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POVO TRADICIONAL POMERANO: UM DIÁLOGO SOBRE INTERCULTURALIDADE Erineu FOERSTE/UFES(*) RESUMO: O trabalho discute cultura e educação do povo tradicional pomerano (Decreto 6.040/2007). Coloca em questionamento principalmente a falta de políticas públicas na oferta de ensino bilíngue em comunidades tradicionais pomeranas. Abordagens sócio- históricas (Fichtner et al: 2013) fundamentam praxis de análise da problemática em questão na perspectiva das chamadas políticas afirmativas em comunidades de Vila Pavão, Pancas, Laranja da Terra, Santa Maria de Jetibá e Domingos Martins no Estado do Espírito Santo, Brasil. Apresenta alguns resultados de investigações desenvolvidas até o momento a respeito do Programa de Educação Pomerana PROEPO. Finaliza destacando a importância da inclusão dos povos tradicionais na agenda de pesquisa das universidades. Já se observam alguns impactos na valorização da identidade do tradicional pomerano em face às discussões de cultura e interculturalidade. Palavras-chave: Pomeranos;Povos tradicionais; Educação intercultural. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Os primeiros pomeranos ao chegar no Brasil há 150 anos atrás desembarcaram no Porto de Vitória no Estado do Espírito Santo na Região Sudeste do Brasil e ajudaram a fundar a cidade de Santa Leopoldina em meio às montanhas, acerca de 50 Km do litoral. Aos poucos migraram para outras regiões do Estado, onde hoje vivem em municípios como Santa Maria de Jetibá, Laranja da Terra, Pancas, Vila Pavão entre outros. Este povo tradicional (BRASIL: 2007) (1) produz sua existência material e simbólica na sua relação com o mundo do trabalho, principalmente a partir da agricultura familiar agroecológica (Merler et al.: 2012). Os pomeranos, juntamente com outros povos tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos etc.) fazem história não apenas sob as condições que lhes são dadas, como dizia Marx, mas nas contradições da sociedade de classes, conforme Fornet-Bitancourt (2001), colocando-a sempre em questão nas lutas coletivas por direitos sociais. Como o povo tradicional pomerano produz práticas sociais e políticas interculturais? Constituindo sua humanidade, ao mesmo tempo em que humanizam o mundo pela práxis, os trabalhadores em geral e os povos tradicionais de modo especial produzem culturas como forma de resistência ao projeto hegemônico de desenvolvimento e de educação do Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 03445

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POVO TRADICIONAL POMERANO: UM DIÁLOGO SOBRE

INTERCULTURALIDADE

Erineu FOERSTE/UFES(*)

RESUMO: O trabalho discute cultura e educação do povo tradicional pomerano (Decreto

6.040/2007). Coloca em questionamento principalmente a falta de políticas públicas na

oferta de ensino bilíngue em comunidades tradicionais pomeranas. Abordagens sócio-

históricas (Fichtner et al: 2013) fundamentam praxis de análise da problemática em

questão na perspectiva das chamadas políticas afirmativas em comunidades de Vila

Pavão, Pancas, Laranja da Terra, Santa Maria de Jetibá e Domingos Martins no Estado

do Espírito Santo, Brasil. Apresenta alguns resultados de investigações desenvolvidas até

o momento a respeito do Programa de Educação Pomerana – PROEPO. Finaliza

destacando a importância da inclusão dos povos tradicionais na agenda de pesquisa das

universidades. Já se observam alguns impactos na valorização da identidade do

tradicional pomerano em face às discussões de cultura e interculturalidade.

Palavras-chave: Pomeranos;Povos tradicionais; Educação intercultural.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Os primeiros pomeranos ao chegar no Brasil há 150 anos atrás desembarcaram no Porto

de Vitória no Estado do Espírito Santo na Região Sudeste do Brasil e ajudaram a fundar

a cidade de Santa Leopoldina em meio às montanhas, acerca de 50 Km do litoral. Aos

poucos migraram para outras regiões do Estado, onde hoje vivem em municípios como

Santa Maria de Jetibá, Laranja da Terra, Pancas, Vila Pavão entre outros. Este povo

tradicional (BRASIL: 2007) (1) produz sua existência material e simbólica na sua relação

com o mundo do trabalho, principalmente a partir da agricultura familiar agroecológica

(Merler et al.: 2012).

