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PRELÚDIO DE UMA PSICOLOGIA MATERIALISTA
RESUMO
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de cunho teórico, que visa discutir os
pressupostos da psicologia e redefini-los a partir do materialismo-histórico-dialético,
Entendendo que os saberes psicológicos que surgiram do positivismo e que ainda hoje
encontram-se no bojo da psicologia acadêmica, são ainda hegemônicos, porém,
mostram-se como insuficientes na elaboração de saberes sobre a subjetividade. Nesse
sentido, propõe-se discutir a produção dos saberes sobre a subjetividade como produto
das condições materiais e não como existindo a priori, podendo ser considerados,
inclusive, atemporais, como pretende estabelecer o racionalismo positivista. A partir
dessas discussões, inicia-se uma reflexão sobre uma nova proposta da Psicologia que
podemos denomina-la como Psicologia Materialista. Contrapondo todo idealismo
existente nos modelos de Psicologia existentes.
Palavras-chave: Materialismo. Subjetividade. Positivismo.
ISMAEL FERREIRA
PRELÚDIO DE UMA PSICOLOGIA MATERIALISTA
Trabalho de Conclusão do Curso, apresentado para obtenção do grau de bacharel em Psicologia no Curso de Psicologia da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC.
Orientador: Prof ª Dra. Janine Moreira
BANCA EXAMINADORA
Prof ª Janine Moreira - Doutora - (UNESC) – Orientadora
Prof ª Patricia Goulart - Doutora - (UNESC)
Prof º Sandro Kobol Fornazari - Doutor - (FES)
CRICIÚMA, DEZEMBRO DE 2007.
1 INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA
O objeto de estudo deste trabalho foi pensado na medida em que houve
considerável avanço nas reflexões sobre os modelos de psicologia existentes,
respaldados no positivismo, sendo que o positivismo mostra-se como hegemônico na
academia. Partindo de uma compreensão do humano que leva em consideração as
representações da natureza humana, cujas explicações partem dessas considerações,
utilizando métodos considerados seguros, portanto, inquestionáveis. Percorre-se a partir
de então, outros caminhos para pensar a produção dos saberes sobre a subjetividade,
não tão cristalizados como os da ciência de cunho positivista, mas, poder-se-ia dizer,
mais soltos, como os métodos encontrados a partir das reflexões sobre subjetividade na
filosofia.
Nesse sentido, percebe-se um caminho novo para ser percorrido, não que
ninguém o tenha indicado, mas é ainda carente de reflexão, principalmente na UNESC –
Universidade do Extremo Sul Catarinense, cuja hegemonia dos saberes sobre a
subjetividade instauram-se nas vertentes psiquiátricas e transpessoais; sendo a primeira
a percepção dos fenômenos a partir de uma visão naturalista e naturalizante da
subjetividade, considerando, sobre essa ótica, a subjetividade como normal ou
patológica; a segunda mostra uma visão de mundo e de homem sobre os preceitos de
uma dimensão cultural considerada espiritual, voltando-se para a cultura oriental, como
se a resposta para nossa condição humana estivesse perdida em algum fenômeno
desconhecido que, de repente, pode surgir como solução e resposta para nossa
salvação, baseada numa metafísica religiosa, que busca explicar as condições humanas
a partir de pressupostos ideológicos e religiosos, porém utiliza os mesmos métodos
positivistas, recorrendo a neurociência e a física quântica para formulação de suas
hipóteses.
Nesse contexto, diante dos estudos realizados na UNESC, durante minha
graduação, percebi que a psicologia deve ser revista desde os fundamentos, por
demonstrar insuficiência metodológica nos seus conceitos advindos do positivismo, pois
tais conceitos mostram-se fragilizados, principalmente quando tenta explicar a
subjetividade. Dessa forma, foi possível pensar numa psicologia a partir da utilização do
materialismo-histórico-dialético, pois pareceu mais apropriado não colocar seus
conceitos como verdades atemporais, nem mesmo entender os sujeitos a partir de
modelos previamente estabelecidos. Por essa razão, esse trabalho teve como finalidade
rever os pressupostos da psicologia desde seu surgimento segundo o materialismo-
histórico-dialético, pois entende-se que as condições para produção da subjetividade e
dos saberes sobre a subjetividade são móveis e temporais, restritos as condições
materiais e históricas, nas quais não apenas os sujeitos estão inseridos, mas,
sobretudo, os sujeitos do conhecimento científico.
O materialismo-histórico-dialético oferece uma visão de mundo e de homem
que se contrapõe ao positivismo, ao empirismo e ao idealismo, e também a todos os
saberes que surgem a parir dessas concepções, oferecendo um conhecimento que leva
em consideração as condições materiais mais básicas e a transformação dessas
condições pelo homem num processo histórico em que o homem se constrói e constrói
sua subjetividade, entendendo que a subjetividade é fruto dessa relação do homem com
seu meio, e que, através do trabalho, pode transformar essas condições: concreta e
subjetivamente. Assim, a subjetividade é também produto da história e das condições
materiais.
2 PROBLEMA E OBJETIVOS
O problema que motivou a pesquisa encontra-se na necessidade de pensar
uma psicologia que não fosse baseada no positivismo, fundamentando assim razão de
contrapor-se ao mesmo e novas formas de reflexão, segundo o materialismo-histórico-
dialético. Pois, parti-se do princípio de que a experiência e observação não são
suficientes para pensar o processo de subjetivação, pois o mesmo surge num processo
histórico, oriundo das condições materiais em que o sujeito interage com seu meio,
formando, nessa relação, sua subjetividade.
O objetivo do trabalho foi contribuir com uma discussão sobre modelos de
psicopatologia e tratamento. Oferecidos na academia nos dias atuais e problematiza-los
a partir de uma visão materialista, compreendendo que ao definir-se uma base teórica
para uma Psicologia Materialista, definir-se-á um novo olhar para o fenômeno subjetivo.
3 PROCEDIMENTOS
propôs-se fazer um estudo de natureza bibliográfica, cujo acervo encontrou-se
na biblioteca da UNESC e do autor, visando discutir os fundamentos da psicologia que
se desenvolveu a partir do positivismo e contrapor-se a ela com base no materialismo-
histórico-dialético.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Materialismo-Histórico-Dialético
A parceria dos filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels
(1820-1895), ultrapassou os escritos que transformaram o pensamento científico,
estenderem-se para posições políticas bem definidas a favor da classe operária
européia no século XIX. Essa mesma parceria deu origem, entre outras obras
fundamentais, A Ideologia Alemã23, que inicia uma reflexão sobre a concepção histórica
da sociedade. Tais reflexões mostram-se ao mundo como emergentes na tentativa de
formular saberes sobre o humano nas suas dimensões subjetivas, sociais, políticas...
Marx e Engels iniciam suas reflexões questionando as compreensões de um
grupo de estudantes de filosofia, o qual ambos fizeram parte, chamados de Jovens
Hegelianos.
Para os jovens hegelianos, as representações, idéias, conceitos, enfim, os produtos da consciência aos quais eles próprios deram autonomia, eram considerados como verdadeiros grilhões da humanidade, assim como os velhos hegelianos proclamavam ser eles os vínculos verdadeiros da sociedade humana. Torna-se assim evidente que os jovens hegelianos devem lutar unicamente contra essas ilusões da consciência. Como, em sua imaginação, as relações dos homens, todos os seus atos e gestos, suas cadeias e seus limites são produtos de sua consciência, coerentes consigo próprios, os jovens hegelianos propõem aos homens este postulado moral: trocar a sua consciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta e, assim falando, abolir seus limites. 24
A crítica a Hegel é o ponto de partida para a reflexão do materialismo –
histórico-dialético, entendendo que Hegel considerava os conceitos, idéias,
representações da consciência, como sendo produzidas no distanciamento da realidade
objetiva. Marx e Engels fazem questão de mostrar que os jovens hegelianos percebem
a construção da consciência sem levar em consideração os objetos reais, como se os
mesmos não tivessem importância, sendo na verdade, os conceitos abstratos e
superiores aos parâmetros sobre os quais a realidade molda-se. Hegel entendeu que a
consciência tem seu princípio na realidade objetiva, porém não deve contentar-se com
23 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007 24 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 09.
a simples abstração da objetividade, deve buscar vôos mais altos, nos quais a
consciência atual deve ser substituída por uma consciência humana universal, sendo
que a consciência atual, vinda diretamente da vida real, não pode ser considerada
humana, por não ser universal.
A compreensão de Hegel diferencia-se do materialismo-histórico-dialético na
sua ascensão da realidade, contrapondo-se diretamente, pois para Marx e Engels, a
consciência humana estabelece-se enquanto humana nos seus limites com a realidade,
pois na medida em que se distancia, deixa de ser humana.
Ainda referindo-se aos jovens hegelianos, Marx e Engels consideraram que
tais filósofos não refletiram sobre a relação entre a filosofia alemã e a realidade alemã,
nem sobre a crítica e o seu próprio meio material. Nesse sentido, Marx e Engels
lançaram as bases do materialismo-histórico-dialético, como crítica ao hegelianismo e,
num sentido mais amplo, a todos os métodos que se caracterizaram de uma forma
desvinculada da realidade objetiva.
As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, suas ações e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são verificáveis por vias puramente empíricas. 25
Posta as bases do materialismo-histórico-dialético, pode-se considerar como
sendo um freio ao hegelianismo, na sua tentativa de atingir o supremo e absoluto,
distanciando-se da vida real dos humanos. Não apenas isso, mas pode-se, a partir
dessas afirmações, diferenciar o materialismo-histórico-dialético do racionalismo
cartesiano, pois o primeiro tem sua base na realidade, enquanto o segundo tem sua
25 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 10.
base no pensamento dado a priori. Até mesmo Locke encontra-se junto a Descartes,
diferenciando-se do materialismo-histórico-dialético. Hume aproxima-se do
materialismo-histórico-dialético, no que tange sua relação empirista, porém, diferencia-
se do materialismo quando coloca o homem separado do processo histórico, das
condições materiais e de uma dialética em que os sujeitos são agentes da história,
tanto quanto são produtos dela.
