Povo Que Canta (Artigo)

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1 Povo que Canta Ciência e militância cultural em Michel Giacometti «No momento histórico em que a lenta desagregação da nossa velha cultura de tradição oral se processa em termos violentos – a industrialização necessária, as migrações internas e externas, as comunicações de massa, no seu conjunto, impelindo o nosso povo para um novo tipo de cultura, com características cosmopolitas – afigura- se-nos útil e necessário que, sem compromisso de qualquer espécie, recorramos a meios técnicos indispensáveis, como são os meios áudio-visuais, para enriquecer, no sentido de uma melhor objectividade, alguns documentos por nós recolhidos a partir de 1960». Dessa forma, Michel Giacometti define «o espírito e a orientação, assim como os limites do programa1 a que deu o título genérico de «Povo que Canta». Os documentários que integram «Povo que Canta», apresentam ao público fragmentos de inquéritos musicais conduzidos por Giacometti e realizados entre os anos de 1970 e 1972. Conforme é explicitamente assumido, «Povo que Canta» “vem completar, no estrito plano do registo filmado (…) as recolhas e os estudos iniciados desde 1960”. Mas evidencia-se no entanto uma dificuldade, senão mesmo uma contradição”, ao querer apresentar “em termos televisivos um programa que pretende constituir um arquivo para o estudo de documentos científicos, forçosamente despidos de todo e qualquer apriorismo2 . A série de documentários televisivos «Povo que Canta» almejava alcançar, na sequência de dez anos de intenso labor desenvolvido por Michel Giacometti, um propósito científico. A questão do reconhecimento da dimensão ou do carácter científico das pesquisas desenvolvidas por Giacometti tem estado sempre presente. Assim foi em 1960, no início do seu trabalho, quando vê recusado o apoio solicitado à Fundação Calouste Gulbenkian, ou após a sua morte, nas opiniões manifestas sobretudo por investigadores oriundos do meio académico, que “catalogam” o trabalho de Giacometti restritivamente como colector. Na formulação mais seriamente assumida por um desses investigadores [em Jorge Freitas Branco (1993), A Missão], a orientação científica do trabalho desenvolvido por Giacometti (e não necessariamente o seu valor enquanto produto) é globalmente posta em questão 3 . O conceito chave utilizado para esse questionamento é o de institucionalização enquanto critério de demarcação entre o que será e o que não será conhecimento científico. 1 Giacometti, Michel. Texto de apresentação do 1º programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa). 2 Giacometti, Michel. Texto de apresentação da segunda série do programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa). 3 Ao afirmar que “a sua linha de orientação [de Giacometti] não era a Ciência, pois a ela nunca esteve institucionalmente ligado”.

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Povo que Canta Ciência e militância cultural em Michel Giacometti

«No momento histórico em que a lenta desagregação da nossa velha cultura de tradição oral se processa em termos violentos – a industrialização necessária, as migrações internas e externas, as comunicações de massa, no seu conjunto, impelindo o nosso povo para um novo tipo de cultura, com características cosmopolitas – afigura-se-nos útil e necessário que, sem compromisso de qualquer espécie, recorramos a meios técnicos indispensáveis, como são os meios áudio-visuais, para enriquecer, no sentido de uma melhor objectividade, alguns documentos por nós recolhidos a partir de 1960». Dessa forma, Michel Giacometti define «o espírito e a orientação, assim como os limites do programa” 1 a que deu o título genérico de «Povo que Canta».

Os documentários que integram «Povo que Canta», apresentam ao público fragmentos de inquéritos musicais conduzidos por Giacometti e realizados entre os anos de 1970 e 1972. Conforme é explicitamente assumido, «Povo que Canta» “vem completar, no estrito plano do registo filmado (…) as recolhas e os estudos iniciados desde 1960”. Mas “evidencia-se no entanto uma dificuldade, senão mesmo uma contradição”, ao querer apresentar “em termos televisivos um programa que pretende constituir um arquivo para o estudo de documentos científicos, forçosamente despidos de todo e qualquer apriorismo” 2. A série de documentários televisivos «Povo que Canta» almejava alcançar, na sequência de dez anos de intenso labor desenvolvido por Michel Giacometti, um propósito científico.

A questão do reconhecimento da dimensão ou do carácter científico das pesquisas desenvolvidas por Giacometti tem estado sempre presente. Assim foi em 1960, no início do seu trabalho, quando vê recusado o apoio solicitado à Fundação Calouste Gulbenkian, ou após a sua morte, nas opiniões manifestas sobretudo por investigadores oriundos do meio académico, que “catalogam” o trabalho de Giacometti restritivamente como colector.

