Prefacio a Gorki. Ed. Hedra. VersaoFinal-libre

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Maksim Górki: introdução à vida e à obra. Logo no início de sua carreira literária, Maksim Górki conquistou uma popularidade ímpar. Seu primeiro conto, “Makar Tchudrá”, foi publicado em 12 de setembro de 1892 no jornal “Kavkaz”, editado em Tiflis, e teve grande repercussão. Seis anos depois, em 1898, quando da publicação de dois volumes das obras completas do jovem escritor, ficou óbvio que a fama de Górki havia superado todas as expectativas: as tiragens dos livros atingiram 100.000 exemplares, esgotando-se rapidamente. Parecia incrível que todos os 25.000 exemplares de sua primeira peça, “Pequenos burgueses,” foram todas vendidos em 15 dias. Nenhum escritor russo, antes de Górki, gozou de tamanha popularidade entre os leitores. Do dia para a noite, ele se tornou uma das mais famosas figuras literárias da Rússia no limiar dos séculos XIX – XX e passou a ser mundialmente conhecido como Maksim Górki (“górki”, em russo, significa amargo), pseudônimo que adotara ao publicar o primeiro conto. Aleksei Piéchkov (nome de batismo do futuro escritor Maksim Górki), filho de Maksim Piéchkov e Varvara Kachírina, nasceu em 16 (28) 1 de março de 1868, em Níjni-Nóvgorod. Seu pai morreu quando Aleksei tinha apenas 4 anos. Sem meios para sustentar o filho, Varvara decidiu voltar para a casa de seus pais, onde enfrentou um verdadeiro inferno familiar: bebedeiras e constantes brigas entre seus dois irmãos pela divisão dos bens, falência da pequena empresa de seu pai e uma pobreza cada vez mais assustadora... Na casa sombria e violenta dos Kachírin, havia somente uma pessoa que “amava viver e amava tudo”, a avó analfabeta, Akulina Ivánovna. Sua imagem encantadora, plena de cordialidade, força e sabedoria popular, seria, mais tarde, consagrada pelo neto nas obras “Infância” (1913-1914) e “Ganhando meu pão” (1916) que, junto com “Minhas universidades” (1923), fazem parte da trilogia autobiográfica de Górki, recém lançada no Brasil em tradução direta do russo feita por Boris Schnaiderman e Rubens 1 Como a Rússia adaptou o calendário gregoriano somente em 1918, é de praxe que todas as datas históricas russas, anteriores a 1918, sejam informadas em dois formatos: primeiro, segundo o calendário juliano (o antigo) e depois, entre parênteses, segundo o calendário gregoriano (o atual). A diferença entre estes dois calendários é de 13 dias.

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Versao Final

Transcript of Prefacio a Gorki. Ed. Hedra. VersaoFinal-libre

  • Maksim Grki: introduo vida e obra.

    Logo no incio de sua carreira literria, Maksim Grki conquistou uma

    popularidade mpar. Seu primeiro conto, Makar Tchudr, foi publicado em 12 de

    setembro de 1892 no jornal Kavkaz, editado em Tiflis, e teve grande repercusso. Seis

    anos depois, em 1898, quando da publicao de dois volumes das obras completas do

    jovem escritor, ficou bvio que a fama de Grki havia superado todas as expectativas:

    as tiragens dos livros atingiram 100.000 exemplares, esgotando-se rapidamente. Parecia

    incrvel que todos os 25.000 exemplares de sua primeira pea, Pequenos burgueses,

    foram todas vendidos em 15 dias. Nenhum escritor russo, antes de Grki, gozou de

    tamanha popularidade entre os leitores. Do dia para a noite, ele se tornou uma das mais

    famosas figuras literrias da Rssia no limiar dos sculos XIX XX e passou a ser

    mundialmente conhecido como Maksim Grki (grki, em russo, significa amargo),

    pseudnimo que adotara ao publicar o primeiro conto.