Nesse sentido, Marx e Engels discorrem sobre as condições humanas, a
partir de uma condição inicial, ou seja, a condição física. Compreendendo quais
relações podem existir a partir dessas condições, entre os próprios humanos e entre a
natureza. Sendo que na relação com a natureza, às condições dividem-se em duas: 1.
As condições que os humanos já encontraram prontas; 2. As condições que foram
resultado de sua ação. A segunda condição os torna diferente dos animais, pois a partir
desse momento os humanos começaram a produzir seus próprios meios de existência.
Se os homens são produtores de suas próprias existências, suas existências coincidem
com suas produções. Assim o homem é capaz de produzir sua existência, mas torna a
sua vida de acordo com sua produção, tal dialética não o lança para longe, para o alto,
para o supremo, mas mostra que diferente dos animais o homem pode inventar sua
própria forma de vida.
A maneira como os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que eles produzem quanto com a maneira como eles produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção. 26
Dessa forma, fica evidente que o pensamento de Marx e Engels mostra que
não há um distanciamento entre a objetividade e a subjetividade a ponto de propor uma 26 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 11.
negação. Pelo contrário, tanto o mundo objetivo como o mundo subjetivo caminham
numa relação contínua. Em primeiro lugar, destacam-se as representações humanas
como fruto das relações objetivas: “São os homens que produzem suas
representações, suas idéias... mas os homens reais, atuantes (...)”.27 Aqui Marx e
Engels mostram que a realidade produz a consciência. Consideram também:
Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a
terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das representações ideológicas desse processo vital.28
Fica evidente que para Marx e Engels a construção da consciência parte da
materialidade, seja a condição encontrada pelo homem, ou mesmo de sua própria ação
transformadora.
Em segundo lugar, pode-se dizer que, da mesma forma que os homens
constroem suas consciências a partir da realidade objetiva, o próprio pensamento,
resultado dessa abstração, transforma a produção real da vida.
Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhe é própria, o seu pensamento e também o produto de seu pensamento. 29
Sendo que os homens transformam o pensamento de acordo com as próprias
condições reais, buscando transformar a realidade objetiva com sua ação, como o
27 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 19. 28 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 19. 29 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 19-20.
próprio produto do pensamento pode ser transformado pelas condições materiais e
históricas.
Esta concepção mostra que o fim da história não se acaba
resolvendo em “consciência de si”, como “espírito do espírito”, mas sim que a cada estágio são dados um resultado material, uma soma de forças produtivas, uma relação com a natureza e entre os indivíduos, criados historicamente e transmitidos a cada geração por aquela que a precede, uma maça de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias, que por um lado, são bastante modificados pela nova geração, mas que, por outro lado, ditam a ela suas próprias condições de existência e lhe imprimem um determinado desenvolvimento, um caráter específico; por conseguinte as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as circunstâncias. 30
Considerando o pensamento como produto dos meios reais da existência,
Marx e Engels compreendem que a existência também torna-se produto do
pensamento, não num abstracionismo que distancia-se da realidade, como propõe
Hegel, nem numa construção da realidade, partindo do pensamento. Mas da relação
entre a realidade e o pensamento. Distanciando-se da filosofia hegeliana, Marx e
Engels propõem o fim da história, não como resultado da “consciência de si”, mas de
uma revolução das circunstâncias concretas da vida material. Nesse sentido, o novo
pode ser inventado, porém, nunca dissociado da história, pois pode-se criar a partir do
que já existe e nunca criar do nada existente, assim o novo leva em consideração o
velho.
Compreende-se ainda que as novas gerações são moldadas pelas anteriores,
mas que moldam também as posteriores, pois o espírito da dialética materialista está no
fato de que (...) as circunstâncias fazem os homens tanto quanto os homens fazem as
circunstâncias”.31
30 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 36. 31 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 36.
Nesse momento estabelece-se o materialismo-histórico-dialético, pois o
método parte de uma análise histórico-material e dialética, sendo uma dialética da
consciência, da produção da consciência na história.
Marx e Engels diferenciam o materialismo-histórico-dialético do empirismo e
idealismo, firmando-o como contraponto a esses métodos.
Essa forma de considerar as coisas não é isenta de pressupostos. Ela parte das premissas reais e não as abandona por um instante sequer. Essas premissas são os homens, não os homens isolados e definidos de algum modo imaginário, mas envolvidos em seu processo de desenvolvimento real em determinadas condições, desenvolvimento esse empiricamente visível. Desde que se represente esse processo de atividade vital, a história deixa de ser uma coleção de fatos sem vida, tal como é para os empiristas, que são eles próprios também abstratos, ou a ação imaginária de sujeitos imaginários, tal como é para os idealistas. 32
Marx e Engels, de forma definitiva colocam o materialismo-histórico-dialético
numa dimensão diferente do empirismo, pois não pregam uma simples abstração, em
que os fatos históricos são vistos isoladamente e sem vida. O sujeito proposto por Marx
e Engels não apenas abstrai da realidade objetiva para formar a consciência, mas a
consciência modifica a vida real. Da mesma forma, não se encontra no idealismo
nenhuma correspondência com o materialismo-histórico-dialético, pois Marx e Engels
entendem que a proposta idealista não se relaciona com a realidade, produzindo
sujeitos destituídos das condições reais, da vida real, nesse sentido, produz vidas
imaginárias. Sendo que o materialismo-histórico-dialético não explica a história segundo
a idéia, mas a formação das idéias segundo a prática material.
Marx e Engels consideram os métodos científicos ricos em especulação,
propostas destituídas da realidade, resultantes de especulações abstratas, sem sentido 32 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 20.
real. E que tais especulações não oferecem conhecimento seguro sobre a produção da
vida humana.
É aí que termina a especulação, é na vida real que começa a ciência real, positiva, a análise da atividade prática, do processo, do desenvolvimento prático dos homens. Cessam as frases ocas sobre a consciência, para que um saber real as substitua. Com o conhecimento da realidade a filosofia não têm um meio para existir de maneira autônoma. Em seu lugar, poder-se-á no máximo colocar uma síntese dos resultados mais gerais que é possível abstrair do estudo do desenvolvimento histórico dos homens. Essas abstrações, tomadas em si mesmas, desvinculadas da história real, não têm nenhum valor. 33
Para fugir da especulação, Marx e Engels apontam um caminho dentro de
uma ciência que explora a realidade objetiva e que dela não se distancia. Sendo que o
que passar da produção do conhecimento segundo as condições materiais pela
atuação na vida real, torna-se mera especulação sem nenhuma finalidade, portanto,
vazia e sem sentido, pois o único sentido possível tem que ser, necessariamente,
concreto.
Nesse sentido, investigar o processo que produz a subjetividade é investigar
uma dinâmica na qual o próprio investigador não pode ser visto como separado do
processo. Aqui o cientista não é dotado de uma capacidade especial, neutra, que pode
a partir dela, desenvolver um saber seguro sobre a subjetividade. Se o sujeito constitui-
se numa relação real, da qual abstrai conceitos, e desses conceitos transforma a
realidade, não cabe outra definição de ciência se não uma que investiga tais relações
materialistas, por partir da realidade histórica e por perceber tal processo; dialética por
conta das relações contínuas entre o subjetivo e o objetivo.
33 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 20-21.
4.2 O Surgimento da Psicologia
As reflexões de Comte influenciaram o contexto científico do século XIX. O
positivismo ganhou forma e aceitação no ambiente acadêmico, criando a idéia de que
todo o conhecimento seguro teria de ser necessariamente científico, utilizando métodos
considerados científicos. Assim, os métodos científicos tornaram-se essenciais para
obtenção do conhecimento aceitável pela academia. Com a estruturação da Sociologia
como ciência, buscando oferecer um conhecimento com base racionalista e empirista-
racionalista (observação científica) sobre os fenômenos sociais, surgiu a necessidade
de entender o universo mais intrínseco do humano. Para tal, foi negada toda reflexão
filosófica, por ser considerada especulativa, reduzindo a pesquisa sobre a subjetividade
que iniciava-se no século XIX, aos seus elementos invariáveis, voltados principalmente
para a compreensão fisiológica destes fenômenos. Assim, passou-se a pensar um
sujeito do ponto de vista da medicina, biologia e fisiologia, pois o conhecimento filosófico
foi negado para poder tornar essa ciência que surgia uma ciência positivista, aceita e
respeitada no contexto acadêmico.
As primeiras descobertas sobre o campo da Psicologia demonstraram as
dificuldades metodológicas da ciência positivista, pois seus métodos tornaram-se
insuficientes para obter tais conhecimentos sobre a subjetividade. Não apenas por conta
dos fenômenos subjetivos observados não se mostrarem invariados, pois os estímulos
até poderiam ser os mesmos, porém, as reações eram sempre diferenciadas; mas,
sobretudo, os próprios observadores também formulavam pareceres diferenciados
demonstrando dificuldades subjetivas diante dos fenômenos objetivos. Locke, segundo
Heidbreder (1981), refletia sobre a possibilidade de existir variações entre as
observações, sobretudo por conta da dimensão subjetiva do cientista. Porém, a
insistência em tornar a psicologia uma ciência levou aos estudos sobre fisiologia a
desenvolverem suas pesquisas tendo como base métodos positivistas.