Na formulação mais seriamente assumida por um desses investigadores [em Jorge Freitas Branco (1993), A Missão], a orientação científica do trabalho desenvolvido por Giacometti (e não necessariamente o seu valor enquanto produto) é globalmente posta em questão3. O conceito chave utilizado para esse questionamento é o de institucionalização enquanto critério de demarcação entre o que será e o que não será conhecimento científico.

1 Giacometti, Michel. Texto de apresentação do 1º programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa). 2 Giacometti, Michel. Texto de apresentação da segunda série do programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa). 3 Ao afirmar que “a sua linha de orientação [de Giacometti] não era a Ciência, pois a ela nunca esteve institucionalmente ligado”.

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Mas, mesmo atendendo às dificuldades assinaladas por Giacometti no texto introdutório, já referido, da segunda série do programa «Povo que Canta», uma observação atenta do conteúdo dos mais de trinta documentários realizados permitem considerá-los também sob o ponto de vista da ciência institucionalizada4. A Giacometti reconhece-se uma perseverança e persistência singulares, qualidades também utilizadas como argumento para, contrapondo em dicotomia militância e ciência, lhe negar o reconhecimento científico5.

Todavia, analisando o percurso geográfico em que Giacometti desenvolveu a sua pesquisa ao longo de mais de duas décadas, verificam-se também traços de uma acção programada e concertada, acção em que se combinaram elementos caracterizadores de uma preocupação científica com uma postura militante, participativa e comprometida com a vida social e cultural do seu tempo. E a série televisiva «Povo que Canta» pode ser entendida também como expressão dessa postura.

Podemos relacionar a dicotomia estabelecida entre militância e ciência com o paradigma de “ciência moderna” questionado por Boaventura de Sousa Santos em Um Discurso sobre as Ciências, ao qual contrapõe um paradigma emergente (talvez mais apto a enquadrar a postura protagonizada por Giacometti enquanto pesquisador).

Segundo aquele autor, o “conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza / cultura (...), observador / observado, subjectivo / objectivo, colectivo / individual”.6 E Boaventura Santos acrescenta que “as nossas trajectórias de vida (...) e os valores, as crenças e os prejuízos que transportam são a prova íntima do nosso conhecimento, sem o qual as nossas investigações (...) constituiriam um emaranhado de diligências absurdas”.

Giacometti encontra Portugal num contexto histórico bem definido. É um tempo de militância cultural, onde, segundo Joaquim Pais de Brito, participam também “intelectuais e investigadores de distinta formação que, frequentemente em colaboração ou articulação interdisciplinar, vão ajudar a revelar e melhor conhecer aspectos decisivos para a compreensão da história social e cultural de um país também feito de diversidades”, “um movimento de busca e descoberta” do País, movimento em que «o trabalho de Giacometti (…) vem ocupar um lugar de uma extrema importância pelo que tem de revelação de um universo fundamental da identidade mais sensual e física da própria manifestação do canto e da música”, trabalho capaz de “restituir ou evocar a presença dos executantes já também enquanto indivíduos” 7.

4 Considerando, para o efeito, quatro normas essenciais de conduta no trabalho científico: “a partilha dos conhecimentos e das descobertas, tornando-os públicos”; “uma avaliação do trabalho segundo critérios impessoais e pré-estabelecidos”; “a canalização das motivações dos cientistas para o fim institucional da ciência, restringindo as motivações pessoais”; e a “não aceitação dogmática de qualquer teoria” (normas referidas por José Manuel Canavarro, em Ciência e Sociedade). 5 Ainda segundo Jorge Freitas Branco, “a sua persistência não era o produto de uma acção programada e concertada mas uma atitude pessoal de militância”. Em A Missão. Lisboa: Celta Editora (1993). 6 Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento (1996, 8ª Ed.). 7 Brito, Joaquim Pais. Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. Lisboa: IPM/MNE (1995). Este autor refere o caso de Rosa Ramalho, no âmbito das produções plásticas populares. Podemos acrescentar, no âmbito das expressões musicais, os nomes de Catarina “Chitas” e Francisco Domingues.

