência a decair ou se petrificar em meras imitações do passado.Parece que vai exigir mais esforço ressuscitá–la. E tampouco, meu amigo, podemostodos ser artistas.”)

– Não? (“Me pergunto se cada homem não pode ser artista, cientista, filósofo,ou….”)

– Mas serão necessários dirigentes e estímulos e um símbolo mundial. (“Este é ovazio fundamental que há atualmente em nós: não encontramos um símbolo. Não te-mos mitos nem sonhos. “O homem é a medida de todas as coisas”…. bem. Masquando a medida é maior que todas as outras coisas, para que serve?”)

– Ainda somos bem pouca coisa – Mandelbaum fez um gesto para a janela e parao céu azulado resplandescente. (“Há todo um mundo lá fora nos esperando.”)

– Creio que você tem o começo de uma resposta – disse Rossman lentamente. (“Aterra se tornou pequena demais, mas o espaço astronômico…. pode aceitar o desafiode alojar o sonho que necessitamos? Não sei. Tudo quanto sei é que será melhor queencontremos este sonho.”)

Houve um leve zumbido no aparelho de telecomunicação situado junto a Mandel-baum. Ele o pegou e ligou o comutador. Teve uma repentina sensação de cansaço.Devia estar tenso, a ponto de saltar de excitação, mas só se sentia fadigado e vazio.

O aparelho tilintou uns quantos sinais: “Robot estação espacial informa lançamen-to foguetes dos Urais. Quatro destinados a Nova Iorque dentro de dez minutos.

– Dez minutos – Rossman silvava. – Devem ter impulsão atômica.– Sem dúvida – Mandelbaum discou o número do Centro Protetor do Empire State

Building. – Preparem seus mecanismos, rapazes – disse. – Chegarão dentro de dezminutos.

– Quantos?– Quatro. Eles calculam que nós vamos deter pelo menos três, então devem ser

uns animais poderosos. Com cabeças de guerra hidrogênio–lithium, me parece.– Quatro, hein? Muito bem, chefe. Passe bem.– Passe bem? – Mandelbaum sorriu, com um sorriso torto. A cidade lhe havia dito

que o projeto era uma experiência de iluminação. Mas quando o azul se fortaleceu

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até converter–se em um teto de luz e as sirenes começaram a ulular, todo mundodeve ter adivinhado a verdade.

Mandelbaum pensou nos maridos abraçando suas esposas e filhos e se perguntouque outra coisa se poderia fazer. “Rezar? Não era provável. Se houvesse uma religiãono futuro, não seria o animismo que havia bastado para os anos cegos. Exaltação nabatalha? Não, esta era outra alegria que estava descartada. Pânico selvagem? Talvezum pouco disto.”

“Rossman tinha visto, pelo menos, uma boa parte da verdade – pensou Mandel-baum. – Não havia nada que o homem pudesse fazer nesta hora do juízo final, senãogritar de terror ou lançar–se sobre aqueles que amava, para tentar protegê–los comsua carne miserável. Ninguém podia crer honradamente que estava morrendo por al-guma coisa digna. Se alçava o punho para o céu, não era por cólera contra o mal;era por simples reflexo.” “Vazio…. Sim – pensou. – Creio que necessitaremos de no-vos símbolos.”

Rossman se levantou, caminhando pela escuridão até um pequeno armário, doqual tirou uma garrafa.

– É um borgonha de 40, dos que estive guardando – disse. – (“Quer beber comi-go?”)

– Encantado – respondeu Mandelbaum.Não gostava de vinho, mas tinha que ajudar seu amigo. Rossman não estava as-

sustado. Era velho e estava farto de viver, mas havia algo que anelava perdidamente:desaparecer como um cavalheiro; bem, este era um símbolo da sua classe.

Rossman serviu o vinho em copos de cristal e estendeu um a Mandelbaum comuma cortesia solene. Bateram os copos e beberam. Rossman sentou–se de novo, pa-latando a bebida.

– Bebemos borgonha no dia da minha boda – disse.– Ah, bom, não precisa chorar por isto – replicou Mandelbaum. – A tela protetora

resistirá. É do mesmo gênero da força que mantém o núcleo atômico coeso…. não énada estranho no universo.

– Estou brindando, homem-animal – disse Rossman. – (“Tem razão; estes são seusúltimos suspiros. Mas era, em muitos aspectos, uma nobre criatura.”)

– Sim – disse Mandelbaum. (Inventou as armas mais engenhosas.– Esses foguetes…. (“Representam alguma coisa. São coisas belas, como sabe,

limpas e brilhantes, construídas com extrema honradez. Exigiram muitos séculos depaciência para chegarmos ao ponto em que poderiam ser forjados. A circunstânciade transportarem a morte para nós é incidental.”)

– (“Não estou de acordo.”) Mandelbaum riu entredentes, um minúsculo e tristesom em meio à grande tranquilidade circundante.

Havia um relógio com mostrador luminoso no aposento. Seus ponteiros haviam gi-rado, traçando um círculo preguiçosamente, uma vez, duas vezes, três vezes. O Em-pire State era uma coluna de escuridão destacando–se contra o arco azul escuro docéu. Mandelbaum e Rossman bebiam, perdidos em seus próprios pensamentos.

Houve um resplendor como o de um relâmpago por todo o firmamento. O céu fi-cou de repente como uma tigela incandescente. Mandelbaum cobriu os olhos, des-lumbrado, deixando que o copo caísse no chão e se quebrasse. Sentiu a radiação emsua pele como um raio de sol, piscou uma e outra vez. A cidade rugia como um tro-vão.

– … dois, três, quatro.

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Depois houve outro silêncio, no qual os ecos estremeceram e ressoaram entre asaltas paredes. O vento suspirava pelas ruas vazias e os grandes edifícios voltaram,tremendo, a ficar em repouso.

– Suficientemente bem – disse Mandelbaum. Não experimentava emoção algumaem particular. A tela protetora havia funcionado, a cidade vivia. Muito bem, podia se-guir com sua tarefa. Telefonou para a prefeitura.

– Ouça, tudo bem por aí? Olhe, teremos que fazer algo, dominar todo o pânicoe….

Com o rabo do olho viu Rossman sentado tranquilamente, com o copo sem termi-nar, no braço da poltrona.

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12

Corinth, suspirando, afastou de si o trabalho. Ao entardecer, os rumores da cidadechegavam apagados através da janela que tinha ficado aberta ao frescor de outubro.Estremeceu levemente; tirou um cigarro, tateando, e começou a fumar.

“Naves espaciais – pensou com tédio. – Lá, em Brookhaven, estavam construindoa primeira da frota.”

O que faltava a ele para terminar o projeto era o cálculo das resistências nuclearessob a ação do campo impulsor, uma tarefa de uma certa complexidade, mas não detal importância que os trabalhadores não pudessem seguir adiante na construção,até que fosse terminada. Estivera precisamente ali naquele dia, vendo o casco tomarforma, e sua mente profissional havia encontrado um frio gozo na encantadora per-feição. Cada uma das partes da nave, o motor, a armadura, as portas, os orifícios devisão e os controles eram uma obra-prima de engenharia, de precisão, tal como nãotinha sido vista na Terra até agora. Era grato fazer parte daquele trabalho. Só que….Praguejou em voz baixa e, esmagando o cigarro no cinzeiro repleto, pôs–se de pé.Aquela ia ser uma das suas noites ruins; precisava de Helga.

O Instituto ressoava fragorosamente quando descia pelos vestíbulos que lhes eramtão conhecidos. Agora estava-se trabalhando com um horário de vinte e quatro horase um milhar de mentes liberadas se dilatavam para um horizonte que de repente ex-plodiria mais além de toda a imaginação. Invejava os técnicos jovens. Ele, aos trintae três, se sentia velho.

Helga tinha voltado a dirigir aqui; em sua nova base de trabalho; era tarefa para odia todo de um adulto normal e ela tinha a experiência e o desejo de ser útil. Elepensou que ela trabalhava demais e se deu conta, com uma muda reprovação, deque aquilo era, em grande medida, por sua culpa. Ela nunca ia embora antes delesair, porque às vezes precisava falar com ela. Esta ia ser uma daquelas ocasiões.Chamou. A voz suave do anunciador disse “Entre” e não deixou de notar a ansiedadedo tom com que ela disse isso, nem o repentino vislumbre em seus olhos quando eleentrou.

– Quer vir comer comigo? – convidou–a.Ela franziu as sobrancelhas e ele explicou apressadamente:– Sheila está com a senhora Mandelbaum esta noite. Ela…. Sarah, você é bondosa

com minha mulher; conseguiu um tipo de sensatez próprio de uma mulher simplesque um homem não pode ter. Estou livre….

– Sem dúvida – Helga começou a arrumar seus papeis e a guardá–los bem empi-lhados. Seu escritório estava sempre limpo e era impessoal. Uma máquina poderiater sido seu ocupante. – Conhece algum lugar?

– Você sabe que saio pouco nesses tempos.– Bem, tentaremos em Rogers; é um novo clube noturno para homens novos –

seu sorriso era um pouco amargo. – Pelo menos têm alimentos decorosos.

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Corinth entrou no pequeno banheiro anexo, tentando arrumar suas roupas e os ca-belos descuidados. Quando saiu, Helga estava preparada. Olhou–a por um instante,percebendo cada detalhe com uma perfeição fulgurante, inconcebível nos anos pas-sados. Não podiam esconder nada um do outro; ela, com sua característica honradeze ele com um pesado e agradecido cansaço tinham tentado se separar. Mas ele preci-sava de alguém que o compreendesse e que fosse mais forte, alguém com que con-versar e de onde tirar forças. Pensou que ela era a única a dar e ele o único a rece-ber, mas deixá–la não era uma reação que pudesse se permitir.

Ela se apoiou em seu braço e saíram para a rua. O ar fino e cortante em seuspulmões, com aroma de outono e de mar. Umas quantas folhas mortas giravam pelacalçada diante deles; já tinha chegado a geada.

– Vamos andando – disse ela, sabendo as preferências dele. – Não está longe.Ele assentiu com um gesto e caminharam pelas ruas quase vazias. A noite serguia-

se gigantesca sobre as luzes da rua e as colinas de Manhattan eram montanhosa-mente negras em torno deles. Somente passava algum raro transeunte ou carro. Co-rinth pensou que a mudança em Nova Iorque era um resumo de tudo quanto tinhaocorrido no mundo.

– Como anda o trabalho de Sheila? – perguntou Helga.Corinth tinha conseguido uma ocupação para sua esposa no centro de socorro,

com a esperança de que isso melhorasse seu estado moral. Encolheu os ombros semresponder. Era melhor levantar o rosto ao vento que finalmente fluía entre as pare-des escuras. Ela se encerrou em seu silêncio. Quando ele sentisse necessidade decomunicação, ela estaria ali.

Um modesto brilho de neon anunciava o café Rogers. Ao entrar pela porta, encon-traram uma meia luz azul, fria e brilhante, como se o ar contivesse uma luz transmu-tada. “Bom truque – pensou Corinth; – me pergunto como fizeram isso.” E em uminstante havia deduzido os novos princípios da fluorescência, nos quais tinha que sebasear. Talvez um engenheiro houvesse optado de repente por se tornar chefe de ca-baré.

Havia mesas espalhadas e um tanto mais separadas do que havia sido o costumenos tempos antigos. Corinth notou, descuidadosamente, que estavam dispostas emuma espiral, o qual, na média, reduzia o número de passos dos garçons desde o res-taurante até a cozinha, de volta. Mas havia uma pequena máquina que ia rodandoaté as mesas sobre suaves rodas de borracha e apresentava uma tabela e uma cane-ta para que os clientes escrevessem seus pedidos.

No menu figuravam poucos pratos de carne – ainda havia escassez de alimentos; –mas Helga insistiu em que a sopa suprema era deliciosa e Corinth pediu para os dois.Havia um aperitivo também, claro. Bateram com os copos por cima da branca toalhade mesa. Os olhos dela pousavam gravemente nos olhos dele, esperando.

– Was hael.– Drinc hael – replicou ela, e acrescentou, pensativa: - Temo que nossos descen-

dentes não compreendam em absoluto os seus antepassados. Toda a magnífica he-rança bárbara será vociferação animal para eles. Não é assim? Quando penso no fu-turo, às vezes sinto frio.

– Você também? – murmurou ele, sabendo que ela saía da sua reserva somenteporque isso tornava mais fácil para ele desafogar.

Apareceu uma pequena orquestra. Corinth reconheceu nela três músicos que ti-nam sido famosos antes da mudança. Levavam instrumentos antigos: os de corda,

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alguns de sopro, em madeira, e um trompete. Mas havia também alguns instrumen-tos novos. Bem, até que as associações filarmônicas voltassem a se formar, se istochegasse a acontecer, era indubitável que os artistas sérios estariam contentes empoder tocar em um restaurante como aquele, onde teriam um público mais entendi-do que o habitual do passado.

Os olhos dele percorreram a clientela. Eram pessoas comuns: trabalhadores demãos calejadas ao lado de empregados de costas carregadas e professores calvos. Anova nudez havia suprimido as distinções de antanho, pois todo mundo se arranjavacom o que tinha. Havia uma cômoda falta de rigor no vestir: camisas com colarinhoaberto, calças curtas, jerseys e, de vez em quando, algum experimento extravagan-te. As aparências físicas externas contavam menos a cada dia. Não havia regente. Osmúsicos pareciam tocar extemporaneamente, flutuando suas melodias daqui para láem torno de uma estrutura tácita e sutil. Era uma música aparentemente fria, gelo everdor dos mares nórdicos, um ritmo complexo e urgente, fundamentando o suspirardas cordas. Corinth se ensimesmou durante um momento, tentando analisar. De vezem quando uma corda costumava ferir alguma nota obscura emocional dentro dele eseus dedos apertavam com força o copo de vinho. Algumas pessoas dançavam aosom daquela música, compondo originais passos de dança. Supôs ele que nos tem-pos antigos se chamaria a isso uma confusão, mas remoto demais e intelectual paraqualificá–lo assim.

“Outra experiência”, pensou. Toda a humanidade estava experimentando, lançan-do–se a abrir caminhos em um mundo que, subitamente, tinha ficado sem horizon-tes. Voltou–se para Helga, para surpreender os olhos dela pousados nos seus. Elesentia o calor do sangue em seu rosto e tentou falar de coisas que não fossem peri-gosas. Mas havia compreensão demais entre eles. Haviam trabalhado e observadojuntos e agora existia uma linguagem que lhes era própria. Cada olhar, cada gestosignificava algo; o significado flutuava, indo e vindo, entrelaçando–se e rompendo–se, para se encontrar de novo. Era como falar consigo mesmo.

– Trabalho? – perguntou ele em voz alta, e isto queria dizer: (Como vai seu traba-lho nestes últimos dias?)

– Muito bem – respondeu ela em tom simples. (“Levamos a efeito algo heroico,acho. A tarefa mais extraordinariamente valiosa de toda a história, talvez. Mas, nãosei por que, não o acho grande coisa….”)

– Estou encantado em estar com você está noite – disse ele. (“Preciso de você.Preciso de alguém nas horas sombrias.”)

– (“Estive sempre esperando” – diziam os olhos dela. – “Um tema perigoso. Evite-mo–lo.”)

Ele perguntou com vivacidade:– O que acha dessa música? Parece como se estivessem a caminho de uma forma

apropriada para…. o homem moderno.– Talvez sim – respondeu ela, encolhendo os ombros – Mas me satisfaz mais as

dos antigos maestros. Eram mais humanas.– Eu me pergunto, Helga, se ainda somos humanos.– Sim – replicou ela. – Permaneceremos sendo sempre nós mesmos. Saberemos

sempre o que é o amor, o ódio, o medo, a audácia e o sofrimento.– Mas, serão estas sensações do mesmo gênero? – meditou ele – Duvido.– Pode ser que tenha razão – disse ela. – Está ficando muito difícil acreditar no

que quero acreditar. É isso.

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Ele assentiu com um gesto e ela sorriu um pouco. (“Sim, nós dois sabemos, não émesmo? Este e todos os mundos mais.”)

Ele suspirou, cerrando os punhos por um momento.– Algumas vezes desejo…. Não (“É a Sheila quem eu amo.”)– (“Tarde demais, não é isso, Pete? – diziam os olhos dela. – Tarde demais para os

dois.”)– Dança? – convidou ele. (“Vamos esquecer.”)– Claro. (“Ah!, com muito prazer, com muito prazer!”)Se levantaram e foram para a pista. E sentiu a fortaleza dela quando colocou o

braço em torno da sua cintura; e era como se ele absorvesse essa força. “Imagemmaterna?”, – brincou mentalmente. Pouco importava. Agora a música estava lhe pe-netrando mais em cheio; sentia sua batida, curiosamente, no sangue. A cabeça deHelga ficara quase ao mesmo nível da sua, mas o rosto dela ficava oculto para ele.Não era um bom dançarino e deixava que ela o levasse, mas o prazer do movimentofisicamente rítmico era mais acentuado para ele agora que antes da mudança. Porum instante desejou ser um selvagem e expressar seus sentimentos dançando diantedos deuses. Mas não, era tarde demais para ele. Agora era o filho da civilização; ti-nha nascido tarde demais. Mas o que fazer então, quando se vê que sua mulher estáficando louca? (“Ah, amor, podemos, você e eu, conspirar contra o Destino?”) Quecoisa tão infantil era aquela! E, entretanto, tinha gostado uma vez.

A música terminou e eles voltaram para a mesa. Tinha chegado a entrada, trazidapela máquina. Corinth aproximou sua cadeira da de Helga, depois se sentou e come-çou a comer pensativamente. Quando levantou a cabeça, ela olhava para ele denovo.

– Sheila? – perguntou. (“Não estava bem esses dias, não é mesmo?”)– Não. (“Obrigada por ter perguntado”)Corinth fez uma careta. (“O trabalho dela a ajuda a preencher o tempo, mas não

lhe faz muito bem. Fica pensativa, começou a ter visões à noite, seus sonhos….”)– (“Ah, meu queridíssimo, tão atormentado!”)– Mas, por quê? (“Você e eu, a maior parte das pessoas, estamos nos adaptando

agora, já não estamos nervosos; eu sempre achei que ela era mais equilibrada que amédia.”)

– A mente subconsciente dela…. (“Corre enlouquecida e não pode controlar suaconsciência; a preocupação pelos sintomas só faz com que as coisas piorem….”). Ela,simplesmente, não foi feita para este poder mental, não consegue lidar com isso.

Seus olhos se encontraram:– (“Alguma coisa perdida, da antiga inocência que todos entesouramos antanho

nos foi arrancada; e ficamos nus diante da nossa própria solidão.”)Helga levantou a cabeça:– (“Temos que olhar isso cara a cara, Seja como for, temos que seguir adiante.”)

Mas que solidão!– (“Estou começando a depender demais de você. Nat e Félix estão absortos em

seus trabalhos. Já não restam forças para Sheila; esteve lutando consigo mesma portempo demais. Você ficou sozinho e isto não é bom para você.”)

– (“Não me importa.”) É tudo quanto tenho agora, quando já não posso me escon-der de mim mesmo.

Suas mãos se entrelaçaram sobre a mesa. Depois, lentamente, Helga retirou a suae balançou a cabeça.

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– Meu Deus! – os punhos de Corinth se cerraram.– (“Se pelo menos pudéssemos saber mais sobre nós. Se tivéssemos uma psiquia-

tria eficaz!”)– (“Talvez logo a tenhamos. Está sendo estudado.”) – E, carinhosamente: – E

como anda seu próprio trabalho?– Bastante bem, acho. (“Teremos as estrelas ao alcance das nossas mãos antes da

primavera. Mas, para que? De que nos servem as estrelas?”)Corinth ficou olhando para o copo.– Estou um pouco bêbado. Falo demais.– Não importa, querido.Ele olhou para ela.– Por que você não se casa, Helga? Procure alguém para você. Não pode me tirar

do meu inferno particular. – ela fez um gesto de negação. – Será melhor que me dei-xe fora da sua vida – sussurrou.

– Por que não deixa Sheila fora da sua? – perguntou ela.A máquina servidora veio retirar silenciosamente, retirando a entrada usada e colo-

cando diante deles o prato principal. Corinth pensou vagamente que deveria estarsem apatite. Não se supunha, tradicionalmente, que o sofrimento traz a inapetência?Mas a comida cheirava bem. Comer…. bem; era uma compensação, de qualquer for-ma, como beber e sonhar acordado, trabalhar e qualquer outra coisa que se queiraacrescentar.

– (“Tem que suportar – diziam os olhos de Helga. – Aconteça o que acontecer, temque suportar, você e sua sensatez, porque esta é sua herança de humanidade.”)

Depois de um instante falou, pronunciando em voz alta três palavras sucintas queencerravam um significado esmagador:

– Pete, você gostaria? (“de partir em uma nave estelar?”)– O que?Ele olhou–a tão aturdido, que ela teve que sorrir. Mas no mesmo instante falou de

novo, séria e impessoalmente:– Foi planejada para dois homens. (“Sobretudo, dirigida por um robô, como sabe.

Nat Lewis me convenceu a reservar um beliche para ele, como biólogo. O problemada vida em outros lugares do universo….”)

A voz dele tremeu um pouco:– Não sabia que você pudesse controlar quem iria.– Oficialmente não. (“Mas na prática, como é sobretudo um projeto do Instituto,

posso fazer com que recaia sobre qualquer pessoa qualificada. Nat queria que eufosse com ele…. – trocaram um breve sorriso. – Você poderia fazê–lo pior, eu poderiafazê–lo melhor.”) Mas, naturalmente, precisa-se de um físico. (Você sabe tanto sobreo projeto e fez por ele mais que ninguém.”)

– Mas…. – ele balançou a cabeça. – Eu queria ir também…. (“Não, não há uma pa-lavra suficientemente poderosa para isso. Trocaria minhas possibilidades de imortali-dade por uma viagem como esta. Quando eu era pequeno costumava me deitar decostas nas noites de verão e olhar para a lua crescente, e para Marte, como um olhovermelho no céu, e sonhar.”) Mas existe Sheila. Em outra ocasião, Helga.