Gustav Theodor Fechner (1801-1887) foi um pensador que desenvolveu
estudos em diferentes áreas como filosofia, fisiologia, física e psicofísica, sendo que seu
livro sobre psicofísica o fez ter grande prestígio na academia. A Psicofísica consiste na
relação entre a mente e a matéria que, segundo Fechner, conforme Schultz & Schultz1,
pode-se compreender os fenômenos subjetivos a partir dos métodos utilizados na física,
utilizando três desses métodos: 1 O Método do erro Médio. Consiste em fazer os
sujeitos ajustarem um estímulo variável até torná-lo um estímulo constante,
possibilitando a diferenciação dos experimentos subjetivos numa compreensão lógica e
invariável, devendo ser ajustada, pois pressupõe-se que variações não ocorrem nos
fenômenos e sim nos observadores dos fenômenos, mas estes podem ajustar os
fenômenos variáveis; 2 Método dos Estímulos Constantes. O método consiste em medir
a diferença entre dois estímulos diferentes, necessários para produzir uma quantidade
significativa de julgamentos corretos; 3 Método dos limites. Referindo-se ao método que
busca compreender a percepção dos sujeitos em relação ao aumento e diminuição, até
chegarem a um ponto em que torna-se perceptível ao sujeito que experimenta a
diminuição ou aumento de alguma sensação. Parece bastante propicio fazer uma
reflexão comparativa com o positivismo de Comte, pois a idéia de psicopatologia surge
como a desordem, como tudo o que encontra-se fora da ordem, pois a ciência positivista
pressupõe uma ordem natural, física, orgânica e agora subjetiva. Instala-se aqui a
necessidade de pôr em ordem a desordem psíquica, dando origem, se não a primeira
1 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da Psicologia Moderna, 1999. p p 75-102.
forma de tratamento, a mais divulgada na comunidade científica do final do século XIX,
a psicanálise, a qual comentaremos posteriormente.
Segundo Schultz & Schultz2 Wilhelm Wundt (1832-1920), com sua obra
Contribuições para a Teoria da Percepção Sensorial, lançou a base da nova ciência.
Suas considerações foram inéditas e os resultados de suas pesquisas estimuladoras
para fazer da psicologia uma ciência. Pela primeira vez a psicologia ganhava uma
dimensão positivista, com o termo criado pelo próprio Wundt: Psicologia Experimental.
Além do livro Wundt apresentou uma série de conferencias sobre a mente dos animais e
a mente dos homens, baseadas nas suas próprias observações. Em 1867 Wundt
organizou um curso de Psicologia Fisiológica. Foi a primeira proposta formal de curso
nessa área no mundo. A partir de 1875 Wundt tornou-se professor de Filosofia da
Universidade de Leipzig, construindo ali um laboratório de Psicologia Experimental e
divulgando suas pesquisas numa revista de Filosofia que criara posteriormente.
Citando ainda Schultz & Schultz3, a Psicologia de Wundt recorreu aos
métodos das ciências naturais, pois encontrava neles a definição de homem que
poderia ser estendida até a compreensão dos fenômenos da subjetividade, sendo que
seu objeto de estudo era a consciência e o método utilizado era a análise e a redução.
Pode-se dividir a natureza das experiências conscientes propostas por Wundt em:
imediatas e mediatas; sendo que a primeira refere-se ao conhecimento dos objetos
captados diretamente da experiência pelos sentidos. Por exemplo, quando a experiência
traz uma informação sobre um determinado objeto como um cachorro (sendo a primeira
experiência sensível com o objeto pelos sentidos), as qualidades do cachorro não
2 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da psicologia Moderna, 1999. p p 81-88. 3 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da psicologia Moderna, 1999. p 82.
correspondem ao foco de nosso interesse, como a cor, tamanho, forma... pois não são
essas evidências que a experiência traz primeiramente. A segunda, mostra que a
experiência mediata nos dá as informações sensíveis sobre os objetos, porém, já pode-
se conceituar o objeto, sendo assim, observa-se, por exemplo, a forma, cor e tamanho
de um cachorro inicialmente, podendo formular na mente a idéia da existência do
cachorro. De qualquer forma fica aqui evidente que o experimento e a observação
tornam-se importantes para compreender tais fenômenos, mas seu principal método era
a introspecção.
Conforme Schultz & Schultz4, Wundt compreendia que a Psicologia
Experimental que tem como objeto a consciência, deveria ter como proposta
metodológica a introspecção, pois para Wundt, tal como ocorria nas ciências naturais, o
próprio funcionamento fisiológico garantiria a ordem da mente, pois tal como o
funcionamento do corpo, supunha o funcionamento da mente. Assim, a auto-avaliação e
a auto-observação tornou-se uma das formas utilizadas pelos pesquisadores para
compreender a mente, haja vista, que existia confiança no uso da razão do cientista,
fazendo parte da prática dos psicólogos experimentais o uso de tal técnica. Ainda
conforme Schultz & Schultz (1992)5, depois de definir os métodos e o objeto de estudo
da Psicologia, Wundt propôs-se a definir o objetivo da nova ciência.
Tendo definido o objeto de estudo e o método da psicologia,
Wundt procurou definir o objetivo da nova ciência. De acordo com ele, o problema da psicologia era tríplice: (1) analisar os processos conscientes até chegar aos seus elementos básicos; (2) descobrir como esses elementos são sintetizados ou organizados; (3) determinar as leis de conexão que governam a sua organização. 6
4 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da psicologia Moderna, 1999. p 82. 5 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da psicologia Moderna, 1999. p 83. 6 SCHULTZ, Duane P.SCHULTZ, Sydney, Ellen. História da Psicologia Moderna, 1992. p 83.
Quanto aos objetivos de Wundt, concluí-se que: 1 A análise dos processos
conscientes, propondo-se chegar ao conhecimento de seus elementos básicos,
demonstrou a mesma vertente metodológica de Comte, pois os elementos básicos são
necessariamente invariáveis, sendo que a partir do momento em que não forem, não
poderão ser considerados objetos do estudo científico; 2 Também, conforme Comte,
Wundt pressupôs uma ordem necessariamente organizativa, poderia-se dizer que sua
proposta deu origem a uma Psicologia da ordem, da organização dos fenômenos
psíquicos, a partir da explicação natural, sendo que a falta dessa organização ocasiona
a desordem psíquica, o que mais tarde daria origem à psicopatologia clínica; 3 Se é
suposta uma ordem, entender a organização dessa ordem é também fundamental.
Seus estudos sobre as sensações mostraram que a relação entre o cérebro e
a experiência, buscando demonstrar a captação do estímulo e o processamento dos
nervos levando até o cérebro a informação, tinha como finalidade compreender os
fenômenos psíquicos, a partir de uma visão organicista. Também propôs uma dicotomia
entre mente e corpo, podendo, a partir dessa reflexão, estudar a mente separadamente.
Os sentimentos, junto com as sensações, são, para Wundt, as duas formas elementares
de sua psicologia. Sendo que os sentimentos complementam as sensações, dando a
elas uma dimensão subjetiva complexa.
Seguindo os passos de Fechner, Hermann Ebbinghaus, segundo Schultz &
Schultz7, passou a estudar a memória da mesma forma que Fechner estudou a
Psicofísica, usando medidas rígidas e sistemáticas. Contrariando Wundt, pois
Ebbinghaus avançou em suas pesquisas, mesmo sabendo que Wundt havia dito que
seria impossível algum dia estudar empiricamente a memória. Seus estudos foram
7 SCHULTZ, Duane P. SCHULTZ, Sydney Ellen. História da psicologia Moderna, 1999. p p 88-92.
considerados de grande importância para a Psicologia Experimental fortalecer-se como
a mais nova ciência do século XIX. Buscando no associacionismo o princípio à
recordação, Ebbinghaus passou a entender a memória como sendo construída a partir
de idéias que são resultados da experiência, acessadas na medida em que o
pensamento associa tais idéias, remontando-as organizadamente.
Alguns outros cientistas, cujas pesquisas foram fundamentais para a
Psicologia tornar-se uma ciência no século XIX, como Georg Elias Muller (1850-1934),
que reformulou as pesquisas da Psicofísica de Fechner, fazendo a Fechner várias
críticas, sendo o primeiro a trabalhar na área criada por Ebbinghaus, com aprendizagem
e memória, elaborando críticas à aprendizagem vinculada à mecanicidade, afirmando
que o mecanicismo, sozinho, não explicava a aprendizagem, nem o associacionismo
explicaria a memória. Franz Brentano (1838-1917), desenvolveu reflexões críticas em
relação à Psicologia Experimental de Wundt, criando a Psicologia empírica, que
construiu-se como uma ciência cuja observação sem experimentos fora seu ofício. Em
todos estes cientistas ficou evidente o uso dos mesmos métodos positivistas utilizados
nas ciências naturais, pautados na combinação do uso da razão e da observação para
compreender os fenômenos psíquicos, percebendo-os como respeitando a mesma
ordem e organização que Newton supôs existir na física.
Neste sentido, o surgimento da psicologia como ciência foi pautada nos
métodos positivistas, produzindo saberes sobre os sujeitos, da mesma forma que a
sociologia produziu saberes sobre a sociedade. Normatizando o funcionamento da
sociedade e dos sujeitos, a partir de uma suposta ordem da física, existente nela,
pautada numa suposta ordem matemático-físico-astronômica-fisiológico-social que os
fenômenos subjetivos deveriam também seguir, como os demais objetos observados
pela ciência. Foi exatamente esta normatização que apontou o caminho para o
desenvolvimento da subjetividade em conformidade com o desenvolvimento da
sociedade, com o desenvolvimento econômico capitalista, possível pelo uso da razão,
diriam todos os cientistas expostos neste capitulo.
