PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos...

14

Transcript of PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos...

Page 1: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma
Page 2: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma
Page 3: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

PREFÁCIO

Na água do tempo, um olhar naufragado. Nos limos das profunde-zas, que guardou da poeira dos dias? Pouco... e ansiava a Luz. Nada tinha ficado do peso insuportável da desolação. Nada da gota, breve, da alegria. Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten-sidade. Nada ficara mesmo de exaltações mais comedidas: a da sua ida a Paris, da sua primeira ida a Londres, das suas viagens a Espanha — e tantas tinham sido — por Madrid, Anduluzia, Ávila, Salamanca, Bur-gos, Vascongadas e aquelas mais frequentes e familiares pela Galiza (tão chuva e Rosalía!) com aqueles lugarejos que sabia antes de conhe-cer: Bastabales, Padrón, Lestrobe, o sonho de pedra sombria de San-tiago, os santos recolhidos no portal da Glória. Nada ficara. Apenas alguns lugares (porquê uns e não outros?), vagas luzes, vagas horas, vagos pensamentos, vagos desejos, perplexidades, rescaldo de revoltas impotentes. E não eram esses os indícios, os sinais, as promessas. Tão carne e porcelana a seda das camélias! Tão intenso o perfume dos lila-ses! Longe. Perdido. A última vez que sentira o perfume dos lilases já não entrava pelas janelas de guilhotina, misturado ao cheiro da terra regada de fresco, nem ao vento, afiado e ainda frio, dos lados do Marão. O perfume dos lilases vinha das jarras. De todas as jarras da sala e ti-nha-os comprado como se quisesse afogar-se na amargura daquela Páscoa sozinha. Sem pai, sem mãe, sem marido, sem filhas, sem o ros-maninho que atapetava o chão das igrejas, sem o enterro, anual do Senhor, sem ressurreição nem aleluia, sem inocência e já sem esperan-ça. Naquela casa, outra, sem os retratos dos mortos, antigos, que não conhecera, nas paredes: o bisavô de olhos ramalhudos, que levava as noivas a fugir com ele, em plena lua-de-mel e a quem as amantes bor-davam gravatas de seda natural, com pássaros e flores, avós, tios, a Serafina, meia-irmã do pai e da tia, o Rubem sempre no Brasil e ou-tros, outros. Mortos, que nas gavetas se misturavam com os seus retra-tos de menina: o dos seis meses, o de um ano, o do jardim da Carreira, o do cabelo à garçonne, de regador e sombrinha, tirado na feira de S.to

Page 4: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

António... Mortos que não regressavam, que se embebiam na terra fofa e aconchegada das raízes, que se liquefaziam e adoçavam o estriado das pedras. No seu coração estavam sepultados e a eles se tinham jun-tado outros, desde a infância: Letícias, Milocas, Marquinhas, Adelai-des, Franciscos, Manuéis. Tios, parentes idosos. Os primos: a Nininha, a Alice, a Leta, o Armandinho, ceifados pela tuberculose galopante. Depois os mais chegados: o pai, a tia. Um longo cortejo de mortos. Até os do acaso: o rosto familiar, súbito desaparecido do autocarro, do bal-cão do banco, o da mendiga que se arrastava a si e à sua tosse até umas escadinhas sujas, mais para se despedir da vida, antes que os olhos se lhe fechassem do que pela magra esmola. E com todos eles, de rosto delido e apagado, se amalgamavam os mortos-vivos que voluntaria-mente tinham saído da sua vida e aquelas, outras, que tinha sido: uma menina que se emocionava com a vida trabalhosa dos mártires, como se aqueles martírios fossem eternos e estivessem a acontecer no mo-mento em que a tia lhos contava, a rapariguinha, selvagem, que subia às árvores e acreditava em fadas e mitos, a mulher, crédula, que fora, teimando em acalentar esperanças que a vida, raivosamente, ceifava ainda em erva. O perfume dos lilases, atingido aquele limiar de dor, que não sabemos mais se é física se é mental, apunhalava-a na tarde, na-quela casa, outra. Não já a de outrora, onde se mirara no espelho das aparências. Arrogante, segura, vestida apenas da nudez da sua grácil adolescência, sem precisar de asas-braços para cantar a vida. O espe-lho devolvia-lhe, então, o seu corpo-lira, as suas formas de fruto enxu-to, onda e concha, libertas na luz nocturna, que envolvia a sua carne de lua, amassada com azeitona. Um corpo de hastes e ramagens, fonte e braço de água. Margem de seda — longilínea e breve — tão apetecida! Como era simples o alfabeto do corpo e que fácil amá-lo: as formas, a textura, o odor secreto, o sabor salino e canela, o rumor latejante! Os cabelos, movimento na aragem da tarde ou algas de suor, nos ombros da noite. Mas como tocar e sentir, sob a mão, os soluços de sombra e a fragilidade nua e informe do ser? Tão fácil acalmar as sedes do corpo e tão difíceis as outras! O seu fogo estava para além do seu ventre, ca-vado, capaz de floração, as suas nascentes muito para lá das fissuras,

