PRÁTICAS CULTURAIS E COMERCIAIS NO BOM RETIRO: MUTAÇÕES E ... · 4 O acesso ao bairro é...
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Moda Documenta: Museu, Memória e Design – 2015
ISSN: 2358-5269 Ano II - Nº 1 - Maio de 2015
PRÁTICAS CULTURAIS E COMERCIAIS NO BOM RETIRO: MUTAÇÕES E PERMANÊNCIAS
Cultural and commercial practices at Bom Retiro: change and permanence
Tula Fyskatoris1 (PUC-SP) Raquel Carvalho Maia2 (UAM)
Mariana Braga3 (PUC-SP: COS | CPS)
Resumo: O bairro do Bom Retiro, em São Paulo, é o foco deste estudo. A diversidade de sujeitos oriundos de
várias localidades, seja da própria cidade, seja de outros Estados do Brasil, compõem a complexidade desse polo de rua no comércio de atacado e varejo de moda. Tal cenário nos convida a observar as práticas urbanas e comerciais para destacar, aqui, as marcas identitárias dos inúmeros grupos migratórios que convivem e/ou passam pelo bairro, além de desvelar as permanências desses traços culturais que compõem a memória do bairro e do próprio desenvolvimento da cidade de São Paulo.
Palavras-chave: memória; moda; comércio.
Abstract: The neighborhood of Bom Retiro, in São Paulo, is the focus of this study. The diversity of individuals from various locations, whether from the city, whether from other States of Brazil, compose the complexity of this street set in wholesale and retail trade of fashion. Such scenario invite us to observe urban and commercial practices to highlight, here, the marks of identity of numerous migratory groups that coexist and/or pass through the neighborhood, beyond that, unveiling the permanence of those cultural traits that make up the neighborhood's memory and the actual development of the city of São Paulo. Keywords: memory; fashion; trade. O Bom Retiro
O bairro do Bom Retiro, situado na região central da cidade de São Paulo,4 significativo polo
comercial de rua, formou-se organicamente. Seu surgimento e expansão são intrínsecos ao crescimento
da cidade – pela reunião não planejada de vários estabelecimentos comerciais, num mix de lojas e
serviços – que se desenvolveram de modo disperso e desordenado, por vezes favorecido pela oferta de
imóveis de baixo custo de aquisição e/ou manutenção.
1 Tula Fyskatoris é mestre e doutora em História Social pela PUC-SP. Pesquisadora em Moda, com especial interesse em varejo na cidade de São Paulo. Editora de livros e da revista da dObra[s] da Estação das Letras e Cores Editora. E-mail: [email protected]. 2 Raquel Carvalho Maia é mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi. É jornalista e atua no varejo de moda nos segmentos de vestuário e acessórios. É docente no Senac São Paulo. E-mail: [email protected]. 3 Mariana Braga é mestranda em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP (bolsista do CNPq) sob a orientação da Profª. Dra. Ana Claudia de Oliveira. É graduada em Design de Moda pela Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] 4 O acesso ao bairro é favorecido pela ampla rede de ônibus e, especialmente, pelas linhas 1 (Azul) do Metrô e 7, 10 e 11 da CPTM. A Linha 4 (amarela) do Metrô de São Paulo atenderá a região futuramente.
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Segundo Ponciano (2004), na década de 1880, o empresário Manfredo Meyer foi o responsável
pelo loteamento e a urbanização do Bom Retiro – um grande número de sítios e chácaras de “retiro” para
o fim de semana. É bem possível, ressalta Dertônio (1971), que uma chácara com essa denominação
tenha dado origem ao nome do bairro. A expansão do Bom Retiro também se beneficiou da topografia –
as várzeas dos rios Tietê e do Tamanduateí – e da linha férrea São Paulo Railway que estimulou a
instalação de fábricas, pequenos comércios, armazéns e depósitos de produtos.