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«Povo que Canta», apresentando uma “versão por assim dizer, sintetizada, de uma realidade apreendida na sua totalidade”8, visa cumprir, assim como o «Cancioneiro Popular Português» e grande parte das edições discográficas produzidas por Giacometti (onde sobressaem os cinco volumes da «Antologia da Música Tradicional Portuguesa»), o critério mais amplo do paradigma emergente enunciado por Boaventura de Sousa Santos: “todo conhecimento científico visa constituir-se em senso comum”. Projecto em que ciência e militância cultural se unem, pondo o conhecimento “à disposição do homem como património comum”9. «Povo que Canta» é o resultado visível de quatro campanhas, realizadas nos anos de 1970 a 1972, onde foram prospectadas mais de sessenta e cinco localidades e recolhidos cerca de setecentos documentos10. A planificação de «Povo que Canta» demonstra o propósito de, através do conjunto de documentários que o constitui, expor, na sua diversidade, o universo sonoro captado no percurso feito pelo território nacional, um percurso feito nos dez anos antecedentes “sem enquadramento institucional e com a preocupação de captar nos seus próprios contextos quotidianos ou festivos as manifestações musicais registadas”11. Assim, as regiões prospectadas são-no sequencialmente – do Algarve ao Minho – e ao longo de três anos, em campanhas realizadas em meses não coincidentes, evidenciando a intenção de abarcar no mesmo gesto o calendário agrícola e as diversidades regionais susceptíveis de registo (não nos esquecendo que se trata, em todo o caso, de um programa televisivo).

Os condicionalismos que o suporte apresenta – a televisão tem critérios de discurso expositivo muito próprios que dificilmente se coadunam com exigências de âmbito científico – foram sendo superados num esforço de adaptação a que não será certamente alheio o desempenho de Alfredo Tropa enquanto realizador. Mas, para que as campanhas realizadas tivessem tido o grau de sucesso que «Povo que Canta» atesta, era indispensável um conhecimento profundo e detalhado do universo geográfico e humano a perscrutar. Por outro lado, o modo como Giacometti se relaciona com o informante no acto do inquérito, observável em distintos momentos nos mais de trinta documentários 8 Giacometti, Michel. Texto de apresentação da segunda série do programa. Guiões da série televisiva “Povo que Canta” (acervo do Museu da Música Portuguesa). 9 Frase extraída do texto A Arte e a Cultura Popular, de Bento de Jesus Caraça, texto que também ajuda a entender a questão da militância cultural e o modo como a pratica Giacometti: “A especialidade, o domínio em cada compartimento da actividade humana, pertencem àquele que a cultiva habitualmente (...). Há, no entanto, em cada compartimento de actividade, uma margem, larga e luminosa, que interessa ao especialista e a todo o homem, como homem; uma região que, pertencendo ainda à especialidade, faz, no entanto, já parte daquele conjunto de aquisições gerais que permitem ao homem encontrar-se no mundo, consciente do seu papel e lugar nele”. 10 Os dados referidos neste texto constam da listagem que acompanha o acervo sonoro adquirido pelo Estado em 1985, guardado no Museu Nacional de Etnologia (MNE). Nessa listagem estão assinalados os registos realizados aquando das campanhas do «Povo que Canta». Sendo a fonte mais detalhada para o estudo do acervo constituído pelos registos sonoros realizados por Michel Giacometti entre 1959 e 1982 (os registos posteriores não constam deste acervo), algumas referências essenciais requerem um aturado esforço de descodificação, que se faz através da audição de cada fonograma (dos mais de 3500 que constituem o acervo), confrontado o seu conteúdo com os documentos existentes em papel (listagem e fichas deixados por Giacometti) e com os materiais editados ao longo da sua vida. Este trabalho, que vem sendo realizado pelo MNE não está ainda concluído, pelo que os dados disponíveis, embora permitam antever o processo de trabalho seguido por Giacometti (ao menos a sua calendarização e distribuição geográfica), devem ser considerados sob alguma reserva. As campanhas de «Povo que Canta» tiveram duração certamente superior à que consta na listagem deixada por Giacometti, pois nesses registos apenas dispomos das datas em que foram efectuados registos áudio (que efectuou em paralelo com os registos de imagem da RTP). 11 Brito, Joaquim Pais. Onde mora o Franklim? Um escultor do acaso. Lisboa: IPM/MNE (1995).

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televisivos12 denota uma capacidade de aproximação muito apurada que interessa realçar pois o modo como Giacometti, enquanto observador, se aproxima do objecto é, creio eu, um dos traços distintivos da sua pesquisa (diverso, segundo se depreende dos relatórios e anotações em cadernos de campo, dos modos que seguiam, por exemplo, Armando Leça, Vergílio Pereira e Artur Santos).