Os pomeranos, juntamente com outros povos tradicionais (indígenas, quilombolas,

ribeirinhos etc.) fazem história não apenas sob as condições que lhes são dadas, como

dizia Marx, mas nas contradições da sociedade de classes, conforme Fornet-Bitancourt

(2001), colocando-a sempre em questão nas lutas coletivas por direitos sociais. Como o

povo tradicional pomerano produz práticas sociais e políticas interculturais?

Constituindo sua humanidade, ao mesmo tempo em que humanizam o mundo pela práxis,

os trabalhadores em geral e os povos tradicionais de modo especial produzem culturas

como forma de resistência ao projeto hegemônico de desenvolvimento e de educação do

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capitalismo (Fichtner et al: 2013; Merler et al: 2013). Partindo desses pressupostos, este

trabalho objetiva analisar, compreender e dar visibilidade a aspectos do patrimônio

material e imaterial do povo tradicional pomerano. Aqui daremos ênfase às práticas

políticas e pedagógicas que têm sido produzidas como ação coletiva para superar

injustiças sociais e processos de exclusão cultural, especificamente no que se refere às

comunidades pomeranas no Estado do Espírito Santo, Brasil.

POVO POMERANO TRADICIONAL

Nossas investigações emergem dos trabalhos desenvolvidos no Grupo de Pesquisa

(CNPq) Culturas, parcerias e educação do campo do Programa de Pós-Graduação em

Educação - PPGE do Centro de Educação - CE da Universidade Federal do Espírito Santo

– UFES. Estabelecem-se interlocuções com a produção acadêmica acumulada sobre a

questão pomerana no Brasil, em especial com o trabalho de mestrado de Adriana Vieira

Guedes Hartwig, intitulado Professores (as) pomeranos (as): um estudo de caso sobre o

Programa de Educação Escola Pomerana – PROEPO no município de Santa Maria de

Jetibá/ES (Hartwig: 2011). Os debates identificam-se com a perspectiva teórico-prática

de que é na luta pela redistribuição e pelo reconhecimento, conforme Semeraro (2006 e

2009), que os oprimidos produzem praxis sociais e culturais alternativas de emancipação

humana.

No geral essas pesquisas apontam para reivindicações dos pomeranos, articulados com

outros povos tradicionais, por direitos sociais como luta intercultural (Fornet-Betancourt:

2001). O povo pomerano no Brasil (BRASIL: 2007) organiza-se internamente de forma

crescente nos últimos decênios e é reconhecido publicamentepara fortalecer lutas

coletivas pelos direitos sociais com povos indígenas (Tupinikim e Guarani), quilombolas,

assentados de reforma agrária, caiçaras, ribeirinhos, pescadores, ciganos etc. Inscreve-se

assim, no contexto de lutas históricas dos povos tradicionais e outras comunidades do

campo (agricultores familiares em geral, trabalhadores rurais vinculados ao Movimento

Sem Terra – MST, ao Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA etc.) como

protagonismo na conquista de políticas afirmativas de inclusão social.

Os povos europeus da imigração tardia (esses povos não estão alinhados ao projeto

predatório de colonização promovido pelas coroas portuguesa e espanhola) chegaram ao

Brasil no final da primeira metade do século XIX. No Estado do Espírito Santo os

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primeiros imigrantes alemães vieram a partir de 1847 (2). As primeiras Comunidades

Pomeranas começaram a se constituir nas montanhas espírito-santenses em 1859.

A imigração fez parte do processo acelerado de transformações sociais que ocorreram no

Brasil na segunda metade do século XIX e início do século XX. A ascensão das ideias

republicanas, em substituição ao Brasil Império, com transformações políticas, sociais e

culturais, teve impacto direto na população de imigrantes germânicos assentados em

diversos Estados da Região Sudeste e Sul do país. (3)

Especificamente no que se refere à educação escolar, o período inicial do século XX

caracteriza-se pela forte influência do Projeto Escolanovista, criado por John Dewey,

sobretudo através da Escola de Chicago. Este ideário norte-americano serve de base para

incremento do projeto educacional nacionalista brasileiro de Getúlio Vargas. Isso

significa, concretamente, a construção de estratégias pedagógicas e políticas para

fortalecer a identidade nacional.