Foi exatamente a idéia de normalizar, apontando um caminho para a
humanidade, que produziu saberes sobre a anormalidade, fazendo com que a
psicologia enquanto ciência da subjetividade oferecesse métodos para normalizar a
anormalidade existente no mundo subjetivo de muitas pessoas, sendo sempre um
colocar novamente em ordem, pois todas as dimensões do humano existiam, segundo
os cientistas positivistas, dentro de uma certa organização, cuja desorganização era
uma disfunção que deveria ser corrigida. Nesse contexto surgiu a psicanálise, dentro da
ciência positivista. Por ser Freud8 um neurologista, tentou introduzir no bojo do
positivismo a psicanálise, nesse sentido, existiu uma tentativa de Freud em fazer a
psicanálise habitar conjuntamente com o positivismo, porém, os próprios cientistas
positivistas rejeitaram tal iniciativa de Freud, por propor um método não utilizado na
ciência positivista, a saber, a observação de fenômenos inconscientes, negando a
racionalidade positivista, dada a priori. Nesse sentido, a psicanálise contrapôs o
positivismo quando percebeu que ambas não poderiam habitar o mesmo ambiente
científico. Assim, a psicanálise tornou-se revolucionária, pois trouxe para a academia
reflexões sobre uma dimensão da psiquê que fugia da ordem racional, ou seja, o
inconsciente, de onde surgiram os pulsões que dão origem à personalidade. Sigmund
Freud (1996) chamou essas pulsões de energia libidinal, a energia existente numa
dimensão inconsciente da estrutura psíquica.
8 Médico neurologista criador da abordagem psicanalítica.
Aqui encontro um paralelo não destituído de interesse.
Enquanto, para a maioria das pessoas, ‘consciente’ e ‘psíquico’ são a mesma coisa, fomos obrigados a ampliar o conceito de ‘psíquico’ algo que não é ‘consciente’. Exatamente do mesmo modo, enquanto outras pessoas declaram serem idênticos o ‘sexual’ e o ‘referente a reprodução’ (ou se preferem resumir mais, o ‘genital’), não podemos evitar de postular a existência de algo ‘sexual’ que não é ‘genital’ – que não tem nenhuma relação com a reprodução. Aqui, a similitude é apenas formal, mas não deixa de ter um fundamento mais profundo. 9
Freud estabeleceu o chão de onde a psicanálise partiu, compreendendo os
fenômenos subjetivos a partir do inconsciente. Nesse sentido, contra-positivista. Da
mesma forma, Freud percebeu diferença entre a dimensão biológica da sexualidade e
sua dimensão psíquica, compreendendo que existe algo da sexualidade que não é
biológico, portanto, não está relacionado com a reprodução. Nesse sentido, a
psicanálise colocou-se na contramão das ciências positivistas, pois estabeleceu um
novo princípio, a energia libidinal, instintiva, portanto, inconsciente. A personalidade
passou a ser entendida por Freud como possível de desenvolver-se a partir do momento
em que a criança consegue fantasiar entre o desejo e a satisfação. Dessa forma, a
razão não era o princípio para entender a subjetividade.
Quando Freud tentou mostrar que as pulsões da libido ficam numa das
estruturas do aparelho psíquico chamado ID, sendo sua maior parte inconscientes,
sofreu objeções dos cientistas do século XIX, que se mostraram completamente
contrários as suas conclusões. Sobre isto, diz Freud:
Podemos desafiar a quem quer que seja, no mundo, que faça
uma descrição científica mais correta desta situação e, se o fizer, de bom grado renunciaremos à nossa hipótese de processos mentais inconscientes. Enquanto tal não acontecer, porém, nos aferraremos à hipótese; e se alguém levantar a objeção de que aqui o inconsciente não constitui nada de real, num sentido
9 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 326.
científico, que é um artifício, une façon de parler; podemos apenas sacudir os ombros resignadamente, e não levar em conta o que diz, por ininteligível. Algo não real, que produz efeitos de uma realidade tão tangível como um ato obsessivo! 10
Nesse texto, já pode-se perceber seu distanciamento do positivismo, mas em
dialogando com ele. Assim, Freud fundamenta sua hipótese, da qual não se desvia,
apontando a existência de processos mentais inconscientes, os quais apenas serão
deixados de ser observados, caso algum cientista consiga provar que os mesmos não
existem.
Freud classifica as investidas da energia libidinal como sendo de duas formas
e em dois momentos distintos. A primeira é completamente instintiva, visa somente à
necessidade, nela não há nenhum mecanismo que torna possível à construção da
subjetividade. A segunda aparece na transformação da primeira, dando origem à
pulsão, não sendo mais apenas necessidade, mas desejo, e a partir do desejo funda-se
a estrutura psíquica. O processo dessa construção acontece na medida em que as
pulsões inconscientes repetem-se de tal forma que a energia libidinal da psique é
vinculada à representação mental, direcionando o impulso para um fim predeterminado,
numa catexia estruturante do Ego.
Imaginemos o ego como uma rede de neurônios catexizados
e bem facilitados entre si, da seguinte maneira: suponhamos que uma quantidade (da ordem de magnitude intercelular) penetrasse no neurônio vindo do exterior do sistema de neurônios permeáveis, então, se não fosse influenciada, ela passaria para o neurônio b; mas ela é tão influenciada pela catexia colateral α – α que libera apenas uma fração para b, e talvez nem sequer chegue de todo a b. Logo, se o ego existe, ele deve inibir os processos psíquicos primários. 11
10 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 285. 11 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 376.
Aqui ainda pode-se observar uma proposta da psicanálise que tenta conciliar-
se com a neurociência positivista do final do século XIX. O avanço dessas
considerações estão no entendimento de que o Ego não comporta toda a estrutura da
subjetividade, compondo apenas uma parte da subjetividade, pois as investidas das
pulsões, na maioria das vezes, não se tornam conscientes, consolidando o Ego, por
isso, uma quantidade significativa de conteúdo psíquico fica no inconsciente, objeto de
estudo da psicanálise.
Na primeira publicação da Enciclopédia Britânica sobre a Psicanálise, Freud
comenta o surgimento desta, no contexto científico, explanando-a de forma bastante
objetiva, mostrando em que consistia a abordagem psicanalítica. O artigo foi publicado
na XI Edição da Encyclopedia Britannica, após a morte de Freud, escrito pelo próprio
Freud, porém, modificado o estilo, cuja narração costumeira na primeira pessoa do
singular foi substituída por uma narração de comentador, exigida pelo caráter da obra.
Algumas considerações devem ser colocadas sobre o texto de Freud, pois segundo a
Psicanalista Débora Búrigo12, o texto foi escrito no inicio das reflexões de Freud e
abandonado por ele posteriormente, pois percebeu que a psicanálise não poderia
coabitar com a ciência positivista. O que deve ser levado em consideração, pois
demonstra que na sua evolução, a psicanálise modificou sua visão inicial, porém, o texto
pode nos mostrar sua origem, seus conceitos mais básicos e iniciais.
A psicanálise encontra apoio sempre crescente como método
terapêutico, devido ao fato de que pode fazer mais pelos seus pacientes de qualquer outro método de tratamento. O principal campo de sua atuação são as neuroses mais brandas – histerias, fobias e estados obsessivos; e nas malformações do caráter e inibição ou anormalidades sexuais ela também pode trazer acentuadas melhorias ou recuperações. Sua influência sobre a demência precoce e a paranóia é duvidosa; por outro lado em
12 Psicóloga psicanalista entrevistada em seu consultório, na cidade de Criciúma - SC, 14-11-2007.
circunstâncias favoráveis pode lidar com estados depressivos, mesmo se forem de tipo grave. 13
Nesse sentido, a psicanálise mostra suas limitações, pois seu método não dá
conta de tratar a paranóia. É em cima dessa limitação que surgem as críticas de
Deleuze e Guattari que serão discutidas no último capítulo dessa obra, entendendo que
as mesmas limitações da psicanálise são as limitações do capitalismo, portanto, ambas
são aliadas. Sua preocupação restringiu-se aos fenômenos considerados mais brandos
do sofrimento psíquicos. Pois, se a Psicanálise coloca-se como uma teoria que surge a
partir das pulsões de desejos que são inconscientes e produtos das relações sócio-
culturais, a paranóia sendo também uma produção sócio-cultural não pode ser
conjurada pela psicanálise, mas será retomada a discussão no último capítulo.
Possibilitando esta proposta por meio de estudos sobre a organização e desorganização
psíquica. Entendendo que a partir desses estudos poderia viabilizar a recuperação das
doenças mentais, ou seja, na medida em que entendia os mecanismos da
desorganização, propunha mecanismos para reorganização, pois os mecanismos que
produzem a ordem e a desordem psíquica são, para Freud, os mesmos.
[...] não existe motivo para surpresa que a psicanálise, que
originalmente nada mais era que uma tentativa de explicar os fenômenos mentais patológicos, deva ter-se desenvolvido numa psicologia da vida mental normal. A justificativa disso surgiu com a descoberta de que os sonhos e os erros [‘parapraxias’, tais como lapsos de linguagem etc.] de homens normais têm o mesmo mecanismo que os sintomas neuróticos. 14
Nesse sentido, Freud percebeu que os mecanismos psíquicos existentes,
tanto para os sujeitos considerados normais como para os sujeitos considerados
13 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 254. 14 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 256.
anormais, são os mesmos. Diante dessa afirmação freudiana, a psicanálise distancia-se
mais da ciência positivista, pois considera a psicopatologia como sendo produzida a
partir dos mesmos mecanismos psíquicos que dão origem ao sujeito considerado
normal, portanto, a psicanálise não considera o fenômeno psicopatológico como tendo
uma origem organicista. Porém, se são os mesmos mecanismos psíquicos que
constroem a normalidade e a anormalidade psíquica, a idéia de tratar a anormalidade é
positivista, pois é considerada a priori, no sentido de estabelecê-la como modelo de
psicopatologia. Posteriormente Freud abandona essa idéia de anormalidade
preconcebida e fundamenta sua teoria a partir de uma visão em que a anormalidade é
percebida como sofrimento psíquico para o sujeito, buscando o equilíbrio, sendo que o
equilíbrio está posto sobre a idéia de uma ordem psíquica.