Nas primeiras décadas do século XX, o Bom Retiro estabeleceu-se como bairro operário e de
concentração da população mais pobre, ocupação favorecida pela vizinhança com o Centro da cidade – as
pessoas podiam fazer compras e, principalmente, obtinham emprego –, aliada à proximidade com as
estradas de ferro. O loteamento do bairro, comparativamente mais barato, era atrativo como opção de
moradia e para a instalação de empresas fabris por empresários nacionais ou estrangeiros;
concomitantemente, desenvolveu-se um comércio diversificado visando atender às necessidades da
população local que, desde o século XIX, contava com os imigrantes.
Vale ressaltar que naquele momento o bairro crescia sustentado pela imigração europeia, como
portugueses (entre 1870 e 1890) e italianos (maioria entre 1900 e 1940), além dos espanhóis. Com a
acentuada urbanização da cidade de São Paulo impulsionada pela cultura cafeeira, o Bom Retiro ganhou
a adesão de outros imigrantes como os sírio-libaneses e os judeus, estes no final do século XIX
provenientes do Norte da Alsácia, África e Europa e, a partir dos anos 1920, da Rússia, Polônia5 e países
limítrofes motivados pela pobreza e antissemitismo ocasionados em função da I Guerra Mundial
(MIZRAHI, 2003).
Não obstante, nas três primeiras décadas do século XX, o bairro conservou as funções residencial
e industrial – a Fábrica de Tecidos Anhaia, fundada em 1886, era uma das indústrias da região. Com as
obras da nova Estação da Luz, a construção do viaduto ligando as ruas José Paulino e Couto de
Magalhães, e a criação da passagem sob a linha ferroviária, dando acesso à Alameda Nothman,
multiplicaram-se as vias de entrada no bairro.
Em meados dos anos 1930, de fato, os judeus sobressaíam-se no Bom Retiro, primeiramente
como ambulantes e, mais tarde, estabelecidos nas atividades industrial e comercial. Foi nesse momento
5 As condições de vida na Polônia, após a primeira grande guerra, não eram fáceis, isso impulsionou a imigração de diversas famílias para o Bom Retiro em São Paulo. A família Grunkraut foi uma delas, que conforme citam Maia e Anjos (2015) desembarcaram no ano de 1929. O pai Salomão, sua esposa Regina e mais 5 filhos, instalam-se em um sobrado da rua Ribeiro de Lima. Ele mascateia e sua esposa empenha-se na máquina de costura. Pouco tempo depois, as primeiras maquinas e a contratação de costureiras. Em 1933 cria-se as Manufaturas Varsóvia - seu primeiro nome, que futuramente vira Manvar, uma das mais promissoras confecções de Moda Praia na década de 1980.
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também que o bairro recebeu o meretrício – transferido do Centro primeiramente para a Rua Aimorés. A
prostituição e a ação policial vigentes no bairro até então concorreram para a queda dos preços dos
imóveis que foram adquiridos em grande parte pelos judeus – a desvalorização imobiliária garantiu a
expansão de seus negócios.
Nos anos 1940, de acordo com Truzzi (2001, p. 150), a grande concentração de judeus,
principalmente na parte alta do bairro, caucionou o desenvolvimento de um ambiente propicio, “seja aos
negócios que prosperavam, seja em termos de sua sociabilidade, cultura ou religião”. Assim, Dertônio
(1971, p. 52), referindo-se aos israelitas, destaca que “a linguagem do bairro, que no primeiro quartel do
século sofrera a influência da língua italiana, está agora sendo afetada pela língua ídiche deste povo” e
que os não israelitas “por efeito de assimilação” já começavam a adotá-la.