A passagem do Brasil Colônia à consolidação da República é acompanhada de mudanças

desde a reconstrução arquitetônica das cidades às esferas administrativas do estado

brasileiro. No bojo das transformações por que passava o Brasil naquele período, vale

destacar as reformas educacionais da era do Presidente Getúlio Vargas (4), com atenção

à Reforma Educacional Francisco Campos (1931) e a Reforma Gustavo Capanema

(1942), que são orientadas ideologicamente pelo discurso modernista e dão sustentação

aos projetos de nacionalização do estado brasileiro, na lógica do Estado ditatorial. A

educação, nessa perspectiva, ocupa papel fundamental na propaganda nacionalista.

Segundo Nagle (1974), o movimento do otimismo pedagógico atribui à educação a tarefa

redentora e unificadora do estado brasileiro; também favorece as medidas de

nacionalização das escolas comunitárias, a proibição do ensino da língua e cultura alemãs

em escolas das comunidades de imigrantes situadas grosso modo no Rio Grande do sul,

Santa Catarina e Espírito Santo e a institucionalização da escola primária como

“democratizadora” do acesso à formação dos trabalhadores. Também, na esteira da

discussão nacionalista ganha força o movimento do ruralismo pedagógico, que defendia

maior equidade na relação campo e cidade, para justificar formas de cobrança tributária.

Este movimento suscita olhar do poder central da união sobre as escolas campesinas de

comunidades de imigrantes para incremento da nacionalização dos projetos de educação

locais como estratégia fundamental à unificação do Estado nacional e como campo de

disseminação ideológica das concepções hegemônicas do “Estado Novo”.

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Conforme discussões da época, a imigração representava um mal necessário. Segundo

Menucci (1934) a presença de imigrantes apresentou-se, sobretudo na primeira metade

do século XX, como um problema que explicitava a dialética do progresso e da

civilização. O estrangeiro foi considerado peça chave, ao mesmo tempo em que era

tomado como indesejável. Para fazer frente ao problema, medidas foram tomadas como

a obrigatoriedade do domínio da língua portuguesa, sobretudo pelas crianças em idade

escolar.

À revelia desse processo de nacionalização, em cujo movimento a educação foi afetada

de forma muito especial, o povo tradicional pomerano (BRASIL: 2007) manteve suas

culturas e identidades. A língua pomerana constitui uma das dimensões articuladoras,

para reconhecimento dos pomeranos atualmente no cenário das lutas coletivas por direitos

sociais. Ela é patrimônio cultural de um povo tradicional brasileiro.

Hoje há cerca de 300 mil pomeranos no Brasil (5). No Estado do Espírito Santo estima-

se uma população de 120 a 150 mil pomeranos, conforme levantamentos preliminares

realizados por Jacob (2012), apresentados no quadro (6).

Representantes dos municípios de Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da

Terra, Vila Pavão e Pancas no Estado do Espírito Santo – Brasil articularam esforços

interinstitucionais e estabeleceram parcerias (Foerste: 2005) para elaboração do Projeto

de Educação Escolar Pomerana - PROEPO que visa valorizar e fortalecer a cultura e

língua pomeranas.

EDUCAÇÃO POMERANA NO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO: UM DIÁLOGO

O ano de 2003 é um marco importante nesse processo, quando foi implementado o

PROEPO. Surgiu a partir da preocupação de lideranças comunitárias articuladas a alguns

dirigentes municipais, por um lado, a partir de avaliações que apontam situações

concretas em que parte das gerações mais novas das comunidades pomeranas não se

interessam mais em falar pomerano em contexto familiar e público. De outro lado, pais,

mães, membros das comunidades (igreja, lideranças da sociedade civil), professores,

pesquisadores, etc. manifestam há muito tempo preocupação com o fracasso escolar de

crianças de origem pomerana, principalmente nas séries iniciais, pelo fato de dominarem

o pomerano como língua materna e não falarem a língua portuguesa ao ingressarem na

escola.