– Não será uma viagem muito longa – disse ela. (“Algumas semanas de exploraçãoentre as estrelas mais próximas, acho, para testar o impulso e um certo número deteorias astronômicas. Tampouco acha que haja algum risco…. Eu deixaria você ir senão achasse isso?”) “O certo é que gosto de contemplar o firmamento todas as noi-

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tes, sinto o frio estelar e junto as minhas mãos.” (“É uma oportunidade que creio quevocê deveria aproveitar, para sua própria tranquilidade de espírito. Agora você é umaalma extraviada, Pete. Precisa encontrar algo que esteja acima dos seus própriosproblemas, acima de todo esse nosso mundo mesquinho.”) – ela sorriu. – Talvez pre-cise encontrar Deus.

– Mas eu já lhe disse que Sheila….– Transcorrerão vários meses antes que a nave parta. (“Podem acontecer muitas

coisas neste tempo. Também estive em contato com as últimas pesquisas psiquiátri-cas e existe um plano prometedor de tratamento.”) – estendeu a mão sobre a mesapara tocar no braço dele. – Pense nisto, Pete.

– Pensarei – disse ele negligentemente.Uma parte de si mesmo se dava conta de que ela estava lhe oferecendo aquela

tremenda perspectiva como uma diversão imediata; como algo que rompesse o cír-culo das suas preocupações e tristezas. Mas não importava. De qualquer forma, faziaseu efeito. Quando saíram de novo para a rua, olhou para o céu, e vendo alguns sóisbrilhando através dos seus halos, sentiu dentro de si um impulso de excitação.

(“As estrelas” Oh céus, as estrelas!”)

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13

A neve chegou cedo aquele ano. Uma manhã, ao sair de casa, Brock viu que tudoestava branco. Permaneceu por um momento olhando para a extensão dos campos,os montes, as pradarias e os caminhos cobertos, a claridade de aço da aurora do ho-rizonte. Era como se nunca tivesse visto o inverno até então, as árvores nuas se des-tacando negras contra o céu tranquilo, sem vento; os tetos carregados de neve e asjanelas congeladas, um corvo solitário pousado, escuro e desolado, em um frio postetelefônico.

“Nunca tinha visto isso, realmente” – pensou.A nevada tinha amornado o ar, mas o hálito ainda saia como um vapor do seu na-

riz e sentiu em seu rosto a picada do frio. Bateu palmas, com um estrondo aterrador,em meio à quietude e, inflando as bochechas, disse em voz alta:

– Bem, Joe, parece que nos preparamos para a próxima metade do ano. A últimaterça–feira de novembro com neve e não estranharia que tivéssemos uma Páscoacom neve também.

O cão levantou os olhos para ele, compreendendo uma parte daquilo, mas com es-cassos meios de réplica. Depois o instinto o dominou ele e saiu brincando e ladrando,despertando a fazenda com seus latidos.

Uma pequena e rechonchuda figura, tão envolta em roupas que só a proporçãodos braços e pernas indicava que não era um ser humano, saiu da casa, tremendo, efoi rapidamente para o lado do homem.

– Frio – disse, castanhando os dentes. – Frio, frio, frio.– Temo que tenha esfriado, Mehitabel – disse Brock, e colocou a mão na cabeça

coberta de pele da chimpanzé.Continuava temendo que os monos não conseguissem suportar o inverno. Tinha

tentado fazer por eles tudo quanto podia; lhes fez roupas e lhes atribuiu a maior par-te do trabalho dentro da casa ou no curral, onde a temperatura era temperada; masainda assim havia perigo para eles, porque seus pulmões eram frágeis. Desejava ar-dentemente que sobrevivessem. Apesar da sua inconstância e preguiça naturais, ti-nham trabalhado heroicamente com ele; só não pudera prepará–los para o inverno.Mas, além disso, eram seus amigos; alguém com quem podia falar, uma vez que umalinguagem estropiada tinha começado a surgir entre eles. Não tinham muitas coisasa dizer e a mente saltitante deles não conseguia se deter em tema algum, maspreenchiam sua solidão. Bastava se sentar e ver suas acrobacias no ginásio que lheshavia preparado, para rir. E o riso, nesses tempos, tinha se tornado uma coisa rada.Era curioso que Mehitabel tivesse se aficionado mais às tarefas do curral, enquantoque seu companheiro cuidava da cozinha e dos afazeres domésticos. Isso não lhe im-portava, porque eram auxiliares robustos e inteligentes, fizessem o que fizessem.

Caminhou trabalhosamente pelo curral, deixando com suas botas uma mancha navirginal brancura, e abriu a porta do celeiro. Uma onda de calor animal chegou a ele

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ao penetrar na escuridão; e o cheiro forte era violento. Mehitabel vinha buscar o fenoe o milho para o gado: quinze vacas, dois cavalos e a larga forma de Jumbo, o ele-fante, enquanto que Brock se dedicava a ordenhar. O que restara do gado parecia terchegado a uma aprazível aceitação da nova ordem. Brock se inquietou. Os animaisconfiavam nele, que parecia a eles como uma espécie de deus caseiro; mas naqueledia teria que violar esta crença. Não podia demorar mais; isso faria com que pareces-se difícil.

A porta se abriu rangendo outra vez e WuhWuh entrou andando pesadamente,procurou um banquinho de ordenhar e se uniu a Brock. Não disse nada, e seu traba-lho prosseguiu mecanicamente. Isso era normal. Brock supunha que WuhWuh ia serincapaz de falar, salvo mediante os inarticulados balbuceios e grunhidos aos quaisdevia seu nome. O imbecil tinha chegado um certo dia, fazia algumas poucas sema-nas, andrajoso, sujo e faminto. Devia ter escapado de algum manicômio; era peque-no, nodoso, de costas encurvadas e idade incerta. Sua cabeça de lado era feia de sever e em seus olhos havia variedade. A inteligência de WuhWuh havia crescido, evi-dentemente, como a de todos, com a mudança, mas isto não alterava a circunstânciade ser um deficiente físico e mental. Não tinha sido bem recebido. A maior parte dasgrandes tarefas da colheita já tinham sido feitas e havia bastantes preocupações comas reservas alimentícias para o inverno, para acrescentar uma boca a mais.

– Eu o matarei, chefe – tinha dito Jimmy, estendendo a mão para a faca.– Não – disse Brock. – Não devemos ser tão cruéis.– Eu o farei rápido e facilmente – observara Jimmy, rindo entredentes e testando o

fio da lâmina no polegar estendido; ele tinha uma encantadora simplicidade própriada selva.

– Não, ainda não – respondera Brock, sorrindo com ar fatigado. Estava semprecansado e sempre havia algo a fazer.

“Somos ovelhas extraviadas e parece que fui designado como cabeça do rebanho.Todos nós temos que viver em um mundo que não nos quer.”

Um momento depois, acrescentara:– Também precisamos cortar muita lenha.WuhWuh tinha se adaptado tolerantemente bem, era bastante inofensivo, uma vez

que Jimmy, provavelmente com a ajuda de um pau, o fez perder alguns hábitos inde-sejáveis. E aquele assunto conseguiu fazer com que Brock se desse conta da forçarenovada que devia ter muitos como eles, lutando por viver, já que a civilização sehavia feito grande demais para poder se preocupar com eles. Finalmente, os retarda-dos mentais, segundo supunha, haviam se reunido de alguma forma e tinham esta-belecido uma comunidade e…..

Bem, por que não admitir? Estava sozinho. Algumas vezes a sensação da sua soli-dão era tão grande que quase o levava ao suicídio. Não havia ninguém da sua es-pécie com que pudesse se encontrar em todo aquele mundo invernal e não trabalha-va para outra coisa que não fosse por sua própria e desnecessária sobrevivência.Precisava de alguém dos seus.

Terminou de ordenhar colocou os animais para fora, para que fizessem exercício. Aágua do tanque tinha se congelado por cima, mas Jumbo rompeu a delgada crostacom a tromba e todos se apertaram para beber. Mais tarde, o elefante teria que secolocado na tarefa de pegar mais água na bomba, em caso de urgência, e transpor-tá–la para o tanque. Jumbo agora estava bastante peludo. Nunca, até então, Brocktinha se dado conta do muito que pode crescer o pelo de um elefante, quando nem o

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roçar ao andar pela selva nem o maçarico do dono do proprietário humano o tira-vam.

Foi ele mesmo ao palheiro mais além do redil. Tivera que construir uma paliçadaem torno para evitar que as reses entrassem através da cerca e se atracassem; masagora eles respeitavam a cerca. O anseio de um deus…. Se perguntou que tipo deestranhos pensamentos tabu estariam se passando dentro daqueles cérebros estrei-tos. Antes da mudança, as ovelhas tinham sido animais com personalidades própriase ele conhecia cada uma das quarenta tão bem como poderia conhecer qualquer hu-mano. A fanfarrona e inteligente Georgiana ia empurrando a tímida Psiquê em suapressa, enquanto que a velha e gorda Maria Antonieta se mantinha ruminando placi-damente. A Garota dançava para ela mesma uma dança exuberante sobre a neve….e lá estava Napoleão, o velho carneiro, de chifres retorcidos, magnificamente real,muito consciente da sua supremacia para se mostrar arrogante. Como ia poder ma-tar algum deles?

Mas era inevitável. Ele, Joe e WuhWuh não podiam viver de feno e nem sequer dafarinha grosseiramente moída e das maçãs e dos legumes que havia no sótão. Jimmye Mehitabel costumavam também tomar um pouco de caldo; as peles e o sebo, atéos próprios ossos, podia valer a pena ser guardados.

– Mas a qual tocaria?Não gostava muito de Georgiana, pois era de boa casta para poder matá–la e pre-

cisava cruzar seu sangue para o futuro gado. Joe, a Aarota, tão alegre; Maria, que seaproximava passando o focinho em sua mão; a coquete Margy, o tímido Jerry e a va-lorosa Eleanor? Qual desses amigos iam comer?

“Vamos, cala–te – disse a si mesmo. – Já decidiste faz tempo.”Assobiou para Joe e abriu a porta da cerca. As ovelhas o olharam com curiosidade

quando iam em grupo, de onde tinham feito sua refeição principal para o telheiroonde se abrigavam.

– Traz aqui a Psiqué, Joe – disse.O cão partiu logo a seguir, saltando os montes de neve como uma chama acobrea-

da. Mehitabel saiu do galinheiro e esperou tranquilamente para ver se tinha algo afazer. Tinha uma faca na mão.

Joe empurrou Psiquê e ela olhou para ele com uma espécie de assombro. O cãolatiu, um ruído estrondoso e claro, glacial, e a mordiscou suavemente nos flancos.Ela saiu, fazendo um ruído na neve, fora da porta. E ali ficou, olhando para Brock.

– Vamos, garota – ele disse a ela. – Por aqui.Fechou a porta a chave. Joe estava forçando Psiquê a dar a volta pelo galinheiro,

longe da vista do rebanho.Os porcos, naturalmente sofridos e inteligentes, tinham visto muitas matanças da

sua própria casta nos dias de antanho. Mas as ovelhas não sabiam. Brock pensouque se algumas do rebanho se distanciassem dele durante o inverno e jamais voltas-sem, as outras se limitariam meramente a aceitar o fato sem se preocuparem. Em úl-tima análise, sim, como é natural, o homem ia continuar vivendo dos seus animais,teria que incuti–los com alguma coisa, uma religião que demandasse sacrifícios. Es-tremeceu ao pensar. Não tinha sido feito para o papel de Moloj. A raça humana já ti-nha sido suficientemente sinistra sem se converter em uma tribo de deuses sedentosde sangue.

– Por aqui, Psiquê – disse.Ela ficou quieta, olhando para ele. Ele tirou as luvas e ela lambeu as palmas da sua

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mão, passando sua língua quente e úmida na pele suada. Quando lhe fez cócegaspor trás das orelhas, ela baliu suavemente e aproximou–se mais dele.

De repente Brock compreendeu a tragédia dos animais. Não tinham evoluído tantoquanto sua nova inteligência. O homem, com suas mãos e com a palavra, pôde sedesenvolver como criatura pensante e estava à vontade com seu cérebro. Até estesúbito peso acabrunhante do conhecimento não era grande para ele, porque o inte-lecto sempre tinha sido potencialmente ilimitado. Mas os outros animais tinham vivi-do em harmonia, impulsionados por seus instintos, com o grande ritmo do mundo,sem mais inteligência além da que necessitavam para sobreviver. Eram mudos, masignoravam isto; não eram perseguidos por fantasmas nem anelavam a solidão, nemlhes intrigava o maravilhoso. Mas agora tinham sido lançados em uma imensidãoabstrata para a qual nunca foram feitos, e isto lhes fazia perder o equilíbrio. O instin-to, mais forte do que no homem, se sublevava diante daquele estranho e um cérebroadequado para a comunicação apenas podia expressar o que não estava correndobem.

A enorme e indiferente crueldade disto era uma trago amargo na garganta do ho-mem. Sua visão ficou um pouco confusa, mas agiu com velocidade brutal, indo paratrás da ovelha, derrubando–a e sujeitando–a pelo pescoço para degolá–la. Psiquêbaliu uma vez e ele viu o horror do pressentimento da morte em seus olhos. Então omacaco feriu e ele se agitou brevemente e ficou imóvel.

– Leva–a…. leva–a – Brock se endireitou. – Leva–a tu mesmo, Mehitabel, podeser? – era–lhe estranhamente difícil falar. – Que WuhWuh te ajude. Eu tenho outrascoisas a fazer.

Distanciou–se lentamente, vacilando um pouco, e Joe e Mehitabel trocaram umolhar de incerteza. Para eles isso tinha sido somente um trabalho a mais; não com-preendiam por que o chefe tinha que chorar.

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14

Wang Kan estava trabalhando duramente quando chegou o profeta. Era inverno ea terra se estendia branca e dura em torno do povoado, até aonde o homem conse-guia ver. Haveria primavera novamente e seria preciso arar, mas todos os bois havi-am escapado. Os homens, as mulheres e os meninos teriam que puxar os arados eWang Kan desejava facilitar–lhes seu trabalho tanto quanto fosse possível. Estavadesmontando o trator, já sem combustível, que era o único que restara dos comunis-tas, em busca de rolamentos, quando se ouviu um grito anunciando que um estran-geiro se aproximava através do campo.

Wang Kan suspirou e abandonou o trabalho. Procurou tateando na escuridão dachoça, que era sua ferraria, pegou o rifle e os poucos cartuchos que restavam e ves-tiu a jaqueta azul, acolchoada. Aquela arma tinha sido uma boa amiga sua, havia lheacompanhado durante muitas centenas de léguas depois que o exército se desfez, seamotinando, e ele foi para casa. Ainda restavam soldados comunistas dispersos, semfalar das pessoas mortas de fome que tinham se voltado para a bandidagem. Nuncase estava seguro de quem pudesse ser um recém-chegado. O último estrangeiro ti-nha vindo em um brilhante aparelho aéreo, somente para trazer a notícia de que ha-via um novo Governo sob os quais todos os homens poderiam ser livres; mas esseGoverno era algo remoto e ainda fraco e os homens tinham que se defender por simesmo quando surgia a necessidade.

Seus vizinhos o estavam esperando do lado de fora, tremendo de frio. Alguns ti-nham fuzis e os demais estavam armados com facas, estacas e forcados. Dos seusnarizes saí o ar em pálida fumaça. Por trás da fileira, os meninos e os velhos se man-tinham nas portas das suas casas, prontos a buscar abrigo.

Wang Kan olhou de soslaio para a neve.– É um homem sozinho e não vejo que leve armas – disse.– Está montado em um burro e leva outro com ele – replicou o vizinho.Ali havia algo estranho. Quem era capaz de manejar um animal depois da grande

mudança? Wang sentiu um ardor na garganta.O homem que se aproximava era um ancião. Sorria bondosamente e, uma a uma,

as armas apontadas baixaram. Mas era estranho ver a pouca roupa que levava, comose estivesse no verão. Chegou montado até a fileira dos homens e os cumprimentouamistosamente. Ninguém perguntou a que ele vinha, mas os olhos que o observa-vam eram suficientemente inquisitivos.

– Eu me chamo Wu Hsi – disse – e tenho uma mensagem para vocês que pode servaliosa.

– Entre, senhor – convidou–o Kan – e aceite nossa pobre hospitalidade. Deve estarsentindo um frio terrível.

– Pois não – disse o estrangeiro. – Isso faz parte da minha mensagem. Os homensnão têm por que ficarem gelados, mesmo quando não têm roupas grossas. Tudo

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consiste em saber como não se congela.Passou uma perna sobre o lombo do burro e se inclinou para diante. Uma leve bri-

sa, mas fria, revolveu sua barba cinzenta e cheia de mechas.– Sou um dos muitos – prosseguiu – a quem meu mestre ensinou e agora nós saí-

mos a ensinar os outros, sendo nossa esperança que alguns desses, a quem predi-quemos, se convertam em profetas, por sua vez.

– Bem, e qual sua lição, senhor? – perguntou Wang Kan.– Meu mestre era um sábio francês que, quando chegou a mudança, compreendeu

que havia também uma mudança na forma de pensar e se pôs a procurar os meiosmais adequados de utilizar essas novas faculdades. Não é senão um modesto come-ço o que nós trazemos aqui, entretanto nos parece que pode ser de proveito para omundo.

– Agora todos nós podemos pensar mais livremente e com mais potência, senhor –disse Wang Kan.

– Sim, estou indubitavelmente entre homens de valia, entretanto é possível queminhas pobres palavras tenham uma certa novidade. Pensem, boa gente, quantasvezes a mente, a vontade, dominou a fraqueza do corpo. Pensem como os homensse mantiveram com vida durante a doença, a fome e a fadiga, quando não havianada melhor a fazer do que morrer. Pensem quão maiores podem ser tais poderes,contanto que um homem possa saber utilizá–los.

– Sim – Wang Kan fez uma reverência. – Vejo como você triunfou sobre o frio doinverno.

– Não há frio suficiente, hoje em dia, para atingir um homem se este sabe comomanter seu sangue em um movimento quente. Isto é só uma pequena coisa. – WuHsi encolheu os ombros. – Uma mente elevada pode fazer muito com o corpo. Eu,por exemplo, posso ensiná–los como se consegue que uma ferida deixe de doer e desangrar. Masi os meios de comunicação com os animais e de fazer com que se tor-nem amistosos; os meios de recordar até a coisa mais minúscula que alguém tenhavisto ou ouvido; os meios de não ter sentimentos nem desejos, salvo aqueles que amente diz que são bons; os meios de pensar como deve ser o mundo real, sem de-vanear metendo–se em vãs fantasias, isso, opino humildemente, pode ser do maiorproveito para vocês à vontade.

– Certamente será, honorável senhor. Mas não somos homens de valia – declarouWang Kan com respeito. – Não quer entrar agora e comer conosco?

Foi um grande dia para o povoado, apesar de a notícia ter vindo tão sossegada-mente. Wang Kan pensou que logo seria um grande dia para o mundo todo. Se per-guntou como ia ser este dentro de dez anos e até sua alma paciente achou difícil es-perar para ver.

Mais além do alcance da vista, o firmamento era gelo e escuridão, um milhão desóis gelados espasos através da noite elemental. A Via Láctea fluía como um rio deesplendor, Orion se destacava gigantesco contra a infinitude e tudo era frio e silenci-oso. O espaço jazia em torno da nave como um oceano. O sol terrestre foi minguan-do e distanciando–se interminavelmente e agora só havia noite, quietude e a titânicae brilhante beleza do céu. Olhando para essas estrelas – cada qual uma gigantescachama – e perecendo seu terrível isolamento, Pete Corinth sentiu que sua alma serecolhia dentro de si. Era o espaço se estendendo além de tudo quanto pudera ima-ginar, mundos e mais mundos, e cada um com todo seu esplendor, nada diante do

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mistério que o encerrava.“Talvez eu precise falar com Deus.”Bem, talvez fosse assim. Pelo menos teria encontrado algo que fosse mais que ele.Suspirando, Corinth voltou à comodidade da cabine metálica, agradecido pela sua

finitude. Lewis estava vigiando as esferas e os aparelhos e mastigando um charutoapagado. Não havia o menor assombro em seu rosto redondo e rubicundo e ele can-tarolava uma canção para si mesmo. Mas Corinth sabia que frio imenso havia chega-do e que ele o havia tocado. O biólogo sempre assentia com um gesto leve (“Funcio-na que é uma beleza. O campo de impulso psi, as telas de mira, a gravidade, a venti-lação, os mecanismos auxiliares; temos uma nave admirável.”)

Corinth procurou uma cadeira e se sentou, dobrando sua delgada armação e enla-çando as mãos em um joelho. Partir rumo às estrelas era um triunfo, talvez o maiorêxito da história. Pois garantiria que a história sempre existiria, que no homem haviapossibilidades exteriores e que não tinha que ficar sempre estancado em seu peque-no planeta. Mas não sabia por que ele, como pessoa, não sentia a exultação da con-quista. Aquilo era grande demais para as trombetas. Ah, sempre tinha sabido intelec-tualmente que o cosmos estava além da compreensão. Mas foi nele um conhecimen-to morto, incolor, dez elevado à enésima potência, e nada mais. Agora era parte de simesmo. Tinha vivido e já não seria o mesmo homem nunca mais.

Impulsionada por uma força mais poderosa que os foguetes, livre dos limites develocidade einstenianos, a nave reagia contra a massa inteira do universo; e logo, vi-ajando mais depressa que a luz, não possuía uma velocidade no sentido estrito. Suaposição mais provável variava de modo enigmático e requeria todo um ramo comple-to de matemática para descrevê–la. Engendrava seu próprio campo interno depseudo-gravidade e seu combustível era a própria massa, qualquer massa decom-posta em energia, de nove vezes dez a vinte ergs por gramo. Suas telas de visão,compensadas para o efeito Doppler e a aberração, mostravam o desnudo esplendordo espaço a olhos que nunca o haviam visto sem a ajuda de instrumentos. Transpor-tava, albergava e nutria seu carregamento de frágeis tecidos orgânicos; e os viajan-tes cavalgavam como deuses, conheciam sua própria mortalidade com perfeita clare-za e com uma certa exaltação cordial.