Na década de 1950, o “bairro israelita”, como era chamado, confirmou sua vocação comercial
fundamentalmente de produtos de vestuário, ainda que muitas vezes os fundos as lojas abrigassem as
pequenas oficinas de costura que davam sustentação à atividade comercial. Nas mãos dos judeus havia
também pequenas fábricas de roupas finas e multiplicavam-se os estabelecimentos comerciais de atacado
e varejo – concentrado na Rua José Paulino6 – até 1916, Rua dos Imigrantes –, o comércio expandiu-se
para a Rua Aimorés, hoje uma das principais vias comerciais (de atacado) do Bom Retiro. Nesse período,
emergiram também as primeiras galerias e centros comerciais.
Entretanto, essa nova conformação do Bom Retiro que conjugava as funções residencial,
industrial e comercial somada ao enriquecimento e à ascensão econômica provenientes de suas
atividades impeliu a comunidade judaica a abandonar o bairro – para moradia elegeram a Avenida Paulista
e o bairro de Higienópolis, dentre outros – e a reduzir sua participação no comércio, embora permaneçam
até então como proprietários de boa parte dos imóveis da região.
Assim, outros grupos migratórios assumiram as funções industrial e comercial do bairro. A partir
dos anos 1950, chegaram os gregos e armênios. Com tímida presença desde 1900, a emigração dos
gregos para o Brasil foi impulsionada pela Guerra Civil entre 1946 e 1949, de tal modo que nos anos 1960
eram aproximadamente quinze mil no Estado de São Paulo – no Bom Retiro, eram cerca de 100 famílias
(SOARES, 2007). Destacaram-se na indústria de confecção, mas com o crescimento da imigração
coreana para o Brasil muitos desistiram dos negócios e retornaram ao País de origem.
6 Camargo esclarece que é uma homenagem ao coronel José Paulino Nogueira, agricultor natural de Campinas. Foi presidente do Banco Comercial de São Paulo, dirigiu a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e ganhou destaque por seus serviços no combate à epidemia de febre amarela que assolou sua cidade natal. Fonte: Dicionário de Ruas. Disponível em: <http://www.dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/PaginasPublicas/ListaLogradouro.aspx>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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De acordo com Soares (2007), o primeiro navio de imigrantes da Coréia aportou em São Paulo,
em 1963, com 103 passageiros a bordo. Kim (2009) esclarece que grande parte dos imigrantes veio de
Seul e se estabeleceu no Bom Retiro e, durante a década de 1960, os coreanos começaram a comprar
lojas no bairro. Mas foi nos anos 1980 que se consolidaram na região, transformando o comércio familiar
em uma estrutura empresarial e, por meio da implementação de inúmeras mudanças nos processos de
produção e comercialização, alcançaram o domínio dessas atividades no Bom Retiro.
Consequentemente, judeus e gregos abandonaram o comércio da região. Além disso, muitos
descendentes da comunidade judaica tornaram-se profissionais liberais e não deram continuidade aos
negócios familiares – atualmente, os coreanos dominam o comércio no Bom Retiro mas é perceptível a
presença da comunidade judaica, bem como de italianos e, mais recentemente, de bolivianos.
É bem verdade que, até os anos 1980, há referências na imprensa que sinalizam a presença
marcante dos imigrantes judeus no bairro. Por outro lado, é importante ressaltar que nesse momento as
confecções do Bom Retiro estabeleceram-se como fornecedoras de produtos acabados tanto para as lojas
próprias instaladas no bairro, como para lojistas de inúmeras localidades, por vezes, situados em bairros
requintados como Jardins, em São Paulo, e também em shopping centers da capital paulista, fato que na
última década ganhou maior proporção – os confeccionistas do Bom Retiro abastecem as grandes redes
do varejo de moda.