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Dentre as dificuldades mais preocupantes em relação à escolarização desses estudantes,

as pesquisas de Mian (1993), Weber (1998), Siller (1999), Ramlow (2004) e Hartwig

(2011) destacam: a) alto índice de reprovação; b) currículo desvinculado do contexto

social; c) contratação de professores que não falam pomerano; d) gestores educacionais e

equipe pedagógica que desconhecem a realidade local campesina e promovem

fechamento de escolas locais (Merler et al: 2013; Foerste et al: 2013); e) subestimação

da capacidade de aprendizagem das crianças pomeranas; f) exclusão dos alunos das

práticas escolares por não serem compreendidos em sua língua nem compreender a língua

portuguesa; g) reprodução do mito de que os pomeranos são tímidos.

A criança de origem pomerana, ao ingressar na escola de Ensino Fundamental, é

incumbida de duas tarefas simultâneas: aprender outra língua e atender aos objetivos do

período de alfabetização (1º ao 2º anos do Ensino Fundamental, para desenvolver

habilidades de leitura e produção de textos escritos na língua oficial (Língua Portuguesa),

muitas vezes isso é feito em detrimento da língua materna (Língua Pomerana) (7).

Estudiosos do campo da educação, vinculados a diferentes linhas de pesquisa no

Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGE da Universidade Federal do Espírito

Santo – UFES(8) na produção de dissertações de mestrado e teses de doutorado,

aprofundaram pesquisas em comunidades pomeranas (Mian: 1993; Weber: 1998; Siller:

1999; Ramlow: 2004; Delboni: 2006; Hartwig: 2011; Cosmo: 2014). Denunciam os

ataques à alteridade e às especificidades do povo pomerano e sinalizam para a importância

e a necessidade de reflexões, com implementação de políticas públicas que superem

problemas que entravam a escolarização dos pomeranos.

As práticas escolares desconsideram a cultura e a língua pomerana. Existem relatos de

professoras que são orientadas a proibir que as crianças façam uso da língua materna

pomerana durante os períodos escolares regulares, sob a alegação de que a função da

escola é ensinar a ler e escrever na língua oficial. Este processo remete ao período de

nacionalização instituído no Brasil, sobretudo no período da Segunda Guerra Mundial.

O fato de muitas crianças falarem o pomerano como língua materna ao ingressarem na

escola é apontado por muitos professores e gestores educacionais como causa de fracasso

escolar em contextos sociais com presença do povo tradicional pomerano. As pesquisas

colocam em evidência os impactos desse quadro. As crianças de descendência pomerana

de modo geral, destacadamente as que ainda vivem com seus familiares em comunidades

tradicionais, sentem-se na escola e são vistas pelos profissionais do ensino, no dizer de

muitos pais, como estranhos fora do ninho ou estrangeiros na própria comunidade

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tradicional, onde a absoluta maioria da população fala o pomerano no dia-a-dia. As

dificuldades de se comunicar em português geram extremo constrangimento (confundido

muitas vezes com timidez) para essas crianças e respectivas comunidades, impedindo-

lhes de participar de forma espontânea e ativa da vida da escola, tornando a prática

pedagógica cheia de significados culturais (Mclaren: 1997) ainda pouco estudado

academicamente. Mesmo quando solicitadas a falar em sua língua ou em português,

preferem ficar silenciosas. Presenciamos em nossas pesquisas, relatos de crianças que têm

medo de fazer perguntas referentes aos conhecimentos escolares por causa da dificuldade

de comunicação na Língua Portuguesa. Elas têm “medo” de falar errado. O recreio é, não

raras vezes, o momento em que as crianças se sentem livres no contexto escolar para

conversarem em pomerano, longe do controle da equipe pedagógica.