    Aleksei Pichkov (nome de batismo do futuro escritor Maksim Grki), filho de

    Maksim Pichkov e Varvara Kachrina, nasceu em 16 (28)1 de maro de 1868, em

    Njni-Nvgorod. Seu pai morreu quando Aleksei tinha apenas 4 anos. Sem meios para

    sustentar o filho, Varvara decidiu voltar para a casa de seus pais, onde enfrentou um

    verdadeiro inferno familiar: bebedeiras e constantes brigas entre seus dois irmos pela

    diviso dos bens, falncia da pequena empresa de seu pai e uma pobreza cada vez mais

    assustadora...

    Na casa sombria e violenta dos Kachrin, havia somente uma pessoa que amava

    viver e amava tudo, a av analfabeta, Akulina Ivnovna. Sua imagem encantadora,

    plena de cordialidade, fora e sabedoria popular, seria, mais tarde, consagrada pelo neto

    nas obras Infncia (1913-1914) e Ganhando meu po (1916) que, junto com

    Minhas universidades (1923), fazem parte da trilogia autobiogrfica de Grki, recm

    lanada no Brasil em traduo direta do russo feita por Boris Schnaiderman e Rubens

    1Como a Rssia adaptou o calendrio gregoriano somente em 1918, de praxe que todas as datas histricas russas, anteriores a 1918, sejam informadas em dois formatos: primeiro, segundo o calendrio juliano (o antigo) e depois, entre parnteses, segundo o calendrio gregoriano (o atual). A diferena entre estes dois calendrios de 13 dias.

  • Figueiredo.2 O escritor confessa que o desinteressado amor pelo mundo da av o

    enriqueceu e o impregnou de uma fora resistente para uma vida difcil e que, alem

    disso, ele tambm ganhou da av um inestimvel conhecimento sobre folclore russo e a

    literatura oral russa ao ter escutado s histrias extraordinrias, sobre bandoleiros

    bondosos, sobre pessoas santas, sobre todo tipo de bicho e sobre o capeta3 que Akulina

    Ivanova gostava de contar.

    Em 1878, a me de Aleksei faleceu de tuberculose e, aos dez anos, o pequeno

    Gorki teve de deixar a casa do av e trabalhar para seu prprio sustento. Conseguiu um

    emprego numa sapataria, trabalhou em um escritrio como desenhista, foi lavador de

    pratos num navio do Volga e acabou se apaixonando pela literatura. Graas ao

    cozinheiro desse navio, que lhe emprestava os primeiros livros de fico, o menino de

    12 anos comeou a ler, ou melhor, comeou a devorar todos os livros o ba do

    cozinheiro, que formavam a mais estranha biblioteca do mundo: obras filosficas e

    msticas, clssicos russos e estrangeiros, escritores contemporneos e folhetos da

    literatura popular. ( importante notar que a linguagem empregada na literatura popular

    exerceria grande influncia sobre o estilo do jovem escritor, fato que, com certeza, o

    ajudou-lhe a conquistar grande massa de leitores).

    Grki nunca teve educao formal: sequer chegou a completar os estudos

    primrios. Contudo, as leituras despertaram nele uma verdadeira sede de saber e, em

    1884, ele foi para Kazan com intuito de ingressar na universidade, mas no conseguiu

    realizar seu desejo. Mais tarde, o escritor diria sobre aquele fracasso de seu sonho: "Eu

    no esperava ajuda alheia, nem contava com a sorte... O homem se forma pela

    resistncia ao meio. A prpria vida continuou a ser sua universidade. Perambulando

    de cidade em cidade no sul da Rssia em busca de emprego, Grki experimentou vrias

    profisses (jardineiro, aprendiz de pintor, cantor de coro, padeiro...), comungando com

    os sofrimentos dos humilhados e ofendidos e conhecendo de perto o meio brutal do

    fundo (o submundo russo) e a dura existncia de seus protagonistas: vagabundos,

    malandros, bbados, ladres, prostitutas... Bossiaki, os ps-de-chinelo, seriam os

    personagens prediletos do jovem escritor, os quais ele soube tratar com tamanha vigor,

    de forma incomparvel e jamais superada na literatura russa.