O Bom Retiro na atualidade: entre mudanças e permanências
Hoje, o Bom Retiro destaca-se entre os maiores polos comerciais de moda, especialmente de
vestuário feminino, do Brasil – estima-se que 55% desse segmento no país tem origem na região. São
cerca de 1.700 lojistas, dos quais 1.400 são fabricantes, que geram em torno de 50 mil empregos diretos e
30 mil indiretos. Em média, circulam diariamente pela região 80 mil pessoas e em datas festivas esse
número pode atingir 120 mil pessoas. Diariamente, são criadas, em média, seis novas peças por grife. As
compras são realizadas majoritariamente por revendedoras de moda (60%) e a região recebe por dia
cerca de trinta ônibus vindos de várias localidades do país e do exterior. O Bom Retiro movimenta R$ 3,5
bilhões por ano.7
O público consumidor não se restringe à baixa renda – o Bom Retiro atende camadas amplas da
população. Os produtos femininos destacam-se no volume de vendas, seguidos de acessórios,
armarinhos, aviamentos, artigos para decoração, cama mesa e banho, tecidos e roupas masculinas. No
7 Dados disponíveis em: <http://www.bomretironamoda.com.br/historia>. Acesso em: 10 mar. 2015.
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varejo, o gasto médio gira em torno de R$ 200 – no atacado, as cifras variam de R$ 3 mil a R$ 5 mil. Dos
consumidores diários que passam pela região, 90% são mulheres – entre 13 e 70 anos de idade. Das lojas
do bairro, estima-se que 80% são destinadas à moda feminina.8 Diniz (2012) acrescenta que essas
mulheres vêm principalmente das regiões Sul e Nordeste do Brasil, sendo que 60% são donas de
butiques, comerciantes de pequenas lojas e as chamadas “sacoleiras”.
No Bom Retiro, grande parte da atividade comercial sustenta-se na fabricação própria dos
produtos e, por isso, os preços são mais competitivos e sedutores para consumidores de camadas
diversas da população. Especialmente na última década, assistimos a uma notável metamorfose no bairro
encorajada pela gestão empresarial dos coreanos, a exemplo da prática das “vendas de pronta entrega”9.
Outras medidas foram significativas para a mutação do Bom Retiro: velocidade na produção e
comercialização dos produtos e abreviação desse ciclo; investimentos em pesquisa de moda, nos pontos
de venda – as lojas tornaram-se mais amplas e clean; as vitrinas, elaboradas e em sintonia as com
“últimas” tendências da moda; os consumidores ganharam maior conforto nas compras, embora isso ainda
não seja uma unanimidade – de tal modo que, muitas vezes, os pontos de venda se assemelham às lojas
instaladas em shopping centers sofisticados da capital paulista; os profissionais tornaram-se mais
qualificados.
Por outro lado, desde o início dos anos 2000, as grandes cadeias varejistas, como Zara e H&M,
adotaram o sistema fast-fashion que no mercado nacional foi assimilado pelas redes de varejo C&A,
Renner, Riachuelo e Marisa e, por conseguinte, pelos confeccionistas de menor porte, muitos deles
fixados no Bom Retiro e responsáveis por abastecer esses grandes varejistas e multimarcas do Brasil.
Consequentemente, o ciclo produtivo tornou-se mais ágil e curto e o número de peças (e novidades)
disponibilizado aos clientes (atacado e varejo) multiplicou-se.
A Rua José Paulino juntamente com as ruas Cesare Lombroso e Aymorés, compõem um conjunto
de ruas especializadas no comércio de atacado e varejo, principalmente feminino, as chamadas clusters
que, segundo Nakano, Campos e Rolnik (2002, p. 147) são:
8 ROTEIRO oficial do Bom Retiro e região, São Paulo, ano 3, n. 3, p. 40-41, 2011/2012. 9 Até meados dos anos 1990, era comum que o confeccionista apresentasse sua coleção ao cliente que realizava seu pedido de compra – por um lado, minimizava os riscos do industrial que produzia exatamente o que já havia vendido; por outro lado, representava uma demora em colocar o produto nas lojas, sem contar os percalços e atrasos que ocorriam na produção das peças, comprometendo as vendas dos clientes. Para o comprador, representava a vantagem de prorrogar o desembolso financeiro considerando que o pagamento só era efetuado diante da entrega dos artigos. Na pronta entrega, o cliente tem acesso imediato aos produtos e, por conseguinte, pode disponibilizá-los rapidamente em seu ponto de venda, não é preciso esperar que o pedido seja produzido.