Narrativas das famílias de crianças de origem pomerana explicitam sentimento de tristeza

face ao fato dos filhos resistirem de forma crescente para falar a língua materna (o

pomerano) de forma crescente também em casa, depois de ingressarem na escola. Ao

mesmo tempo há aqueles que se sentem culpados por não ensinarem a língua pomerana

aos filhos; chegam a confessar que agindo assim, podem proteger as gerações mais novas

de enfrentar as mesmas dificuldades pelas quais passaram no período da escolarização,

decorrentes de sofrimentos relacionados ao preconceito e exclusão vividos na própria

pele.

As pesquisas de Siller (1998), desenvolvidas no contexto da Educação Infantil em Santa

Maria de Jetibá, demonstraram o desejo das famílias em ver uma escola que incentiva a

valorização da cultura e da língua pomeranas. Há relatos de pais dizendo que as crianças

deveriam aprender os saberes da escola por meio das duas línguas, português e pomerano;

outras sugeriram duas professoras: uma professora para falar pomerano e outra para falar

português. O bilingüismo foi apresentado como proposta de trabalho pela maioria das

famílias entrevistadas.

Porém, foi só a partir de fevereiro de 2005 que o PROEPO consolidou-se. Por iniciativa

de novos administradores de Santa Maria de Jetibá, o debate foi retomado junto com os

demais municípios envolvidos e resultou na contratação do etnolinguista Ismael

Tressmann como assessor de educação pomerana, responsável de ministrar curso de

formação em serviço para os professores dos cinco municípios que adotaram um

programa específico de educação nas comunidades pomerana. Objetivou-se instituir o

bilinguismo nas escolas a partir de ações do poder público local.

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A adesão dos professores nesse projeto vem sendo crescente, porém sempre de forma

voluntária. Para participar do PROEPO exige-se que o professor seja falante da língua

pomerana, uma vez que um dos objetivos é também promover o ensino da escrita do

pomerano. Utiliza-se como material de apoio um dicionário pomerano/português

elaborado pelo assessor do PROEPO e publicado em parceria com a Secretaria de Estado

de Educação do Espírito Santo - SEDU (Tressmann: 2006a). Em 2007, o projeto foi

transformado em programa por se acreditar que esse seria um trabalho permanente e

consistente.

A criação deste programa concretizou-se através de parcerias interinstitucionais,

fortalecendo formas antigas de organização social nas comunidades tradicionais

pomeranas e práticas culturais diversas. Referem-se a práticas comunitárias identificadas

entre os pomeranos já na época da imigração, mantendo-se até os dias atuais. O

sentimento coletivo pode ser observado em narrativas de memórias. Ainda hoje, como

nos primeiros tempos de formação das comunidades locais, quando esse povo tradicional

se organizava em mutirões para realizar festas comunitárias, religiosas e casamentos,

construção de casas, abertura de estradas, etc. As pesquisas de Ismael Tressmann

recuperam narrativas populares, contadas de geração em geração; registram-se receitas

da culinária pomerana (sopa de pêssego, sopa de frango com aipim, pão de banana etc.),

tradições do casamento pomerano (Tressmann: 2006b).

Filmes e documentários (9) sobre a cultura pomerana retratam eventos comunitários e em

contextos familiares de um povo tradicional, alegre, participativo, solidário e interessado

no trabalho coletivo. Os pomeranos, independente da faixa etária ou do gênero de cada

pessoa, participam ativamente da organização do processo produtivo na da agricultura

familiar agroecológica, integram-se aos momentos em que promovem trabalho coletivo

para construir pontes, estradas, casas, organizar festas comunitárias, casamentos etc. até

os dias atuais. O trabalho em mutirão é referência para o cultivo de uma forma tradicional

peculiar do modo de se viver em comunidade. É uma tradição trazida da antiga Pomerânia

e aqui, no contato e diálogo com outras culturas de povos tradicionais em seus respectivos

territórios (indígenas, quilombolas, caiçaras, extrativistas, pescadores etc.), ressignifica-

se e abre possibilidades de produzir outras culturas, apesar de manter muitos dos traços

originais dos tempos ancestrais dessas práticas.