O curso dos processos mentais é automaticamente regulado
pelo ‘principio do prazer-desprazer’; o desprazer está assim de certa forma relacionado com um aumento de excitação, e o prazer com uma redução. No curso do desenvolvimento, o princípio de prazer original passa por uma modificação com referência ao mundo externo, dando lugar ao ‘princípio de realidade’, de conformidade com o qual o aparelho mental aprende a adiar o prazer da satisfação e a tolerar temporariamente sentimentos de desprazer. 15
Como foi comentado anteriormente, considera-se os aspectos da psicanálise
a partir das reflexões que evidenciam as bases iniciais da psicanálise, portanto,
mostram os conceitos embrionários dessa teoria. Dessa forma, pode-se considerar que
Freud, inicialmente, considerou que o princípio do prazer submete-se ao princípio da
realidade, ou seja, a forma possível de satisfação do desejo, podendo até adiá-lo. A
observação do princípio de realidade proposto por Freud, provoca a transferência, como
mecanismo de cura na psicoterapia psicanalítica. Este segundo conceito está mais
15 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 255.
diretamente ligado à transformação do desejo original por outro mais adequado à
realidade, conforme o Complexo de Édipo16, em que o desejo inicial da criança pela
mãe é substituído, na medida em que estrutura-se o Ego, bloqueando as pulsões de
desejo constituintes da subjetividade, em que a criança ao perceber a impossibilidade
da satisfação, procura realizar-se com outra pessoa, como por exemplo, numa outra
mulher que lhe dê amparo e carinho, pois a transferência evidencia-se quando
readequa-se o desejo original, substituindo a forma como realiza o desejo. Podendo ser
encontrada na relação terapêutica, necessariamente como cura.
Esse novo fato que, portanto, admitimos com tanta relutância,
conhecemos como transferência. Com isso queremos dizer uma transferência de sentimentos à pessoa do médico, de vez que não acreditamos poder a situação no tratamento justificar o desenvolvimento de tais sentimentos. Pelo contrário, suspeitamos que toda a presteza com que estes sentimentos se manifestam derivam de algum outro lugar, que eles já estavam preparados no paciente e, com a oportunidade ensejada pelo tratamento analítico, são transferidos para a pessoa do médico. A transferência pode aparecer como uma apaixonada exigência de amor, ou sob formas mais moderadas; em lugar de um desejo de ser amada, uma jovem pode deixar emergir um desejo, em relação a um homem, idoso, de ser recebida como filha predileta; o desejo libidinal pode estar atenuado num propósito de amizade inseparável, mas idealmente não sensual. Algumas mulheres conseguem sublimar a transferência e moldá-la até que atinja essa espécie de viabilidade; outras hão de expressá-la de forma crua, original e no geral, impossível. Mas, no fundo, é sempre a mesma, e jamais permite que haja equívoco quanto a sua origem na mesma fonte. 17
A psicanálise entende que o desejo inicial, quando não encontra forma de
realizar-se, passa a ser sublimado até poder moldar o desejo para tornar a transferência
viabilizada, levando em consideração o princípio de realidade, tornando-se uma
psicoterapia que observa esse processo de sublimação e transferência do desejo inicial
16 Da mitologia grega antiga, em que Édipo mata seu pai sem saber e casa-se com sua mãe também sem saber, utilizado por Freud para designar a relação do amor da menino com sua mãe. 17 FREUD, Sigmund. Edição Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 1996. p 443.
(Édipo). Encontrando nessa organização do psiquismo e do organismo biológico uma
homeostase necessária ao equilíbrio de todas as dimensões do humano, físicas,
orgânicas e psíquicas. Nesse sentido, a psicanálise tem como finalidade devolver o
equilíbrio que julga ser necessário ao psiquismo, sem o qual pode-se adoecer. Não
tendo outra finalidade se não devolver a paz e o equilíbrio interior, curando os
desequilíbrios, evidenciados pelo sofrimento dos sujeitos mediante o fluxo de energia
libidinal inadequada.
Por fim, tem-se que considerar o processo no qual a psicanálise estava
inserida, no bojo da ciência positivista, sobre a qual desejou inserir-se e posteriormente
almejou distanciar-se. Das psicologias do século XIX, a psicanálise foi a mais
revolucionária, pois a Psicologia Experimental de Wundt, a Psicofísica de Fechner e até
a psicologia Empírica de Brentano, foram consideradas como ciências psicológicas, pois
desenvolveram-se a partir da consciência, enquanto a psicanálise habitou outros
campos do conhecimento por não ser reconhecida como ciência, sendo que o
movimento que a coloca novamente no bojo da academia é bastante contemporâneo.
4.3 Prelúdio de uma Psicologia Materialista
Os saberes sobre a subjetividade, produzidos a partir da ciência positivista
oferece uma compreensão sobre os sujeitos segundo o racionalismo puro, ou a partir da
compreensão racional dos fenômenos experimentais. Pode-se dizer ainda que a
compreensão racional tende a um idealismo distante da realidade. Por essa razão a
explicação racional tem se mostrado insuficiente, pois não dá conta de explicar os
fenômenos, principalmente humanos, sendo estes, em muitos sentidos,
incompreensíveis a partir do racionalismo, por ser inflexível e dogmático enquanto
método. Nesse sentido, já foi mostrado que Freud revolucionou a psicologia quando
entendeu o aparelho psíquico a partir da energia libidinal, inconsciente, portanto,
irracional, opondo-se, em certo sentido, ao positivismo.
Ao tentar compreender os fenômenos subjetivos a partir das condições
materiais e históricas, muda-se o foco da visão sobre a subjetividade. A partir de então,
a subjetividade deixa de ser visa a partir da capacidade racional do cientista e torna-se
resultado de um processo histórico e das condições materiais de existência. Nesse
sentido, propõe-se avaliar, não apenas a produção dos saberes científicos a partir de
seus métodos, mas os saberes sobre a própria sociedade a partir desses mesmos
métodos, seguindo a proposta desse trabalho, que até agora buscou mostrar como o a
ciência positivista é definida a partir do racionalismo em que a razão é vista a partir de
representações da natureza humana e não de uma construção histórica, assim acaba
impedindo uma reflexão crítica da relação do saber científico com o contexto social.
Porém, ao considerar a sociedade como resultado de um processo histórico e
os sujeitos, produto das condições materiais, da mesma forma que agentes sobre essas
mesmas condições, não parti-se de uma natureza humana para explicar tal fenômeno, e
sim do processo histórico. Dessa forma, a ciência vista a partir do materialismo-
histórico-dialético, é produto social e não se põe como capaz de produzir saberes
independentes da história e das condições materiais. Assim, busca-se mostrar como a
ciência é vista a partir do materialismo-histórico-dialético constituindo-se como um
processo de produção de saberes que leva em consideração o desenvolvimento da
história e as condições materiais das relações sociais. Dessa forma, todo empenho
será para mostrada a visão que pode-se ter da ciência a partir de Marx, contrapondo-se
à ciência de cunho positivista, entendendo, a partir de então como a subjetividade foi
produzida nessa perspectiva.
A ciência positivista parte de uma explicação sobre a subjetividade, levando
em consideração as representações sobre a natureza humana existentes no
pensamento científico do século XIX. Comte entendeu que a ciência, terceiro e mais
evoluído estágio da produção de saberes sobre os variados temas de interesse
humano, mostra que o conhecimento seguro só pode ser possível por meio da razão.
Assim, todas as explicações sobre a sociedade e subjetividade até o século XIX foram
produzidas a partir do racionalismo, visando explicar a sociedade a partir da mesma
lógica organizatória da física, com suas leis que supõem uma ordem no universo,
trazendo essa mesma ordem para explicar a organização social. Como já foi discutido
anteriormente, a partir do pensamento de Comte, Fechner, Wundt e outros cientistas,
produziram-se saberes sobre a subjetividade dentro da perspectiva positivista, supondo
uma ordem natural na psiquê. Porém, agora, será visto como os saberes são produzidos
dentro da teoria marxista, levando em conta o processo histórico e as condições
materiais.
4.3.1 A ciência a partir do Materialismo-Histórico-Dialético
O materialismo-histórico-dialético não parte do pensamento como produtor
dos saberes, não do pensamento isolado, mas da realidade objetiva, das relações
objetivas, das condições materiais e históricas. Nesse sentido, o conhecimento não é
fruto do ato racional do sujeito do conhecimento, mas produto das condições materiais e
históricas. Não há um ideal a ser aplicado, desenvolvido a priori, direcionando a vida
humana.
Ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui é da terra que se sobe ao céu. Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir de seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das representações ideológicas desse processo vital.1
Os saberes produzidos pela ciência, na perspectiva do materialismo-histórico-
dialético, não estão colocados de forma destituída da objetividade do mundo, não são
produzidos de forma pura, pois o próprio sujeito do conhecimento é produto das
condições matérias, tanto quanto pode transformar essas condições. A razão, nesse
sentido, não é pura, é produzida, construída historicamente, e as idéias podem ser
modificadas a cada nova condição material e histórica. Assim, a ciência não se
distancia da produção da vida, sendo o seu conhecimento, tanto a causa como o efeito
das condições materiais. Pode-se pensar a ciência a partir de tal reflexão, como sendo
produto das condições materiais. Pois a ciência sozinha não tem história, não tem
desenvolvimento.
Não têm história, não têm desenvolvimento; ao contrário, são
os homens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações materiais, transformam, com a realidade que lhe é própria, o seu pensamento e também o produto de seu pensamento. 2
O conhecimento científico, ou mais amplamente falando, o conhecimento de
uma forma geral, é transformado na medida em que novas condições materiais surgem.
1 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 19 2 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 19-20.