A primeira campanha tem início nas regiões do Baixo Alentejo e Algarve. A campanha, que terá tido início (ou o seu primeiro registo) em 19 de Abril de 1970, tem a duração de oito dias, sendo prospectadas uma dúzia de localidades (entre elas, Salir e Marmelete, no Algarve, e Santo Aleixo, Barrancos, Belmeque e Vilaverde de Ficalho, no Baixo Alentejo). Obtêm-se, entre outros, os registos da Moda da Lavoura (lugar de Pedreira, Vilaverde de Ficalho) e a flauta travessa de José de Sousa (em Salir), apresentadas no primeiro e terceiro programas, os registos da Festa do Espírito Santo (em Marmelete) e diversos toques de Tamborileiro (em Ficalho), que deram conteúdo, respectivamente, ao segundo e sexto programas (o programa sobre os Tamborileiros foi expressamente dedicado a Ernesto Veiga de Oliveira).

A segunda campanha decorre entre 29 de Maio e 4 de Junho de 1970, com um dia de interrupção. Centrada na região do Alto Alentejo, contempla ainda uma primeira deslocação da equipa de «Povo que Canta» à Beira Baixa. São visitadas oito localidades, como Alpalhão, onde é colhido testemunho da representação do seu famoso Presépio; Estremoz, onde é recolhido o material para o programa sobre Manuel Jaleca e a viola campaniça, São Bento do Ameixial e Cabaços, onde se registam cantadores da oração das almas. Ainda nesta campanha é visitada Malpica do Tejo, já na região da Beira Baixa.

Entre a segunda e a terceira campanhas de «Povo que Canta», Giacometti continuou o seu trabalho, do qual havia conhecimento através dos cinco volumes da «Antologia» já editados. O sexto volume seria dedicado à região da Estremadura, região prospectada durante os meses de Agosto e Setembro de 1971. As cerca de duas centenas de documentos recolhidos vieram juntar-se aos quarenta e três fados gravados em 1960 em Lisboa.

A terceira campanha inicia-se em 23 de Junho de 1971, com uma deslocação à Beira Baixa, onde é registada a Festa de S. João no Rosmaninhal (Idanha-a-Nova, no distrito de Castelo Branco). Foram dois dias de registos no Ameixial. Após um interregno de uma semana, a Beira Baixa passa a ser o foco principal das atenções, com inquéritos em Penha Garcia, onde se captam as imagens e a voz de Catarina “Chitas”, Alcongosta, com os seus Bombos, havendo mesmo o registo de um despique entre estes e os Bombos de Lavacolhos (apresentado no vigésimo programa dedicado à temática do despique). Em Dornelas (nas margens do Rio Zêzere) é gravada a cantilena da roda13, momento alto da realização de «Povo que Canta», enquanto que em Alcongosta e na Aldeia-de-Joanes são registados cantos acompanhados a adufe. Já na Beira Alta é registado o lerar do gado (em Manhouce) e, na Beira Litoral (em Couto Esteves) captam-se, entre outros registos, uma “cana verde” e a canção do Senhor da Pedra.

12 De «Povo que Canta» tive a oportunidade de visionar 33 documentários que corresponde, em número, aos registos da RTP, havendo ainda dois textos de guiões de documentários que não alcancei visionar e que não constam dos registos da RTP. 13 Cuja primeira “lição” foi anotada em 1938 por A. A. Joyce, versão editada por Giacometti no «Cancioneiro Popular Português». Outra “lição” dessa mesma cantilena foi anotada por Lopes-Graça em 1953, em Paúl. Giacometti realizou o seu registo áudio em 1969 e, com a RTP, em 1971.

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A quarta e última campanha de registos do «Povo que Canta» percorre localidades de Trás-os-Montes e do Minho e Douro Litoral. São registados cantos de S. João (em S. João do Campo, Terras de Bouro), cantos de trabalho e de romaria em S. Martinho de Crasto, além de canções de baile, alguns exemplos de música instrumental, com chulas e valsas a dois violinos e guitarra, e o canto de carpideira, género também registado em 1963 e editado no volume da «Antologia da Música Tradicional Portuguesa» dedicado à região do Minho.