Este encontro de culturas produz modos de se viver que podem ser definidos como

práticas interculturais. Para Fornet-Betancourt (2001) a interculturalidade caracteriza

como alternativa de lutas coletivas produzidas em contextos específicos por sujeitos

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excluídos, quando se articulam para a conquista de direitos sociais. Os grupos se

organizam e passam a lutar por condições dignas de vida para todos (educação, saúde,

moradia, direito à terra etc.). Para Gramsci (1978), conforme dicute Semeraro (2006 e

2009), os sujeitos no mundo capitalista, considerada a correlação de forças entre os que

detêm o processo produtivo (classe dirigente) e aqueles que vendem sua força de trabalho

(os trabalhadores), produzem formas de ideologias que garantem a hegemonia daqueles

que estão no comando. A interculturalidade é compreendida como alternativa de

resistência dos povos tradicionais face ao projeto de desenvolvimento e de progresso do

capital, que se institui a partir do agronegócio, do latifúndio, da industrialização etc. Paulo

Freire (1970 e 1996) e Bakhtin (1991) falam-nos das práticas culturais como

possibilidades de diálogo entre sujeitos que articulam esforços coletivos e desse modo

produzem libertação de dominados e dominadores. Segundo Semeraro (Op. cit.) a

emancipação humana pressupõe crítica ao capital internacional e ruptura com as

desigualdades sociais por ele produzidas. Interculturalidade, portanto, é luta por direitos

sociais dos oprimidos, como forma de resistência ao projeto hegemônico de progresso da

elite. Por isso se define essencialmente como diálogo libertador, pelo qual opressor e

oprimido se emancipam e superam as desigualdades sociais.

Assim podemos dizer que o povo pomerano produz interculturalidade ao fortalecer lutas

coletivas juntamente com outros povos tradicionais, o que se traduz, por exemplo, nas

agendas específicas deste grupo social (e o PROEPO é uma causa apoiada pelos coletivos

dos pomeranos) e/ou nas pautas discutidas e encaminhadas na Comissão Nacional dos

Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/2007). São práticas de resistência e

por isso mesmo também ações articuladas de libertação. A conquista de direitos sociais

pelos excluídos é, portanto, mola propulsora da interculturalidade no cenário da América

Latina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os indivíduos do povo pomerano por muito tempo se consideraram e foram chamados

pelos outros como alemães. Havia, porém, muito preconceito em relação à cultura

pomerana, considerada inferior aos costumes dos alemães (Tressmann: 2005; Thum:

2009; Bahia: 2011; Siller: 1999). Hoje se produzem reconhecimentos acadêmicos com

pesquisas sobre a cultura e língua pomeranas. Uma das formas de dominação de um povo

sobre outro se dá pela imposição da língua, a exemplo do que ocorreu e continua muito

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presente no Brasil em relação aos povos indígenas. Esse é o modo eficaz, apesar de se

constituir um processo lento, de um grupo dominante impor sua cultura a outro grupo não

hegemônico. De certa maneira, a nacionalização do ensino no Brasil cumpriu este papel

em relação aos povos de cultura germânica no século passado.

No ano de 1530, a Reforma Luterana é introduzida na Pomerânia (Röelke, 1996), assim,

a língua alemã foi imposta e estabelecida nas igrejas, escolas e repartições públicas da

Pomerânia. Depois da imigração do pomeranos, os pastores luteranos enviados para as

comunidades realizavam os cultos nas igrejas e ministravam aulas nas primeiras escolas

também na língua alemã. Durante a Segunda Guerra Mundial, com a nacionalização do

ensino, a política de Getúlio Vargas instituiu a proibição da língua alemã, tornando

obrigatório somente o uso nas comunidades e nas escolas da Língua Portuguesa.

Porém, mesmo à margem do projeto cultural hegemônico no país, os praticantes da língua

pomerana falada, por inúmeras vezes, optaram por estratégias de transgressão ideológica

e recusa à opressão das classes dominantes. Assim mantiveram sua língua materna em

diferentes contextos sociais, longe do controle do poder oficial (lar, trabalho na lavoura,

mutirões, festas comunitárias, casamentos etc.). A resistência dos pomeranos indica uma

postura de luta pelos direitos sociais na perspectiva das práticas iterculturais, da mesma

forma que outros povos tradicionais o fizeram e continuam fazendo no cenário brasileiro

e da América Latina. Hoje os pomeranos se fortalecem no contato mais direto com outros

povos tradicionais, como, entre outros, os indígenas e quilombolas, ribeirinhos, o que

coloca para a universidade o desafio de aprofundamento de estudos na perspectiva

intercultural, no esforço de se interpretar aspectos da língua e culturas do povo tradicional

pomerano no Brasil.