Page 5: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

labiais, do corpo. Havia nela sombras mais densas do que as do púbis ou mesmo que as do sol negro dos seus cabelos. Claridades mais lumi-nosas do que água batida pela luz. O rio das suas pernas era um curso limitado, mas a sua alma tinha caudais de sede, mais ansiedade e in-quietações do que as do simples desejo. Coisas sem nome, que apela-vam ao caldeamento e à fusão, mais ao êxtase do que ao orgasmo. O que era o amanhecer, lunar, das colinas do seio, comparado às profun-didades, nocturnas, do que estava para além dos sentidos: as dormên-cias do que não sabemos pelo olhar e pela metáfora e são tumultuar obscuro? E depois, como decidir, era a sede dela que ele bebia, ou a sua própria sede que acalmava e procurava estancar? O «outro» existe re-almente ou somos ainda nós? Ah! tão apetecido corpo e tão trilhada a alma! Noutras casas, depois noutros andares, que lhe mostrava o seu espelho interior? Mesmo à superfície marcas de erosão da vida, som-bras que ainda pesavam, mesmo quando máscaras arrancadas. O de-sengano dos olhos. Espancados. Nesse espelho poço se procurara. Pro-curara a perdida infância das casinhas, da espiral do jogo da Glória (ou do tempo?), das bonecas, filhas tornadas monos, e ainda à altura do peito, que já não aconchegava — decepados os braços, que também já não envolviam, nem acalentavam. Ausentes os lugares, destruídas as paredes, naquele espelho-interior, fundo, se procurara entre as que ti-nha sido. Procurara saber-se. E, para sobreviver, um equilíbrio entre a que era, as do passado e a outra — a longínqua, a bela, a dolorida e esmagada, perda e só memória. Depois até aquele equilíbrio se rompe-ra. Tudo esmagado, destruído. Dias só com tarefas e noites de insónia, longas. Fragmentos. Peças de um puzzle sem sentido. A vida era uma memória de raízes e um desejo de realização de mitos, condenados à destruição. Uma sensação de perda irremediável. Esse era o gosto, úl-timo, da vida. Tudo tocado dessa certeza: a de não haver nada que não fosse desgaste, afastamento ou morte. Tudo ferido dessa perda anteci-pada. E ninguém tinha dito: «Cala a palavra! Guarda o embrião do gesto! Esmaga entre os lábios o beijo! Aprisiona entre os braços a tua solidão para que não seja perdida em outros nenhuns!» Ninguém preve-nira. A vida era um longo adeus. Os acenos da chegada comportavam

Page 6: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

já os adeuses da partida. E não lhe era mais possível regressar àquele quarto (o seu de menina) cercado por toda uma corte celestial e um oratório, onde o Menino Jesus de Praga, ataviado como um principezi-nho das histórias, lhe sorria. Não lhe era possível lá voltar para sentir de novo o rumor das asas dos anjos. Não as dos sete que, no santo dos santos, gozavam da presença de Deus, nem as do seu anjo da guarda, mais familiares, mas as daqueles que mais amara e nunca vira repre-sentados, a não ser muito mais tarde numa catedral ortodoxa: os que tinham seis asas. Duas para cobrir o rosto de Luz, impossível de olhar, duas para esconder os pés que não caminhavam e duas para percorrer os espaços infindos. Há muito que deixara de sentir aquele rumor ma-rulhante, «como um movimento de grandes águas». Não havia regresso para aquele tempo auroral, em que o mundo nascia, luminoso, todos os dias e a felicidade tinha a cor da esperança. Era um caminho sem re-torno. Impossível. E, no entanto, as histórias diziam «para sempre, para sempre». E os anjos, estava escrito, voavam de «eternidade em eternidade». As histórias? Contos para embalar crianças. Os anjos? Fugidos, por isso tinham asas. Os rostos? Nem sequer nítidos, porque eram perecíveis. As paredes? Desmoronadas, porque não eram eternas. Sentia-se um bicho sem concha, ferido e indefeso, entregue às cruezas do tempo. E, como se isso não fosse bastante, não tinha atingido a Luz, por que sempre ansiara, que sempre a tinha fascinado. A ondulação, vibrada, da luz, a sua refracção e reflexos, o seu difundir-se instantâneo ou gradativo, que se coloria pela coloração do dia, das nuvens e da hora e que morria na sombra, para renascer. Prismática, zenital ou morren-te, que contornava os objectos e os fazia vibrar e fremir. Espelhada na horizontalidade aquosa, às vezes opaca, quase branca, outras transpa-rência cristalina, quebrada e verrumante, lenta a abrir no leque da ma-nhã. A luz que lucilava nas gotas de orvalho, nas asas dos insectos, fragilidade e pólen fulvo, só ela capaz de levar o olhar até aos limites. Fugidia imagem da outra, da inatingível, vedada aos olhos do corpo. Ah! a ninfa, rastejante, do fundo da vaza lamacenta erguer-se-á, libé-lula, de asas irisadas, flor alada, grácil e sem peso, e dançará na clari-dade. Mas nós rastejamos toda a vida em procura de uma Luz que se