    2 Infncia. Ganhando Meu Po. Minhas Universidades.So Paulo: Ed. Cosac Naify, 2007. Traduo, apresentao, ensaios e informaes sobre o autor de Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman. 3 Citaes em traduo de Rubens Fugueiredo

  • Durante suas andanas pela me Rssia, Grki aproxima-se tambm dos crculos

    revolucionrios sendo preso, pela primeira vez, em 1889.

    Como j mencionamos, o escritor tornou-se famoso logo depois da publicao

    de seu primeiro conto. O xito de Makar Tchudr abriu ao autor as portas de vrios

    jornais de Kazan, Samara Njni Nvgorod onde Grki publicou uma srie de ensaios

    folhetins satricos. Em 1899, a revista Jizn publicou seu primeiro romance Fom

    Gordiev, que trouxe ao escritor fama mundial. Dmtri Bykov, autor do livro sobre

    Grki recm lanado, Ser que Grki existiu, faz uma ntida analise das

    particularidades do estilo literrio do jovem escritor que lhe trouxe extraordinrio

    sucesso: Nas obras de Grki sempre acontece algo: assassinatos, espancamentos,

    prises, paixes fatais, adultrios, brigas de pai com filho, runas, suicdio, incndio,

    fraude... Tudo intenso e, o mais importante, - esplndido. O esplendor talvez seja uma

    palavra chave na descrio de sua prosa da primeira fase: tudo est no limite da

    oleografia e, s vezes, at do lubok4. Ele constroi seus enredos grosseiramente, sem se

    preocupar muito com bom gosto, mas sempre os transformando de tal maneira que a

    mais primitiva histria se torna arte, ainda que nem sempre esteja no mais alto patamar.

    No h nada de delicadeza de aquarela, mas afeta sem falta.5

    Ao conhecer a fama, Grki muda-se para So Petersburgo e logo consegue um

    lugar de destaque nos meios literrios. Fez amizade com os maiores escritores da poca:

    Lev Tolsti e Anton Tchkhov tornam-se seus leitores e interlocutores. De 1901 a 1912,

    Grki dirigiu a Companhia de editoras Znnie; de orientao marxista, Znnie

    privilegiava uma linha de literatura realista, opondo-se a todo tipo de manifestaes

    literrias modernistas.

    Envolvido com o movimento revolucionrio e defendendo uma posio poltica

    radical, Grki se tornava um escritor cada vez mais engajado e perigoso do ponto

    de vista do governo. Foi eleito membro honorrio da Academia de Cincias, em 1902,

    ttulo que foi mais tarde anulado por um ato do tsar Nikolai II. Em sinal do protesto,

    Tchkhov e Korolenko fizeram questo de se demitir da Academia.

    Durante a primeira revoluo russa, em 1905, Grki ingressa no Partido Social-

    Democrtico dos Operrios Russos (RSDRP) e conhece Lnin. O ponto alto de sua

    criao partidria foi a famosa Cano do Albatroz uma verdadeira glorificao da

    4 Um tipo da literatura popular russa, tipologicamente prxima literatura de cordel. 5 D.Bykov. Byl li Grki? Moscou: Astel, 2008

  • futura tempestade revolucionria, decorada e declamada nas barricadas pelos

    militantes. Entretanto, depois de se proclamar contra o tsar, Grki passou mais um

    perodo preso na Fortaleza de Pedro e Paulo em So Petersburgo, fato que o obrigou a

    emigrar. A partir de 1906, o escritor fixa sua residncia na Itlia, em Capri. L, escreve

    o romance proletrio Me, obra que, j em 1907, segundo a crtica oficial da Unio

    Sovitica, anunciou o novo mtodo literrio conhecido como realismo socialista,

    embora este livro, abertamente tendencioso e simplista, talvez tenha sido o mais fraco,

    do ponto de vista artstico, de tudo que Grki escreveu.