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TRESSMANN, Ismael. Da sala de estar à sala de baile - Estudos etnolinguisticos de

comunidades camponesas pomeranas do estado do Espírito Santo. 2005. Dissertação

(Doutorado em Estudos Lingüísticos) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de

Janeiro, 2005.

______. Língua e diversidade. In.: Anais do III POMMER BR. Pomerode/SC:

Secretaria Municipal de Educação de Pomerode/UFES/UFRG. 2013

TRESSMANN, Ismael; DALEPRANE, Luzia Fiorotti; KUSTER, Síntia Bausen. O

programa de Educação Escolar Pomerana. II Congresso Consad de Gestão Pública:

Painel 54: Inovações em programas educacionais, 2008. Disponível em:

www.seplag.rs.gov.br/download.asp?nomeArq=Painel_54_Sintia...pdf. Acesso em 15 23

de dezembro de 2009.

WEBER, Merklein Gerlinde. A escolarização entre descendentes pomeranos em

Domingos Martins. 1998.Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal

do Espírito Santo, Vitória, 1998.

NOTAS:

(*)Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo.

(1) O Decreto Federal nº 6.040 de 07 de fevereiro de 2007 institui a Política Nacional de

Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Foi criada uma

comissão nacional de povos tradicionais em que os pomeranos têm assento.

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EdUECE - Livro 303455

Page 12: POVO TRADICIONAL POMERANO: UM DIÁLOGO SOBRE … POVO TRADICIONAL POMERANO... · nacionalização das escolas comunitárias, ... Este movimento suscita olhar do poder central da união

(2) A primeira colônia de imigrantes germânicos estabelece-se em Santa Isabel,

Domingos Martins no Estado do Espírito Santo.

(3)

Fonte: Acervo Família Foerste; Autor Emílio Schultz (Pancas); Data 1942.

(4) A assim chamada Era Getúlio Vargas da história do governo brasileiro inicia-se em

1930 com a eleição democrática do caudilho legado pelo Estado do Rio Grande do Sul e

termina com o seu suicídio em 1945.

(5) O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE não incluiu ainda no censo

nacional questões específicas sobre o povo pomerano, a exemplo do que já vem sendo

feito oficialmete no caso dos indígenas e quilombolas

(6) População Pomerana do Estado do Espírito Santo - Brasil - estimado

MUNICÍPIOS

POPULAÇÃO (IBGE\2010)

PERCENTUAL

ESTIMATIVA

POMERANOS

1 - Santa Maria de Jetibá 34.774 80% 27.819

2 - Laranja da Terra 10.826 70% 7.578

3 - Vila Pavão 8.672 60% 5.203

4 - Domingos Martins 31.847 60% 19.108

5 - Pancas 21.548 40% 8.619

6 - Afonso Cláudio 31.091 60% 18.654

7 - Baixo Guandú 29.081 40% 11.632

8 – Itaguaçu 14.134 40% 5.653

9 – Itarana 10.881 50% 5.440

10 - Vila Valério 21.823 30% 6.546

11 - São Gabriel da Palha 31.859 10% 3.186

12 – Colatina 111.788 5% 5.589

13 - Marechal Floriano 14.262 30% 4.278

14 - outros Municípios 16.000

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EdUECE - Livro 303456

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Quadro: População Pomerana do Estado do Espírito Santo - Brasil (dados aproximados)

(7) Sobre o conceito de língua pomerana consultar: Tressmann (2005) e Tressmann et al

(2009).

(8) Consultar as homepage: www.ufes.br e www.ppge.ufes.br

(9) Ver filmes e documentários sobre os pomeranos: Jacob (2005) – Bate-paus;

Krüger (2009) – A trajetória de um povo; Sá e Foerste (2010) – A estrada silvestre; entre

outros.

TOTAL 145.309

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