Apesar de tudo isso, a nave tinha uma aparência de coisa sem terminar. Na pressapara acabar um trabalho de um milhar de anos em alguns meses, os construtoreshaviam prescindido de muitas coisas que teriam podido instalar: contadores e robôs,que a teriam transformado em uma nave completamente automática. Os tripulantespodiam calcular, com suas mentes modificadas, tão tem e tão rapidamente quantoqualquer máquina construída até então, resolvendo equações diferenciais e parciaisde ordem elevada para obter seu próprio controle e direção. O projeto tinha sido rea-lizado com uma rapidez quase desesperada, com uma vaga compreensão de que anova humanidade tinha que encontrar uma fronteira. A nave que se seguisse a estaseria diferente, estando fundamentadas muitas das suas diferenças sobre os dadosque a primeira traria em seu regresso.

– Os raios cósmicos se mantêm bastante regularmente – disse Lewis. A nave esta-va eriçada de instrumentos instalados fora do casco e seus campos de reboque pro-tetores. (“Acho que isto aniquilaria para sempre a teoria da origem solar.”)

Corinth assentiu. O universo – pelo menos à distância que eles haviam penetrado– parecia conter uma saraivada de partículas carregadas que invadiam o espaço, pro-cedente de uma origem desconhecida e dirigindo–se para um destino igualmente

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desconhecido. Ou teriam alguns pontos definidos de partida? Talvez fossem uma par-te integral do cosmos, como as estrelas e as nebulosas. Como profissional, precisavaardentemente saber.

– Creio – disse – que até as viagens curtas que possamos fazer neste pequeno se-tor da galáxia vão transtornar a maior parte das teorias astrofísicas anteriores. (“Te-remos que construir toda uma nova cosmogonia.”)

– E a biologia também, eu apostaria – resmungou Lewis. (“Estive especulandouma e outra vez, desde a mudança, e agora estou inclinado a pensar que são possí-veis formas de vida não baseadas em carbono.”)

“Bem, veremos”…. que frase tão mágica. Até o sistema solar necessitaria de déca-das de exploração. O Sheila – embora o homem tivesse passado à tendência anímicade pôr nomes em suas criações, Corinth continuava sendo suficientemente sentimen-tal para pensar em sua nave com o nome da sua mulher – já tinha visitado a lua emuma viagem de teste; sua verdadeira viagem tinha começado com um passeio emtorno de Vênus, mergulhando para vê–lo no ventoso inferno arenoso de superfícievenenosa, detendo–se depois em Marte, onde Lewis ficara doido diante de algumasdas adaptações que encontrou nas formas vegetais, e depois partiram. Em uma incrí-vel semana, dois homens tinham visto dois planetas e seguido mais adiante. A cons-telação de Hércules achava–se à popa; propunham–se a localizar os limites do cam-po inibidor e reunir dados sobre ele. Depois uma escapada até Alfa do Centauro,para ver se a vizinha mais próximo da terra tinha planetas, e regressar outra vez.Tudo isso em um prazo de um mês.

“A primavera estará próxima quando voltarmos….” Ao partir, o passado inverno es-tava situado no hemisfério norte sobre a Terra. Tinha sido numa manhã escura e fria.Nuvens baixas voadoras sopravam como fumos desgarrados sob um firmamento deaço. A massa dispersa de Brookhaven tinha ficado quase oculta deles, empanadapela neve e pela nebrina, e a cidade, que ficava mais além, se perdia de vista.

Não foram muitos a se despedirem deles. Os Mandelbaum estiveram lá, natural-mente carregados com roupas que tinham se tornado velhas e gastas; a alta e del-gada silhueta de Rossman estava rígida ao seu lado; alguns quantos amigos, algu-mas relações profissionais do laboratório e dos escritórios, e isso foi tudo. Helga foravestida em um caro abrigo de peles e a neve derretida brilhava como diamantes emseus loiros cabelos alisados. Sua frieza, de uma diamantina joia, foi muito expressivapara Corinth; se perguntou quanto tempo ela esperaria depois da partida da navepara chorar; mas ele lhe deu a mão e não disse uma palavra. Depois começou a falarcom Lewis; e Corinth tinha levado Sheila para o outro lado, atrás da nave.

Ela parecia pequena e frágil em seu abrigo de inverno. A carne havia desaparecidoe sua fina ossatura assomava sob a pele. Seus olhos eram enormes. Ultimamente ti-nha se tornado silenciosa; se pôs a olhar para além dele e de vez em quando tremiaum pouco. Suas mãos, pousadas em Corinth, eram terrivelmente delgadas.

– Não deveria lhe deixar, meu amor – disse ele, utilizando todas as palavras à ma-neira antiga e fazendo com que sua voz fosse acariciante.

– Não será por muito tempo – replicou ela, com voz monótona. Não estava maqui-ada e seus lábios estavam mais pálidos que o usual. – Creio que estou melhorando.

Ele assentiu com um gesto. O psiquiatra Kearnes era um bom homem; paternal-mente roliço, tinha um cérebro agudo como uma navalha. Admitia que sua terapiaera experimental, uma averiguação nas trevas ignotas da nova mente humana; masestava obtendo bons resultados com alguns pacientes. Rechaçando a barbárie da

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mutilação do cérebro, por cirurgia ou choque, opinava que um período de isolamentoda vida familiar dava ao paciente a oportunidade de fazer, guiado, a readaptação queera preciso….

(“A mudança foi um choque psíquico sem precedentes para qualquer organismosque possui uma sistema nervoso – tinha dito o doutor Kearnes. – Os afortunados, osvoluntariosos, os decididos, aqueles cujos interesses tinham sido, por escolha ou pornecessidade, dirigidos para fora, mais que a introspecção, aqueles para os quais pen-sar rigorosamente sempre havia sido um processo deleitável e natural, tinha feito, aoque parecia, sua adaptação sem grande perigo, mesmo quando suponho que todoslevaremos as cicatrizes do choque para a tumba. Mas outros, menos afortunados, fo-ram lançados a uma psicose profunda. Sua esposa, doutor Corinth, me permita serrude, está perigosamente próxima à demência. Sua vida passada, essencialmentenão intelectual e recolhida, não lhe facilitou a preparação para uma repentina mu-dança de radiação em seu próprio ser, e a circunstância de não ter filhos com que sepreocupar, nem nenhum problema de pura sobrevivência que a ocupe, permitiu a to-das a forças da compreensão se voltarem para seu próprio caráter. A antiga acomo-dação, as compensações, o esquecimento autoprotetor e o autoengano, que todos ti-vemos, já não servem de nada, e ela não foi capaz de encontrar outros novos. A pre-ocupação sobre os seus sintomas, como é natural, aumenta seu mal: é um círculo vi-cioso. Mas creio que poderei ajudá–la; com o tempo. Quando a totalidade do proble-ma for melhor compreendida, será possível fazer uma cura completa…. Dentro dequanto tempo? Como posso saber? Mas seguramente não mais que uns poucosanos, dada a proporção com que a ciência pode se expandir agora. E enquanto isso,a senhora Corinth obterá compensação suficiente para conseguir felicidade e equilí-brio”.)

– Bem….Um terror súbito nos olhos dela.– Oh Pete, querido, meu querido! Tenha muito cuidado quando estiver longe (Volte

para mim)– Voltarei – disse ele, e mordeu os lábios.(“Sim, seria uma coisa excelente para ela, creio, que vá nesta expedição, doutor

Corinth. A preocupação por você é uma coisa mais sadia que ficar pensando sobrefantasmas que sua própria mente descarrilhada cria. Serviria para lançar até o extre-mo, aonde pertence, sua orientação psíquica. Não é, naturalmente, introvertida….”)

Uma rajada de neve os envolveu por um instante, ocultando–os do mundo. Ela abeijou, compreendendo que nos anos vindouros recordaria como seus lábios estavamfrios e como tremiam sob os seus. Houve um ressonar profundo e cavernoso na ter-ra, como se o próprio planeta estivesse tremendo de frio. Sobre eles ondulava o fo-guete transatlântico que se encaminhava para a Europa, para alguma missão relacio-nada à ordem mundial recém-nascida. Os olhos de Corinth estavam fixos em Sheila.Tirou a neve do cabelo dela, percebendo a suavidade deles e a infantil curvatura danuca sob seus dedos. Riu, com um risinho tristonho. Com quatro palavras, com osolhos, com as mãos e os lábios, lhe disse:

– Quando eu voltar….. e que regresso será, meu amor, espero encontrá–la bem einventarei uma servente robô para que você fique livre para mim. Então não tolerareique nada no universo nos incomode.

Mas o que queria dizer era: Oh, minha querida, você continua sendo para mim oque sempre foi. Você é todo meu mundo. Que não haja mais escuridão entre nós, fi-

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lha da luz; estejamos juntos como estivemos uma vez ou então todo o tempo estarávazio para sempre.

– Tentarei, Pete – murmurou ela.Estendeu a mão para tocar no rosto dele e repetiu pensativamente:– Pete….A voz de Lewis soou rude nos flancos da nave, deformada pelo vento:– Todos a bordo, vamos partir.Corinth e Sheila não se apressaram e os demais respeitaram sua demora. Quando

o físico estava dentro da nave, e esta hermeticamente fechada, se despediu com amão, já muito acima do chão, e a silhueta de Sheila era uma pequena forma se des-tacando sobre a neve lamacenta.

O Sol era um pouco mais brilhante que qualquer estrela ao amanhecer, quase per-dido entre a apinhada multidão de sois, distantes dele, mais além da órbita de Satur-no. As constelações não tinham mudado, apesar de todas as léguas que tinham dei-xado para trás. O enorme disco da Via Láctea e os mais misteriosos torvelinhos dasoutras galáxias resplandeciam tão remotas como haviam sido para os primeirossemi–homens que alçaram para elas seus olhos assombrados. Não havia tempo nemdistância, somente uma imensidão que transcendia durante milhas e anos.

O Sheila avançou, tateando cautelosamente, a uma velocidade bastante inferior àda luz. Nos contornos do campo inibidor, Lewis e Corinth estavam preparando os pro-jéteis telemetrados que seriam lançados na região de fluxo mais denso. Lewis riu en-tredentes com amável travessura para os ratos enjaulados que se propunha a enviarem um dos torpedos. Os olhos dos animais, como pequenas contas de rosário, oolhavam fixamente, como se compreendessem.

– Pobrezinhos – disse. – Às vezes me sinto como um piolho – e acrescentou comuma careta: – O resto do tempo também, mas é divertido.

Corinth não respondeu; estava olhando para as estrelas.– A dificuldade no seu caso – disse Lewis – é que você leva a vida a sério demais.

Sempre fez isso e não quebrou o costume depois da mudança. Eu não. Sou, claro,perfeito por definição. Sempre encontro motivos para maldizer e gritar; mas comosão tantos, é afrontosamente divertido. Se existe um deus de qualquer espécie (edesde a mudança estou começando a acreditar que há, talvez esteja me tornandomais imaginativo), então Chesterton tinha razão ao incluir entre seus atributos o sen-so de humor – estalou a língua. – Pobre e querido Chesterton! Que pena que não es-teja vivo para ver a mudança. Que paradoxos teria imaginado!

O timbre do alarme interrompeu seu monólogo. Os dois homens olharam fixamen-te para a luz indicadora que piscava como um olho avermelhado, uma e outra vez,uma e outra vez. Simultaneamente, uma onda de vertigem os invadiu. Corinth se se-gurou nos braços da sua poltrona, sentindo náuseas.

– O campo…. estamos nos aproximando da zona…. – Lewis acionou uma chave nocomplicado painel de controle. Sua voz era rouca – Temos que sair daqui…. “Voltacompleta!”

Mas isso não era fácil, sobretudo quando se tratava do campo potencial que aciência moderna identifica com a última realidade. Corinth balançou a cabeça, resis-tindo à náusea e lançando–se para diante para ajudar.

“Este interruptor, não…. o outro….”Olhou desconsolado para o painel. A agulha deslizava sobre um sinal vermelho; ti-

nham passado da velocidade da luz e ainda estavam acelerando, o que menos ti-

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nham desejado.“O que fazer”Lewis balançou a cabela. O suor reluzia em seu largo rosto.– Através do vetor – balbuciou. – Saiamos tangencialmente….Não havia constantes para o psi–impulsor. Tudo era variável, uma função de mui-

tos componentes que dependiam dos declives potenciais e uns dos outros. A direção“para a frente” podia converter–se em “retroceder” sob novas condições e tinha–seque contar com o princípio da indeterminação, com o caos sem causalidade dos elét-rons individuais, com as curvas encurtadas da probabilidade, com a complexidadeinimaginável que havia gerado as estrelas e os planetas e os humanos pensantes.Um monte de equações passava pelo cérebro de Corinth. Ele olhou para Lewis comum terror crescente. A vertigem tinha passado.

– Estávamos errados – murmurou. – O campo se eleva mais depressa do queachávamos.

– Mas exigiu tempo à Terra para sair dele por completo, a uma velocidade relativade….

– Devemos ter tocado uma parte diferente do cone, talvez a mais taxativamentedefinida, ou talvez a nitidez do seu perfil varie, com o tempo, em uma certa formainsuspeita….

Corinth se deu conta que Lewis estava olhando para ele de boca aberta.– Eh? – disse o outro – Que compreensão lenta!– Eu dizia…. O que eu dizia?O coração de Corinth começou a bater atroadoramente por causa do pânico. Tinha

falado três ou quatro palavras, feito alguns sinais, mas Lewis não o havia entendido.“Claro que não!” Já não eram tão inteligentes como antes.Corinth revolveu a língua, que lhe parecia um pedaço de madeira. Devagar, em um

inglês simples, repetiu o que queria dizer.– Ah, sim, sim!Lewis assentiu; tinha ficado congelado demais para falar. Corinth sentiu o cérebro

viscoso. Não havia outra palavra para expressar isso. Estava descendo em uma espi-ral na escuridão, não conseguia pensar, e a cada segundo que passava retrocedia no-vamente para o campo da animalidade.

Quando compreenderam isso, foi como um golpe. Sem perceber, tinham se metidono campo que a Terra havia deixado e este campo os estava debilitando mentalmen-te, estavam voltando ao que eram antes da mudança. A nave se afundava mais emais profundamente dentro do fluxo cada vez mais denso e eles já não tinham inteli-gência suficiente para controlá–la.

“A próxima nave será construída com precauções para evitar esses casos – pen-sou, em meio ao caos. – Averiguarão o que nos aconteceu….. mas de que serviráisso para nós?”

Voltou a olhar para fora; na sua visão, as estrelas tiritavam. Pensou desesperado:“Não conhecemos nem a forma nem a extensão do campo. Creio que estamos

saindo tangencialmente; que logo poderemos estar fora do cone…. ou, pelo contrá-rio, ficaremos presos nele nos próximos cem anos.”

“Sheila!”Inclinou a cabeça, aflito demais pelas torturas físicas de um repentino ajuste celu-

lar, para pensar em outra coisa, e chorou.A nave prosseguiu, adentrando a escuridão.

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15

A casa erguia–se em Long Island, sobre uma ampla praia que descia até o mar. Emoutro tempo tinha pertencido a uma propriedade e tinha árvores e um alto muropara ocultá–la do mundo.

Roger Kearnes parou seu carro sob o pórtico e desceu. Tremia levemente e meteuas mãos no bolso ao sentir o frio cruel e úmido que o acometia. Não havia ventonem sombra. Somente a neve tardia, uma densa e tristonha neve que descia deva-gar do céu e aderia aos vidros das janelas e se derretia no chão como se os flocosfossem lágrimas. Se perguntou, desesperado, se a primavera voltaria alguma vez.

Bem. Se refez e tocou a campainha da porta. Tinha um trabalho a fazer: verificar oestado da sua paciente.

Sheila Corinth abriu a porta. Ainda estava magra, com seus olhos negros e enor-mes em seu pálido rosto infantil; mas já não tremia e tinha se dado ao trabalho depentear o cabelo e se arrumar.

– Olá – disse ele, sorridente. – Como está hoje?– Ah, muito bem! – ela não olhou nos olhos dele. – Quer entrar?Indicou o caminho, guiando–o pelo corredor, cuja pintura recente não havia conse-

guido de todo criar o ambiente jovial que Kearnes desejava. Mas não se pode fazertudo. Sheila podia se considerar ditosa ao ter uma casa inteira para ela e uma agra-dável anciã – uma retardada mental – para lhe fazer companhia. Ainda significavamuito ter por marido um homem importante. Entraram na sala de estar. O fogo cre-pitava na lareira e de lá se via a pria e o oceano inquieto.

– Sente–se – convidou Sheila descuidadamente.Ela se deixou cair em uma poltrona e ficou imóvel, com os olhos fixos na janela. Kearnes seguiu o olhar dela. Como o mar estava agitado! Até ali dentro se podia

ouvir como a praia desgastava as rochas caídas, triturava o mundo como se fossemos dentes do tempo. Era cinza esbranquiçado até o limite da vista, um cavalo debrancas crinas que pateava e galopava. E como era terrivelmente sonoro seu relin-char!

Contendo sua mente que se extraviava, ele abriu a bolsa.– Tenho alguns livros para você. Textos psicológicos. Eu falei que lhe interessavam.– Sim, obrigada – na voz dela não havia expressão.– Agora estão terrivelmente antiquados – prosseguiu ele, – mas eles podem lhe

dar uma visão dos princípios básicos. Deve ver por si mesma qual é sua contrarieda-de.

– Acho que farei isso – disse ela. – Agora consigo pensar com mais clareza. Possover como o universo é impossível e como nós somos pequenos – olhou para ele comum gesto de susto nos lábios. – Desejaria não pensar tão bem.

– Uma vez que tenha dominado seus próprios pensamentos, ficará contente porpossuir esta faculdade – disse ele, amavelmente.

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– Desejaria que se pudesse voltar ao mundo de antes – disse ela.– Era um mundo cruel – respondeu Kearnes. – Podemos muito bem passar sem

ele.Sheila assentiu. Mal se ouvia ela sussurrar:– Ah, soldado que jaz na geada, há gelo em teu cabelo e escuridão por trás dos

teus olhos. Até estão as trevas – antes que ele tivessem tempo de franzir o cenho,preocupado, ela continuou em voz alta: – Mas naquele tempo nós amávamos e espe-rávamos. Existiam os pequenos cafés, lembra? E as pessoas riam ao crepúsculo; ha-via música e dança, cerveja e sanduíches de queijo à meia–noite, barcos a vela, pas-téis do dia anterior, preocupações pelos impostos, nossas próprias brincadeiras, eéramos dois. Mas agora onde está Pete?

– Logo estará de volta – apressou-se Kearnes a dizer. Não havia por que recordar–lhe que a nave estelar demoraria duas semanas para voltar. – Ele está muito bem, éem você que temos que pensar.

– Sim – ela juntou as sobrancelhas com severidade. – Sempre vêm a mim. Assombras, quer dizer. Palavras que não vêm de parte alguma. Às vezes quase fazemsentido.

– Poderia repeti–las? – perguntou ele.– Não sei. Essa casa está em Long Island, uma longa ilha, lânguida ilha, ilha da

languidez. Onde está Pete?Ele se tranquilizou um pouco. Havia uma associação mais concreta que a manifes-

tada por ela na última vez. O que havia acontecido? “Mas quando o extremamentevazio e gelado e o tempo são tão obscuros que as inteligências são realmente umpeso, então o que jaz por baixo?” Talvez ela estivesse curando a si mesma na tran-quilidade do seu isolamento.

Mas não podia ter certeza. As coisas tinham mudado muito. Uma mente esquizo-frênica adentrava em paragens onde ele não podia segui–la. As novas normas aindanão haviam sido traçadas, isso era tudo. Mas achou que Sheila estava agindo comum pouco mais de cordura.

– Eu não gostaria de brincar com eles, sabe? – disse ela abruptamente. – Isso éperigoso. Se você os pega com a mão, eles se deixam guiar por um momento, nãose deixam conduzir de novo da mão.

– Fico contente que compreenda isso – disse ele. – O que você precisa é exercitarsua mente. Pense nela como uma ferramenta ou um músculo. Faça os exercícios quelhe dei sobre o processo lógico e a semântica em geral.

– Eu faço – ela riu entredentes. – A descoberta triunfante do evidente.– Bom – riu ele por sua vez, – já se mantém suficientemente firme sobre seus pés

para fazer observações humorísticas.– Ah sim – ela puxou um fio do tapete. – Mas onde está Pete?Ele eludiu a pergunta e lhe propôs alguns testes rotineiros de associação de pala-

vras. Sua validade para o diagnóstico foi quase nula; cada vez que ele os ensaiava,parecia que as palavras tomavam uma conotação diferente; mas podia acrescentaresses parcos resultados aos seus dados arquivados. Por fim tinha elementos suficien-tes para ter uma visão do que havia por baixo. Esta nova técnica de formação demapas em “n” dimensões parecia prometedora, poderia fornecer uma imagem con-sistente.

– Tenho que ir – disse por fim, acarinhando–a na mão. – Você ficará perfeitamentebem. Lembre–se de que se de repente precisar de ajuda, ou simplesmente de com-

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panhia, tudo quanto tem a fazer é me chamar.Ela não se levantou, ficou olhando até que ele transpôs a porta. Depois suspirou:

“Não gosto de você, doutor Fell – pensou. – Você se parece com um buldogue queuma fez tentou me morder, há algumas centenas de anos. Mas é tão fácil enganá–lo….”

Passou-lhe pela cabeça uma velha canção:Morreu e desapareceu, senhora; morreu e desapareceu.À sua cabeceira um gramado de verde erva; ao seus pés uma pedra.“Não – disse ao outro que cantava em sua cabeça. – Vá embora”O mar resmungava e murmurava e a neve caía mais espessa contra as janelas. Pa-

receu-lhe que o mundo estivesse se fechando sobre ela.– Pete – sussurrou, – Pete, meu amor. Preciso tanto de você. Volte, por favor.