Page 7: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

nos recusa e regressamos à vaza com farrapos de lembranças do que não tivemos e nos foi negação. E mesmo essa pupila-memória do olhar naufragado, mesmo essa, a água, no seu movimento incessante, corrói, desgasta, apodrece, liquefaz, entre os limos...

1948

Agosto, Campeã

Ele e eu fomos dar um passeio de mãos dadas. Por toda a parte havia cancelas, sem ar de cão de guarda. Caídas. Abertas. Gaiatas.

No monte apanhou-nos uma chuva de verão e tivemos de nos aco-lher debaixo das abas, pretas, de um telhado. No regresso, havia um cheiro gostoso a terra molhada e o vale tinha um ar renovado: todas as árvores se sacudiam ao vento, como cachorros depois de um ba-nho.

Agosto

Detesto visitas. Apetecia-me terrivelmente ser um coelho, com uma tocazinha sem porta, por onde se entrasse por meio de uma palavra mágica! Toda eu canto com o poeta:

Page 8: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

Et là je bâtirai une petite cabane faite de glaise et d’osier;Neuf rangs de fevres j’aurai, une ruche de miei.Et je vivrai seul dans la clarière où bourdonnent les abeilles.

Há só uma rectificação a fazer: detesto favas. Mas estou decidida a plantar outra coisa. Plantarei ervilhas.

Agosto

Apaixono-me lenta e profundamente por V. Woolf. Acabei de ler Dame au Miroir e uma beleza inapreensível dança em mim, com uma oscilação fantasiosa de luar movido pelo vento. Sinto-me exausta, pisada por milhares de coisas secretas que imprimem passos de fogo no meu coração. Agitada por um frémito de sombras que se afadi-gassem, de ramo em ramo, tornando-se impalpáveis — como pétalas há muito fechadas num cofre, que uma indiscrição abriu.

Setembro

Apesar da chuvazinha, incessante, cor de ouro velho, o que dói é o vaivém da serra, a sensação de um implacável destino.

Tudo tem estado dourado. Mas hoje o céu está pesado de angústia e chove. Não posso sair do quarto, desta horrível casa, pintada de um verde sujo, de paredes rachadas, cheias de pregos que sustenta-vam toda uma corte celestial e agora que ela foi alugada me olham, estupidamente, cegos, absurdos e sem sentido. Em relação às outras casas da aldeia, todas de chapéu de abas largas de lousa preta, é

Page 9: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

de fazer chorar. Medonha, rígida, de granito lavado. O telhado sem beiral dá-lhe um ar aparvalhado de criança a quem, por maldade, tivessem cortado a franja.

Setembro

Chove. Chove. Chove. Acabou-se para sempre a esperança do sol. Tudo tem um ar de desesperançado, de braços caídos ao longo do corpo. Apesar disso saí quando a chuva parou. Não havia árvores, nem caminhos. Só uma névoa cinzenta, perfurada pelas buzinas dos pastores.

Setembro

As cartas que recebo dela são as minhas, enfeitadas de caracóis, metidas em molduras com querubins e borboletas, pintadas de ruti-lante amarelo, a fingir ouro.

Outubro

Acordei a tempo de ver o espreguiçar estremunhado da terra. A relva, entre os castanheiros, tinha incríveis reflexos vermelhos e os montes estavam tintos de violeta. O chiar dos carros de bois soava longe como um choro rabugento de crianças, a quem tivessem tirado da cama demasiado cedo.