Porém, Marx distingui o pensamento do produto do pensamento: o primeiro é
construído a partir da realidade; o segundo é a intervenção do primeiro, novamente na
realidade. Nesse sentido, o conhecimento científico não está posto sobre as relações
humanas determinando-as, ao contrário, está sendo produzido a partir das relações
concretas, produzindo também, novas formas de relações humanas. Mas, o
conhecimento é antes de tudo produto das condições materiais e históricas para
posteriormente produzir condições materiais e históricas. O conhecimento tem
finalidade de proporcionar inicialmente os meios para produzir as condições materiais
mais básicas: “O primeiro fato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem
satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material”.3 Posteriormente
“[...] satisfeita a primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento já
adquirido com essa satisfação levam a novas necessidades – e essa produção de
novas necessidades é o primeiro ato histórico”.4 Assim, o conhecimento acompanha o
desenvolvimento da sociedade, sendo produto das relações sociais e, posteriormente,
produtor das relações num processo dialético.
A partir das primeiras necessidades surgiram as primeiras iniciativas de supri-
las, sendo que essas iniciativas geraram novas necessidades, que também tiveram de
ser supridas, assim, a cada nova necessidade, novos conhecimentos surgiram com
finalidade de responder as demandas das novas condições materiais e históricas.
Dessa reflexão pode-se tirar duas conclusões fundamentais: 1. O conhecimento e as
condições materiais caminham juntas no desenrolar da história, portanto, não pode-se
compreendê-los separadamente; 2. A explicação do desenvolvimento do conhecimento
3 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 21. 4 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 22.
científico segundo o materialismo-histórico-dialético elimina a possibilidade de
investigação da natureza humana, propondo uma investigação sobre a condição
humana, restrita ao tempo e espaço.
A primeira conclusão leva a uma postura em que a ciência e a sociedade não
podem ser vistas isoladamente, pois coexistem, sendo que a finalidade da ciência no
capitalismo é servi-lo: “Subordinou a ciência da natureza ao capital e privou a divisão do
trabalho de sua última aparência de fenômeno natural”.5 O conhecimento científico na
sociedade capitalista passa a ser produzido para a condição de vida capitalista, sendo
quase que inteiramente direcionado para o mercado. Assim, o modus vivendi passou a
ser capitalista, os sujeitos dessa sociedade adaptaram suas vidas ás novas condições
materiais. Dessa forma, foi possível produzir saberes sobre a subjetividade acordados
com o funcionamento da sociedade capitalista, pensando-se que estava-se produzindo
saberes a partir da natureza humana, pois entendia-se que a razão era pura e
destituída de influências abstraídas da realidade objetiva, estando ela acima dessas
condições.
Assim, a ciência corroborou com o desenvolvimento do capitalismo pelo fato
de o capitalismo direcionar a ciência: “[...] mas onde estaria a ciência da natureza sem o
comércio e a indústria? Mesmo esta ciência da natureza chamada ‘pura’, não são
apenas o comércio e a indústria, a atividade material dos homens, que lhe atribuem
uma finalidade e lhe fornecem seus materiais?”.6 Ora, se a sociologia e a psicologia, no
século XIX, utilizaram a combinação do racionalismo com a observação para formular
seus saberes sobre os sujeitos e a sociedade em que esses sujeitos viviam,
5 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 17. 6 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 45.
entendendo que a razão era capaz de formular saberes sobre a natureza humana,
acabavam direcionando seus saberes para fortalecer a sociedade capitalista sem saber
que o faziam, pois pensavam que a razão era “pura”, e não resultado de um processo
histórico, levando em consideração as condições materiais. Em outras palavras, o
sujeito do conhecimento, o cientista, não percebia (muitos ainda não percebem) que
seu conhecimento é produto de suas condições políticas, sociais e culturais sofridas no
seu processo histórico. Assim, seu conhecimento era tido como seguro, como se a
natureza humana assim fosse, quando na verdade, desenvolvia-se a partir das relações
sociais. Dessa forma, foi possível fortalecer uma idéia de sujeito em conformidade com
o capitalismo, dentro de uma visão da ciência que era, em último sentido, utilitarista.
A segunda conclusão refere-se à impossibilidade de pensar um sujeito a
partir da natureza humana, podendo pensá-lo somente a partir de sua condição
humana. Na perspectiva do materialismo-histórico-dialético, não pode-se supor uma
natureza humana na investigação científica, entendendo que as condições materiais e
históricas não podem ser vistas a partir da natureza, pois evidenciam a transformação
da natureza. Se o humano é resultado de um processo móvel, em que as condições
materiais e históricas podem ser transformadas, novas formas de existência no mundo
podem surgir. Nesse caso, as condições humanas podem mudar e novos saberes
deverão surgir para dar conta de entender e ajudar a vida humana. Nesse sentido, a
psicologia de base materialista é uma ciência que não trabalha com a idéia da
existência de uma natureza humana, mas sim de uma condição humana, pois a
produção do conhecimento, segundo o materialismo-histórico-dialético, percebe a
subjetivação como um processo sem princípios inatos; nem mesmo a sociologia pode
ser vista de uma forma positivista, pois é um processo que tem se evidenciado a partir
de constantes transformações, e nada garante que outras transformações não poderão
surgir. Assim, as condições materiais dão origem ao conhecimento em geral, mesmo o
conhecimento primitivo, também o conhecimento científico, principalmente, relacionado
ao conhecimento científico das ciência humanas como a sociologia e mais
precisamente, como é a proposta desse trabalho, a psicologia.
4.3.2 A Produção da Consciência
Neste item discute-se como no primeiro capítulo a questão da produção da
consciência, porém não buscando o mesmo sentido para compreender o objeto de
estudo. Enquanto no primeiro capítulo a finalidade era discutir o método, neste a
finalidade é discutir o processo de subjetivação, discorrendo sobre a produção da
consciência segundo o materialismo-histórico-dialético. Porém, agora o tema será
discutido com mais propriedade, cuja finalidade é pensar a consciência como
equivalente a subjetividade, diferente da intenção de pesquisa do primeiro capítulo, que
foi discutir a consciência para mostrar o método supra citado.
Pensar a consciência humana segundo o materialismo-histórico-dialético,
implica em negar todo ideal sobre o qual se constrói a realidade, partindo da realidade
como originadora da consciência: “Mas não se trata de uma consciência que seja de
antemão consciência ‘pura’”.7 Marx e Engels entendem que a consciência não pode ser
colocada como a priori em relação à experiência, ao contrário, é produto da experiência
e não se distancia dela. No princípio, a consciência é fruto das condições materiais tão
7 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 25.
próximas da realidade que objetivam-se na forma de camadas de ar agitadas8, sons,
signos, linguagem.
A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem
é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, que existe, portanto, também para mim mesmo e, exatamente como a consciência, a linguagem só aparece com a carência, com a necessidade dos intercâmbios com os outros homens. 9
O primeiro aspecto da consciência surge da necessidade de comunicação
entre os homens, na forma de linguagem. A linguagem evidencia uma relação entre
homens. O animal não está em relação, nos dizem Marx e Engels, nem pode estar, pois
não percebe a existência de nada como sendo para si. A natureza coloca-se para o
homem como fundamentalmente estranha, onipotente e inatacável, fazendo com que os
homens tenham a percepção de suas limitações frente à natureza, comportando-se,
inicialmente de forma totalmente animal. Por colocar-se como estranha, inatacável e
onipotente, tende o homem a distanciar-se dela, tornando viável sua transformação.
Essa relação limitada que o homem foi capaz de estabelecer com a natureza o fez
estabelecer uma relação com os outros homens também limitada, a partir da
transformação das suas condições materiais. O homem conseguiu, no desenvolvimento
de sua história, perceber uma interdependência limitada com outras pessoas e coisas
fora dele, daí a necessidade de comunicação, e com ela o desenvolvimento da
consciência. Nesse sentido, pode-se dizer que a consciência é um produto social.
Na medida em que as relações sociais aperfeiçoaram-se, as condições
naturais transformaram-se e a natureza que mostrou-se como transformável para ser
dominada pelo homem, a partir de suas disposições naturais como: vigor corporal,
8 Termo utilizado pelo próprio Marx, se referindo ao processo de formação da linguagem. 9 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 25.
vitalidade, rapidez... tornou possível o processo de transformação. Foram estas
disposições naturais que transformaram inicialmente a natureza, dando origem a divisão
do trabalho. Mas, somente quando foi estabelecida a divisão entre trabalho material e
trabalho intelectual, que a consciência deixou de ser consciência atrelada a realidade e
passou a produzir a si mesma sem a realidade, pois o trabalho intelectual produziu
conceitos destituídos da realidade. Nesse momento a consciência estabeleceu-se como
uma contradição, pois os conceitos ao distanciarem-se da realidade passaram a negá-
la. “A partir desse momento a consciência está em condições de se emancipar do
mundo e de passar à formação da teoria “pura”, teologia, filosofia, moral, etc.”10 Dessa
forma, o homem social entra em conflito com os conceitos isolados, mesmo que estes
tenham surgido das relações objetivas, pois distanciaram-se a tal ponto que foram
percebidas isolados. No entanto, os conflitos surgem, pois os sujeitos diferenciam-se
dos conceitos que tornam-se universais por uma imposição da classe dominante que
tende a fazer de seus ideais os ideais de todos.