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16

Saíram em disparada do campo e os primeiros minutos foram terríveis. Logo:– Onde estamos?Em torno deles brilhavam constelações desconhecidas e o silêncio era tão enorme

que sua própria respiração era estrondosa e áspera aos seus ouvidos.– Não sei – grunhiu Lewis. – E nem me interessa. Deixe-me dormir, pode ser?Cruzou vacilante a estreita cabine e se deixou cair em um catre, tremendo misera-

velmente. Corinth o esteve observando por um momento através do borrão que erasua própria visão e depois se voltou para as estrelas.

“É ridículo – se disse energicamente. – Estás livre outra vez. Tens o uso pleno doteu cérebro outra vez. Então usa–o”

Seu corpo estremeceu de dor. A vida humana não era feita para mudanças comoesta. Um repentino retorno à antiga escuridão, dias de letargia que se transformaramem semanas, enquanto a nave se lançava por si mesma, sem controle, para fora. Edepois, no instante de emergir para o espaço claro, o sistema nervoso trabalhando aplena intensidade…. isso deveria tê–los matado.

“Passará, passará.” Entretanto, a nave ainda estava se distanciando. A Terra ia fi-cando mais longe a cada segundo de voo. “Detenha–a!”

Sentou-se, segurando nos braços da poltrona, lutando contra a ânsia.“Calma – se disse; – lentidão, frear o coração veloz, relaxar os músculos que pu-

xam seus ossos, manter o fogo da vida e fazer com que se erga, crescendo pouco apouco.”

Pensou em Sheila, que o estava esperando, e essa imagem foi uma coisa tranquili-zadora dentro daquele universo em torvelinho. Foi uma batalha para a consciênciaconter as tentativas espasmódicas dos pulmões; mas quando isto foi conseguido, ocoração pareceu ir mais depressa também. Passaram as ânsias, cessaram os tremo-res e a vista clareou; e Pete Corinth ficou plenamente consciente de si mesmo. Sepôs de pé, sentindo o bafo acre do vômito na cabine, e acionou uma máquina quelimpou o local. Olhando para fora, pelas janelas de visão, absorveu–se na imagem dofirmamento. A nave devia ter mudado várias vezes de velocidade e de direção emsua cega carreira pelo espaço; e podiam estar em qualquer parte daquele ramo dagaláxia, mas….

Sim, eram as Nuvens de Magalhães, espectros contra a noite, e aquele buraco deescuridão devia ser o Saco de Carvão, e depois a grande nebulosa de Andrômeda; osol devia encontrar–se aproximadamente nessa direção. Umas três semanas de via-gem no máximo da sua pseudovelocidade; depois, naturalmente, teriam que se lan-çar através da região local para encontrar aquele ordinário anão amarelo que era osol dos humanos. A esta tarefa de orientação teria que conceder uns poucos dias ouaté um par de semanas. Se não um mês. Mas não podia ser evitado, por muito impa-ciente que estivesse. As emoções eram, a princípio, um estado psicofisiológico e,

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como tal, tinha que ser controlável. Corinth queria afastar de si a cólera e a dor, de-sejava calma e resolução. Foi para os controles e resolveu os problemas matemáticoso melhor que pôde, com os dados insuficientes que dispunha. Uns poucos e rápidosmovimentos das suas mãos fizeram com que a nave se detivesse, girasse e se lan-çasse para o sol.

Lewis estava inconsciente e Corinth não o despertou. Que dormisse o sono produ-zido pelo choque da readaptação. De qualquer forma, o físico desejava um pouco desolidão para pensar. Relembrou as terríveis semanas passadas. Desde que ambos es-tiveram ali, até que a Terra saiu do campo, suas vidas lhes havia parecido um sonho.Mal lhes era possível imaginar o que estiveram fazendo; não conseguiam pensar nemsentir como eles próprios o tinham feito. As cadeias de razoamento que tornarampossível a reorganização do mundo e a construção da nave no espaço de alguns me-ses eram sutis, demasiadamente sutis e complexos para serem seguidas pelo ho-mem-animal. Ao cabo de um instante, sua conversa e planejamento desesperado ti-nham se desvanecido na apatia do desalento e esperaram, aturdidos, a mudança queos libertaria ou que os aniquilaria.

“Bem – pensou Corinth, no limite da sua mente que estava ocupada com uma dú-zia de coisas ao mesmo tempo, – tal e como ocorreu, nos liberamos.”

Permaneceu olhando para o esplendor do firmamento e, ao perceber que ia de re-gresso, achando–se bem e a salvo, sentiu dentro de si o contentamento. Mas a novaserenidade que havia encontrado o cobria como uma armadura. Ele poderia tirá–lano momento apropriado, e o faria, mas o fato de que aquilo fosse possível era esma-gador.

Devia ter previsto que isso aconteceria. Indubitavelmente, muitos na Terra tinhamdescoberto isso por eles mesmos, com comunicações ainda fragmentadas, mesmoquando não tinham sido capazes de difundir com palavras. A história do homem, decerto modo, havia representado uma luta interminável entre o instinto e a inteligên-cia, entre o involuntário ritmo orgânico e as normas de consciência criadas por elesmesmos. Ali, pois, estava o triunfo final da morte. Para ele, aquilo tinha chegado deimproviso, pois o choque, a reemergir em uma plena atividade neural, precipitou amudança que estivera latente dentro dele. Entretanto, esta mudança chegaria logopara toda a humanidade normal. Gradualmente, por acaso, mas logo.

A mudança que isso traria para a natureza humana e para a sociedade estava maisalém da sua imaginação. O homem ainda teria motivações, ainda desejaria fazer coi-sas, mas poderia selecionar seus próprios desejos, conscientemente. Sua personali-dade poderia ser autoajustada aos requerimentos intelectualmente idealizados dasua situação. Não seria um robô, não, mas não se pareceria ao que tinha sido nopassado. À medida que a nova técnica fosse plenamente elaborada, as doenças psi-cossomáticas desapareceriam e até os transtornos orgânicos poderiam ser controla-dos em alto grau pela vontade; já não haveria sofrimento. Cada um saberia de medi-cina o suficiente para cuidar dos outros e já não existiriam médicos.

Por conseguinte…. não se morreria?É provável que sim. O homem ainda seria uma coisa finita. Agora mesmo, ele tinha

suas limitações naturais, fossem estas o que fossem. Um homem verdadeiramenteimortal ficaria finalmente asfixiado sob o peso das suas próprias experiências e aspotencialidades do seu sistema nervoso acabariam exaustas. Não obstante, o espaçode vida de um homem chegaria a vários séculos e o espectro da idade, a lenta desin-tegração da senilidade, seria abolido.

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O homem proteico…. o homem intelectual…. infinito.

A estrela não era muito diferente do sol; um pouco maior, um pouco mais averme-lhada, mas tinha planetas, e um deles era semelhante à Terra. Corinth levou a nave àatmosfera do lado da noite. Os detetores varreram a zona. Não havia radiação alémdo cômputo normal, o que queria dizer que não havia energia atômica. Mas existiamcidades nas quais os edifícios brilhavam com fria luminosidade e havia máquinas eradiocomunicações de amplitude mundial. A nave registrou as vozes que falavamatravés da noite; posteriormente, a linguagem poderia ser analisada.

Os nativos, vistos e fotografados em uma fração de segundo, quando a nave pas-sou silenciosamente sobre eles, eram do tipo humanoide, bípedes mamíferos, embo-ra tivessem a pele esverdeada e seis dedos em cada mão e cabeças inteiramente nãohumanas. Amontoados em suas cidades, se pareciam quase pateticamente com asmultidões da antiga Nova Iorque. A forma era estranha, mas a vida em si e os seushumildes desejos eram os mesmos.

Inteligência, outra estirpe mental; mas o homem não estava só na magnitude doespaço–tempo, antigamente isso teria assinalado uma época. Aquilo confirmava me-ramente uma hipótese. Corinth gostava bastante das criaturas lá de baixo e lhes de-sejava o melhor, mas eram somente outra espécie da fauna local: animais.

– Parecem ser muito mais simples do que nós éramos no passado – disse Lewis,enquanto a nave girava em espiral sobre o continente. – Não vejo demonstração al-guma de guerra ou preparativos; talvez eles a tenham superado ainda antes de con-seguir a tecnologia mecânica.

– Ou pode ser que se trate de um estado universal de amplitude planetária – res-pondeu Corinth. – Uma nação que finalmente venceu as outras e as absorveu. Tere-mos que estudar um pouco este lugar para averiguar, mas desta vez eu não me de-terei para fazer isso.

Lewis encolheu os ombros.– Eu diria que você está certo. Vamos então. Uma passagem rápida pelo lado no-

turno e o deixaremos.Apesar do domínio próprio que vinha aumentando nele, Corinth devia lutar contra

um arrebatamento de impaciência. Lewis tinha razão em sua insistência de que pes-quisassem pelo menos as estrelas próximas do seu caminho de volta. Não causaria amorte de ninguém da Terra esperar algumas semanas a mais por sua volta e a infor-mação valeria a pena.

Poucas horas depois de entrar na atmosfera, o Sheila voltou a abandoná–la e viroupara estibordo. O planeta ficou rapidamente por trás do casco da nave e o sol dimi-nuiu e se perdeu; e todo o mundo vivente – evolução, idades históricas, lutas, glória,perdição, sonhos, ódios e temores, esperanças, amor e anelo, todas as muitas exis-tências em diversos planos de bilhões de seres sensíveis – foi engulido pela escuri-dão.

Corinth, olhando para fora, deixou que um tremor de desalento o percorresse livre-mente. O cosmos era grande demais. Não importava a rapidez com que os homensvoassem por ele; não importava quão longe conseguissem chegar nos tempos por vire quão duramente trabalhassem; não seriam mais que um leve brilho em um rincãoesquecido do grande silêncio.

A nódoa solitária de uma galáxia era tão inconcebivelmente gigantesca, que atéentão sua mente não conseguia abarcar com seu conhecimento; não poderia ser co-

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nhecida plenamente nem em um milhão de anos; e além dela, e ainda mais além, ja-ziam brilhantes ilhas de estrelas distanciadas até onde não alcançava a imaginação.Mesmo se o homem chegasse até onde o cosmos terminasse, não conseguiria nadacontra sua indiferente imensidão.

Era uma sabedoria sadia, aportadora de uma modéstia que a frieza da sua novamente lhe faltava. E era bom saber que haveria sempre uma fronteira e uma incita-ção; a compreensão dessa indiferente grandeza aproximaria os homens entre si, bus-cariam consolos uns nos outros e poderia fazê–los mais bondosos com todos os se-res vivos.

Lewis falou lentamente no silêncio na nave:– Com este são dezenove os planetas que visitamos e quatorze deles com vida in-

teligente.Corinth recordou o que tinha visto: as montanhas, oceanos e florestas de mundos

inteiros; a vida que florescia esplendorosa ou lutava sozinha para sobreviver e a sen-sibilidade que havia surgido para guiar a cega natureza. Tinha visto uma fantásticavariedade de formas e civilizações. Bárbaros saltitando ululantes em seus matagais;uma raça frágil e amável, cinzenta como chumbo polvilhado de prata, que cultivavagrandes flores por alguma simbólica razão desconhecida; um mundo fumegante emchamas com a fúria das nações encerradas em uma pugna atômica mortal, destruin-do toda sua cultura em uma histeria de ódio voluptuosa; seres com formas de cen-tauros que voavam entre os planetas do seu próprio sol e que sonhavam em chegaràs estrelas; os monstros que respiravam hidrogênio em um gigantesco planeta frígi-do e peçonhento, e que haviam evoluído em três espécies separadas, tão vasta era adistância entre elas; a civilização mundial de bípedes que quase pareciam humanos eque havia se tornado tão complexa e inflexivelmente organizada, que a individualida-de se perdia e a própria consciência minguava até a extinção quando rotinas de for-migueiro ocupavam o lugar do pensamento; uma pequena raça com tromba que ha-via desenvolvido plantas especializadas com as quais atendiam a todas suas necessi-dades mediando a sucção e que viviam em um paraíso tropical de ociosidade; umanação entre muitas em um mundo circular, que havia desdenhado a riqueza e o po-der como finalidade e que se entregavam apaixonadamente a uma vida artística. Ah,tinham sido muitos e tão estranhos, que não conseguia imaginar a diversidade comque o universo tinha evoluído, mas agora Corinth podia ver as amostras.

Lewis expressou isso assim:– Algumas dessas raças eram mais antigas que a nossa, estou certo, e mesmo as-

sim, Pete, nenhuma delas é apreciavelmente mais inteligente que o homem antes damudança. Compreende o que isso indica?

– Bem…. dezenove planetas….. e as estrelas desta galáxia só chegam a uma or-dem de cem bilhões e a teoria diz que a maior parte delas têm planetas. Que tipo deamostra pode ser esta?

– Use a cabeça, amigo. Pode apostar como certo que sob as condições normais deevolução uma raça só pode chegar a um máximo de inteligência e logo para. Nenhu-ma dessas estrelas esteve no campo inibidor, compreendeu?

– Isso encaixa e faz sentido. O homem moderno não é, essencialmente, diferentedo primitivo homo sapiens. A capacidade básica de uma espécie inteligente resideem adaptar seu entorno para suprir suas necessidades, mais que em adaptar–se aela própria ao seu entorno. É assim. Com efeito, a raça pensante pode manter condi-ções bastante constantes. Isto é tão verdadeiro para um esquimó em seu iglu, como

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é para um novaiorquino em seu apartamento com ar-condicionado; mas a tecnologiamecânica, uma vez que a raça dá com ela, faz com que os entornos físicos sejamainda mais constantes. A agricultura e a medicina estabilizam o entorno biológico.Em resumo: uma vez que uma raça chega à inteligência primeiramente representadapor um QI médio de, digamos, cento e cinquenta, já não precisa ser mais inteligente.

Corinth assentiu.– Com o tempo, os substitutos do cérebro também se terão desenvolvido para ma-

nejar problemas que a mente, sem meios auxiliares, não poderia resolver – disse. –Calculadoras, por exemplo; embora a escrita tenha, na realidade, o mesmo princípio.Compreendo o que quer dizer, claro.

– Há mais do que isso – acrescentou Lewis. – A estrutura física do sistema nervosoimpõe limitações, como bem sabe. Um cérebro pode chegar a ser tão grande que oscaminhos neurais se tornem incontrolavelmente longos. Elaborarei a teoria detalhadaquando voltar, se outro não me tomou a dianteira.

– A Terra, naturalmente, é um caso peculiar. A presença do campo inibidor faz comque a vida terrestre mude sua base bioquímica. Nós também temos limitações estru-turais, mas são mais amplas graças a essas diferenças de tipo. Por conseguinte, ago-ra podemos muito bem ser a raça mais inteligente do universo…. pelo menos nestagaláxia.

– Hum…. pode ser que seja assim. Naturalmente, havia muitas outras estrelas nocampo inibidor também.

– E ainda há. Podem entrar nele outras novas quase que diariamente. Meu Deus,como me compadeço das raças pensantes desses planetas! São rechaçadas de novoa um nível de cretinos; uma grande quantidade delas deverão simplesmente morrer,incapazes de sobreviverem sem sua mente. A Terra teve sorte; deslizou no campoantes que a inteligência aparecesse.

– Mas deve haver muitos planetas com um caso análogo ao nosso – insistiu Corin-th.

– Possivelmente – concordou Lewis. – Pode haver raças que emergiram, alcançan-do nosso presente nível há milhares de anos. Se for assim, no fim as encontraremos,embora a galáxia seja tão grande que exigirá tempo. E todos nós nos adaptaremosharmoniosamente uns com os outros – sorriu amargamente. – No fim de tudo, amente puramente lógica é tão proteica, e o meramente físico se torna tão pouco im-portante para nós que, indubitavelmente, encontraremos seres totalmente semelhan-tes…. embora seus corpos pareçam muito diferentes. Gostaria de se casar com….uma aranha gigante, por exemplo?

– Não tenho objeção alguma a opor – respondeu Corinth, encolhendo os ombros.– Naturalmente que não. Mas seria divertido encontrá–los. E já não estaríamos sós

no universo – suspirou Lewis. – Entretanto, Pete, vejamos isto cara a cara: somenteuma minoria muito pequena entre as espécies conscientes que possa haver na galá-xia puderam ser tão afortunadas como nós. Encontraremos uma dúzia de raças pa-rentes ou uma centena, mas não um número maior.

Seus olhos se dirigiram para as estrelas.– Não obstante, pode ser que essa unicidade tenha suas compensações. Acho que

começo a ver uma resposta para o problema real; o que os homens supercerebraisvão fazer com suas faculdades? O que eles encontrarão que seja digno do seu esfor-ço? Ainda me pergunto se não houve uma razão, chamemo–la Deus, para tudo issoque aconteceu.

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Corinth assentiu, distraído. Estava inclinado, tenso, para a frente, espiando pelatela dianteira de visão, como se pudesse saltar com a vista através dos anos–luz eencontrar o planeta chamado Terra.

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A primavera chegou atrasada, mas agora havia a tepidez do ar e neblinas de ver-dura nas árvores. Era um dia bom demais para ficar sentado em um escritório; eMandelbaum deplorava seu alto cargo. Teria sido mais divertido sair para o ar livre ejogar um pouco de golfe, se o campo mais próximo já estivesse bastante seco. Mas,como chefe administrador de uma zona que incluía mais ou menos os antigos esta-dos de Nova Iorque, Nova Jersey e Nova Inglaterra, tinha suas obrigações. Quandoconseguisse colocar em plena produção as telas convertedoras do tempo em força,mudaria seu quartel-general para algum lugar no campo e se instalaria ao ar livre.Até então, permaneceria na cidade. Nova Iorque estava morrendo; não tinha uma ra-zão de ser econômica nem social e todos os dias centenas de pessoas a deixavam.Mas ainda era um lugar conveniente.

Entrou na oficina, saudou os empregados, entrando logo depois em seu santa–sanctorum. Esperava–o o costumeiro monte de informações, mas, mal havia começa-do com eles, o telefone tocou. Praguejou quando o pegou; devia ser bastante urgen-te se o seu secretário havia transferido.

– Diga.– Sou William Jerome.Era a voz do superintendente do plano de fábricas de alimentos de Long Island. Ti-

nha sido engenheiro civil antes da mudança e prosseguia com o mesmo trabalho emum nível mais elevado.

– Preciso de um conselho – prosseguiu – e você parece ser o homem com melho-res ideias sobre relações humanas que existe aqui.

Falou com uma certa lerdeza, como também acontecia com Mandelbaum; ambosestavam se exercitando no desenvolvimento da linguagem unitária. Possuía a máxi-ma lógica e a mínima redundância em sua estrutura; era um universo de conteúdopreciso em poucas palavras e provavelmente se transformaria na língua internacionaldos negócios e da ciência, embora não da poesia. Tinha sido feita pública há somen-te uma semana.

Mandelbaum franziu o cenho. Agora, o trabalho de Jerome era talvez o mais im-portante do mundo. De uma forma ou de outra, dois bilhões de pessoas tinham queser alimentadas e as fábricas de alimento sintético permitiriam a livre distribuição deuma dieta adequada, embora não atraente. Mas primeiro tinham que construí–las.

– O que houve agora? – perguntou – Mais dificuldades com Fort Knox?Atualmente, o ouro era um metal industrial, valorizado por sua condutibilidade e

por seu peso, e Jerome necessitava muito del para barras de ônibus e cubetas de re-ação.

– Não, finalmente me entregaram. São os trabalhadores. Estão trabalhando deva-gar e isso pode se transformar em uma greve.

– Por quê? Estão pedindo salários mais altos? – o tom de voz era irônico.

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O problema do dinheiro ainda estava para se resolver e não seria solucionado atéque fosse aceito todo um mundo de normas de crédito do novo homem–hora; en-quanto isso, havia estabelecido seu próprio sistema local, pagando em vales que po-diam ser trocados por mercadorias e serviços. Mas o serviço tinha que ser aperfeiço-ado; pagar com dinheiro não teria significado nada.

– Não, eles estão acima disso. A questão é que não querem trabalhar seis horaspor dia. É muito entediante pregar pregos e misturar cimento. Estive explicando queexigirá tempo a construção de robôs para esse tipo de trabalho, mas eles desejam oócio imediato. Que vou fazer se todos preferem aceitar um nível de vida mínimo e sededicam a discussões filosóficas em suas horas livres?

Mandelbaum sorriu.– O tempo de ócio também faz parte do nível de vida. O que você tem que fazer,

Bill, é conseguir com que façam seu trabalho com agrado.– Sim, mas como?– Que inconveniente há em instalar alto–falantes que dêem conferências sobre

isso ou aquilo? Ou melhor, dar a cada um um receptor de lapela e deixar que sintoni-zem o que quiserem ouvir: conversas, sinfonias ou o que seja. Ligarei para a Colúm-bia e farei com que organizem uma série de irradiações para você.

– Você quer dizer emissões.– Não, assim eles ficariam escutando em casa. Esses seriados serão transmitidos

nas horas de trabalho e serão irradiados somente em seus centros trabalhistas.– Rá, rá!…. – Jerome riu. – Isso pode funcionar.Quando o engenheiro desligou, Mandelbaum encheu seu cachimbo e voltou aos

seus papeis. Desejava que todas suas dores de cabeça pudessem ser resolvidas tãofacilmente quanto essa. Mas essa questão de mudança de localidade…. Ao que pare-cia, todo mundo queria viver no campo; os transportes e as comunicações já nãoeram fatos isolados. Isso implicaria em um enorme trabalho de transferência e defundar campings, sem falar da necessidade de fazer uma limpeza nos títulos de pro-priedade. Não podia resistir a uma demanda tão forte, mas tampouco podia satisfa-zê–la de imediato. Depois havia o assunto de….

– O’banion – disse o anunciador.– O que? Ah, sim. Tinha um encontro marcado, não é isso? Pode entrar.Brian O'Banion tinha sido policial raso antes da mudança; durante o período caóti-

co, esteve trabalhando na Polícia Civil e agora era chefe local dos Observadores. Ape-sar de tudo, continuava sendo irlandês, com uma grande cara vermelha e era absur-do ouvir na sua boca a reluzente palavra Unitário.