Page 10: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

1949

Fevereiro, Lisboa

F. faz anos hoje. Veio a menina Noémia trazer flores. É o tipo de mulher que me seria antipática se fosse rica, mas a sua pobreza e o seu cheiro acre fazem em vez disso que eu me deteste pelos meus maus sentimentos. Trouxe goivos de folhas abundantes com uma flo-rinha de couve, no cocuruto de cada pé.

Agosto, Campeã

I — Manhã

O vale está coberto por um mar de nevoeiro pouco espesso, fei-to de luar derramado. Os verdes têm ondulações extáticas de alga. Enormes peixes (as escamas prateadas brilham com fosforescências submarinas) repousam no fundo. Há na paisagem qualquer coisa de adormecido, de sonho, que a serra vigia atenta como velho dra-gão desconfiado. As patas estiram-se-lhe pelo vale, num espreguiçar possante, e o dorso farpeado de bandarilhas (ou serão pinheiros?), cheio de cicatrizes, que as ovelhas sugam como moscas importunas, eriça-se-lhe para o céu.

Agora (por causa do sol? da badalada solitária do sino?) a reali-dade começa a insinuar-se. Não uma realidade viva. Mas a de um pisa-papéis que alguém agitou subitamente. A névoa, já teia a es-boroar-se, solta-se. E os seus dedos esguios correm o harpeado dos pinheiros, que franjam o vale, esborratando os verdes à medida que sobem.

Page 11: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

O quotidiano afirma-se cada vez mais. Onde estão as algas, o dra-gão, os peixes de escamas prateadas? Apenas árvores, a serra, casas (a pretura húmida dos telhados é perfeitamente visível). Casas de homens, que começam a chamar-se, de longe, misturando as vozes ao canto dos galos.

II — Malhada

Os manguais tombam e digladiam-se sobre o tapete dourado do trigo. Todo esse emaranhado de patas estranhas pertence a dois cor-pos (as duas filas de homens dispostos frente a frente) — que se prolongam num desejo colectivo e antagónico de vencer a maldição, que lhes pesa desde o Génesis.

Com os braços, que seguram as mantas para conter o grão, as mulheres erguem a linha rija dos seios, mas nada excita a virilidade, máscula, dos sexos, murchos daquele esforço, aguilhoado pelo calor da hora. Não sobe um gracejo ou canto. Há só o arfar ritmado dos homens. O suor abre-lhes no rosto, escurecido de pó, estradas húmi-das. As camisas colam-se-lhes ao corpo que o destino, de terem de regar o pão dos outros com o seu suor, arqueou.

Nas pausas, a pichorra passa de mão em mão. Bebem grandes go-les sôfregos. Bebem como se não fosse vinho. Como se fosse sangue inimigo, que lhes aplacasse uma vingança acumulada através de ge-rações. Depois retomam a faina, febris, mecânicos, enceguecidos por uma raiva toldada. E quando os manguais se abatem de novo, vem com eles todo um desalento, que se obstina e se torna duro como a pancada que faz saltar o grão. Segue-se o mesmo estertor de agonia, que o vinho prolonga e empasta.

O sol vigia-os com o olho ígneo de ciclope malvado. Na borda da eira, indiferentes, as galinhas debicam os grãos espalhados.

III — Interior

Na casa silenciosa, pulsa, como um coração, o ritmo louco do

Page 12: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

tear.A avó Maximina tece, vigiada pelo Senhor ornado de rosas feitas

a ponto de cruz, e pelos mortos da família, constrangidos na juven-tude embalsamada pelos caixilhos. No chão, os netos brincam com os novelos tintos, e fazem rodar a dobadoura.

O sol entra através do postigo nevado de farripas de lã e faísca ora sobre a espiga vermelha pendente da parede, ora sobre o xadrez da manta. Há uma espessura de paz, que o bater do pente corta, com sacudidelas cadenciadas de remo.