Pouco importa, aliás, o que a consciência empreende
isoladamente; toda esta podridão só nos dá um resultado: esses três momentos – a força produtiva, o estado social e a consciência – podem e devem entrar em conflito entre si, pois, pela divisão do trabalho, torna-se possível, ou melhor, acontece efetivamente que a atividade intelectual e a atividade material – o gozo e o trabalho, a produção e o consumo – acabam sendo destinados a indivíduos diferentes; então, a possibilidade de esses elementos não entrarem em conflito reside unicamente no fato de se abolir novamente a divisão do trabalho.11
O conflito da consciência estabelece-se entre a força produtiva, o estado
social e a própria consciência, na medida em que a consciência mostra-se como
consciência pura, diferenciando-se da realidade objetiva que produz os indivíduos, que
10 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 26. 11 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 27.
por conta de suas condições materiais, constroem indivíduos diferentes, sendo que a
classe dominante impõe uma consciência que tende a mostrar-se como universal. O
conflito retoma às bases mais objetivas da produção da consciência, sendo que esse
movimento a transforma, partindo da própria condição material para refletir a condição
humana.
Se a consciência surge das condições materiais e desenvolve-se a partir da
história, não pode ser confundida com as propostas idealistas que estabelecem-se
atemporais, como categorias a serem aplicadas a cada momento histórico, nem mesmo
transformam-se a partir da crítica aos seus aspectos julgados insuficientes, mas
transformam-se a partir de uma prática que derruba as condições sociais que produzem
os ideais, evidenciando, dessa forma, a revolução: “[...] A revolução, e não a crítica, é a
verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria”.12
Nesse sentido, a consciência revolucionária é produto das condições materiais e
históricas, sendo, na medida em que não se distancia da realidade, a mola propulsora
da revolução.
Ao termos uma determinada classe dominante, teremos uma consciência
dominante posta como certa e inquestionável. As idéias de sua dominação são
propagadas enquanto a classe dominada segue tais idéias até o momento que as
condições materiais mostram à classe dominada que os ideais aceitos como universais
são um contra-senso, evidenciado pelas condições materiais diferentes dos ideais,
produzindo então, a consciência revolucionária, no exato momento em que pode-se
transformar as condições materiais. Essa contradição existe por existir uma finalidade
12 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 36.
de que ocupa-se toda classe dominante: propagar seus ideais e convencer a classe
dominada de que tais ideais são seus também.
Com efeito, cada nova classe que toma o lugar daquela que dominava antes dela é obrigada, mesmo que seja apenas para atingir seus fins, a representar o seu interesse como sendo o interesse comum de todos os membros da sociedade ou, para exprimir as coisas no plano das idéias. 13
Essa investida é própria de qualquer classe que torna-se dominante, fazendo
parte da própria luta de classes, até o momento em que a luta de classe for extinta pelo
desaparecimento das classes, quando a proposta comunista atingir seu ápice. Sobre tal
assunto, Marx e Engels, referindo-se a Hegel, comentam: “[...] reconhecer
conseqüentemente que são idéias ou ilusões que dominam a história”.14 Pois Hegel
estabeleceu o ideal destituído da história, portanto, puro, como capaz de conduzir a
realidade. Enquanto que para Marx e Engels a consciência revolucionária é um
movimento real e consciente que transforma a realidade objetiva e subjetiva. Nesse
sentido, a consciência para Marx e Engels distancia-se da consciência ideal,
restringindo-a aos seus mecanismos objetivos, da mesma forma que a consciência
revolucionária transforma-se na medida em que transforma a realidade, não havendo
nenhuma separação entre a consciência e a realidade, ao contrário, uma relação
estabelece-se entre ambas.
4.3.3 Psicologia, a Ciência da Condição Humana
13 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 50. 14 MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. Ideologia Alemã, 2007. p 52.
Quando reporta-se à psicologia, percebe-se uma ciência que tenta entender a
subjetividade a partir de representações da natureza humana, por isso, tal ciência tem
mostrado-se hegemonicamente fundamentalista. Suas investidas têm finalidades
específicas, dentre elas, destacam-se: compreender os sujeitos a partir de uma natureza
funcional, natural, colocando em ordem a desordem encontrada nos aspectos
considerados patológicos da personalidade. Nesse sentido, a psicologia mostra-se
dentro de uma ciência positivista, quase que em sua totalidade, com variações e críticas
ao positivismo, mas, em geral, segue esse modelo médico-psiquiátrico.
Uma psicologia materialista só pode ser pensada quando eliminada a idéia de
que a estrutura psíquica tem uma natureza, a investigação não pode ser direcionada
para a compreensão dos fenômenos psíquicos a partir de uma suposta natureza
humana.
Vêem-no [o homem] não como um resultado histórico, mas
como ponto de partida da História, porque o consideravam um indivíduo conforme a natureza – dentro da representação que tinham de natureza humana –, que não se originou historicamente, mas foi posto como tal pela natureza. 20
Pensar o desenvolvimento da ciência psicologia é pensar a busca de
fundamentos sobre os quais pode-se falar de uma subjetividade segundo uma natureza.
Assim, as diferentes representações existentes desde o século XVII, embasaram as
reflexões sobre a estrutura psíquica, levando a psicologia de uma corrente da filosofia
para tornar-se uma ciência quando utilizou os métodos da ciência positivista para
produzir uma compreensão da subjetividade que se por um lado tornou a psicologia de
20 MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, 1999. p 26.
fato uma ciência, por outro, produziu uma forma de entender a psiquê a partir de
fundamentos que expressavam uma representação da natureza humana.
Porém, quando tenta-se entender a psicologia a partir do materialismo-
histórico-dialético, descarta-se a compreensão a partir de uma suposta natureza
humana, pois as condições materiais e históricas é que produzem a subjetividade. Caso
tenha existido uma natureza humana, transformou-se completamente na exata medida
em que a natureza transformou-se. A naturalização da psiquê leva a um entendimento
sobre a subjetividade que não se restringe ao tempo e espaço, pois a estrutura psíquica
é vista como natural e ponto de partida de qualquer relação, cuja essência nunca
modifica-se, portanto é atemporal. Assim, naturalizar a psiquê é também idealizá-la.
No entanto, ao partir de uma compreensão materialista da psicologia, não se
pode pressupor que a psiquê tem uma natureza, ao contrário, é produto das condições
materiais e históricas. Nesse sentido, pode-se pensar uma psicologia, não a partir da
natureza humana, mas a partir da condição humana. Dessa forma, não se busca uma
ordem psíquica que visa um ideal, mas uma condição, ou condições, as quais devem
ser entendidas para poderem ser compreendidas, buscando melhorar a vida humana
diante de suas condições materiais e históricas. Assim, pode-se pensar no sentido da
psicoterapia, pensando a produção da própria condição humana, a partir de uma
singularidade, advinda das condições materiais que devem ser respeitadas, pois a
relação dialética que produz a subjetividade sempre tende a singularidade.
Quando parti-se das condições humanas, a estrutura psíquica torna-se móvel,
transformável a cada condição humana, portanto, não se pode trabalhar com modelos
previamente estabelecidos, ao contrário, deve-se rediscutir constantemente, sejam os
modelos psicoterapêuticos, sejam os modelos psicopatológicos, evitando dogmatizá-los,
pois as condições materiais e históricas, quando transformadas, mudam o processo de
subjetivação, mudando o sofrimento humano. Assim, a subjetividade deve ser entendida
a partir de relação com a realidade de cada sujeito, levando em consideração seus
aspectos culturais, sociais, políticos...
A subjetividade entendida nesses termos modifica a atuação do psicólogo no
sentido de eliminar seu ideal de ordem psíquica e entender a construção subjetiva a
partir da própria construção, que é sempre singular. Assim, toda desordem é desordem
para o sujeito, toda ordem é ordem para o sujeito, sendo ele o parâmetro singular, pois
as condições materiais podem ser idênticas, mas nunca são exatamente as mesmas. O
dilema está no contra senso entre a sociedade que define um ideal e o sujeito que foi
induzido a ver-se a partir desse ideal, quando o ideal lhe acarreta sofrimento, retomam-
se as condições reais e trabalha-se a terapia a partir delas e não a partir dos ideais.
Portanto, transformar a subjetividade é transformar sua história, suas condições
concretas, suas relações reais e, principalmente, a forma como sua vida é produzida,
sem direcionar para um ideal concebido a priori, trabalhando no plano real da vida, no
que é possível realmente transformar.
Nesse sentido, o cientista da subjetividade deve entender que a força
produtiva existente no ser humano não apenas produz o lucro, deve produzir a vida,
deve ser direcionada para produção da vida. Contrapondo-se, quando necessário, à
sociedade, pois se o sofrimento surge das condições materiais, essas condições devem
ser transformadas para o sofrimento psíquico modificar-se, numa nova transformação da
subjetividade.
Outro aspecto fundamental está na força que é encontrada no sujeito, não na
terapia, pois a força para a produção subjetiva está no próprio sujeito, cabendo à
psicoterapia apenas refletir as ações reais e possíveis para o sujeito transformar sua
realidade. Nesse sentido, o terapeuta não ocupa mais um lugar de destaque nesse
processo terapêutico, mas o sujeito torna-se produtor da própria vida, sendo que o
conhecimento científico deve ser utilizado para investigar as condições materiais gerais
e singulares, para a partir delas, auxiliar os sujeitos nas suas construções e nunca
defini-las ou direcioná-las por ele.
Por fim, uma psicologia da condição humana só pode desenvolver-se numa
ausência total de direcionamento da vida, de modelos previamente estabelecidos pelo
psicólogo, de situações desejadas. Se existir algo de ideal no desejo humano, este deve
ser trazido para o campo real, deve habitar o chão onde a vida acontece. A psicologia
materialista entende que a consciência não pode distanciar-se da realidade, portanto, a
consciência deve levar não à imaginação da vida, mas à realização concreta da vida,
em que, conforme já foi falado, o sujeito é autor de sua existência, dentro de suas
possibilidades reais.
4.3.4 Capitalismo e Subjetividade
Pensar a subjetividade segundo o materialismo-histórico-dialético torna-se
possível quando investiga-se os sujeitos de uma dada sociedade a partir de suas
condições materiais básicas e complexas, seu desenvolvimento histórico e sua síntese
resultado das relações dessas situações que armam-se no desenvolvimento da vida
humana e, mais precisamente falando, da história humana.