– Preciso de mais alguns homens – disse. – A tarefa está se tornando muito amplaoutra vez.

Mandelbaum exalou uma nuvem de fumo e refletiu. Os Observadores eram suaprópria criação, mesmo que a ideia tivesse se estendido muito e que provavelmenteseria aceita pelo governo internacional a curto prazo. A operação de apaziguamentosocial requeria constantes observações, em uma quantidade fantasticamente grande,difícil de correlacionar diariamente, mas necessária para que o desenvolvimento nãofugisse das suas mãos. Os Observadores recolhiam esta informação de várias for-mas; uma delas, a mais efetiva, era simplesmente errar por ali parecendo um cida-dão comum, falar com as pessoas e utilizar a lógica para completar suas averigua-ções.

– É preciso algum tempo para recrutá–los e treiná–los – disse Mandelbaum. – Para

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que precisa deles, exatamente?– Bem, primeiro existe o assunto dos retar4dados mentais. Vou colocar mais um

par de homens nisto. Não é um trabalho cômodo, pois ainda há uma porção delesrondando por aí, como você sabe, e precisam ser localizados e guiados sem intromis-sões, pelo caminho mais direto, para uma das pequenas colônias que estão surgindo.

– E as próprias colônias devem ser vigiadas mais estreitamente e protegidas contrainterferências….. sim. Cedo ou tarde, vamos ter que decidir o que fazer com eles.Mas isso será uma consequência do que decidirmos fazer conosco, o que ainda estámuito no ar. Muito bem, mais alguma coisa?

– Tive um vislumbre de…. alguma coisa. Não sei exatamente o que é, mas achoque se trata de um assunto importante e cuja origem está aqui mesmo em Nova Ior-que.

Mandelbaum, impassível, voltou–se para ele.– Do que se trata, Brian? – perguntou tranquilamente.– Não sei. Pode ser que não seja nada criminoso, mas é importante. Tenho infor-

mações de meia dúzia de países de todo o mundo. As equipes científicas e os materi-ais estão indo por caminhos tortuosos e não voltamos a vê–los…. publicamente.

– Ah, sim? Por que cada cientista não dá, passo a passo, uma referência das suasatividades?

– Não existe razão para isto. Mas, por exemplo, o corpo de Observadores suecosvem seguindo uma pista: alguém em Estocolmo desejava uma certa quantidade detubos de vácuo de um tipo muito especial. O fabricante explicou que todos seus es-toques, que eram pequenos por causa da escassez da demanda, tinham sido com-prados por alguém. Mas o comprador pensou e procurou esse alguém, que resultouser um agente que comprava para uma quarta pessoa, a qual nunca tinha sido vista.Isto fez com que o Observador se interessasse e controlaram todos os laboratóriosdo país; mas nenhum deles tinha comprado essa mercadoria, então provavelmentefoi exportada por avião particular. Pediram aos observadores de outros países quecontrolassem, por sua vez. Aconteceu que nossos aduaneiros tinha anotado uma cai-xa cheia desses mesmos tubos chegados a Odlewild. Eu estava com uma mosca naorelha e tratei de averiguar para onde tinham ido esses tubos. Mas não tive sorte; apista terminava ali. Então comecei a perguntar a todos os Observadores do mundotodo, pessoalmente, e descobri vários fatos análogos. Partes de naves espaciais ti-nham desaparecido na Austrália e um carregamento de urânio do Congo belga. Issopode não significar nada, mas se se trata de um plano legal, por que esse segredo?Preciso de mais alguns homens que me ajudem a investigar. Isso está cheirando mal.

Mandelbaum assentiu. Talvez se tratasse de alguma coisa disparatada, bem comode uma experiência com nucleônicos…. que poderia devastar um território inteiro. Oupodia ser uma plano mais deliberado. Ainda não se podia dizer nada.

– Providenciarei para que tenha esses homens – disse.

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Início do verão: o primeiro e tímido enverdecer das folhas havia se tornado, com osol, de uma plenitude encantadora e falava com o vento; ir enjaulada em metal comos novos homens da Terra a fazia estremecer. À flor do chão estava–se mais aberto elivre. Era quase como estar no campo. A cidade tinha cumprido com seus fins e ago-ra estava morrendo, e as paredes nuas e cegas em torno dela eram tão impessoaiscomo as montanhas. Estava sozinha. Fazia só uma hora que tinha chovido e a leve efresca brisa agitava um fino cintilar de gotas, como a sombra de um beijo em umrosto que olhasse para cima; alguns pardais saltavam nas ruas largas e vazias; a níti -da e silenciosa massa das edificações se destacava cortante em um céu azul e milha-res de janelas recebiam o sol matinal, devolvendo–o com grande brilho.

A cidade tinha uma aparência sonolenta. Alguns quantos homens e mulheres an-davam a pé entre os silenciosos arranha–céus; estavam descuidadamente vestidos,alguns meio nus, e o impulso da pressa febril dos velhos tempos tinha desaparecido.De vez em quando um caminhão ou automóvel ronronava pela avenida; fora isso,deserta. Funcionava mediante um novo sistema de emissão de energia e a carênciade fumo e pó no ar fazia com que fosse quase que cruelmente brilhante. Havia algode domingo naquela manhã, embora fosse um dia de semana.

Os saltos de Sheila soavam fortemente na calçada. Este ruído de stacato a fazia vi-brar em meio à quietude. Mas só podia amortecê–lo diminuindo o passo e ela nãoqueria fazer isto. Não podia fazê–lo.

Um grupo de meninos, de uns dez anos, saiu de uma loja abandonada, na qual ti-nha estado brincando, e correu pela rua diante dela. Os músculos jovens ainda ti-nham que se exercitar, mas lhe causou tristeza que não estivessem gritando. Algu-mas vezes achava que os meninos era a coisa mais penosa de suportar. Já não eramcomo meninos.

Havia um longo caminho desde a estação até o Instituto e teria podido economizarenergia – para que? – pegando o Metrô.

Correu uma sombra ao longo da rua, como se arrojada por uma nuvem que viajas-se velozmente sobre sua cabeça. Alçando a vista, viu a longa e metálica forma quedesapareceu sem ruído por trás dos arranha–céus. Tinham vencido a gravidade? Queimportava? Cruzou com dois homens que estavam sentados no umbral de uma portae sua conversa chegou a ela flutuando na quietude. Um rápido gesticular com asmãos.

– Widersehen – suspirou.– Nada; macrocosmos, não–eu, entropia. Significado humano.Acelerou um pouco o passo. O edifício do Instituto parecia mais sórdido que os gi-

gantes da Quinta Avenida. Talvez fosse porque continuavam utilizando–o intensa-mente; não tinha a monumental dignidade da morte. Sheila entrou no vestíbulo. Nãohavia ninguém ali, somente um artefato enigmático de luzes piscantes e brilhantes

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tubos murmurava para si mesmo em um canto. Foi para o elevador, hesitou e se vol-tou para subir pelas escadas. Quem sabia o que teriam feito com o elevador? Talvezfosse totalmente automático; ou respondesse diretamente ao pensamento. Talvezhouvesse um cão encarregado dele.

No sétimo andar, respirando um pouco mais agitadamente, foi para o corredor.Pelo menos este não tinha mudado; aqui os homens tinham muitas coisas a fazer.Mas as antigas luzes fluorescentes tinham desaparecido e agora o próprio ar, ou seri-am as paredes – o teto e o chão? – eram luminosos. Era particularmente difícil calcu-lar as distâncias nesta radiante claridade sem sombras. Parou diante da porta do an-tigo laboratório de Pete, sentindo o terror na garganta. “Idiota – disse a si mesma –não vão te comer. Mas o que tinham feito ali dentro? Que estariam fazendo agora?”Fazendo um esforço, bateu à porta. Houve uma hesitação claramente perceptível, elogo:

– Entre.Ela girou a maçaneta da porta e entrou. O aposento mal havia mudado. Esta era

talvez a coisa mais difícil de compreender. Alguns dos aparelhos estavam em um can-to, empoeirados e descuidados, e ela não conhecia os novos objetos que tinham co-locado e que ocupavam três mesas. Mas sempre tinha sido assim quando visitavaseu marido antigamente. Um apinhamento de aparelhos que sua ignorância simples-mente desconhecia. Era sempre o mesmo grande aposento, as janelas abertas paraum céu de um azul desapiedadamente brilhante e a distante perspectiva dos molhese dos armazéns; uma camisa rasgada pendia da parede com manchas e havia no arum leve cheiro de ozônio e borracha. Continuavam ali os manuseados livros de con-sulta de Pete, sobre sua mesa, seu acendedor de cigarros, um modelo de mesa queela tinha lhe dado de presente no Natal – oh! como estava distante – que perdia odourado pouco a pouco ao lado de um cinzeiro vazio. A cadeira estava um poucoafastada para trás, como se ele tivesse saído por um momento e fosse voltar de uminstante para outro.

Grunewald levantou os olhos do que estava fazendo, piscando à maneira dos mío-pes, como ela lembrava que ele costumava fazer, mas parecia cansado e mais pesa-do das costas do que antes. Mas seu rosto quadrado e loiro era o mesmo. Um jovemmoreno, que ela não conhecia, o ajudava.

Ele fez um gesto desajeitado. (“Caramba, a senhora Corinth. É um prazer inespera-do. Entre”.)

O outro resmungou e Grunewald fez um gesto para ele:– (Apresento-lhe) Jim Manzelli – disse. – (Está me ajudando agora. Jem, lhe apre-

sento) a senhora Corinth (esposa do meu antigo chefe).Manzelli fez uma reverência. Brevemente: (“Encantado em conhecê–la.”). Tinha os

olhos de um fanático.Grunewald olhou–a mais de perto e ela viu o que o rosto dele expressava: “Como

ficou magra”. Há algo obsessivo em torno dele e suas mãos nunca ficam quietas.Compaixão. “Pobre mulher, foi duro para você, não foi? Todos nós sentimos faltadele.” Cortesia convencional: (Espero que se recupere.) Doente?

Sheila assentiu.– (Onde está) Johansson? – perguntou. O laboratório não parecia o mesmo sem

seu rosto comprido e sombrio…. e sem Pete.– (Foi ajudar na) África, acho (Uma tarefa colossal diante de nós, grande demais,

súbita demais)

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(Cruel demais.)Gestos de assentimento: (Sim.) O olhar de Manzelli: (interrogação.) Os olhos dele

pousaram em Sheila com uma intensidade exploradora. Ela estremeceu e Grunewalddirigiu ao seu companheiro de trabalho um olhar de reprovação.

– (Cheguei.) De Long Island hoje.Amargura no sorriso dela; Sheila tinha–se feito mais dura; um sinal de assentimen-

to. (“Sim, ao que parece, acham que não há inconveniente em deixar que eu saiaagora. Enfim, não têm meios de me obrigar e têm muito o que fazer para se preocu-parem comigo.”)

– (Queria.) Ver (este) lugar (mais uma vez, só por um instante. Ele encerra tantodos velhos tempos….)

Repentina imploração dela:– Ele está morto, não está?Piedoso encolher de ombros: – (Não podemos saber. Mas a nave se atrasou por meses e somente um desastre

pode tê–la detido. Pode ter se metido no Campo Inibidor mais adiante no espaço eapesar das precauções tomadas.)

Sheila o rodeou caminhando devagar. Foi até a mesa de Pete e acariciou o encostoda cadeira.

Grunewald pigarreou.– (Vai) Deixar a civilização?Ela assentiu com um gesto, sem responder. (“É grande demais para mim, muito

fria e estranha.”)– (Ainda há) Trabalho a fazer – disse ele.Ela balançou a cabeça. (“Para mim não. Não é um trabalho que eu deseje e que

compreenda.”) Pegando o acendedor de mesa, deixou–o cair no bolso, sorrindo umpouco.

Grunewald e Manzelli trocaram um olhar. Desta vez Manzelli fez um gesto de as-sentimento.

– (Estamos) Fazendo um trabalho (aqui que pode interessá–la) – disse Grunewald(“Lhe dará esperança, e a fará acreditar de novo no amanhã.”)

Os olhos castanhos que se voltaram para ele quase não o focavam. Achou que orosto dela estava branco como papel, repuxado sobre os ossos; e que um certo artis-ta chinês havia desenhado a pluma o fino traçado das suas veias sobre suas têmpo-ras e mãos. Ele tentou explicar, desajeitado.

A natureza do campo inibidor tinha sido mais amplamente esclarecida depois danave estelar partir. Já anteriormente tinha sido possível gerar o campo artificial e es-tudar seus efeitos; mas agora Grunewald e Manzelli tinham empreendido juntos oplano de criar o mesmo em grande escala. Não seria preciso muitos aparelhos – al-gumas toneladas deles, talvez. – E assim que o campo fosse instalado, utilizando umdesintegrador nuclear para fornecer a força necessária, a energia solar seria suficien-te para mantê–lo funcionando.

O plano era extraoficial; agora que as primeiras pressas da necessidade haviampassado, aqueles cientistas que quisessem tinham liberdade para trabalhar no quequisessem e os materiais eram obtidos sem dificuldade. Havia uma pequena organi-zação que ajuda a encontrar o que se precisava; tudo quanto Grunewald e Manzellifaziam agora no Instituto eram ensaios; a verdadeira construção era feita em outraparte. Seu trabalho parecia inofensivo a qualquer outro, e um pouco aborrecido,

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comparado ao que estava sendo tentado em outros ramos. Ninguém prestava aten-ção ou tentava averiguar o que havia sob as explicações públicas superficiais de Gru-newald.

Sheila olhou para ele vagamente e pensou nas regiões para as quais seu íntimo ti-nha ido.

– Por quê? – perguntou ela. – O que é isso que estão fazendo?Manzelli sorriu com aspereza. Estava tenso.– (Mas não está claro? Nos propomos a) Construir uma estação especial orbital (e

colocá–la em órbita a várias milhas sobre a superfície). Geradores de um campo emgrane escala. (Voltaremos à humanidade dos) Velhos tempos.

Sheila não gritou, nem ficou boquiaberta, nem sequer riu. Somente assentiu, comum gesto de cabeça, como se aquilo fosse uma imagem borrada e sem significado.

(“Sair da realidade…. Você é sensata?”) perguntaram os olhos de Grunewald.(“De que realidade?”), disse ela, com um lampejo.Manzelli encolheu os ombros. Sabia que Sheila não podia dizer a ninguém, lia em

seu rosto, e isso era o que importava. Se não lhe produzia a excitação de prazer queGrunewald havia esperado, não era assunto seu.

Sheila foi andando para um lado do aposento. A coleção de aparelhos que havia aliparecia toda do tipo médico. Viu a mesa com as correias, o armário com as agulhashipodérmicas e as ampolas das injeções, a máquina agachada e negra junto à cabe-ceira da cama.

– O que é isto? – perguntou.O tom com que disse isso devia tê–los feito compreender que ela já sabia, mas es-

tavam imersos em suas próprias preocupações.– Tratamento de eletrochoque modificado – disse Grunewald.Explicou que nas primeiras semanas da mudança houve uma tentativa de estudar

o aspecto funcional da inteligência mediante a destruição do córtex cerebral em ani-mais e a medição dos seus efeitos. Mas isso logo foi abandonado como desumanodemais e relativamente inútil.

– Achei que sabia (o que se referia a isto) – concluiu. – (Foi) nos setores de biolo-gia e psicologia onde Pete (ele ainda estava aqui). Lembro que ele protestou energi-camente (contra isto. Não se queixou) a você (sobre isto também?)

Sheila assentiu imprecisamente.– A mudança (tornou) os homens cruéis – disse Manzelli. – (E) agora não são (por

mais tempo. Se transformaram em alguma coisa diferente do homem e esse intelectodesarraigado fez com que perdessem seus velhos sonhos e amores. Precisamos rees-tabelecer a humanidade).

Sheila se afastou da feia máquina negra.– Adeus – disse.– Eu…. quero…. – Grunewald olhou para o chão – continuar em contato com você

(Faça–nos saber onde está. Assim, se Pete voltar….)O sorriso dela foi tão remoto quanto a morte. (“Não voltará nunca. E agora,

adeus.”)Transpôs a porta e seguiu pelo corredor. Junto à escada havia a porta de um lava-

bo. Não tinha aviso de “Cavalheiros” nem de “Senhoras”, pois até no Ocidente se ha-via superado esse puritanismo, então ela entrou e se olhou no espelho. O rosto queviu estava abatido e o cabelo caía escorrido, sem graça, sobre seus ombros. Tentouarrumá–lo, sem se dar conta do que fazia, e depois desceu a escada para o primeiro

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andar.A porta do escritório da direção estava aberta, deixando passar uma brisa que vi-

nha dos vitrais da entrada do edifício. Dentro havia máquinas silenciosas que prova-velmente fariam o trabalho de um amplo grupo de secretários. Sheila cruzou as salasexternas e bateu à porta aberta de um escritório interno.

Helga Arnulfsen, sentada em sua mesa, levantou a vista. Ela também havia ema-grecido um pouco, percebeu Sheila, e tinha os olhos escuros. Mas mesmo estandomais descuidadamente vestida do que costumava, tinha uma aparência firme e eraatraente de se ver. Sua voz, que sempre tinha sido rouca, ergueu–se um pouco sur-presa:

– Sheila!– Como vai?– Entre (entre, sente–se. Faz muito tempo que não a vejo.)Helga, sorrindo, se levantou da mesa e pegou na mão da sua amiga. Os dedos

desta estavam gelados. Apertou um botão e a porta se fechou.– (Agora podemos falar à vontade) – disse – (Este é o sinal de que não devem me

interromper.) – aproximou uma cadeira para Sheila e ela se sentou cruzando as per-nas de forma varonil. – Que bom (vê–la. Espero que esteja bem). ("Mas não parece,pobrezinha.”)

– Eu…. – Sheila entrelaçou as mãos e soltou–as de novo, procurando no bolso quetinha no regaço. – Eu…. (Por que vim?) Os olhos disseram: (“Por causa de Pete.”)Um gesto de assentimento: (“Sim, sim, deve ser isso. Às vezes não sei por que….Mas ambas o amávamos, não é verdade?”)

– Você – disse Helga, com voz inexpressiva – era a única que ele queria (“E Você omaltratava. Seus sofrimentos eram uma dor para ele.”)

“Eu sei. Isto é o pior.” (E além disso):– Já não era o mesmo – disse Sheila. (“Tinha mudado demais, como todo mundo.

Mesmo se o segurasse, ele escapava de mim; o tempo o arrastava.”) – Eu o perdi an-tes que morresse.

– Não. Você o tinha, sempre o teve – Helga encolheu os ombros. – Bem, a vida se-gue (em uma modalidade amputada. Comemos, respiramos dormimos e trabalhamosporque não podemos fazer outra coisa).

– Você é forte – disse Sheila (“Você suportou o que eu não consegui suportar.”)– Ah, eu continuo andando – respondeu Helga.– Você ainda tem um amanhã.– Sim, acho que tenho.Sheila sorriu, com um tremor nos lábios (“Eu sou mais afortunada que você. Tenho

o ontem.”)– Eles podem voltar – disse Helga (“Não se sabe o que possa ter–lhes acontecido.

Você não tem a coragem de esperar?”)– Não – disse Sheila. – Seus corpos poderão voltar (mas não Pete. Ele mudou de-

mais e não posso mudar com ele. Nem tampouco quero ser um peso morto paraele).

Helga segurou no braço de Sheila. Como estava magra! Podia sentir os ossos sob apele.

– Espere – disse. – Terapia (está progredindo. Pode levá–la mais para adiante)Normalmente (em um prazo de, digamos) alguns anos mais.

– Não acredito.

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Havia um traço de desdém, levemente velado, nos frios olhos azuis. “Não quer vi-ver para o futuro? Deseja realmente ter paz lá em baixo?”

– Que outra coisa (posso fazer) a não ser esperar? A menos que o suicídio…. Não,isso tampouco. (Ainda há montanhas, vales profundos, rios resplandecentes, só, luae as altas estrelas invernais.) Me adaptarei.

– (Estive em contato com ele. ) Kearnes, parece crer (que você) se adianta.– Ah, sim! (Aprendi a dissimular. Há olhos demais neste mundo novo.) Mas não

vim falar de mim, Helga. (Vim somente dizer) Adeus.– Para onde vai? (Tenho que estar em contato com você para o caso dele voltar.)– Escreverei (para você saber).– Ou dê a mensagem a um Sensitivo. (O sistema postal estava antiquado;)“Isso também? Lembro do velho senhor Barneveldt, andando trabalhosamente

pela rua com seu uniforme azul, quando eu era uma menina. Costumava levar umaguloseima para me dar.”

– Olhe, estou faminta – disse Helga. (Por que não vamos almoçar?)(“Não, obrigada. Não estou com vontade.”) Sheila se levantou.– Adeus, Helga.– Adeus não, Sheila; nos veremos de novo e então você já estará bem.– Sim – disse ela. – Estarei perfeitamente bem, Mas adeus.Saiu do escritório e do edifício. Agora havia mais transeuntes e ela se misturou a

eles. Um portal que havia no outro lado da rua lhe ofereceu um lugar onde se ocul-tar. Não tinha sensação alguma de despedida total. Dentro dela havia um vazio,como se a dor, a solidão e o assombro tivessem se devorado a si mesmos. De vezem quando alguns dos fantasmas esvoaçava por sua mente, mas já não eram aterra-dores. Quase se compadeceu deles. Pobres espectros, logo morreriam. Viu Helga saire caminhar sozinha pela rua para algum lugar, onde engoliria algum almoço solitárioantes de voltar ao trabalho. Sheila sorriu, balançando um pouco a cabeça. “PobreHelga, tão eficiente!”

Depois Grunewald e Manzelli saíram e seguiram o mesmo caminho, absortos naconversa. O coração de Sheila deu um salto. As palmas das suas mãos estavam friase úmidas. Esperou até que os dois homens se perdessem de vista, cruzou a rua ou-tra vez e entrou no Instituto.