    Depois da anistia geral anunciada pelo tzar Nikolai II em 1913, foi concedida a

    Grki a possibilidade regressar Rssia, onde permanece at emigrar novamente, em

    1921, devido a suas severas criticas revoluo e ao regime dos bolcheviques. Grki

    escreve e publica no jornal Nvaia Jizn (Vida Nova) uma srie composta de 58

    artigos, que, em seguida seriam publicados no livro intitulado Pensamentos

    inoportunos. Anotaes sobre a revoluo e cultura (1917 - 1918). Nessa obra,

    proibida pela censura sovitica durante 70 anos, Grki registrou com impressionante

    vigor e emoo as cenas da terrvel crueldade desencadeada pela revoluo, antes to

    almejada (e at financiada) pelo escritor e agora percebida como uma experincia

    violenta e desumana. Sem poupar seus companheiros partidrios e o prprio Lnin, o

    escritor condena o lder do novo regime e seus cmplices, que, nas palavras de Grki,

    com sangue frio difamam a revoluo, difamam a classe operria ao obrig-la a

    desencadear massacres sangrentos, a provocar pogroms e prises de pessoas

    absolutamente inocentes6.

    Lev Tolsti, quando conheceu Grki, logo sentiu que o jovem escritor tinha um

    corao inteligente, e foi exatamente este corao inteligente que fez Grki, de novo,

    revelar todo o vigor de sua compaixo pelo ser humano ao levantar sua poderosa voz

    em defesa das vitimas do regime, quer fossem campesinos e operrios embrutecidos por

    tudo est permitido, ou membros da intelligentsia, perseguida e ameaada pelo novo

    poder. Os pensamentos inoportunos tornavam-se cada vez mais amargos: Grki

    presenciava como ao obrigar o proletariado a concordar com o fim da liberdade da

    imprensa, Lnin e seus cmplices legitimaram o direto de fechar a boca da

    6 M Grki. Nesvoevremnnie mysli.Zamitki o revolutsii i kulture. (Pensamentos inoportunos. Anotaes sobre revoluo e cultura.). Moscou: Sovtski pisstel, 1990, Cap. XXXVI

  • democracia.7 Mas o escritor ainda tentaria se opor ao caos ps-revolucionrio fazendo

    todo o possvel para preservar os valores culturais. Graas a seus esforos foi fundada a

    editora Vsemrnaia Literatura que, literalmente, salvou as vidas de dezenas de

    escritores e poetas soviticos que passaram a ganhar seu po realizando tradues das

    obras clssicas encomendadas pela editora.

    Mas, apesar de todos os esforos, o escritor no conseguiu prevenir a priso e a

    execuo do poeta Nikolai Gumiliov, em 1921... Revoltado, Grki decidiu emigrar da

    Unio Sovitica ou, segundo a verso oficial, foi ao exterior para tratar da sade

    debilitada... Passou mais de dez anos fora; na Itlia, em Sorrento, escreveu o romance

    Os Artamonov (1925), e, em 1927, comeou a escrever A vida de Klim Samguin,

    um livro que no chegou a terminar. Depois de mais de uma dcada de exlio, em 1931,

    a convite de Stlin, Grki voltaria a viver na Unio Sovitica e j era considerado um

    escritor totalmente consagrado pelo regime socialista: ainda durante sua vida, no

    havia na Unio Sovitica cidade que no tivesse uma rua ou uma praa Grki e at

    sua cidade natal, Njni Nvgorod, passaria a ser chamada Grki, por ordem de Stlin.

    Morreu em junho de 1936 e teve todas as devidas honras do primeiro escritor

    proletrio: seu corpo foi velado e sepultado na Praa Vermelha, ao lado do

    mausolu de Lnin.

    Grki, autor dramtico

    TATIANA. No... Acho que nessa temporada eu dificilmente vou ao teatro. Estou farta. Fico impaciente e irritada com esses dramas cheios de choros, lamentos e soluos.(...)

    tudo uma mentira. A vida destri as pessoas sem choros, sem gritos... sem lgrimas... imperceptivelmente...( Pequenos Burgueses)

    Grki escreveu sua primeira pea, Pequenos Burgueses, devido a pedidos

    insistentes dos pais fundadores do Teatro de Arte de Moscou K. Stanislvski e V.