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[...] trechos ou conjuntos de ruas e ocorrem muitas vezes espontaneamente, a partir de precedentes historicamente localizados ou empreendimentos âncora, da proximidade de elementos referenciais, das facilidades de acesso, da oferta de imóveis a baixo custo e/ou da presença de um ambiente construído propício à instalação das dependências necessárias de armazenamento e comercialização. A concentração de atividades, por sua vez, cria lugares de referência para fornecedores e consumidores, reforçando a preferência dos comerciantes por aquela localização, que tende a se valorizar e se torna, em última instância, um endereço indispensável.
Essas ruas especializadas dinamizam o tempo de lojistas e consumidores que lá encontram tudo o
que precisam com maior facilidade e rapidez. Vale lembrar que o bairro do Bom Retiro possui outras ruas
especializadas como: a Rua Júlio Conceição (aviamentos); a Rua Silva Pinto (confecções variadas); a Rua
Ribeiro de Lima (bolsas e acessórios); a Rua da Graça, (malharias, lojas de tecidos e lojas de máquinas
de costura industriais); e a Rua São Caetano, a chamada “Rua das Noivas”. É importante ressaltar que a
Rua José Paulino é uma das mais visitadas, pois nela há grande diversidade, especialmente, no tocante à
moda feminina e o comércio que atende tanto o atacado como o varejo; as ruas Aimorés e Professor
Cesare Lombroso, reconhecidas como “fashion” e mais sofisticadas (e caras) que a Rua José Paulino,
estão reservadas ao comércio atacadista.
No Bom Retiro, há ainda opções de compras e serviços em centros comerciais e galerias –
atualmente, são 17 no total10 – com destaque para o Centro Comercial do Bom Retiro, o maior shopping
do bairro com mais de 400 lojas, e para o Lombroso Fashion Mall, shopping atacadista com confecções
até mesmo de outros polos comerciais de São Paulo, como Brás e Itaim Bibi, e de outros Estados, como
Goiás.
Não obstante, o comércio atacadista do Bom Retiro cresce edificado na imigração sul-americana –
composta principalmente por bolivianos, além de peruanos e paraguaios – e camufla um problema grave:
o emprego de mão de obra clandestina em condições sub-humanas. Por não falarem o português e não
terem documentos, muitos desses imigrantes acabam sendo explorados pelos donos das oficinas de
costura; trabalham em troca de hospedagem, comida e pagamento irrisório. O perfil dos exploradores
também vem mudando – há empregadores de origem estrangeira, como sul-coreanos, e também
bolivianos regulares que abrem microempresas e contratam conterrâneos irregulares, reprodução de uma
prática que presenciamos em outros grupos migratórios estabelecidos em São Paulo. Outra maneira de
escoar essa produção é por meio do comércio informal, praxe ainda no Bom Retiro e uma prática comum
10 Roteiro oficial do Bom Retiro e região, São Paulo, ano 3, n. 3, p. 68-71, 2011/2012.
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na primeira metade do século XX – o comércio ambulante11, é uma das permanências que queremos
enfatizar neste estudo.
O comércio ambulante
Levin (1987) destaca que concentrados no bairro do Bom Retiro, ser clientelchic ou “russo da
prestação”12 – sinônimo para o mascate ou vendedor de prestações – era o destino de muitos imigrantes
judeus e sírio-libaneses. Bresser (2001) observa que muitos dos judeus tinham preconceito em relação
aos trabalhos manuais ou braçais e, por isso mesmo, preferiam seguir o caminho da mascateação dos
sírios e libaneses, comercializando de tudo um pouco.