Os saltos do seu sapata ressoavam fortemente na escada. Respirou profundamen-te, tentando se tranquilizar. Quanto chegou ao sétimo andar, ficou esperando por ummomento para recobrar o controle de si mesma. Depois correu para o vestíbulo dolaboratório de física. A porta estava entreaberta. Hesitou de novo, olhando a máqui-na sem terminar que havia dentro. Grunewald não tinha lhe falado sobre um certoplano fantástico de….? Pouco importava, não funcionaria. Ele e Manzelli, aquele pe-queno bando de reincidentes, estavam loucos.

“Estou louca?”, se perguntou. Se fosse assim, havia nela uma força singular. Preci-sava de mais resolução para o que ia fazer do que para colocar o cano de um revól-ver na boca e apertar o gatilho.

A máquina de choque jazia como um animal couraçado junto à mesa. Trabalhoucom rapidez, acoplando–a. A lembrança de Pete, aborrecido antigamente por seuemprego, tinha voltado a ela na casa de saúde; e Kearnes lhe havia dado de boavontade todos os textos que lhe pediu, encantado por ela ter encontrado uma coisapor que se interessar. Sorriu de novo. Pobre Kearnes! Como havia enganado ele.

A máquina zumbiu, esquentando. Tirou um pacotinho do bolso e o desenrolou.

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Uma seringa de injeção, agulha, frasco de anestésico, pasta de eletrodos, corda paraatar o comutador de modo que pudesse puxá–lo com os dentes. E um regulador detempo para o comutador também. Devia calcular o tempo justo que precisava. Tinhaque estar inconsciente quando o processo terminasse. Talvez não funcionasse. Eramuito possível que seus miolos simplesmente fritassem dentro do crânio. Que impor-tava? Olhou sorrindo para a janela quando se injetava. Adeus sol; adeus azul do céu;nuvens, chuva, canções no ar de aves que retornam. Adeus e obrigada.

Tirando a roupa, se estendeu na mesa e amarrou os eletrodos nos lugares corres-pondentes. Sentia–os frios contra a pele. Algumas das correias eram fáceis de amar-rar, mas o braço direito…. bem, tinha vindo preparada e colocou um longo cinturãoque passava sob a mesa, sobre o braço, e que tinha um fecho que conseguiu acio-nar. Agora estava imobilizada.

Seu olhar escurecia à medida que a droga fazia efeito. Era bom dormir.Agora um puxãozinho com os dentes.TROVÃO, FOGO E TREVAS ESTREMECEDORASRUÍNA, HORROR E RELÂMPAGOSDOR, DOR, DOR.

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– Atenção, Terra! Pete Corinth chamando a Terra da nave estelar em viagem de re-gresso.

Zumbidos e murmúrios cósmicos de interferência, a conversa das estrelas. A Terra,um lampejo azul destacando–se contra noite; sua lua, uma pérola pendendo no seioda galáxia; o sol, grinalda de chamas.

– Atenção, Terra! Responda, responda. Não consegue me ouvir, Terra?Click, click, zzzz, mmmm; vozes através do céu.“Alô, Sheila”O planeta aumentou de tamanho diante deles. O propulsor da nave ronronava e

retumbava e cada chapa do casco vibrava com o enérgico impulso; havia um enlou-quecido e belo cantar dos vidros e do metal. Corinth se deu conta de que tambémestava tremendo, mas não queria se reprimir; não nesse instante.

– Atenção, Terra! – repetia monotonamente no rádio.Iam a uma velocidade maior que a da luz e seus sinais tateavam cegamente diante

neles na escuridão.– Atenção, Terra! Estão me ouvindo? Aqui é a nave estelar 1, chamando do espaço

em sua viagem de retorno.Lewis resmungou algo, que queria dizer: “Talvez não utilizem mais o rádio desde a

nossa partida. São tantos meses….”Corinth balançou a cabeça:– Estou certo de que terão uma rádio escuta de alguma espécie no microfone.

Atenção, Terra!; responda, Terra! Não há ninguém na Terra que me ouça?– Se algum inexperiente…. algum menino de cinco anos, ouvisse na Rússia, na Ín-

dia ou na África, teria que dar o aviso a um transmissor que chegasse até nós e issoleva tempo. Fique tranquilo, Pete.

– Questão de tempo! – Corinth voltou ao assento. – Acho que tem razão. De qual-quer forma, dentro de algumas horas ensaiaremos uma aterrizagem no planeta. De-sejaria que estivessem preparando uma verdadeira recepção.

– Uma dúzia de ostras de Limfjord em sua meia concha, com suco de limão – disseLewis, com ar sonhador, falando com todas as palavras. – Vinho do Rin, claro, diga-mos…. safra de trinta e sete. Camarões tenros com maionese recém feita, pão fran-cês e manteiga fresca. Enguia defumada com ovos mexidos e pão moreno. E não es-queçamos da cebolinha….

Corinth riu entredentes, embora metade do seu pensamento estivesse em outraparte, absorto em Sheila, sozinho com ela em algum lugar ensolarado. Era grato eestranhamente confortador estar ali trocando frases vulgares, mesmo que estas fos-sem simplesmente um pouco mais que uma palavra ou uma troca de impressões.Durante toda a longa viagem de regresso estiveram discutindo como deuses ébrios,explorando a fundo seus intelectos; mas aquele tinha sido um meio de se escudarem

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contra a quietude tenebrosa que pasmava. Agora regressavam ao fogo do lar huma-no.

– Alô, nave estelar 1!Voltaram–se violentamente para o receptor. A voz que saía do aparelho era apaga-

da, borrada, por causa dos ruídos do sol e das estrelas, mas humana. Era a pátria.– Caramba! – murmurou Lewis sorrindo. – E tem o sotaque do Brooklin!– Alô, nave estelar 1, aqui Nova Iorque falando. Estão me ouvindo?– Sim – disse Corinth, com a garganta seca. E esperou que esta palavra desse um

salto de milhões de milhas.– Estamos há muitíssimo tempo querendo nos comunicar – disse a voz em tom de

conversação, depois que o tempo de espera se extinguiu na escuridão lamurienta….– Temos que levar em conta o efeito Doppler…. Devem estar vindo disparados. Suascalças pegaram fogo ou algo do tipo? – não mencionou o gênio da engenharia quetinha tornado possível a comunicação; agora era uma tarefa secundária. – Mas eu osfelicito. Está tudo bem?

– Perfeitamente – disse Lewis. – Tivemos algumas contrariedades, mas voltamospara casa inteiros e esperamos ser recebidos como corresponde – hesitou um instan-te antes de dizer: – Como está a Terra?

– Bastante bem, mas aposto que não vão reconhecer o lugar. As coisas estão mu-dando tão depressa, que na verdade é consolador ouvir outra vez falar no velho ebom americano. Provavelmente será a última vez que fazemos isto. Mas que diabosaconteceu?

– Explicaremos depois – disse Corinth, concisamente. – Como estão nossos cole-gas?

– Muito bem, suponho. Sou somente um técnico de Brookhaven, sabe? Não estouinteirado. Mas eu comunicarei a eles. Suponho que aterrizarão aqui.

– Sim, dentro de…. – Corinth fez um cálculo rápido que implicava a solução de umbom número de equações diferenciais – seis horas.

– Muito bem, nós…. – a voz desapareceu. Só entenderam mais outra palavra: –….faixa…. – e depois só restou o silêncio.

– Alô, Nova Iorque. Perderam a faixa – disse Corinth.– Deixe pra lá – aconselhou Lewis. – Desligue o interruptor. Por que não?– Mas….– Esperamos tanto tempo que bem podemos esperar mais seis horas. Não vale a

pena ficar com essas baboseiras.– Hum…. bem…. – Corinth vociferou: – Alô, Nova Iorque; Alô, Terra. Aqui a nave

estelar 1 se despedindo. Câmbio final.– Queria falar com Sheila – acrescentou.– Terá tempo de sobra para fazê–lo, rapaz – replicou Lewis. – Acho que agora de-

veríamos fazer algumas observações sobre a impulsão. Ficou com um tom vibranteque deve significar alguma coisa. Ninguém operou tão intensamente como nós esta-mos fazendo e deve haver efeitos cumulativos….

– Talvez a fadiga do vidro – disse Corinth. – Muito bem, você ganhou – e absor-veu–se com seus instrumentos.

A Terra ia aumentando de tamanho diante deles. Depois de ter atravessado anos–luz em horas, voltavam agora ao seu local de partida, claudicando a somente cente-nas de quilômetros por segundo; até suas novas reações não eram suficientementerápidas para lidar com velocidades superiores à da luz perto do planeta. Mas prova-

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velmente esta seria a última nave estelar tão limitada – pensou Corinth. – Dada afantástica proporção do avanço tecnológico depois da mudança, a próxima nave seriaum sonho de perfeição. Como se os irmãos Wright tivessem construído um aviãotransatlântico em seu segundo modelo de teste. Pensou que não viveria o suficientepara ver a engenharia levada a uma espécia de culminância, alcançando os limitesimpostos pela lei natural. Depois disso o homem teria que procurar um novo campopara as aventuras do intelecto; e achou ter intuído qual seria esse campo. Olhoupara encantador planeta que crescia com uma espécie de ternura.

A meia lua se transformou em um disco desigual e nebuloso, à medida que foramgirando para o lado diurno. Logo, subitamente, já não estava diante deles e sim abai-xo e ouviram o agudo chiado do ar sendo fendido. Planaram sobre a vastidão do Pa-cífico à luz da lua, frearam e desceram por cima da Serra Nevada. A América estavaaos seus pés, enorme, verde e formosa; uma terra fortemente contornada, atravésdo qual o Mississípi era um fio de prata. Depois tomaram a vertical e os altos edifí-cios de Manhattan ergueram–se, destacando–se contra o mar.

O coração de Corinth palpitava agitado em seu peito. “Tenha calma – se dizia ele.– Tenha calma e espere. Agora temos tempo.” Conduziu a nave para Brookhaven,onde o campo de aterrizagem espacial era como uma navalhada cinza, e ali viu outraflecha brilhante no estaleiro. Já tinham começado a construção da próxima nave.Houve um pequeno choque e a quilha resvalou sobre a pista. Lewis estendeu a mãoe parou os motores. Quando estes pararam, os ouvidos de Corinth ressoaram com orepentino silêncio. Não tinha se dado conta em que medida aquele incessante redo-brar era uma parte dele mesmo.

– Vamos!Havia se levantado do assento e tinha cruzado a estreita cabine antes que Lewis

se movesse. Seus dedos tremeram enquanto percorriam o complicado modelo de fe-chadura eletrônica. A porta interna se abriu deslizando suavemente e a externa tam-bém se abriu. Recolheu uma golfada do ar salino que soprava do mar.

“Sheila! Onde está Sheila?” Desceu as escadas cambaleando, destacando sua si-lhueta escura contra o metal do casco. Estava amassado, raiado com curiosas amos-tras de cristalizações, resultado de tão longa e estranha viagem. Ao tocar o solo, he-sitou e caiu, mas se pôs de pé de novo antes que alguém viesse em seu auxílio.

– Sheila! – exclamou.Felix Mandelbaum se adiantou, estendendo–lhe as mãos. Parecia muito envelheci-

do e cansado, consumido pelo esforço. Tomou as mãos de Corinth nas suas, mas nãofalou.

– Onde está Sheila? – sussurrou Corinth. – Onde está?Mandelbaum balançou a cabeça. Lewis estava descendo agora, mas cautelosamen-

te. Rossman foi ao encontro dele, desviando–se da vista de Corinth. Os outros o se-guiram – eram pessoas de Brookhaven, não amizades íntimas, – mas olharam para ooutro lado.

Corinth tentou engolir saliva, mas não conseguiu.– Morta? – perguntou.O vento murmurava em torno dele, revolvendo–lhe os cabelos.– Não – disse Mandelbaum. – Nem tampouco louca; mas…. – balançou a cabeça e

seu rosto aquilino se contraiu. – Não.Corinth respirou tão forte que seus pulmões estremeceram. Ao olhar para ele, to-

dos notaram seu desfalecimento. Estava contendo as lágrimas.

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– Continue – disse. – Conte–me.– Foi coisa de seis semanas atrás – disse Mandelbaum. – Suponho que ela não

conseguiu resistir mais. Conseguiu se apossar da máquina de eletrochoque e….Corinth fez um lento movimento de cabeça e terminou a frase:– E destruiu o cérebro.– Não, não foi isso, mesmo quando esteve em contato e funcionou por um certo

tempo – Mandelbaum pegou no braço do físico. – Digamos desta forma: é a Sheilade antes, a de antes da mudança... quase.

Corinth percebeu confusamente como era fresco e vivaz o vento do mar em suasnarinas.

– Vamos, Pete – disse Mandelbaum. – Eu lhe levarei para onde ela está.Corinth saiu do campo guiado por ele.O psiquiatra Kearnes foi ao seu encontro em Bellavue. Seu rosto era como madei-

ra, mas não havia nele a sensação de estar envergonhado nem havia em Corinthacusação alguma. Fizera o quanto pôde com os conhecimentos inadequados de quedispunha e fracassou; era um fato e mais nada.

– Ela me enganou – disse. – Achava que estava ficando boa. Não me dei conta dogrande domínio que podem ter, depois da mudança, até as pessoas que não estãocordatas. E acho que tampouco compreendi como era duro para ela continuar viven-do. Nenhum dos que suportaram a mudança compreenderá o pesadelo que deve tersido para aqueles que não puderam se adaptar.

“Negras asas que se agitam, e Sheila só. Cai a noite, e Sheila só.”– Ela estava completamente louca quando fez isso? Perguntou Corinth. Sua voz ca-

recia de expressão.– Mas o que é a sensatez? Talvez ela tenha feito a coisa mais sensata. Valia a pena

esse tipo de existência diante da distante perspectiva de ser curada quando apren-dêssemos a fazê–lo?

– Quais foram os efeitos?– Foi uma coisa feita desajeitadamente, como é natural. Vários ossos se quebra-

ram com as convulsões e ele teria morrido se não tivesse sido encontrada a tempo –Kearnes colocou uma mão nas costas de Corinth. – O volume real do tecido cerebraldestruído foi pequeno, mas, naturalmente, na zona mais crítica.

– Félix me disse que…. que ela está se recuperando bem.– Ah, sim! – Kearnes deu um sorriso torcido, como se tivesse na boca um gosto

amargo. – Não é difícil para nós compreender a psicologia humana anterior à mu-dança…. agora. Eu utilizei o acesso inventado por Gravenstein e por de la Garde de-pois da mudança: tratamento de revalorização simbólica, de neurologia cibernética ede coordenação somática. Há tecido sadio suficiente para se encarregar das funçõesda parte atingida, com uma guia adequada, uma vez que a psicose tenha desapare-cida. Creio que poderá ter alta dentro de uns três meses.

Respirou com força e acrescentou:– Será um ser humano normal e sadio de antes da mudança, com um QI de uns

cento e cinquenta.– Compreendo – Corinth assentiu. – Bem, quais serão as possibilidades de restau-

rar o que foi atingido nela?– No melhor dos casos, precisará de anos para poder recriar o tecido nervoso. Este

não se regenera, como sabe, nem mesmo com estímulo artificial. Teremos que criara própria vida sinteticamente e percorrer um bilhão de anos de evolução para desen-

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volver a célula do cérebro humano e reproduzir o gene preciso do tipo do paciente; eainda assim…. tenho dúvidas.

– Pode visitá–la durante um breve instante. Dissemos a ela que você está vivo.– O que ela fez quando soube?– Chorou muito, naturalmente. É um sintoma saudável. Você pode permanecer por

no máximo uma hora, porque senão vai excitá–la demais.Kearnes lhe deu o número do quarto e voltou ao seu gabinete.Corinth tomou o elevador e percorreu um longo e silencioso corredor que cheirava

a rosas recém-regadas. Quando chegou ao quarto de Sheila, a porta estava entrea-berta e ele hesitou um pouco, olhando para dentro. Era como as frondes de um bos-que, com abetos e outras árvores e o leve trinar de pássaros nos ninhos, em algumlugar caía uma catarata e o ar tinha o aroma estimulante de terra e de verdura. Issoera, em grande parte, ilusório, pensou, mas isso proporcionava alívio a ela….

Entrou e se inclinou sobre a cama que estava sob um salgueiro queimado pelo sol.– Como está, querida? – perguntou.O mais estranho de tudo era que ela não tinha mudado. Estava como na época em

que se casaram, jovem e loira, com o cabelo suavemente rizado caindo sobre o ros-to, mas pálido, com seus grandes olhos muito brilhantes ao voltar–se para ele. A ca-misola branca – uma roupa felpuda do seu próprio guarda–roupa – fazia ela se pare-cer quase com uma menina.

– Pete – disse.Ele se inclinou para beijá–la muito carinhosamente. Mas a reação dela foi um tanto

distante, quase como a de uma desconhecida. Quando suas mãos lhe acariciaram orosto, ele notou que a aliança havia desaparecido.

– Você está vivo – falava ela, com uma espécie de assombro – Voltou.– Para você, Sheila – disse ele, sentando–se ao seu lado.Mas ela balançou a cabeça.– Não – respondeu.– Eu te amo – exclamou ele, em seu desamparo.– Eu também lhe amava – a voz dela era tranquila, distante, e ele viu em seus

olhos o sonho, – por isso eu fiz isto.Ele permaneceu se reprimindo, esforçando–se para conservar a calma. Em sua ca-

beça havia uma tempestade.– Não lembro muito bem de você – disse ela. – Acho que minha memória foi dani-

ficada. Tudo me parece passado, distante, e você é como um sonho que amei – sor-riu. – Como está magro, Pete! E como endureceu. Todo mundo ficou assim.

– Não – disse ele. – Todos lhe estimam.– Mas não é o tipo de estima de antes. O que eu conhecia. E você já não é mais

Pete – se endireitou, elevando um pouco o tom de voz. – Pete morreu na mudança.Eu o vi morrer. Você é um homem bondoso e me faz mal lhe olhar, mas não é Pete.

– Acalme–se, querida – disse ele.– Não posso continuar com você – insistiu ela – e não queria dar a você, ou a mim

mesma, esta carga. Agora eu voltei e você não imagina como é maravilhoso. Solidão,mas maravilhoso. Aqui há paz.

– Eu ainda preciso de você – disse ele.– Não, não minta para mim. Está vendo que não é necessário – Sheila sorriu atra-

vés de um milhar de anos. – Você pode estar aí sentado com seu rosto inteiramentegelado…. Não, você não é Pete. Mas eu gosto de você.

Traduzido por Espinhudo

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Ele soube então do que ela necessitava, mas não se conteve mais, cedendo à suavontade e abandonando–se ao seu desejo. Chorou ajoelhado junto à cama e ela oconsolou o melhor que pôde.

Traduzido por Espinhudo

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20

Há uma ilha no meio do Pacífico que não está distante do equador, mas sim domundo dos homens. As rotas dos antigos barcos e as últimas linhas aéreas transoce-ânicas seguem rumos que estão além do horizonte; e o atol ficou à mercê do sol, dovento e do piar das gaivotas. Durante um breve período tinha conhecido a raça hu-mana. A lenta e cega paciência dos pólipos de coral o haviam formado e dias e noi-tes tinham convertido sua áspera e úmida superfície em terra fértil. As sementes dasplantas tinham vindo voando em uma longa viagem para encontrá–la. Alguns cocosforam arrastados pelas ondas e agora eram árvores. Ali permaneceram por centenasde anos, talvez, até que chegou uma canoa do limite do mundo.

Eram polinésios, homens morenos e altos cuja raça tinha vagado longe em buscade Hawaki a bela. Eram habituados ao sol e ao sal marinho e poucos lhes importavaatravessar mil milhas desertas usando somente as estrelas e as grandes correntesmarítimas como guia e seus próprios braços para remar. Tohilia, hoha, itoki, itoki. De-pois de terem arrastado seus barcos para a margem e oferecido sacrifício a Nan, dedentes de tubarão, entrelaçaram flores de hibiscos em seus longos cabelos e dança-ram na praia; porque estiveram explorando a ilha e a tinham–na achado facilmentehabitável.

Depois se foram, mas no ano seguinte – ou no outro, ou no ano depois do outro,pois o oceano era enorme e o tempo eterno – voltaram com outros e trouxeram por-cos e mulheres. Naquela noite as fogueiras arderam altas na praia. Depois foi ergui-do um povoado de choças com tetos de ramagem e os meninos nus se revolviam nasespumas das ondas e os pescadores iam além da laguna com muitos risos. E isto du-rou uma ou duas centenas de anos, até que chegaram os homens pálidos.

Suas grandes canoas de velas brancas se detiveram somente algumas vezes nailha, que não era importante, mas descarregaram nela, inconscientemente, sua cos-tumeira carga de varíola, sarampo e tuberculose, que aniquilaram quase todas aspessoas morenas. Depois de algum tempo, com a ajuda do sangue caucasiano, secriou uma certa resistência e foi o tempo dos plantadores de copra, da religião, daMãe Hubbards e das conferências internacionais para determinar se aquele atol, den-tre outros, pertencia a Londres, a Paris, a Berlim ou a Washington, grandes aldeiasdo outro lado do mundo.

Um dia ficou finalmente decidido, incluindo a copra, a cristandade, o tabaco e ocomércio das goletas. A população da ilha, então uma mescla de várias raças, estavabastante satisfeita, mesmo padecendo de muita dor de dente; quando um dos jovensdali, que com muita dificuldade tinha conseguido estudar na América, voltou e se pôsa suspirar pelos velhos tempos, as pessoas riram dele. Tinham somente uma vagarecordação daquela época; recordação transmitida através de uma série de missioná-rios interessados.