    Nemirvitch-Dntchenko. Coube exatamente a Grki tornar-se, segundo as palavras de

    7 Ibidem

  • K. Stanislvski, o principal iniciador e criador da linha scio-poltica no teatro8, assim

    como, podemos acrescentar, no drama moderno.

    A idia da pea data do incio de 1900, mas o trabalho desenvolvia-se

    lentamente e seus primeiros resultados no satisfaziam o escritor. Grki costumava

    dizer que em Pequenos Burgueses havia muito barulho e nervos, mas faltava fogo.

    Inicialmente, a pea teve o ttulo de Cenas na casa dos Bessmenov. Esboo dramtico

    em 4 atos. Grki enviou um de seus primeiros exemplares para apreciao de Anton

    Tchkhov. E recebeu dele, sem demora, a resposta, na qual o j famoso autor de A

    Gaivota e Trs Irms teceu suas consideraes em relao a Pequenos Burgueses.

    Tchkhov admitia que, embora a pea fosse muito boa, tinha sido escrita

    maneira de Grki: muito original e muito interessante, mas havia nela um defeito, um

    defeito visivelmente incorrigvel, como so os cabelos ruivos na cabea de um ruivo: o

    conservadorismo da sua forma. O senhor faz os novos e interessantes personagens

    cantarem novas canes, mas seguindo partituras que apresentam um aspecto gasto,

    batido: h na sua pea quatro atos, e os personagens se estendem em lies de moral,

    sente-se um temor diante das prolixidades, etc, etc...9. Contudo, decorridos alguns

    meses, em carta ao ator Ijin, Tchkhov observou que o indiscutvel mrito desta pea

    consistia em Grki ter sido o primeiro, na Rssia, e at no mundo inteiro, a comear a

    falar com desdm e repulsa da mentalidade pequeno-burguesa, justamente no exato

    momento em que a sociedade estava preparada para este protesto. Do ponto de vista

    cristo, ou econmico, ou de qualquer outro ponto de vista que fosse, a mentalidade

    pequeno-burguesa no passa de um grande mal; ela igual a uma barragem no rio que

    sempre serviu apenas estagnao...10.

    O texto de Pequenos Burgueses por duas vezes o texto... sofreu censura e a

    cada vez a quantidade e o tamanho de trechos suprimidos cresciam. Os censores

    riscavam da obra as frases e palavras mais significativas, do ponto de vista social.

    Entretanto, apesar das numerosas cortes empreendidas pela censura, a encenao de

    Pequenos Burgueses pelo Teatro de Arte de Moscou continuava a inspirar cautela e

    preocupao por parte dos crculos governamentais. Para assistir ao ensaio geral,

    lembra K. Stanislvski, reuniu-se ali a S. Petersburgo governante em peso, 8 K.S. Stanislvski Minha vida na Arte. Moscou: Iskusstvo, 1983, p. 259. 9 A.P. Tchkhov. Obras completas em 12 volumes. Moscou: Khudjestvnnaia Literatura, 1957, volume 12, p. 46. 10 Ibid, p. 529

  • comeando pelos grandes prncipes e ministros, todas as classes de funcionrios, o

    Comit de Censura completo, os representantes das autoridades policiais, assim como

    figuras das classes dominantes, acompanhadas de suas esposas e filhos. Uma guarnio

    fortalecida de policiais foi designada para ficar tanto dentro do teatro, como em volta do

    mesmo; pela praa, em frente ao teatro passeavam guardas armados, a cavalo. Podia-se

    pensar que no era a preparao para um ensaio geral, e sim para um combate geral11.