Figura 1: Mascates sírios e libaneses. Fonte: Oficina Cultural Oswald de Andrade
11 O vocábulo ambulante, do latim ambulante, significa aquele que passeia, que vagueia, que perambula (CUNHA, 1986). Como destaca D’Angelo (2000), ambulante é quem obtém licença, mediante o pagamento de taxas na Prefeitura, ficando autorizado a comercializar produtos nas vias e logradouros públicos. Os ambulantes são classificados como efetivos – movimentam-se de um lugar para outro, carregando junto ao corpo a sua mercadoria ou equipamento –; de ponto móvel – as atividades são exercidas com o auxílio de veículos automotivos ou não, equipamentos desmontáveis e removíveis –; e de ponto fixo, ambulantes que fazem uso de barracas não removíveis, em locais previamente designados, em vias e logradouros públicos. Para mais detalhes sobre o comércio ambulantes na primeira metade do século XX, veja Fyskatoris (2006), capítulo 4. 12 Com o advento da II Guerra Mundial, os “turcos” transformaram-se nos “russos da prestação” para, ao término da guerra, serem conhecidos como “gringos” (GRÜSNPUN, 1983).
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Importante lembrar que no final século XIX, o estímulo à imigração promovido pelo governo
brasileiro para suprir a mão de obra exigida pela economia cafeeira, por um lado, aumentou a população
da cidade e, consequentemente, o mercado consumidor; em contrapartida, ocasionou a carência de
empregos na área urbana, pois muitos desses imigrantes acabaram se instalando na cidade. Da mesma
forma, era usual que os imigrantes não se acostumassem às atividades das lavouras, dirigindo-se à
indústria e ao comércio, respaldados pela prática como artesãos em sua terra natal. Todavia, como nem
sempre eram absorvidos pelo mercado de trabalho formal, a atividade comercial constituía-se uma
alternativa e representava uma oportunidade de ascensão econômica e social para aqueles que vinham
tentar a vida em São Paulo.
Truzzi (1997, p. 58) é enfático quanto à importância da imigração sírio-libanesa para o comércio
de um modo em geral, apontando que “os sírios e libaneses operaram, na qualidade de pioneiros, uma
verdadeira revolução nas práticas comerciais”. O autor ainda acrescenta: “Por tudo isso, não seria demais
afirmar que foram eles que, no Brasil, ‘inventaram’ o comércio popular, dando balizamento a seus
parâmetros hoje tão comumente empregados.13
Segundo D’Angelo (2000), na década de 1930 os migrantes de Minas Gerais e das regiões Norte
e Nordeste engrossaram a massa de ambulantes na região. Foi nesse período que houve uma rigorosa
repressão a esse comércio informal, para o qual a Prefeitura exigia licença, atestado de saúde, entre
outras documentações. O autor alerta ainda que os ambulantes se tornaram alvo preferencial da polícia do
Estado Novo e os camelôs14 eram detidos habitualmente sob alegação de vadiagem, tornando usual a
associação do camelô com a prática de atividades ilícitas, justificando que o termo tenha adquirido um
caráter pejorativo.
Vale salientar que muito antes da introdução do crediário na cidade de São Paulo, os vendedores
ambulantes instituíram a prática da venda à prestação, fato que revela uma aguçada percepção não só
para a escassez de recursos financeiros de seus clientes, como também para a própria sobrevivência de
suas atividades, que dependia do pagamento ainda que irrisório e nem sempre constante, das prestações
pelos clientes.15 Esse modo de comerciar permaneceu na região e, quando não foi mais possível conceder
crédito aos clientes, o pagamento era feito preferencialmente à vista – uma prática que permaneceu por
13 Sobre esta temática, veja também Truzzi (1971) 14 A palavra camelô, do francês camelot, designa o “mercador que vende bugigangas ou outros artigos, nas ruas, apregoando-os de modo típico” (Cunha, 1986:143). Segundo Hamilton D’ Angelo (2000), o termo camelô passou a ser empregada na cidade como referência aos ambulantes a partir dos anos 1930. 15 O crediário foi disseminado pelo varejo de moda a partir do final da década de 1920. Para saber mais, veja Fyskatoris (2006), capítulo 2.