Depois, alguém em um escritório do outro lado do mundo decidiu que precisava

Traduzido por Espinhudo

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daquela ilha. Deve ter sido para uma base naval, ou como estação experimental; oshomens pálidos tinham tantas guerras e investiam todo seu esforço preparando–as.Ninguém se preocupou por muito tempo sobre por que tinham desejado o atol, poishoje ninguém o habita; e para as gaivotas isso pouco importa. Os nativos foramtransferidos para outro lugar e transcorreram alguns anos em calma, arando sua ter-ra. Mas ninguém prestou a menor atenção a isso, pois a ilha era necessária para sal-vaguardar a liberdade do homem; e depois de algum tempo, a geração mais velha seextinguiu e a geração mais jovem esqueceu. Entretanto, os homens brancos, pertur-bando um pouco as gaivotas, ergueram edificações e encheram as lagunas de bar-cos.

Depois, por alguma razão desconhecida, a ilha foi abandonada. Deve ter sido porcausa de algum tratado, depois de uma derrota na guerra ou de uma catástrofe eco-nômica. O vento, a chuva e as vinhas trepadeiras nunca tinham sido derrotadas esim contidas, nada mais. Agora elas começaram a tarefa da demolição.

Durante algumas centúrias os homens haviam alterado o ritmo natural, a duraçãodos dias e das noites, a chuva, o sol, a estrelas e os furacões; mas agora eles tinhamvoltado. O frio que vinha das correntes submarinas profundas roçou lentamente osalicerces, mas havia muitos pólipos e ainda houve construções. A ilha ainda durariavários milhares de anos, assim não havia pressa para nada. Durante o dia os peixessaltavam nas águas e as gaivotas revoluteavam sobre elas, e as árvores e os bambúscresciam com uma pressa fanática; durante a noite a lua era fria no fluxo das ondasque quebravam e uma estrela fosforescente redemoinhava por trás dos grandes tu-barões que patrulhavam as águas exteriores. Ali tudo era paz.

O propulsor aéreo murmurou, saindo das trevas, sob as altas e brilhantes estrelas.Os dedos invisíveis do radar tatearam a terra e uma voz murmurou em uma onda:

– Para baixo…. aqui…. muito bem, devagar.O propulsor logo ficou imóvel em uma clareira e dele saíram dois homens. Estes

foram recebidos por outras, sombras indistintas na noite orvalhada de lua. Um delesfalou em um australiano seco e fanhoso:

– Doutor Grunewald, doutor Manzelli, me permitam apresentar-lhes o major Ro-sovsky…. Sri Ramavashtar…. o senhor Hwang Pu–Yi….

Continuou com a lista. Eram aproximadamente uma dúzia, os presentes, incluindoos dois americanos. Há algum tempo teria sido estranho aquele grupo, e até impossí-vel: um oficial russo, um místico indú, um filósofo francês, escritor religioso; um po-lítico irlandês, um comissário chinês, um engenheiro australiano, um financista sue-co; como se toda a terra tivesse se reunido para uma insurreição silenciosa. Nenhumdeles era agora o que tinham sido, e o denominador comum era um anelo por algu-ma coisa perdida.

– Eu trouxe os aparelhos de controle – disse Grunewald com vivacidade. – E sobreo material pesado?

– Está todo aqui. Podemos partir a qualquer momento – disse o irlandês.Grunewald olhou para o relógio.– Faltam algumas horas para a meia–noite – disse em voz alta. – Poderemos estar

preparados até lá?– Acho que sim – declarou o russo. – Está quase tudo reunido.Caminhando para a praia, apontou com um gesto para a avultada forma que se re-

cortava toscamente sobre o fundo da laguna branca de luz lunar. Ele e um dos cama-

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radas tinham conseguido o barco Trap há alguns meses e o haviam equipado comuma tal maquinaria que dois homens sozinhos poderiam governá–lo pelo mundotodo. Essa tinha sido sua participação na tarefa; não muito difícil para homens deci-didos em meio à confusão de uma civilização moribunda. Tinham navegado peloBáltico, recolhido parte da sua carga na Suécia, e também tinham tocado na França,na Itália, no Egito e na Índia, em sua viagem ao ponto de destino combinado.

Durante alguns dias o trabalho de montagem da nave espacial e sua carga progre-diu rapidamente.

As ondas rugiam e retumbavam, com um estrondo pleno e profundo que tremiaaos os pés e se lançava esbranquiçado para as constelações. O coral e a areia eramtriturados sob as botas; as palmas e os bambus sussurravam secamente com o ventoe os papagaios, perturbados, faziam alvoroço na escuridão. Mas além deste ruído la-tente, só havia o silêncio e o sonho. Ao longe, as ruínas de alguns velhos quarteis sedesmoronavam no sudário das plantas trepadeiras.

Grunewald sentiu o olor das flores e a densa umidade da madeira apodrecida; eraalgo tão penetrante que o fazia perder a cabeça. No outro lado das ruínas havia al-gumas tendas, recém-montadas e, acima delas, dominando–as, erguia–se a nave es-pacial. Era algo preciso e belo, como uma pilastra de gelo cinzento sob a lua, empostura de equilíbrio com as estrelas. Grunewald a contemplou com uma curiosa mis-tura de sentimentos; tenso orgulho pela satisfação da vitória; compreensão angustia-da da sua beleza adorável; pleno conhecimento de que logo já não poderia entendera lógica transcendente que tinha tornado possível seu plano e construção. Olhoupara Manzelli:

– Eu o invejo, amigo – disse simplesmente.Vários homens iam lançá–la ao espaço, colocá–la em órbita e fazer o trabalho final

de ligar o gerador de campo que a nave carregava. Depois esses homens morreriam,pois não houvera tempo de preparar os meios para o seu retorno. Grunewald sentiao tempo como se fosse um galgo em seus calcanhares. Logo a próxima nave estelarestaria pronta; e já se tinha construído outras em todas as partes. Esta noite, a últi-ma esperança da humanidade – da humanidade humana – estava a ponto de se rea-lizar; se falhasse, não haveria outra chance.

– Acho – disse – que todo mundo chorará de satisfação antes do nascer do sol.– Não – disse o australiano, com senso prático. – Ficarão mais loucos que um ni-

nho de vespas. É preciso dar–lhes tempo até que se deem conta de que estão sal-vos.

Bem, haveria tempo. A nave espacial estava equipada com defesas superiores àcapacidade do homem anterior à mudança, as quais não poderiam ser vencidas emmenos de um século. Seus robôs destruiriam qualquer outra nave espacial ou projétilque fosse enviado da Terra. O homem, a totalidade da raça humana viva, teria aoportunidade de prender a respiração e de se lembrar dos seus primeiros amores; edepois disso não quereriam atacar a nave espacial.

Os outros tinham descarregado o propulsor vindo da América e levado a carga de-licada para seu lugar. Agora tinha colocado os cestos no chão e Grunewald e Manzellicomeçaram a abir–los cuidadosamente.

Alguém acendeu um foco e sob seu forte brilho esbranquiçado esqueceram a lua eo mar ao redor. Tampouco perceberam a longa e silenciosa forma que deslizou sobresuas cabeças e que ficou ali pendendo como um tubarão que navegasse pelo firma-mento, vigiando. Somente quando aquilo lhes falou, levantaram a vista para lá. A voz

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do amplificador fora amável, quase com uma nota sentimental:– Sentimos desapontá–los, mas já fizeram bastante.Olhando firmemente para cima, Grunewald viu o brilho acerado no alto e seu cora-

ção se agitou fortemente no peito. O russo puxou a pistola e disparou, os tiros soan-do lamentavelmente fúteis sob o golpe compassado das ondas. Houve um chiar dasaves despertadas e suas asas bateram ruidosamente entre as palmeiras sussurran-tes.Manzelli pra guejou, girou sobre os calcanhares e se meteu rapidamente na naveespacial. Nela havia canhões que poderiam derrubar a ameaça que pesava sobreeles. Grunewald, que ia mergulhar para se proteger, viu que no flanco da nave umatorreta girava para apontar para o céu. Atirou–se de barriga pra baixo. Aquele ca-nhão podia disparar granadas atômicas! Do inimigo, que pairava sobre eles, brotouum raio flamejante de uma intensidade que cegava. A boca do canhão se dobrou, in-candescida ao vermelho branco. O fino dedo escreveu a destruição em um flanco danave espacial até alcançar os cones da sua impulsão gravitacional. Ali ficou agindodurante alguns minutos e o calor do aço derretido chamuscou o rosto dos homens.

“Uma gigantesca tocha de hidrogênio atômico – a mente de Grunewald estavadeslumbrada. – Agora já não podemos partir….”

Lentamente, as próprias paredes da nave espacial inutilizada começaram a ficarvermelhas. O sueco gritou ao tirar uma aliança que tinha em um dedo. Manzelli,cambaleando, saiu da nave chorando. O campo de força se extinguia e as máquinascomeçaram a esfriar de novo; e também havia alguma coisa morta nos homens queestavam esperando. Só se escutavam os profundos soluços de Manzelli.

O artefato inimigo – era uma nave estelar, como agora se podia ver – permaneceuonde estava e uma pequena balsa antigravidade saiu flutuando do seu ventre e desli-zou para a terra. Sobre ela havia vários homens em pé e uma mulher. Nenhum dosimplicados na intriga se moveram enquanto a balsa entrava em contado com o solo.

Grunewald deu um passo até eles e se deteve com os ombros caídos.– Félix – disse com voz apagada. – Pete, Helga.Mandelbaum assentiu com um gesto. O único refletor aceso lançava uma dura

sombra negra em seu rosto. Esperou na balsa, enquanto três homens muito fornidos,que tinham sido detetives no mundo de antes, foram se meter entre os conspirado-res e recolheram as armas de fogo que estes tinham jogado fora, por estarem quen-tes demais para segurarem. Depois Mandelbaum se reuniu com a Polícia em terra eCorinth e Helga os seguiram.

– Sem dúvida não contavam com isto – disse o dirigente. Sua voz não era exultan-te e sim cansada. Balançou a cabeça. – Como veem, os Observadores vinham vigian-do seu lamentavelmente pobre projeto quase desde o começo. Seu próprio segredoos denunciou.

– Então por que deixaram que chegasse tão longe? – perguntou o australiano. Suavoz estava sufocada pela cólera.

– Em parte para mantê–los longe de diabruras piores e assim poder localizá–los –disse Mandelbaum. – Esperamos até que compreendemos que já estavam dispostosa partir e então agimos.

– Isso é maldade – disse o francês. – É esta a espécie de sangue frio que cresceudesde a mudança. Suponho que para vocês agora o inteligente será fuzilar–nos.

– Por quê? – disse Mandelbaum amavelmente – A realidade é que usamos umamortizador a reação juntamente com o campo derretedor de metais, somente paraimpedir que seus cartuchos disparassem e lhes causassem dano. Depois de tudo, te-

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mos que interrogá–los para saber quem mais os respaldam. E além disso, todos vo-cês têm uma cabeça boa e muita energia e coragem; toda uma grande valia em po-tencial. Não é culpa de vocês se a mudança os tornou loucos.

– Loucos? – o russo cuspiu e se refez com um esforço estremecedor – Está noschamando de loucos!

– Bem – disse Mandelbaum, – se a ilusão de que umas poucas pessoas têm direitoa tomar decisões para toda a raça e impor a eles não é megalomania, o que é então?Se realmente têm uma causa, devem apresentá–la diante do mundo o quanto antespossível.

– O mundo está cego – disse o indú com dignidade. – Já não consegue ver a ver-dade. Eu mesmo perdi o fraco vislumbre do essencial que tive em outros tempos, epelo menos sei que está perdido.

– O que quer dizer – respondeu friamente Mandelbaum – é que sua mente se tor-nou poderosa demais para que você possa entrar nessa espécie de transe que é suapeculiar fetalização; mas ainda sente a necessidade daquilo.

O indú encolheu os ombros com desprezo.Grunewald olhou para Corinth.– Achei que era meu amigo, Pete – murmurou. – E depois do que a mudança fez

com sua esposa, supus que poderia compreender….– Não teve nada a ver com isso – disse Helga, adiantando–se um pouco e pegando

Corinth pelo braço. – Fui eu quem apontou com o dedo, Grunewald. Pete vem estanoite conosco, como físico, para examinar seus aparelhos e salvá–los para algumpropósito útil. “Terapia ocupacional…. Ai, Pete, você foi ferido de tal modo”.

Corinth balançou a cabeça e falou com a aspereza e o tom de uma irritação estra-nha à sua natural afabilidade.

– Não é preciso encontrar desculpas para mim. Eu teria feito isso se soubesse oque planejavam. Porque, o que seria de Sheila se o velho mundo voltasse outra vez?

– Vocês se curarão – disse Mandelbaum. – Seus casos não são de loucura violentae creio que a nova técnica terapêutica permitirá curá–los muito em breve.

– Preferiria que me matassem – disse o australiano.Manzelli ainda chorava. Os soluços rasgavam como garras.– Mas vocês não compreendem? – perguntou o francês – Todas as vitórias que o

homem conseguiu no passado vão ficar em nada? Antes sequer de encontraremDeus, vão convertê–lo em um conto para as crianças? O que vão dar ao homem emcompensação pelos esplendores da sua arte, das criações das suas mãos e dos pe-quenos prazeres consoladores quando sua jornada de trabalho foi cumprida? Lhestransformaram em uma máquina calculadora e o corpo e a alma podem murchar emmeio às suas novas equações.

Mandelbaum encolheu os ombros.– A mudança não foi ideia minha – disse. – Se você crê em Deus, então isto pare-

cerá mais uma obra das suas mãos, seu caminho para dar o próximo passo adiante.– Para diante do ponto de vista intelectual – disse o francês. – Para um professor

flatulento e míope será sem dúvida um progresso.– Tenho a aparência de professor? – resmungou Mandelbaum. – Eu estava rebitan-

do aço quando você lia seus primeiros livros sobre a beleza da natureza. Um bandode imbecis estava pisoteando minha cara quando você estava escrevendo sobre opecado do orgulho e da briga. Você ama o trabalhador, mas não consegue convidá–lo para sua mesa. Como poderia fazê–lo? Quando o pequeno Jean Pierre, que era um

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estudante do sacerdócio antes da guerra, foi pego fazendo trabalho de espionagem anosso favor, resistiu durante vinte e quatro horas a tudo quando os alemães puderamfazer a ele e nos deu, ademais, a chance de escapar. Entretanto, segundo me lem-bro, você estava a salvo nos Estados Unidos escrevendo propaganda. Sacerdote ju-das, por que não tenta colocar em prática essas coisas sobre as quais está tão dis-posto a teorizar?

A fadiga o abandonou ao excitar–se com o velho deleite da luta. Sua própria vozde alçou em um tom duro de ferro, como marteladas sobre o ferro.

– A dificuldade que existe em todos vocês se baseia em que, de uma forma ou deoutra, têm medo de enfrentar a vida. Em vez de tentar construir o futuro, vêm dese-jando o retorno de um passado que já está a um milhão de anos atrás. Perderamsuas velhas ilusões e não conseguiram o que é preciso para criar outras novas e me-lhores.

– Incluindo a ilusão americana do progresso – soltou o chinês.– Quem falou nisso? Isso também está esquecido, como ferro–velho antiquado;

outra palavra sem sentido nascida da estupidez, da cobiça e da presunção. Semdúvida, todo nosso passado nos foi arrancado. É uma terrível sensação, a de ficar nue solitário. Mas não acha que o homem pode alcançar um novo equilíbrio? Não achaque poderemos construir uma nova cultura, com toda sua própria beleza, deleite esonhos, agora que quebramos todos os velhos casulos de seda? E acha que os ho-mens, homens com energia e esperança, todas as raças do mundo, querem voltaratrás? Eu lhe digo que não. O mero fato de terem tentando isso clandestinamente,demonstra que sabiam disso que falei. O que oferecia o velho mundo a noventa porcento da raça humana? Fadiga, ignorância, doença, guerra, opressão, necessidade,temor, desde o berço fétido até a tumba miserável. Se tivesse nascido em paísesafortunados, podia encher a barriga e talvez ter alguns quantos brilhantes brinque-dos para se distrair, mas não havia esperança para ninguém, nem visão, nem finali-dade. O fato de que uma civilização após outra acabaram em ruínas, mostra que nãoéramos adequados a elas: que somos selvagens por natureza. Agora temos a oportu-nidade de sair da roda da história e ir a algum lugar…. ninguém sabe para onde, nin-guém pode adivinhar; mas nossos olhos se abriram e ninguém quer fechá–los outravez.

Mandelbaum se calou subitamente, suspirou e se voltou para seus detetives.– Levem–nos, rapazes – disse.Os conspiradores foram instados a subir na balsa…. gentilmente; não tinha neces-

sidade de ser áspero nem maligno. Mandelbaum ficou olhando até que a balsa seelevou para a nave estelar. Depois se voltou para a longa forma metálica em terra.

– Que coisa mais heroica! – murmurou, balançando a cabeça. – Fútil, mas heroica.São homens bons e espero que não seja preciso muito tempo para curá–los.

O riso de Corinth era um pouco torcido.– Claro, nós temos toda a razão – disse.Mandelbaum riu entredentes.– Desculpe pela conferência – replicou. – São velhos hábitos muito fortemente ar-

raigados; um fato tem que levar sua etiqueta moral. Bem, nós, a raça humana, deve-mos nos sobrepor a isso muito breve.

O físico se mostrou precavido:– Temos que ter algum tipo de moralidade – disse.– Sem dúvida. Como temos que ter motivos para fazer qualquer coisa. Entretanto,

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creio que estamos acima dessa espécie de código antiquado que as cruzadas procla-maram, que queimou hereges e lançou os que discordaram aos campos de concen-tração. Precisamos de uma honradez íntima e menos pública.

Mandelbaum bocejou então e estirou seu forte e flexível corpo até o ponto em queparecia que seus ossos iam se quebrar.

– Uma longa viagem e ao fim nem sequer uma decente batalha a tiros – disse. Abalsa ia descendo de novo, automaticamente. – Vou dormir um pouco. Pela manhã jápoderemos examinar essa bagunça. Você vem?

– Agora precisamente, não – disse Corinth. – Estou cansado demais (Quero pen-sar). Vou andando até a praia.

– Muito bem – Mandelbaum sorriu com um curioso gesto de ternura nos lábios. –Boa noite.

– Boa noite.Corinth se voltou e saiu da clareira. Helga foi se colocar silenciosamente ao seu

lado. Saíram da selva e permaneceram em pé sobre a areia, que era como uma gea-da sob a lua. Além do recife, as brilhantes ondas se quebravam e o oceano estavaturvo e colorido com o frio brilho da fosforescência. Os grandes astros estavam auma altura imensa sobre suas cabeças, mas o firmamento noturno era como vidro.Corinth sentiu em seu rosto o vento marinho, vivo e salobro, úmido com os milharesde milhas marítimas que tinha atravessado. Atrás dele, a selva se agitava, murmura-va, e a areia chiava fracamente sob seus pés. Percebia tudo isso com uma clarezainusitada, como se tivesse sido dissecado de tudo que era ele e só fosse um receptá-culo de imagens.

Olhou para Helga, que estava em pé, agarrada em seu braço. O rosto dela se per-filava claramente contra a escuridão distante e seu cabelo, que havia se soltado,brincava livremente com o vento, branco à irreal claridade lunar derramada. As som-bras dos dois se fundiram em uma, longa e azulada, através da areia brilhante. Podiasentir o ritmo da respiração dela quando Helga se apoiava contra ele. Não precisa-vam falar. Entre eles havia nascido uma grande compreensão e compartilhamento demuitas horas de trabalho e vigília. Ficaram em silêncio por um instante. O mar lhesfalava, um gigantesco pulsar de ondas que se quebravam com estrépito ao se choca-rem contra o recife e se precipitavam ao retroceder mar adentro. O vento assobiavae murmurava sob o céu.

Gravitação (sol, lua, estrelas, a tremenda unidade que é o espaço–tempo) Forçade rotação (o planeta girando e girando, em sua marcha através das milhas e dosanos (Fricção fluida, os oceanos triturando, redemoinhando, rugindo entre os estrei-tos, espumando e trovoando sobre as rochas) Diferencial de temperatura (a luz dosol como cálida garoa, o gelo e a escuridão, as nuvens, a névoa, o vento e a tormen-ta) Vulcanismo (o fogo profundo no ventre do planeta, deslizamentos e inimagináveismassas rochosas, fogo e lava, o surgir de novas montanhas são neve em seus om-bros) Reação química (a turgidez da terra negra, o ar empobrecido criando a vida no-vamente, as rochas vermelhas, azuis e ocres, a vida, os sonhos, a morte e o renasci-mento e todas as brilhantes esperanças). Igualdades. Este é nosso mundo e, repare,é muito belo. Não obstante, havia fadiga e desolação no nome e ao cabo de um ins-tante voltou buscando consolo, como se a mulher fora ele.

– Fácil – disse, e esta palavra e a tonalidade da sua voz queria dizer: (Foi fácil de-mais para nós e para eles. Esses homens tinham um espírito sacrossanto. Deviam terterminado de outro modo. Com fogo e fúria, cólera, destruição e o invencível orgulho

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do homem contra os deuses.)– Não – replicou ela. – Assim é melhor, quieta, tranquilamente. (Misericórdia e

compreensão. Já não somos animais selvagens para mostrar nossos dentes ao desti-no.) “Sim. Este é o futuro. Esquecer todas as antigas glórias.”

– Mas qual é o nosso amanhã? – perguntou ele. (Nós permanecemos com o nau-frágio do mundo aos nossos pés, olhando dentro de um universo vazio que temosque preencher com nós mesmo. Não há ninguém que nos ajude.)

– Pelo menos há um destino (Deus, fado, coragem humana.) – disse ela.– Talvez haja – murmurou ele. – Conscientemente ou não, o universo foi posto em

nossas mãos.Ela se esquivou de contestar o que pensava, compreendendo que ele teria que

reunir a coragem necessária para interpretá–la. (Temos o direito de recolher esteuniverso? De fazermos–nos nós próprios guardiões de planetas? Isso seria melhorque o plano de Grunewald, que a cegueira da casualidade, que a crueldade sem sen-tido do azar, que as extravagâncias da sua pobre cabeça demente?)

– Não estaríamos, desta forma, em condições de forjarmos nosso destino? – disseela. – Devemos ser guias invisíveis, desconhecidos, guardiões da liberdade, não im-plantadores de uma vontade arbitrária. Quando nossa civilização for construída, esteserá o único trabalho digno de suas mãos.