Partindo do racionalismo para compreender o capitalismo, como propôs Adam
Smith, tercei-a um sujeito isolado, pois a razão individualiza a subjetividade, no sentido
de ser produzida a partir de características individuais; quando parti-se do materialismo-
histórico-dialético, o sujeito é coletivo, pois pensar a subjetivação, na perspectiva do
materialismo-histórico-dialético, a história e as relações objetivas da sociedade são
entendidas dentro de um processo que produz a subjetividade.
Porém, para pensar o processo de subjetivação dentro da sociedade
capitalista, do século XIX, Marx e Engels entenderam que faz-se necessário entender
como funciona a produção da vida dentro da sociedade capitalista para poder entender
o processo de subjetivação nessa sociedade a partir das relações reais, da cultura, da
história e do desenvolvimento da sociedade. Sendo que pensar nesse processo que
produz os sujeitos da sociedade capitalista é pensar nos mecanismos funcionais dessa
sociedade como agentes constituintes da subjetividade. A proposta é pensar uma
Psicologia Materialista, portanto, compreender a visão marxista dos sujeitos da
sociedade capitalista do século XIX é o primeiro passo para entender o sujeito da
sociedade capitalista do século XXI.
Segundo Marx, pode-se falar inicialmente de alguns mecanismos como: a
produção, a distribuição, a troca e o consumo. A produção cria os objetos, segundo a
necessidade social; a distribuição reparte os objetos de acordo com as leis que fazem
funcionar a sociedade; a troca reparte novamente o que já está distribuído, porém, leva
em consideração as necessidades individuais; no consumo o objeto reverte-se em
satisfação das necessidades individuais. Percebe-se, inicialmente, que na produção a
pessoa objetiva-se, pois oferece sua força de trabalho; no consumo o objeto subjetiva-
se, pois passa a ser consumido segundo a necessidade subjetiva; a distribuição é
viabilizada pelas leis gerais da sociedade segundo a classe dominante, fazendo a ponte
entre a produção e o consumo, enquanto na troca a mediação é realizada pelo sujeito,
na ação do sujeito.
Na produção a pessoa se objetiva; no [consumo], a coisa se
subjetiva; na distribuição, a sociedade, sob a forma de determinações gerais dominantes, encarrega-se da mediação entre a produção e o consumo; na troca, essa mediação realiza-se pelo indivíduo determinado fortuitamente.15
Nesse sentido, complementa Marx “A produção é, pois, imediatamente
consumo; o consumo é, imediatamente produção. Cada qual é imediatamente seu
contrário”.16 Assim, a objetividade subjetiva-se e a subjetividade objetiva-se. Os objetos
criam aspectos subjetivos, pois são produzidos para os sujeitos, levando em
consideração a necessidade dos sujeitos. Sem necessidade não há produção, mas o
consumo reproduz a necessidade, diz Marx, pois o consumo tende à satisfação e assim
a necessidade torna-se consumo. Por outro lado, a produção cria um sujeito para o
objeto produzido. Quando o objeto é consumido, não é apenas consumido, é consumido
de determinada forma, por essa razão, também produz subjetividades, pois o sujeito
lança-se sobre os objetos.
A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne
cozida, que se come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes. A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor;17
Dessa forma, o objeto subjetiva o sujeito no consumo, pois mostra, não
apenas o que consumir, mas a forma de consumir. Pode-se dizer que a produção cria o
15 MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, 1999. p 30. 16 MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, 1999. p 32. 17 MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, 1999. p 32.
consumidor, os sujeitos consumidores, que, em última instância, são seres conforme o
sistema da sociedade, existente.
A distribuição primeiro distribui os instrumentos para a produção, distribuindo
as formas de os sujeitos produzirem a própria vida. A divisão do trabalho determina
como os sujeitos vão ocupar os diferentes postos da organização social. Em segundo
lugar, distribui os membros da sociedade de acordo com os produtos. Dessa forma,
evidencia-se a “[...] subordinação dos indivíduos a relações de produção
determinadas”.18 A subjetividade constitui-se enquanto subjetividade na sociedade
capitalista como determinada pelo sistema de produção e consumo. Porém, as
condições materiais de sofrimento promoveram a transformação da realidade objetiva e
subjetiva. Nesse caso, a subjetividade é constituída a partir das condições materiais,
tendo consciência da exploração, podendo, a partir de então, reconstruir-se
concretamente e conseqüentemente, subjetivamente. São as condições materiais que
evidenciam a exploração que produzem a consciência revolucionária, os sujeitos
revolucionários surgem a partir do momento em que a burguesia “(...) não só fabricou
armas que representam sua morte, como produziu também os homens que manejarão
essas armas (...)”.19 Assim, a subjetividade pode passar de oprimida para opressora,
quando as condições materiais e históricas puderem oportunizar essa transformação
concreta e subjetiva. Mas, para Marx e Engels, a classe operária, pela ditadura do
proletariado, não manterá a submissão de uma classe a outra, mas extinguirá as
classes e, conseqüentemente, a luta de classes. Mas fica evidente que os sujeitos
podem, na medida em que a consciência mostra o sofrimento, transformar a realidade e
18 MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política, 1999. p 36. 19 Engels, Friedrich. Marx, Karl. Manifesto do Partido Comunista, 1984. p 24.
assim, construírem suas subjetividades. Nesse sentido, a psicologia, exercendo seu
ofício, deve mediar o sujeito no seu processo de subjetivação, quando esse processo
caracteriza-se para o sujeito como sofrimento, porém, esse processo deve ser pensado
dentro das condições materiais e históricas de cada subjetividade.
5 CONCLUSÃO
Toda teoria que propõe ser a priori, pretende ser fixada de forma atemporal na
história, cujo conhecimento é produzido por um sujeito que almeja a eternidade. Nesse
sentido, não consegue olhar para si mesmo como resultado da história, ao contrário,
percebe-se como produtor da história, como ponto de partida da história. Sob este olhar
as idéias tendem a perpetuar-se, enquanto os sujeitos, móveis, tendem à mudança.
Conciliar o conhecimento que busca a atemporalidade e o sujeito restrito ao tempo e
espaço, põe em xeque ou o conhecimento ou o sujeito. Dessa forma, instaura-se um
grande problema para a ciência na formulação de seus saberes, o próprio
conhecimento. Quando colocado a priori, estabelece-se independente das condições
materiais em que os sujeitos produzem suas subjetividades, formulando saberes sem
conexão com a realidade, impondo-os aos sujeitos.
Partindo dessa reflexão, foi proposta deste trabalho mostrar que os saberes
sobre a subjetividade, não estão postos a priori, mas produzidos a partir da realidade,
da relação do homem com seu meio. Portanto, a psicologia, principal produtora dos
saberes sobre a subjetividade, deve ser vista sob a ótica dos fenômenos que a
compõem, nunca separada do mundo no qual ela habita. Quando vista dessa forma,
muda-se a compreensão sobre a subjetividade, deixando de ser dada a partir de
representações da natureza humana, passando a ser compreendida a partir da
condição humana, transformando o que há de natural. Dessa forma, pode-se falar em
compreender os fenômenos constituintes da subjetividade como produtores de
condições humanas e não de uma natureza humana; nesse sentido, os saberes sobre a
subjetividade, também são saberes sobre a condição humana.
O problema de conceber uma psicologia idealista está na apresentação de
modelos de normalidade e anormalidade, dados também a priori, não apenas modelos
de normalidade e anormalidade, mas, sobretudo, modelos de tratamento, como se os
sujeitos fossem construídos em série e não de forma singular. Somente com uma
psicologia idealista pode-se pensar a anormalidade, ou seja, a psicopatologia, dando um
termo apropriado, pois pensar os sujeitos a partir de suas construções, tem-se apenas
construções de subjetividades, cujo referencial são as condições materiais e históricas,
mas como a relação do sujeito com o meio é que determina essa construção, tendem a
singularidade, pois as mesmas condições materiais e históricas possibilitam sínteses
diferentes na dialética da subjetividade. De qualquer forma, não será possível pensar
com esse método o que previamente foi instituído como normal ou anormal, pois normal
e anormal é sempre o que existe de normal e anormal nessa produção, para quem está
produzindo a si mesmo, nunca referente a um modelo, como acontece numa psicologia
idealista.
Portanto, o materialismo-histórico-dialéico constitui-se enquanto método
revolucionário para a psicologia moderna, discutindo os sujeitos a partir de suas
construções, oferecendo reflexões mais próximas da realidade dos sujeitos para poder
pensá-los.
As conclusões desta obra ainda são bastante embrionárias, mas apontam
para um caminho que pode ser aprofundado, construindo repostas mais elaboradas
sobre a introdução do materialismo-histórico-dialético, enquanto método da psicologia.
Mas pode ser feito com o materialismo-histórico-dialético o mesmo que Comte fez com o
positivismo, considerando que os saberes a partir desse método podem ser inteiramente
verdadeiros e melhores do que outras verdades no campo da ciência. Não pode ser
essa a proposta do materialismo-histórico-dialético, pois o método em questão não visa
tornar-se fundamento seguro para nenhum conhecimento atemporal. O que pode-se
afirmar é que constitui-se como um contraponto fundamental para discutir o positivismo
e os saberes com base idealista, pelo menos, até que as condições materiais e
históricas mudem.
Por fim, acredita-se que essa reflexão deve tomar forma e encontrar espaço
para tornar-se conhecida, pois a subjetividade sempre demonstra complexidade quando
busca-se compreendê-la e deve ser discutida sobre muitos olhares, até que esgotem-se
as reflexões, coisa pouco provável. Até porque, esgotar a reflexão seria contraditório
com o método aqui utilizado.
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