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muito tempo no bairro. No entanto, mais recentemente, os comerciantes do Bom Retiro cederam à adoção
da venda com cheques e/ou cartão de crédito.
Inicialmente, os “vendedores de porta em porta” sofriam impiedosas críticas dos comerciantes
pela concorrência desigual, primordialmente pelo não pagamento de impostos mas num momento ulterior,
passaram a colaboradores dos grandes varejistas e auxiliavam no escoamento de mercadorias, mais
especificamente das “sobras das lojas”, que os ambulantes se encarregavam de vender nos bairros
distantes do Centro da cidade, como o Bom Retiro, até então um bairro periférico. Ainda hoje,
principalmente na Rua José Paulino, é visível a prática informal na comercialização de produtos de moda
(vestuários e acessórios), como também na venda de comestíveis. Da mesma forma, ainda vigora na
região o comércio de produtos falsificados e/ou contrabandeados com evidentes prejuízos à economia
local – e, por que não brasileira –, como também é possível observar que se mantém a relativa
“colaboração” entre os comerciantes formais e informais.
Figura 2 e 3: O comércio informal – prática cotidiana na Rua José Paulino. Acervo Raquel Maia
Estabelecimentos comerciais
Por tudo que foi dito, podemos imaginar por que o Bom Retiro é considerado um local mais
democrático de consumo – é aberto e integrado à comunidade e à cidade; há facilidade de acesso, seja
pelo transporte coletivo, seja pela proximidade da área central da cidade; e é diverso na oferta de produtos
e serviços de tal modo que abarca camadas amplas da população. Por outro lado, a universalização das
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tendências de moda e a adoção do fast-fashion equalizaram o design das grifes de luxo às marcas
populares. No Bom Retiro, os coreanos passaram a disponibilizar rapidamente ao mercado as últimas
tendências ainda que com matéria-prima distinta (e inferior) das marcas de luxo, o que necessariamente
não representa um entrave para o consumidor do “Bomra”, como carinhosamente é conhecido o bairro.
Os tipos de estabelecimentos presentes no bairro revelam as marcas dos grupos migratórios que
se instalaram por ali, para morar ou trabalhar. Nas lojas sofisticadas, as vitrinas elaboradas exibem
produtos em sua maioria de confecção feminina – lojas que investem no arranjo físico, como iluminação e
sonorização, destacando nas vitrinas as peças de roupas em grandes e atrativos cenários. E, há nas lojas
menos sofisticadas, em geral de médio porte, o destaque a preços e promoções, com vitrinas menos
elaboradas e sem a preocupação em compor cenários ou seduzir os clientes, as quais comercializam, por
exemplo, sportswear – evidenciando traços dos coreanos que impuseram à região uma nova forma de
comercializar.
Figuras 4 e 5: À esquerda, vemos uma loja um pouco mais sofisticada com manequins estilizados e vitrinas mais arrojadas; à direita, no entanto, uma loja um pouco menos sofisticada na qual constatamos uma menor preocupação em relação à composição visual da vitrina. Acervo Raquel Maia
Em contrapartida, as lojas populares, com grandes bancas em certa “poluição visual”, expondo
produtos empilhados, exibindo placas com valores promocionais, de preços baixos e que, muitas vezes,
contam com a ajuda de rapazes que ficam à porta dos estabelecimentos anunciando as ofertas,
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convocando os sujeitos que transitam a comprarem os produtos que são vendidos no interior da loja e as
bancas de camelôs instaladas nas calçadas e que comercializam todo tipo de produtos, em especial
roupas e acessórios, nos remetem à primeira metade do século XX quando predominava na região o
comércio de pequeno e médio portes e também os ambulantes.