As mãos calosas urdem e misturam (num hábito de velha feiti-ceira) o verde de milho, o açafroado pálido do trigo, o vermelho dos feijões, o carregado do vinho. Avó Maximina sempre fora tece-deira. O tear era um companheiro antigo, quase um confidente. Ao pé dele, mudamente, podia abrir a lã das suas lembranças, recordar toda a vida da aldeia... o casamento esfumado e distante... os filhos, sobretudo os filhos. Mas ultimamente o pensamento estava-lhe só com aquele (a lançadeira teve uma corridinha mais veloz) que ia doutorar-se em Roma. Parecia-lhe quase impossível (e era uma vo-lúpia) que ele fosse carne da sua carne. Fora dos santos da igreja, do seu Senhor ornado de rosas a ponto de cruz, nada mais conhecia. Ver o Papa! Como seria ele? Não, não podia imaginá-lo, embora às vezes lhe emprestasse a cara de Santo Antão, padroeiro da fregue-sia, outras o resplendor do próprio Espírito Santo. Do que tinha a certeza é que devia ser assim como a visão do próprio Deus, na ma-jestade dos seus anjos e dos seus santos. Sim, devia ser isso. E a alma transbordou-lhe numa gargalhada, que veio tropeçar nos seus dois únicos dentes. Os netos estranharam-na e gritaram um «Mãe Mina» assustado. Sorrindo-lhes por cima dos óculos sem graduação, com-prados na feira, eles voltam, já tranquilos, novamente a disputar a vez de fazerem da dobadoura um corrupio veloz. Ela é que não vol-ta logo ao trabalho. Fica-se a auscultar a vida surda da casa, que vem no grunhido dos porcos, no esgravatar das galinhas, no estalar da madeira. Fica-se a olhar enternecida o emaranhado das cabeças demasiado próximas, preto de azeitona miúda e desbotado de estri-

Page 13: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

gas. Do seu ventre de flacidez pregueada, oculto pelas vestes negras de viuvez, saíra vida. Um filho seu veria o Papa! Sentiu-se fecunda como a Terra.

A lançadeira e o bater do pente ritmam-se de novo.

IV — Povoado

A aldeia parece abandonada. Nas estrumeiras chafurdam porcos. Um grupo de crianças, imundas, de fralda arregaçada, patinha num rego: pernas arqueadas com o peso das barrigas inchadas a pão e caldo. Os homens estão nos lameiros, presos ao jugo da terra. As suas vozes sobem vindas do vale, juntamente com as cantigas das mulheres — confiança de S. Miguel farto, que lhes fez pedir dinheiro a 10% e cingir os rins numa magreza de fome.

As casas, que da estrada através dum vidro de automóvel, a bro-tarem do verde do milho numa pretura faiscante, parecem tão pi-torescas, fúnebres e como que a decompor-se, seguem-se umas às outras. Pelo ralo das portas adivinham-se os interiores: o forno com o signo-saimão — esperança frustrada, a de algum dia deixarem de comer pão fermentado a suor, o escano, o broeiro, colocado debaixo da espia vermelha de milho-rei, cheia de pó, fetiche que perdeu a magia. As janelas, em bacios e potes ferrugentos, o manjerico, verde e cheiroso, que as raparigas ostentam nas estrigadas — companhei-ro efémero duma beleza efémera, apagada pelo casamento e pelos filhos.

Empoleirado num canastro um galo solta o colorido das suas pe-nas num canto que se perde, longe. Indiferentes, as galinhas esgrava-tam aqui e ali.

Outubro, Lisboa

F. e eu fomos à Outra Banda. O sol já se tinha posto, mas na

Page 14: PREFÁCIO - PDF Leyapdf.leya.com/2011/Apr/na_agua_do_tempo_yfsm.pdf · Como se a vida nos inutilizasse nos pontos máximos de inten- ... textura, o odor secreto, o ... Há só uma

margem havia ainda barcos estirados numa modorra feita de redes, bambas, a secar. No meio do rio cruzámo-nos com um barco já de luzes acesas. As gaivotas, borboletas tontas, dançavam-lhe à volta.

Outubro

As ruas dormem ainda. As luzes dos candeeiros, porém, já se apa-garam. A casa em frente tem o ar solene e misterioso das casas de-sabitadas. Talvez por isso o seu jardim de palmeiras hirtas consegue um certo encanto. Ao fundo a gravata, ainda cinzenta, do rio. Pas-sam vendedores de jornais com a sacola vazia, acompanhados de uma tossezinha seca. E velhas, vergadas de devoção, para a primeira missa. Uma mão ensonada arredou uma cortina na casa rosa, de um rosa recente de bolo de aniversário. O movimento aumenta. O camião do gelo parou em frente da leitaria.

1950

Janeiro, Vila Real

A urna tinha sido colocada no exíguo espaço por ela ocupado em vida — um canto da única sala da casa. Em volta, além dos castiçais de velas apagadas, alinhavam-se, como palmeiras raquíticas, hirtos