    A estria de Pequenos Burgueses foi apresentada pelo Teatro de Arte de

    Moscou numa tourne artstica, em So Petersburgo, em 26 de maro de 1902, e os

    fiscais na entrada do teatro foram substitudos por guardas paisana. Nemirvitch-

    Dntchenko subia galeria, suplicando que a juventude no realizasse manifestaes

    caso contrrio Grki teria mais infortnios. preciso dizer que o trabalho com

    Pequenos Burgueses fora interrompido em abril de 1901, pelo fato de o autor ter sido

    recluso na priso de Njni-Nvgorod. A juventude radical reagiu com compreenso.

    Apenas na ltima das quatro apresentaes algum gritou com voz grave: Abaixo o

    Grande Prncipe!

    Apesar disso, os censores no deixavam a pea de Grki em paz, submetendo-a

    a um nmero cada vez maior de cortes. Para poder impedir que as encenaes de

    Pequenos Burgueses se proliferassem nos palcos das capitais e da provncia, foi

    aplicada a essa obra uma medida de censura exclusiva: s era permitido apresent-la

    com autorizao especial da parte do governador da localidade e numa verso definida

    da montagem, cimentada pela censura dramtica.

    O prprio princpio da estrutura de Pequenos Burgueses (como Tchkhov

    observou logo do incio) bastante tradicional, prximo ao tipo, difundido, de drama

    familiar. Todos os acontecimentos se passam na casa de Vassli Vasslievitch

    Bessmenov. Contudo, a idia da pea mais profunda e mais ampla do que uma

    simples amostra de um conflito familiar. Ao recriar o cotidiano do dia a dia de uma

    tpica famlia russa do comeo do sculo XX, o dramaturgo, como que atravs de uma

    lente de aumento, examina toda uma cosmoviso social, a qual ele classifica como a

    mentalidade pequeno-burguesa. Em seu artigo intitulado Notas sobre a mentalidade

    pequeno-burguesa, Grki escreve que esta mentalidade consiste de uma estrutura da

    alma do atual representante das classes dominantes. As principais particularidades da

    11 K. Stanislvski. Minha vida na Arte. Moscou: Iskusstvo, 1993, p. 261.

  • mentalidade pequeno-burguesa so: um senso de propriedade, distorcido, um desejo

    tenso de que sempre haja tranqilidade dentro e fora de si, um medo intenso diante de

    qualquer coisa que possa, de uma forma ou de outra, perturbar esta tranqilidade; e uma

    aspirao, persistente, de poder encontrar uma explicao para tudo aquilo que venha a

    fazer oscilar este equilbrio que se estabeleceu na alma, ou que possa destruir os pontos

    de vista, j estabelecidos, sobre a vida e as pessoas12.

    essa compreenso do fenmeno da mentalidade pequeno-burguesa que vem a

    determinar a especificidade do conflito da pea. De um lado, ele se origina a partir de

    uma srie, real, de acontecimentos que compem o enredo: este um conflito entre

    pais e filhos da famlia Bessmenov, entre o patriarca desta famlia e Nil, entre Nil e

    Tatiana... Por outro lado, o conflito interior (o mais importante para o dramaturgo)

    aquele que ocorre entre os que exprimem a psicologia da mentalidade pequeno-

    burguesa (no entender profundo de Grki) e as novas idias e formas de vida que vm

    para mudar a antiga estrutura de vida.

    A principal descoberta social e artstica de Grki foi a personagem do filho

    adotivo dos Bessmenov, Nil, que, na viso do autor, deveria estar no centro do drama.

    O dramaturgo quis colocar nesta imagem o princpio do conflito do drama e, no toa

    que o velho Bessmenov profere a sua frase caracterstica: Nil! Tudo parte dele.

    Grki, pela primeira vez, lanou no palco um tipo de homem, at ento desconhecido

    para o teatro russo. De botas de trabalho, o rosto sujo de fuligem, Nil se tornou o

    primeiro heri-proletrio a pisar sobre o palco russo. Por este motivo, poderamos

    pensar que os censores tinham todos os motivos para temer que a estria de Grki como

    dramaturgo pudesse coincidir com o incio da politizao do teatro e que o teatro

    pudesse se transformar em uma arena de propaganda. No entanto, isto no veio a

    ocorrer por uma srie de motivos.