Figuras 3 e 4: À esquerda, uma loja mais popular que oferece de tudo um pouco; à direita, observe as bancas de camelôs que ocupam espaços nas calçadas da rua de maneira irregular. Acervo Raquel Maia
A diversidade de sujeitos
Grosso modo, o Bom Retiro é regido pelo excesso – de compradores e transeuntes apressados
num movimento entre corpos que (quase) se tocam ao andar; de cores e formas que emergem da
infinidade de produtos que ali são comercializados e que se misturam com uma imensidão de corpos.
Nesse cenário, é importante considerar a relevância dessa localidade no mercado brasileiro para a
pesquisa de moda e o turismo de compras.
Não é sem razão que a região tem se valorizado em vários âmbitos, de tal modo que na Planta
Genérica de Valores (PGV)16 da Prefeitura de São Paulo (2014), o metro quadrado da Rua José Paulino
por exemplo atingiu R$ 8,4 mil, curiosamente o valor está acima da Rua Oscar Freire, na região dos
Jardins (R$ 8.396 m²), polo comercial da cidade voltado para o varejo de luxo.
16 Corresponde ao valor venal, base para o cálculo do IPTU. Calcula-se que seja 30% inferior ao valor de mercado.
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Fatores que demonstram a importância econômica do Bom Retiro como um polo produtor de
moda e centro que oferece uma grande quantidade de peças, a preços acessíveis, e consumo rápido de
produtos, que estão em acordo com as rápidas sazonalidades da moda. Por isso, o bairro tem atraído
consumidores de todo o Brasil e até mesmo de outros países, tal qual descrevem Maia e Martins, (2014, p.
2) a respeito de uma das importantes ruas do bairro:
Na rua José Paulino, aglomeram-se sujeitos de vários tipos, de compradores particulares a sacoleiras, de vendedores das lojas aos ambulantes, que, num movimento contínuo, fazem desencadear as ações de compra e venda, vivenciando a democratização do consumo – ou a ilusão dela. De uma loja para outra, os consumidores andam apressadamente com sacolas nas mãos. Apagam-se na massa de pessoas e de produtos expostos em espaços de circulação estreitos para a quantidade de transeuntes [...].
Diariamente, mais de 75 mil pessoas entre lojistas, compradores profissionais, donos de pequenos
estabelecimentos e sacoleiros movimentam o comércio no atacado, além dos consumidores individuais,
que procuram no varejo produtos a preços sempre atraentes. No Bom Retiro, grande parte da atividade
comercial apoia-se na fabricação própria dos produtos, por isso mesmo os preços são mais competitivos e
sedutores para esses consumidores que vem em busca de lançamentos, novidades, bons preços e
negócios.
Considerações Finais
No decorrer do trabalho, procuramos traçar a diacronia do bairro do Bom Retiro para, então,
chegar à análise do que é ele e representa hoje: um polo comercial, multicultural e de vivências múltiplas.
A história do bairro nos permite elucidar e compreender como o bairro que estudamos se configura tal qual
o conhecemos. De “bom retiro” para o descanso, tornou-se um Bom Retiro para os que aportam, até hoje,
na cidade de São Paulo, acolhendo-os e propiciando espaços de trocas, comerciais e culturais. Da mesma
forma, torna evidente que a pluralidade dos sujeitos é intrínseca à configuração da diversidade comercial:
do comércio totalmente informal, passando pelo comércio de pequeno e médio portes, ao comércio de
lojas sofisticadas e preços não mais tão acessíveis. Essa miscelânea que vemos hoje é também a mistura
de identidades que se deu anteriormente entre os mascates e os comerciantes locais, nacionais e
estrangeiros. Finalmente, o estudo da história e da memória do bairro do Bom Retiro permite, igualmente,
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conhecer as particularidades e marcas identitárias daqueles que participaram da construção e expansão
do bairro e, também, a melhor compreensão sobre a ocupação da cidade e o próprio desenvolvimento de
São Paulo.
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