Esta quarta campanha de «Povo que Canta», a mais longa, realizada no ano de 1972, tem início em 20 de Setembro e termina a 11 de Outubro. São realizados os inquéritos sobre a Dança dos Paulitos a que é dedicado o trigésimo primeiro programa14 e, em Paradela é feito o inquérito com Francisco Domingues, de quem Giacometti gravou os registos editados no disco «Oitos Cantos Transmontanos». Em Parada de Infanções são registadas as Malhas, e, em Tuiselo, o Da-la-dou (canção de abaular ) e Faixinha Verde, outra cantiga das Malhas (de que há registo anterior, feito por Kurt Schindler em 1932)15.

Michel Giacometti encerra com «Povo que Canta» um ciclo do seu trabalho, que teve como primeiro impulso o contacto com o livro de Kurt Schindler, Folk Music and Poetry from Spain and Portugal, e as pesquisas por ele realizadas. As pesquisas de Michel Giacometti em Portugal iniciaram-se precisamente na região de Trás-os-Montes. Em Fevereiro de 1959, Giacometti realiza cerca de sessenta registos de cantigas, lhaços de paulitos, bailes de roda, canções de malhas e segadas, romances e canções de berço. Foram essas primeiras gravações apresentadas por Giacometti a Lopes-Graça, que, em 1991, nos testemunha: “(...) o que Giacometti me fez conhecer na sua primeira recolha anunciou uma pessoa capaz de ir mais esclarecidamente e mais ao fundo, do que até àquela altura (...) trouxe-me a convicção de que finalmente estamos num bom caminho do conhecimento assente em boas e sérias bases da nossa música tradicional. Giacometti tinha um plano e um programa que eu não podia deixar de escusar. Afiancei-lhe, então a minha colaboração até onde pudesse ir...”16. Esses mesmos registos foram apresentados à Fundação Calouste Gulbenkian no intuito de obter apoio para a prossecução das pesquisas. Giacometti vê recusado esse apoio por considerarem o seu trabalho como de amador.17

14 O título do programa é «A dança dos Paulitos em S. Martinho de Angueira». Há discrepância entre a numeração dos programas encontrada nos registos da RTP e nos de Giacometti. Assim, nos registos da RTP este seria o 32º programa. 15 A cantiga «Faixinha Verde» na versão recolhida por K. Schindler foi objecto de tratamento composicional por F.Lopes-Graça, com registo discográfico pela voz de Arminda Correia. Confrontando o registo discográfico da peça de Lopes-Graça com o registo fonográfico realizado por Michel Giacometti é impressionante a proximidade entre ambos. 16 Em Lembrança de Michel Giacometti de F. Lopes-Graça, gravado em 1991 (transcrição editada no catálogo da exposição MICHEL GIACOMETTI, realizada em Macau, editado em 1997 pelo Instituto Português do Oriente. 17 Nessa recusa, protagonizada pela Comissão de Etnomusicologia da FCG, teve papel determinante Artur Santos. Segundo Cristina Brito da Cruz (2001), “A. Santos punha sistematicamente objecções aos candidatos que não fossem músicos, que não achava serem etnomusicólogos”. [em Artur Santos e a Etnomusicologia em Portugal (1936-1969)]. Após esta recusa, Lopes-Graça demitiu-se da referida Comissão. Mas, citando ainda Brito da Cruz, uma das razões principais da recusa da FCG em apoiar Giacometti se prendia com o facto de este pretender conservar o direito de editar “com ou sem a ajuda da fundação uma antologia de música popular portuguesa”, o que foi considerado inaceitável pela FCG, respondendo a Directora do Serviço de Música que “os materiais recolhidos por qualquer investigador devem sempre ficar pertença da Fundação, que oportunamente lhe dará o destino que entender”. E os registos realizados por Vergílio Pereira, com o apoio e nas condições impostas pela FCG, continuam ainda hoje inéditos.

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Não obstante a recusa de apoio por parte da Fundação C. Gulbenkian, Giacometti dá início ao seu trabalho por conta própria, em colaboração com Lopes-Graça. E o reconhecimento do mérito do seu trabalho, atestado por personalidades como João de Freitas Branco, Jorge Dias, Ernesto Veiga de Oliveira, João Gaspar Simões e Miguel Torga, irá cruzar-se com o reconhecimento da sua presença no mesmo no espaço de militância cultural. «Povo que Canta» ocupa uma posição central no conjunto das pesquisas realizadas por Michel Giacometti. Até 1970, Giacometti havia coligido cerca de 1600 documentos ao longo de 10 anos de trabalho. Entre 1970 e 1972, são realizados mais de 1100 registos. Desses, cerca de 700 resultaram dos inquéritos relacionados com o «Povo que Canta». Após 1972 e até 1982 (ano do último registo considerado no acervo existente no MNE), foram recolhidos mais quatro centenas de documentos. É notório que, no período em que se realizou «Povo que Canta», Giacometti dispôs de algum desafogo, pelo menos no que respeita a suporte para os registos em fita magnética, facto que atestam a quantidade de registos realizados no espaço de três anos (se compararmos com a que foi realizada nos dez anos precedentes) e a quantidade de entrevistas que foram conservadas na forma de registo sonoro.