“Ah, o mais glorioso dos destinos! Por que hei de me sentir tão triste esta noite?Entretanto, há lágrimas em meus olhos.”

Ela disse o que tinha que dizer:– Sheila teve alta há poucos dias. “Choro por ti, meu amado, na escuridão.” – Sim

– corroborou com um gesto. – Vejo claramente. (Saiu correndo como uma menina.Mantinha suas mãos no alto, ao sol, e ria.)

– Ela encontrou sua própria resposta. Você ainda tem que encontrar a sua.A mente dele se inquietava pelo passado, como um cão por um osso.– Ela não sabia que eu a estava observando. “Era uma manhã fria e clara. Uma fo-

lha vermelha de bordo revoluteava e ficou enredada em seus cabelos. Costumava co-locar flores neles porque sabia que eu gostava”. – Eu já tinha começado a esquecer.

– Você disse a Kearnes que a ajudasse a esquecer – disse ela. – Isto é a coisamais valente que jamais fez. É preciso coragem para ser bondoso. Mas agora vocêsuficientemente forte para ser bondoso consigo mesmo?

– Não – replicou ele. – Não quero deixar de amá–la. Sinto muito, Helga.– Sheila será vigiada – disse ela. – Ela não saberá, mas os observadores guiarão

suas andanças. Há uma colônia de retardados mentais que promete muito: Angustia,ao norte da cidade. Nós estivemos ajudando esta colônia sem que soubessem. Seudirigente é um bom homem; um homem forte e bondoso. O sangue de Sheila seráuma levedura em sua raça.

Ele não disse nada.– Pete – ela o incitou. – Agora você deve ajudar a você próprio.– Não – disse ele. – Mas você pode mudar também, Helga. Você também pode ir

para longe de mim.– Não; sei que você precisa de mim, que se aferra cegamente a mim como a um

símbolo morto – replicou ela. Pete, agra é você quem tem medo de afrontar a vida.Houve um longo silêncio; somente o mar e o vento tinham voz. A luz caía. Seu bri-

lho enchia suas pupilas e o homem voltou o rosto para a lua. Depois estremeceu eergueu os ombros.

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– Me ajude – disse, tomando as mãos dela. – Eu não conseguiria continuar sozi-nho. Me ajude, Helga. “Não há palavras. Não pode haver nunca palavras pra isso.”

Suas mentes se encontraram, flutuaram juntas, atadas pela necessidade e, de umaforma nova para o mundo, uniram suas forças e se sentiram livres do passado.

“Para amar, honrar e se acariciarem até que a morte nos separe.”Era uma velha história, pensou ela, enquanto escutava o estrondo marinho. É a

mais velha e maravilhosa história da Terra, assim tinha direito a uma antiga lingua-gem. O mar e as estrelas….. Ah! Havia até uma lua cheia.

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21

Outono outra vez e o inverno se anuncia. As folhas caídas jazem em montes sobas árvores negras, desnudas, e sussurram e rangem pelo chão ao mais leve vento.Só umas poucas salpicaduras de cor restam no bosque amarelo, bronzeado ou escar-late contra o cinza. No alto, os patos selvagens passam em grandes bandos rumo aoSul. Este ano há mais vida nos céus; menos caçadores, supõe Brock. A gritaria dis-tante vai se distanciando, transbordante da vagabunda solidão. O céu era de um azulpálido, o sol girava brilhante, mas sem calor, derramando sua luz clara sobre umaterra larga e vazia. O vento, forte, castigava suas bochechas e agitava suas roupas.As árvores, alvoroçadas, se queixavam ruidosamente.

Veio devagar da casa principal, pisando com suas botas a grama murcha. Joe o se-guia silencioso, junto aos seus calcanhares. Em um latejar em vão, vinha o martelarde uma chapa de ferro; Mehitabel e Mac estavam fabricando seu gasogênio para car-vão vegetal (aquele trabalho lhes era muito divertido), pois as reservas de gasolinaeram escassas. Algumas das pessoas dali tinham ido à cidade e outras dormiam a si-esta do domingo. Brock estava sozinho. Pensou que podia se deter e conversar comMehitabel. Mas não, tinha que deixar que ela trabalhasse sem inquietá–la; além detudo, sua conversa era bastante limitada. Decidiu dar um passeio pelo bosque; já erauma hora avançada da tarde e o dia era bom demais para ficar em casa.

Ela saiu de uma das casinhas e lhe sorriu.– Olá – disse.– Olá – replicou ele. – Como vai?– Muito bem – respondeu ela. – Quer entrar? Agora não tem ninguém aqui.– Não, obrigado – disse ele. – Tenho…. bem, tenho que ver como está uma cerca.– Posso ir com você? – perguntou ela timidamente.– Será melhor que você não venha – opinou ele. – Você sabe, os porcos ainda po-

dem estar por aí.Os olhos azuis de Ella Mae ficaram úmidos de lágrimas e ela agachou a cabeça,

atormentada.– Você nunca para, para falar comigo – censurou.– Farei isso quando tiver uma oportunidade – disse ele apressadamente. – Agora

estou muito ocupado. Você sabe como estão as coisas – e escapuliu o mais rápidoque pôde.

“Tenho que procurar um marido para ela – refletiu. – Deve haver muitas como ela,ainda errando perdidas. Não posso ficar com ela atrás de mim desse jeito; é muitopenoso para os dois.”

Riu forçadamente. Mandar trazia muitas dificuldades e poucas recompensas. Eleera um caudilho, um executor, um maestro, um médico, um padre confessor…. eagora um casamenteiro! Inclinou–se para acariciar a cabeça de Joe com sua mãorude. O cão lambeu sua mão e balançou a cauda alegremente. Há ocasiões em que

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um homem pode chegar a ficar terrivelmente só. Nem sequer um amigo como Joepode encher de todo o vazio. Neste dia de vento e de luz viva e de folhas revolutean-do, um dia de despedida, quando toda a terra parecia estar desfazendo sua mansãode verão para partir por algum caminho desconhecido, sentiu sua solidão como umador dentro de si.

“Agora não devo pensar mais nisso”, censurou a si mesmo.– Vamos, Joe, vamos dar um passeio.O cachorro adotou uma atitude tensa e encantadora, olhando para o céu. Os olhos

de Brock o seguiram. O lampejo do metal era tão brilhante que causava danos à vis-ta.

“Uma aeronave…. um artefato aéreo de alguma espécia. E vai aterrizar!”Permaneceu com os punhos cerrados nos quadris, sentindo o frescor do vento na

pele e ouvindo como assobiava entra a ramagem que havia por trás. Em seu peito ocoração parecia absurdamente grande e estremeceu sob a pesada jaqueta, sentindoas palmas das mãos úmidas.

“Vai com calma – se disse. – Leva isso serenamente e com calma. Muito bem, éum Deles. Não vai te morder. Até agora ninguém te causou dano nem se meteu con-tigo.”

Silenciosamente, como uma folha que cai, a nave aterrizou ali perto. Era um ovoi-de pequeno com uma graça harmoniosa em suas linhas limpas e curvas e não havianele nenhum aparelho de propulsão que Brock pudesse ver. Dirigiu-se para a navecom um andar lento e rígido. O revólver saliente em sua cintura o fazia se sentir ridí-culo, como se tivesse sido surpreendido com um disfarce infantil. De repente sentiuum rebrotar de amargura. “Que Eles nos aceitem como somos. Que o diabo me levese vou aparentar outros modos por causa de uns condenados turistas domingueiros.”

O costado do aparelho brilhou com um suave resplendor e um homem passouatravés dele. “Através dele!”. Mas a primeira reação que Brock experimentou foi dedesilusão: tão extremamente vulgar parecia aquele homem. Era de uma altura mé-dia, de uma robustez que estava se transformando em gordura, de rosto nada distin-to, e vestia roupa esportiva de tweed. Ao se aproximar de Brock, o homem sorriu.

– Como vai?– Bem, e você?Brock se deteve mexendo os pés e olhando para o chão. Joe, notando a intranqui-

lidade do seu amo, rosnou baixo.O estranho lhe estendeu a mão.– Eu me chamo Lewis, Nat Lewis, de Nova Iorque. Espero que desculpe minha in-

tromissão. Fui mandado por Rossman. Ele não está bem ou teria vindo pessoalmen-te.

Brock apertou a mão dele, um pouco tranquilizado ao ouvir o nome de Rossman. Ovelho sempre tinha sido um homem decente e os modos de Lewis eram corteses.Brock se viu forçado a olhá–lo nos olhos e dar seu nome.

– Sim, eu o reconheci pela descrição que Rossman me deu – disse Lewis. – Eleestá muito interessando no que as pessoas estão fazendo aqui. Mas não se preocu-pe, ele não tem a intenção de recuperar sua propriedade; trata–se somente de curio-sidade amistosa. Eu trabalho no Instituto e, francamente, eu também tinha curiosi-dade, então vim comprovar da parte dele.

Brock decidiu que Lewis lhe agradava. O homem falava bastante devagar; deviaestar fazendo um esforço enorme para retornar à antiga forma de falar, mas não ha-

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via nada de protetor em seus modos.– Segundo o que ouvi falar, você está fazendo suas tarefas admiravelmente – disse

Lewis.– Eu não sabia que você…. bem, que vocês…. - Brock se deteve, gaguejando.– Ah, sim! Enquanto resolvíamos nossas próprias dificuldades, pusemos os olhos

em você. Nossas dificuldades eram muitas, creia–me, e ainda são. Posso lhe oferecerum cigarro?

– Hum…. bem….Brock aceitou, porém não fumou. Não tinha vícios, mas se entregaria a algum– Obrigado.– Não é nenhum compromisso – disse Lewis rindo. – Pelo menos espero que não

seja.Acendeu outro cigarro para ele com um grosso acendedor que funcionava até com

o vento forte e ruidoso.– Sem dúvida, você terá observado que as cidades e os arredores foram evacua-

dos – disse, depois de dar um trago com satisfação.– Sim, faz alguns meses – replicou Brock. E com um certo receio, acrescentou: –

Tiramos de lá o que necessitávamos e não conseguíamos achar aqui.– Ah, Perfeito! Era este o propósito. Na verdade, se desejar pode se mudar para

qualquer uma dessas cidades. O comitê da colônia pensou que era melhor livrá–lo deuma vizinhança tão preocupante. As pessoas já não se preocupam com isso nestaetapa do seu desenvolvimento. Um lugar é tão bom quanto qualquer outro para eles– um gesto de ansiedade se desenhou no rosto de Lewis. – Perdemos uma coisa: aintimidade de dar nossos corações a um pequeno rincão de terra.

Essa confissão de fraqueza tranquilizou Brock. Achou que se tratava de algo deli-berado, mas mesmo assim.

– E todos os que vieram aqui para se reunirem com você foram frequentementeguiados. Virão outros, se você desejar. Creio que poderia utilizar mais ajudantes eeles, com certeza, encontrariam aqui um lar e segurança.

– É…. é muito amável da sua parte – disse Brock pausadamente.– Ah, não era grande coisa. Não creia que esteve protegido contra todo o perigo e

que todo seu trabalho foi lhe dado feito. Isso não foi assim nem nunca será. Nós….bem, de vez em quando pusemos no seu caminho alguma pequena oportunidade.Mas dependia de você servir–se dela.

– Compreendo.– Não podemos ajudá–lo senão desta maneira. Temos tarefas demais e somos

poucos para fazê–las. E nossos caminhos são muito diferentes, Brock. Pelo menospodemos apertar as mãos e dizer adeus.

Era um discurso estimulante e algo se derreteu nas entranhas de Brock e ele sor-riu. Não tinha percebido a perspectiva de ser pisoteado por uma impiedosa raça dedeuses e menos ainda se preocupado em passar seus dias como guardião de nin-guém. Lewis não falava com rodeios das suas diferenças, mas tinha um tom preten-sioso ao falar disso; no que ele disse não havia nada parecido a superioridade. Ti-nham passeado pelo terreno enquanto falavam. Lewis ouviu o martelar dentro da te-lheiro e olhou para Brock interrogativamente.

– Tenho um chimpanzé e um retardado mental que estão fazendo um gaseificadora fim de obter combustível para nossos motores – explicou Brock. Já não feria a nin-guém ao dizer “retardado mental”. É o dia que temos livres, mas eles insistiram em

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trabalhar, apesar disto.– Quantos você tem no total?– Ah, bem! Dez homens e seis mulheres, cuja idade oscila entre os quinze anos

e…. bem, acho que os sessenta anos para a mais velha. Além disso nasceram doismeninos. A mentalidade varia desde o imbecil ao retardado mental. Naturalmente, édifícil determinar onde acabam as pessoas e começam os animais. Os macacos eJoe, que aqui está, são na realidade mais inteligentes e úteis do que os imbecis – Joebalançou a cauda e se mostrou satisfeito. – Eu não faço distinções: cada um faz oque acha mais apropriado e todos recebem sua parte.

– É você quem manda aqui?– Acho que sim. Eles me procuram sempre para que eu os guie. Não sou o mais

inteligente de todos, mas nossos dois intelectuais são…. bem, ineficientes.Lewis assentiu com um gesto.– Acontece com frequência assim. A inteligência pura conta menos que a persona-

lidade, a força de caráter ou a simples capacidade de tomar decisões e se ater a elas– olhou fixamente para seu acompanhante, que era mais alto do que ele. – Você éum dirigente nato, sabia?

– Eu? Eu me arranjei com o que podia.– Bom – riu Lewis, – eu diria que isso é o essencial nos que comandam.Olhou em torno, para os edifícios, e para fora, para o longo horizonte.– É uma pequena e feliz comunidade que você criou – disse.– Não – respondeu Brock francamente. – Não é.Lewis olhou para ele franzindo as sobrancelhas, mas não disse nada.– Aqui estamos muito perto da realidade para as comodidades – disse Brock. –

Isso pode ser que venha depois, quando estivermos melhor acomodados; mas nestepreciso instante ainda é um trabalho duro se manter com vida. Tivemos que apren-der a afrontar alguns fatos inevitáveis, tais como alguns para os quais não somosformados, ou a necessidade de matar esses pobres animais….

Fez uma pausa ao notar que seus punhos haviam se cerrado e tentou tranquilizara si mesmo sorrindo.

– Está casado? – inquiriu Lewis. – Desculpe minha intromissão, mas tenho razõespara perguntar.

– Não. Não consegui encontrar nada conveniente aqui. Mas pouco importa. Há tra-balho de sobra demais para eu começar a pensar em travessuras.

– Compreendo….Lewis ficou calado por um instante. Tinham caminhado sem rumo até irem parar

no peneirador de grãos, onde uma tábua entre dois barris formava um assento pro-tegido do vento. Sentaram–se sem dizer uma palavra e deixaram o tempo correr ca-lados. Joe deitou aos seus pés, observando–os alerta com seus olhos castanhos.

Então Lewis apagou seu cigarro e voltou a falar. Olhava para a frente, sem fixarseu olhar em Brock, e sua voz soava um pouco adormecida, como se estivesse falan-do consigo mesmo.

– Vocês e seus animais fizeram aqui tudo ou mais do que as circunstâncias permi-tiam – disse. – E estas, até agora, não foram muito boas. Desejaria voltar aos velhostempos?

– Não, eu não – contestou Brock.– É o que acho. Aceitou esta realidade que lhe foi dada com todas suas infinitas

possibilidades e está fazendo com que lhe seja favorável. É o que o setor da minha

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raça está tentando fazer também, Brock, e talvez você consiga melhor do que nós.Não sei. Provavelmente não saberemos nunca, pois não viveremos para ver isto. Maseu quero lhe dizer uma coisa: eu estive fora, no espaço, entre as estrelas, e tambémhouve outras expedições. Descobrimos que a galáxia está transbordando de vida eque esta vida parece semelhante à que havia antes na Terra. Diversidade de formase civilizações, mas em lugar algum encontramos uma criatura como o homem. A mé-dia de QI em todo o universo não pode ser muito mais de cem. É muito cedo paradizer, mas temos razões para crer que é assim. E o que teremos que fazer, a chama-da humanidade normal com nossas estranhas faculdades? Onde encontraremos algoque possa ser um incentivo para nós, algo suficientemente grande para fazer–nossentir humildes e para nos oferecer uma tarefa com a qual possamos estar satisfei-tos? Creio que as estrelas são nossa resposta. Ah, não pretendo que tentemos come-çar um império galáctico. A conquista é uma ninharia que agora já deixamos de lado.Tampouco quero dar a entender que havemos de nos transformar em anjos guardi-ães de todos esses inumeráveis mundos para guiá–los e protegê–los, até que essasraças se tornem tão fracas que não possam se sustentar em pé. Não, nada disso.Nós criaremos nossa nova civilização e a espalharemos entre as estrelas. Ela terásuas próprias e íntimas finalidades, suas criações, lutas e esperanças…. O contornodo homem é, porém, primordialmente o homem. Creio que deve haver um propósitonessa civilização. Pela primeira vez o homem irá realmente a algum lugar; e eu creioque esta será uma finalidade inteiramente nova, abranger toda a vida, através de bi-lhões de anos, no universo alcançável. Acho que uma última harmonia pode ser con-seguida. Uma harmonia tal como ninguém pode hoje imaginar. Não seremos deusese nem sequer guias. Mas alguns de nós seremos doadores de oportunidades. Cuida-remos para que o mal não floresça com muita força e que a esperança e a oportuni-dade aconteçam quando mais necessitarem todos esses milhões de criaturas senten-ciadas que vivem, amam, lutam, riem, choram e morrem exatamente como o homemfez. Mas não, não personificaremos o Destino: talvez possamos ser a Sorte. E talvezaté possamos ser o Amor.

Então o homem sorriu para si mesmo, com um sorriso muito humano, de todassuas pretensões.

– Não importa. Estou falando demais. O ar do outono é como o vinho, segundo dizo velho refrão – voltou–se para Brock. – A coisa mais importante se estriba em quenós, os que são com eu, não vamos ficar na Terra.

Brock assentiu silencioso. A visão que tinha diante dele era grande demais parasurpreender

– Os que são como vocês não serão molestados – disse Lewis. – E logo, dentro dealguns poucos anos, quando as coisas estiverem prontas, desapareceremos no céu.A terra ficará para os seus e para os animais. E depois todos vocês ficarão completa-mente livres. Será problema seu, assim como dos outros gêneros de vida, forjar seupróprio destino. E se de vez em quando tiverem um pouco de sorte…. bem, issosempre aconteceu.

– Obrigado – foi como um sussurro na garganta de Brock.– Não agradeça a mim nem a ninguém. É simplesmente a lógica dos acontecimen-

tos obrando por si mesma. Mas eu desejo o bem a cada um de vocês.Lewis se levantou e começou a andar para sua aeronave.– Agora tenho que ir – fez uma pausa. – Não fui inteiramente sincero com você

quando vim. Não foi a curiosidade de Rossman que me trouxe aqui; ele teria conse-

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guido satisfazê–la perguntando ao comitê da colônia ou vindo ele mesmo. Eu queriaconhecê–lo pessoalmente porque…. bem, logo vai ter um novo membro em sua co-munidade.

Brock olhou para ele, pensativo. Lewis se deteve diante do seu aparelho.– É uma velha amiga minha – disse. – A história dela é bastante trágica. Ela pró-

pria contará quando lhe for conveniente. É uma boa mulher, uma mulher realmenteadmirável e nós, que a conhecemos, desejamos que seja feliz.

O metal resplandeceu diante dele. Deu a mão a Brock.– Adeus – disse, simplesmente, e entrou.Um instante depois a nave estava no alto. Brock ficou olhando até que desapare-

ceu. Quando voltou pra casa, sol estava baixo e o frio o afetou. Teriam que acendera lareira aquela noite. Poderiam abrir algumas das latas de cerveja restantes se vies-se algum novo membro e Jim tocaria violão enquanto todos cantavam. As cançõeseram toscas, pois não se podia esperar mais de pioneiros, mas nelas havia calor, afe-to constante e camaradagem.

Foi então que a viu entrar pela calçada interna da propriedade e seu coração bateucom força no peito. Não era alta, mas sua aparência parecia suave e forte sob suaspesadas roupas e seus cabelos bronzeados flutuavam ao redor do seu rosto jovem,amável, grato de se ver. Tinha um farnel nas costas e o so de muitos dias, por terandado pelos caminhos, havia colorido e tostado levemente seu rosto de grandesolhos. Ele ficou imóvel por um momento e logo começou a correr. Mas quando che-gou e se achou diante dela não encontrou palavras.

– Olá – disse ela timidamente.Ele cumprimentou–a com a cabeça, embaraçado. Não lhe ocorreu pensar que era

um homem de aparência robusta, não bonito, mas com algo que inspirava confiança.– Ouvi dizer que isto aqui é um refúgio – voltou ela a dizer.– Sim. Vem de muito longe?– De Nova Iorque.Estremeceu levemente a dizer isso e ele se perguntou o que teria acontecido ali.

Ou talvez fosse somente o frio. O vento soprava com força agora.– Eu me chamo Sheila – declarou.– Eu, Archie…. Archie Brock.A mão dela era firme dentro da mão dele. Não agia com temor e Brock compreen-

deu que, mesmo se não fosse tão inteligente quanto ele, tinha inteligência mais quesuficiente para enfrentar aquele mundo hibernal.

– Seja bem-vinda aqui. Sempre é um grande acontecimento quando chega alguémnovo. Mas vai achar estranho e todos temos que trabalhar firme.

– Não tenho medo de nada disso – replicou ela. Acho que já não posso me assus-tar com mais nada.

Ele pegou o farnel e começou a andar, voltando para a casa. O céu do ocaso esta-va ficando vermelho e ouro e de um verde frio e tênue.

– Tenho muito prazer em conhecê–la, senhorita. Como disse que se chamava?– Eu me chamo Sheila – replicou ela. – Simplesmente Sheila.Foram caminhando pela calçada, um a lado do outro, com o cachorro e o vento em

seus calcanhares, para a casa. Nela ficaram abrigados.

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