    Em primeiro lugar, porque o prprio diretor, Stanislvski, no tinha a inteno

    de criar um espetculo engajado e dava-se conta, perfeitamente, de que a tendncia e

    a arte so incompatveis, um exclui o outro. Logo que algum se aproxima da arte com

    intenes tendenciosas, com propsitos utilitrios ou outros que no sejam artsticos, ela

    fenece, como a flor nas mos de Siebel. Em arte uma idia estranha, uma tendncia,

    12 Grki.Obras completas em 30 volumes. Moscou: Khudjestvennaya Literatura, 1995, vol. 23, p.

    341.

  • deve transformar-se em sua prpria idia, realizar-se em sentimento, tornar-se uma

    aspirao sincera, uma segunda natureza do prprio artista. Neste caso, ela integrar a

    vida do esprito humano do ator, do papel, da pea como um todo e deixar de ser

    apenas uma tendncia, tornando-se o prprio credo. E, por sua vez, o espectador ter

    que tirar suas concluses e criar sua prpria tendncia a partir do que percebeu no

    teatro13.

    Em segundo lugar, apesar dos insistentes conselhos de Tchkhov e dos pedidos

    de Grki, ambos procurando convencer Stanislvski a representar o papel de Nil, ele se

    recusou categoricamente, pois, do seu ponto de vista, no havia lugar para um papel

    herico...

    surpreendente, como foi forte a influncia de Tchkhov nesta primeira

    experincia de encenao da obra gorkiana. Enfeitiado por Tchkhov, Stanislvski

    no conseguiu ver a diferena bsica entre ambos os dramaturgos, construindo sua toda

    a sua partitura de diretor na baseada em estados de esprito, usando semitons e

    pausas... Como resultado, a primeira montagem de Pequenos Burgueses pareceu mais

    um espetculo a la Tchkhov.

    curioso observar a impresso que a apresentao de Pequenos Burgueses

    causou em Leonid Andriev, outro famoso dramaturgo, contemporneo tanto de Grki,

    como de Tchkhov. Andriev publicou uma resenha sobre o espetculo, na qual,

    escreveu: As peculiaridades da primeira pea de M. Grki que nela no existe aquilo

    que se chama de ao dramtica e no h, tambm, personagens secundrios. Retrata-se

    um pedao do quotidiano, tal como ele , com sua ao lenta, marcando passo...

    enquanto isso, as personagens envelhecem, geram filhos, morrem, aparentemente sem

    realizarem qualquer ao... Bebem, comem, conversam, brigam, se separam,

    participam de acontecimentos, no meio de uma enorme massa inquieta, movendo-se

    para adiante e sem destino certo. E s quando se percebe quo longe todos eles

    avanaram, e que o fim no se assemelha ao incio, ento a que se sente e se

    compreende que, atrs desta ausncia aparente de ao, ocultam-se poderosas foras de

    uma vida que destri, pune, julga e cria. Esta historicidade artstica da vida, que fora

    primeiramente introduzida no drama russo por Tchkhov, levada ao total e brilhante

    13 K.S.Stanislvski. Op.cit., p. 258

  • desenvolvimento em Pequenos Burgueses, o qual o autor chamou, a meu ver, de

    modo totalmente infundado, de esboo dramtico...14.

    O sucesso extraordinrio viria a Grki dramaturgo logo em seguida, com a

    estria, em 1902 e tambm no Teatro de Arte de Moscou, de sua segunda pea, No

    Fundo (ou Ral, como melhor conhecida no Brasil). Em 1904 - 1905, ele escreve

    mais trs dramas: Veraneiros, Filhos do sol e Brbaros e no seria exagero

    afirmar que um pouco antes da revoluo de 1905, a obra dramtica de Grki chegou a

    dominar os palcos russos, influenciando a politizao dos espectadores, daquela

    intelligentsia russa que almejava, junto com Grki, a vinda da tempestade

    revolucionria...

    Elena Vssina

    14 James Linch (L.N.Andreyev). Meschne. In: Kurier, 31 de maro de 1902.