Sobre Michel Giacometti há ainda muito desconhecimento. Sobrevive muito do mito romântico do pesquisador solitário que palmilha os caminhos do nosso universo sonoro em busca de tesouros, quem sabe se sob a forma de uma canção. Há até quem considere, algo disparatadamente, que as privações e dificuldades que enfrentou eram o motivo da sua persistência18. Michel Giacometti “utilizou de princípio um método extensivo de pesquisa e, a seguir, e de acordo com os resultados obtidos, desenvolveu o seu trabalho em zonas preestabelecidas de intervenção intensiva (...) Na impossibilidade de, no decurso de cada uma das investigações, surpreender ao vivo as manifestações musicais inscritas no calendário agrícola/cristão, procedeu ainda a frequentes e breves pesquisas circunstanciais. Por outro lado, voltou a registar, em anos consecutivos, o repertório de comunidades rurais, de grupos ou de intérpretes isolados, com vista à análise de fenómenos sociais e culturais intervenientes na transformação estrutural e formal de elementos determinados do nosso património musical. (...) A investigação no terreno constou de 26 campanhas de mais de 60 dias cada e de 45 incursões breves e pontuais, abrangendo um total de 78 meses, no decurso dos quais foram investigados mais de 650 localidades e recolhidos quase 2000 espécimes musicais em 450 de entre elas. (...) No entanto, por motivo de estrita obediência económica, houve a necessidade de preseleccionar os exemplares musicais objecto de registo mecânico, contrariando, deste modo, o princípio estabelecido à partida de uma recolha sistemática e sem exclusivos [sic]. (...) De colaboração com a RTP e organismos cinematográficos estrangeiros [realizou] um conjunto de 100 horas de documentação filmada retratando aspectos diversificados da cultura musical popular, apreendida no contexto próprio em que se exprime.”19

18 No Expresso de 29 de Junho de 1996 pode ler-se, sobre Giacometti, a seguinte sentença: «era um obstinado que andou dez anos com um gravador pelo país (...) se tivesse as condições ideais não teria feito aquele trabalho». 19 Síntese de Michel Giacometti sobre o seu próprio trabalho, incluído no texto intitulado «A Música Tradicional Portuguesa e a sua Investigação – Cronologia Geral e Notas Críticas», inédito, documento que integra o acervo do Museu da Música Portuguesa. Neste trabalho, Giacometti, para além de inventariar grande parte da investigação e das

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Ao confrontar o texto citado, síntese de Giacometti sobre o seu próprio trabalho, encontrámos uma perspectiva crítica que nos remete para o enunciado de Boaventura de Sousa Santos sobre o «paradigma emergente» da ciência. Segundo Sousa Santos, “todo o conhecimento é auto-conhecimento. A ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece do real. Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica da natureza ou da sociedade. São parte integrante dessa mesma explicação”20.

Seria absurdo pretender, neste texto e tendo como foco um programa televisivo, apresentar conclusões sobre o carácter científico do trabalho de Michel Giacometti. E talvez essa seja a questão menos relevante (as próprias resistências da comunidade científica, ou no caso, do meio académico dedicado à etnomusicologia, em aceitar Giacometti, são talvez mais significantes para o auto-conhecimento dessa mesma comunidade que para o conhecimento de Giacometti e daquilo que Giacometti nos aporta). Mas o seu legado coloca certamente, a quem compete, um claro desafio, que é fazer dele um legítimo aproveitamento científico.

Queluz, Novembro de 2003, Alexandre Branco Weffort

publicações realizadas desde o final do século XIX, com César das Neves, até, creio, o ano de 1984 (pois faz referência, com essa data, a um livro de J.M.Bettencourt: «Para a Sociologia da Música Tradicional Açoriana») 20 Santos, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto: Edições Afrontamento (1996, 8ª Ed.).